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Olavo Bilac...pela escuridão da noite, a desoras, pacíficos dormentes eram despertados de um sono delicioso pelo estrondo da artilharia mortífera, que abalava as habitações até

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Olavo Bilac e

Magalhães de Azeredo

Sanatorium

Publicado originalmente em 1893.

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865 - 1918)

“Projeto Livro Livre”

Livro 153

Poeteiro Editor Digital

São Paulo - 2014 www.poeteiro.com

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Projeto Livro Livre O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literárias já em domínio público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital.

No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domínio público, como esta, dos escritores brasileiros Olavo Bilac e Magalhães de Azeredo: “Sanatorium”. É isso!

Iba Mendes [email protected]

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ÍNDICE

NA GARE .......................................................................................................

O ORIENTE ...................................................................................................

NOVA ERA ....................................................................................................

SILVEIRA JACQUES ......................................................................................

PRIMEIRA NUVEM ......................................................................................

A "TROUPE" ................................................................................................

"FREI DIABOS" ............................................................................................

O N.° 48 ....................................................................................................

A ROLETA ..................................................................................................

AMORES ...................................................................................................

NA COPA ..................................................................................................

D. CARMITA ..............................................................................................

LEVICCOLO ................................................................................................

NOS BASTIDORES ......................................................................................

CONCLAVE ................................................................................................

OMELETE-MONSTRO .................................................................................

ESTER ........................................................................................................

CONSELHOS ..............................................................................................

AVENTURAS NOTURNAS ...........................................................................

A CASA DE PEDRA .....................................................................................

A CASA DE PEDRA .....................................................................................

A CAVERNA ...............................................................................................

A "DÉBÂCLE" .............................................................................................

A QUERMESSE ..........................................................................................

O CONCERTO ............................................................................................

O BAILE .....................................................................................................

EM ÊXTASE ...............................................................................................

A FALÊNCIA ..............................................................................................

"DIES IRAE" .................................................................................................

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NA GARE — Temos uma grande novidade, meus senhores! Temos uma novidade de mão cheia! Temos uma novidade estupefaciente! — chamou o jovem Álvaro Cândido, fazendo uma pirueta airosa na plataforma da estação de São Bernardo. Um grupo compacto de rapazes formou-se logo em torno dele. — Que é? que é? — perguntaram várias vozes. —Ouçam, e admirem-me! Se, depois do que lhes vou dizer, vocês se não cotizarem para que os forasteiros de São Bernardo me levantem uma estátua, ficarei convencido de que a humanidade, roída pelo verme da ingratidão, está mais escangalhada e mais podre do que esta plataforma! E a sua gesticulação larga abrangia toda a estação. A esta hora, oito da noite, a velha cidade de São Bernardo adormecera já, na sua pacatez de beata, que se deita ao último toque da ave-maria. Mas, enquanto lá fora, pelas colinas e pelas ribas do rio, um silêncio de morte pesava sobre as casas, a estação se enchia de um barulho de vozes e de passos. É que muita gente correra a esperar o expresso do Rio. Uma grande ansiedade obrigava aquela multidão a vir todas as noites acotovelar-se na estreita gare — sôfrega, curiosa, fazendo conjeturas sobre o que poderia ter sucedido na capital. Desde setembro, que a revolta da esquadra entrara pela vida fluminense como um germe de sustos e perturbações. O mar impunha as suas leis à terra, e todos os olhares se volviam para as ondas da formosa baía, constantemente enevoada pelo fumo dos combates, e sacudida em choques violentos pelo ribombo dos canhões de grosso calibre. Navios e fortalezas hostilizavam-se desde o amanhecer até à tarde, e não raro pela escuridão da noite, a desoras, pacíficos dormentes eram despertados de um sono delicioso pelo estrondo da artilharia mortífera, que abalava as habitações até aos alicerces, dando arrepios de pavor à pobre gente indefesa. E o caso não se cifrava unicamente em rumor mais ou menos incômodo; de súbito, desfazia-se sobre a cidade um chuveiro de balas — 450 metralhadoras, canhões, revólveres, tiro rápido — e, se muitas se limitavam a pregar sustos, outras, em compensação, ajustavam contas diretas com a vida dos cidadãos.

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De maneira que, em São Bernardo, nessa noite, como em todas as outras, todos ansiavam pela leitura das folhas, e a afluência de curiosos era extraordinária à estação. Álvaro Cândido, rapaz querido de todos, era a alegria da severa cidade mineira. No hotel, no teatro, na rua, a sua voz moça e forte soava de dia e de noite, discursando, cantando, palrando sem cessar. E, enquanto as pessoas sérias, afastadas, falavam de política, os moços em torno dele se aglomeravam. — Mas, dize quanto antes a tua novidade! Queres que morramos aqui de impaciência? — disse um dos companheiros. — Não foi propriamente para morrer que nos viemos meter nessa cidade fúnebre! Calma, senhores, calma! Ouçam com atenção. Trata-se de uma descoberta que fiz em mim mesmo. Imaginem que descobri uma vocação profunda e irresistível para quê? Para autor dramático! — Mas, que temos nós com isso? Ah! têm tudo, têm tudo! Vocês estão definhando tédio em São Bernardo. Já lhes não basta a roleta! Já lhes não basta a maledicência! Já lhes não basta o amor! Pois bem! Eu, Álvaro Cândido, tendo reconhecido em mim a existência da célula-máter genial de que saem os Shakespeares e os Sófocles, atiro-me à exploração dessa faísca de talento que me está ardendo no cérebro! Vou escrever uma revista dos acontecimentos de São Bernardo, neste assombroso verão de mil oitocentos e noventa e três, cheio de bombardeios, de incêndios, de hecatombes, de febres, de batalhas, de escândalos, do diabo! Ah! vai ser uma coisa fantástica! Remexerei o fundo da consciência nacional! Equilibrarei as instituições na ponta do nariz da Leviccolo! Levantarei as massas populares a um simples gesto do meu braço de dominador! E, em couplets de fogo, em cancans vulcânicos, em caiembours infernais, glosarei toda a vida agitada desta cidade fenomenal, em que segundo rezam as crônicas empoeiradas, Matusalém viveu em criança, com as fraldas sujas, chupando o dedo e coçando a cabeça! Senhores e senhoras! Preparai-vos! Ides viver perpetuamente nesta revista genial, expostos à admiração dos séculos vindouros! — Estás sonhando! Onde acharás quem represente essa peça? — Que importa? Se a imbecilidade dos meus contemporâneos me condenar ao anonimato perpétuo — embrulhado em minha peça como em manto de rei, resignado e calmo, com um orgulho de grande homem incompreendido, recolher-me-ei à muda glória de autor inédito, e deixarei à posteridade o

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encargo de vingar esta tremenda afronta feita pela injustiça dos coevos ao trabalho e ao talento! E dito isto, proponho que organizemos um monômio abracadabrante para divertimento desta bela sociedade, que está paralisada à espera de um trem que não chega, nem chegará nunca mais! — Como? Não chegará nunca mais? — perguntou ao lado um homenzinho doente, já com pavor. — Não chegará nunca mais, repito! Descarrilou, espatifou-se, incendiou-se, levou-o o diabo! Que importa? Que temos nós com o trem? Que nos pode esse trem trazer de bom? Notícias da revolta? Que temos nós com a revolta? Meus senhores! A vida é breve! Ao monômio! Ao monômio!. — Perdão! — exclamou Alfredo Pereira um outro mocinho trêfego, que tratava da saúde em São Bernardo. — Perdão! Esqueceste de que o expresso deve trazer-nos o novo proprietário do Hotel Oriente! E é preciso concordar que isso interessa de perto os nossos estômagos! Álvaro Cândido, dando à fisionomia um ar solene, bradou: Oh! néscios, que ainda esperais que se venha um dia a comer bem no Hotel Oriente! Não tem limites a estultícia humana! Lembrai-vos da velha de Siracusa, e pedi aos deuses imortais que nos conservem o nosso Bórgia atual, porque o outro é capaz de ser ainda mais implacável envenenador! Demais, nem só de pão vive o homem! A vida é breve! A morte é certa! Ao prazer! Ao monômio! Deu no chapéu de palha uma pancada rápida, derreou-o sobre a nuca, e, levantando a voz, trauteou uma copla: A llons! charmons les étoiles! Il faut chanter l'amour!. E todo o grupo, atrás dele abalou a um de fundo, numa algazarra infernal, atropelando a multidão; e longo tempo depois ainda ecoava a grita cio coro, longe, escandalizando a gente que dormia, pelas ruas tortuosas de São Bernardo. Então, mais vazia, a gare sossegou. Falava-se baixo. Cabeças ávidas se inclinavam, olhos ansiosos tentavam furar a treva, esperando lobrigar, longe, o farol da locomotiva. Mas o trem tardava. Deserta, desatravancada de vagões estendia-se a linha pontuada de espaço a espaço, pelos lampiões dos guarda-freios; e essas luzes trêmulas cintilavam baixas, rentes com o chão, abrindo

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círculos de claridade viva, em que trechos de trilhos se emaranhavam, fulgurando, como cobras de aço. Uma hora passou. E, quando soou o apito estridente do expresso os que o esperavam tiveram um suspiro de alívio. Uma luz avermelhada apareceu, ao fim da linha, como um grande olho inflamado. Ao mesmo tempo, um barulho surdo cresceu, aproximou-se. E, daí a pouco, abalando as vidraças da gare, resfolegando, como fatigado do galope louco, o trem chegou, completamente cheio. Carregadores da estrada, com chapas numeradas ao peito, acorreram gritando, disputando as malas. Viajantes desciam, cobertos de pó. Houve um desapontamento geral, quando se soube que o expresso não trazia os jornais do dia. Por quê? — E boatos apavorantes começaram logo a correr, nascidos não se sabia como. Dez ou doze pessoas cercaram logo o Dr. Silveira Jacques, novo proprietário do Oriente. Ele, fatigadíssimo, distribuiu apertos de mão, e seguiu logo para o hotel — enquanto, na plataforma, uma voz rouca estrondava, empenhada numa discussão calorosa: Oh! aí vêm já os boatos! Aí vêm já os boatos! Pois então só porque não chegam os jornais, já os senhores começam a fantasiar vitórias desses piratas? Era o comendador Romaguera quem falava — homem maduro, de barba hirsuta, corpo de Hércules, voz da tempestade. Itararé? Estão em Itararé? — berrara ele, apoplético de raiva. — Itararé?! Não me venham dizer isso a mim. Eu conheço a Paraná como a palma da minha mão... Oh! Mas Gumercindo é Gumercindo... — retorquia o Dr. Lemos, conhecido pelos seus sentimentos revolucionários. — E aquele bravo realiza todos os impossíveis... Gumercindo! Desafio esse miserável! — tornava a rugir o Romaguera. — Ele, e toda essa corja de bandidos, de ladrões, de assassinos, mereciam ser arrastados pelas ruas, e linchados sem mais forma de processo... — Sim, sim, são uns bêbados, uns peraltas... — observara pachorrento o velho Fontoura, português de curtas vistas. E o Dr. Lemos, muito dedicado e cortês, intervinha:

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— Ora os senhores não sabem dizer duas palavras sem insultar os outros? Bandidos, ladrões, bêbados... Que intemperança de linguagem! — Bandidos, sim! Piratas! Canalhas! Digo e repito! — bradava o comendador — E quebro a cara a quem .. . Bom! Sr. comendador, acalme-se; que é isto? — intervinham várias pessoas. Mas o comendador precipitou-se para fora da gare, às patadas. Seguiram-no todos. Na rua, a discussão continuou. E a estação deserta, adormeceu, às escuras, naquela profunda noite sem estrelas, cheia de nuvens... O ORIENTE Nesse ano, era extraordinária a afluência de forasterios à cidade de São Bernardo, pitoresca no seu aspecto de velhice tradicional, e encerrada entre montanhas brutas, como num círculo de muralhas inexpugnáveis. O verão do Rio de Janeiro estava terrível, devastador, cheio de ameaças; intenso calor, atmosfera abafadíssima, impregnada de miasmas; dias e dias, semanas e semanas, sem uma gota benéfica de chuva; e a febre amarela ceifava centenas de vidas de um só golpe, matando estrangeiros e nacionais, sem distinção de pátria ou de idade. Quantos podiam, mesmo com sacrifício, arrostar as despesas da mudança e a ociosidade de alguns meses, debandavam apavorados, sôfregos, em todas as direções; São Bernardo era ponto especialmente procurado, pela situação tranquila e pela excelência do clima, favorável em particular aos doentes do peito, aos organismos nevróticos, abatidos por longas crises. No inverno, o lugar é morto, o comércio enlanguesce, e paira sobre as ruas tortas e a casaria entremeada de frondes verdejantes um véu de tristeza e silêncio; a população local fica reduzida, aos seus próprios recursos: toda gente estranha se retira, fugindo ao frio excessivo, e às brumas impenetráveis, que envolvem tudo. Durante o estio, porém, a convivência é aí aprazível para quem busca saúde e paz, não vida dissipada e fatigante, como a da capital. Está a muitas léguas de distância o luxo de Petrópolis, centro moderno e elegante, com os seus faetontes e landaus, os contínuos bailes e concertos, todo o

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encanto, em suma, das delicadezas requintadas, mais cintilantes ainda que no Rio, pois neste fica, a agitar-se em seu trabalho obscuro, em suas inglórias privações, a plebe grosseira, cujo contato importuno desdoura os prazeres dos ricos; e em Petrópolis se reúne a quintessência, a fina flor da alta sociedade, distinta e gentil e das maneiras, embora tantas vezes maculada no âmago por especulações de Bolsa e misérias inconfessáveis. Em São Bernardo, dominam os costumes do interior, e respira-se um ambiente de memórias e legendas, que falam de venerandos esplendores antigos. As serras imensas, ásperas e sombrias, recortadas em duras angulosidades no azul do céu, com o qual contrasta fortemente a sua cor férrea, parecem proteger o burgo pacato contra as invasões do espírito hodierno, tão leviano na sua irreverência cética, e impõem à alma do povo simples e o culto das velhas crenças e dos velhos hábitos, conservando-lhe com eles a aspiração de liberdade indômita, que a nenhuma tirania se curvou jamais. Ainda pelas ruas tortuosas — ladeiras íngremes, com péssimo calçamento — e pela praia extensa, que acompanha a perder de vista o curso do rio, chiam os carros de bois a sua cantilena monótona e agreste; ainda nas procissões, que de quando em quando, nas grandes festas, alvoroçam a cidade toda, se expande sincero fervor religioso, as palmas e as flores se enlaçam nos pálidos círios votivos e até penitentes, com a cabeça coberta de cinza e os pés descalços, vão em grupos humildes, chorando os seus pecados... As igrejas, crestadas nos seus zimbórios e portais pelos sóis de longos anos, notáveis algumas pelo primor de arquitetura, erguem a cruz simbólica muito acima das casas e das árvores, como se quisessem representar a vitória do dogma eterno sobre as mesquinhas contingências humanas... É nesse meio, e sob tais impressões, que vive o povo — o que se chama propriamente povo, a maioria sofredora e militante, que luta para conquistar o pão quotidiano, e tenazmente disputa à natureza e ao destino o seu lugar no mundo. Esse, resiste às influências morais da época e mantém-se intato, com as suas idéias e usos de há cem anos. Nas classes abastadas, entretanto, quase nada resta do avito gênio colonial. A facilidade de comunicações entre São Bernardo e o Rio de Janeiro, a estrada de ferro, a imprensa, o teatro, e os hotéis estabeleceram ali nova corrente de idéias, raridades peregrinas, forças de audaz iniciativa, que ainda hão de dar grandes resultados. Os hotéis, principalmente, com a sua população adventícia e transitória, têm sido instrumentos de progresso — do que se convencionou apelidar progresso...

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Entre eles, um há de primeira ordem, "admiravelmente montado, com todas as condições exigíveis para bem servir os seus clientes", como apregoam as prospectos; é o Hotel Oriente, construído a expensas de um grupo de capitalistas sólidos, de acordo com os melhores modelos europeus. Logo à entrada da cidade, lisonjeia a vista o belo prédio, que abre um sem número de amplas janelas para a verdura florescente dos jardins. E à imaginação educada de um artista oferece curioso contraste esse edifício todo novo, quer no estilo, quer no regulamento interior, bem em frente à secular ponte de pedras, pesada e maciça, harmoniosamente arqueada — nobre relíquia de eras extintas... O Hotel Oriente regurgitava de hóspedes, nesse verão mais que nunca. É que além da temperatura calmosa e da quadra epidêmica, que afastavam tantas famílias do Rio, outro elemento determinava o êxodo de muitíssimas pessoas. Era a revolta de 6 de setembro; o medo constante de um bombardeio, o pavor diário que as balas, cruzando-se sobre a cidade, derramavam por ela interrompendo a circulação pública, enlutando lares, interrompendo negócios.

O povo, contudo — galhardos e valorosos cariocas! — já se ia afazendo ao barulho e aos desastres, achando, afinal de contas, assaz natural, que, havendo guerra, houvesse mortes e ferimentos; e, passado o terror dos primeiros dias, ninguém se deixava ficar na casa por medo de um estilhaço perdido, e por toda a extensão das praias, multidão compacta se acumulava — militares e paisanos, moças e até crianças, de binóculo em punho, apreciando, como um espetáculo, as evoluções navais, e comentando a sangue frio cada disparo, com observações e remoques espirituosos. Mas com a revolta coincidia o estado de sítio, relativamente brando a princípio, crescendo depois em violência, pouco a pouco, até chegar aos últimos excessos. E muitos que nem o calor nem as granadas obrigariam a fugir, apontados pelas suas doutrinas suspeitas, pelas suas simpatias e antipatias livremente manifestadas, saíam do Rio açodadamente, demandando sítios menos agitados, em que não fosse delito pensar e falar com independência. São Bernardo apresentava, nesse sentido, especiais garantias. As tendências de oposição ali frutificavam, desde o período muito remoto e a quase todos os governos, ainda no antigo regime, proporcionaram maus quartos de hora, dificuldades sérias a vencer, nas nomeações, nos plebiscitos, e até em motins de certa gravidade. Assim, de envolta com inofensivos turistas, neutros em questões de partidos, tuberculosos melancólicos e nevropatas e exaustos, agitava-se o grupo,

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engrossado a cada trem, dos refugiados políticos, que a necessidade forçava a procurar, fora do lar doméstico, a segurança e o sossego da existência. A ação desses homens limitava-se a manifestar francamente o seu desgosto pelos atos do governo. De resto, eram os acontecimentos de então o assunto quase exclusivo de todas as conversas. No Hotel Oriente, no clube, nas lojas e pelas esquinas, não se falava de outra coisa. Os jornais eram esperados cada dia com impaciência, e o descontentamento não conhecia limites, quando o expresso chegava atrasado. À noite, pelos vastos salões do hotel e especialmente na saleta do vestíbulo, ponto de reunião continuamente animado, só se viam cabeças curvadas sobre as folhas diárias, olhos ávidos correndo sem cessar de uma coluna para outra; a espaços, alguém interrompia a leitura, para anunciar novas importantes: — "O Aquidabã saiu mais uma vez... O Paraná está em poder dos revoltosos... O Javari foi a pique, sabe? —" Sujeitos que faziam timbre de informações seguras, mostrando em confiança cartas recebidas de personagens influentes, adiantavam em voz baixa sucessos imprevistos... E aí principiavam as discussões calorosas, em que se debatiam com argumentos não raro apimentados de virulentos ápodos, os prós e os contras de cada fato. Até na roleta, instalada publicamente no bilhar do hotel, suspendia-se por vezes o jogo, única distração bastante atrativa para relegar a política ao segundo plano, e cruzavam-se, de um lado para o outro da mesa verde, as opiniões contrárias. Mas quando a discussão se azedava, a voz do banqueiro, pondo termo a exaltações perigosas, dizia, plácida e clara: "Jogo! Jogo!" Por instantes, ouvia-se somente o ruído seco das fichas, que os parceiros iam distribuindo pelos números plenos, pelas dúzias, pelo maior ou menor, pelos esguichos... E depois, a bola branca rolava sonoramente na roleta, e o banqueiro tornava no meio da ansiedade geral: "Double zero!" A respiração de tantos homens juntos, o fumo dos cigarros e charutos, saturavam de humores acres, estonteantes, o aposento abafado. Pelos extensos corredores monacais, alumiados frouxamente, moças, em toilettes claras, passeavam de braço, cochichando e rindo, na sala de jantar, entre copos de cerveja, outros diletantes políticos discutiam, apurando a verdade das notícias e a verossimilhança dos boatos, profusamente espalhados a cada momento. E de um grupo para outro, vagueavam figuras equívocas, sinistras, tipos sem profissão conhecida, que todos evitavam, porque a suspeita geral os apontava como espiões, secretos policiais pagos para ver, ouvir e contar...

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NOVA ERA Uma bela manhã, os hóspedes do Oriente foram surpreendidos por importante novidade local. O hotel ia passar a outro proprietário. A primeira sensação foi de alívio geral, porque, a despeito das condições excepcionais do prédio, o serviço piorava de dia a dia. O gerente era um coração estimável, um excelente homem, mas não tinha jeito para aquilo, nem a sua fortuna, outrora próspera, o preparara para semelhante emprego. A sua administração teria sido, para os hóspedes do Oriente uma grande gargalhada, se bocas privadas de comida tivessem aptidão para rir. Porque Madureira não nascera positivamente para administrador de hotel, mas para filósofo, insensível às contrariedades da vida, aceitando fleumaticamente as maiores calamidades, com um grande lastro de resignação dentro d'alma, e uma pontinha de riso sardônico ao canto da boca. De maneira que as reclamações dos hóspedes iam, das seis da manhã à meia-noite, morrer sem resposta, aos ouvidos de um gerente de pedra, que as escutava sem pestanejar, e chegava mesmo, condescendentemente, a concordar com elas. O Oriente era uma grande máquina que se movia por si mesma, graças apenas ao impulso adquirido, e sem intervenção do maquinista — porque esse, de mãos nas algibeiras, olhava para tudo, como Demócrito para as conflagrações do mundo. O hotel possuía um magnífico estabelecimento hidroterápico. Ao centro do largo jardim, cujos tabuleiros de relva esplendiam ao sol ridente do verão, ficava a opulenta casa de banhos: — duchas de chicote de chuva circular, de afusão espinhal, de jato periódico... Mas, quase sempre, de manhã, quando os hóspedes saíam à procura da ducha reconstituinte, uma grande decepção os estatelava no meio do parque: — ou não havia água, ou tinha desaparecido a chave da casa de banhos. Madureira, impassível, dava um ar triste à fisionomia: Não há água, meu caro doutor! Não há água, meu caro barão!... Que quer, baronesa? Que quer? Estes criados... O José saiu, foi a missa... levou a chave e... De uma vez, a senhora, que quase com lágrimas nos olhos, lhe pedia um pouco d'água, Madureira respondeu, com um fogo raro de convicção na voz: Minha senhora! a água que há só chega para encher os moringues... V. Exa. escolha: ou bebe água e não toma banho, ou toma banho e não bebe água...

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Depois do banho, — tomar café era uma empresa que demandava perse-verança e esforço: havia vinte e quatro xícaras para cem hóspedes. Ao almoço e ao jantar, fisionomias melancólicas olhavam desconsoladamente para a comida destemperada e magra. E os próprios garçons já apresentavam a quaisquer hóspedes um prato, com o mesmo ar de comiseração com que o discípulo de Sócrates lhe deve ter apresentado o copo de cicuta... No meio desta balbúrdia, dessa desorganização, acentuava-se a fleuma do administrador do hotel. E já ninguém lhe fazia reclamações, porque a sua face, ouvindo-as, tinha um lampejo fugaz de ironia, tão acentuada, tão mordaz, que desconcertava o reclamante. Uma noite, o Dr. Lemos, levantando-se da mesa de jantar com o estômago vazio, dirigira-se indignado à banca, em que, ao fundo da sala, o gerente fumava um charuto: — Oh! senhor!... O jantar hoje esteve muito ruim!... O Madureira ficara dois segundos a olhá-lo, entre pasmo e contente, como quem se espanta e alegra a um tempo, com ver o seu próprio pensamento expresso por outrem. E, logo depois, expansivo e condescendente, exclamara: Homem... é verdade! Eu também o achei muito ruim!... Por tudo isso, uma sensação de alívio geral percorreu o Oriente quando, entre os hóspedes, se divulgou a notícia de que outro maquinista vinha assumir o governo daquela máquina desequilibrada e perra... O novo proprietário, dizia-se, era um médico, moço e hábil, que projetava fazer daquele hotel um Sanatorium modelo. Comentava-se, com aplauso, o acerto dessa resolução. São Bernardo, com uma altitude de mais de mil metros, prestava-se admiravelmente ao propósito do jovem médico. E o Barão de Raymond, homem entendido em coisas de dinheiro, vaticinou logo, na palestra das oito da noite, no vestíbulo: — E é um admirável negócio! Tenha juízo esse rapaz, que fará fortuna rápida e segura... A chegada do médico, anunciada para a mesma noite, dera à pequena sala, ponto habitual de reunião dos hóspedes, uma nova animação. A noite, desenrolava-se lá fora sobre a velha cidade silenciosa, despovoada de estrelas. Do vestíbulo, via-se um trecho do jardim, a que a escadaria branca e nobre descia, formada de dez largos degraus de granito.

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Ao fundo, uma porta envidraçada dava acesso para o primeiro corredor do hotel — longo, palidamente clareado pelo lampião de querosene. E, à esquerda, abria-se para o vestíbulo o vasto salão, iluminado a lâmpadas belgas, com o piano ao fundo, gravuras de Goupil nas paredes, em molduras de ouro, e as cadeiras inúmeras, de érable, alinhadas monotonamente. Aí, as senhoras, em grupos, passeavam: e um rumor crescia, risos abafados, murmúrios de vozes, frufru de sedas, estalidos de beijos.

A voz do piano, de repente, ressoou, alta e grave. Era a pálida Ester, uma pobre moça histérica, já condenada pelos médicos, que tocava Beethoven. Fazia dó vê-la, às vezes, passeando à noite por aqueles corredores sem fim e sem luz. A sua face de uma brancura de cera encantava e causava pena. E naquela solidão, naquela penumbra de claustro — porque os mesmos quartos simétricos davam impressão de celas — Ester passava como uma monja triste, já pouco ligada ao mundo, do qual em breve se apartaria para sempre... Uma simpatia geral cercava, no hotel e na cidade, a triste condenada. Quase não havia dia em que uma crise histérica a não prostrasse, aos gritos em contorções terríveis — seguida de um período de superexcitação inenarrável, que só cedia com o emprego de injeções de morfina — êxtases prolongados, uma prodigiosa exacerbação da sensibilidade cutânea, cefalalgias, que avultavam ao menor rumor, todos os nervos dolorosamente esticados e torturados... No vestíbulo, a palestra ia animada. Enquanto lá dentro, ao fundo do hotel, na abafada sala em que se jogava roleta, o croupier cantando os números, recolhia as fichas perdidas, pagava as paradas, anunciando a sorte com a sua voz fanhosa e trêmula — aqui comentava-se a nova era de fartura, de ordem e de digestões felizes que, certo, vinha abrir para os hóspedes do Oriente a chegada do seu novo proprietário. O grupo era o mesmo de sempre. Havia entre outros, cercado da solicitude de todos, o Marquês do Tijuco, velho nonagenário, pequenino, trêmulo, com uma cabeça microscópica, coroada de falripas brancas, devoto e carinhoso, com um eterno boné de seda negra bailando ao capricho da mão inquieta — um sorriso para todos, a voz meiga, o olhar apagado e terno, uma sobrecasaca de merinó preto escorregando, cheia de dobras, pelo dorso corcovado... A Marquesa — imensa senhora rotunda, cuja grandeza de vulto contrastava singularmente com as diminutas dimensões do marido — tinha uma bela atitude de rainha destronada. As rugas da sua gorda face, que só para barões e viscondes se abria em sorrisos, eram quotidianamente disfarçadas a pinceladas de Koll e de nanquim. E era de vê-la, arrastando pelos corredores do Oriente, como um manto de imperatriz, a sua capa caudada de casimira cor de cinza, e, orgulhosa,

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indiferente a tudo, pisando as reles tábuas dos assoalhas do hotel, com a mesma altivez e o mesmo garbo com que, outrora, nos dias de recepção imperial, pisava os assoalhos envernizados do Paço de São Cristóvão. Havia ainda o Barão de Raymond, — corpanzil de Falstaff — rico, acariciando de momento em momento as barbas grisalhas, com uma gamenhice de velho conquistador, olho cúpido eternamente fixo nas mulheres que passavam, mão constantemente metida na algibeira, remexendo moedas como a apregoar a sua bonita fortuna que o Encilhamento consolidara. Quando um trilo do apito, longínquo, soou no silêncio da noite, anunciando a chegada do trem, houve um rebuliço no vestíbulo. E, daí a minutos, o Dr. Silveira Jacques — proprietário novo do Oriente, precedidos de criados ajoujados ao peso de grandes malas — pisava a areia do parque, e chegava à porta... Houve um longo momento de silêncio no círculo. Todos olhavam o recém-chegado, curiosamente. Ele, com desembaraço, falava a Madureira, que se adiantara a recebê-lo. Era um robusto moço desempenado, olhos vivos e inquietos, nariz afilado, bigode negro caído entre os cantos da boca, à chinesa, maneiras francas e largas. Vinha empoeirado, abatido com o cansaço da viagem, que se lhe conhecia nas olheiras — dois círculos arroxeados a emoldurar-lhe os olhos pequenos e escuros... Passou rapidamente pelo círculo dos conversadores, de par com o antigo gerente, e fazendo em torno um cumprimento geral, entrou o corredor do hotel. Na roda, o silêncio continuou. E, daí a pouco, Silveira Jacques, livre do guarda-pó, e do boné de viagem reapareceu sempre ao lado de Madureira, cujo sorriso irônico permanecia o mesmo, incompreensível e misterioso. Não houve tempo para que os hóspedes se acanhassem, a ver quem romperia o silêncio. Ele mesmo se encarregou de o romper, com uma bonomia e um tato que cativaram a todos. Deixou-se apresentar pelo Madureira, prodigalizou apertos de mão à direita e à esquerda — e entrou logo a explicar os seus planos, derreado sobre a ampla cadeira de palha trançada, com as mãos no ventre e os dedos metidos nos bolsos do colete. "Viera só. A família viria no dia seguinte. — Compreendiam... era preciso arranjar os cômodos..." — Contou logo a sua vida. Não vinha unicamente para ganhar dinheiro! Comerciante, sim, mas sempre médico... Deixava uma excelente clínica e uma confortável colocação numa cidade do norte. Mas, havia de fazer daquele hotel um Sanatorium modelo.

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Conhecia-o já. E de há muito formara o projeto de transformar São Bernardo no asilo restaurador dos tísicos e dos nevróticos. Para os primeiros, tinha, como remédio eficaz, a altitude da localidade e os meios de desenvolver e praticar a ginástica do pulmão, com tanto êxito empregada no Sanatorium da Serra da Estrela, em Portugal, por um médico, seu homônimo. Para os segundos, para essas desgraçadas vítimas do polvo da nevrose tinha a hidroterapia e a eletricidade... O hotel já possuía um estabelecimento hidroterápico regular... Mas, havia de melhorá-lo! E acrescentar-lhe-ia uma sala de eletroterapia, como a da Salpetrière. Depois contava com um grande auxílio, — uma tentativa ousada. Ia praticar a hidroterapia Kneipp, segundo os mais rigorosos preceitos. O parque do Oriente prestava-se a isso... Aqueles tabuleiros de relva eram magníficos... Passeios a pé descalço pela grama molhada, afusões superiores, afusões inferiores, banhos rápidos, a roupa vestida sem enxugar o corpo... Oh! Veriam! Veriam! dentro em pouco, São Bernardo seria uma nova Woerishofen!..."

Mas já o comendador Romaguera chegara também da estação. Discutia ainda, com entusiasmo e fúria. E, ao entrar, fora logo dando a notícia que trouxera um amigo, chegado do Rio: — Sabem? Voou o depósito de pólvora que os bandidos tinham em Mocanguê! Hão de morrer todos espatifados todos, aqueles sicários! Silveira Jacques, com o grupo que o ouvia, descera ao jardim, falando sempre. O sino da matriz badalou onze pancadas. Onze horas. Por detrás do morro fronteiro, a lua aparecia, no começo do minguante, banhando de uma luz pálida as casuarinas do parque. Silveira Jacques falava. Agora, o seu gesto largo mostrava as construções novas que iam ser feitas, todos os melhoramentos projetados. A sombra desse braço, prolongada pelo luar, varria o parque, varria a cidade... E estas palavras soaram claramente no silêncio da noite: — Ah! São Bernardo me agradecerá um dia! E no alto daquela fachada, mandarei pintar um dístico: "Não há mais tísicos! Não há mais nevróticos! Não há mais doentes!" SILVEIRA JACQUES

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Pelas ruas alinhadas do parque, agora escrupulosamente varridas e cobertas de saibro — muito claras e lisas ao longo dos canteiros floridos — passeavam o Marquês do Tijuco, o Barão de Raymond e Fabrício Autran, chegado do Rio, na véspera à noite. Eram sete horas da manhã; manhã límpida e alegre; os últimos farrapos do nevoeiro matinal se desfaziam no cimo das serras fronteiras, cortados pelos raios de sol, que ascendia soberbo, derramando vida e fecundidade a largos jorros, na apoteose da sua glória soberana. Pela praia, cujo cais revestido de cimento — recente construção — acentuava melhor à vista a vetustez da pacata cidade, ia passando a gente mais madrugadora: caipiras a cavalo, tipos de feições benévolas, mas de olhar desconfiado, barba cabelos hirsutos, conduzindo para o mercado cestos de legumes, de pêssegos, jabuticabas e gabirobas, grandes latas de leite gordo e alvíssimo; empregados da estrada de ferro, impelindo rapidamente carretas de bagagens, cujas rodas, aos solavancos no calçamento desigual, despertavam rumores crebros, insistentes; passeadores despreocupados ou pensativos, como o venerando Aureliano Gurgel, ex-professor do Pedro II, homem estudioso e erudito, tipo de verdadeiro sábio concentrado nas suas leituras e meditações, e o bonhomme Madureira, o antigo gerente do hotel, com as faces gordas e sanguíneas de sibarita satisfeito, as espessas risadas vagarosas de otimista amigo da vida, que tem tempo a fartar para dormir e gozar, as pilhérias, às vezes um tanto picantes, às mulatinhas dengosas às italianas da colônia — pancadões de truz, no dizer dele... De quando em quando, três ou quatro moças passavam juntas, com as umbrelas claras espanejadas ao sol, como grandes borboletas cativas; e os seus risos argentinos, a sua buliçosa garrulice, filtrando-se através dos maciços de flores da entrada, espalhavam-se pelo ar fresco e sadio, como a suavidade de uma música, que fosse ao mesmo tempo aroma... Iam todas em alegre companhia para a fonte de águas-férreas, à qual se faziam cada manhã peregrinações higiênicas e elegantes — pretexto azado para namoros e mexericos joviais... — Você chegou em boa hora, veio justamente alcançar a reforma do Oriente, hoje transformado em Sanatorium — dizia a Fabrício Autran o Barão de Raymond, parando um instante a fitá-lo, acariciando o queixo com a mão esquerda, metida a direita na algibeira, remexendo moedas... — É exato, barão; antes de vir, já tivera notícias dos projetos do Dr. Silveira Jacques... grandiosos projetos, na verdade... aproveitar este admirável edifício para um Sanatorium modelo, dotado de todos os aperfeiçoamentos modernos e, ao mesmo tempo, com a vantagem de não ser um hospital, uma casa só para doentes, saturada sempre de um cheiro ativo de farmácia... Sim, há uma parte reservada às pessoas sãs, aos simples viajantes, sem contato obrigado com os enfermos. Não é isso que o Dr. Jacques pretende fazer?

