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Olavismo e bolsonarismo Arthur Hussne Bernardo Introdução Paulo Guedes para Olavo de Carvalho: “Você é o líder da Revolução.” Steve Bannon sobre Olavo de Carvalho: “A história vai mostrar que ele é um dos grandes conservadores e filósofos.” Rafael Carneiro, Sem título , óleo sobre tela, 240×150 cm, 2019. Uma explicação prévia. À época em que este texto foi escrito, Olavo não era ainda tão conhecido quanto se tornou. Eram poucas, muito raras as análises de fôlego sobre o fenômeno do olavismo, apesar de ele já circular no subterrâneo da cultura política brasileira há muito tempo. Por motivos diversos, o texto acabou não sendo publicado. Quando ele foi redigido, entre outubro e novembro de 2018, já tinha certeza que o olavismo ganharia espaço privilegiado no governo Bolsonaro. Mais do que isso, algo me dizia que uma parte essencial do bolsonarismo devia ser buscada no movimento desencadeado por Olavo, ainda que esse seja apenas um componente de uma rede bastante mais complexa.

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Olavismo e bolsonarismoArthur Hussne Bernardo

Introdução

Paulo Guedes para Olavo de Carvalho:

“Você é o líder da Revolução.”

Steve Bannon sobre Olavo de Carvalho:

“A história vai mostrar que ele é um dos grandesconservadores e filósofos.”

Rafael Carneiro, Sem título, óleo sobre tela, 240×150 cm, 2019.

Uma explicação prévia. À época em que este texto foiescrito, Olavo não era ainda tão conhecido quanto setornou. Eram poucas, muito raras as análises de fôlegosobre o fenômeno do olavismo, apesar de ele já circular nosubterrâneo da cultura política brasileira há muito tempo.Por motivos diversos, o texto acabou não sendo publicado.Quando ele foi redigido, entre outubro e novembro de 2018,já tinha certeza que o olavismo ganharia espaçoprivilegiado no governo Bolsonaro. Mais do que isso, algome dizia que uma parte essencial do bolsonarismo deviaser buscada no movimento desencadeado por Olavo, aindaque esse seja apenas um componente de uma redebastante mais complexa.

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Acredito que, apesar de alguns elementos datados, apublicação deste texto ainda se justifica. Em primeiro lugarporque ele procura contextualizar o fenômeno Olavo deCarvalho, e não apenas explicar seu pensamento, masmostrar como a ascensão de sua popularidade nutriu umarelação simbiótica com o que veio a se tornar obolsonarismo. Segundo, porque ele avança algumashipóteses para a compreensão do olavismo que parecemnão ter surgido no debate, mostrando que, se muito foiescrito, ainda reina a incompreensão acerca do tema emquestão. Por fim, apesar de não ser um texto estritamenteacadêmico, ele não abre mão do rigor e tampouco de aomenos tentar uma análise original, sendo mais do que umapanhado de informações.

Que muito tenha sido escrito sobre Olavo nos últimosmeses, ainda parece difícil explicar a atração que opersonagem desperta. Não só jovens desavisados, mastambém muitas pessoas com mais bagagem intelectualpassarem a cultivar uma admiração irrestrita, um fanatismocego por essa figura. Mas, afinal, por que Olavo seduziutantos?

Tendo uma capacidade hipnótica de formar acólitosdevotos, Olavo não se pensa como um professor, mascomo um mestre que mostra uma forma de vida, educandoa mente e a alma. Em seus cursos, Olavo não apenassugere leituras, explica teorias ou faz análises políticas, mastambém responde a dúvidas concretas sobre os percalçosda vida cotidiana, oferecendo caminhos e soluções, além

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de comentar sobre formas de evolução espiritual,psicológica e moral. Não por acaso, os alunos adotampráticas de vida que estão além da mera formaçãointelectual, passando a entender seu encontro com Olavocomo um momento sagrado de renascimento. Fica claroque a conversão ao olavismo ou se faz por inteiro, ou não sefaz. Trata-se realmente de aderir a uma espécie de culto, decompartilhar um modo de vida, e não apenas de merafiliação intelectual.

Nessa conversão, começam a se imprimir nos alunos ascaracterísticas que mais se sobressaem no pensamento dopróprio Olavo: um pessimismo cultural decadentista; aidealização de um passado utópico; crença na renovaçãoda sociedade através de uma elite cultural; a reafirmaçãodo poder moral e espiritual do catolicismo; os temores deuma islamização do Ocidente; uma filosofia da históriareacionária; um realismo político extremado; uma políticade mobilização constante; o horror ao comunismo, aomulticulturalismo, ao politicamente correto e ao supostomarxismo cultural; a crítica ferrenha da filosofiauniversitária; as teorias de teor conspiratório.

Em resumo, uma síntese entre o paleoconservadorismonorte-americano e o reacionarismo romântico europeu,com elementos filosóficos aristotélico-tomistas. Some-se aisso indicações bibliográficas abundantes, sensacionalismoofensivo e eloquência verbal.

Em caso de crítica, Olavo pratica a arte da esquiva:

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prontamente desvia o foco da crítica, não raro fazendo umadevassa na vida pessoal daquele que o contesta.Habitualmente, classifica o crítico como um analfabetofuncional, passa por uma digressão sobre o problema daeducação universitária no Brasil, e termina com umpalavrão ou trocadilho envolvendo o nome da pessoa.O público vai ao delírio.

Com essa protosseita em operação em um modelo de rededescentralizada, o olavismo se espalhou e criou já aomenos duas gerações de seguidores fervorosos. Com achegada de Bolsonaro à presidência, procura-se fazer doolavismo uma espécie de ideologia oficial do governo paraas áreas da educação, cultura, relações exteriores ecomunicação.

Amigos que leram esse texto na época em que ele foiescrito criticaram o que parece ser um peso excessivoatribuído à figura de Olavo na ascensão do bolsonarismo.Há, evidentemente, outras correntes que convergiram parao bolsonarismo. Entretanto, acredito que sem o olavismonão haveria uma movimento bolsonarista, mas tão somenteum neopopulismo boquirroto, sem um núcleo ideológicoforte e minimamente coeso, que se encontra não apenas nogoverno, mas em órgãos da mídia tradicional, centrosuniversitários e, principalmente, em portais na internet.