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— É propriamente isso, é... — confirmava o Marquês, com a sua vozinha trêmula de macróbio, e a cabecinha encanecida a oscilar como um pêndulo de relógio, resguardada com o infalível barrete de seda negra. — Ainda ontem, conversei com o Dr. Silveira Jacques, que me expôs por miúdo todos os seus planos. E um moço ativo, arrojado nas suas concepções... — Eu o conheço da Bahia — observou o Autran. — Clinicou lá por algum tempo. Com franqueza, então, eu não dava muito por ele; parecia-me um sujeito vulgar, acanhado... Naturalmente, modificou-se, estudou. —Mostra ter penetrado a fundo o sistema adotado nos estabelecimentos similares da Europa! Dizem que o imperador o estimava! E, falando assim, o Marquês descobriu-se com respeito. — Santo velho! E grande homem! — exclamou com entusiasmo o Autran, convicto monarquista. — Ora bem! — falemos do hotel. Este Jacques, se tiver juízo, pode enriquecer em pouco tempo. Que diz, barão? Você tem um faro especial em questões de dinheiro. — Que digo? O serviço tem melhorado, não há dúvida. Temos cozinheiro novo, que serviu no Bragança, em Petrópolis, copeiros decentes, já não são aqueles crioulos infectos, e criadas melhores... até mais bonitas... há ali duas portuguesinhas... não lhe conto nada! Você vai ver. E um lampejo de luxúria acendeu os olhos de Raymond, lânguidos e quebrados nas suas bolsas plácidas. O Autran, sensual como um bom baiano que era, interessava-se pelo assunto, e esperava mais esclarecimentos. O Barão continuou: — Desde que veio o Jacques, noto aqui azáfama constante: os jardins são varridos e regados, o menu é mais completo e atraente, a adega está a transbordar de vinhos finos, a baixela cresceu quanto era preciso... enfim, a boa vontade parece haver. Mas querem que lhes falem sem rebuços? Eu tenho larga experiência de comércio, e como diz você, Fabrício, um faro especial para estas coisas, um instinto natural, uma perspicácia inata, que nunca me enganou. Ora, parece-me, cá por certos sintomas, que isto não vai avante... — Que me diz? — suspirou o Marquês, espantado. — Os planos do Dr. Jacques são muito bonitos, no papel, mas dificílimos na realidade. Isto vai custar-lhe rios de dinheiro; e onde é que ele tem esse dinheiro? O Jacques dá-me a impressão de um desequilibrado... um visionário,

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seduzido por meia dúzia de utopias... Se só for desequilibrado... Quer voar alto demais... Enfim, quem vivo for há de ver — e queira Deus que eu me iluda. Nisto assomou ao longe a figura do médico, desembaraçado e escorreito no seu terno de casimira cinzenta; acompanhavam-no dois homens; um era o Dr. Serapião Lemos, seu colega, distintíssimo especialista de moléstias de garganta, notável pela sua ilustração e pelo seu espírito deliciosamente mordaz; era o outro Antônio Maia, um dos diretores da companhia fundadora do hotel, pessoa de influência na localidade, um desses caracteres enérgicos e tenazes, que conseguem subir às mais altas posições pelo seu exclusivo e honesto esforço, e que com tanta propriedade se chamam "filhos de si mesmos". Um pouco mais atrás, caminha o enfermeiro de confiança do Dr. Silveira Jacques, seu servidor dedicado e fiel desde o tempo da Academia. Aproximando-se os dois grupos, amigáveis cumprimentos se trocaram. — Estou explicando a estes amigos o traçado das construções que tenciono fazer. Os dois chalets, à direita e à esquerda, serão puxados até o fundo do parque, onde, na direção do muro, se acrescentará outro lance, fechando o quadrado. A casa do centro continuará a ser simplesmente hotel, como foi até hoje. Assim conciliaremos todos os interesses. Eu tomarei a direção técnica da parte relativa ao Sanatorium; abrirei ali, na frente, o meu consultório, e os doentes, quer do estabelecimento, quer da cidade, me encontrarão pronto sempre a atender-lhes. O hotel ficará entregue a um gerente escolhido por mim com todo o escrúpulo: é um irmão meu, ainda muito moço, mas de um critério! de uma inteligência!...

E continuou o seu passeio pelo parque a fora, com o Dr. Lemos, o Sr. Antônio Maia e o Marquês do Tijuco, que a passos trôpegos, os seguia cerca de dois metros atrás, precisamente ao lado do velho enfermeiro. O galope de um cavalo, que acabava de entrar pelo portão do parque, à direita, chamou a atenção de todos. E viram Romaguera, teso sobre o selim, com ufania igual à de Alexandre montado no Bucéfalo. O seu corpo musculoso e robusto unia-se ao do animal com tal perfeição de montaria que recordava a figura mitológica dos centauros. Romaguera cumprimentou-os num gesto de sobranceria afável, tirando o chapéu desabado: — Meus senhores... — Bons dias, Sr. Romaguera; foi girar por aí bem cedo? — É verdade; saí às cinco e meia. Cheguei até ao Porto, além de Campinhos. É um belo sítio. Até logo...

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O cavalo galopou de novo, indo parar à porta da estrebaria. O Barão de Raymond tocou o braço de Autran: — Conhece este sujeito? Tem fumaças de Dom João, pretensões a Lovelace. E parece que justificadas, em parte ao menos. Há aqui no hotel uma senhora casada, que... O Romaguera faz-lhe a corte escandalosamente. Estava senhor do campo, ao que diziam... — Ora veja que felizardo! Então, Vênus faz das suas por essas paragens... — Oh! Vênus está na ordem do dia, e o Romaguera gozava os seus benefícios, sempre segundo as más línguas. Mas temos aqui há cerca de uma semana um rapaz do Rio, o Vidigal, muito elegante e adamado e, também, conquistador, que entrou logo a fazer sombra ao Romaguera, com as suas assiduidades junto de D. Carmita. E ela está — vai, não vai —a renegar o ídolo antigo, ou, quando menos, já acendeu uma vela a Deus, e outra ao diabo. Que quer? O Vidigal é moço bem apessoado, e veste-se no rigor da moda, embora não seja lá nenhuma águia... Olhe, alí estão os dois juntos no vestíbulo. Repare. Com efeito, no topo da escada de pedra, o Vidigal, garrido como um narciso na sua roupa de flanela creme, segredava e ria com a D. Carmita, que, sedutora na primavera dos seus vinte anos, trajava delicioso vestido de foulard, cor de lilás... Estava mesmo uma violeta, como lhe murmurava ao ouvido o Vidigal, num galanteio feito de banalidades e malícias... O rapaz, fino, como poucos, em tentativas dessa ordem, acabava de oferecer-lhe um ramo de jasmins, que a moça prendia no seio, aspirando-lhes o inebriante aroma, com o rosto curvado sobre eles, e purpurino — de pejo ou de volúpia? Fabrício Autran, no jardim, quedava-se hipnotizado por aquela cena equívoca. Fuzilavam-lhe nos olhos rápidos clarões de cobiça. E, decerto, mentalmente já ele ideava fazer outro tanto. O Barão de Raymond, a seu lado, franzia os lábios numa visagem, de ceticismo amargo e, sacudindo a mão dentro da algibeira, fazia tinir moedas, dizendo de si para si:— Que adiantam galanteios? O dinheiro é que abre todas as portas!... Outros hóspedes apareciam na saleta da entrada, em trajes matinais; adiante de todos, D. Eufrásia Fontoura, mulheraça enorme na estatura e nas banhas, imperiosa e rusguenta; haviam-na apelidado Aquidabã pelo seu aspecto sempre agressivo; e a alcunha corria de boca em boca, entre risinhos abafados. Cercavam-na suas filhas, as torpedeiras e uma afilhada, menina buliçosa e trêfega, espreitadora e intrigante, que vivia saracoteando de um grupo para outro a ouvir todas as conversas e era por isso chamada a lancha Lucy.

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Via-se, também, D. Ester, esguia e pálida, com as olheiras roxas da insônia e das crises histéricas, andando lentamente, distraída e incerta, como uma sonâmbula; sua mãe a acompanhava, não a deixando um instante, com solicitude carinhosa de quem sabe que há de perder breve o objeto amado. Rapazes tísicos, que se conheciam pela aparência débil e pela tosse cavernosa, vinham aquecer um pouco as veias exangues ao bom sol dessa manhã tão clara. Um deles, descendo ao parque, pusera-se a contemplar o novo letreiro, dourado e reluzente, que o Dr. Silveira Jacques mandara pintar na fachada do hotel: "Sanatorium", em caracteres enormes... E um raio de esperança, límpido e doce, lhe animava os olhos encovados, como se aquela palavra exercera, só por si, uma sugestão poderosa... Coitado! Estava perdido! Não chegaria, acaso, ao fim do mês... PRIMEIRA NUVEM Nesse dia, pelos espíritos que o garbo e as maneiras largas de Silveira Jacques haviam deslumbrado, passou a primeira nuvenzinha de desconfiança. A ampla sala das refeições, que abria para o parque por dez janelas, estava cheia de um rumor confuso de vozes, de risos, de tinidos de talheres, de estalos rápidos de pratos entrechocados. Entre as mesas os garçons corriam azafamados, conduzindo travessas de chrystofle em que acepipes fumegavam. Um cheiro forte de comida subia; desarrolhavam-se as garrafas com estrépito; e, ao fundo, por detrás do balcão, em que antigamente tinha assento o impassível Madureira, aparecia a pálida face de João Silveira, o novo gerente, irmão do proprietário — um mocinho de ar tímido, gestos acanhados, que já na véspera se havia revelado vicioso, arriscando na roleta, com vergonha, algumas notas de dez mil réis. Todos os hóspedes almoçavam. D. Carmita, isolada, numa pequena mesa, dava as costas a Romaguera, que mastigava raivosamente os seus bocados, sem tirar os olhos da nuca da moça — um belo pedaço de pele clara, de que nasciam quase louros, crespos, inquietos fios de cabelos, loucamente encaracolados. E uma alegria expansiva animava a sala — alegria de que destacavam apenas a mesa dos Marqueses do Tijuco e a de Ester. Como era sexta-feira, o Marquês que às sete da manhã fora à matriz ouvir missa, agora jejuava, privando-se de carne, comendo, com moderação e humildade, meia dúzia de magras sardinhas de Nantes. A Marquesa, que quase não comia, tinha as mãos ao colo, o olhar parado, fito ao longe, sob as pálpebras semicoradas, numa meditação aturada. Ester, mais adiante, imóvel resistia às exigências da mãe, que a importunava

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carinhosamente, pedindo-lhe que comesse — que comesse qualquer coisa, uma asa de frango, apenas... E ela, numa resistência passiva, dizia que não com a cabeça, caindo já na imobilidade de êxtase que precedia sempre as suas grandes crises. Uma grande novidade ocorrera havia dias: a chegada da companhia de operetas, da atriz Ifigênia da Costa. Atrizes e atores ocupavam a grande mesa do centro, falando alto, comendo e bebendo com espalhafato. Comentara-se muito o fato de haver Silveira Jacques consentido em hospedar a troupe. Um rumor surdo de protestos crescera logo, ao ser conhecida a sua resolução. Mas ele, muito ofendido, espantara-se: Como? Pois não merecia ele, um médico de nome feito, a confiança dos hóspedes? Pois acreditavam que consentiria jamais que a troupe desse motivos de escândalo? "Mas senhores, eu também sou pai de família, e minha família está aqui!" Sim, hospedara o pessoal da companhia, porque era preciso acabar com essa pruderie mal-entendida dos brasileiros. Pois uma senhora virtuosa arriscar-se-ia a perder a virtude só com o viver próximo de uma atriz? Ora, pelo amor de Deus! E, no Rio de Janeiro, as mulheres de má vida não frequentavam o Pascoal, o Castelões, os hotéis de primeira ordem, acotovelando as principais famílias? Oh! Podiam ficar descansados! Ele se responsabilizava pelo bom comportamento das atrizes e pela delicadeza dos atores. Por fim, acalmaram-se os escrúpulos. E, ao almoço, reunida na grande mesa central, a troupe atraía todas as atenções. Havia à cabeceira — bela matrona, cuja fisionomia, talada pela idade, ainda conservava certa beleza, animada por olhos em que fulgurava inteligência viva — D. Ifigênia da Costa, glória do palco brasileiro, tão carregada de louros agora como de banhas. O seu belo talento entusiasmara duas gerações. E muita gente, vendo-a, evocava as belas noites do São Pedro de Alcântara, em que ela, em pleno fastígio da beleza, fazia passar pela platéia tempestades de aplausos, grandes silêncios comovidos, torrentes de lágrimas, interpretando o orgulho e a febre amorosa da Morgadinha de Val Flor, ou com largos gestos de tragédia, com os olhos fundos cheios de chispas de loucura, traduzindo os desvairamentos da Doida de Montemayour. Sentindo chegar a velhice, lançara fora o manto e o coturno da tragédia e dera-se a uma arte mais prática e rendosa, fazendo-se empresária de mágicas e óperas-bufas. As figuras principais da companhia eram duas italianas, mais feias que bonitas; uma cantava e outra dançava: e sobre a malícia da voz da primeira e sobre a agilidade das pernas da segunda é que assentava a prosperidade da empresa. A Leviccolo tinha um perfil insolente de menino: um narizinho afilado e petulante, feições miúdas de criança precoce — um fiozinho tênue de voz, que antes recitava que cantava, mas a que ela sabia

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dar, nas cançonetas francesas, inflexões brejeiras, reticências sugestivas, grifos canalhas à Ivette Guilbert. A dançarina Lotulli fazia delirar a platéia, quando no maillot de seda cor de carne, esticava a perna admiravelmente torneada, de músculos fortes e graciosos, educados pelo exercício. Havia, ainda, uma atriz brasileira, que se atirara ao teatro, como já se havia atirado a várias coisas: para atrair a atenção. Já chegara a fazer ascensões em balão, agora, fazia papéis de mulata em vaudevilles arrebentados. Os homens, escanhoados como padres, eram muitos. Havia o centro cômico, herdeiro dos esgares e das macaquices do Vasques; o que quase sempre fazia de Satanás, verdadeiro diabo de mágica, esgalgado e forte, belo exemplar de macho, que estontecia as coristas; e outros, e outros.

O almoço chegava ao fim. Já os criados serviam o chá, acendiam-se os cigarros, em várias mesas. Fora, sentia-se pelo brilho do sol, que fazia esplender cruamente a esmeralda viva dos tabuleiros de relva, que o meio-dia aí vinha. De repente, um grito agudo fez parar a conversação. Uma agitação geral sucedeu ao primeiro momento de silêncio e pasmo. Ester, inteiriçada, lívida, com a boca meio aberta, caíra sobre as costas da cadeira, dura, os músculos retesados, como de aço, numa contração titânica. Outro grito, daí a pouco, lhe rompeu a garganta, rouco, sem expressão. Outro, logo depois. E foi então uma série de gritos ásperos cuja modulação trêmula se prolongava no ar, rugidos que se sucediam sem transição de modo que um ainda ecoava, quando outro mais vivo lhe abafava o eco. O Dr. Lemos, solícito, correra logo. E aprestava-se, juntando os seus esforços aos da mãe de Ester, a conduzir a pobre moça ao quarto para a desafogar do colete — quando, rompendo o círculo que se havia formado, apareceu Silveira Jacques, pressuroso, sôfrego, com o bigode chinês trêmulo de solicitude. Espere, colega, espere! — atalhou ele, detendo o Dr. Lemos. — Espere, minha senhora! Isso vai já passar. Hipnotizo-a em dois segundos e suspendo-lhe a crise. Espessou-se em torno o círculo dos hóspedes, com a curiosidade despertada. Ester, na mesma atitude, com o seio violentamente sacudido pela crise, quedava, aos gritos, atirada sobre a cadeira. Silveira Jacques, dando à face uma concentração de feiticeiro, plantou-se diante dela um pouco acurvado, tomou-lhe as mãos e começou a fitá-la insistementemente.

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Lemos ainda quis intervir: — Mas estas coisas não se devem fazer numa sala de hotel, doutor... — Oh! por favor colega! — tornou irritado Silveira Jacques. — Não me interrompa o fluido! — Qual fluido, nem meio fluido! — exclamou o Dr. Lemos indignado. E retirou-se. Silveira Jacques continuou a fitar a moça, com os seus olhinhos pequenos e vivos. Agora, os gritos mais espaçados soavam, mais largos, mais tristes, com um indefinido acento de dor e de angústia. E o corpo da moça, sob a influência do olhar de hipnotizador, conservara a mesma rigidez. Um último grito abafado rompeu da garganta da histérica. E Silveira Jacques, trêmulo e exaltado, como um invocador de espíritos, dava uma ordem, falando baixo, com os dentes cerrados. — Durma! Durma! Em torno, a ansiedade sustinha todas as respirações. O médico repetia: — Durma! Durma! E como visse que Ester, já sem gritar, hirta e imóvel como um cadáver, não dava aparência de vida, soltou-lhe os braços, que caíram inertes, e voltou-se para os assistentes, triunfante: — Viram! Está pronto... Dorme! E o seu olhar, satisfeito e vaidoso, circunvagava pela sala, interrogando as fisionomias. E, realmente, todas as fisionomias se abriam em pasmo. O Marquês do Tijuco, rodando lentamente nas mãos o boné de seda preta, piscava os olhinhos desmaiados, talvez rezando intimamente ao seu padroeiro para se ver livre de bruxarias como aquela. Mas o Dr. Lemos voltou a ajudar a mãe de Ester. O seu mau humor era visível. Olhou com rancor para Silveira Jacques, e saiu, levando a moça e murmurando: — Vejam isto! Vejam só isto!

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Ester, sem movimento, deixava-se quase arrastar, inanimada... Na sala, o diretor do Sanatorium ficou expondo as suas teorias. Borbotavam-lhe dos lábios as palavras aos jorros, desordenadas, precipitadas. — Ah! posso afirmar-lhes que o hipnotismo vem revolucionar toda a medicina! Começou a citar casos... Na Salpetrière, o grande Charcot adquirira tal influência sobre as suas doentes, que um só olhar seu bastava a mover como a um corpo só, todo um batalhão de histéricas. Chegava mesmo, com uma ordem, breve e imperativa como uma voz de comando, a fazer que num segundo cinquenta mulheres caíssem em catalepsia, olhos parados, face dilatada pelo êxtase, boca entreaberta e pasmada... Hipnotizava à distância, pelo pensamento. Não era um homem: era uma pilha elétrica! Silveira Jacques, dizendo isso com a sua voz mais forte, parecia estar contando façanhas próprias, como se, em vez dele, o mesmo Charcot ali estivesse, impondo à admiração dos hóspedes do Oriente as suas feitiçarias. E contou: — Na Bahia, uma vez, chamaram-me para acudir a uma tremenda crise epiléptica. Era um preto reforçado, que no meio do trabalho caíra por terra, babando e rugindo. Sugestionei-o, suspendi-lhe a crise, despertei-o. E só com isso adquiri tal poder sobre ele, que daí por diante, bastava-me encontrá-lo na rua e olhá-lo por um segundo para que ele quedasse imóvel na calçada, escravo meu, cativo do meu olhar. Poderia obrigá-lo a cometer crimes, a matar alguém, a fazer tudo... O Romaguera interveio logo, provavelmente pensando em D. Carmita: — Mas, doutor, todos têm esse poder? — Ah! não! — respondeu Jacques. — Eu, felizmente, possuo-o em grau alto. Ainda agora, se não fiz esta moça dormir, logo no primeiro segundo, foi porque... — Ora, foi porque não a fez dormir absolutamente nada! — clamou ao lado uma voz. Voltaram-se todos. Era o Dr. Lemos. Silveira Jacques, contrariado, espantou-se:

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— Não a fiz dormir? Ora essa! — Não a fez dormir! Pois o colega não vê que a pobre moça está positivamente cataléptica, coisa que infalivelmente lhe acontece ao cabo de todas as crises, sem ser preciso para isso a sua intervenção? Silveira Jacques olhou em torno, com um ar comiserado, como a pedir a todos que desculpassem a loucura daquele homem. E perguntou: — Mas, então, o colega não acredita no hipnotismo? — Acredito no hipnotismo, mas não acredito no charlatanismo. E se o colega teima em dizer que foi o seu poder hipnótico que deu àquela moça o horrível sono cataléptico de que ela só despertará, amanhã, então digo-lhe eu que pode limpar as mãos à parede. Grande remédio! Suspender uma crise, substituindo-a por outra pior! O hipnotismo é um meio curativo admirável. Mas, está ficando uma boa capa para a ignorância e a maluquice. Daqui a pouco, o colega é capaz de querer curar a tuberculose com seu poder hipnótico e extirpar cancros com o auxílio de sugestões telepáticas! De mais, todos nós sabemos que esta moça está perdida. Não há de ser a feitiçaria dos olhos do colega que lhe restituirá a vida, que ela só tem agora uma insignificante parcela. E é uma crueldade estar fazendo reclame com a agonia e a desgraça de uma moribunda! Silveira Jacques, acabrunhado, olhava para todos como a procurar quem defendesse. Em roda, apontavam sorrisos de remoque em várias bocas. O ídolo estava quase mostrando que tinha pés de barro! Por fim o diretor do Sanatorium murmurou: — Não! Não acho que o seu estado seja tão grave!... O que ela tem é uma neurastenia profunda... Dr. Lemos, sem se poder conter, perguntou com crueldade: — O colega pode fazer-me o obséquio de dizer o que é neurastenia? E Silveira Jacques, gaguejando: — Ora! Neurastenia! Neurastenia é... neurastenia é... sim uma coisa quando se sente alguma coisa... quando se tem neurastenia...

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— Estou informado, colega! — disse o Dr. Lemos, cumprimentando-o reverentemente, com um sorriso. E afastou-se. Também o Dr. Silveira Jacques achou logo um pretexto para sair. Desfez-se a roda. Dera meio-dia. O ar da sala, em que batia agora o sol, pesava, morno e abafado. E foi assim que, pelos espíritos que o garbo e as maneiras largas de Silveira Jacques deslumbravam, passou a primeira nuvenzinha de desconfiança...

A "TROUPE"

Os atores da companhia dramática e, sobretudo, as atrizes, mantinham-se numa vida à parte, arredados das famílias, que só por muita instância do Dr. Silveira Jacques haviam consentido em habitar com essa gente. Eles todos, aliás, cumpriam à risca a promessa feita ao médico, e nem sombra de escândalo ofendia a moralidade reconhecida e proverbial do Sanatorium — moralidade que, como acontece em todas as casas dessa ordem, não excluía um ou outro abuso clandestino, guardado em absoluto segredo... Entretanto, aquelas figuras desusadas, que a maioria dos hóspedes só vira até então nos disfarces do palco, "à luz das gambiarras", modificavam singularmente o aspecto do hotel; a cada instante se acotovelavam pelos corredores tipos de cabotins, sujeitos de voz declamatória e riso barulhento, cujas caras tornavam ainda mais cômica a ausência da barba; mulheres garridas passavam, com as faces grossas de pó-de-arroz, creme-simon e carmim, os cabelos retorcidos em penteados extravagantes, e espaventosas toilettes de seda e veludo, realçadas por jóias, verdadeiras ou falsas... Meia dúzia de cachorrinhos, pelo menos, acompanhavam por toda a parte as respectivas donas, latindo, ganindo, numa alacridade infernal; um deles, o Príncipe, da empresária Ifigênia da Costa, era, por exceção, um mimo, um bijou, como dizia afrancesadamente Álvaro Vidigal: pequenino, esbelto, trêfego, com uma cor fulva de leãozinho jovem e manso, educado, nada amigo de imiscuir-se na orgia espalhafatosa dos outros cães. Grande parte das famílias, mais ou menos habituadas à intimidade fácil dos hotéis de verão, iam pouco a pouco abrandando as suas desconfianças, e já não receavam trocar de quando em quando, de passagem, duas palavrinhas inofensivas com uma atriz. D. Ifigênia da Costa, com a sua fala cariciosa, os seus olhos simpáticos, e os seus modos de senhora séria, retirada do proscênio, aposentada há muito em proezas amorosas, sabia insinuar-se no ânimo das matronas mais suscetíveis; dentro em pouco, era admitida nas conversações em comum, e tratada por quase todos com deferência cordial; a dançarina Lotulli, também, invulnerável no seu luto de viúva, e só de noite podendo mostrar, apertadas em transparente maillot cor-de-rosa, as suas pernas ágeis,

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maravilhosamente torneadas, desarmava todas as prevenções, chegava a encantar muita gente com a sua amabilidade espirituosa, as suas impressões de viagens longínquas, pela Rússia e pela Grécia...

A Leviccolo não renunciava à sua independência de boêmia; convencionalmente respeitosa, constrangida a aceitar e cumprir uma lei avessa aos seus hábitos permanecia estranha à convivência do salão, para ter a liberdade de escandalizar a platéia com irreverências provocadoras e impudicas, nas récitas e nos ensaios gerais. A Anita — a que se improvisara aeronauta num balão de recreio — pouco vivia no hotel; quando não estava no teatro, que era a dois passos, andava percorrendo as ruas pelo braço de um rapazola sem preconceitos, pedante na sua elegância requintada, o Cazuza Gurgel, filho do sábio Aureliano, que, melindrado, no seu escrupuloso decoro, mal ousava sair à rua para não dar de frente com aquela vergonha. A careteiro Mendonça, primeiro cômico da empresa, rival do Peixotinho em esgares picarescos e graçolas frescas, não usava de cerimônias com ninguém, dirigia-se a todo o mundo, contando histórias e piscando os olhinhos moleques, dando piparotes no ventre aos mais próximos ou sacudindo-lhes a poeira das gravatas. Tudo se lhe tolerava porque, ainda no dizer de Alvaro Vidigal, "aquele ladrão tinha muita graça". O outro, alto e esgalgado, o diabo das mágicas, Mendes, tinha um único emprego, que lhe absorvia inteiramente o tempo e a atenção: seguir a Leviccolo por toda a parte, como um mastim de guarda, ciumento e feroz, para não consentir que alheios dentes mordessem aquela carne de mulher sabida, prática em todos os segredos da volúpia. Havia, também, o galã dramático, o Costa, com enormes bigodes negros no rosto rigorosamente escanhoado e por toda a sua pessoa, desde as pastinhas lustrosas de cosmético até a ponta dos sapatos mignons de verniz, um quê de pseudodandismo, que encantava .. . De quando em quando, aparecia no Sanatorium pela porta dos fundos a Concina, que morava fora, em admirável ménages à trois. Alta, loura, bonita, de olhos azuis-claros e tez de jaspe, devia ser de uma sensualidade fria e complicada essa mulher, cujo perfil de estátua raro se animava num lampejo de vida. Ao redor dela e da Leviccolo e um pouco também junto a Lotulli, formigava com cautela maliciosa, a rapaziada do Sanatorium, cinco estudantes, moços muito distintos, que passavam as férias em São Bernardo, fugindo do calor do Rio, entre os quais o Vidigal, que sempre fazia timbre em ser o mais possível fin de siècle.

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Os estudantes andavam juntos a toda a hora, quer no salão, onde o Vidigal se constituíra marcante infalível dos cotillons e diretor perpétuo dos bailes, quer nas excursões pelos arredores, à gruta da rocha ou às águas milagrosas; um deles, o Castanheira, espirituoso e gentil, com o seu nariz heráldico, grande, mas correto, como ele teimosamente afirmava, nunca deixava de levar consigo a caixa de tintas e as telas para copiar a óleo as paisagens locais; outro, o Alfredo Pereira, vindo da Europa havia meses, ainda com acentuado perfume parisiense, dedicava-se à fotografia, e carregava heroicamente para toda a parte a máquina portátil, os caixilhos e o pano preto; o Alvaro Cândido, vivo e engraçado como um demoninho, disposto, desde a manhã até à noite, a rir e a pregar boas peças aos companheiros, trauteava trechos de opereta, exagerando as inflexões e os gestos dos atores, e o Manhães de Azevedo, homem de letras já conhecido, dotado de espírito observador sarcástico, um pouco pedante; quando deixava em paz os livros, divertia-se a estudar miudamente todos os tipos da casa da rua e, em apanhando um ajeito, traçava-lhe a caricatura num caderno de esboços. O Romaguera, dominado embora pela idéia fixa de apossar-se da D. Carmita, não desdenhava, para distrair-se, as estrelas do café-concerto. Por outro lado, a própria D. Carmita, longe do marido, que fora tratar de negócios na República Argentina, não tinha escrúpulo demasiado em palestrar, uma vez ou outra com a própria Concina, que, apesar do seu perfil de estátua, era reconhecidamente mulher de vida airada. Mas quem valia a pena de ver-se era Fabrício Autran, cuja carnalidade fremente de baiano despertara em explosões, como um rastilho de pólvora ao pé do fogo. Esse não sabia como dividir-se: aqui, a D. Carmita, delicioso fruto proibido, que tantos disputavam com fúrias de sensualidade e amor-próprio; ali, a criadinha Mercedes, espanholita clara, de olhos e cabelos negros, e uma pele cor de leite, cor de jasmim, cor de manjar branco, exclamava o Autran entusiasmado; além, ainda a Leviccolo e a Concina e a Lotulli, que, na sua qualidade de dançarina, devia de ser flexuosa, coleante, como as cobras... Era demais e ele não sabia onde quebrar a cabeça! Entretanto, o Barão de Raymond, que rondava sem cessar os quarteirões de Cítera ávido de sensações novas, zombava dessa luta de apetites diversos, e, contando triunfar de todos os contendores, cofiava a barba grisalha com a mão esquerda, enquanto a destra, metida na algibeira, fazia tilintar moedas: "— Qual! O dinheiro é que abre todas as portas!".. . E a Marquesa do Tijuco, com acionados trágicos e trevões na frase, apoiava os ditos do Dr. Lemos, ajuntando:

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— É uma pouca vergonha! Não saio daqui por que não há em São Bernardo outro hotel que tenha conforto bastante... Morar na mesma casa que as Sras. Leviccolo e Lotulli, eu, Marquesa do Tijuco! Quando pensei chegar a este extremo? Mas, em suma, a época é de decepções e desaforos, e por outras piores temos passado, depois que expulsaram do Brasil o Imperador! — É verdade — concordava o Marquês, melancólico e resignado, dobrando entre os dedos o boné de seda negra. Isto vai realmente contra a etiqueta... Mas que fazer? Sujeitemo-nos; não há outro remédio...

A D. Eufrásia Fontoura — por alcunha Aquidabã — acenava com a cabeça em sinal de aprovação: não é que fizesse grande casso dessas ninharias, mas tinha a mania do esnobismo, e, uma tendência natural a fazer-se porta-voz das opiniões dos fidalgos; por isso, quando as filhas — as torpedeiras — e a afilhada — a lancha Lucy — tentavam aproximar-se das estrelas, só por curiosidade, só para ver como era feita uma atriz, ela gritava autoritariamente, com relâmpagos de indignação, nos vidros da luneta: — Meninas! o seu lugar não é aí! Venham para junto de mim! "FREI DIABOS" Os espetáculos faziam sucesso, — um sucesso estupefaciente, dizia Vidigal, imitando o primeiro cômico. O teatro, pequeno, de construção moderna, quase todo de ferro, ficava a poucos passos do Sanatorium. Enchia-se a sala todas as noites. Como a iluminação da cidade era feita a petróleo, e malfeita, plantavam na rua, em frente à porta principal, dois varapaus oscilantes, em cujo tope fumegavam lâmpadas. E, em torno dessas luzes mortiças, os vendedores de cigarros, de café, de pastéis, de doces, armavam os tabuleiros sobre cavaletes de pau. Uma multidão de ociosos — a arraia-miúda da cidade, — ficava ali, melancolicamente, a ver os felizes, que entravam. E a concorrência dos espectadores era imensa. Do repertório, eram cuidadosamente expelidos dramas, comédias, tudo quanto pudesse ter arte. Arranjos disparatados, grandes mágicas espetaculosas em que se moviam cem pessoas, que se não entendiam, longos atos de enredo absurdo, recheados de chalaças grossas, cabeludas, tocando a raia da obscenidade — tudo isso emoldurado em mise-en-scène luxuosa, decorado e iluminado a fogos de bangala, a chuvas de ouro e papel picado, acabando sempre por apoteoses fulgurantes que eram verdadeiros quadros vivos, exibições de pernas, de colus nus... D. Ifigênia da Costa conhecia bem o seu público, não só o de São Bernardo, como o de todo o Brasil — povo em que o sentimento artístico está, ainda embotado. Ah! ela bem sabia o resultado que a

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arte dava no Brasil! Depois de receber o aplauso de três gerações, ficara pobre, pobre como no primeiro dia em que pisou no palco. E, depois de se dar à bambochata e ao trololó, começava a prosperar, de vento em popa para a fortuna. Diziam mesmo que muitas apólices dormiam já no fundo das suas arcas. Frei Diabo, mágica descabelada que nem mesmo o próprio autor conseguiria nunca entender, dera-lhe durante representações consecutivas um lucro líquido de quarenta contos.

E, agora mesmo, em São Bernardo, quando anunciavam esta peça, era preciso fazer suspender a venda de bilhetes, com receio de que, com a acumulação de espectadores, viesse abaixo o teatro. Era justamente Frei Diabo a peça que se representava nessa noite. Findo o jantar, no Sanatorium, todas as senhoras, exceto a Marquesa do Tijuco — que abominava comédias e cômicos — foram fazer a toilette. E, às 8 da noite, começou o êxodo das sedas e das jóias, dos vestidos elegantes uns, ridículos outros como os da Aquidabã e respectivas torpedeiras, das grandes capas de pelúcia e veludo, das longas caudas, dos leques ricos. Mas D. Carmita, sem mudar toilette, ficava no vestíbulo, à luz da lâmpada belga, lendo um livro. E a cada grupo de senhoras que saía havia um espanto: — "Como? Não ia ao espetáculo?" D. Carmita desculpava-se: estava doente, sentia-se mal, com absoluta necessidade de repouso. Ia dormir. — "Então, até manhã". E estalavam beijinhos. Quando já quase todos haviam saído, veio de dentro Romaguera de sobrecasaca e chapéu alto. Vendo D. Carmita, que não levantava os olhos do livro, parou. Uma contrariedade viva se lhe pintou na dura face. Mas, abrandando a fisionomia e adoçando a voz, sentou-se ao lado da moça. — Que melancolia é essa? Tão moça, tão bonita, tão requestada e fica em casa, como uma Gata Borralheira, ao lado do fogão, em vez de ir brilhar e ofuscar a beleza das outras?! — Estou doente, comendador! — disse D. Carmita, com indiferença. Romaguera procurou uma amabilidade; ao cabo de alguns segundos, saiu-se com esta asneira: — O seu mal é crueldade; Se não fosse tão cruel.. . — Oh! comendador! — murmurou D. Carmita, com um amuo. — Se soubesse a enxaqueca que tenho hoje!

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— Mas deixe-me falar, hoje que a encontro só... E tão difícil agora encontrá-la sem a presença desse janota que a persegue!... Que quer dizer, a sua indiferença? Que mal lhe fiz eu? Por que me evita, sabendo, como sabe, que sou capaz de todos os sacrifícios para merecer o seu amor?... O seu carão áspero inflamava-se. Dilatavam-se-lhe as narinas, aspirando o cheiro forte da mocidade, de beleza e de saúde, que saía do corpo da moça. Mas, nesse momento... — Oh! não vai ao teatro, D. Carmita? — disse o Vidigal, pronto para sair, corretamente abotoado, enluvado, cheirando a couro da Rússia. E fingia uma grande admiração. — Não, estou doente. — É pena! — disse dele, curvando-se, num cumprimento. — Até amanhã, minha senhora! Não vem ao teatro, comendador? Romaguera levantara-se ao ver chegar o moço, com todo o rancor prestes a fazer explosão. Mas, vendo que, ao menos, não o deixaria junto com a moça, dominou-se e sujeitou-se a sair com ele. Saíram. D. Carmita acompanhou-os com a vista, sorrindo, deliciada, como coquete que era, com a idéia perversa de que o desejo de sua posse obrigava aqueles dois homens que se odiavam a essas aparências de estima e familiaridade, jungindo-os, como dois animais ferozes, à mesma canga. E Romaguera seguiu para o teatro, ao lado de Vidigal, sem ter percebido o olhar expressivo que este trocara com a moça. Apenas só, D. Carmita levantou-se, foi à sala de jantar, consultou o relógio; eram nove horas. Voltou ao salão. Completamente vazio, este. Ela regozijou-se com isso, passeou de um lado para outro, parou a contemplar as gravuras, tornou a passear, foi ao piano, abriu-o, correu-lhe a escala, com os dedos distraídos fechou-o, foi à janela, e encostou-se ao peitoril, olhando para fora. Decididamente, esperava alguém. Mais coradas que de costume as suas faces ardiam. Um fogo estranho de febre, de desejo, de impaciência lhe fuzilava no olhar. Ficou a olhar a noite serena, em que as estrelas coruscavam. Um cheiro forte, vivo, vindo dos jasmins e de lírios subia do jardim. E ouvia-se longe, no teatro, a orquestra que executava um tango, uma música lânguida, quebrada, cheia de gemidos, de gozo e volúpia. Mas, de repente, D. Carmita sentiu que alguém acabava de entrar ao salão. Voltou-se rápida, impaciente, entre assustada e alegre. Mas, quase chorou de raiva vendo quem entrava. Era a Marquesa do Tijuco.

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Vagarosa, envolvida como num manto régio, na sua longa capa de seda cor de cinza, a velha senhora dirigia-se para D. Carmita, com um ar de quem vem dar pêsames... A sua face balofa estava desmaiada de tristeza. Chegou, encostou-se à janela, e disse, falando baixo e devagar: — Tão sozinha, tão triste! Oh! Compreendo bem a sua melancolia! Tão longe do seu esposo!... Fez bem em não ir ao teatro... As senhoras como nós não devem misturar-se com certa gente... Eu também estou triste... muito triste... Chego, às vezes, a pedir a Deus que me leve desta vida! D. Carmita, mentalmente, mandava a velha ao diabo. Que maçante! Era capaz de ficar ali toda a noite, a dizer-lhe banalidades, implacavelmente! A Marquesa entrava agora pelo capítulo das confidências... — Meu Deus! — pensava D. Carmita, horrorizada. — Vai contar-me toda a sua vida! Com efeito, a velha senhora começou a dizer-lhe que só casara tarde, porque não quisera nunca entregar-se a um homem do povo... Casara tarde. Guardara todo o tesouro do seu afeto para quem fosse digno dele... E agora... Ficou um momento calada. Depois, mudando de assunto: — Quer ouvir um piano?

D. Carmita resignou-se a segui-la. A Marquesa sentou-se, tossiu, inclinou para o lado a cabeça gorda, ornada, de bandós de um negro equívoco, tirou algumas notas, e disse com melancolia: — É um hino ao Saldanha... E tocou, num compasso de marcha fúnebre, uma coisa lenta e longa que chorava tristemente no salão imenso, e transbordava para a noite, povoando-a de lamentos... D. Carmita, em silêncio, de pé, junto do piano, torcia as mãos com uma cólera mal contida, sem tirar os olhos da porta. E já deviam ser dez horas. Passos abafados soaram na areia do parque. E, à porta, apareceu Vidigal, que espiou e retirou-se prudentemente para o interior do hotel, obedecendo a um olhar da moça. Esta esperou algum tempo. Mas vendo que o hino não acabava, antes ameaçava atravessar toda a noite, interrompeu a Marquesa:

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— Perdoe, Marquesa! Esquecia-me de que tenho de escrever uma carta a meu marido urgente. A velha senhora nem a ouviu. Toda entregue à música chorosa, estava fora do mundo e da vida, pairando numa esfera inacessível às vozes humanas. E enquanto a moça corria a fechar-se no quarto — a cuja porta daí a pouco uma cautelosa mão bateu de mansinho — o hino interminável continuou a desfiar as suas notas plangentes, monótonas, sempre as mesmas, com um ritornello triste e prolongado. No teatro, o espetáculo ia em meio. Romaguera, cativo das amabilidades e das atenções do Vidigal, chegara, mesmo, no primeiro intervalo a convidá-lo a tomar cerveja. No saguão ladrilhado, acotovelavam-se rapazes, bebericando copinhos de conhaque ou ingerindo canecas de Pá. Vidigal aceitara o convite, bebera a cerveja, e afastara-se do comendador para ir conversar com um chefe político da cidade, grande homem mal-encarado, cujo filho se fizera frade. Romaguera pagou a despesa, e vendo que o ato ia começar, deu-se pressa em voltar para a platéia. Subiu o pano. O ato começava por um grande bailado em que as pernas da Lotulli faziam prodígios. Romaguera, encantado, não se fartava de ver aquilo. E, mentalmente, despia ainda mais as bailarinas, tirando-lhes mesmo o maillot, desnudando-as de todo, imaginando que nuança delicada de carne cor-de-rosa teriam as pernas glabras, roliças, as curvas formosas dos joelhos, as formas desenvolvendo-se, alargando-se dali para cima... E, na sua cadeira, Romaguera bufava de luxúria. Findo o bailado, apareceu em cena a Leviccolo, com traje masculino, calção de seda verde, grande gibão degolado de veludo, espadim à cinta. Assim vestida de homem, acentuava-se a sua aparência natural de mocinho vicioso. Apenas se lhe conhecia o sexo pelo desenvolvimento maior dos quadris. O peito aparecia quase raso, quase sem proeminência de seios. Fumava. E começou a cantar uma cançoneta brejeira, a cujas reticências a platéia se torcia de riso. Mas, de repente, Romaguera deu pela ausência de Vidigal. Procurou-o no lugar em que o vira há pouco. Correu com os olhos toda a platéia, espiou todos os camarotes, voltou-se ansioso, examinou a galeria nobre. Nada! Uma suspeita horrível lhe atravessou o cérebro. Dar-se-ia o caso...

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Sim! Por que deixara D. Carmita de vir ao teatro? Estalava-lhe a cabeça. Era horrível aquilo... Quem sabe se a essa hora não estavam eles a beijar-se, a gozar-se, a ridicularizá-lo, de súcia... Romaguera não se conteve. Levantou-se desesperado, batendo o pé. Houve um primeiro psiu!, indignado, na platéia. Ele, pisando calos, rasgando barras de vestidos, atropelando todos, tentou sair. Mas uma tempestade de gritos, de reclamações, de protestos soou: "Senta! Senta! Senta!" gritava a galeria. Romaguera, arquejante, rubro, tentava ainda sair. Mas, as reclamações transformavam-se já em assuada. "Ó urso! Ó monstro! Senta! Senta!" Não houve remédio... Risadas tiniam alto... Enfiado, voltou ao seu lugar, apoplético, suado, com a pele cor de lacre. E teve de aturar aquilo até ao fim do ato, com o inferno dentro da alma... Como se arrastavam os coros, intermináveis! Como se prolongavam os diálogos! que vontade tinha ele de estrangular um vizinho de cadeira — um rapazinho imberbe, de pince-nez — que pedia bis ao fim de cada copla! O comendador chegou a desejar que sucedesse uma calamidade qualquer, que houvesse incêndio no teatro, que um ator caísse fulminado por uma síncope cardíaca — só para ver aquele martírio acabar! Por fim, o pano caiu entre aplausos. Romaguera, aos encontrões, escan-dalizando as senhoras, pisando os homens, saiu. Aspirou desafogado o ar frio da noite, e abalou para o hotel, como um louco... O N.° 48 No salão imenso, ardiam ainda duas lâmpadas de um lustre formando um círculo de luz, intenso no meio, e gradualmente enfraquecido ao longo das paredes, forradas de papel cor de havana, com dourados velhos e acompanhados de um extremo a outro por duas filas de cadeiras negras de ébano. De lá, vinham, em arrancos fortes, as notas belicosas, épicas, do hino ao Saldanha... Romaguera parou à porta, e espreitou para dentro do salão. A claridade fraca não lhe permitia distinguir quem estava ao piano. É a D. Carmita! — pensou, e um suspiro de alívio lhe desapertou os pulmões do círculo de ferro que os constringia.

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Entra, pressuroso, solícito. Que bom acaso o guiara para ali! Era tempo, ou nunca, de aproveitar o ensejo de agarrar a ocasião pelos cabelos! O hino ao Saldanha continuava, enérgico, vibrante. Agora, sussurrava o mar em bramidos de revolta, açoitando os rochedos com o látego rijo das ondas; singravam de um lado a outro da baía os couraçados e cruzadores, e no convés a maruja berrava em delírio "vivas à liberdade"; o clarim de combate chamava os bravos aos seus postos de honra; ouviam-se os apitos da manobra, o retinir das correntes e o surdo rodar das carretas, e um após outro, disparos de canhão ribombavam, despertando os ecos profundos do mar, e batendo de encontro aos muros sólidos das fortalezas. Romaguera aproximava-se, já com uma frase feita nos lábios: — "Como está inspirada hoje a bela pianista!" Mas um oh! de espanto lhe abriu a boca, de repente; ele esperava tudo menos ver, ali, em vez de D. Carmita, o carão importante e sobranceiro da Marquesa do Tijuco. Quis retirar-se, furioso, mas já não era mais tempo. A fidalga, até então absorta pelo estro da melomania patriótica, interrompera a música e cumprimentara-o, um pouco espantada de o ver no salão, àquela hora. Oh! comendador, como sou eu distraída. Não dera pela sua presença! Quase me causou um susto! Mas estava entretida, compreende, esta minha composição, a qual dou agora os últimos retoques... Oh! bem sei que divergem as nossas opiniões políticas... Mas nem por isso... — Sim, Sra. Marquesa, certamente, certamente... — gaguejava ele, fechando os punhos de raiva, com umas ganas de estrangular a pianista... — Então, diga-me: que tal está o teatro? Muita gente, hein? E todos foram; cuido que só ficamos, eu e a D. Carmita. Simpática senhora, não é comendador? Bonita, bem educada, fina de trato... — Ah! — mas sem dúvida... conheço muito a família... — rugia o Romaguera, exasperado, frenético, prestes a soltar alguma tolice. — Ela deixou-me há pouco; disse-me que ia escrever uma carta urgente, creio eu. — Por força... como não? Ora, essa! — Bem, Sra. Marquesa, dê-me licença... — Aonde vai, comendador? Volta àquele infecto espetáculo? O segundo ato não deve começar já, suponho... Os intervalos não são de vinte minutos? Quero tocar-lhe um trecho de meu hino e pedir sobre ele a sua opinião insuspeita...

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— Desculpe-me, desculpe-me. Vim à casa só buscar umas cartas, que recebi hoje do Paraná e quero mostrar a um amigo, durante o intervalo. Não posso demorar-me; aliás, com muito prazer ouviria a sua admirável composição. Outra vez, se me der a honra... Sra. Marquesa... E, rapidamente, saiu do salão. Dez segundos mais, que lá ficasse e de duas uma: ou caía fulminado por um ataque apoplético, ou perdia a cabeça, e dizia desaforos à Marquesa, e quebrava espelhos e móveis... Reparou para um lado e para outro, que ninguém o observasse; os corredores estavam desertos, quase às escuras; só, lá no fundo, brilhavam as frestas de uma porta, pequeninos riscos de luz, e percebia-se vagamente um estálido seco de fichas remexidas; a Marquesa voltara à carga, e o hino ao Saldanha continuava. Felizmente! — disse consigo Romaguera; e, em vez de dirigir-se para o seu quarto, tomou a banda oposta, onde morava a D. Carmita. Pisava cautelosamente, trêmulo de ira e de medo, como um ladrão receoso de ser descoberto. "42, 44, 46", ia contando, para não se enganar de porta: "48. — É aqui". E deteve-se, indeciso a espiar; dentro, escuridão completa. Colou o ouvido à fechadura; parecia-lhe ouvir um murmúrio de vozes ciciantes, abafadas; que fazer? Passavam-se minutos sobre minutos; e ele estava ali, como pregado ao soalho. Que fazer? repetia. Não havia agora de forçar a porta! Que escândalo seria!... Como certificar-se da verdade? Oh! obstáculo terrível! Uma idéia súbita lhe acudiu. A passos largos atravessou a sala de jantar, e tomou o corredor da direita. — Quarto 56. Era o do Vidigal. Bateu a porta, de manso, depois mais forte. Não teve resposta. — Suceda o que suceder! resolveu; e deu volta à maçaneta. Riscou um fósforo; a cama estava intata, e, sobre ela, a cartola e a bengala do elegante rapaz. Errava pelo ar um perfume ativo de Impérial Russe, de Guerlain. "Com os diabos! ele está no hotel... e está lá! lá!... Ou talvez na roleta... Vou ver..." Entrou na sala de jogo e procurou-o avidamente; nada. O malicioso Cavalcanti tocou-lhe no ombro: — Comendador, comendador... Você está incomodado hoje... Que é isso? Quem lhe matou seus cachorrinhos?... O Romaguera não replicava: nem talvez ouvisse. Todo o seu cérebro estava empolgado pelas garras de uma idéia fixa: "Agora é certo! é indubitável! ele está lá..." Voltou ao quarto de D. Carmita, andando já sem precauções, exacerbado, febril, inconsciente. Ainda uma vez escutou distintamente um sussurro de conversa, risadinhas... Não se conteve; sacudiu a porta, com ímpeto; o rumor enorme, aumentado ainda pelo silêncio noturno, espalhou-se pela casa toda,

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através dos corredores e salões. Com isso, voltou-lhe um pouco do sentimento da realidade. Que estava ele fazendo? Podia ser pilhado! Se a D. Carmita gritasse! Que vergonha! O Dr. Jacques estaria no direito de expulsá-lo do hotel. Contudo impeliu de novo a porta, mas muito de leve, cuidadosamente. Percebeu que se abria uma janela, que alguém se levantava da cama e, acesa a vela, tiniu por alguns minutos uma campainha elétrica. Era fina, a mulherzinha! — que a partissem mil raios! Viria agora a criada particular, atendendo à campainha; e ele não podia expor-se à curiosidade intrigante da mulata velha! Tinha de retirar-se, que remédio! Nada lhe era dado adiantar! Nada sabia, afinal! Mas ela havia de pagar. Oh! se havia!... Afastou-se, prudentemente; pouco tinha andado, quando esbarrou com a velha Marquesa que, ao fim, deixara o hino famoso, a continuar no dia seguinte, até... — Oh! Sr. comendador! por aqui ainda? O segundo ato já deve estar terminado. Custou a encontrar as cartas do Paraná, hein? O pobre homem ficou desapontado, com a língua presa, sem poder articular duas sílabas. — Boa noite, comendador; vou deitar-me. O Marquês já está dormindo a sono solto. Romaguera pôs-se a refletir. Tornaria ao teatro? Não, de modo algum. Com a cólera tigrina que o torturava, estaria já de feição a aturar cançonetas brejeiras da Leviccolo e pilhérias obscenas do Mendonça, palmas do público imbecil e comentários de vizinhos na platéia? Iria antes à roleta: o jogo, sim, desviava do espírito apreensões cruéis e ressentimentos negros, forçando a atenção a concentrar-se em cálculos rigorosamente combinados. E ele era de força reconhecida na estratégia da roleta; felicíssimo nos palpites... e, por isso, conforme o ditado, infeliz nos amores! — "Qual, Sr. Romaguera, você é um homem sério, tem quarenta e cinco anos, é comendador ainda por cima, e sustenta o governo legal! Deixe-se de pieguices pulhas! A pequena há de ceder..." — Entrou um instante no seu aposento; acendeu a luz, e viu-se ao espelho; estava um tanto desfigurado, rubras as faces, os cabelos e a barba em desalinho. Encheu de água a bacia, ajuntando umas gotas de vinagre de toilette, o mais fino, de Lublin; refrescou o rosto, penteou-se, trocou a sobrecasaca por um veston leve, azul-marinho. E encaminhou-se para a roleta. A ROLETA

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Nessa noite, fazia-se grosso jogo, porque só concorriam amadores decididos, gente doida por sensações raras, disposta a ganhar ou perder muito. Os habitués mais fraquinhos, que só apareciam lá quando não tinham de fazer, estavam todos no teatro, a deliciar-se com as parvoíces salgadinhas do Frei Diabo. A mesma atmosfera de sempre: um ar espesso de fumo e da respiração de tantos homens reunidos em quadra relativamente escassa. Ao redor da mesa, com pilhas de fichas e maços de cartas, diante de si, personagens ricos, conceituados, do hotel e da cidade. O Barão de Raymond, com um puro havana entre os dentes, o olhinho esquerdo meio cerrado pela ação da fumaça, colocava quantias graúdas em pleno, a cada parada, com secreto desejo de arrebentar a banca; a seu lado, o Cavalcanti, sereno e benévolo, semelhante, com as suas barbas alvas, às figuras do ano findo, que vêm nos cromos franceses, arriscava montões de fichas sem se emocionar, acolhendo, com o mesmo sorriso de ceticismo adorável os lucros e os prejuízos; o Dr. Lemos, sempre agitado e nervoso, com sarcasmozinhos perversos a adejar-lhe o canto da boca, palestrava incansável, parando apenas de falar para fazer as suas apostas e esperar com ouvido atento à voz fria do banqueiro, anunciando o número triunfante; o conselheiro Fonseca, antigo ministro de Estado, no Império, prestava toda a atenção ao que lhe dizia o Dr. Artur Amat, jornalista célebre da oposição, durante o governo do Marechal Deodoro. Fabrício Autran atirava-se à conquista do azar com o mesmo zelo que despendia a conquistar em mulheres; tão fixos e ardentes olhos pregava num semblante apetitoso e jovem, como na bolinha branca, que ia girando, aos pulos, de casa em casa, até parar, bruscamente num algarismo. O Fontoura, burro, malcriado, como de costume, armava questões por qualquer pequenina dúvida, com os parceiros ou com o pagador, resmungando coisas, num vocabulário restrito, mas escolhido, para descomposturas soezes. A um canto, Vidigal, que chegara havia pouco pela porta dos fundos, contava qualquer novidade interessante a João Silveira, o gerente do Sanatorium, irmão do Dr. Jacques; e era mister com efeito, que fosse história de grande monta, para afastá-lo assim da mesa, em que de ordinário ele se conservava, com persistência de jogador genuíno, horas e horas a fio.

Outros havia ainda sentados à mesa, conversando no vão das janelas passeando de um extremo a outro da sala, e acudindo às apostas, ou a receber o dinheiro, quando a sorte os protegia. Eram três os banqueiros associados, vindos de fora com os primeiros calores e os primeiros fugitivos; o Alberto Nunes, janotinha equívoco de minúsculos bigodes torcidos a ferro, e um anel de brilhantes excentricamente enfiado numa gravatinha vermelha, de laço; o Francisco Ezequiel, baixo e obeso como um pipote, bochechas quase roxas à força de escarlates, e um pedaço de narina comido não se sabe como; e o Querubim, cognominado Melilla, espanhol, que antes se diria turco, pelo

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contraste da barba negra, espessa, e da cabeça, metade calva, metade à escovinha — mas que ilustrava os brasões da sua nacionalidade pelos exageros de linguagem, e pelas hiperbólicas, fabulosas façanhas de caça e guerra, com que habitualmente engazopava os tolos. O gordo Horácio, criado de Nunes, negro catita, exímio no violão e no maxixe, circulava entre os parceiros, oferecendo cerveja e conhaque, com infinitas mesuras e rapapés, e segregando de espaço a espaço aos ouvidos de algum freguês: "O senhor tem aí 5$000 que me dê? É para comprar um xale de malhas para... Oh! o senhor sabe, eu sou amado..." — Era de um cinismo portentoso o negro, e tal que ninguém tinha coragem de zangar-se com estas familiaridades intempestivas; todos entravam com o "cobre", e ele chegava, como dizia muito contente e lampeiro, a fazer 50$ e 60$ por dia, só em gorjetas. — Trinta e seis, — cantou o Alberto Nunes, com a sua entoação aflautada e sibilante. — Vinte fichas no esguicho, quarenta; dez, no maior, cem na terceira dúzia; cento e setenta e cinco cartões no pleno! Mãos lentas ou ávidas se estendiam para receber o lucro; os cento e setenta e cinco cartões pertenciam ao Barão de Raymond, que ganhava assim três contos e quinhentos. — Belo jogo! três contos e quinhentos, — murmuravam em roda. O Cavalcanti perdera duzentos mil réis; com o eterno sorriso de ceticismo adorável preparava-se para fazer nova parada. — Jogo! Jogo! — disse o banqueiro. Romaguera apareceu à porta; a primeira pessoa que lhe impressionou a retina foi Vidigal, que continuava a palestrar baixinho com João Silveira; bastou isso para reatear-lhe nas veias o fogo do ciúme, e martelar-lhe o cérebro com os golpes repetidos da desconfiança. Já começava de novo a ver tudo vermelho... Aquela janela que se abrira!... fora por ali de certo que o Vidigal se escapara, descendo ao jardim metendo-se tranquilamente na roleta pela porta dos fundos. Iam-se-lhe os propósitos de calma e prudência... Não! Havia de tentar um esforço! Havia de vencer-se! Que diabo! Não era uma criança... Cercaram-no logo de perguntas e convites amáveis. — Oh! Sr. comendador, por aqui? Não gostou da peça, hein? O nosso joguinho é sempre melhor...

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— O bom filho à casa torna, e eu logo vi que o comendador havia de sentir a nostalgia da roleta... — Sente-se, aqui, Sr. Romaguera; há uma cadeira junto à minha — disse Barão de Raymond, acabando de contar os três contos e quinhentos. — Jogo! Jogo! — repetiu o banqueiro. Todos rodearam a mesa; Raymond pôs trezentos mil réis no 8; Autran acudiu: — Você tem bons palpites, barão; vou arriscar cem "bicos" no 8 com a sua ilustre pessoa. O Dr. Lemos semeava montes de fichas, como era o seu uso, pelas colunas, pela primeira dúzia, pelo branco, e ajuntava cartões no 13, no 21, no 29 — honra e glória — seus algarismos prediletos. Sai daí — gritava ele, a rir-se, para o Dr. Amat, seu amigo velho. — Tu me encabulas positivamente; és o meu azar... E, perto dele, em confidência: — Quem nos encabula a todos é este patife do Romaguera, que hoje está com uma cara feroz; a D. Carmita fez-lhe alguma... Romaguera sacou do bolso notas grandes; contou cinco de cem e colocou-as todas, pausadamente, sobre o 15; Vidigal, que o observava, chegou-se ao pé dele, com o pretexto de jogar no 18: — Com que o nosso comendador também deixou o teatro? Eu não pude suportar aquilo além do 1.° ato, embora seja doido por mágicas... Vai ganhar muito... quinhentos mil réis... esplêndida parada! — Sim... sim... — mastigava o Romaguera, batendo com o pé no chão, sem olhar para o rapaz; as notas tremiam-lhe as mãos, como folhas sopradas a um vento de cólera. Vidigal voltou ao seu lugar, com a fisionomia sardônica de quem soube que queria saber... Cavalcanti, depois de hesitar um momento, deixou cinco cartões de vinte mil réis no 19. E imediatamente, o banqueiro moveu a roda e a bolinha branca começou a girar, aos pulos, de casa em casa.

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— Oito! — proferiu ele, com a sua entoação flauteada e sibilante. E logo: — Trezentos e cinquenta cartões, cento e setenta e cinco cartões, no pleno... Gestos de admiração geral; o Raymond estava de maré; sete contos! E o Fabrício comia três e quinhentos, à sua sombra. Romaguera perdia; pudera! com aquele estupor na sua frente, aquele Vidigal e todos os diabos! Cavalcanti não se incomodava, a sorte havia ainda de vir, ainda que tardasse um pouco. Vidigal jogava por jogar naquela noite; ainda que levasse a breca a maquia toda, que importava? Ele sentia-se feliz. — Jogo! Jogo!

Romaguera separava outros quinhentos mil réis. Raymond voltava ao 8, com duzentos, e Fabrício, por essa vez preferia o 5; João Silveira corria a confiar ao 22 — tinha 22 anos — a soma de quatrocentos mil réis, que lhe pagara um hóspede havia pouco, saldando a sua conta; o Dr. Lemos, fazendo por gracejo uma vaca com o seu velho amigo Amat, empenhava trezentos no 32, cento e cinquenta cada um... A bolinha branca girou, girou, aos pulos. — Cinco! Trezentos e cinquenta cartões no pleno... Eram de Fabrício Autran, que desatava numa gargalhada: — Olá, Barão, meu caro! Parece que a sua fortuna toda vinha de mim! Ora o oito! Eu bem desconfio que o ladrão do oito me atraiçoava! E viva o cinco! Caio nele de novo! — Ande lá, caia, para lhe acontecer o mesmo que a mim... Será bem feito! — retorquia-lhe o Raymond, acariciando com a mão a barba grisalha... A sorte fora adversa ao Romaguera; coisa de assombrar nele, sempre tão feliz! Era o comendador o único, talvez, que não ganhava nessa noite uma única aposta. Levara dez contos na carteira; restavam-lhe dois que ele arriscava de uma vez, em lance supremo; dois contos! Era o máxime que os banqueiros aceitavam; teria setenta, se a bolinha branca acertasse no 15... Ninguém mais tentava o azar; todos os palpites se retraíam, deixando o campo aberto a um só homem; no meio de um silêncio cheio de ansiedades, todos os olhares se imobilizavam na pequena máquina da roleta.

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Fabrício Autran, esse, parecia imóvel. Vidigal, no seu íntimo, fazia votos por que Romaguera ganhasse — com a desdenhosa compaixão de um triunfador pelo seu rival esmagado... Só, no último minuto, o barão de Raymond, impassível, depositava no zero um conto de réis... — Joguito! Joguito! — exclamou o espanhol Querubim, que substituíra o Nunes na manivela. A bolinha girou, mais lenta, mais lenta, até parar. Todos estenderam o pescoço para o banqueiro. E, entre a mudez geral, ouviram: — Zero! Romaguera perdia ainda uma vez; em compensação, Raymond metia na algibeira trinta e cinco contos. A banca, nessa noite, saía lesada. Depois dessa grande cena, terminou o jogo. O silêncio prolongou-se por alguns minutos: a impressão era grande, porque o Raymond fora o primeiro que conseguira, naquele verão, lucro de tal importância. Mas, breve, vieram à baila os sucessos do dia. O expresso chegara atrasado e passageiros vindos do Rio propalavam boatos de sensação. Corria que se havia travado, em Santa Catarina, grande batalha naval entre a esquadra legal (que muitos acreditavam ser um mito) e a do Custódio, e que este saíra ferido em um braço, mas depois de meter a pique três navios do governo. A discussão aquecia aos poucos, os prós e os contras, as versões mais disparatadas referviam... Até que entrou o Alfredo Pereira, que saíra do teatro naquele momento, e ouvira dizer lá que o Custódio tinha morrido... — Qual! Qual! Isso é um exagero! — bradavam quase todos. E o Vidigal acrescentava, sublinhando a frase: — Não acredito; o Custódio não pode morrer... — Como não pode morrer? É tão homem como os outros... É boa! — redarguiu o Fontoura. — Isso sei eu: mas quero dizer; não pode morrer agora, não tem o direito de morrer, porque é necessário à salvação da pátria, não acha, Sr. comendador? Ah! Boca que tal disseste! O Romaguera, para quem aquela noite 'se resumia numa série de desastres, e que só com heróicos esforços conseguira conter-se ali, ergueu-se, a escabujar de raiva: — Pelintra! Velhaco! Miserável...

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E avançava para Vidigal, como um touro bravo. O rapazinho recuou um pouco: pegara numa cadeira. — Infame! Bandido! Pelintra! — rugiu o Romaguera; e uma catadupa de insultos pornográficos jorrou-lhe da língua. — Quê? Quê? Vou lhe mostrar que é tudo isso, besta condecorada! — exclamou o Vidigal, pálido, levantando a cadeira. O Romaguera meteu a mão no colete e arrancou de lá uma faca de ponta. Aí, seguraram-no todos, prevendo as consequências funestas do seu gênio violentíssimo. E Fabrício Autran atirou-lhe a face em ar de desprezo estas palavras: — O senhor é um covarde, pois tem coragem de puxar faca para uma criança! É um covarde, digo-lho eu! Era quase meia-noite. Os hóspedes voltavam do espetáculo e, atraídos pelo barulho, vinham ver de que se tratava. Caras curiosas se aglomeravam à entrada da sala. Romaguera, entre furioso e envergonhado, deixara-se levar pelos amigos, e saía pela porta dos fundos... AMORES O dia seguinte foi de um constrangimento geral. O escândalo da véspera repercutira de quarto em quarto. E não havia quem se iludisse sobre o que significava aquele conflito. Aos ouvidos da própria Marquesa do Tijuco chegara o eco dos boatos. De manhã, quando o Dr. Silveira Jacques lhe disse que era preciso atribuir aquele desagradável incidente a uma discussão política, a velha senhora disse, com um desprezo soberano, encolhendo os ombros: A notícia aqui registrada era mero boato. — Sim, é possível que o senhor tenha razão, atribuindo tudo à política... Porque de fato, só agora, com esta república, é que se vêem estas coisas... No tempo do Império, nunca uma senhora de qualidade se viu reduzida à contingência dolorosa de ombrear com mulheres desclassificadas, num hotel! Silveira Jacques, atônito, protestava:

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— Mas, minha senhora... Mas, minha senhora... A Marquesa do Tijuco, muito digna, já lhe dera as costas... E antes de sair, disse-lhe ainda, por cima dos ombros: — Olha, eu sinto apenas que essa mulher me tenha iludido a ponto de eu lhe mostrar meu coração... Vidigal, ao sair do quarto, em caminho da casa de banhos, com a saboneteira à mão e a toalha ao braço, encontrara no Parque o Fabrício Autran, em conversa com o Barão de Raymond. Ambos esperavam também a sua vez, em chinelos, o paletó fechado até ao pescoço — perto da porta do banheiro, por detrás da qual se ouvira, de espaço e espaço, o barulho claro da água do chuveiro, batendo no chão, em jorros fortes. Vidigal percebeu logo o assunto da conversa,que os trazia tão interessados assim, num cochicho animado, olhos acesos, lábios abertos num sorriso equívoco. Mas disfarçou e aproximou-se: — Oh! bem-vindo seja! — exclamou Fabrício. — Bem-vindo, realmente, meu caro Autran, porque chego a tempo de lhe agradecer o caloroso auxílio que me prestou ontem, defendendo-me da sanha daquele faquista! Ontem, não o vi mais. Queria abraçá-lo: é tão raro encontrar um amigo, em ocasiões como aquela! — Mas, efetivamente, o Romaguera tem sangue azedo — interrompeu o Raymond. Nunca o supus capaz de exaltar-se até àquele ponto... Usar faca, e sacá-la!... Apre! — Que quer, Barão? A política faz isso... Já não é a primeira vez que me vejo em talas, unicamente por ter a coragem de dizer em voz alta o que penso. E eu não sou político! Que não faço profissão disto! — Vamos lá, maganão! vamos lá! — disse Fabrício Autran, com malícia, batendo familiarmente no ombro do rapaz. — Não foi só a política que o pôs em perigo de estar a esta hora vendo a vida pelo avesso!... E chocalhou gostosamente uma risada, a que o Barão fez eco. — Não foi só a política? Mas que foi mais, então? — perguntou Vidigal, que se fizera pálido. — Mas que outro motivo pôde obrigar aquele urso, a quem nunca fiz mal a...

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Então, com um ar protetor, o Barão pôs ambas as mãos sobre as espáduas dele, e falou-lhe claramente, devagar, ritmando as palavras: — Ora, meu amigo... Já não há por aí uma só pessoa que não saiba tudo! É tão natural! O Romaguera, sobre ser velho, é efetivamente um urso. Por que diabo havia a rapariga de preferi-lo ao senhor? Urso por urso e velho por velho, tem ela o marido. Mas o Romaguera não se consola. Aquele bruto pensa que amor é como política, coisa que se pode levar à força, aos socos, aos pontapés, aos urros. Daí o seu despeito e o conflito de ontem... E diga-me, felizardo! que tal?... Não core! Que diabo! A vida numa cidade destas seria um suplício se não tivesse estas coisas adoráveis, estas adoráveis aventuras!... Diga! Que tal, hein? E curvara-se para o rapaz, libidinosamente. E, com a animação em que estava, descerrava-se-lhe a camisa de meia, transbordando os tufos do cabelo grisalho do peito, duro e basto como o pêlo de um capro. — Olhe! — continuava o Barão — tudo é permitido na vida, menos uma coisa: fazer-se de José do Egito! Isso é que é horrível! Eu, de uma vez, já caí nesta asneira. Tinha trinta anos e era muito mais idiota do que sou hoje. A mulher era terrível: chamava-me, seduzia-me, tentava-me... Mas eu era amigo do marido e... Sabe o que aconteceu? Ela, despeitada, disse ao marido que eu tentara seduzi-la, e tive de ficar mal com ele e mal com ela... Ouça cá o que eu lhe digo: nunca deixe ficar uma das abas da sua sobrecasaca nas mãos da mulher de Putifar! Depois, o senhor está no seu tempo! Quando chegar à minha idade, convencer-se-á de que o amor não adianta coisa alguma, e que o dinheiro é que é tudo... Mas, por ora, vá amando, maganão! vá amando... Ao lado, Autran, com os olhos babados de luxúria, aprovava, batendo com a cabeça, olhando Vidigal de esguelha... Vidigal fez um esforço, agitou-se: — Mas, palavra de honra, que os não compreendo! Isto é... sei a quem se referem... mas não vejo em que se fundam para atribuir o conflito a ciúmes daquele bruto... Eu, por mim, juro-lhes que... Autran interveio: — Homem, deixe-se disso... o senhor esteve ontem no quarto dela... já todos sabem! Vidigal quis indignar-se. Mas o seu gesto enérgico de indignação e de protesto ficou apenas esboçado. A vaidade dominou o sentimento de cavalheirismo, E foi com uni sorriso frouxo, condescendente, que ele continuou a teimar que

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não! Que não! Que a coisa era inocente! Que não podia ainda ter chegado a consequências tão sérias... Nesse momento, abria-se a porta do banheiro. E apareceu Lotulli, a dançarina, em peignoir branco, com uma toalha às costas, e a cabeleira negra desatada, bastíssima, úmida. Vidigal aproveitou o ensejo para interromper a palestra. E pediu: — Tenham paciência, sim? Deixem-me ir primeiro. Demorar-me-ei dois minutos apenas. Sou obrigado a fazer duas visitas antes do almoço... O Barão e Autran acederam logo: — Não temos pressa! Não temos pressa! E quando a porta da sala de banhos se fechou sobre o Vidigal, Fábricio disse a Raymond, com malícia: — Agora, atire-se, Barão, atire-se! Bem vê que o caminho está desbravado. Ao almoço o constrangimento continuou. Todos os olhares se voltavam para a mesa que D. Carmita costumava ocupar. Vazia, essa pequena mesa atraía as atenções com mais insistência do que quando animada pela buliçosa mocidade e iluminada pela beleza da moça. Sobre o prato, o guardanapo, artisticamente arranjado em forma de pássaro — uma gentileza do João Silveira, gerente que, além de amar todos os jogos, amava também todas as mulheres. A cadeira voltada, com o encosto sobre a borda da mesa, indicava que o lugar estava tomado. Mas D. Carmita não aparecia. Só um outro lugar competia com esse na atração exercida sobre os olhares de todos os hóspedes — o lugar habitual do Romaguera. Mas este estava ocupado. Romaguera comia, calmo na aparência, sem dar mostra de se preocupar com o escândalo da véspera. Logo de manhã, o apoplético namorado pensara com desgosto no triste papel que fizera nesta quase tragédia. Mas, ao sair do quarto, tranquilizara-se logo, sabendo que o Dr. Silveira Jacques não se incomodara muito com o caso, declarando que a sala da roleta não era verdadeiramente uma dependência do hotel, porque os banqueiros chamavam a si toda a responsabilidade do que por lá se passasse — de modo que, a bem dizer, o conflito da véspera não se dera no Sanatorium. Convencido de que nenhum perigo corria por esse lado, Romaguera passara a encarar o acontecido com fleuma. Com todos os diabos! Ao menos, o pelintra ficara sabendo com quem se metia! e, agora, devorando o bife, regozijava-se... Mas já se ia servir o chá, quando D. Carmita apareceu à porta da sala. Vinha encantadora de graça, de frescura, de simplicidade. Sobre a saia azul escura e

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curta, apertava-lhe a cintura uma larga correia grená, sustida por um fivelão de prata-velha, sem ornatos. E a camiseta ampla que lhe vestia o tronco, folgada, de musselina branca, à marinheira, dava-lhe à toilette uma aparência sedutora de despreocupação e negligência. À mão, trazia um livro, brochado, capa amarela. Na sala, houve um silêncio súbito. Ela, porém, tinha na face a frescura que dá à pele uma noite farta e calmamente dormida. Cumprimentou em torno, com uma afetuosa inclinação de cabeça, e sentou-se. Começou logo a folhear o livro, distraidamente; e, debaixo da mesa, os seus dois pés pequeninos apareciam, admiravelmente bem feitos, calçados de couro amarelo, deixando ver dois belos começos de perna gorda, apertados em meias de seda preta... Foi principalmente Romaguera quem viu essa minúcia. Os seus olhos cúpidos tinham adquirido o hábito de saborear assim, de longe, ao almoço e ao jantar, o belo espetáculo desses começos de perna que o estonteavam. E bufou longamente, já outra vez fora de si, já de novo inflamado de amor e ciúme, engolindo de um só trago os ovos quentes que o criado lhe trouxera. Limpou os beiços e bufou segunda vez. — Que cinismo! — monologava ele. — Esta indiferença mostra uma longa prática no adultério, no crime, uma perversão de alma, que espanta! E olhou em torno. Risinhos abafados corriam. Romaguera compreendeu imediatamente que o seu nome era repetido baixinho, de mesa em mesa, com comentários acres. O seu primeiro ímpeto foi de atirar com a mesa, copos, talheres, garrafas, tudo, ao meio da sala, e de promover ali, um novo conflito... Mas dominou-se. E, como a sua mesa ficava a dois passos da da empresária Ifigênia, pensou de si para si que seria de bom gosto e prova de indiferença conversar publicamente, em voz alta, com as atrizes. Oh! Era apenas para monstrar a D. Carmita que pouco lhe se dava que ela tivesse dormido com um homem! Ficaria sabendo que não faltavam mulheres para um homem como ele! — Aproveitou um momento em que a Leviccolo o olhava com insistência, para lhe dizer de modo que todos o ouvissem: — Parabéns! — esteve encantadora ontem! Ela mirou-o longamente, com um olhar em que fulgurava uma ironia cruel: — Acha? Romaguera insistiu, imbecilmente:

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— Nunca a vi tão trêfega, tão deliciosamente espirituosa, tão à vontade, tão encarnada no seu papel! E ela, sempre maliciosa com um ligeiro sotaque italiano na voz: — Bravo! — o comendador acordou galanteador hoje!... — Não é difícil ser galanteador com certas pessoas. A sala toda ouvia, interessada. A Marquesa do Tijuco, franzida a cara, torcido o sobrecenho, tinha um ar duro e enojado que dizia claramente: shockin! e a Leviccolo, agarrando pelos cabelos a bela ocasião que se lhe apresentava de mostrar a sua petulância de menino malcriado, começou a torturar o comendador. — Cuidei que não tivesse ido ao teatro. Disseram-me que passara a noite jogando, e que fora infeliz... Quanto perdeu, comendador? — Oh! — já nem me lembro! coisa à toa... — disse o Romaguera, enfatuado e com um olhar de grande senhor... — Pouca coisa! Pouca coisa... E a atriz sorrindo: — Não faz mal. A fortuna reserva-lhe compensações... Há o ditado: infeliz no jogo, feliz no amor. Essa alusão direta à sua paixão ridícula feriu o Romaguera como uma punhalada. E mais curioso ficou, quando tendo verificado que todos os hóspedes sorriam, olhou para D. Carmita. D. Carmita, de costas para ele, ria escandalosamente, sempre com os olhos pregados ao seu livro. Acharia graça no que lia, ou acompanharia a conversa? O certo é que Romaguera lhe via o dorso sacudido pelo riso... Quase estourou. E, sem responder à alusão, atrapalhado, quis salvar-se insistindo no galanteio. E tornou à atriz: — Mas é o que lhe digo. Esteve encantadora. Nunca me diverti tanto! A Marquesa já se havia levantado. Atravessava agora a sala, digna, ereta, arrastando pelo chão, como um manto negro a sua bela capa de seda cor de cinza. O ódio e o desprezo que havia na sua fisionomia e toda a gravidade soberana do seu impassível e majestoso andar eram um como protesto vivo contra aquela pouca-vergonha... Atrás, com um passinho trêmulo, seguia o Marquês, que naturalmente nada ouvira, absorto talvez numa reza: e, andando, a sua sobrecasaca de merinó preto se balouçava e, ao seu punho, o eterno boné de seda preta girava. Também outras pessoas se levantavam. A própria D.