Ainda hoje, é imprudente subestimar o poder de influênciade Olavo, afinal ele replicou sua mentalidade por meio deuma legião de ex-alunos. Por mais que Olavo pareça agora

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estar mais afastado dos assuntos governamentais, éflagrante que há olavistas convictos em altos postos dogoverno. Imbuídos de um espírito de revoluçãoconservadora, eles pretendem agudizar a guerra pelacultura daqui pra frente, fazendo um sufocamentoorçamentário, impondo filtros ideológicos (antesconhecidos como censura) e abrindo caminho fácil paraartistas conservadores. Avançando ao máximo noaparelhamento do Estado e escamoteando os opositores,os olavistas acreditam lançar as bases de uma nova altacultura.

Para terminar essa introdução, uma última hipótese. Olavotentou se aproximar das Forças Armadas, em especial doExército, por meio de conferências e palestra ao longo dosanos 1990 e também do começo dos anos 2000. Nessamesma época, alimentando-se das ideias de Olavo deCarvalho sobre Antonio Gramsci, em especial do livroA nova era e a revolução cultural (1994), o general SérgioAugusto Avellar Coutinho publicou os livros A revoluçãogramscista no Ocidente (2002) e Cadernos da liberdade(2003), mais tarde reeditado pela Biblioteca do Exército emversão ampliada sob o nome de Cenas da Nova OrdemMundial (2010).

Em especial ao longo dos anos 2010, a repolitização doExército fez com que a instituição começasse a afirmarmais e mais suas posições na arena política. Com diversosmilitares da reserva entrando na política, episódios deapologia ao coronel Carlos Brilhante Ustra, saudações ao

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golpe militar de 1964, rejeição dos resultados obtidos pelaComissão da Verdade e negação da existência de torturadurante o período ditatorial começaram a se tornar cadavez mais frequentes. A figura de proa, a que mais exploravaos limites da opinião pública, era, sem dúvida, Bolsonaro.Não por acaso, o militarismo convergiu para sua defesa,com atuação até mesmo explícita do general Villas-Boasem alguns episódios decisivos, constrangendo asinstituições democráticas com comentários intimidadores.General Villas-Boas que, junto com general Heleno, eramgrandes admiradores de outro general chamado… SérgioAugusto Avellar Coutinho1.

Isso nos faz pensar que a suposta divisão do governo entreuma ala militar-pragmática e uma ala ideológica-lunáticanão se sustenta, ou ao menos é muito menos rígida do quese poderia imaginar. Sem dúvida nesse primeiro ano degoverno houve diversos confrontos graves. Mas elesocorrem muito menos por uma falta de homogeneidadeideológica, por discordâncias quanto aos fins, do que pordivergências quanto aos meios a serem usados. A enormedistância entre o suposto positivismo prático de nossosmilitares e o reacionarismo delirante dos olavistas é muitomais ilusão de ótica do que outra coisa.

O bolsonarismo é um olavismo

“Não basta o impeachment, é preciso acabar com aNova República.”

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— Olavo de Carvalho, 2015

“A Nova República acabou.”

— Moreira Franco, 04/02/2019

Às 19h18 do domingo dia 28 de outubro de 2018, ficouconfirmada a vitória do candidato Jair Messias Bolsonarono pleito presidencial. Pouco após a confirmação doresultado pelo Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro fez seuprimeiro pronunciamento com uma “live da vitória” — umaforma bastante insólita de se comunicar com o país, masusual ao longo de toda a campanha do candidato. Comtransmissão de baixa qualidade e sinal instável, opronunciamento inicial se direcionou menos à nação doque a seus seguidores habituais. Ao lado da esposa,Michelle Bolsonaro, e da intérprete de libras, Angela Julião,ele explica ao longo dos sete minutos e meio do vídeo quaisserão os valores a guiar o governo. À mesa, quatro livros.Durante a fala, calculadamente ensaiada, mas maldisfarçando a total falta de articulação discursiva do recém-eleito, três dos livros são citados.

Primeiro, uma versão da Bíblia chamada A mensagem,bastante difundida e conhecida entre evangélicos, grupoque apoiou maciçamente a candidatura de Bolsonaro.Tendo sido originalmente publicada nos EUA em 2002 pelopresbiteriano Eugene Peterson, a obra é redigida emlinguagem simples e popular para recontar o livro sagrado.Em segundo, a Constituição de 1988, usada para se

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defender das frequentes acusações de que sua eleiçãoseria uma ameaça à garantia da ordem democrática emrazão dos discursos extremistas e contrários aos direitoshumanos. Por fim, como referência de grande líder, o livroMemórias da Segunda Guerra Mundial, de Churchill,estadista inglês sempre usado para trazer ar de grandeza elegitimidade a qualquer político.

O quarto livro não é diretamente mencionado, mas seuconteúdo perpassa o mecânico discurso do começo ao fim.Bradando contra o extremismo de esquerda, o socialismo eo comunismo, Bolsonaro faz referências veladas à obra.Trata-se do best-seller O mínimo que você precisa saberpara não ser um idiota, de Olavo de Carvalho, lançado pelaeditora Record em 2013. A essa altura, o livro já tinhaalcançado a marca de mais de 320 mil cópiascomercializadas, permanecendo durante muito tempo nalista dos mais vendidos.

Enquanto isso, Olavo era saudado nos fóruns de internetcomo o grande vencedor da contenda eleitoral. O resultadoteria sido uma coroação merecida por uma tarefa árdua quetomou vários e vários anos de sua vida. A fim de fazerjustiça, seus adeptos lembravam como o mestre, cujaslições haviam sido inestimáveis, foi uma das pedrasangulares da vitória de Bolsonaro. Alguns dias depois,quando já havia começado a redigir essas linhas, medeparei com um artigo do site Infomoney. Publicado no dia31 de outubro desse ano, o texto Não existiria Bolsonaro

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presidente sem Olavo de Carvalho é assinado peloeconomista Alan Ghani. Nele, o autor reúne as principaisexplicações de como foi possível a eleição de JairBolsonaro — o tema da segurança pública, o antipetismo,uma candidatura antissistema —, mas faz questão de frisarque “existe uma variável pouco explorada pelos analistasque foi fundamental para explicar ‘Bolsonaro presidente .̓Essa variável se chama ‘Olavo de Carvalho.̓” À primeiravista, a tese parece apenas apologética, mas será falsa?