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Ifigênia da Costa, que fazia o possível para passar por senhora comedida, erguia-se já, puxando a Leviccolo pela manga da basquine. Mas a Leviccolo, imperturbável, disse, dobrando o seu guardanapo, antes de se levantar: — Divertiu-se muito, comendador? Pois olhe: ninguém o diria! O comendador, quando se diverte, fica com um humor sanguinário... Acabar de se divertir e vir logo depois... Enfim, até logo, comendador! E saiu, com uma mesura rápida. Romaguera também não se demorou. Foi para o quarto esbravejar à vontade. Pouco a pouco, todos se afastaram. D. Carmita, vendo-se só, fechou o livro, riu à larga, e ergueu-se. Mas, logo à entrada do corredor, encontrou o Barão de Raymond, que evidentemente a esperava. E, com um risinho amável, Raymond curvou-se todo, insinuante, disposto a seguir o conselho de Fabrício Autran e a trilhar com segurança o caminho já desbravado: — Que poder o da beleza, hein? Está a senhora fazendo andar à roda todas as cabeças... E babava-se todo. D. Carmita olhou-o longamente, quase a indignar-se. Mas, em vez de atirar o seu livro brochado, capa amarela, à barba grisalha do Barão, casquinou uma risada escarninha, vibrante como uma vergastada: — Também o senhor? ah! ah! ah! decididamente este Sanatorium rejusvenesce todos os velhos!... E seguia a correr; pelo corredor imenso, a correr e a rir, como uma criança. E os seus passinhos precipitados e o chocalhar do seu riso soavam estranhamente na muda imensidade daquele corredor escuro, largo, ressoante, de claustro — enquanto o Barão, despeitado, com um arrepio de cólera nos pêlos da barba cor de cinza, ficava trêmulo, parado, com as mãos agitadas febrilmente remexendo nas algibeiras as suas perpétuas moedas — as suas moedas desta vez impotentes e nulas, diante do desprezo e do escárnio daquela mocidade que ria e fugia. NA COPA

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No relógio grande da sala de jantar, são duas horas justas dois tinidos claros e rápidos, que vibram no silêncio da casa toda. Lá fora, o sol arde no céu azul, sem uma nuvem, arde no ar inflamado, arde nas calçadas de granito e pedra plástica, e nas pétalas de rosas que murcham, e nas folhas das malvas e das begônias que se inclinam para o chão ressequidas, crestadas. O dia é de calor excepcional, calor que convida a dormir dentro de uma rede de fino linho, ou a ler um livro fácil, ligeiro, de pura fantasia, na penumbra das persianas cerradas. Imensa modorra pesa sobre o Sanatorium. No vestíbulo, pelos corredores, ninguém; todos se recolheram aos seus aposentos, para estar mais à fresca; e na própria roleta, o jogo definha, só dois ou três parceiros, entre cochilos de tédio e languidez, pensam em armar uma mesa suplementar de baccarat ou manilha. Entretanto, na copa os criados, findo o primeiro serviço, dão à língua, falam sem rebuços e riem alto, às gargalhadas. Como sempre, o grande Horácio, superior a todos os seus pares pela inteligência e pelo cinismo, preside ao conciliábulo; muito negro, mais negro ainda pelo contraste da pele luzidia com o terno de brim branco que veste — com olhinhos pequeninos, vivíssimos, de mico, a reluzir travessamente, em piscadelas expressivas, no rosto bochechudo — aberto na lapela do jaleco um enorme cravo vermelho, meio desfolhado, "a última moda parisiense" como indicava O País no conselho diário da véspera — na mão, ornada de anéis grossos de plaquet, uma garrafa de cerveja Franziskanner, filada ao jovem Castanheira, está o verdadeiro tipo do capadócio pernóstico e desabusado, deslumbrando os circunstantes com os rasgos do seu espírito e a maledicência pitoresca da sua língua. Ao lado dele, contudo, não faz má figura o lisboeta Daniel, exemplar de saloio sonso, viciado pela vida das cidades, muito inocentinho na aparência, mas sagaz como diabo, e malicioso!... Este não tem, como o Horácio, a imaginosa retórica dos tribunos populares; fala pouco e raro, mas, quando fala, é para deixar cair dentre os bigodes ruivos um desses remoques, que comem a pele do próximo. Sentado a um canto, meio adormecido, com o cigarro apagado entre os dentes, e um violão abandonado sobre os joelhos, o antigo imperial marinheiro, hoje cocheiro do hotel, o mulato José do Carmo, que servia sob as ordens do Custódio de Mello no Almirante Barroso, finge não prestar atenção à conversa, mas não perde uma vírgula. Todos lhe querem bem, na copa e na cozinha, no lavadouro e na estrebaria, pelo seu gênio franco e jovial, e, sobretudo pelas modinhas que canta como ninguém, ao luar, em serenatas pelo morro do Bonfim ou pelos caminhos pedregosos das Gameleiras.. .

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— "Vamos ao Pescador da barca Bela, Zé do Carmo" — pedem-lhe; e ele acede gentilmente. E depois vem Esta noite à meia-noite... E o Negro véio também pode... e o Dizem que o cigarro tira... e outras tantas, tantas outras, porque o seu repertório é inesgotável. O jardineiro-chefe, que também compareceu à reunião, é como um Vasco da Gama em edição barata; as barbas grisalhas e incultas lhe descem em rolos sobre o peito, donde, em vez da cruz de Cristo, pende um amuleto grosseiro — com orações e esconjuros infalíveis, assegura o pobre Antônio, contra qualquer sorte de praga. Não menor senhor é o pardo Marcelino, criado de S. Exa. o Sr. Marquês do Tijuco, e todo penetrado da alta importância e consideração do seu ilustre amo; grave e teso, olhando para os companheiros com ar de proteção quase desdenhosa, dá às frases, às poucas palavras que profere, um tom de oráculos preciosos, e formaliza-se altivamente se alguém se atreve a pôr em dúvida o que ele conta, ou a tocar sem muito respeitinho no nome do Sr. Marquês... As vistas de todos esses garbosos escudeiros convergem para a espanholita Mercedes, clara, de olhos e cabelos negros, e uma pele "cor de leite, cor de jasmim, cor de manjar branco", segundo exclamava Fabrício Autran, no auge do entusiasmo; ela, porém, cônscia do que vale e pode, pouco disposta se mostra a galanteios de cocheira e copa, guardando-se naturalmente para quem a saiba apreciar melhor, e taça ao mesmo tempo alguma coisa a bem da sua fortuna. Corre que não é insensível aos atrativos do Vidigal, nem aos do Romaguera, nem aos do Raymond, nem aos do Autran, nem aos dos quatro estudantes, que alegram a gente com a sua verve deliciosa... Enfim, são boatos que circulam entre a criadagem sempre ferina e temerária. Mas as portuguesitas Teodolinda e Mariana, irmãs de mestre Daniel, deixem lá, que não são para desprezar. "Que belos pedaços de mulher!" — assegura o Raymond, muito convencido, e quem sabe lá as razões que ele tinha para assegurá-lo? Quanto à obesa Camila, criada de D. Carmita, e por muitos chamada Gorila, vista a sua extraordinária semelhança com esse animal, e à escanifrada Ritinha, fâmula austera da austeríssima Sra. Marquesa, atingiram ambas a idade "quieta e duvidosa", em que o dizer tem senso: setenta anos passados. Cada uma delas revela nos ditos e gestos as tendências da sua respectiva patroa; Camila, habituada à convivência risonha e um pouco leviana da D. Carmita, encara as coisas pelo lado melhor, mais faceto, é de uma indulgência absoluta para pecadilhos amorosos e ri-se a valer de todo o coração, quando lhe narravam espisodiozitos de alcova; é, por isso, uma excelente e habilíssima alcoveira...

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A magra Ritinha, feia como o demônio, das tais que "não têm mérito em ser virtuosa", qual a sua ama, professa opiniões severas, puritanismo incorruptível a respeito de aventuras equívocas; e indigna-se, e morde, e toda ela verte fel e peçonha contra os que, dado às fraquezas da carne, não se importam de perder sua boa reputação...

Que se discutia entre eles, por essas duas horas calmosas e sonolentas? Outro assunto não podia ser, senão o magno sucesso da semana: a briga do Romaguera com o Vidigal, na noite do Frei Diabo. — Vocês pensam que aquilo foi por causa do seu Custódio e seu Floriano? Qual o quê! — dizia o Horácio, piscando os olhinhos de mico, depois de beber um gole de Franziskanner, pelo gargalo da garrafa. — Ali, anda rabo de saia... — Isso sei eu... estou farto de saber... — afirma o pardo Marcelino, dogmaticamente. — Sabe o quê? Sabe o quê? — Ora, seu Horácio! eu quando digo que sei... é porque sei... Não me desmoralize... Então, todo o hotel não anda cheio disto? Todo o mundo não sabe das histórias de D. Carmita com o Sr. Dr. Vidigal? Adeus! O comendador quer também ser da súcia, e a Sinhazinha não deixa. Hein, sá Camila, não é exato? — Homens! Vancês têm lembrança... cada uma! Eu não sei di nada — é boa! responde a Camila, numa risada gostosa. — A Mercedes que diga. Hein, Mercedes... — ajunta o Horácio, lisonjeado por invocar o testemunho da Dulcinéia. — Você não me disse que viu seu dotô Vidigal pular a janela? — Es verdad, si, es verdad... Fué en la misma noche, que se han atracado los dós en la roleta... — confirma a linda Mercedes na sua algaravia luso-castelhana. E olha de soslaio para o Horácio, a bambolear os quadris. — Sim, acrescenta o Daniel, como quem nada sabe — e é berdade também que bosmecê, no dia seguinte, pola minhan, disse o diabo ao rapaz, só de ciumadas. Ande lá! Que eu bem na entendo! — Quê? Quê? Que rapaz? Por que miente usted com tanta desvergonha... — Ora, que rapaz! E esta! Que crônicos!...

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— Corja de safados! Num hotel de famílias! Que gente sem brio! — comenta a Ritinha destilando nas palavras o seu veneno de víbora. — Que crônicos! — repete o Daniel, e ainda uma vez: — Que crônicos!... — Quando eu contei o caso à D. Carmita, ela achou muita graça! uma graça! Riu que foi um gosto!... E queria que eu dissesse tudo, tim-tim-por-tim-tim... E ria e tornava a rir, como uma menina de dez anos... Depois, passei pelo quarto do seu comendador: o homem tava furioso: tossia como um danado! Arre, que pigarro levado da breca! Pobre dos vizinhos, que com certeza não pôde dormi toda a noite com tanto barulho que fazia a garganta do véio... — E ele também anda atrás de você, ó Mercedes! Bamos lá... não negues. Diz que até outro dia te mostrou uma notinha de cinquenta mil réis, nova em folha... — Conta o Vasco da Gama com o seu duro sotaque de ilhéu. — Mentiras! mentiras; y nada más. Que yo ando agora a recibir propuestas de todos los hombres, quê! — Ó Mercedes, ó rica Mercedes! Que tu fazes todas as cabeças andarem à roda, e estes crônicos são capazes por ti de fazerem o diabo... — Ai! A Mercedes é bonita como uma camélia, mas tão cruel para a gente! — suspira o Zé do Carmo, no tom lírico de quem geme umas trovas ao violão. — Bom: se ustedes no me dejan, yo me voy, no quiero aturar desaforos, ai! — Minha senhora... — diz solenemente o Horácio, tirando o gorro de brim branco, e metendo o polegar da mão direita na cava do colete, com tão cômica entonação e ademanes tão faceiros, que a própria espanhola desatou numa gargalhada. — Minha senhora, desculpe-me V. Exa. se... mas não foi minha intenção ofender os seus... como se diz? É uma palavra muito chique... os seus... ah! os seus melindres. E logo, mudando de tom e gesto, deu-lhe na face uma palmadinha: — Eh! lá! — como faz o Machado no teatro na Mimi Bilontra. — Es chiquita, olé! — Mas este hotel, rapazes, tirante algumas pessoas muito de bem, algumas famílias bem inducadas, é mesmo um jardim zoológico — afirmou o Daniel sentenciosamente. — Jardim o quê? — pergunta a Camila.

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— Zoológico... — E que é isso? — Um jardim onde se põe os bichos em gaiolas pra gente os ber... Há um muito grande lá na Corte. Estibe lá, logo que bim de Lisboa. E há bichos de toda a casta, um rór deles! Girafa, inlefante, onças, leões, camelos, o diabo! Aqui no Sanatorium sempre biem dão com cada animal! — Oh! por exemplo, aquele Fontoura, que chamavam de burro, e é burro mais que os que puxam carroças. — Sim, senhor, e é malcriado, o gajo! Não sabe pedir um copo ou um ovo quente sem dizer um par de insolências! Um par de cascudos merecia ele, naquela testa dura como casco de cavalo! — Isso! isso! Qualquer dia, perco a paciência, e parto-lhe a cara a sopapos... — E a mulher, a D. Eufrásia, biram tipona mais emproada? Amodos que traz o rei na barriga... E com aquela cáfila de filhas à roda, feias como lesmas, Deus me perdoe! — E o tal Barão de Raymond, a olhar pr'o povo assim do alto, por cima dos ombros... Ele pensa que é mais que os outros, porque tem mais patacos? crônico!... — Quem eu acho mais pandego é o Marquês, o velhote... — aventura o Horácio em voz baixa.

— Alto lá, senhores! Em meu amo, ninguém toca, não consinto! — Ah! Eu bem sei que é um fidalgo, um sujeito fino... mas, quero dizer... aquela careca, aquele corpinho muito encolhido, sempre a tremer, quando anda e quando fala... É impagável... — Ó Mercedes, você não vai hoje de noite ao baile da rua das forras? — Que? Que es eso? — Um bailarico — explica o Daniel — cá p'ra rapaziada baixa. Entra-se com cinco mil réis por pessoa: eu pago-te a parte, ó Mercedes!

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— Não, Sr. quem paga sou eu acode o Horácio — e não admito competências... não admito... — Sou eu quem hei de pagar — intima o pardo Marcelino, com sobranceira quase régia. É o meu direito, como agregado da casa do Sr. Marquês de Alpurús, meu amo. E tenho dito. — Pois hei de ser eu, como mais velho e chefe dos jardineiros. Ouçam bem: chefe dos jardineiros... — E, tal dizendo, o Vasco da Gama, um tanto bêbado, bate com os dois punhos no peito cabeludo e hirsuto, fazendo saltar, em vez da cruz de Cristo, o seu amuleto — com orações e esconjuros infalíveis contra qualquer sorte de praga. O Zé do Carmo, que parecia prostrado em volutuosa madorna, com a boca semi-aberta e os olhos semicerrados, do canto em que estava deu um salto de felina agilidade para o meio da copa, e interveio na altercação: — Pr'a tirá dúvidas, quem paga sou eu! E se alguém se pusé com teima olha... Pôs o violão sobre o lavadouro de pratos, e armou um bote de capoeira. — Sou eu! — Sou eu! — Sou eu! — Besta! — Repita, cachorro! — Eh! baiano idiota! — Eh! galego pulha! — Fechou-se o tempo! é hora! — Entra, compadre! Daí para os murros e as rasteiras pouco faltava: a briga estava pronta, iminente, e podia acabar mal. Tudo por causa da Mercedes, que de mãos na cintura, olhava para aquilo, espantada: finalmente resolveu deitar água na fervura:

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— Muchachos! Se queden por amor de Dios! Ustedes me gustan todos que... Si quieren todos pagarme la entrada, nada mais fácil: tiren la suerte... — É verdade, aí está — concordou o Horácio. — Como esta madame é inteligente; tiramos a sorte, a saber quem cai com os cobres. E assim não há motivos de queixa... O Daniel, que, ao ver feia a briga, tratara de pôr-se ao largo, ria baixinho, mastigando o costumado dito: — Que crônicos! Que crônicos! Os dois cozinheiros chins, que eram a curiosidade do Sanatorium havia três dias, ouvindo o alarido, tinham chegado à porta da cozinha, e espiavam; nas suas carantonhas exóticas, ossudas, repuxadas, hécticas, uma palidez de covardia desmaiava o amarelo natural da pele. Certo que, à menor ameaça de perigo, largariam ali frigideiras, marmitas e frangos depenados, fugindo pelo parque afora, num terror de crianças alucinadas. De repente, tiniu com força a campainha elétrica; Mercedes saiu da copa a correr e foi ver no quadro que a chamava. — Es la señorita D. Blanca. Que habrá ella? Yo me voy a correr. Daí a pouco, apareceu à porta da sala de jantar, o maître-d'hôtel, empertigado e correto no seu smoking, na sua gravata branca admiravelmente traçada. Era um rapaz de bela estampa, alto e teso, cabelos e bigodes louros, cujo zelo inteligente reformara em poucos dias o serviço de mesa no Sanatorium. A criadagem não gostava dele, pela severidade com que mandava na obrigação de cada um, e pelo orgulho natural que o mantinha arredado dessa roda de mulatas e galegos. Manhães de Azevedo havia lhe posto a alcunha de Cosmópolis, não só por ignorar-se-lhe o nome e ser necessário um apelido, mas porque ele sabia falar com desembaraço, senão com elegância, meia dúzia de línguas. Cosmópolis entrou na copa, e tangeu duas vezes a sineta de prata que levava. É hora de pôr as mesas. Vamos. Imediatamente, cessou toda a algazarra. O cocheiro Zé do Carmo e o Vasco da Gama, que nada tinham a fazer ali, retiraram-se para o jardim; Camila e Ritinha foram para junto de suas amas. E, entre copeiros começou o trabalho silencioso e regular.

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Em menos de um quarto de hora, a sala de jantar apresentava um aspecto festivo; a brancura das toalhas e dos guardanapos artisticamente dispostos realçava os matizes das flores variegadas, que desabrochavam de esguios vasos azuis e vermelhos. Como passasse pela sala o Alfredo Pereira, com a capa felpuda no braço, para o banho, Horácio chegou-se a ele, e em segredo: — O doutor não terá por acaso uma notinha de dois mil réis? Somos republicanos, ah! somos republicanos... Dois mil réis... D. CARMITA De fato, como dissera, D. Carmita rira à farta ao saber da altercação havida na sala de jogo. Nessa escandalosa cena que podia ter acabado em sangue, nessa fúria com que dois homens se odiavam, por sua causa, a leviana moça vira apenas um pretexto para rir, um episódio alegre intercalado providencialmente na vida monótona do hotel. Não que fosse devassa e má; mas leviana, corrompida pelo luxo, atirando o nome aos motejos e à maledicência de toda uma cidade, com a mesma indiferença com que atirava às criadas vestidos quase novos, roupa branca duas vezes apenas usada, jóias, dissipadamente, como quem nada sabe do valor do dinheiro nem da própria reputação. Carmita nascera no Rio, nas Laranjeiras. Filha de uma lavadeira, criara-se descalça, no pátio de um cortiço, entre palavrões e rixas, patinhando na água espumosa das barrelas, com o espetáculo da devassidão materna diante dos olhos de criança. A mãe, Genoveva, era uma alentada e vermelha portuguesa, cujos cabelos começavam apenas a embranquecer, quando Carmita completou 12 anos de idade. Era uma moura para o trabalho. Às 5 da manhã, já andava ela pelo lavadouro, sem meias, em socos de pau, os braços grossos e rubros cobertos sempre de uma espumarada de sabão ordinário, grossas arrécadas de ouro nas orelhas enormes, e um vocabulário áspero e teso de regateira espocando perpetuamente da grande boca sensual. Morrera-lhe o Manuel, o marido, logo depois do nascimento de Carmita. E esta, metida, desde pequena, no cortiço das Laranjeiras, tinha crescido em graça e, vivacidade flor de pântano, mal sabendo ler e escrever aos 12 anos. A Genoveva, acabado o serviço, à noite, metia-se na Balinha de sua casa pobre — uma sala de paredes caiadas, cobertas de santos e santas em litografia tosca

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e molduras douradas — bebericando aguardente de súcia com portugueses de mãos estragadas, cheias de calos, pelo trabalho das pedreiras e das carroças, e mulatos acapangados, de unhas longas, peritas no manejo do violão, chapéus de palha petulantemente equilibrados no alto da gaforinha, ponta de cigarro atrás da orelha. Ainda agora mesmo, quando, de olhos fechados, D. Carmita se perdia numa das suas habituais meditações preguiçosas — revia a sua infância toda passada nesse meio. O cortiço ficava ao fim da rua das Laranjeiras, entre casas pobres. Daí para cima era o Cosme Velho, formosa rua que num declive suave subia para o Corcovado, ladeada de chalés, de casas de campo, que apareciam entre tufos de verdura, ao fundo de jardins elegantes, de cujos relvados, cheios de crótons rarose roseiras de preço, subiam gloriosamente palmeiras de caule esbelto casuarinas majestosas de ramaria brandamente agitada ao vento da serra. Depois, pleno mato — o caminho da montanha serpeando por entre maciços de uma vegetação exuberante e esplêndida. Carmita, por vezes, via-se pequenina, vestido de chita, pés nus, em companhia de meninos e meninas de sua idade, vagabundando à toa em correrias que só acabavam à noite, quando, voltando à casa, era recebida com quatro puxões de orelha e uma saraivada de palavras duras. E, com os olhos cheios de lágrimas, e as orelhas doídas, deitava-se no quarto escuro, e soluçava, e soluçava, até que o sono lhe pesava sobre as pálpebras: e dormia, embalada pelos violões que, na saleta, se desfaziam em cantatas lânguidas, e pelas risadas fortes da Genoveva, que a aguardente tornava palradora e alegre... Como dessa menina, desenvolvida em pleno vício e em pleno desmazelo, saíra esta elegante moça, que tantas cabeças fazia andar à roda, sem rival no modo de vestir, sem competidora na arte difícil do flerte do namoro, única na graça incomparável de dizer coisas fúteis, obrigando homens graves a ficar noites inteiras a ouvi-las? O ano de 1885 abriu para a vida da filha da lavadeira Genoveva uma nova era. Genoveva inquietou-se, vendo que a menina se fazia mulher, dentro do cortiço, entre aqueles homens, de apetites terríveis; passou um mês banzando no caso, sem lhe achar solução aceitável. Mas o acaso a favoreceu. Entre as suas freguesas, havia uma gorda senhora argentina, D. Jovita da Costa, que morava ali mesmo perto, num belo palacete do Cosme Velho. Era casada. O marido, brasileiro dos seus quarenta e poucos anos, trouxera-a havia pouco de Buenos Aires. Era um homem robusto, barba negra, face dura e enérgica,

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empreendedor, de uma atividade sem par, apto como poucos para a caçada ao ouro. Nascido no Brasil, fora mocinho ainda, para o Rio da Prata, filho de uma boa família, destinado pelo pai à carreira diplomática. Mas abandonara logo essa atividade que se não compadecia muito com os seus largos e atrevidos projetos de ambição desmedida. E atirara-se à especulação de toda a sorte. Insinuante e esperto, captara a confiança de muita gente importante, chefes da Bolsa, diretores de companhias, generais de coteries políticas. E naquele país, Leopoldo da Costa fizera da advocacia administrativa o primeiro degrau para a sua riqueza. O seu casamento com D. Jovita, filha de um rico estancieiro e chefe político da província de Santa Fé, foi o segundo degrau. Nesse casamento, entrou tudo, menos o amor. D. Jovita era um temperamento absolutamente passivo, incapaz de ação. Já antes de casar, muito gorda, muito branca, muito mole, passava semanas inteiras sem sair do quarto, lendo romances franceses e versos espanhóis. Não andava, arrastava-se. Mesmo os enredos dos romances de amor que lia, entusiasmavam-lhe e sacudiam-lhe apenas o espírito, deixando-lhe a carne adormecida. E, apesar de muito romântica, se algum dia o próprio Romeu em carne e osso lhe aparecesse, oferecendo-lhe a ocasião de entrar em uma verdadeira e ultralírica peripécia de romance — D. Jovita seria incapaz de lhe atirar da janela do quarto a clássica escada de seda, não por virtude, não por honestidade, mas por preguiça. Para Leopoldo da Costa, o partido era magnífico. O estancieiro era riquíssimo. Os seus amigos políticos indicavam-no para candidato à Presidência da República. Ser genro de um chefe supremo! — e Leopoldo que tinha um jeitinho especial para Wilson!... D. Jovita aceitou a corte de Leopoldo, sorrindo. Sorrindo deu-lhe "sim" ao pedido. Fez-se o casamento. Sim. Sorrindo, deixou que lhe vestissem o vestido de noiva. Sorrindo, foi à igreja. Sorrindo, à noite, entregou-se passiva e frouxa com um abandono absoluto de toda a sua carne flácida. E, sorrindo, no dia seguinte, recomeçou a sua vida de cochilos e de leituras, de devaneios e de preguiça. Em 1884, D. Jovita estava espantosamente gorda. O marido trouxe-lhe ao Rio de Janeiro, onde o chamavam os interesses de uma empresa, que organizara no Prata para introdução de imigrantes na América do Sul. Foram morar no Cosme Velho. A gorda senhora só se levantava da chaise-longue para a cama e da cama para a chaise-longue, onde, durante o dia recebia mestres que lhe vinham dar lições de francês e português — coisas que ela aprendia para matar o tempo, por não ter mais o que fazer. Sofria de uma lesão cardíaca incurável, adiantadíssima. Qualquer dia — vaticinavam os

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médicos — deixaria de repente de bater, numa síncope mortal, aquele coração alagado de romantismo e cercado de banhas espessas. D. Jovita era freguesa da Genoveva. Era esta quem lhe lavava e engomava a roupa branca — uma coleção suntuosa e esplêndida de linhos, de sedas, de rendas caríssimas, de bretanhas finas. E a imensa senhora gostava de ouvir os papagueios da velha portuguesa, que, numa língua quase incompreensível para a argentina, lhe contava os mexericos do bairro, casos fúteis, intrigas baixas de cortiço. Em 1885, a Genoveva falou a D. Jovita dos seus receios e das suas preocupações de mãe: — a sua Carmita fazia-se mulher... já lhe apareciam os seios... daí a pouco qualquer vagabundo... D. Jovita, romântica e boa, comoveu-se logo. E tomou a Carmitinha para si, para lhe fazer companhia. Vestiu-a, deu-lhe um quarto magnífico, deu-lhe mestres. A eclosão da puberdade foi rápida em Carmita; em seis meses, de um salto, a menina tinha transposto o espaço que a separava da idade do amor. Deliciou-se, vendo-se tratada, bem alimentada, dormindo bem num quarto de moça rica, bem trajada, vivendo com calma, e conforto junto daquela boa matrona. Desenvolveu-se, desbastou-se-lhe o espírito, ficou realmente bonita, transformou-se na radiante mulher que era agora no Sanatorium de São Bernardo. Leopoldo da Costa, que antes quase não parava em casa, vinha agora sempre passar muitas horas junto com a mulher, para gozar da companhia de Carmita, a quem dava presentes, livros, gulodices, jóias. Os seus quarenta e cinco anos se exaltavam com a aproximação daqueles 14 anos cálidos, fulgurantes, junto daquele corpo virgem que desabrochava agora para o amor, abrindo-se deslumbradoramente, como uma flor ao sol. É de crer que D. Jovita percebesse a corte do marido a Carmita, corte feita ali, sob os seus olhos, sem disfarce. Mas, pobre senhora! não teve ciúmes... por preguiça. Valia lá a pena incomodar-se por tão pouco? Também é de crer que o maduro especulador pretendesse fazer da menina sua amante. Mas não fez. Por quê? Não, certamente, porque acreditasse muito numa resistência bastante séria por parte daquela flor de cortiço que a vida de agora entontecia e deslumbrava... Provavelmente, o que lhe deitou água fria na fervura do sangue foi o medo do escândalo... Sim! Que a velha Genoveva seria capaz de arrasar o bairro, a cidade, o mundo, com o clamor dos seus impropérios e dos seus desatinos... Em todo o caso, é possível que a coisa se desse um belo dia, porque Leopoldo se

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apaixonava cada vez mais, se, em 1886, um sucesso não viesse aplainar todas as dificuldades... E foi esse sucesso que uma tarde a gordura de D. Jovita, tendo crescido hediondamente, o seu coração, como tinham vaticinado os médicos, parou numa síncope fatal, sufocado pelo peso das banhas. D. Jovita morreu, como tinha vivido, passivamente, sem um protesto só contra a morte; deu um suspiro e acabou. Carmita chorou muito, abraçada ao cadáver, que a Genoveva piedosamente vestia. Leopoldo da Costa consolava-a, pegando-lhe as mãos, dizendo-lhe palavras doces, animando-a, afirmando-lhe: — Não ficará só, agora que perdeu a sua protetora... Não ficará só, agora que perdeu a sua protetora... Não ficará só, console-se! Quatro meses depois, a velha Genoveva, matreira e ladina, tinha aproveitado habilmente a situação: Leopoldo da Costa e Carmita casaram. Leopoldo tratou logo de afastar a velha portuguesa, dando-lhe umas apólices. E começou para D. Carmita uma vida deliciosa: camarote no Lírico, carro às ordens, casa aberta dia e noite a muita gente, dias passados na rua do Ouvidor pelas modistas, pelos joalheiros, pelas confeitarias a gastar dinheiro, bailes, piqueniques, divertimentos de toda a espécie — uma só festa contínua a sua vida. Três anos correram, durante os quais a leviandade de D. Carmita encontrou um excelente meio para se desenvolver. Em 1889, quando se proclamou a República, em plena febre de jogo de Bolsa, Leopoldo da Costa atirou-se aos negócios como um louco, fazendo e desfazendo fortunas, ganhando hoje rios de dinheiro numa só transação para gastá-los no dia seguinte numa só festa. Teve aventuras, começou a frequentar restaurantes, bastidores e bordéis. De dia, estava todo o tempo na rua da Alfândega. E deixava-se rolar por aquela corrente de loucura, de especulação, de febre. Surgiam bancos do chão como cogumelos. Havia dias em que os jornais anunciavam a formação de dez e doze empresas novas. Com a proclamação do novo regime, um horizonte novo raiara para todo o Brasil. A nação respirava, sentindo-se forte, moça, feliz, olhando sem receio para o futuro, ganhando e gastando dinheiro como nunca. Havia sujeitos que em outubro de 1889 pediam dez tostões aos amigos para jantar e que em fevereiro de 1890 tinham coupê, palacete, e seis concubinas. Meninos de 15 anos puxavam do bolso, nas confeitarias, para pagar um refresco, cédulas de quinhentos mil réis.

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Então, a loucura invadiu todas as classes da sociedade. Todo o mundo jogava. Essa febre de jogo, coincidindo com o Krack da Argentina, fizera que do Rio da Prata viessem pra o Rio de Janeiro centenas de carruagens, de parelhas de animais de raça, um número ilimitado de objetos de luxo, de quadros caros, de estátuas custosas, de mobílias raras. A mania do luxo desregrado alastrou-se por toda a cidade. Leopoldo, à noite, dissipava em orgias o que ganhara de dia, entrando em casa pela madrugada. Mas D. Carmita não se queixava. Ela também, nadando em dinheiro, divertia-se à rédea solta. A sua casa regurgitava de convidados todas as noites. As festas do palacete do Cosme Velho ficaram célebres pelo seu fausto. E no meio dessa felicidade, dessa pompa, cercada de galanteadores, como ficava bem o seu tipo franzino e elegante! e com a sua boquinha, vermelha e úmida, mordia gulosamente o pomo dessa ventura, que nunca lhe passara pelos sonhos, outrora, no cortiço infecto, quando, com os olhos cheios de lágrimas e as orelhas doídas dos puxões, dormia no quarto imundo, ouvindo o repinicado canalha dos violões!... Já nesse tempo se dizia que alguns galanteadores mais felizes haviam conseguido dela alguma coisa mais que sorrisos e valsas. Tudo é possível! E Leopoldo da Costa pouco se incomodava com isso, alucinado pelo jogo e pelo prazer. Depois, vieram os tempos das vacas magras. Toda aquela florescência efêmera de bancos, de empresas, de companhias apodreceu e caiu. A ascensão durara um ano; a queda durou um mês. Leopoldo como quase todos os jogadores desse tempo estava comprometido até aos cabelos, quando quis ter mão em si e retrair-se. Mas continuou a lutar, a iludir credores, a reformar letras e a gastar o mesmo dinheiro, em casa e na rua. Três anos correram ainda. Quando a revolta da Armada rebentou tinha ele seguido para Buenos Aires a fazer o inventário do sogro, que morrera na prisão, depois do pronunciamento sufocado pelo governo argentino. D. Carmita, mais leviana do que nunca, apertada pelos credores do marido, mandara fazer leilão de tudo quanto continha o palacete do Cosme Velho, e viera para São Bernardo, fugindo das balas, das dívidas e da febre amarela. Tal fora a vida passada da encantadora moça, por cujo amor quase o rubro Romaguera esfaqueara Vidigal. D. Carmita rira muito com o sucedido. E deliciara-se. Primeiro porque isso a lisonjeava, e a sua vaidade não podia mais dispensar a glória de ver homens aos seus pés; segundo, porque um verdadeiro capricho a prendia a Vidigal, a esse rapaz elegante e vicioso, experimentado em amores.

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LEVICCOLO Ainda não estava de todo esquecido o escândalo da roleta, quando outro se deu, bem que de menos gravidade. Foi o caso que Fabrício Autran, após muito lutar, caiu em graça com a Leviccolo. Ela era mulher toda de caprichos, fantasistas e doidivanos, e não podia cingir-se por muito tempo à sisudez pacata e burguesa, que lhe impunha o regulamento do hotel. Sentia a impressão de uma ave acostumada ao ar livre, aos espaços vastos, a subir, a descer, a pular de ramo em ramo, vendo-se de repente apertada numa gaiolinha estreita, de grossos varais férreos... Era preciso quebrá-los, fosse como fosse; escapar à monotonia daquela vida! seu organismo deperecia, estagnava-se, e para readquirir a elasticidade precisava de um estimulante... Enfim, Leviccolo tinha a nostalgia do escândalo, como outros têm a da pátria, a da família... E aborrecia-se e revoltava-se com essa demora em São Bernardo, com essa idéia infeliz que tivera a empresária de alojar a companhia — uma companhia de vaudevilles e óperas-bufas! — num estabelecimento sério como aquele, habitado por famílias respeitáveis, que, assim, ficavam constrangidas, e, ao mesmo tempo, constrangiam os atores e as atrizes. Ora! ela, habituada à independência da capital, onde recebia as visitas que lhe agradavam, ceava com rapazes, o espocar das rolhas, ao espumar do champanha, entre brindes encantadores de blague e carícias abertamente lascivas dançava o cancan em plena sala de visitas, na sua casa particular, jogava beijos e sopapos com os seus amigos e frequentadores, ela, habituada a essas liberdades todas, podia agora conservar-se quieta, falar baixo, rir mais baixo ainda, calcular todos os seus movimentos, pesar todas as suas palavras, como uma senhora de responsabilidade? Não! Não! Aquilo era absurdo. Ela não podia mais. E, nos ensaios, confiando os seus aborrecimentos à Concina ou à Lotulli, torcia as mãos com frenesi, e concluía com a sua vivacidade febril! de italiana: — Ma che! Ma che! Impossible! per Bacco! Io mi rompo la testa qualche giorno! A Lotulli aconselhava prudência, e ralhava com ela um pouco, empregando a sua autoridade de dançarina honesta, prodígio raro como um cavalo com chifres de boi! Ah! essa cabecinha tonta não toma juízo, não... Um pouco de paciência, Vivilo!... Isso até faz bem à saúde — interromper algum tempo as orgias, as comezainas, o abuso das bebidas, as noites mal dormidas. Você ganhará com o

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sacrifício; ficará mais robusta e gorda. E depois, lembre-se que tem aquela menina como sua filha — ajuntava à maneira de peroração — e é necessário dar-lhe bons exemplos. Estes argumentos, porém, pouca influência podiam exercer no ânimo da endiabrada Leviccolo. Ela nunca seguira outra lei senão o próprio capricho, irrefletido e despótico. Sabia compenetrar-se da sua condição de mulher boêmia, desclassificada, fora de todo o jogo das convenções sociais. Se não tinha o aconchego, o amparo, as delícias da família, por que havia de sujeitar-se a deveres que só a família comporta? Não; descera até ao fundo da sua miséria moral e medira o abismo com lucidez absoluta de espírito; não guardava a esse respeito a mais tênue ilusão... Amar, ser amada, qual! Amar, não podia; o seu coração, depravado já por mil experiências, umas ridículas, outras degradantes, todas dolorosas, confessava-se impotente pra tal grandeza; ser amada? Não o merecia; e fora mister que ela não conhecesse os homens para esperá-lo! Alguns teriam por ela uma atração puramente sexual. E isso lhe bastava, nada mais queria. De resto, havia de envelhecer um dia e, se não tivesse a precaução de ajuntar alguns dinheiro para os maus tempos (ela esperdiçava quanto tinha e quanto não tinha) ou encontrasse no fim da vida a boa chance de Ifigênia da Costa, que explorava o povo como empresária, depois de o haver explorado como atriz de talento, teria de extinguir-se na obscuridade e na pobreza, sem achar para socorrê-la, quando já feia e enrugada, um só dos cavalheiros amáveis que ora lhe estendiam as mãos cheias de ouro e notas de banco... Bem gravado tinha na memória o triste fim da Candiani, que, havendo excitado na juventude com a sua voz e os seus encantos uma adoração universal acabara numa casinha, num cubículo à toa, em Santa Cruz, sem que o Rio de Janeiro soubesse que ela ainda vivera tanto, senão pela notícia da sua morte. Com idéias tais, era lógico que desprezasse a humanidade, e desprezava-a com soberano desprezo. Moral era, no seu conceito, um eufemismo de hipocrisia; todos, pelo mundo, além se valiam uns aos outros, todos alimentavam secretos vícios hediondos, sentimentos baixos, paixões odiosas — mas cuidavam de simular virtudes insignes, para embair a opinião pública. A opinião pública! A Leviccolo a desdenhava nesse sentido, e noutro fazia tudo para adulá-la e seduzi-la. O que se pudesse dizer de seus costumes, da sua vida privada, pouca mossa lhe faria: mas importava-lhe muitíssimo o juízo da imprensa e do povo sobre a sua habilidade cênica, porque estava ali um elemento de sucesso... e de renda, portanto. Enquanto fosse considerada uma estrela de primeira ordem, enquanto se elogiassem os seus dotes físicos, quer no palco, quer na alcova, enquanto as platéias andassem fascinadas pelo timbre da sua voz, pela expressão dos seus olhos, pelo cinismo da sua entoação, pelos requebros do seu corpinho esbelto e colubrino, pela influência afrodisíaca dos

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seus gestos intencionais, os diretores de companhias lhe ofereceriam contratos vantajosos, e os ricaços, ambicionando-a, pagariam largamente os seus afagos. É certo que recolhera em casa uma menina pobre — essa triste Mariazinha, que a chamava mãe, e realmente como mãe a adorava. Fora um impulso de caridade? Fora uma inspiração de enternecida simpatia pelo que há de mais puro e celeste na terra — uma criancinha inocente? Talvez, uma e outra coisa influíram na resolução; talvez lhe atuasse no espírito esse estranho "desejo de ser mãe", que domina a mulher de vida fácil, certa de que só o afeto filial lhe poderá trazer um pouco de conforto e apoio no abandono a que está condenada. É dulcíssimo possuir num lar profanado por humilhações contínuas uma alma simples e ingênua, cujo amor sincero compense as falsidades de tantos amores passageiros e torpes, que se resgatam a dinheiro. Porventura Leviccolo, com a sua índole supersticiosa de italiana, descobriu naquela criança uma espécie de mascote, um penhor de felicidade, semelhante às ferraduras que se acham por acaso na rua e às folhas de fortuna, que desabrocham em gomos verdes, presas na parede por um alfinete... Seja como for, a verdade é que, perdido o encanto da novidade, havia muito Leviccolo se aborrecera pouco a pouco de Mariazinha; e, se continuava a sustentá-la, era para não dar o braço a torcer, para cultivar o sentimentalismo, e também para que se dissesse, quando ela aparecia no proscênio, excitando instintos bestiais com o seu bambolear de quadris: — Esta mulher tem muito bom coração; adotou uma menina e a educa à sua custa.. Haveria em algum espectador capitalista curiosidade de ver isso, e era mais um adorador garantido... No Sanatorium, com a sua velha prática dessas coisas, Leviccolo, desde o primeiro dia, medira os lucros e as perdas possíveis, classificando os homens que mais ou menos ocultamente, a requestavam. Raymond, Cavalcanti, dois colossos de fortuna — excelentes partidos para quando a troupe regressasse do Rio; ali em São Bernardo não havia em que gastar rios de ouro; por conseguinte, cumpria aguçar-lhes moderadamente os desejos, para que na capital ainda os pudesse depenar. Romaguera, violento, um tanto ridículo, fascinado pela D. Carmita... nada de histórias com ele! Não podia vir dali grande maquia, e os perigos eram inúmeros. Vidigal, o triunfante, os seus companheiros estudantes, todos, mais ou menos filhos-famílias, sem autonomia e sem bastantes recursos de bolsa punha-os à parte também; se, mais tarde, lhe desse na veneta a extravagância

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de envencilhar um deles, ou mais de um, na rede de seus encantos, seria uma hors d'oeuvre, esplêndido, para cortar o menu de todos os dias... mas disso não se cuidava por enquanto... Quanto a Fabrício Autran... ora! Fabrício Autran via-se bem, andava à carta de mulher; entre muitas, contanto que fossem bonitas, tivessem um atrativo qualquer, não escolhia; aceitava fosse qual fosse, ou todas, com maior prazer ainda. Fervia-lhe o sangue uma sensualidade vigorosa, um tanto primitiva, reprimida sem dúvida por longo tempo, e ele seria capaz de fazer tudo, de gastar quanto fosse possível, com a que mostrasse querê-lo deveras... e, seria, entretanto, assaz, prudente para não provocar complicações que o privassem dela. Esses cálculos preocupavam a atenção da Leviccolo, que lhes ligava a devida importância; mas uma consideração os suplantava, e era esta: que a atriz gostava do baiano, à sua moda, e não descansaria enquanto o não considerasse todo seu. Mas que obstáculo lhe dificultava a realização de tais desejos? Em primeiro lugar, a ordem severa do hotel; e depois, o Leite, o Cérbero inexorável que se transformara em sua sombra... NOS BASTIDORES A DAMA DE PAUS! — A DAMA DE PAUS!" — lia-se em letras enormes nos prospectos distribuídos pelas ruas, e no amplo quadro preto da porta do teatro. — Você vai hoje ao espetáculo? — Sei lá! Que tal é aquilo? — Muito bom; tem uns pedacinhos, como lhe direi?... bastante apimentados — compreende? Vale a pena. E a Leviccolo é admirável, no papel de Dama... À noite, estava cheio o teatro, como sempre, pois não havia em toda a cidade outro ponto de reunião e divertimento. Desde o restaurante da entrada — Ao Gato Preto, onde o popular Matias não tinha mãos a medir, entre os pedidos constantes de seus numerosos fregueses; Duas cervejas terceira à esquerda! — Sifão com Xerez! — Conhaque, quatro! — Paga três mil e cem! — por toda a parte, era um formigar de gente, que Ifigênia da Costa contemplava com íntimo prazer pelo aumento da receita que isso lhe trazia aos cofres. Terminara o primeiro ato, que fora acolhido entusiasticamente; a platéia toda havia pedido bis e tris para mais de um trecho de música, aplaudindo com delírio sobretudo o dueto do mestre-escola, com a dama de ouros, adaptação de letra nova ao Dueto dos Paraguas, da revista espanhola De Paris a Madrid.

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Baixara o pano, entre salvas de palmas, chamados à cena, e o ilustre maestro do São Bernardo, Marciano Ribeiro, começou a reger magistralmente a sua orquestra. Os espectadores deixavam os seus lugares para gozar a fresca da noite no saguão e no terraço, ao ar livre, e saíam vagarosamente recebendo dos guardas a senha costumada. Iam-se enchendo de bebidas as mesinhas de mármore, acendiam-se os cigarros, animava-se a conversação nos grupos esparsos por ali fora, e crescia a influência de fregueses ao balcão do Gato Preto. Súbito, como ao toque da varinha de condão nas grandes mágicas, tudo cessou; extinguiu-se o rumor das palestras, bebedores pararam com os copos à altura dos queixos, e toda gente se voltou para o palco, tapado de alto a baixo pelo pano, onde se liam anúncios das principais casas do comércio local. De lá, da caixa, vinha um barulho imenso, vozes a subirem de tom, ruído de encontrões, todos os indícios de uma luta furiosa; o espanto foi geral; o próprio maestro, sempre tão sensato e pausado nas suas decisões, depôs a batuta sobre a estante, e os instrumentos calaram-se. O barulho recrudescia, instante a instante; dir-se-ia que os bastidores vinham todos abaixo. Pessoas do povo queriam invadir o proscênio e, a muito custo, o fiscal do teatro, o Chico Fuligem, insolente e desbocado, lhes continha a impaciência, à força de murros e desaforos. E todos se entreolhavam, e de todos os lábios saía a mesma interrogação: — Que é? Que é? — Estão todos prontos? Não falta ninguém? — perguntou em voz alta, no meio do palco, o diretor de cena. — A Sra. Leviccolo ainda se está vestindo — observou o contra-regra. — Oh! Esta Leviccolo ainda se está vestindo! Que coquete! É sempre a última a aparecer. — O seu camarim está fechado ainda — acrescentou o contra-regra. — Quer que vá chamá-la? — disse o Mendes, medonhamente caracterizado em comandante de polícia, com as mãos a flutuar em um par de luvas brancas, largas demais, e o rosto pintado de alvaiade, e de violentas riscas negras de nanquim.

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— Para quê? — acudiu o diretor de cena. — Quando ela estiver vestida, virá. Ainda faltam dez minutos para principiar o segundo ato... O Mendes insistia: era tão fácil bater na porta, ao menos para que ela se apressasse um pouco! Teimava o Mendonça que não era preciso. Mas Ifigênia da Costa interveio: — Bem! Vá! E o diretor de cena, contrariado, mordendo os beiços, resmungou: — Mau! Mau! Temo-la travada?... O Mendes partiu a correr. Daí a momentos, ouviram-no, que berrava: — Abra, com mil raios! Abra com todos os diabos! — e, aos socos e às cabeçadas procurava forçar a porta. — Abra! senão arrebento tudo! Mendonça, Ifigênia, Lotulli, Couceiro, Costa, Corista, contra-regra, ponto, todos se atiraram para lá, num ímpeto: — Que vem a ser isto? — gritava o Mendonça. — Sr. Mendes contenha-se! — exclamava Ifigênia, juntando as mãos, apavorada com o fracasso. E uns puxavam-no para trás, e outros lhe pediam baixinho, carinhosamente, que não perdesse o juízo, que se acalmasse para evitar um escândalo. E o Mendes continuava a berrar: — Esta descarada! Não quer abrir... por que não está só! Há um homem lá dentro! Com mil demônios! Abra! Abra! Por fim, Ifigênia da Costa obrigou-o ao silêncio com um aceno imperioso, e chegando-se à fechadura, falou para dentro:

— Leviccolo, Amélia! Abra, seja como for; eu lhe afianço que não há de acontecer nada. Não é verdade, Sr. Mendes?

— Não sei... Não sei... — regougou ele.

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Então, abriu-se medrosamente a porta, e a Leviccolo apareceu, com as feições demudadas pelo terror, os cabelos despenteados, coberta com um simples peignoir de seda cor de cinza. O Mendes queria entrar no camarim, a todo transe, e ela agarrava-lhe nos pulsos, com gritinhos de susto, para o deter; mas, perdendo a paciência, o cabotin empurrou-a brutalmente, empunhou uma bengala que encontrara a um canto, e com ela começou a varejar os recessos do quarto, que ainda estava às escuras. Rebentou uma exclamação de dor e raiva: — Arre, cão! Vá bater no inferno! E um homem, enfurecido, saltou para fora, deu um salto agilíssimo e grudou ambas as mãos às goelas do Mendes. Este debatia-se, queria prostrá-lo, mas Fabrício Autran — outro não era o homem — dispunha de uma força extraordinária, e não se rendia facilmente. Afinal, rolaram os dois no chão, às bofetadas. Ifigênia arrancava os cabelos, desesperada: — Que fazer? Que fazer? Que dirá o público de tudo isto? Mendonça tentava apartá-los, mas não se chegava muito perto, receando apanhar "algum por conta", como dizia depois, relatando o caso. Costa sempre preocupado com o seu dandismo, temia macular na poeira os sapatinhos mignon de verniz. A Leviccolo, querendo aplacar as cóleras do Mendes e segurar-lhe as mãos, levou tamanho murro em pleno rosto, que foi parar, a dez passos de distância, de encontro a um tabique. A intervenção do delegado de polícia, que vinha ali — explicou ele — oficiosamente, como amigo, e não como autoridade, pôs termo ao conflito. Fabrício Autran, indignado e envergonhadíssimo com a aventura, saiu pela porta reservada aos artistas, e recolheu-se ao hotel. A orquestra recomeçou os seus acordes. Quando apareceu à boca da cena o Mendonça, anunciando ao público, que o espetáculo, suspenso por imprevisto incômodo de uma atriz, continuaria dentro de poucos minutos, uma gargalhada geral respondeu à desculpa, porque rapidamente se espalhara na platéia a verdadeira causa do fato. O Mendonça — que havia de fazer? — riu-se também, e fez uma careta, para terminar tudo em santa paz...

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No segundo ato, notou-se que a Leviccolo trazia a face esquerda muito inchada, com uma nódoa lívida que o carmim e o pó de arroz não encobriam de todo. Fez-lhe por isso o povo uma ovação estrondosa, e o Mendes, a muito custo, escapou de uma pateada geral. CONCLAVE Tudo isso repercutiu com grande estrondo no Sanatorium. Silveira Jacques já aparecia raramente: em torno dele, farejando carniça, rondavam os credores — urubus da falência. Os hóspedes, de manhã, encontravam já o parque cheio de uma multidão de caras suspeitas — caipiras, de chapéu desabado e botas; portugueses de jaleco sovado e socos; italianos, de jaqueta de veludo, gritando, fazendo barulho. Mais pálida a face do diretor do Sanatorium contraía-se agora numa preocupação constante. E o Barão de Raymond, homem entendido em negócios, dissera já confidencialmente ao Marquês do Tijuco: — Sabe? O homem comprou isto a crédito... E contaram-me ontem que não teve dinheiro para pagar a primeira letra... O Marquês benzera-se. Homem do tempo antigo, em cujo espírito nunca pudera caber a idéia de que se pudessem fazer negócios a prazo e com documentos assinados, o velho Marquês sentira logo crescer na alma uma repugnância invencível por esse moço. Oh! Um homem que deixa de pagar uma letra... De fato, a primeira letra não fora paga. E a velha mãe de Jacques, senhora de energia varonil, andava mesmo agora todo o dia por fora, procurando conhecidos e amigos. E Autran dizia, quando ela passava a caminho do portão, embiocada na mantilha: — Lá vai a velha para a peregrinação das dentadas... O vasto plano de alargamento do edifício, de aperfeiçoamento do Sanatorium, ficara na cabeça do diretor. Nem estabelecimento eletroterápico, nem farmácia, nem instalação do local para o tratamento Kneipp. No tocante a esta última inovação, houvera apenas uma tentativa por parte do Romaguera, que, tendo lido artigos da Gazeta de Notícias a respeito dessa invenção, se resolvera a experimentá-la, a fim de ver se se libertava do seu pigarro crônico.

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E dera em patinhar na relva molhada, uma hora por dia, com as calças arregaçadas e os pés nus — uns grossos pés de unhas tortas e dedos prenhes de calos. As pernas cabeludas, aparecendo ao sol, fizeram o desespero da Marquesa do Tijuco e da Aquidabã. Somente as filhas desta última tomaram interesse na experiência. E iam todas as manhãs espiar as gâmbias cerdosas do Romaguera, que com as mãos às costas, de jaquetão de flanela, passeava pacientemente, pela grama orvalhada, com ar de quem se torturava para remir algum pecado. E era entre as moças um cochichar malicioso, pontuado de risinhos brejeiros... Até que chegando, D. Eufrásia Fontoura, a Aquidabã berrava desesperada: — Já daqui para fora, suas malcriadas! — e enxotava-as. E, indignada, de mãos às ancas, dizia ainda, com uivos: — Também a culpa é dos velhos burros que dão em mostrar as pernas à gente!... O resultado da experiência foi uma tremenda bronquite que se lhe aferrou ao peito, obrigando-o a abalar dia e noite o hotel com o estrondo da sua tosse estentórica. No serviço das refeições, a influência benéfica de Cosmópolis, o novo maître d'hôtel, apenas se fizera sentir durante alguns dias. Faltavam gêneros, faltavam vinhos, faltava tudo. E, quando tocava a sineta para o almoço ou para o jantar, o Dr. Lemos, sempre mordaz, costumava dizer aos companheiros de palestra: — Vamos, rapazes! Encomendem a alma a Deus, façam testamento e resignem-se; chegou a hora da tortura! João Silveira, gerente, quando não jogava roleta, cochilava por trás do balcão. E estava ele justamente cochilando, nessa manhã, quando Fabrício Autran, corrido de vergonha com o escândalo do teatro, chegou ao balcão para pagar a sua conta. Estava impressionadíssimo... Como ficar ali? Como suportar de cara impassível os remoques, os comentários, as ironias, os olhares de toda aquela gente? Não! Decididamente partiria... E tratou logo de liquidar a conta do hotel. João Silveira obriu os olhos estremunhados de sono e mal respondeu ao cumprimento de Fabrício. Passara a noite toda jogando. — Maldito 13! Não saíra nem uma vez! — Fabrício disse, rudemente, indignado contra a indiferença daquela recepção: — Veja a minha conta e dê-me o recibo.

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João Silveira esfregou os olhos, teve um espreguiçamento e perguntou, cheio de tédio: — O seu nome? — Fabrício Autran. O gerente lançou mão de um livro grosso, encapado de preto. Abriu-o devagar, folheou-o morosamente, correndo a vista pelas páginas. Depois, encarando o outro: — Em que dia chegou? Fabrício disse uma data. Novo exame do livro, mais moroso, mais longo do que o primeiro. E a face de Silveira tinha uma tal expressão de aborrecimento, que parecia intimamente estar mandando ao diabo aquele importuno, que tinha a impertinência de vir pagar contas a um homem que não dormira toda a noite. Ao cabo desse segundo exame, ergueram-se-lhe novos olhos. E ele disse, cruzando as mãos sobre o livro, com calma: — É singular! Não vejo o seu nome... Provavelmente, esqueci-me de tomar nota... — Mas, senhor! — exclamou Fabrício Autran, espantado — já estou aqui há dois meses e já lhe paguei a primeira conta... Até, por sinal, o senhor não me deu recibo! João Silveira sorriu: — Ah! Então vem pagar a conta deste mês, não é assim? Nada mais fácil! Estamos no dia 20. Vinte dias a 7$000... 140$000. — Só? — Só... Bem sabe que o preço da diária é 7$000... e sete vezes vinte... cento e quarenta. — Mas veja bem! Não o quero roubar... Tomei vinho, bebi cerveja, fiz despesas extraordinárias... — Ah! Fez despesas extraordinárias? — disse o João Silveira, contrariado. — Que maçada! Não tomei notas...

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E, depois de uma pausa, acentuando o seu sorriso frouxo de enfadado: — Mas é fácil. O senhor não podia fornecer-me uma notinha, uma relação das despesas que fez?... Fabrício Autran estourou: — Mas o senhor pensa que eu sou o guarda-livros deste hotel? Pois queria eu que andasse a registrar num livrinho de lembranças o que como o que bebo? Ora, vá pentear macacos! E saiu com fragor, deixando o João Silveira estatelado. Dali, o Fabrício Autran foi procurar o Dr. Silveira Jacques. Queria liquidar quanto antes as suas contas e partir. Mas foi em vão que bateu todo o Sanarorium à procura do diretor. Soube por fim que Silveira estava fechado, com a mãe e um hóspede novo, no escritório, em conferência. Foi o Daniel quem lho disse: — Lá está fechado, mais a mãe com um tipo barbado que cá chegou ontem... Aquilo parece credor... Que crônicos! Fabrício, desanimado, voltou, resolvido a fechar-se no quarto até à hora da partida. O que mais o preocupava era um encontro possível, com a Leviccolo, ou com o Mendes... O bruto era capaz de querer renovar escândalo da véspera... — Também com todos os diabos! — bradou ele, falando só, batendo com o pé no soalho, já perto da porta do quarto — quem me mandou meter-me com esta corja?... E ia entrar, quando ao fim do corredor apareceu, apressado, chamando-o, o Álvaro Cândido. Chegou esbaforido: — Você não imagina o barulho que vai por aí. As famílias dizem que sairão do hotel se o Silveira Jacques não puser para fora a companhia. Está armado um grande rolo. Não se vá embora! Fique! Isto vai ser uma delícia! Que diabo! Você é homem solteiro, não ter de dar contas a ninguém... Fabrício protestou logo:

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— Não! Estou farto disso. Se fico, tenho certeza, de cair em outra igual daqui a poucos dias. Que quer você? Tenho isto infiltrado na massa do sangue... Não posso ver mulher sem que... É o diabo! é o diabo! Mas apanhar não tem graça nenhuma, filho. Vou para outro lugar. Cidades de recreio não faltam por aí, nem mulheres... — É uma tolice, uma rematada tolice! — declarou o Álvaro Cândido. — Enfim... — Pode ser, filho! Mas eu é que não tenho jeito nenhum para galo de briga... sabe você? E raspo-me decididamente! Decididamente, adeus! Ver-nos-emos antes da partida. Até logo! — concluiu Fabrício, entrando para o quarto. O Álvaro Cândido foi ao vestíbulo divertir-se à custa da assembléia geral de hóspedes, que já estava reunida, discutindo o caso. A presidência de honra estava com a D. Eufrásia Fontoura, cuja cólera era visível. E, em geral, todos concordavam com ela num ponto: era preciso que aquele escândalo cessasse. Qualquer dia, a coisa se passaria ali mesmo, no hotel, à vista das famílias... Como? Pois aquelas mulheres de má vida haviam de continuar ali, dormindo ao lado de senhoras casadas, contaminando de patifarias o ar que meninas solteiras respiravam? E o conclave opinava pela nomeação de um comitê, que pedisse a Silveira Jacques a retirada da troupe. Mas, de repente, uma voz disse: — Acho que devemos indagar da opinião da Marquesa! Houve um movimento de aplauso. Sim, sim! nada se devia fazer sem a aprovação da Sra. Marquesa... A Aquidabã levantou-se logo apoiando a idéia, oferecendo-se para ir sem demora falar a S. Exª. Mas não foi necessário. A Marquesa entrou, gravemente, pausadamente, com a sua mesma face de sempre, impassível e altiva. Sorriu para todas as senhoras presentes e sentou-se entre murmúrios de bom acolhimento. D. Eufrásia Fontoura explicou-lhe o projeto da assembléia. Explicou-o minuciosamente, escolhendo bem os seus termos, já se vê, para não arra-nhar com alguma invonluntária expressão crespa o ouvido da nobre senhora. A Marquesa do Tijuco ouviu tudo, em silêncio, meneando de espaço em espaço a cabeça; depois, quando a Aquidabã, ao terminar, lhe pediu que edificasse a assembléia com a sua opinião, a gorda senhora ficou muda, recolhida a uma meditação profunda. Em roda, o conclave esperava.

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Por fim, S Exª, com a testa mais franzida do que nunca e a comissura labial numa contração de desdém, falou: — Ora! Acho que não vale a pena... Houve um espanto. Como? Não valia a pena? E as senhoras se entreo-lhavam pasmadas. A Marquesa, porém, explicou-se. Em primeiro lugar, era preciso que senhoras sérias não mostrassem preocupar-se muito com gente dessa espé-cie... Não lhes falassem, não convivessem com elas, evitassem-nas! Não era necessário fazer aquilo. E, depois, esqueciam-se da projetada capela de Nossa Senhora de Lordes, que as senhoras de São Bernardo queriam levantar na Casa da Pedra? Esqueciam-se, então, de que D. Ifigénia da Costa prometera o concurso da companhia para um sarau em benefício das obras? Meu Deus! Para ganhar o céu, era preciso fazer algum sacrifício! Não! Não se devia fazer aquilo. Algumas vozes concordaram. Somente D. Eufrásia, amuada, persistia na sua idéia. Mas a Marquesa encontrou um argumento irrespondível: —Devo dizer-lhes que o culpado de tudo foi esse moço que aqui mora. Foi ele, ao que dizem, quem deu causa a tudo. Coisas da educação de hoje! Mas o Barão de Raymond acaba de informar-me de que esse moço, arrependido, sairá hoje mesmo do hotel... Tenham paciência! A companhia deve ir embora daqui a um mês... Tenham paciência! Nossa Senhora de Lourdes lhes levará em conta esse sacrifício... Estas últimas palavras calaram profundamente no espírito do auditório. E, daqui a pouco, como D. Eufrásia Fontoura, já resolvida a contemporizar — saísse do vestíbulo, achou no corredor as torpedeiras, suas filhas, e a sua afilhada — a lancha Lucy —, a porta do quarto da Leviccolo, num tagarelar trêfego com a atriz. Esta, com uma nódoa negra na face esquerda, contava em voz baixa alguma coisa às meninas. Devia ser um a anedota picante, um caso vivo e apimentado, dos bastidores do teatro ou dos bastidores da vida real — porque as meninas se torciam de riso, a ouvi-la, olhando muito rara a sua equimose, quase a invejá-la. Contra os seus hábitos, D. Eufrásia Fontoura não as repreendeu. Passou por elas, fingindo que as não via, dominando-se. E os seus lábios murmu-raram devotadamente: — Seja tudo pelo amor de N. S. de Lourdes!

OMELETE-MONSTRO

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Ora, o senhor censura o Fabrício... que foi leviano, que se desmoralizou e não sei mais o quê... Não concordo, absolutamente. Digo mais: acho que estas indignações todas são da parte do senhor uma bela hipocrisia. Ponhamos o caso em nós: quem dos que estamos aqui não faria o mesmo? Ele é solteiro, e eu tenho visto pais de família, conceituados e graves, caírem em piores extravagâncias. Adeus! Isto dizia o Dr. Lemos, sacudindo os braços, crispando os dedos com a sua violência habitual de gesticulação, e passeando de um lado para outro na saleta do chalé em que morava, no parque do Sanatorium. O Romaguera interveio, tirando uma larga fumaça de seu havana de dois mil réis: — Mas, doutor, entrar em conflito com um cabotin, descomporem-se ambos, rolarem pelo chão aos murros e às bofetadas... Isto desmoraliza um homem... — Ora quem quer falar! Quem quer falar! — guaguejava o doutor, fulo de raiva: — O Sr. Comendador Romaguera! O senhor que outro dia, na roleta, quase chegou a uma rixa semelhante, provocando uma criança, ameaçando-a com um punhal... por causa de uma mulher! E com as mãos atrás das costas, curvando-se para a frente, cravava os olhos frios e perscrutadores no comendador. Este, furioso e envergonhado, lastimando ter-se metido nesta história, não achava resposta, mexia-se na cadeira, tossia, puxava o lenço, enrugava a testa, com todos os sinais de uma irritação extrema. O velho Marquês do Tijuco, habituado à escrupulosa tenue das cortes à etiqueta inviolável que nenhum excesso da linguagem ou de paixão perturba, cuidava já de retirar-se sob qualquer pretexto e, prevendo nova desordem e de tão desnorteado, não dava com a porta. Indeciso, dobrava entre os dedos mais rapidamente o barrete de seda preta — única mostra por que revelava as suas mais fortes emoções. Ainda o Autran compreendeu, depois daquele fracasso, a necessidade de retirar-se e não apareceu mais. E o doutor, no dia seguinte, ao barulho do jogo, foi almoçar muito tranquilamente na sala de jantar... Romaguera — ele próprio não sabia explicar como — tinha grande respeito ao Dr. Lemos, fosse por ele ser como médico uma notabilidade e como homem uma reputação sem mácula, ou pelo seu gênio franco e leal, incompatível com a mentira, rude e sardônico, mas capaz de todas as dedicações, o que lhe conquistava as simpatias daqueles mesmo que a sua blague não poupava. De

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certo, Romaguera devia-lhe um serviço, valioso, um desses obséquios que não se pagam, pois fora o Dr. Lemos que o tratara com o mais perfeito desvelo, quando o tratamento Kneipp, mal ensaiado decerto, lhe causara a terrível bronquite, que quase havia degenerado em bronco-pneumonia. Por isso, conteve-se, e redarguiu serenamente. — Meu doutor, não defenda o amigo Fabrício às expensas minhas. O que passou, passou. — Bem, não toquemos mais nisso; mas eu faço questão de salvar a responsabilidade do rapaz. Ele não contava certamente com o que houve depois, aliás não se meteria em semelhante imbroglio. Sabe quem tem culpa de tudo isso? Quem é causador de todos os escândalos que tem magoado as famílias do Sanarorium? É esse charlatão, esse médico sem clínica, esse passador de atestados falsos, esse ridículo e sinistro Silveira Jacques, que com a capa de vir fundar uma casa de saúde, veio simplesmente locupletar-se, encher a bolsa, explorar com o câmbio a carestia dos gêneros, transformando-se em reles hoteleiro com fumaças de hipnotismo e de hidroterapia!... Entende? Ele é que merece todos os apodos, esse tipo sem pudor e sem escrúpulos, esse Silveira Jacques... A porta que dava para o parque estava aberta e nela apareceu nesse momento, lívido, mordendo os lábios, espumando de cólera, o diretor do Sanarorium. Entrou, indo direto ao Dr. Lemos. — O Sr. vai repetir tudo o que disse... — Quê? Não sabia que, entre outras habilidades, tinha mais esta de escutar atrás das portas a conversa dos outros. Repito o que disse e acrescento mais que o Sr. a mim não me ilude com suas maneiras melífluas, com as suas frases copiadas de manuais baratos, porque eu sei a que se reduz a sua grande clínica de oitenta contos por ano; reduz-se a dívidas no valor de oitenta contos, na cidade que o Sr. foi obrigado a deixar, por não ter mais tolos a quem embair. Romaguera, estupefato, olhava para o Dr. Lemos sem dizer palavra. O Marquês, tolhido de susto, fulminado de assombro, sentara-se a um canto, tremendo muito, e deixara cair ao chão o barrete de seda preta; dir-se-ia múmia secular encolhida no seu sarcófago. Silveira Jacques sentia-se literalmente esmagado pelas apóstrofes do seu contendor. Mas ainda tentou revoltar-se. — O Sr. — clamou com voz que forcejava por ser enérgica, mas denunciava um verdadeiro terror — o senhor vai sair daqui hoje mesmo... — Ah! Dr. Silveira Jacques, o senhor sabe perfeitamente que depois de uma cena como esta, eu não ficaria mais um minuto, se pudesse, em casa que o

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senhor dirija, mesmo pagando uma fortuna por dia. Sairei por minha vontade, e ficarei livre do senhor, das suas intrigas e das suas trapaças! — Há de sair, há de sair, insolente, se não por vontade, à força... — Que, Sr. Dr. Jacques? O senhor ainda ousa insultar-me? Sairei porque quero, mas, antes disso, o senhor vai sair deste chalé por aquela porta!... Para fora! Já! — Este chalé é meu, e a mim é que me cabe o direito de expulsá-lo. — É seu, mas pertence-me, enquanto eu pagar a minha diária no hotel! Aluguei-o, é minha casa, onde só eu mando! Retire-se! Retire-se! Para fora, já! — Eu? Eu? — O senhor mesmo! Já! Senão faço atirá-lo da janela pelos meus criados! Silveira Jacques nem pensou em resistir. Obedeceu e saiu. Quando ia descer a escada, o Dr. Lemos disse-lhe: — Mande-me a conta imediatamente. E, com as mãos atrás das costas, media a saleta a longos passos. Romaguera e o Marquês continuavam calados. Uma atmosfera de gelo pesava sobre todos. Daí a um quarto de hora, um copeiro trazia a conta. O Dr. Lemos leu-a e deu uma enorme gargalhada. — Que é? — perguntou Romaguera, curioso. O Marquês, incerto e desconfiado, aproximou-se timidamente. — Ora já viram que gatuno farsista! Impagável! Impagável! Reparem nisto. — Uma lata de espargos, quinze mil réis! Uma garrafa de Chambertin, dezoito mil réis! Uma omelete de 14 ovos, de 14 ovos só para mim! doze mil réis! Uma omelete de 14 ovos — é imoral! Romaguera devorava a conta com os olhos, não podendo crer no que cuvia. O velho Tijuco, atrapalhado, benzia-se. — Quando pensei eu, com oitenta e cinco anos, ver uma coisa assim! O Dr. Lemos, chegando à porta, pôs-se a chamar os hóspedes, que conversavam no vestíbulo, fazendo horas para o café do meio-dia.