Minha percepção é que, apesar de muito influente, oimpacto causado por Olavo ainda é amplamentesubestimado. Na internet, Olavo tem um público massivo.Os números impressionam: no Facebook, 524 mil curtidasem sua página oficial; no Twitter, 404 mil seguidores; noYoutube, 479 mil inscritos em seu canal. Em todas essasplataformas, as interações com as postagens de Olavo sãoda ordem de milhares, às vezes chegando a milhões, depessoas. Essas mídias geram um contato direto e, pelalinguagem muitas vezes desbocada de Olavo, repleta depalavrões, apelidos depreciativos e impropérios de todas asordens, uma conexão pretensamente autêntica com seupúblico. Tudo isso sem esquecer do já citado O mínimo quevocê precisa saber para não ser um idiota, que alcançouum número notável de vendas.

Mesmo se com esses números ainda possa parecerexcessivo o peso dado a Olavo no renascimento da direitano Brasil, não se pode esquecer que sua influênciafunciona não apenas por meio de sua obra — incluindo,

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nessa categoria, livros, artigos, programas de rádio, vídeosno Youtube e seu site —, mas também por meio de todosos seus discípulos diretos, criados no curso de filosofia queministra pela internet, ou indiretos, influenciadostardiamente pela leitura de seus livros. Nessa lista, estão,entre outros: Felipe Moura Brasil (jornalista na rádio JovemPan); Flávio Morgenstern (escritor no Senso Incomum);Lobão (músico); Danilo Gentili (“humorista” do SBT); JoiceHalssemann (eleita deputada federal por São Paulo);Marcel Van Hattem (deputado federal mais votado do RS);Allan dos Santos (do canal do Youtube Terça Livre); FilipeMartins (analista político); Nando Moura (youtuber).

O surgimento dessa nova geração formada por Olavo fezcom que ele saísse da solitária posição de exército de umhomem só para, aos poucos, ter a seu lado, cerrandofileiras, mais e mais pessoas, a maioria de perfil jovem ecom grande capacidade de influência.

Esse projeto de formar uma nova geração nunca foi umsegredo: Olavo falava abertamente de seu propósito decriar uma leva de intelectuais preparados para combater asuposta dominação do ambiente cultural pela esquerda.Esse exército treinado por Olavo de Carvalho tem, hoje,participação ativa em diversas áreas da esfera pública.Seus ex-alunos, com maior ou menor grau de proficiência,replicam a mesma estrutura de pensamento desenvolvidapor seu mestre. Essa pedagogia à margem das grandesuniversidades do país foi planejada por Olavo para servir decontraponto ao que ele pensa ser um ensino universitário

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decadente. Essa nova elite intelectual conservadorapassou, assim como Olavo, a usar as mídias alternativas,criando seus próprios blogs, seus canais no Youtube, suaspáginas públicas no Facebook, angariando um públiconumeroso, até que alguns foram alçados às mídiastradicionais, ampliando ainda mais o discurso antes restritoaos iniciados.

Esse encontro com Olavo é, segundo muitos de seusdiscípulos, libertador. O mestre prova a seus alunos que nomundo moderno impera a degradação moral, o caospolítico e a miséria intelectual. Muito próximo da retóricadecadentista que vai de De Maistre a Heidegger, essediscurso do declínio da civilização estimula uma cruzadapara a regeneração da sociedade. Os olavistas sãoconvocados a serem agentes de regeneração, em umchamado que é misto de elitismo esotérico e disciplinarevolucionária. Trata-se de instilar um sentimento de honrae grandeza em um empreendimento de guerra cultural, queé, no limite, uma guerra espiritual e santa.

Tudo se passa como se o aprendiz vivesse em uma redomade falsidades até que encontrou o filósofo e este vai revelarum caminho — intrincado e laborioso, mas um caminho —para a compreensão da Verdade. Basta checar o prefácioescrito por Felipe Moura Brasil para o livro O mínimo quevocê precisa saber para não ser um idiota; nele, o leitor ébasicamente convencido que não sabe de quase nada, masque com o livro pode finalmente entender como a realidadecircundante, tão enganosa a seus olhos destreinados,

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funciona. Mas qual é a filosofia de Olavo?

Calcado na tradição aristotélico-tomista, Olavo defende orealismo ontológico. Isso significa que a Verdade não éhistórica, mas, sim, objetiva, eterna e universal e a ela aconsciência humana tem acesso. Como só existe umaVerdade objetiva, a razão encaminharia às mesmasconclusões, sendo que a diversidade de opiniões seriaapenas uma multiplicidade do erro frente à unidade daVerdade. Porém, ela não é prontamente revelada,dependente apenas de fé; é, pelo contrário, um trabalhoárduo e penoso da inteligência humana que, através deuma preparação intelectual rigorosa — calcada na artesclássicas da retórica, lógica, gramática e dialética — pode,superando toda sorte de falsidades, apreender a Verdadepor meio de uma intuição filosófica. É uma filosofia queestá na contramão da modernidade.

A filosofia moderna é, para Olavo, uma mera empulhação,pois todas as suas variantes seriam ou subjetivistas, ounominalistas, ou relativistas, quando não uma combinaçãode mais de um desses elementos. O mundo moderno teriasido o palco do amargo eclipse das filosofias positivas,dando origem a uma plêiade de correntes — iluminismo,kantismo, hegelianismo, positivismo, nietzscheanismo,freudismo, heideggerianismo, desconstrucionismo, etc. —que afundariam a contemporaneidade na decadênciageneralizada. Todas essas correntes comungariam,malgrado suas enormes diferenças, uma característica emcomum: esvaziariam a civilização de seus valores

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fundamentais, tornando o mundo um lugar sem sentido e oser humano um reles animal que vaga pela terra sem umamissão definida. Contra a mutilação do Homem pelasfilosofias modernas — que carregariam um viésmarcadamente anti-humanista —, Olavo pensa narestauração de uma concepção integral do Homem.

A pobreza do mundo seria, antes de tudo, então, umapobreza de sentido, de espírito, de cultura. O sofrimentoderivaria da deprimente corrupção da cultura ocidental —tornada destrutiva, negativa, individualista, hedonista, laica,ateia e relativista. Contra os tormentos da época, Olavoreabilita uma filosofia que oferece certezas — senso demoralidade, conforto espiritual e formação clássica — emum mundo incerto, o que permite uma associação quaseimediata, e servil, com o personagem. É essa leiturabastante exagerada e totalizante da filosofia moderna,vendo-a como uma mera revolta simplista contra a tradiçãoe a Verdade, que informa um retorno a formas antigas defilosofia.