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— Ó Manhães! Ó Castanheira! Ó Alvaro! Ó Vidigal! O Alfredo! Venham cá! Venham contemplar uma maravilha da patologia do cinismo! Correram todos para lá; formou-se compacto círculo em torno do ilustre médico, que agitava triunfalmente a malsinada conta e lia com ênfase: — Uma lata de espargos, quinze mil réis! — Uma garrafa de Chambertin, dezoito mil réis! — Uma omelete de 14 ovos, doze mil réis! — Notem bem: uma omelete de catorze ovos!... O espanto era geral; depois as risadas sucederam-se, joviais e gostosas! a omelete-monstro era seguramente o maior sucesso da semana, superior mesmo à Mimi Bilontra e ao conflito Mendes-Autran. — Dora em diante — prosseguia o Dr. Lemos — quando se quiser dar uma medida de extensão indefinida, não se dirá mais, grande como o céu, como o mar, como o universo... mas: quase tão grande como a omelete do Sanarorium! Eis como este cavalheiro de indústria nos explora, com as suas notas de extraordinários: é extraordinário o bife, é extraordinário o pão, é extraordinário o leite, é extraordinário a água! Em resumo, senhores, aqui só há duas coisas ordinárias: o hotel e o dono! Tudo o mais é extraordinário! ESTER Eram cinco da tarde. O sol começava a baixar, e já largas sombras se espalhavam pelo parque verde. O céu tinha uma cor de lilás muito branda, tocada a espaços por listras esbranquiçadas, por leves tons de ouro e esmeralda. Mas, para o ocaso, toda a pompa variegada e fabulosa do poente se desenrolava pelo horizonte em cores violentas, em clarões intensos, em barras grossas de púrpura, brilhos de ametista e de topázio, franjas de prata alvíssima, realçadas por traços de azul-marinho, de azul tirante a negro. O sol agonizava numa apoteose. E era um espetáculo soberbo vê-lo descer lentamente, envolto em chamas sanguíneas, em matizes vivos e deslumbrantes, por trás das serras negras, ásperas, angulosas, que cercavam o horizonte, como muralhas de um gigantesco templo, derrocado por temeroso cataclisma. D. Ester, que havia dias, prostrada e exânime, não deixava o seu tristonho aposento de enferma, tivera nessa tarde, sentindo-se melhor, o desejo de sair a passeio, de deixar a cidade e respirar o ambiente sadio e balsâmico do campo.

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Sua mãe, a veneranda senhora que não a abandonava um instante, mandara chamar o médico, que, consultado nenhuma dificuldade opusera ao projeto da moça. — É até higiênico o passeio; há de fazer-lhe bem — opinara — O ar é tépido, as tardes são deliciosas. Somente, recomendo-lhe que volte cedo, antes do anoitecer... Um carro viera buscá-las, à porta do Sanatorium. D. Ester, pelo braço de sua mãe, atravessara os corredores, passo a passo; no vestíbulo, rodeara-as a solicitude de quantos ali se achavam, homens e senhoras, que a todos a infeliz moça, condenada a morrer, inspirava uma simpatia comovida e profunda, que a sua bondade angélica transformara quase em adoração. Ela vinha, mais pálida do que nunca, os olhos mais do que nunca pisados de febre e insônia; trajava um vestido singelo de lã escura, entre grená e roxo. E sobre os cabelos pretos, anelados e luzidios, uma branca mantilha caía, em dobras graciosas. Já perto da escada, o leque — um leque de plumas cinzentas — lhe caiu das mãos; Castanheira, que estava próximo, levantou-o do chão e restituiu-lho, oferecendo-lhe o braço para conduzi-la até ao carro, pois só com o auxílio de D. Malvina (chamava-se Malvina a mãe de Ester) ser-lhe-ia penoso descer os oito degraus de pedra e atravessar o parque. O carro subiu pelo morro do Bonfim, e, em frente à ermida, parou; D. Ester quis descer para andar um pouco. A ermida, muito alva, cintilava aos raios últimos do sol. Uma suavidade infinita errava no ar. E, vagarosamente, mãe e filha caminhavam em silêncio, vendo, embaixo, a seus pés, o panorama da cidade, que se desenrolava. Em torno da ermida, o morro, de vegetação tenra, convidava ao repouso e ao devaneio. O solo, em vários pontos, vertente abaixo, gretava-se, mostrando betas profundas — vestígios de minerações abandonadas, escavações feitas pelos caçadores de ouro, recentes umas, antiquíssimas outras. Perto, num plano inferior, apareciam as torres negras de São Francisco, a severa igreja, de estilo romano — relíquia veneranda de uma geração desaparecida. Mais longe, outras igrejas se destacavam... E a cidade toda se estendia à vista das duas senhoras — em anfiteatro. As casas emergiam de entre tufos verdes de vegetação. Subindo gradualmente, São Bernardo enchia um largo trecho da paisagem, com as suas construções vetustas, de paredes enegrecidas pelo tempo, tetos escuros e baixos — cidade duas vezes secular, cujas pedras guardam tradições antigas; e, ao fundo, as chácaras do arredor esplendiam, banhadas da luz do poente. Depois, era o campo, imenso e plano,

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cercando tudo. E na extrema do horizonte a serra, cujos cimos se tingiam de um vermelho de sangue... Um silêncio de morte, a essa hora triste, amortalhava São Bernardo. E as pontes centenárias, que a atravessavam, galgando o leito quase seco do rio, adormeciam já meio veladas de sombra. Um vento frio começava a soprar. D. Malvina achou melhor voltar, para não expor a filha à umidade da noite. Voltaram. Ester, muda, tinha a cabeça baixa. A sua face parecia mais pálida ainda, exposta assim à reverberação do fogo do ocaso. Doía ver os estragos que a moléstia continuava a fazer naquele belo corpo condenado. Sob a lã escura do corpete, avultavam-lhe no peito as clavículas. Os ossos da face desenhavam-se-lhe todos, descarnados, cobertos apenas de pele, uma pele branquíssima, de anêmica; e meio da devastação que a nevrose fizera na beleza do seu rosto, só os olhos permaneciam vivos, grandes, fulgurantes, com um brilho inalterável de mocidade e de saúde. Quando passaram de novo pela ermida, Ester quis descansar. Uma pedra tosca, perto da capelinha branca, formava uma sorte de banco rústico. Para aí conduziu D. Malvina a filha, e sentou-se junto dela, em silêncio. Então, Ester ergueu os olhos para o espetáculo tristíssimo da agonia do sol. Agora, a púrpura, a ametista, o topázio, a prata, o ouro, todas as cores violentas, que forravam há pouco o poente, começavam a esbater-se, a apagar-se, empalidecendo mais de minuto em minuto. E o céu se enchia de uma névoa roxa; e essa mesma cor de viuvez, de luto, de tristeza, cobria a cidade, acolchoava de sombras violáceas a serra, o campo, a vegetação das chácaras de em torno, como se toda a natureza começasse a chorar a ausência do sol fecundador, do sol poderoso, do sol generoso, fonte de toda a alegria e de toda a esperança. Tudo empalideceu mais ainda.

Agora, a cor que dominava era o branco amarelado vagamente. E o ocaso já não dava a impressão de um campo de batalha, em que tivesse caído, nadando em sangue, um guerreiro gigantesco, ao cabo de uma batalha formidável, nem a de um templo ardente em que se celebrassem os funerais de um Deus morto. Aquele espetáculo dava mais a idéia do aniquilamento de um tísico, morrendo pouco a pouco, numa progressão contínua de miséria, de melancolia, de angústia... Uma tristeza sem nome cobria tudo. E um sino de igreja bateu lá embaixo, muito longe, pancadas secas, cuja vibração chorou prolongadamente no ar adormecido. A noite caía.

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E, de repente, como D. Malvina, até então absorta em pensamentos dolorosos, olhasse para a filha, teve um sobressalto, vendo que ela chorava, com a face inundada de fios de lágrimas, com um choro mudo, sem soluços, sem agitação, angustiosíssimo. A velha senhora abraçou-se a Ester, chorando também: — Minha filha! Minha filha! E esse grito de mãe, esse grito em que toda uma alma chorava, subiu para o espaço infinito. Ester escondera a face no seio materno. E, agora, vinham-lhe à garganta soluços longo tempo abafados no coração, queixas dificilmente recalcadas até então no fundo da alma. D. Malvina, angustiadíssima, aflitíssima, interrogava-a. Nunca a vira assim: estava tão habituada a vê-la sofrer em silêncio, sem lamentações, sem lágrimas, sem manifestações exteriores de dor! Que queria dizer aquilo? E dos lábios de Ester irrompeu a confissão de um martírio novo... A poesia da tarde invadira-lhe a alma, fizera crescer dentro dela qualquer coisa que a enchia de uma necessidade de amor indomável. E o segredo que a pobre moça trazia há meses, trancado a sete chaves no coração, lhe transbordou dele, impetuosamente, em palavras de fogo e febre, entrecortadas de pranto... D. Malvina ouvia-a, pasma, aniquilada, fulminada por essa revelação que a enchia de terror. A filha amava! Amava quase morta! A filha amava! E era já às portas da morte que aquele coração se abria para a vida, acordando para o amor! E Ester chorava, e contava-lhe tudo. Era o Castanheira... Amava-o, não sabia por quê! Era tão bom! Tão meigo! Tão delicado! Cercava-a de tantos cuidados, de tanta estima, de tanta bondade! Ah! Não podia mais! Não podia mais! Aquilo ansiava por ser dito, por aparecer ao sol, por se manifestar livremente! E era terrível aquela confissão de amor, feita por uma agonizante, naquele ermo, naquele descampado, diante daquela imensidade já quase negra de todo, que começavam a acender-se as estrelas trêmulas... D. Malvina, com a morte na sua alma, consolava a filha. Para que aquele pranto? Para que aquele desespero? Tudo se faria... E ela seria feliz, amada, renasceria para o gozo, para a saúde, para a vida! tudo se faria! Por ora, o que era preciso era descer. Já era noite! E o médico que recomendara tanto que se não expusessem ao sereno!... — Vamos! Minha filha, vamos! Ester, mais calma, sorriu para D. Malvina, entre dois beijos. E acompanhou-a, até ao carro, já feliz, sentindo-se mais forte, mais animada.

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Mas, no carro, um tremor nervoso sacudiu-a toda... D. Malvina tomou-lhe as mãos geladas, para as aquecer entre as suas, carinhosamente. E a boa senhora tentava sorrir, para não afligir a moça... Mas a revelação que lhe fora feita apavorava-a. O céu, de lado a lado, cobrira-se de estrelas. Embaixo, na treva que amortalhava São Bernardo, os lampiões da iluminação, como outras tantas estrelas, acendiam-se também. E o carro começou a descer dentro daquele deslumbramento de astros... À porta do Sanatorium, Castanheira conversava, quando o carro parou. Precipitou-se logo, amável, a receber a moça. Estava já vestido para ir ao teatro: na lapela da sua sobrecasaca, corretamente abotoada, recendia um grande bouquê de violetas. Ester apoiou-se ao braço, tremendo. Uma onda de sangue — o seu último sangue! — a última agitação da sua vida! — lhe subia ao rosto, avermelhando-o. E D. Malvina seguiu-os, acompanhando o moço com um olhar em que seria difícil discriminar a gratidão do ódio... CONSELHOS Duas horas da tarde, sol violento. O verão despede-se com inclemência, encaixando nos últimos raios do seu sol terrível toda a sua força. São Bernardo está numa modorra de sesta. Pelas ruas, calçadas de pedrinhas miúdas, ninguém... Apenas, o sol bate na calçada, faiscando sobre os grossos lajedos das pontes, abrasando o leito do rio, em cujo fundo, na parte principal da cidade, somente um fio tênue de água corre, limosa e suja, esverdeada. Lá para o fim da cidade, onde o rio, alargado, contém ainda uma porção razoável de água, andam as lavadeiras, de saias arregaçadas até acima dos joelhos, chapinhando numa lama escura, em que alveja a espuma rutilante das barrelas. Em torno, na relva da praia, a roupa lavada, posta ao sol para secar, põe sobre esse fundo verde grandes manchas claras de linhos úmidos. Brancas, pretas, mulatas — as lavadeiras tagarelam, riem. Obscenidades palpitam no ar. Cruzam-se palavrões de banda a banda do rio. Sobre pedras, vadios de chapéu de palha, gaforinha empomadada, cigarro ao canto da boca, palram com as mulheres que trabalham, num derriço de estalagem.

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E, de toda São Bernardo, só esse ponto rumoreja, com manifestações de vida e de trabalho. Todo o resto da cidade está em silêncio, num silêncio de sono, de cansaço, de insolação. No Sanatorium, quase todos os hóspedes estão recolhidos aos quartos; e o mesmo silêncio de lá fora reina aqui, apenas cortado por uma voz seca que, de quando em quando, vem da sala da roleta, gritando os números, seguida de um barulho claro de fichas de marfim entrechocadas. E no salão imenso, apenas, a um canto, o Barão de Raymond cochicha com a Leviccolo, dizendo-lhe coisas meigas ao ouvido, fazendo-lhe cócegas na nuca, cócegas que a fazem rir muito, toda derreada para o homem, pegando-lhe sobre os ombros, com os dentinhos brancos aparecendo entre as duas fitas rubras dos lábios... Para as ruas, em que ninguém passa, abrem-se as casas de negócio, quase todas vazias. Nos balcões, caixeiros, em mangas de camisa, cabeceiam com sono. Na charutaria do High-Life, porém, ponto de reunião dos rapazes, há uma grande animação. Ao fundo da casa, estendem-se os armários, largos e altos, em que se acastelam caixas de charutos em pilhas. No balcão, enfileiram-se grossos vasos de vidro, cheios de macinhos de cigarros. Sentado a uma escrivaninha, o Rodolfo de Muniz, dono da casa, pompeia, gordo, com um grande ar de contentamento, de alegria, de saúde na cara redonda e simpática, sorrindo para a tagarelice dos habitués, rindo muito e muito alto, com gargalhadas que estrondam, como girândolas,quando um deles, em voz baixa, conta um caso apimentado, uma anedota picaresca, uma aventura à Bocaccio. E a loja está cheia de palestradores. Lá está o Manhães de Azevedo fumando um Bock de lápis em punho, aproveitando uma distração do Rodolfo de Muniz, para fixar no carnet a sua nédia face bonachona de amigo da bela pândega. Lá está o Vidigal, pernóstico, lépido, com o tronco todo apertado num fraque azul rutilante, meneando a bengala, falando de cima, como homem do dia que é, graças ao escândalo dos seus amores com D. Carmita. E mais o Castanheira, torcendo o bigode, preocupado, e mais o Alfredo, e mais o Álvaro Cândido, cuja fisionomia inteligente e franca resplandece. Alguns velhos, do outro lado da sala, cochilam... Entra o Costa, o galã ajanotado da companhia de D. Ifigênia da Costa. — Bravos! Olhem o Costa como vem faceiro! Que fulguração traz nos bigodes! Que é isso, amigo Costa? Temos aventuras novas? Conte-nos essa coisa! Venham essas novidades! De onde vem você assim, radiante e empinado como um girassol ao meio-dia?

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— Deixem-me rapazes, deixem-me! Imaginem que estou neste momento saindo da cama! — exclama o formoso Costa, torcendo os bigodes lustrosos, e mirando-se no espelho dos seus imaculados sapatinhos de verniz. — Como? Saindo da cama, às duas da tarde, seu manganão? — brada o Vidigal, piscando os olhos. — Bem dizíamos nós que você vinha de uma aventura! Onde dormiu? Em que leito, em que nuvem, em que seio de estrela se aninhou você esta noite, felizardo, tão comodamente, tão bem agasalhado, tão feliz, com tanta delícia que somente agora se resolve a pôr para fora esses bigodes de Apolo! — Histórias, histórias! — diz o Costa, enfatuado, sorrindo. — São mais as vozes do que as nozes! Mas, o Castanheira depois de um silêncio: — O que é certo é que vocês, homens do teatro, são felizes! Arranjam acepipes novos, variados, fidalgos... O Costa teve um dar de ombros, entre afirmativo e desdenhoso: — Ó, filho! Mas que quer você? Se não fossem certas compensações, que seria de nós nesta medonha vida de teatro!... Ah! Você não sabe o que é a vida de um ator! Principalmente, quando a gente se sente nascida para cultivar a nobre arte de Novelli e de Emanuel, com amor e fé, vendo-se entretanto, obrigada a descer até os trololós da palhaçada, para não morrer à fome!

E, dizendo isto, o Costa dava à face um ar resignado de gênio incompreendido pelas turbas ignaras. — Olhem! — continuou ele, — agora lá vamos nós para Morro Preto aquela ignóbil cidade que fede a mofo e a pau candeia, só porque se meteu na cabeça da empresária que há de ganhar dinheiro com essa viagem! Imaginem vocês! um cristão como eu dar com os ossos em Morro Preto! Ai, ai! vida minha! Adeus, que é tarde e ainda estou com o estômago vazio. E, despedindo-se, saiu cantarolando: Ai! minha bela Florinda! Louco, perdido de amores...

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Na loja, a palestra continuou. Agora, o Álvaro Cândido, com um; vis comica admirável, contava uma conversa que surpreendera entre Barão de Raymond e a Leviccolo. E arremedava o velho conquistador dando à face uma expressão de denguice babada: — Imaginem vocês! Ela dizia que não acreditava na paixão dele. E ele exclamava — com fogo, assim: "Mas, que prova quer? diga! olhe eu sou capaz até de..." Neste ponto, o Alvaro baixou a voz. E, juntando a rapaziada, em torne de si num grupo aconchegadíssimo, concluiu a frase, em segredo. Devia ser coisa engraçadíssima. Porque uma gargalhada alta, vibrante estrondosa soou. E o Rodolfo de Muniz, pesaroso por não ter ouvido deu um salto da escrivaninha: — Que foi? Que foi? Eu não ouvi! Eu não ouvi! E ria-se assim mesmo, sem ter ouvido, farejando no riso dos outros; brejeirice grossa... As gargalhadas continuavam, quando de repente apareceu à porta o velho Marquês do Tijuco... Houve um espanto geral. Todos emudeceram. O Marquês, na porta, hesitava. Não sabia se devia entrar ou não. Decidiu-se, finalmente, e entrou. O espanto cresceu na roda. O Marquês — ali? Ele que nunca se chegava a rodas de rapazes!... Mas todos, calados e sérios, se descobriram respeitosamente. Marquês era estimado por todos os rapazes do Sanatorium. Não gostavam da Marquesa, velha fidalga emproada, que passava pelos hóspedes como Vênus pelos forjadores de Vulcano — superior, desdenhosa, impassível... Mas o Marquês cativava a todos com a sua bondade natural, com o esplendor dos seus cabelos brancos, com a sua afabilidade. Era um bom velho inofensivo, temente a Deus e aos homens, sem orgulhos, sem soberbias de grande senhor... Descobriram-se todos! — Sr. Marquês!. . . — Sr. Marquês!...

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— Sr. Marquês!... Ele, tirando o seu chapéu extravagante — u'a meia cartola de castor, de abas amplíssimas — saudou em torno a mocidade que assim o acolhia tão bem. — Não se incomodem! Não se incomodem! — e tremia todo. — Desculpem, se os vim perturbar nos seus folguedos! Continuem a rir e a brincar, que isso é próprio da sua idade! Não me demoro... Entrei, porque vi aqui uma pessoa com quem preciso falar... Aqui, o senhor! — e apontava para o Castanheira. Castanheira, surpreso, adiantou-se: — Comigo, Sr. Marquês? — Com o senhor, meu amigo! Duas palavrinhas só! Vamos dar um passeio? — Às ordens! Saíram, deixando a roda em suposições e conjeturas... Na rua, o Marquês do Tijuco, muito trêmulo, tropeçando de momento em momento nas pedrinhas ásperas do calçamento, tomou o braço de Castanheira. O rapaz, admirado e calado, esperava que o velho Marquês falasse e não compreendia nada daquilo. Dirigiram-se para o lado de leste da cidade. Aí, o deserto era absoluto. O ar pesava. Nuvens negras amontoavam-se ao sul. Com certeza, uma tempestade ia rebentar daqui a pouco. O marquês falou então, pausadamente, titubeando: — Meu amigo! Não se espante com a minha importunação de velho: a minha idade dá-me o direito de lhe dar conselhos. Demais, eu gosto muito do senhor. Tenho apreciado muito o seu caráter, a sua educação, a sua bondade. É por isso que lhe vou falar de uma coisa que me contaram hoje e que me incomodou muito. O senhor meu amigo, sem o saber e o querer, está matando aquela pobre menina! Castanheira, parou, boquiaberto, de olhos arregalados, com um grande pasmo no rosto. Chegou a convencer-se de que o Marquês enlouquecera. — Que menina, Marquês?

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E o Marquês: — A Esterzinha... a moribunda... aquela pobre Esterzinha... A menina ama-o... Não se espante! A menina ama-o! Foi a própria mãe dela quem m'o disse, em lágrimas. A menina ama-o! E isso mata-a! Naquele estado... — Porém, Sr. Marquês, juro-lhe... — Ja sei! já sei! — atalhou o Marquês, benévolo, abraçando-o. — Já sei! O senhor não tem culpa nenhuma! Trata-a com estima, com respeito, com dó, — e ela ama-o. Aí tem! O senhor não tem culpa nenhuma... Mas a menina ama-o! E o que é preciso evitar é que choques como esse continuem a abalá-la... Já tem a vida pendente de um fio, tênue como um fio de teia de aranha... Coitadinha! O casamento é impossível, bem sabe! Nem o senhor vai agora casar com uma agonizante! E o Dr. Lemos diz que é preciso ver se ao menos, para consolo da mãe, lhe prolongam a vida por mais alguns dias, evitando-lhe comoções... Castanheira, aterrado, estava lívido. — Que desgraça! Afirmo-lhe que nunca suspeitei disso! Juro-lhe! E que fazer agora? Diga, Marquês! Farei tudo! Farei tudo! Eu sempre sou muito infeliz! Nunca suspeitei isso! Que fazer agora? — Veja se vai dar um passeio... A sua presença mata-a! Faça um sacrifício, meu amigo! Dê um passeio! E creia que só lhe disse isto pelo bem que quero ao senhor e a ela! — Partirei! Partirei, Marquês! Isto só a mim acontece! Que desgraça! — O senhor não é culpado! O senhor não é culpado, mancebo. E vamos, vamos, que já está chovendo... De fato, chovia. Do céu, que as nuvens agora cobriam todo, caíam grossos pingos d'água. Castanheira abriu o seu guarda-chuva. E, dando de novo o braço ao Marquês, levou-o ao Sanatorium. Quando lá chegaram, chovia a potes... O velho fidalgo tiritava. Eram quatro horas. No vestíbulo, a Marquesa esperava-os, de pé, colérica, com a sua eterna capa de seda cor de cinza desdobrada, sobre o chão, braços cruzados, face franzida, numa atitude de inquisidora-mor.

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Castanheira, preocupado, cumprimentou o casal e foi para o seu quarto. O bom velhinho, que acabava de praticar uma boa ação, tremia diante da mulher. E ela, com um duro tom de voz: — Ora, Marquês! Andar apanhando chuva deste modo! E, de mais a mais, a passear com um janotinha peralta... Ora, Marquês, vá mudar os sapatos, vá mudar os sapatos, ande! Ele obedeceu. Já no corredor, a marquesa, insistindo na censura, resmungou: — Isto não é próprio da sua idade, Marquês, isto não é próprio da sua idade! E, empurrando-o para o quarto: — Nem da sua idade... nem da sua hierarquia.

AVENTURAS NOTURNAS Castanheira partiu, com efeito, na madrugada seguinte. Na véspera, contando aos amigos o estranho episódio que motivava a sua retirada, tinha ele nos lábios um sorriso amarelo, entre sardônico e compungido. Dias antes, uma dessas discussões sem rumo com que se mata o tempo em falta de coisa melhor, Manhães de Azevedo sustentava a verdade daquele verso de Gonçalves Crespo: Não amar sendo amado é um trisre horror. e afirmava saber por experiência própria quanto é penoso e irritante ser perseguido por um afeto que a gente não compartilha. Castanheira achava o contrário; era uma satisfação para o orgulho, um culto lisonjeiro para a superioridade de homem. Em que podia o amor de uma mulher, mesmo não correspondido, perturbar a vida do rapaz mais despreocupado? Agora, que os fatos se encarregavam de provar-lhe a falsidade, o erro da sua opinião, certamente ele não criminava a pobre Ester. Que culpa tinha ela da fatalidade que a perseguia? Trazer a morte no corpo e a morte na alma! Que horrível destino o da infeliz moça, que sem dúvida tinha dotes morais capazes de fazer a ventura de um homem! Castanheira padecia da nevrose dos artistas, tinha às vezes curiosas aberrações dos sentidos, ilusões

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óticas, desvios auditivos; mas não chegava ao supremo delírio de amar e desejar uma agonizante. Ester lhe inspirava, como a todos, em especial aos mais ternos de alma, extrema simpatia e extremo dó; ao vê-la prostrada por acessos histéricos, gemendo e contorcendo-se, quase lhe vinham as lágrimas aos olhos; e, sempre que se lhe oferecia o ensejo de conversar com a pobremenina, procurava cercá-la de atenções carinhosas de solícitos cuidados, e distraí-la um pouco da sua habitual tristeza, falando-lhe de coisas alegres, dando-lhe flores e livros... Pintara, de propósito para ela, o melhor dos seus quadros a óleo; uma tela delicadíssima de luz e de tons, que representava a paisagem do morro do Bonfim, em pleno sol, numa deliciosa manhã. Sabendo que Ester padecia por sua causa, pesar imenso o afligiu, complicado de certo remorso, embora nenhuma responsabilidade lhe coubesse no caso. E, se bem que lhe custava muito deixar São Bernardo, onde tinha tão boa roda de amigos, não hesitou no cumprimento do dever, e seguiu para João Alves, estação próxima, onde havia um hotel regular. Na véspera, à noite — uma noite serena e tépida, azul e constelada — passeava ele pela Praia, com Manhães, Álvaro Cândido e Alfredo Pereira. Eram onze horas e meia, e raros transeuntes faziam soar a passos rápidos a laje do calçamento, ou surgiam perfis incertos e fugitivos, na curva negra das pontes. No Sanatorium tudo escuro e cerrado. Apenas no teatro havia luz, e povo à porta; estava em cena o Rei Que Danou, récita de repetição, a que não fora pessoa alguma do hotel. Para além, a cidade dormia. Só as torres esbranquiçadas e esguias pareciam velar, sentinelas imóveis de um acampamento envolto em sono. — Tu vens, então, para o baile? Não deixes de vir. A Quermesse é depois de amanhã, creio... — À Quermesse não posso vir, porque naturalmente D. Ester há de aparecer lá; e, pois que me fazem, com ou sem razão culpado da sua desgraça... Deus me livre de causar-lhe novos abalos! — E o passeio à Casa da Pedra, em que nós contávamos divertir-nos tanto! O que vamos perder todos! Sem ti já a nossa sociedade está desmanchada... Mas vem para o baile, que diabo! A D. Ester, doente assim, não há de querer dançar, nem irá ao salão. A mãe não lho consentiria. — Enfim, não prometo, porque estou muito impressionado com esta complicação, toda. Mas farei o possível para vir.

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— Vens, sim! Então, eu não te conheço! Não resistes! — afirmou o Álvaro Cândido. — Mas não sabes de uma coisa! de uma coisa, como direi?... Imortal! Magnífica! Estupefaciente! E desatou numa gargalhada intextinguível. — Que é? Que é? — Se vocês vissem! Eu tenho um jeito para repórter! Por acaso, ou por instinto, quando sucede qualquer historiazinha de moer, estou sempre em termos de ver de ouvir tudo... Hoje de manhã... Vocês sabem que o Vidigal sai da cama tarde; também... eu passava pelo quarto dele às seis horas, mais ou menos, e percebi bulha lá dentro. Parecia uma altercação. Chego-me mais perto, e que escuto?... A espanhola a brigar com o Vidigal enciumada, frenética, e ele, muito confuso, a defender-se, falando baixo, suplicando à danadinha da mulher que o não comprometesse com berreiro... Ora, não nos faltava senão isto! Aqui temos visto coisas! Mas, justamente, uma altercação, entre gente que vinha pouco atrás deles, lhes fez voltar o rosto, a todos quatro, a um tempo Um homem e uma mulher descompunham-se mutuamente. — Bêbado! Patife! — Prostituta! Rameira! Cala já essa boca, senão acabo contigo aqui mesmo! — Não calo! Hei de falar até morrer! Desaforo! — Oh! sim? Pois toma! E o estalo de uma bofetada sonora abafou a palavra nos lábios da mulher, que, parando, começou a chorar, cobrindo o rosto com as mãos; os soluços sacudiam-na toda; os seios arfavam, em respiração curta e agitada. Os rapazes iam-se aproximando, para ver se acalmavam os ânimos, enquanto o sujeito repetia: — Prostituta! Mulher perdida! E ela levantando a cabeça, protestava, furiosa: — Ah! Maldito! Mil vezes antes eu fosse uma mulher perdida do que ter-me casado com este infame ajudante de guarda-livros da companhia paulista, importadora de drogas! O marido deu-lhe um beliscão no braço e dirigindo-se aos moços:

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— Alguns dos senhores tem aí um apito? — Não temos — respondeu Manhães — e ainda que tivéssemos não o emprestaríamos, compreende? Não havíamos de concorrer para que o senhor mandasse a sua esposa para a cadeia... A mulher olhava para os rapazes com expressão de enternecido reconhecimento sem dizer nada; mas o marido, calmo e firme, redarguiu: — Senhor! Não se meta em discussões de família! Não se meta em discussões de família! E, dando o braço à mulher, seguiu pela praia adiante, calado e, na aparência, calmo; mas daí a pouco, passando a ponte do Rosário, berrava de novo: — Prostituta! Rameira! E ela perorava ainda, ouvindo-se claramente: — Bêbado! Patife! — Vocês já viram idiota igual? — exclamou Manhães, rindo-se. — Pede-me um apito para mandar prender a mulher, e depois diz-me que não me meta em discussões de família! Não se tem vontade de atirar ao rio um animal destes? — Ah! Que sucesso faria isto numa revista de acontecimentos de São Bernardo, como a que o Modestino arranjou este ano! Ajudante de guarda-livros da companhia paulista importadora de drogas! Uff! a mulher tem fôlego de gato para fazer discurso tamanho! Alvaro Cândido esbofava-se, e, cansado aspirava largamente o ar da noite. E Alfredo Pereira, distraído, pensando em París, para onde o chamavam saudades incessantes, trauteava entre dentes a famosa cançoneta: Entrez, breves enfants! Je suis le pèr'la victoire! No dia seguinte, pela manhã, já ausente o Castanheira, estavam os outros três encostados ao portão do parque, apreciando as manobras de Romaguera, que, do outro lado do cais, domava um boi xucro, com toda a maestria e proficiência de experimentado gaúcho, quando u'a mulher, angustiada, chorosa, com os cabelos em desalinho, se agarrou a eles com ambas as mãos. Estremeceram com a surpresa, e, reparando na sua mulher, conheceram-na pela mesma que na noite antecedente altercava com o marido pela praia afora.

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— Que é? Que tem a senhora? Qual a causa da sua aflição? Diga... Ela mal podia articular uma palavra. Depois de um grande esforço, balbuciou: — Oh! Senhores! Se soubessem a desgraça que me aconteceu! — Mas que foi? Conte conosco, se em alguma coisa lhe podemos valer... — Meu marido envenenou-se!... — Envenenou-se! Que nos diz! — Sim! Envenenou-se com arsênico! Que é que eu hei de fazer? a quem recorrerei nestas circunstâncias? Os três rapazes caíram num espanto doloroso e amargo. Que diabo! Estavam envolvidos num acidente bem desagradável! Um envenamento! Um suicídio! Além da morte do homem, ainda teriam, talvez, de aturar interrogatórios, prestar esclarecimentos à polícia; que maçada! Que enorme maçada! Entretanto, a mulher suspirava e gemia: — Quanto eu tenho sofrido por causa daquele maluco, aquele perverso! Sacrifiquei-me, para casar com ele, contra a vontade de minha família! E ele me bate sempre... e me insulta... e agora... se en... ve... ne... na... ai! ai! minha vida! — Mas minha senhora, tenha um pouco de coragem e presença de espírito. Vamos lá; podemos acompanhá-la à casa do delegado de Polícia... Mas como foi isso? Como é que ele se envenenou assim? — Não pude impedir... Ele encheu um copo d'água, dissolveu nele um pó branco, e deitou-se na cama, à espera da morte, ai! ai! — Mas há muito tempo? — Há três horas, mais ou menos. Ai! Ai! — E ele está roxo, negro, com os olhos revirados, a boca torta, gritando com dores? — Não, senhor: está deitado na cama, lendo o jornal!

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— Ah! minha senhora! Então não se envenenou! É uma comedia! Bebeu um copo de água, com um pó branco... O pó branco é bicarbonato de sódio, para a dispepsia! A mulher, ouvindo isso, mudou de fisionomia como por encanto; espalhou-se-lhe pelo rosto uma expressão de asco e desprezo; e ela, raivosa, voltou as costas aos rapazes resmungando: — Já é a terceira vez que esse patife diz que se envenena e não morre, o ladrão! — Ah! Que espetáculo perdeu o Castanheira! — ajuntou Alvaro Cândido. — Como ele se havia de rir! — É exato — concordou Alfredo Pereira. — Nem mesmo em Paris, encontrei tipões originais como essa sirigaita e o seu respectivo consorte. E colhendo no jardim um belo cravo vermelho, assobiava uma cançoneta, composta pelos estudantes do baile dos Quat'z Arts, debicando o casto e virginal senador Berenger, da sociedade de repressão contra as ofensas ao pudor público...

A CASA DE PEDRA O passeio à Casa de Pedra realizou-se num sábado. Por iniciativa da Marquesa do Tijuco, ia-se escolher na maravilhosa gruta o melhor local para a projetada capela de Nossa Senhora de Lourdes. Na véspera, Silveira Jacques, encarregado pelas senhoras de dirigir a parte econômica da excursão, passara o dia organizando os farnéis para o almoço que devia ser servido ao ar livre, sobre a relva. Encomendara um trem especial que levasse os excursionistas, e contratara carregadores. Esse trabalho distraiu-o, arrancando-o à melancolia que pesava sobre a sua vida. Já ninguém o via nas salas do hotel. Os credores invadiam o Sanatorium a toda hora, como uma praga de gafanhotos. A mãe dele quase não tirava a mantilha dos ombros e o chapéu da cabeça: entrava e saía, pálida, com um clarão forte nos olhos, dando caça ao dinheiro, visitando capitalistas, tornando-se importuna junto aos banqueiros. As filhas já apareciam sem as jóias, que antigamente ostentavam. E Silveira Jacques, quando não estava fechado no quarto, estava na sala da roleta. Oh! O jogo era cada vez mais forte! Os dois irmãos, proprietário e gerente, atiravam sem cessar para cima do tapete verde toda a féria do Sanatorium. E tudo caía ali e ali desaparecia, absorvido pela voragem: salário de criados, dinheiro destinado ao pagamento dos fornecedores, tudo!