Assim, tem-se uma volta dos valores fundamentais —amor, família, verdade, sentido, espiritualidade, disciplina,autoridade. Acontece que essa teorização não apela aotradicionalismo ou à permanência das instituiçõesexistentes. Pelo contrário: o discurso é o do enfrentamentodo mundo moderno, não o de resistir a seu avanço, depreservar os poucos resquícios do passado ou de seenclausurar numa nostalgia nebulosa. Trata-se de um visãode ruptura subversiva, a ser efetivada pela luta destemida e

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audaciosa contra o sistema — não o capitalista, mas ocultural. O modelo é o de uma revolução conservadora, nãode um movimento puramente passivo; a tônica é deenfrentamento: para regenerar a civilização, há de secombater o moderno. Essa postura ofensiva não significa,entretanto, que sejam descartados elementos arcaizantes— um vago apreço pelo passado dourado e uma filosofiacatólica, por exemplo — do esquema, com o que sepercebe que é uma máquina engenhosa e disparatada:arcaísmo e novidade, conservadorismo e revolução.

Olavo também defende o indivíduo contra todo coletivismocoercitivo. Contudo, vê-se mal como esse tipo de filosofiapode de fato se articular com a defesa da autonomia daconsciência individual, tal como pretende Olavo. Se há umaVerdade absoluta sobre o que existe, os caminhos trilhadospelas diferentes consciências seriam falsos se nãoterminassem por apreender essa mesma Verdade. É comose a defesa da autonomia existisse apenas na medida emque ela chega no lugar esperado. Assim, caso se discordedo mestre, esteja preparado para receber uma saraivada dexingamentos de toda sorte. Essa pretensa libertaçãoindividual se transforma, então, em mutilação ou, no limite,aniquilação da consciência, que passa a operar comfórmulas prontas, através de raciocínios mecânicos emoldes pré-estabelecidos. A uniformização da consciênciaindividual acontece como se fosse emancipação.

É partindo dessa base filosófica que se pode de fato

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entender o que Olavo pensa sobre a política.

De todos os avatares da modernidade, sem dúvida omarxismo representa, para Olavo, o maior dos perigos.É que a articulação entre teoria e prática, a unidadedialética entre as duas, expressa pela noção de práxis, fariacom que o marxismo tenha uma influência muito maisconcreta e efetiva na realidade política do que qualqueruma das outras visões de mundo. Para além disso, omarxismo teria uma feição camaleônica: ele poderia sofrerinúmeras mutações sem deixar de lado seus propósitosúltimos de dominação totalitária e imperial.

Para Olavo, o perigo representado pelo movimentocomunista não acabou com o fim da União Soviética e aQueda do Muro de Berlim. Esses acontecimentos nãoteriam sido determinantes para derrotar de forma definitivaa estratégia. Não se atendo à definição clássica decomunismo como sendo a estatização do meios deprodução, Olavo explica que a liquidação integral daeconomia de mercado seria impossível. Dessaimpossibilidade surge uma nova estratégia: os comunistasteriam se alojado no campo da cultura, o que faria aacepção tradicional do comunismo se tornar caduca. Agorase tratava bem de outra coisa: o marxismo cultural.

Olavo reconhece em Antônio Gramsci o grande estrategistadesse marxismo repaginado. Na interpretação olavista,Gramsci postulava que a revolução, nas sociedadesocidentais, precisaria vir de transformações inicialmente

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culturais para, depois, tornarem-se políticas e econômicas.Anteriormente à tomada do Estado, seria preciso atingir ahegemonia cultural, através de uma revolução que precedea chegada ao poder. Essa revolução seria levada a cabo porintelectuais — num sentido bem amplo do termo — queestariam difusamente espalhados por vários campos dasociedade civil, mas sempre com um discurso afinado, jáque todos teriam ligação direta ou indireta com um Partidocapaz de coordenar uma estratégia abrangente. A família, aIgreja, a universidade, a escola, a mídia, os sindicatos, asassociações de bairro, os movimentos sociais deveriam sertotalmente transformados a fim de atenderem a esseprojeto revolucionário.

A Revolução Cultural — novamente: na forma pela qualOlavo interpreta Gramsci — seria uma engenharia social dealta complexidade, que prescindiria inclusive daconsciência dos agentes envolvidos, sendo umamanipulação capilarizada. Para obter um funcionamentopleno, essa Revolução no campo da cultura seria passiva,ou seja, uma revolução longa e duradoura, que procurassenão se construir por meio da força, mas do convencimentoprogressivo, podendo durar décadas até a construção dahegemonia necessária para chegar ao poder com oconsentimento da população. Sutil e quase imperceptível,operando pela doutrinação das massas, o convencimentocultural criaria uma sociedade civil suscetível à aceitaçãobovina dos valores revolucionários, fazendo a tomada dopoder ser uma decorrência necessária e natural do

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processo. Acontece que, para Olavo, esses novos valoresrevolucionários seriam uma violação de tudo o que há demais sagrado dentro da civilização ocidental.

Esse suposto marxismo cultural — financiadointernacionalmente por grandes bilionários, dos quais omais famoso seria George Soros — seria o responsável porfragilizar a cultura nacional, tornando os países maisfacilmente suscetíveis de serem dominados peloestablishment globalista. Não por acaso, essa elite globalapoia e promove uma agenda internacional levada adiantepor órgãos globais, como a ONU, com o fito de minar asoberania nacional e perpetuar seu poder. O globalismoexercido através do marxismo cultural seria o responsávelpor pautas como o “climatismo”, a “ideologia de gênero”, o“abortismo”, a “doutrinação nas escolas”. Ou, como defineo novo Ministro das Relações Exteriores: “globalismo é aglobalização econômica que passou a ser pilotada pelomarxismo cultural” sendo um “sistema anti-humano e anti-cristão”. O futuro chanceler foi diretamente indicado porOlavo de Carvalho.

Para Olavo, a modernidade estaria carregada de ideologiascom inclinações puramente destrutivas, que tornariam asociedade mais frágil, fazendo-a padecer diante de umaelite global cada vez mais ávida por poder, abrindo caminhopara a tirania. Contra isso, o Estado deve se impor comoaquele que vai recolocar a cultura tradicional na ordem dodia e, assim, reabilitar o povo. O combate ao relativismomoral degenerado — reabilitando os valores tradicionais —

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e à ofensiva globalista — colocando uma elite patriótica nopoder — andam lado a lado.

No Brasil, segundo a visão de Olavo, esse processo deocupação dos espaços institucionais foi iniciado peloPartido Comunista já nos anos 1940 e 1950. No entanto, ogolpe de 64 impediu que os comunistas passassem dopoder na esfera pública para um domínio efetivo doaparelho de Estado. Mas o regime militar, que pretendiacombater o comunismo, acabou por fortalecê-lo ao deixarum espaço aberto para que os militantes continuassem ater influência decisiva no âmbito da cultura. A ausência derepressão na esfera cultural permitiu que, com o fim daditadura, a esquerda pudesse alcançar o completo domíniodo poder político.

Praticamente todo o poder político no Brasil durante a NovaRepública seria de extração comunista em sua estratégiade dominação. Seja em uma vertente social-democrata,como o PSDB, seja em uma vertente trabalhista, como o PT,o sistema político pós-ditadura foi formado por umamistura de estrategistas gramscianos, políticos tradicionaise elite econômica, salvo a exceção honrosa — mas, naprática, inútil — do PFL, partido com algum tomconservador e liberal, mas que fez concessões excessivasàs pautas da esquerda, em especial às questões de gênero.Todo esse esquema foi apoiado pela grande mídia e pelaintelectualidade, blindando o establishment de toda equalquer crítica, que era prontamente taxada como loucura.

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O perigo representado pela classe política seriaenormemente reforçado com a chegada do PT ao governofederal. Para ele, o partido é uma organização criminosamancomunada com o que existe de mais perigoso napolítica latino-americana: o Foro de São Paulo. Órgãocriado pelo esquerda latino-americana a partir de reuniõesocorridas em 1990, o Foro consolidou toda a estratégia quevarreu o continente e que teria sido acobertada pelosprincipais órgãos da imprensa brasileira. Além de partidosde esquerda e da mídia tradicional, o Foro estariadiretamente envolvido com organizações criminosas, comoas Farc, tendo ligações com o narcotráfico internacional.Olavo não considera o PT um partido normal comaspirações legítimas ao poder, mas um dos atoresprincipais de uma organização envolvida diretamente comtráfico de drogas, o terrorismo e assassinatos em escalacontinental.

Para afrontar essa hegemonia cultural totalitária arquitetadapelo PT mediante ações criminosas, não haveria outrocaminho a não ser a construção paciente, vagarosa edeterminada de uma nova hegemonia. Uma hegemonia nãosurge, entretanto, da noite para o dia. Cansado de tentarconvencer a burguesia e os liberais de que a guerra culturalera necessária, e não apenas o combate contra o estatismo,Olavo começa, em meados dos anos 2000, a dedicar partede sua vida à formação do capital humano necessário paratravar essa guerra.

Enquanto no início dos anos 2000 muitos ainda

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acreditavam na ingênua utopia de que a internet poderiaser uma plataforma para uma revolução democrática,outros já haviam percebido seu potencial para veicularteorias, sem passar pelo crivo da opinião pública. Olavo foio pioneiro no mundo virtual, vislumbrando — muito antesdas redes sociais se tornarem virais — toda força doespaço que se tornaria decisivo para a política global umadécada mais tarde.

À época, Olavo já possuía o repertório intelectualnecessário para o empreendimento. O estofo teórico estavamontado ao menos desde meados dos anos 1990, quandoOlavo publica sua trilogia: A nova era e a RevoluçãoCultural: Frijof Capra e Antônio Gramsci; O jardim dasaflições: de Epicuro à Ressureição de César e O imbecilcoletivo: atualidades inculturais brasileiras. Assim, comuma compreensão estratégica e uma base intelectual,Olavo se lança em um novo mundo. Através do site denotícias Mídia Sem Máscara, fundado em 2002 junto comum grupo de colaboradores nacionais e estrangeiros, Olavopretendia oferecer uma análise de como a mídiamanipulava as notícias em prol do esquerda. Maspercebendo aos poucos que essa direita não precisavaapenas de informação não enviesada, mas sobretudo deformação, Olavo inaugura em dezembro de 2006 o podcastTrue Outspeak e, em março de 2009, o Curso online defilosofia, formando subterraneamente os próximosintelectuais de direita. Segundo seus dados, mais de 12 milalunos passaram por seu curso.

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Estudando esses passos de Olavo, fica perceptível que suacrítica à concepção ultra-historicista presente em Gramscinão impede que ele se sirva do pensamento estratégico doteórico italiano, ainda que de uma interpretação bastantequestionável. O ódio revela sempre mais do que se deseja:autor constantemente vilanizado por Olavo, AntônioGramsci é, não obstante, um de seus cavalos de batalha,largamente utilizado para servir de base a uma estratégiapolítica de longo prazo. O anticomunista Olavo temrealmente horror a todo gramscismo — menos, porém, aogramscismo de direita.

Olavo aposta na estratégia gramsciana — reforce-se: talcomo ele a interpreta — com sinais trocados: ocupaçãoprogressiva de postos na sociedade civil através deintelectuais orgânicos; constituição de uma viradasignificativa na opinião pública; conquista do poderdirigente através do domínio cultural; estabelecimento dehegemonia e, por fim, tomada do poder político com apoiomassivo dos cidadãos. Em suma, uma revolução passivapromovida por uma Guerra de Posições — processo lento,demorado, mas de potencial muito mais profundo do que amera tomada do poder. Para isso a organização da direitadeve se fazer em diversas frentes: educativa; religiosa;moralista; midiática; humorística; arísticas; e relativas amovimentos e redes sociais. Em todas as instituições, atentativa de afirmar o conservadorismo recôndito dasociedade brasileira, uma inclinação natural do país aotradicionalismo religioso.

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Já havia na cultura política brasileira uma vertente quecombinava autoritarismo, ordem e patriotismo, tradição daqual fazem parte, de maneiras muito diferentes, oIntegralismo dos anos 1930, o Partido da RepresentaçãoPopular (herdeiro do integralista), a linha dura dos militarese as concepções de Eneias Carneiro. Ainda que com ideiasdistintas, essas correntes tinham uma base ideológicaminimamente comum. E estiveram longe de serminoritárias, inclusive do ponto de vista eleitoral: o PartidoIntegralista com centenas de milhares de adeptos esimpatizantes; o candidato presidencial do PRP, PlínioSalgado, ex-líder integralista, com 8% de votos no pleitopresidencial de 1955 e a eleição de Eneias como deputadofederal por São Paulo em 2002 com mais de um milhão emeio de votos.