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Uma assombrosa falta de chance perseguia o médico; o Barão de Raymond e Romaguera tinham mesmo descoberto um meio infalível de ganhar: e esse meio consistia em fazer sempre jogo contrário ao de Silveira. E o desgraçado persistia, acumulando perdas sobre perdas, possuído de uma loucura sem nome. Também a sua saúde alterara-se profundamente: cavavam-se-lhe as faces e dois fundos círculos roxos lhe rodeavam os olhos apagados. Os preparativos do passeio sacudiram-lhe o corpo, arrancando-lhe o espírito às preocupações do jogo e das dívidas. Em mangas de camisa, agachado perto dos grandes cestos, que deviam transportar as provisões, as suas mãos nervosas arrumavam os queijos, acondicionavam as garrafas de vinho, de cerveja e de conhaque, acomodavam as galinhas assadas e os roast-beefs. De pé, sempre majestosa, a Marquesa dava-lhe conselhos, presidindo àquela faina. Quando o sol nasceu, na manhã de sábado, já o parque estava cheio de gente alegre, que se agitava e palrava, esperando a hora da partida. A lancha Lucy e as torpedeiras, espigadinhas, nos seus vestidos de cassa, saltitavam em torno da Leviccolo, guardadas de perto pelo olhar da Aquidabã, que só a muito custo, e por amor de Nossa Senhora de Lourdes, consentia naquela pouca vergonha. Sim, porque a Leviccolo também ia ao piquenique; e não ia só ela! Ia a Lottuli, ia o Mendes, ia quase toda a troupe. A Marquesa do Tijuco tinha exigido das senhoras esse sacrifício: a milagrosa Virgem de Lourdes valia bem um pequenino constrangimento. D. Carmita, com o seu leve guarda-sol de seda e rendas chicoteando os tinhorões do jardim, ouvia, com risadinhas estrepitosas, os madrigais pesados do Barão de Raymond. Dizia-se no Sanatorium que a cotação do Vidigal baixara muito. Agora, o Barão era bem acolhido. Por que D. Carmita atirara-se também à roleta, estonteadamente: e, uma noite cm que jogava ao lado dele perdera tanto, que Raymond pusera à sua disposição todo o dinheiro que tinha na carteira. Não faltavam más línguas que atribuíssem a essa liberalidade do velho argentário as condescendências da moça, tão esquiva outrora aos seus galanteios, e agora tão carinhosa, tão meiga, cochichando com ele pelos cantos... Romaguera, despeitado, urrava com aquilo. Mas, quem mais sofria era Vidigal — o rei destronado. Agora mesmo, no parque, nesse esplêndido amanhecer de sábado, o olhar do moço não deixava um minuto o grupo formado pelo baboso Barão e pela encantadora rapariga. Houve um momento em que o seu olhar encontrou o

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olhar de Raymond: o capitalista, medindo desdenhosamente Vidigal, meteu a mão na algibeira da calça e pôs-se a remexer moedas, com um ar de desafio... Dois novos hóspedes do Sanatorium eram requestados pelos rapazes; eram dois homens de letras, de nome conhecido. Tinham chegado na véspera. Manhães de Azevedo, amigo de ambos, apresentara-os logo à roda. Um deles, Vicentim de Guimarães, jornalista e advogado, era magro, pálido, rosto imberbe, de criança, apesar dos seus 38 anos. Muito míope, moviam-se-lhe os olhos inquietos por trás dos grossos vidros do pince-nez de tartaruga. O outro, Olívio Bivar, poeta e cronista feíssimo, vesgo, muito míope também, olhava para todos de través, analisando fisionomias e toilettes. D. Carmita rira muito, quando lhe fora apresentada: achava-lhe muita semelhança com um cavalo marinho e pusera-lhe logo o apelido de hipocampo, dizendo ao Barão de Raymond: — Veja, Barão, como esta vida é cheia de desilusões! Lê a gente os versos de um poeta, começa a imaginar que eles saíram da cabeça, e do coração de um Apolo, e reconhece afinal que saíram dos cascos de um monstro destes! — Não pense em poeta, minha querida! Toda essa gente é uma corja de caloteiros e de bilontras!... — disse, encolhendo os ombros, o barão. E continuou a despejar dentro dos ouvidos da moça uma catadupa de madrigais bestas. Às sete horas, puseram-se todos a caminho. Ao tomar o trem, uma confusão indescritível reinou. Nos vagões de recreio, abertos, homens e senhoras tomavam lugar, misturados, aos empurrões e às gargalhadas, escandalizando o povo ocioso que correra a assistir o embarque. Silveira Jacques, suando, atrapalhadíssimo, andava de grupo em grupo, distribuindo pelos carros os cestos. No primeiro vagão, a gente séria se aglomerava: o Marquês, que ia àquele divertimento com a compunção de quem vai comungar, a Marquesa, várias senhoras de idade, a pálida Ester, que não quisera perder o passeio, vários cavalheiros aprumados. Mas o vagão imediato estava cheio de uma vozeria infernal. Dona Carmita, a Leviccolo, a Lucy, as torpedeiras, a Lotulli, a atriz Anita, os atores, o poeta Olívio, Manhães de Azevedo, Vicentim de Guimarães, Vidigal, a Concina, Álvaro Cândido e Alfredo Pereira faziam uma algazarra demoníaca. Naquela roda, o Barão e Romaguera sentiam-se a princípio deslocados, principalmente por causa da vizinhança dos três homens de letras, que lhes conheciam a fundo a crônica. Mas a alegria geral não tardou a ganhá-los também.

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O ator Mendes propôs que se saudasse a partida com um gole de conhaque. E brandiu no ar, triunfantemente, uma garrafa de Hennessy, já desarrolhada. Mas uma dificuldade surgiu: não havia copos! A Leviccolo, de um salto, pôs-se de pé sobre o banco, bradando: — Copos? Copos para quê? Para beber conhaque? Isto bebe-se assim, filhos! E, arrebatando a garrafa das mãos de Mendes, levou-a aos lábios. — Bravo! Bravo, Leviccolo! — clamavam todos, numa aclamação. O trem partia. A longa fila dos vagões punha-se já em movimento. E as palmas, os bravos, os hurras, redobravam. Leviccolo brandindo no ar a garrafa, garganteava despedindo-se da estação: Le gai tin-tin, Le glou-glou d'un flacon... O trem, agora, apressava a marcha, deixando atrás de si um longo penacho ondulante de fumo. As casas da cidade desapareciam. E quando, passadas as últimas, a planície se desdobrou, imensa e verde, ainda a vozinha esganiçada da Leviccolo soava no ar límpido, fresco, sossegado: Le gai tin-tin, le glou-glou d'un flacon... Le printemps parfumé, Le vin, le jeu, j'ai tout aimé!... Quando ela acabara a copla, sentou-se. D. Carmita beijou-a, doida de alegria. Mas o Barão repreendeu-a docemente, em voz baixa: — Olhe que eu fico com ciúmes... Todo o vagão delirava. O ar livre, o movimento, embriagavam os rapazes. As pilhérias, os calembours, frases rápidas de malícia cruzavam-se em esfuziadas alegres. As torpedeiras, muito excitadas, tendo bebido conhaque pela primeira vez na vida, chegam-se muito para a Concina, para a Anita, para a Lotulli. Mas, a lancha Lucy, atacada de um acesso de sentimentalismo bucólico, contemplava a paisagem.

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Era, com efeito, admirável, o panorama. Sob o céu azul, lavado, o campo corria ondulando, verde-claro aqui, verde-escuro quase azul mais adiante. O trem, por uma ponte de madeira, galgou um rio crespo, de águas turvas, que burburinhavam e espumavam. O poeta Olívio Bivar, em silêncio, agora, admirava aquilo, com olhos de turista. De repente, sentiu que lhe tocavam o ombro. Voltou-se, era a lancha Lucy. — Não acha que é belo isto, doutor? Só então Olívio reparou nela. Feiazinha, de rosto sardento, dentes podres, olhos piscos, tinha na face uma expressão tão cômica de pieguice, que o poeta esquivou-se com uma frase banal à conversa e atirou-se estupidamente a fazer corte à Concina. Manhães de Azevedo dava a Vicentim de Guimarães informações: contava-lhe o caso de D. Carmita, mostrava-a no meio dos seus três adoradores; o Romaguera, vermelho e bronco, sob o descomunal chapéu-do-chile; oVidigal, preocupado, buscando em vão disfarçar o ciúme que o minava; e o Barão de Raymond, muito cheio de si, impando de vaidade e de insolência trincando um havana... E concluía: — Fiquem você e o Bivar aqui em São Bernardo uns dois ou três dias mais e verão o desfecho deste drama; ou eu me engano muito ou vai sair disto o diabo a quatro. O trem parou. Agora, era preciso andar a pé dois quilômetros. Mas a manhã estava fresca; um montão de nuvens encobrira o sol. Tudo convidava ao prazer da caminhada longa, pelos atalhos ensombrados, cheirosos, atapetados de relva florida. As moças precipitaram-se logo a correr, como loucas, levantando as saias, mostrando pedaços de pernas. E os dois quilômetros foram vencidos sem fadiga, apenas um acidente sobreveio, provocando uma hilaridade geral. Romaguera, querendo fazer-se amável, tentara subir a uma árvore para apanhar uma parasita que seduzira D. Carmita. Dependurou de um galho o corpanzil de magarefe, e veio abaixo, com estrondo, de barriga para o ar, corrido de vergonha e com o cóccix amassado. Vidigal aproveitou a ocasião para descarregar sobre alguém o seu mau humor; e disse em voz alta, rindo: — É o que acontece aos elefantes, que se querem fazer macacos! Romaguera resmungou urna ameaça em voz surda. Mas o Barão aplacou-o:

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— Não se zangue, homem! Todos caem nesta vida!... Nisto, as torpedeiras que iam na frente da caravana, pararam, batendo palmas: — A Casa de Pedra! A Casa de Pedra! De fato, a uma volta do caminho, uma rocha surgiu, altíssima, coberta de uma vegetação esplêndida. Árvores enormes agarravam-se às pedras, e subiam, bracejando, para o céu, E, ao rés-do-chão, três furnas se abriam, negras e largas. Eram as três portas da gruta. A CASA DE PEDRA De pé sobre um pedaço de rocha, Silveira Jacques bateu palmas, pedindo atenção: — Minhas senhoras e meus senhores! É preciso pôr a votos uma questão importante: devemos almoçar antes ou depois da visita à gruta? Romaguera opinou que a visita devia preceder o almoço. Achava que depois se almoçaria com mais vagar, com mais descanso. Mas levantou-se um protesto unânime contra isso. Eram 10 horas. Os estômagos tornavam-se exigentes. O Barão de Raymond, grande comilão, dava argumentos: — Não é por mim que falo; não é por mim, que não tenho fome! É por essas senhoras, que não podem ficar assim, e estão caindo de fraqueza! E a Leviccolo, com o seu sotaque meio italiano, meio francês: — Eu não posso mais! Estou arrebentando de fome! Depois se tem de suceder alguma coisa lá dentro, sempre é bom que a gente esteja com a barriga cheia! Trêmulo, ouvindo isto, aproximou-se da atriz, o Marquês do Tijuco: — Como? Como? Que é que a senhora acha que possa acontecer lá dentro? A Leviccolo riu-se do pavor do velhinho. Depois, muito séria, olhando-o fixamente, para o atemorizar ainda mais: — Ah! Senhor Marquês! É preciso contar com tudo! Pode haver um desmoronamento e...

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— Um desmoronamento? Um desmoronamento! — dizia o Marquês, apavorado. — Então, a senhora acha que... Não pôde acabar. Um beliscão, que lhe torturou o braço, obrigou-o a voltar-se: era a Marquesa, indignada. Ele choramingou ainda: — Um des...mo... ro... na...mento, senhora! Um desmoronamento! Mas a Marquesa, indignada, puxou-o, repreendendo-o: — Um homem daquela idade e daquela posição, conversando com uma atriz!... Já sobre a relva, os dois garçons do Sanatorium, que tinham vindo com Silveira Jacques, dispunham, em cima de jornais abertos, as iguarias. Todos, confusamente, se atiraram ao chão. A Marquesa e as outras pessoas circunspectas da roda sentaram-se com as pernas cruzadas, à turca. O velho, agachado, quase desaparecia sob as saias amplas da esposa. A Leviccolo esticou-se por terra, como uma criança, de barriga para baixo, e pôs-se a sacudir no ar as pernas, que apareciam, calçadas de meias pretas, até acima do joelho, mostrando as ligas de seda cor-de-rosa. A Concina, a Anita, a Lotulli, seguiram logo esse exemplo. D. Carmita hesitou um momento; mas não tardou a fazer o mesmo, com grande escândalo da Marquesa e das outras senhoras. Só a lancha Lucy e as torpedeiras, contidas pelo olhar da mãe, ficaram sentadas com decência, apesar das recriminações da Leviccolo, que lhes gritava: — Deitem-se, meninas! Não tenham medo de mostrar as pernas! Que diabo! Nem todos têm a obrigação de possuir pernas bem feitas!... Os rapazes, solícitos, começaram logo a distribuir as fatias de roast-beef, pernas e asas de galinha, nacos de pão. As garrafas de Bordeaux corriam de mão em mão e de boca em boca. D. Carmita, lindíssima na sua fresca toilette de sura cor de palha, comia gulosamente, encantada com aquela pândega ao ar livre; e, rindo-se muito, muito coquete, lambia as pontinhas cor-de-rosa dos dedos. Já estava familiarizada com as atrizes: jogava-lhes bolinhas de pão. E a Leviccolo, chamava-lhe "meu bem", com um requebro canalha na voz. A Marquesa do Tijuco, sem falar, mastigava com método, com regularidade, com agitações pausadas das mandíbulas fortes. Quando teve sede, olhou com desprezo para Vicentim de Guimarães, que lhe oferecia sorrindo a garrafa para

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que ela bebesse, como as outras pessoas, pelo gargalo: tirou da sua bolsa de viagem um copinho de prata, encheu-o, e esvaziou-o lentamente. Em frente dela, o Dr. Silveira Jacques bebia repetidas vezes e muito. Sombreara-se-lhe de novo a fisionomia, avincara-se-lhe a testa. Calmada a agitação das primeiras horas, as preocupações lhe pesavam outra vez na alma, terríveis e intoleráveis. Para ele, talvez aquele bom almoço ao ar livre, fosse um como festim de Baltazar; e diante do seu espírito angustiado passeava o espectro da falência próxima... A falência! a desonra, a miséria, a fuga, a prisão talvez... E o desventurado médico afogava a sua tristeza em ondas de vinho Bordeaux. Às onze horas, um grito soou: — À gruta! À gruta! Levantaram-se todos, vencendo a custo a vontade que os invadia de ali se deixarem ficar, de papo para o céu, sem movimento, no delicioso torpor da digestão feliz. D. Eufrásia Fontoura, a Aquidabã, chamava as filhas: — Meninas! venham para o meu lado! Não quero que se percam de mim lá dentro! E a lancha Lucy, com um muxoxo: — Ora, vejam só! Como se pudesse haver lá dentro algum bicho que comesse a gente! Silveira Jacques, um tanto trôpego, com a língua um pouco presa, anunciou, em voz alegre, uma surpresa para quando estivessem todos no interior da Casa de Pedra. — Que é? Que é? — clamavam as raparigas — Verão! — dizia ele. — É uma coisa que aqui vai comigo. E mostrava um embrulho pesado, que trazia sobraçado. Entraram. Um frio cortante, uma sensação de umidade doentia reinava lá dentro, causando arrepios. Romaguera, Raymond e Alfredo Pereira levavam lâmpadas de querosene, a cuja luz dúbia paredes molhadas apareciam. Houve, entre as

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senhoras, gritinhos de susto, abafados logo. Um silêncio fundo, de admiração e de respeito, diante do maravilhoso espetáculo, pesou sobre o grupo. O chão viscoso, coberto de espaço a espaço de tufos de heras, ora descia, ora se elevava; grossos troncos de árvores seculares irrompiam do solo, agarrando-se às rochas, despidos de folha, rugosos e escuros, como se também fossem de pedra. No alto, grandes blocos de granito formavam abóbadas fantásticas. E grandes lagartos apareciam e desapareciam, fugindo, rápidos, com uma irradiação de escamas cor de esmeralda. A galeria estreitou-se de súbito, numa garganta escura. E transposta ela, uma exclamação de surpresa saiu de todas as bocas. Estavam numa enorme sala. Do teto, como lustres fenomenais, pendiam colossais estalactites, de cujas extremidades pingavam, num murmúrio brando, gotas de água azulada. Do chão irrompiam estalagmites imensas, chatas estas, à feição de sofás e cadeiras, finas e caprichosamente recortadas aquelas, à maneira de candelabros. Todos quedavam, mudos de assombro. A própria frivolidade das mulheres, empolgadas pelo grandioso do espetáculo, se havia sustado. Ao fundo do salão, uma rampa subia, em aclive suave. Para onde? O cimo estava alagado de trevas, misterioso e fechado. D. Carmita e Leviccolo, queriam logo ir verificar o que lá havia. Mas o Barão Raymond atalhou: — Não, senhoras! Agora, a senhora Marquesa vai deliberar se convém ou não convém levantar aqui dentro a capela. Tenham paciência! Sempre será tempo de satisfazer essa curiosidade. Cercaram todos a velha Marquesa. E Vidigal, vendo que Romaguera e Raymond já estavam empenhados numa conversação larga com a nobre senhora, aproximou-se de D. Carmita. Ela parecia que esperava por isso, tão afastada se conservara. Houve entre os dois uma troca viva de palavras. E ambos se esgueiraram disfarçadamente para o lado escuro da gruta. Ninguém deu por isso. A discussão ia animada. A velha Marquesa, satisfeitíssima com o local, animava-se, quase resolvida já: — É magnífico! É magnífico! Imaginem aqui, no centro deste salão, a capelinha tosca... Vai ser uma maravilha! — Oh! vai ser uma lindeza! — apoiava o Marquês.

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— Vai ser um encanto! concordava Romaguera. — Estupefaciente! — exclamou o ator Mendonça, o careteiro. — Pois eu acho que vai ser uma porcaria! — bradou, indignado, o Vicentim de Guimarães, que bebera talvez um pouco demais. Voltaram-se todos, espantados. A face da Marquesa inchou, apoplética. O Marquês, tremendo, olhou para os lados, já procurando esquivar-se. — Como diz o senhor? — perguntou Romaguera. — Digo que vai ser uma porcaria! — afirmou o jornalista, com fúria. — Vai ser uma porcaria! É uma idéia que só podia caber em cérebros fanatizados. Pois, então, por causa da Senhora de Lourdes querem os senhores estragar esta preciosíssima obra da natureza?! Com todos os diabos! Não faltam por aí pedaços de pedra em que se possa aninhar a tal Senhora de Lourdes! Ponham-na lá fora, ponham-na onde quiserem! Mas não me estraguem a gruta, com todos os diabos!... — Credo! — clamou a Marquesa, benzendo-se. — Jesus! — berrou a Aquidabã, persignando-se. — Padre-nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome... — resmungou o Marquês. E Romaguera, fazendo-se muito católico, para agradar à Marquesa, perguntou: — Mas, então, o senhor não acredita nas virtudes da Senhora de Lourdes? Vicentim de Guimarães encolheu os ombros: — Creio, homem, creio! Mas não se está tratando disso! O que digo é que não se deve estragar isto! Não estou duvidando dos milagres! Não discuto se é verdade ou não que, em Lourdes, Nossa Senhora apareceu à pastora Bernadette, com duas rosas de ouro aos pés e um rosário de contas de marfim nas mãos... O que eu digo é que não faltam lugares melhores do que este para a capela! Demais — concluiu ele — não tenho nada com isso! Não sou pago para exercer o cargo de zelador das maravilhas naturais de São Bernardo! Façam o que quiserem!

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E afastou-se, acendendo um cigarro. Olívio Bivar quis atenuar o escândalo, que o colega provocara. E insinuou: — É, Vicentim é cristão! Ele era incapaz de falar mal de Nossa Senhora! Não agora, que está havendo no Velho Mundo uma volta ansiosa à crença, à fé, à religião... Já devem saber que o próprio Zola, o grande mestre, está escrevendo um romance sobre os milagres de Lourdes... — Sim! — disse a Marquesa, com desdém — Zola? Conheço! É um escritor imundo! — É um porco! — disse Romaguera. — É uma besta! — ganiu o Barão de Raymond. Olívio Bivar empalideceu. Mas seguiu o exemplo de Vicentim, e afastou-se do conclave. Mais serena, a nobre senhora de Alpurús dissolveu a reunião com estas palavras: — Meus senhores! Deixemos que os infiéis conspirem em paz contra a glória de Deus! E comprometamo-nos aqui, de joelhos, numa prece à Nossa Senhora, a envidar todos os nossos esforços para que, de hoje a um ano, a milagrosa Virgem de Lourdes tenha neste lugar a sua capela. E ajoelhou-se. Em torno dela, todos fizeram o mesmo. Na penumbra, que enchia a Casa de Pedra, apenas vagamente espancada pela claridade das lâmpadas de querosene, esse grupo ajoelhado tinha qualquer coisa de solene e de belo, que comovia. E a bela oração da ave-maria começou a cantar no ar adormecido, ciciada por trinta vozes: — Ave-maria, cheia de graça... E, no silêncio das largas abóbadas de pedra, esse rumor crescia, dilatava-se, enchia toda a gruta... A CAVERNA

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Continuemos agora a nossa visita! — disse Silveira Jacques, quando finda a oração, todos se levantaram. — Vamos subir! E preparem-se para a surpresa que lhes anunciei! Vão ver! vão ver! — Subam com cuidado! — sugeria o Barão de Raymond, já galgando a rampa de pedra. — Isto aqui escorrega como se estivesse untado de sebo! Romaguera, muito preocupado, dera por falta de D. Carmita. Espantava-se de não ouvir a voz clara da moça entre as vozes das outras. Mas não podia certificar-se da ausência dela, no meio da treva. Havia tanta gente! Era tão fraca a luz dos lampiões!... E acompanhou os outros, de quem se não podia separar, porque uma das luzes lhe estava confiada. Quando chegaram ao alto do aclive, viram que a gruta aí formava uma sorte de andar superior. Era uma série de galerias contornando o grande salão. Nelas, vinham outras rasgar-se em bocas negras. — E não é que é fácil a gente perder-se aqui dentro? — dizia a Leviccolo. — É um verdadeiro labirinto! Raymond segredou-lhe logo: — Se quisesse, podíamos perder-nos juntos... Seria tão agradável! Não acha? — Não — respondia ela. — Só gosto dessas coisas no teatro. Meu caro Barão, já não estou em idade de me meter em romantismos... — Mazinha! A coisa teria graça, quando por mais não fosse, pela bela peça que pregaríamos no Mendes... — Ora, deixe o Mendes, Barão! Vive sempre a falar-me do Mendes! — Mas está claro! E incompreensível que a senhora, bela e requestada como é, só preste atenção a esse cabotin... — Tome cuidado! Olhe que essa palavra é uma injúria para toda a classe! E deixe-me falar-lhe com franqueza, pela última vez... Tinham parado à entrada de uma nova galeria. Desse ponto, por uma espécie de janela aberta na pedra, dominava-se todo o interior da fenomenal caverna. No alto rasgava-se uma fenda estreita, e um feixe de luz do dia entrava por aí, vaga, trêmula, incerta, espreguiçando-se pelas rugas do granito, e caindo de chofre no chão, numa larga nódoa amarela.

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Raymond e Leviccolo, num momento de silêncio, ouviram na mudez absoluta de tudo, claro, distinto, o barulho das gotas de água, que pingavam das estalactites. Estavam sós. Os outros, naturalmente, andavam por galerias afastadas... — Deixe-me falar com franqueza pela última vez, Barão! — repetiu Leviccolo. — Para mim e, em geral, para todas as mulheres de teatro como eu, só há uma possível espécie de amante: — um homem de teatro :ambém, um ator, um oficial do mesmo ofício. Só os oficiais do mesmo ofício nos servem, porque só eles nos compreendem, só eles nos perdoam, por isso mesmo, os caprichos, as infidelidades, os dias de humor negro, os desvios, as loucuras, tudo! Meu caro Barão! Não digo que não goste dos homens ricos como o senhor: seria uma falta de sinceridade! O que digo é que há homens ricos e homens ricos... Quero dizer que há Barões opulentos que nos apreciam, que nos pagam e que se vão embora; e há Barões que nos pagam, mas que nos importunam. Os primeiros são toleráveis; os segundos são terríveis... E sinto muito ser obrigada a dizer-lhe que o senhor pertence ao número dos segundos! E dito isso, caminhe... Barão! Não esteja comprometendo a minha reputação! — concluiu ela, com uma risada. O Barão gritou um "olá!" forte que ecoou longamente na amplidão pada acima da cabeça. Um rumor claro de gargalhadas soou. Duas luzes apareceram em frente, à mesma altura do lampião de Raymond. Era o resto do grupo que já tinha dado volta à galeria e preparava-se para descer. O Barão gritou um "olá"! forte que ecoou longamente na amplidão da furna. E, logo, do lado oposto, rompeu a voz alegre de Alfredo Pereira: — Que é isso, Barão? Deu agora para raptar senhoras? Faltam-nos aqui a graciosa Leviccolo e a formosíssima D. Carmita. Isso é um roubo, uma violência, uma pouca vergonha. — A D. Carmita não está aqui! — respondeu a atriz. — Como não está aí? — clamou Romaguera. — Onde está, então? Agora, descida a rampa, estavam todos juntos, ao fundo da sala principal da Casa de Pedra. E um espanto cresceu em todo o grupo. Realmente! Que era feito da Carmita? E já eram horas de bater em retirada!... Duas da tarde!... Romaguera, pousando a sua lâmpada no chão, pôs as mãos à boca, à feição de uma buzina, e chamou três vezes com o seu tom mais forte de voz: — D. Carmita! D. Carmita! D. Carmita! .. .

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Ecos largos repetiram por longo tempo esses três brados. Mas ninguém respondeu ao apelo de Romaguera. Então a lancha Lucy, muito espevitada, observou em voz alta que o Vidigal também não estava presente. Foi um escândalo! Um "oh!" geral repercutiu na gruta. Romaguera perdeu as estribeiras: e, apoplético, voltou-se para os companheiros: — Estão vendo que pouca vergonha? Não lhes dizia eu que aquele sujeito era um cachorro? Não vêem como ele timbra em comprometer o nome da pobre menina?... Mas, nesse momento, passou-se uma coisa singular, extraordinária, fantástica. Todos os olhos, ofuscados se fecharam a princípio, feridos de um deslumbramento súbito. Era a surpresa anunciada pelo Dr. Silveira Jacques. Lá estava ele, no ponto mais alto da gruta, metido num anfracto da rocha. A sua figura irradiava em plena glória, dentro de um clarão de apoteose. Tinha as mãos levantadas: e cada uma delas sustinha aceso um fogo de bengala. Para a abóbada, uma fumarada espessa subia em rolos, forrando-a de nuvens negras como um céu tempestuoso. E dois largos rios de luz vivíssima desciam, um vermelho, outro azul, duas cataratas rutilantes despenhando-se num fulgor de pedrarias. Pelos recôncavos das paredes, invadidos de claridade, palpitavam troncos de árvores de cores disparatadas. As estalagmites revestiam-se de avalanchas de rubis, de cascatas de safiras; e os pingos de água fulguravam como grandes diamantes fabulosos. Silveira Jacques, cuja face resplandecia como a de um deus, sacudia no ar duas tochas mágicas: e os feixes de luz varriam todo o cenário. Para quem conhecia as angústias morais que torturavam o médico, o desespero da sua situação financeira, parecia que ele queimava as suas últimas esperanças, os seus últimos escrúpulos comerciais... De repente, com um derradeiro jato de fumo negro, estancaram-se às duas miraculosas nascentes de luz. Uma treva espessa, lúgubre, medonha, em que errava um cheiro nauseante de pólvora e enxofre, pesou sobre o interior da caverna. E só depois de minutos de silêncio, foi que a voz da Leviccolo soou, cheia de aplausos:

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— Bravo! Vou recomendar a D. Ifigênia da Costa que contrate este doutor: isto é que é mise-en-scène! isto é uma apoteose! Saíram. Fora, juntaram-se todos, no mesmo local em que se realizara o almoço. D. Carmita e Vidigal não tinham aparecido. Romaguera bufava. Raymond mordia o bigode furioso. Queriam ambos esperar ainda. Mas as senhoras exigiam que se partisse, já. E a atriz Anita, com um ar de enjôo, disse alto: — Aí está! Agora ninguém dirá que foram as atrizes que emporcalharam a festa! É para que se saiba que as mulheres de teatro se comportam com mais decência que muitas senhoras do meu conhecimento! D. Eufrásia Fontoura frechou-lhe um olhar de ódio. E já todos se dispunham a partir, quando as torpedeiras, num grande espalhafato, bateram palmas-alvíçaras: — D. Carmita! D. Carmita! Voltaram-se todos. De fato, D. Carmita aparecia à entrada da gruta, pelo braço de Vidigal. Vinha corada, com a boca aberta num sorriso desembaraçado. Vidigal, visivelmente vexado, retorcia as guias do bigode. Todos compreenderam que mais valia calar... E o bando retomou o caminho por onde viera, constrangido. Quando tomaram lugar no trem que os esperava, D. Carmita, entre a Marquesa e a D. Eufrásia, balbuciava explicações titubeantes: — Era tão grande aquilo lá dentro! A gente perdia-se tão facilmente! Silveira Jacques observou, sorrindo, em voz baixa que era a primeira vez que alguém se perdia nos labirintos da Casa de Pedra... A Lucy e as torpedeiras cochicharam, com risinhos maliciosos. E o mesmo constrangimento reinou até São Bernardo, onde o trem chegou ao cair da tarde...

A "DÉBÂCLE" Quem estudasse detidamente os atos e ditos do Dr. Silveira Jacques, reconheceria logo nesse homem um aventureiro e um desequilibrado. Estas duas qualidades, combatendo-se por um lado, completando-se por outro, faziam da sua individualidade um tipo complexo, incoerente, furta-cor, não

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muito raro neste fim de século, mas com certeza digno de atenção e curiosidade. Facilmente o seduziam as empresas grandiosas e arriscadas; em ouvindo expor um plano brilhante, dificultoso, por mais absurdo que o achassem todos, a fantasia se lhe despertava, vibrava-lhe a fibra da ambição, e o seu espírito se arrojava logo, como um ginete fogoso, através de projetos audazes e quimeras surpreendentes. Seria difícil decidir o que, num caso desses, o atraía mais; se a grandeza extravagante do cometimento, se o instinto dos lucros fabulosos, que logo entrava a computar — pois estava longe de ser insensível às fascinações do ouro. O ouro, que dá o luxo, que dá a influência, que dá o poder, que dá a consideração social! Como não o adorar? Como não correr atrás dele, ainda que de abismo em abismo, até conquistá-lo e possuí-lo? Depois, o renome... O renome era outra das altas aspirações que desde a meninice traziam em constante ebulição o cérebro exaltado do Dr. Silveira Jacques. Queria ser célebre; que todo o mundo o conhecesse, que os seus feitos andassem de boca em boca, e de comentário em comentário. Com que respeito, com que inveja ouvia falar em Pasteur, em Koch, no Padre Kneipp, no Dr. Pertence, no Dr. Torres-Homem! Saíra da Faculdade, com o propósito firme de tornar-se médico ilustre, verdadeira notabilidade na ciência, clínico procurado, disputado e, por conseguinte, largamente pago. Tratou de escolher uma especialidade; era o meio melhor de atingir o seu ideal rapidamente. Atirou-se às moléstias de olhos; comprou uma biblioteca inteira sobre o assunto; leu e releu, viajou pela Europa, seguiu o curso do Dr. Wecker, e voltou muito certo de que suplantaria em breve quantos oculistas houvessem neste Brasil todo. Mas, saiu-se tão mal nas primeiras operações, que teve de abandonar o rumo encetado; não lhe faltava a teoria, não lhe faltava talvez prática, mas faltava-lhe coisa mais simples, e mais necessária ainda: a delicadeza da mão, a segurança de tato, o jeito, em suma. Force n'es rien, adresse est tout — pensou ele, e deu de mão à oftalmologia. Foi, então, clinicar numa pequena cidade do interior; quis sujeitar-se à monotonia da vida provinciana, às longas noites sem teatro e sem convivência, passadas ao voltarete entre o pároco e o boticário, às viagens penosas pelas estradas, ao sol e à chuva, no lombo de um burro magro e trotão. Ao tempo de quatro meses, estava farto. Soubera, além disso, que um seu amigo íntimo, camarada de infância e de colégio, conseguira do governo privilégio para construção de uma estrada de ferro na Bahia; escreveu-lhe, propondo-se para sócio na empresa, prometendo reunir capitais fabulosos, e obter do ministro, com auxílio de empenhos influentes, condições ainda mais vantajosas, que as já concedidas. O amigo acreditou, e respondeu-lhe entusiasmado, aceitando o seu concurso com profundo reconhecimento;

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Silveira Jacques partiu para a Bahia, contou maravilhas ao seu companheiro, que já fazia castelos de safira e esmeralda... em Espanha. Mas nem os capitais vinham, nem as vantagens prometidas apareciam; e como o fundador da companhia, fiado nas garantias ilusórias com que lhe acenara o médico, havia realizado compras e encomendas extraordinárias nas fábricas européias, não pôde desempenhar-se dos seus compromissos; a empresa liquidou-se, a estrada de ferro, tornou ao domínio dos sonhos, de onde nunca deveria ter saído. Silveira Jacques fez reflexões amargas sobre o caso... Porém, dias depois, como lhe dissessem que um médico do Recife pensava abrir uma casa de saúde, seguiu para lá no primeiro paquete; chegou a entrar na administração da casa, mas o outro facultativo percebeu sem demora que se metera com um doido e, muito delicadamente, o dispensou, reassumindo o governo exclusivo do estabelecimento. Silveira Jacques veio então para o Rio, arranjou uma clínica, inscreveu-se entre os colaboradores de uma revista, tentou fazer parte de um sindicato contratador de companhias dramáticas estrangeiras, frequentou frontões, velódromos e clubes de corridas, ganhou, perdeu, sempre acompanhado na jogatina pelo seu irmão, João Silveira. Estava neste ponto, carregado de dívidas e de esperanças, quando um engenheiro, vindo de São Bernardo, lhe fez uma descrição encomiástica do Hotel Oriente, belo edifício, rodeado de jardins, com grande estabelecimento hidroterápico, em excelente situação, numa cidade de clima admirável, procurado pelos tuberculosos e pelos neurastênicos... — Infelizmente — concluía o engenheiro — o hotel é mal dirigido e o serviço não corresponde à beleza do prédio e à utilidade das suas dependências; oh! sabe o que se devia fazer daquilo: um sanatório, um sanatório-modelo!... Ao ouvir esta palavra, Silveira Jacques subiu às nuvens, num impulso de entusiasmo assombroso. Um sanatório! Eis aí o porto de salvação que ele procurava, incerto e vacilante, pelo oceano revolto das empresas quiméricas, em que vagava ao sabor das ondas, já farto de naufrágios... Um sanatório! Estava achada a solução genial do problema da sua vida, e, como Arquimedes, ele podia sair pelas ruas nu ou vestido a gritar: Eureca, Eureca! Não saiu pelas ruas a gritar, é certo, mas agarrou quantos amigos, conhecidos, desconhecidos encontrou, para confiar-lhes o plano gigantesco que se lhe desenvolvera no espírito; foi às redações de todos os jornais pedir que dessem notícia da sua obra extraordinária, e fizessem ver ao povo as vantagens incalculáveis que se obteriam em pouco tempo; esteve nas duas casas do Congresso, nos Ministérios, em todas as repartições públicas, e até no Itamarati onde não foi recebido, porque lhe disseram que o marechal havia muitos meses

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não falava com pessoa alguma deste mundo, e resolvera continuar no mesmo regime até ao termo do período presidencial. Alguns, mais perspicazes, descobriram, através das frases coloridas e fascinadoras de Silveira Jacques, a trama do seu desequilíbrio mental; outros, muito mais numerosos, acreditavam piamente na exequibilidade e na eficácia dos seus planos, e tornaram-se divulgadores ardentes do futuro Sanatório. A grande propaganda estava organizada e Silveira Jacques não cabia em si de júbilo por esse primeiro resultado. A idéia fixa, que o possuía, agora, tinha o feitio exato de um polvo, nascido no seu cérebro, criado e nutrido com o melhor da sua massa encefálica; cada dia, criava um braço novo, uma nova ramificação, e já não havia ponto, sob a caixa craniana, para onde o monstro da utopia não tivesse dirigido uma das suas garras. A princípio, tratava-se de uma casa de saúde, brilhantemente encetada, regularmente constituída, que pouco a pouco fosse prosperando, até tornar-se única no seu gênero; agora, já Silveira Jacques pensava em torná-la a única no seu gênero desde o primeiro dia: hotel, aposentos especiais para os simples hóspedes, aposentos especiais para os tuberculosos, aposentos especiais para os nevropatas, duchas completas, tratamento Kneipp, farmácia e drogaria de primeira ordem, cassino para jogo, e baile, teatro, concertos semanais, armazém anexo, verdadeiro bazar, onde os clientes comprassem tudo o que lhes fosse preciso, sem sair de casa; cocheiras com uma coleção imensa de carros, coupés, berlindas, vitórias, landaus; estrebaria com quinze a vinte animais de puro-sangue e meio-sangue, para as carruagens, para passeio e, mesmo, como tempo, para corridas, pois cuidava de abrir mais tarde em São Bernardo um hipódromo fantástico... Tais proporções assumira o seu sonho; ele ia ganhar muito dinheiro, enriquecer em poucos anos, talvez em poucos meses, e adquirir uma reputação, uma celebridade ainda não vista nos Estados Unidos do Brasil, nem na América porventura! — Hip! hip! Hurrah! — gritava ele, à mesa do almoço, erguendo a taça de champanha; os criados olhavam-se muito espantados, com cara de quem diz: — A modos que o patrão enlouqueceu. E os capitais necessários? Silveira Jacques não os tinha; só tinha dívidas... Ora! Capitais arranjavam-se com a maior facilidade; e, realmente, chegou a conseguir soma bem regular, dirigindo-se a uns, discretamente, agarrando outros em plena rua, com exclamações sonoras, com fulgores de êxtase nos olhos e uma fé tão cega no cometimento que seduzia, hipnotizava num momento quem quer que tivesse a fantasia um pouco impressionável... Tratava-se por fim, de achar uma denominação, um título convidativo e original, para o estabelecimento já delineado em todas as suas partes. Ah! Silveira Jacques, homem verboso e falador, sabia o valor imenso, a influência onipotente das palavras bonitas, tão próprias para fascinar a imaginação do povo.