Ou seja, seria equivocado pensar que o olavismo surgiucomo uma anormalidade na história brasileira. Guardadassuas diferenças em relação às ideologias descritas noparágrafo anterior, já existia uma tradição para oflorescimento das ideias de Olavo, mesmo que ela tenhasofrido um refluxo no período pós-ditadura.

Mas além de uma receptividade histórica aos valoresdefendidos por Olavo, havia, é verdade, uma conjunturaespecífica: as revoltas de 2013 expressaram um amplosentimento antissistema. As tentativas de direcionar essafúria a algum ator político específico perderam — mesmoque Dilma e o PT tenham sofrido as consequências, é bomlembrar que a população favorável ao impeachment

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tampouco aprovava o governo Temer. Assim, apenas umdiscurso totalizante poderia casar com o espírito domomento. E era essa a perspectiva de Olavo: contra osistema em geral, e contra o petismo em particular, elesustentou a tese da Revolução Brasileira.

Se o golpe de 64 foi orquestrado pela elite militar-empresarial, que levou a classe média brasileiro a reboque,mais recentemente, a população — historicamente passiva— teria criado consciência de sua situação de opressãoextrema. Conceito extraído de nossa sociologia política,encontrado em autores como Guerreiro Ramos, Pessoa deMoraes e Raymundo Faoro, a Revolução Brasileira seria aderrubada do estamento burocrático pela ação do povo,que passaria a ter, pela primeira vez, voz ativa na decisãodo destino do país. Haveria uma luta histórica,multissecular, do povo contra o estamento burocrático quese incrustou no sistema político brasileiro. Olavo identificaas passeatas de 2015, para ele espontâneas, como sendo oponto culminante da dita Revolução Brasileira.

Nesse momento, fica evidente que as teorias de Olavohaviam ganhado não apenas repercussão midiática, masbase popular: todo esse discurso, que parecia obscuro paramuitos, circulou incessantemente por intelectuaissecundários, sobretudo após 2013. Foi a partir dessemomento que começaram a pipocar pelas redes a hashtag#olavo tem razão, ao mesmo tempo em que não era raroencontrar nas ruas, a partir das manifestações de 2015,pessoas usando camisetas com a mesma frase.

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É verdade que ainda em 2015 existiam diversas propostasnas ruas, sendo que a do impeachment era a menos radicaldelas. Acontece que o impeachment pelo impeachmentnunca foi a pauta de Olavo, pois seria preciso areconstrução do sistema, que estaria integralmentecorrompido não só pelo comunismo petista, mas pelaclasse política, pelo estamento burocrático que governa oBrasil há séculos. O impeachment deveria ser o começo daderrubada do sistema, e não apenas a queda de umapresidente. Isso levou Olavo a criticar, em 2015, o MBLcomo um movimento de conciliação. Enquanto os jovens doMBL queriam se aproximar dos partidos tradicionais decentro-direita, PSDB e Democratas, Olavo mostrou queuma mobilização popular de grandes proporções poderiafundar as bases de um novo sistema, sem ter que transigirem nada para os partidos tradicionais.

Primeiro passo de um processo, o impeachment deveria iraté o fim, sem recorrer a uma precoce intervenção militar,que seria apenas uma forma de liquidar o sistema sem terum movimento de massas real, abrindo mão danecessidade de que o povo lutasse ativamente pelatransformação. Fiel a seu esquema de conquistaestratégica do poder, Olavo rechaçou a ideia de umaintervenção militar, pois ela seria apenas uma tomada depoder sem apoio social efetivo, sem que as pessoasarriscassem seus votos em um projeto, o que levaria a maisuma situação como a de 1964: apoio à intervenção, masfalta de apoio ao regime que a sucedeu. Chegar ao poder

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pelo voto popular seria, em última instância, jogar o povocontra o sistema político apodrecido, o estamentoburocrático que estrebucha; se a população chancelou oprojeto do presidente, deve apoiá-lo em sua execução, oque seria visto como ilegítimo e autoritário no caso de umregime militar.

Nesse caso, Olavo radicalizava em relação aos liberaisconciliadores, que queriam apenas a saída de Dilma, comoRodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo e o MBL. Suasbrigas homéricas com os liberais selaram o destino dealguns deles, que foram mais ao centro, rompendo comOlavo, e de outros, que se moveram e mais e mais à direita.Essa “correção de rota” foi claramente um dos dispositivosresponsáveis por acionar um discurso não apenas liberal naeconomia, mas sobretudo conservador em termos sociais,angariando muitos e muitos votos para a extrema-direita.Que se pense no que era o discurso inicial do MBL —contra a corrupção, o intervencionismo econômico deDilma e a cultura estatista no Brasil — e o que ele setornou: uma guerra aberta contra toda a pretensadeformação da cultura e da moral pela esquerda(QueerMuseum, Escola sem Partido, cura gay…) Isso foi oque possibilitou a continuidade do movimento, emdetrimento de dezenas de outros, como o Vem pra Rua, queempunharam apenas a bandeira do impeachment comosolução final.

Depois de firmemente consolidada a nova culturaconservadora, Olavo passou a clamar, pelos idos de 2016,

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uma espécie de democracia plebiscitária, em que o povodeveria criar as novas instituições responsáveis por efetivarsua liberdade, indo mesmo contra o impeachment em favordessa solução verdadeiramente… revolucionária. Aconteceque o sistema político resistiu.

Não era claramente perceptível no biênio 2015–2016 queas alas mais radicais das manifestações se sairiamvencedoras de um processo que, iniciado em 2013,terminaria apenas em 2018. Contudo, o que se passou de2015 até 2017 deu um impulso extraordinário aos queabraçavam a tese da radicalização: o derretimento daoposição tradicional com o envolvimento de Aécio Nevesem escândalos de corrupção, a dinamitação progressiva dogoverno Temer pela Lava-Jato, a pseudorrecuperação dacrise econômica, a desmoralização midiático-judiciária emoral do Partido dos Trabalhadores. É assim, dosescombros do Brasil de então, das ruínas da NovaRepública, que surge o novo.

Durante o governo pós-impeachment, estava sendogestada uma candidatura ultrarradical que poderia ser oveículo de uma transformação verdadeira, dandocontinuidade à Revolução Brasileira iniciada em 2015 econseguindo afrontar, agora de forma real e definitiva, oestamento burocrático que domina o país. Com oesfacelamento do sistema pelas denúncias de corrupçãogeneralizadas e o descrédito total da classe política, éalimentada uma busca por uma opção ordeira, pelocombate ao problema da segurança pública, pelo espírito

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marcadamente anti-petista, pelo apoio integral e semressalvas à Lava-Jato. Todos esses elementos combinadosforam devidamente ajustados num maquinário em que asengrenagens já estavam em pleno funcionamento via redessociais.

É da convergência entre o discurso de um estrategistahábil, da fúria implacável das massas contra a classepolítica e de um ex-militar autoritário que nasce acandidatura que possuía apenas 4% das intenções de votoem dezembro de 2015 e passou a 17% das intenções emdezembro de 2017.

É assim, sob o signo do olavismo, que Jair Bolsonaro seconsagra para muitos como a única opção viável para acontinuidade ao processo: não representa apenas umoutsider, mas um político contra todos os políticos, um mitocontra o sistema. Assim, a suposta Revolução Brasileiratermina com a eleição de um pretenso patriota que poucotempo antes havia batido continência para a bandeira…americana.

Entre outros disparates, Olavo já sugeriu que as eleiçõesteriam sido fraudadas caso o resultado não fosse a vitóriade Bolsonaro; afirmou categoricamente que o livro Emdefesa do socialismo do presidenciável adversário,Fernando Haddad, apresentaria uma defesa velada doincesto; escreveu que Jean Wyllys “deveria se submeter aum exame para saber se a sua saliva não transmite o vírus

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da Aids”; exortou seus leitores a não acreditarem na“história das torturas”, que teriam como única prova apalavra da “putada esquerdista”; classificou osmovimentos sociais como “um bando de filhos da puta”que trabalham para Maduro, para Cuba e para a China e,por fim, questionou se o movimento de mulheres contraBolsonaro não seria apenas de estudantes que estão nauniversidade pra “fazer suruba e fumar maconha”. O gostopelo vocabulário chulo, pela humilhação pública dosadversários, pela desumanização dos oponentes, sómostra técnicas de efeito retórico para destilar inverdadesque, mesmo que posteriormente desmentidas, tempotencial para enganar um número expressivo de pessoas.

Percebe-se que a estratégia de Olavo é mostrar como todaa esquerda é, de alguma forma, ou doentia ou criminosa,quando não ambas as coisas. Aqueles usados sem saberque fazem parte de um estratégia maior são idiotas;aqueles que acreditam de fato nas ideias da esquerda sãodoentes; aqueles que arquitetam os planos são criminosos.Há, assim, uma articulação entre a patologização e acriminalização — o que não pode levar senão a soluçõespolicialescas, punitivistas e psiquiátricas contra essesinimigos. Assim, toda a esquerda é vista como subversiva,sendo que o mero enquadramento nessa categoria jásinalizaria a necessidade de repressão. Acontece que apalavra “esquerda”, ou “comunista” — termos que Olavousa de forma intercambiável — é compreendida tãoamplamente que pode abarcar qualquer adversário, crítico

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ou opositor.

O que Olavo faz é usar um raciocínio metonímico quefalseia a situação: se há atos irracionais e desarrazoadosvindos de gente de esquerda, logo toda a esquerda secomporta dessa forma. Ora, para a direita é o oposto quevale: ou é um erro isolado, ou a atitude foi mal interpretada,ou não se trata da direita. Um exemplo claro disso foiquando Bolsonaro declarou, ipsis litteris, portando um tripéde câmera na mão e com ele simulando uma arma: “Vamosfuzilar a petralhada”. Num passe de mágica, Olavo explicaque o significado real da frase é que o novo presidente irá“reagir com violência armada ao banditismo queatualmente mata 70 mil brasileiros por ano”.

Mas não se trata apenas de problemas de ordem política.A teoria de Olavo pressupõe uma racionalidade e umaintegração quase absoluta dos agentes que elaboram opensamento de esquerda e ao mesmo tempo uma falta deracionalidade das massas. O comunismo está por toda aparte e a multiplicidade que aparece é só uma táticadiversionista pra tirar o foco da verdade: todos à esquerdaestão participando dessa enorme revolução passiva parainculcar o comunismo via cultura. Será realmente razoávelsupor que existe uma espécie de dominação esquerdistageneralizada? Assim, essa teoria totalizante e global sobreo funcionamento da política tende a ignorar a série denuances do real e a pressupor um aviltamento quase geraldas consciências — que seriam libertas apenas quando sedeparassem com o discurso olavista, o que explica bem o

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tom de séquito semimessiânico que se construiu em tornodo personagem. Seus acólitos são impermeáveis aquaisquer críticas feitas a Olavo, ao que prontamenterespondem com interrogações: “Mas você já leu toda aobra de Olavo? Você poderia refutar sua filosofia? Vocêconhece seus conceitos?” Como se para expressar umadiscordância fosse necessário refutar um sistema porcompleto; são técnicas de intimidação tão falaciosasquanto as que muitas vezes o próprio Olavo usa comfrequência em seus vídeos.

Com essas credenciais teóricas, é ilusório acreditar que ogoverno Bolsonaro possa criar estabilidade e unificar opaís, dado que o estofo intelectual de sua candidatura éinteiramente calcado em formulações militares eestratégias de enfrentamento e, no limite, de aniquilaçãodos opositores. Até agora, e essa característica vai semanter pelo menos no início do governo, percebe-se que odiscurso não sofreu nenhuma modulação e continua tãobelicoso quanto durante a campanha presidencial. O tom éde guerra: com a esquerda em particular, mas, de outrolado, com o sistema político também.

A grande vitória dos bolsonaristas foi se alçar ao poder pelovoto: é que, para eles, o voto legitima qualquer ação,inclusive aquelas de ordem autoritária. Nesse caso, tem-seum democratismo — um princípio da maioria — contra oEstado de Direito: se a maioria quer, assim tem que ser,mesmo que seja necessário passar por cima das

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instituições democráticas e dos direitos fundamentais. Ora,a integração de Sérgio Moro ao governo não tem outrosentido: institucionalizar o ativismo jurídico impulsionadopela força da fúria popular contra a corrupção, atropelandoas garantias constitucionais.

É claro que será preciso negociar com a realidade, o que vaiser um teste de fogo para saber se o bolsonarismo — e oolavismo — de fato estão plenamente enraizados, ou sesua eleição foi apenas uma plataforma dedescontentamento contra o sistema como um todo, econtra o PT em particular. Escolhido com grandesexpectativas, Bolsonaro entrará em rota de colisão com osistema se apoiando na força das ruas. Será que isso será osuficiente para sustentar sua investida contra o sistema?

Caso Bolsonaro perca a queda de braço com o sistemapolítico, sendo neutralizado e obrigado a fazer um governodistante de suas propostas originais, frustrará seuseleitores. De forma hábil, pode-se culpar a casta política, daqual ele fazia parte até pouco tempo, pelo insucesso.A frustração popular seria então direcionada a não esperaro fim do mandato e exigir uma radicalização do processo,aceitando — ou clamando ela mesma — por medidasautoritárias, o que daria a legitimidade necessária para queBolsonaro virasse o jogo com a pressão das ruas,ameaçando, intimidando e, no limite, reprimindoautoritariamente, a fim de levar a cabo seu projeto.

Por fim, nada disso poderá provar que Olavo esteja

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equivocado, uma vez que o olavismo é imune à refutação:caso o governo Bolsonaro não dê certo, sempre há osubterfúgio de jogar a culpa na esquerda, no estamentoburocrático ou no próprio governo, que traiu as ideias maisrobustas do intelectual. O campo de manobra para protegera própria reputação intelectual pode ser quaseinfinitamente plástico, fazendo com que as suas ideiascontinuem circulando tão críveis quanto antes, mesmo queseus efeitos políticos sejam desastrosos.

A postura da esquerda em relação a Olavo de Carvalhopareceu-me equívoca: tentam silenciá-lo sob o epíteto delouco, farsante, astrólogo, pseudointelectual, filósofo semdiploma. Ora, essas etiquetas pejorativas podem ser boaspara os convertidos, mas soam como música para o ouvidode Olavo e seus seguidores; quanto mais ele é etiquetado,mais confirma sua visão de que a universidade é um antroesquerdista; quanto mais o sistema o repele, mais confirmasua tese de que todos são iguais, e de que apenas elepoderia revelar um caminho seguro para libertar o país desuas mazelas. Com raras exceções, poucos deram aimportância à imensa repercussão do trabalho de Olavo.É que no início se pensava que Olavo existia apenas nomundo virtual, mas, hoje, a internet é o mundo real; naverdade, a política mostrou que a realidade é umsubproduto da rede, o que significa que Olavo é tão maisreal porque porque soube usar a internet antes de ela setransformar em palco político generalizado.

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Enquanto combatia ardentemente o neoliberalismo, aesquerda não viu que o triunfo inócuo dos liberais — quelogo se encerraria com a próxima crise do capitalismo —seria atropelado pelo conservadorismo nacionalista, umaregressão substantiva em relação ao liberalismo político.Essa estratégia já estava sendo anunciada há mais de umadécada por Olavo de Carvalho.

Conhecer o pensamento de Olavo de Carvalho nãosignifica, evidentemente, concordar com suas ideias, masentender o papel que ele ocupa. A rigor, compreender porque Olavo ganhava tanta notoriedade é entender umamudança muito mais profunda na esfera pública, naconstrução de hegemonia e no papel das redes sociais. Eleé o grande mentor intelectual da direita contemporânea,sendo responsável pela formação de milhares de pessoas.Acusá-lo de não ter um diploma; de falar tal ou qualbesteira; de ter sido astrólogo… Nada disso vai à raiz doproblema: Olavo já seduziu e encantou milhares, senãomilhões, de pessoas, e muitas delas com poder suficientepara reproduzir a palavra do mestre em escala ampliada.Escanteado pela intelectualidade de esquerda, ganha aurade pensador maldito e, também por isso, atrativo para arebelião de direita, a revolução conservadora contra oestablishment supostamente esquerdista. Olavo não éapenas um teórico dessa direita, mas é, sobretudo, seumentor e estrategista.

Recentemente, Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais

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votado do Brasil, declarou que Olavo de Carvalho “é anossa base filosófica”. O quarto livro presente na mesa deJair Bolsonaro quando ele fez seu pronunciamento inicialcomo presidente não era apenas uma simples homenagem.O que nos leva a crer que as contradições do governoBolsonaro serão uma manifestação prática da contradiçõesde Olavo: pregar a Verdade propagando inverdades;afirmar a paz incitando à guerra; defender a democraciacom atos ditatoriais; insuflar a dignidade humana edesprezar as aspirações das minorias; querer erudição e sealiar com a ignorância; advogar um intelectualismo querechaça intelectuais; justificar uma moralidade que secoaduna com acusados por corrupção; sustentar umpatriotismo anti-nacionalista.

Do ponto de vista estratégico, há aí também uma grandecontradição: a construção de uma frente heterogênea e aprática da hegemonia no interior do bloco. A candidatura deBolsonaro combinou evangélicos e católicos, pobres ericos, liberais e conservadores, nacionalistas e entreguistas,intelectuais e anti-intelectuais, políticos fisiológicos epolíticos ideológicos. Há uma unidade mínima dada pelaalta voltagem do sentimento antiesquerda. Mas a regraparece ser: quando uma bloco incoerente atinge seuobjetivo maior, ele passa a desmoronar por lutas internasentre os interesses divergentes.

Seja como for, o percurso do governo Bolsonaro, amudança que se verificou para que ele pudesse ser eleitofoi construída ao longo de décadas: o espectro político se

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deslocou radicalmente para a direita — é ela que vai pautaros assuntos e a linguagem na qual eles podem e devem sertratados.

“O nazismo é de esquerda”, “Paulo Freire acabou com aeducação brasileira”, “o objetivo do PT é implantar umaditadura comunista”, “a imprensa é esquerdista”, “aesquerda defende a pedofilia e o incesto” — se esses eoutros disparates delirantes tornaram-se senso comumpara muitos, tratou-se de uma estratégia massiva e delongo prazo, tendo como fiadores e principais correias detransmissão Olavo e seus alunos. Dessa forma, elescolaboraram profundamente para arrastar para a direita oespectro político tradicional e redimensionar o que é tidocomo razoável no debate público.

É esse o verdadeiro alcance da estratégia: não apenastomar o poder político, mas reconfigurar o campodiscursivo, as possibilidades culturais e o horizonte do queé ou não aceitável no esfera pública. A perceber que issoindepende de uma derrota eleitoral desse grupo em 2022,dado que a alteração de uma cultura política é algo muitomais profundo do que um mero processo eleitoral.

Sob o pretexto de criar uma direita que não existia no país,Olavo deu legitimidade a um movimento que expressa oque existe de pior na sociedade brasileira: preconceito,violência, repressão, afronta às instituições, ódio político —tudo devidamente autorizado por uma suposta autoridadefilosófica de primeira ordem. É o empoderamento da

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barbárie.