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Cogitou, cogitou... e achou. Eureca! Eureca! exclamou de novo. O nomem-numem, a palavra cabalística e mágica estava na própria concepção primordial da quimera. Sanatorium! Não Sanatório, em reles português, mas Sanatorium, sim, essa bela e cantante terminação latina: Sanatorium! Quem não cairia de joelhos, prostrado, fulminado de assombro, ao ouvir estas poucas sílabas, harmoniosas e estimulantes como um clangor de clarins: SANATORIUM!... O certo é que, ao fim de quatro meses, os castelos em Espanha haviam tombado um a um, e uma derrocada terrível ameaçava o médico, desembebedando-o pouco a pouco das fumaças de glória e lucro que o entonteciam... De tudo o que ideara, nada fizera... O Sanatorium continuava simples hotel como antes, e cada vez mais mal administrado. As duchas, abandonadas, não tinham frequentadores, o tratamento Kneipp, após o desastre sucedido a Romaguera, que tamanha bronquite apanhara, naturalmente porque não soubera aplicar o regime, perdera os sequazes e caíra em absoluto descrédito; a casa de saúde... fora uma linda fantasmagoria, dissipara-se como fumo; os hóspedes queixavam-se do serviço e uma irritação surda lavrava entre eles contra o médico e o gerente. E as letras a pagar? As letras, que se venciam, numerosas, implacáveis, dentro de três ou quatro dias?... Onde buscar dinheiro? Quem seria tão tolo que lho adiantasse?... Pobre Silveira Jacques! Se ele descera já a contrair empréstimos com os próprios criados... Que degradação! E o espectro da falência lhe crescia diante dos olhos; o médico empalidecia; o sangue se lhe regelava; e, para aquecer-se, para esquecer a preocupação cruel dos seus dias das suas noites, ele atirava-se ao jogo, perdendo loucamente os restos miseráveis da sua bolsa, e ingerindo, nos intervalos, taças de champanha e cálices de conhaque, sem conta e sem medida... Ah! ele não era, seguramente, um cavalheiro de indústria; no fundo, o seu caráter tinha princípios de honradez... Era antes uma vítima da sua própria fantasia desregrada, um tarasconês, um Tartarin que não ia à caça dos leões, mas à conquista do velo de ouro, e não dispunha de armas nem de forças para conquistá-lo. Entretanto, a sua leviandade o levava a praticar ações que, em rigor, não podiam ser desculpadas Os lucros do hotel, que, a despeito da sua má direção, tinham sido muitos, em vez de servirem para pagar os fornecimentos e as letras atuais, empregara-os ele, parte no desempenho de antigos compromissos, parte na compra de uma fazenda de criação, ligada, dizia ele, à propriedade do Sanatorium. Em face da tremenda situação, não tinha agora a coragem necessária para afrontá-la; e, aterrado, perdido, buscava um meio seguro de escapar sem perigo às consequências de seus atos... A idéia que lhe ocorrera antes de tudo era digna de sua fantasia, e punha em remate perfeito ao edifício das suas loucuras.

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Ia disfarçar, adiar talvez a falência, dando um baile principesco aos seus hóspedes e à população de São Bernardo. Pensava, e pensava talvez razoavelmente... que o melhor meio de arrostar a miséria era fingir-se milionário. A QUERMESSE Chegara o domingo e ia abrir-se a quermesse. Desde a véspera pela manhã, toda a gente do Sanatorium se empenhava de corpo e alma na disposição dos tablados, das tendas, das bandeirolas, de forma que a feira da piedade embasbacasse literalmente pelo seu esplendor o povo de São Bernardo. Era uma influência geral, um entusiasmo unânime; todos se prestavam a concorrer para a beleza da festa, ou com o trabalho de suas mãos ou com dádivas mais ou menos valiosas; não havia quem não encontrasse, entre os seus objetos de curiosidade ou de pequeno luxo, alguma coisa para acrescentar às muitas já alinhadas em ordem nos balcões e mostradores das lojas volantes. A Marquesa do Tijuco presidia a tudo feliz, soberana, satisfeita nos seus instintos de dominação, encantada consigo mesma por organizar naquela velha terra esburacada e podre, segundo ela dizia, um divertimento seleto e fashionable como os da Corte. Toda possuída por essa idéia fixa, aceitava a cooperação de todo o mundo, revelando uma tolerância passageira e fictícia, bem avessa aos seus hábitos e princípios. Deixara de parte as suas prevenções contra D. Carmita, tão escandalosamente comprometida em intrigas amorosas, contra a Aquidabã e as torpedeiras, irritantes pelos defeitos da sua educação pouco aristocrática, e contra as atrizes dramáticas, a quem, no Rio de Janeiro, não consentiria lhe dirigissem a palavra, ou ousassem sequer fitar-lhe o emproado rosto... Envolta majestosamente no seu farto manto de seda cinzenta, andava de um extremo a outro do hotel, pelos salões e pelos corredores, a passos rápidos, mas sempre com a mesma gravidade de porte inseparável da sua pessoa; dava ordens, nomeava comissões, resolvia dúvidas, fazia planos, determinava programas, estava, em suma, no seu papel de regente, que lhe lisonjeava o orgulho e lhe salientava os dotes do espírito. Uma cordialidade perfeita reinava no Sanatorium; por um dia, ao menos, esqueciam-se as divergências, os rancores acumulados, e uma faina alegre, e deliciosa vinha substituir os enredos, as ciumeiras e os falatórios venenosos. Dr. Carmita, muito grácil no seu vestido leve de cassa, com mangas arregaçadas até ao cotovelo, descobrindo os braços mais alvos e bem torneados deste mundo, percorria as barracas, uma por uma, pondo em todas alguma coisa do seu gosto elegante e distinto; e, apressada, os seus pezinhos calçados de borzeguins amarelos deslizavam pelo soalho com pequenos pulos, como dois

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ratinhos minúsculos. A Leviccolo, buliçosa, trêfega, atirando pelo ar grandes e sonoras risadas, dava aos preparativos, um sabor picante e meio acanalhado de boêmia, que se traía também na escolha dos artigos, que propunha para o programa da festa; ela preferia as cores violentas, os enfeites excessivos, um luxo equívoco, eivado de rastaquerismo; e queria distrações extravagantes para preencher os intervalos do concerto, tais como cançonetas brejeiras, sublinhadas de intenções afrodisíacas, e danças especialmente lúbricas, muito aproximadas dos fandangos e chegadinhos plebeus. A essas excentricidades ridículas, a Marquesa do Tijuco nem respondia; e a empresária Ifigênia da Costa, muito sisuda, cheia de escrúpulos e decoro, segredava, dando-lhe palmadinhas cariciosas nas faces: — Tenha Juízo, Vivico; veja que você está metida com famílias... — Ora, é boa! — respondia a atriz com o seu desembaraço habitual — Não foram eles que me chamaram? Estou agora para observar regras incômodas? Eu sou rapariga alegre, mulher da bela vida: Petite gamine, Sans foi ni loi, ni roi, Ah! Ah! Ah! Ah!... Entre as atrizes, era Leviccolo quem tudo dirigia; a Lotulli, a Anita, a Concina seguiam as suas instruções e auxiliavam-na conscienciosamente, sem rebeldias, nem discrepâncias, reconhecendo a superioridade do seu jeito para tudo. Os atores, também, a princípio, quiseram ajudar a ornamentação, com a sua velha prática de cenários; e entre os vestidos de matizes vivos, as flâmulas e as sanefas, viam-se errar aqueles semblantes raspados de cabotins; e, de quando em quando, na conversa deles, soavam juras grosseiras, pragas, palavradas de caserna e proscênio, que escandalizavam as moças, fazendo fugir espavoridas as próprias torpedeiras. A Sra. Marquesa do Tijuco cerrava o sobrecenho, indignada. Afinal, o primeiro cômico, Morgado, talvez um pouco tocado pelo álcool, entrou no salão, com os olhos piscos e o nariz vermelho, uma expressão grotesca de mico lazeiro, e pôs-se a dançar, batendo palmas e castanholas, levantando as pernas a alturas incríveis, e tais coisas dizendo, que a Marquesa não se pôde mais conter... Então, D. Ifigênia da Costa interveio; e, com bons modos, com a sua diplomacia inexcedível, persuadiu os atores todos a retirar-se; o Mendonça, acedendo de pronto ao pedido, saiu do salão, veio ao vestíbulo e respirou largamente, com as duas mãos no peito: — Uff! uff! Estou livre delas! Estou livre delas!

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O Barão de Raymond, declarando que não tinha habilidade nem para arrumar uma mala de viagem, punha a sua bolsa à disposição das senhoras; o mesmo dizia o velho Cavalcanti, que, tendo ido passar alguns dias em sua fazenda, estava de volta a São Bernardo. Romaguera, intrometido, pretendendo-se "homem de gosto", gabando-se de ter dado o plano da matriz da sua vila natal, distribuía a todo propósito informações e conselhos que ninguém seguia; o desastre da mangueira, na excursão à Casa de Pedra, não o desenganara; queria ainda mostrar-se ágil e gracioso; estava no meio do salão uma espécie de escada alta e gradeada, para a decoração do teto; Romaguera subiu por ela acima; levava nas mãos pompons de papel de cores, para os lustres de cristal e bronze; chegado a certo ponto, a escada era estreita demais para o seu corpanzil alentado e áspero; mas ele teimou forçá-la, como gostava de forçar tudo, e achou-se de repente entalado entre as grades grossas de madeira, sem poder sair; debatia-se furioso, agitando os braços e as pernas, dando pontapés raivosos, urrando, tossindo, bufando, rubro e suado, ameaçado de uma apoplexia; e não conseguia sair da trapeira em que se aprisionara. D. Carmita, que entrara nesse momento, olhou muito espantada para a extraordinária luta e, vendo o monstro naqueles apertos, desatou a rir-se com íntimo gosto. Depois, correndo à porta: — Ó Sr. Vidigal! Sr. Vidigal! — gritou. — Venha ver uma coisa linda, um espetáculo divino!... Romaguera exacerbava-se cada vez mais; chegava ao delírio do furor, vendo-se ridicularizado pelo rival; cerrava os punhos, mordia-os, atirava a cabeça de encontro à armação de madeira; assemelhava-se a uma fera indomável, presa na sua jaula. Foi preciso arrancar à força algumas grades, para que o enorme comendador se livrasse do aparelho fatal, que já começava a arrochar-lhe as carnes. Solto dele, retirou-se, urrando e bufando sempre, e foi encerrar-se no seu quarto e fumar um havana para acalmar os nervos. Os rapazes pelos corredores comentavam o episódio, entre gargalhadas, remoques e trocadilhos. Vidigal estava triunfante; nunca o seu orgulho de conquistador profissional avultara tanto como nessa derrota, nessas quedas necessárias do adversário petulante. Entusiasmado pelos cumprimentos dos colegas ia de um para outro, cofiando o bigodinho e passando os dedos pela basta cabeleira negra com um grande ar de importância: — Parece que "desta" não se levanta o mastodonte! Que dizes, hein, ó Alfredo? Que diz, ó Alvaro? — Ah! — lá isso é exato! — concordavam eles. — Desta não se levanta...

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...Entretanto, os três escritores, Olívio Bivar, Manhães de Azevedo e Vicentim de Guimarães, já familiarizados com todos os grupos, iam estudando em flagrante, através destas lutas e paixões vivazes, o precioso documento humano... A quermesse abriu-se ao meio-dia em ponto. A comissão de senhoras distribuíra convites a mancheias pela cidade, e, em atenção a isso, compareceu quanto havia de distinto e abastado em São Bernardo. O aspecto do Sanatorium era pitoresco e agradável; à entrada no parque, havia duas tendas, fronteiras aos portões de grade de ferro; eram de lona cinzenta, com largas listras vermelhas; rematavam-nas bandeiras nacionais, desenrolando ao vento o retângulo verde e o losango amarelo, com o seu queijo azul ao centro e o dístico positivista: Ordem e Progresso. Uma das tendas tinha o nome de Brasil, a outra de São Bernardo; nesta, servia como caixeira D. Carmita, vendendo ramalhetes de rosas, de cravos, de violetas, que atingiam a preços muito elevados! Naquela, a caixeira era a Leviccolo, que negociava em licores e vinhos, fazendo pagar de 10$ a 100$ cada cálice... Também cedia beijos — beijos de várias espécies — desde o mais singelo, pousado de leve na testa, fraternalmente, até o mais completo, a questão era que lhos pagassem... E alguns tolos caíam no laço, entre outros um Dr. Biló, antigo deputado, muito perdido por mulheres... A escada de pedra quase desaparecia sob os vasos de plantas raras e frondosas, que formavam duas alas compactas até ao vestíbulo, arreado de flâmulas, galhardetes, escudos com inscrições e lanternas venezianas de muitas cores. No salão, prolongando-se paralelamente às paredes, duas filas de barracas, de dimensões menores que as da entrada, onde as atrizes, as torpedeiras e outras moças do Sanatorium expunham e apregoavam belas prendas de toda sorte: quadros, espelhos, jarras de porcelana para flores, vidros de extrato, estatuetas de terracota e biscuit, licoreiros de cristal; as barracas das atrizes eram as mais concorridas, porque essas mulheres de teatro conheciam melhor do que as pobres torpedeiras a arte de fazer-se valer, distribuindo sorrisos convidativos, chamando sem cerimônia os homens, que passavam, e até agarrando-os, se eles resistiam, pelas abas do casaco. Pela rua do salão, toda atapetada e coberta de folhagens e pétalas de rosas, era grande o movimento; senhoras em toilettes claras e leves, rapazes trajados com a mais perfeita elegância, disputavam a compra de objetos, entre risadinhas, cumprimentos e namoros escandalosos. De um lado para outro, a Marquesa de Tijuco passava, lentamente, mais majestosa do que nunca no seu vestido de gorgorão preto, guarnecido de vidrilhos, e ao pé dela caminhava D. Eufrásia Fontoura, orgulhosa de ostentar familiaridade com fidalga de tão alta linhagem.

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Romaguera, na tenda São Bernardo, curvado, risonho, apoiando os cotovelos no balcão, dizia galanterias a D. Carmita, quando Vidigal entrou; ela imediatamente, deixando o outro, exclamou com ar de grande contentamento: — Sr. Vidigal! — há de comprar-me alguma coisa! Não me foge, não! Ora veja lá: tenho aqui este Cupido de Saxe; símbolo do amor, do amor! Quanto me dá por ele? Vamos: 50$, não? Os olhos do Vidigal fuzilavam de vaidade. — Minha senhora, dou quanto me pedir. Sejam 50$000! — Eu dou 100$ — acudiu o Romaguera, sombrio, com o pigarro crônico a roncar-lhe na garganta. D. Carmita voltou-se para ele, surpreendida, como se dissesse: quem o chamou aqui, sr. intrometido? Vidigal replicou, tranquilamente: — 150$000. — 200$000! — gritou Romaguera, despeitado e raivoso. — 250$000! — 300$000! — 350$000! — Basta! — observou D. Carmita, sorrindo. — Não quero que se arruínem por minha causa! Foi ao Sr. Vidigal que ofereci o Cupido — símbolo do amor — e a ele é que o entrego. Pode dar-me os 50$, sem levar em conta a disputa com o Sr. Comendador, ou os 350$, se assim lhe convier mais... Como isto é para uma obra pia... Vidigal, sacando da algibeira um maço de notas, contou 350$, depô-los sobre o balcão, cumprimentou e saiu. Romaguera enterrou o chapeu até os olhos com um murro, e acompanhou-o de longe, resmungando! — Esta, hás de pagar-me, pelintrinha!

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Ia tão cego de ira, que, esbarrando com o ventre na calva do Marquês do Tijuco, atirou-o ao chão. Vidigal, que se voltara para trás, acorreu depressa a levantá-lo; e outros rapazes, que se haviam aproximado diziam sem rebuço: — Grande bruto! Animal! Foi este o incidente mais notável da quermesse, que terminou às 6 horas da tarde. Logo em seguida, recolhendo-se a receita de cada tenda à caixa principal, entregue à tesoureira, D. Carmita, foram apurados vinte contos de réis. O CONCERTO Para o concerto, com que se devia encetar o sarau, e para as danças que deviam rematá-lo, a orquestra local do maestro Marciano Ribeiro se unira à da companhia Ifigênia da Costa. Sobre um estrado largo, ao fundo do salão principal, vistosamente guarnecido e iluminado, os músicos numerosos se alinhavam em três fileiras, governados pelos dois regentes, alternadamente. Além dos hóspedes todos do Sanatorium, os convidados, muitíssimos, ocupavam as cadeiras do salão, e ainda se espalhavam, em grupos, pelo vestíbulo e pelos corredores. O Dr. Silveira Jacques expedira cartões amáveis a todas as pessoas distintas de São Bernardo, e a forasteiros que, em grande quantidade, tinham vindo de outras partes naqueles dias para assistirem às afamadas festas de Bom Jesus de Campinhos. Reinava luxo suntuoso e perfeito cerimonial, havia comissões de recepção, lacaios de libré, criados de casaca; o programa de concerto, que uns consultavam com interesse e outros distraidamente, era impresso em papel moyen d'âge, de bordas não aparadas, a caracteres do mais belo gótico. O médico diretor recebia todos, sobretudo às damas, com mesuras corretas, sorrisos e frases de extrema gentileza; mas quem observasse bem notaria algo de factício e constrangido na sua amabilidade superfina. Os rapazes, Vidigal sobretudo, desfaziam-se em galanteios e lisonjas com as senhoras. Castanheira chegara no expresso às sete horas, de propósito para o baile; entristecera-se, porém, com as notícias que lhe haviam dado sobre a saúde de D. Ester, que ia, coitadinha! — cada vez pior. O velho Cavalcanti, que não se apaixonava por música, perguntava ao Barão de Raymond, com seu tom macio de voz: — Então, não haverá hoje uma paradinha de roleta? Vamos tratar disso, que é melhor. E o Barão respondia animado: — É preciso, é preciso: Vamos falar ao Querubim ou ao Chico Ezequiel.

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Romaguera constituíra-se centro de um grupo, em que se falava exaltadamente de política. Defendia o governo, com todas as forças, desmentindo boatos favoráveis à revolta e propalando outros em prol da legalidade. Entre os seus interlocutores, estava o Dr. Joãozinho Romão, jovem e talentoso advogado, que torcia o nariz aos entusiasmos presidencialistas do comendador e protestava, com rara exuberância de palavras e argumentos, contra as suas afirmações exageradas; os olhinhos negros e vivos fuzilavam-lhe, e o rosto moreno, enquadrado numa bonita barba à Andó, ora empalidecia, ora corava, conforme as variantes do sentimento íntimo. Til Vóssio, o belo cavaleiro, o altivo homem de letras, chegado a São Bernardo na véspera, aprumava-se com toda a majestade da sua alta estatura, e, afagando filosoficamente a barbinha loura, perguntava baixinho ao Dr. Romão, designando com os olhos o comendador Romaguera: — Quem é este bruto, que berra tanto? Graves notícias haviam trazido as folhas do dia. O governo marcara 48 horas de prazo às famílias fluminenses para se retirarem da cidade, que combate definitivo ia começar. — Imaginem o terror que vai pelo Rio! — Tudo isto por causa de dois homens, que bem podiam bater-se em duelo à espada ou ao florete, deixando-nos em santa paz. — Qual será a sorte da guerra? — Para mim é claro, evidente! — bradou Romaguera. — O governo vencerá em toda a linha; esmagará os bandidos!... — Sei lá — acudiu o Joãozinho Romão. — Os revoltosos têm munições e armamento para muitos meses, e têm sobretudo uma coisa: — heroísmo! — As tropas legalistas também são valentes, é boa! — Não nego; e por conseguinte o resultado é duvidoso! — Ouça o que lhe digo: o marechal acabará com os miseráveis piratas... — Piratas, não! — Piratas, sim!

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— Nunca perante o direito internacional! O que me admira é que as nações estrangeiras, a Inglaterra e a França principalmente, ainda não os reconhecessem beligerantes. — Beligerantes? belige... Ora, ora, meu amigo! Era o que faltava! Para bombardearem a cidade, não é? Para destruírem o nosso Rio de Janeiro? — Mas; então, o governo terá todos os direitos e eles nenhum, nem o de defesa?... — Acreditem, meus senhores; o marechal triunfará, eu o sei de boa fonte... — E sem combate... — ajuntou o outro. — Veremos! Veremos! D. Carmita passava pelo braço de Vidigal; estava mais encantadora do que nunca, no seu vestido de seda cor de cana, ornado de rendas finíssimas e largamente decotado, com o colo alvo e os alvos braços rutilantes de jóias. — Nada de política, hoje, meus senhores, por quem são! Entremos para a sala que o concerto vai principiar. A discussão interrompeu-se; o comendador, irritado, tossiu ruidosamente, ao ver, D. Carmita e Vidigal juntinho como dois noivos. Com efeito, a orquestra executava os primeiros acordes do prelúdio do Guarani. Um grande silêncio se estabelecera no auditório. Só, no vestíbulo, Olívio Bivar conversava com Vicentim de Guimarães, e Manhães de Azevedo com Joãozinho Romão e Til Vóssio. — O bombardeio depois de amanhã! Que espetáculo admirável há de ser! — dizia Vicentim a Azevedo. — Sinto, deveras, não estar no Rio... — A D. Carmita é realmente uma deliciosa mulher! — observava Olívio. — É o pomo de discórdia desta casa! E, caramba! — vale a pena brigar por ela!... — Aquele Romaguera é um elefante — exclamava Til Vóssio. — Calculo o que vocês se terão aborrecido com semelhante companheiro de hotel!... — Ah! Tem pintado o diabo! É um sujeito perigoso! — respondeu Manhães de Azevedo. — E parece estar hoje num dos seus piores dias. — Anda no ar um sopro de tormenta próxima — conjeturou Romão.

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— Isto acaba mal... — Amigos! Vamos a um conhaque? — propôs Olívio Bivar. — Mas com todo o gosto e boa vontade! E os cinco moços abalaram a largos passos para o buffet. Era de uma incoerência extravagante o programa: ao prelúdio do Guarani se seguia a Prière du soir, de Cialdini; viera depois A Sabina, pela atriz Anita; e logo umas copias de El-Rey Que Rabió pela Concina; e como transição para a seriedade da primeira parte, a Zamacueca, tocada maravilhosamente por um violinista pardo, aproveitado discípulo de White; e, após um intervalo, a orquestra executava a Ouverture do Don Juan, de Mozart; e, para tornar de novo ao gênero cômico, a Leviccolo cantava com fingida ingenuidade, e profunda malícia, Mamãe me enganou; aplaudida, bisada, passara à cançoneta: Si yo fuera un gato negro — ai olé! — da Mimi Bilontra... Vibrantes e gerais salvas de palmas acolheram os últimos compassos do Coro dos Punhais dos Huguenotes. Findara o concerto. O baile ia começar. Os criados, apressadamente, retiravam as cadeiras do salão. O BAILE Danças, danças, danças. Às quadrilhas, americanas e francesas, sucedem-se as valsas; e, às valsas, as polcas e mazurcas; e, às polcas e mazurcas, os lanceiros e as russianas. Muito se tem dançado esta noite!... Todos se esbofam, e suam e tressuam, dando às gâmbias com inaudito furor. As damas, languidamente, exaustas e insaciadas, pousavam as cabeças airosas aos ombros dos cavalheiros. A música rompe, cresce, prolonga-se, em caprichos variadíssimos. O flirt domina; respira-se uma atmosfera de ousadias e abandonos; se um moço aperta um pouco demais ao peito o busto da senhora com quem valsa, esta não protesta, nem se esquiva, porque no meio delírio do sarau os caracteres abrandam-se, as formalidades se esquecem, e tanta languidez avassala os sentidos! — e um tão doce calor circula pelas veias!... Há mais desassombro nos olhares, que se trocam, saturados de mórbidos encantos; mais audácia nas declarações de amor, que se formulam em frases insinuantes e mal veladas, proferidas sem receio entre uma graciosa mesura e um balancez cadenciado. Tais as palavras que Vidigal soprava ao ouvido de D. Carmita, na segunda schottisch; tais, porém, menos delicadas e mais positivas, as que Romaguera lhe reeditava pela vigésima vez, quando se atirara com ela nun galope infrene pelo

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salão, espantando os assistentes com a sua rapidez impetuosa de ginete bravio. O Dr. Biló, sempre perdido por mulheres, apesar de já passado de cinquenta outonos, rivalizava com coronel Atanásio, galanteador incorrigível, de sessenta e cinco anos, em momices parvas e derretimentos dulçorosos com as mais elegantes senhoras, que, parecendo prestar-lhes benévola atenção, se riam deles à socapa. Eram dois terríveis D. Juans sem ventura, ambos em arriscadas conquistas falava-se até de uma aposta que haviam feito entre si, a ver quem mais donas seduzia — aposta que dera frouxos de gargalhadas aos sócios do clube local, de que ambos faziam parte. Joãozinho Romão empenhava-se em discussão renhida com Vidigal, sobre a valsa a três tempos, ensaiando-a ambos ao mesmo tempo, no vestíbulo, para que Castanheira e Álvaro Cândido decidissem qual a praticava com mais garbo. Mas Castanheira, cujas pernas magras e extensas não podiam parar um minuto em descanso num baile como aquele, esquivava-se a resolver a questão: — Ora, adeus! Fiquem vocês por aí. Prometi esta mazurca a D. Josefina... E ei-lo com a bela D. Josefina entre os braços a dar grandes pulos, tão vertiginosos que as abas de seu fraque, flutuando quase à altura das espáduas, semelhavam duas asas de morcego, em contínuo movimento. Os três literatos, muito cheios de si, impando de vaidade e supondo que todas as mulheres os acompanhavam com olhares de admiração, rendidas, apaixonadas, não tomavam parte nas danças, conservando-se de lado, observando e criticando tudo, quando não estacionavam horas a fio no buffet, emborcando taças, cálices, copos de todas as bebidas possíveis e impossíveis. Um boêmio errante aparecera esse dia no Sanatorium; era um espanhol de nome Mateu Mirellio, tipo versado em artes e artimanhas, sabendo tão bem desenhar paisagens a carvão e arranhar as cordas da guitarra como jogar a pelota e projetar sobre fundo branco, à luz de um lampião, sombrinhas moventes, impagáveis de verve canalha e gestos obscenos. Encostado no buffet, bebendo rum e cocktails, contava aos três escritores a sua existência acidentada, apimentando a narração com episódios grotescos e picarescos, com carapetões atrevidos e mentiras genuinamente espanholas. Fora deportado da Espanha como revolucionário; passara misérias negras em Londres e em Paris; perambulara pelo Egito e pelas índias; sofrera perseguições horríveis em Constantinopla por ter raptado uma odalisca do harém imperial; em Buenos Aires, combatera com os insurgentes contra Juarez Celmán; e, ultimamente, no Rio de Janeiro, jazera dois meses num cárcere como correspondente secreto dos revoltosos mas conseguira evadir-se... e ali estava sempre forte e jovial, disposto a novas aventuras. E rematava:

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— Mira, muchacha! — más quatro copitos de punch para mí e mís amigos! As atrizes, que, a respeito de bailes, só apreciavam os carnavalescos, nos Fenianos e Democratas, estavam todas na roleta, ganhando e perdendo, como sempre, quantias enormes. Leviccolo estava infeliz, mas o dinheiro não esgotava, porque o velho Cavalcanti, que obtivera a graça de pisar-lhes os pezinhos carinhosamente com as solas vastas dos seus borzeguins, segredava-lhe coisas deliciosas, fornecendo-lhe maços de notas para continuar o jogo. Mendes, o cérebro, empolgado pelo lucro, nem reparava nisso, ou, se reparava, fingia-se desentendido. Mendonça, decomposta a fisionomia, segundo o louvável costume, em esgares e visagens, batia palmas cada vez que a sorte o favorecia; enquanto D. Ifigênia da Costa, imperturbável na sua seriedade convencional, acolhia com a mesma indiferença aparente os ganhos e as perdas. Anita jogava de sociedade com Juquinha Gurgel, pelintra desabusado, que, afinal de contas, era quem entrava com os cobres... Entretanto, Silveira Jacques, pensativo, concentrado, franzidas as sobrancelhas, lábios trêmulos, passeava de cá para lá, de lá para cá, pelos corredores, onde a criadagem cochichava; de vez em quando, a espanholita Mercedes e o mulato José do Carmo chegavam-se às portas do salão, para espreitar o bailarico... — La señorita está muy contenta, con cl Dr. Vidigal en sus brazos... eh! — Sim; mas o comendador é que não gosta dessas histórias; está a bufar, e a modos que, mais hora, menos hora; arrebenta prá o diabo! Que crônicos! — exclamava o lisboeta Daniel. — Seu comendadô é um veio sem juízo. Taí o que lhe assucede... Pensa que com aquela cara pode agradá às moça... — observou a Camila, rindo muito. — Quem eu acho também que não anda bom, — disse José do Carmo, é o nosso Dr. Silveira. Ele tem qualquer coisa que o rói por dentro... — É sim! É sim! Repara como ele vai e vem, tão calado, e carrancudo... Parece que falta-lhe a chelpa... E os credores são muitos... — Olha, a mim, deve-me ele vinte mil réis, que me pediu emprestados. — E a mim dez! — E a mim oito! — E a mim quinze!

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— Ah! ah! ah! ah! .. . Todos se desmandibulavam em gargalhadas sonoras; e Silveira Jacques, ao passar por eles, estremecia ao contato dessa hilaridade incompreensível para ele, e tão oposta aos seus pensamentos sombrios... Eram quatro horas da madrugada. Organizava-se o cotillon final, dirigido, já se sabe, pelo dândi Vidigal. Todos buscavam pares, e o Dr. Silveira Jacques, readquirindo por momentos a serenidade fictícia, que lhe custava tantos esforços, insistia com as senhoras e os cavalheiros para que concorressem todos àquela última diversão da noite. — Vejam — dizia. — Eu mesmo, que raro danço, vou entrar no cotillon. E, com efeito, deu o braço a uma bela moça, D. Olga, fina e elegante de corpo, e cuja cabeça artística, nimbada de crespos cabelos de ouro, vagamente se assemelhava à de Sara Bernhardt. — Sra. Marquesa, então? Não nos faz essa honra? Não vem para a nossa roda? — Oh! doutor, na minha idade? Deixo esses folguedos para a mocidade e a formosura... — respondeu a sobranceira fidalga, com sorriso entre afável e desdenhoso. — E o Sr. Marquês? — Eu, meu caro doutor?... Eu? Já fiz uma extravagância enorme em ficar acordado até de madrugada. Daqui a pouco, estou na cama... E a sua cabeça rugosa e calma tremia e oscilava de debilidade... O círculo, que abrangia o salão quase todo, estava formado. Sentados os pares em ordem, Vidigal dava um último olhar em conjunto; ele, apaixonado pelas danças, cujo abuso chegava a prejudicar-lhe a saúde, organizava um cotillon, como um general organiza o seu exército para uma batalha campal; queria que todos estivessem a postos, que nada faltasse, e tinha para essas coisas um tino particular, uma perspicácia toda sua. Escolhera, já se sabe, para o acompanhar na direção das figuras, a Exma. Sra. D. Carmita, que esquecera ter prometido a Romaguera ser seu par no cotillon... Entretanto, a orquestra tocava uma valsa e, enquanto não se dava princípio à brincadeira, o espanhol Mirellio, inexcedível de cinismo, rodopiava sozinho com as mãos nos bolsos, dentro da grande roda, esbarrando nas cadeiras, pisando os vestidos às damas e confundindo-se depois em desculpas.

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Começava o cotillon. D. Olga fora tirada para sentar-se ao centro, e puseram-lhe aos pés uma almofada; vinham cavalheiros esbeltos para ajoelhar-se a seus pés, e ela recusava-se, afastando a almofada com a pontinha dos pequeninos sapatos de baile; já havia uma longa fila deles: Til Vóssio, Romão, Olívio Bivar, Manhães de Azevedo, Alfredo Pereira. Chegou, enfim, um velho, o Dr. Biló, e D. Olga aceitou hem hesitar. Foi uma gargalhada geral; o Dr. Biló, muito desajeitado, a valsar com essa linda menina, produzia um tal contraste, que era impossível conter o riso. Vidigal fora convidar outra moça também muito bonita. D. Josefina Klier, que subiu à cadeira, tendo na mão direita um caniço de pescar, cuja isca era uma avelã. Os cavalheiros deviam forcejar por segurá-la com os dentes. Vicentim de Guimarães, excessivamente míope, dava pulos ao ar em direções opostas, e, enquanto o caniço ia para a esquerda, ele saltava para a direita, com grande gáudio dos circunstantes; Álvaro Cândido, a despeito da sua agilidade, nada conseguia também; a avelã fugia sempre, e o olhar terno e irônico de D. Josefina parecia desnortear ainda mais os contendores; foi chamado o coronel Atanásio e, mais feliz ou mais protegido (como bom velho um tanto ridículo que era) ia pegar a avelã, quando se deu uma coisa absolutamente inesperada, imprevista, inconcebível, que assustou mais os assistentes do que os assustaria um raio caindo em pleno salão, ou o desmoronamento das paredes do Sanatorium. Romaguera, que se demorara cerca de uma hora a jogar na roleta entrou no salão e, ao ver, que não o tinham chamado para o cotillon, e além de tudo, lhe haviam roubado a sua dama, subiu à serra decididamente. Formou-se-lhe de repente uma tempestade no cérebro e no peito; foi-se o juízo de todo; o homem ficou em verdade fora de si, sem saber mais onde estava e o que fazia. Como um búfalo selvagem, que se pilhasse de súbito em liberdade e que capinhas imprudentes estivessem farpeando, atirou-se com todo o peso do corpo para dentro do círculo do cotillon, derrubando na investida um cavalheiro e uma senhora que tranquilamente se namoravam. Foi um assombro geral. Todos se levantaram, afastando as cadeiras, na expectativa do que ia acontecer. Romaguera bateu rijo om a mão numa estante da orquestra — Pare a música, com seiscentos mil diabos! A música parou como por encanto. E Romaguera, voltando-se para Vidigal, que, de braços cruzados, pálido de raiva e de medo, quedava no meio do salão: — Quem é que está marcando este cotillon? — Sou eu, é boa! — Quem lhe deu o direito de marcar danças aqui, seu miserável, seu patife? Não consinto... Não consinto... — berrava ele, com voz de trovão.

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Todos o olhavam, mudos e escandalizados de tanta brutalidade. — Não consente? Quem é o senhor para dar ordens?... — O quê? O quê? O quê? — vociferou o bicho bravo, que, de cólera, já estava completamente alucinado. — O quê? O quê? Eu vou lhe mostrar — e elevava a voz ao mais alto diapasão possível. — Eu vou lhe mostrar quem sou eu e quem é você, pelintra, bilontrinha idiota, embrião de tratante... Com efeito, avançava para o rapaz, gritando sempre, rubro, suado, com os cabelos em desordem, esgazeados os olhos e a boca espumante. Não era possível permitir ali uma cena de pugilato. Homens e senhoras se interpuseram aos dois contendores. Rapazes arrastaram Vidigal para fora do salão, a fim de salvá-lo das fúrias do hidrófobo. Mas era dificílimo conter Romaguera, que urrava, furioso, possesso, debatendo-se nos braços das pessoas que o seguravam, forcejando por agarrar o mocinho, e bradando, com vozeirão que enchia o hotel todo e, através das pontes, ia ressoar pelas ruas da cidade: — Quero acabar com ele! Larguem-me! Larguem-me, que é pior! Quero fazê-lo em pedaços! Atrevido! Insolente! A Marquesa do Tijuco, contemplando-o com altivez e curiosidade, como quem nunca vira tipo tão grosseiro e malcriado, batia com o pé direito no pavimento, e dizia a D. Eufrásia Aquidabã: — Veja, minha senhora, a que estamos reduzidos neste estabelecimento sem lei e sem rei... Um valentão destes julga-se no direito de perturbar uma festa em que há famílias... O marquês, trêmulo, aterrado, sem pinga de sangue, encolhera-se, como criança que tem medo de apanhar, entre as cadeiras da orquestra; e dali, benzendo-se, espiava a grande cena. Os músicos, mal se armara o conflito, tinham se posto ao fresco, uns levando os seus instrumentos, outros, com a pressa, abandonando-os espalhados pelo chão. Romaguera, mal seguro por quatro ou cinco homens, revelando surpreendente força muscular, dava arrancos para desvencilhar-se e alcançar o corredor, onde os rapazes faziam sentinela a Vidigal. Cada vez este berrava mais e mais tolices e inconveniências dizia. Parecia disposto a tudo arrasar. O assombro geralia-se transformando em susto. Mocinhas nervosas agarravam-se aos braços de cavalheiros solícitos, que as transportavam para fora do salão. O espanhol Mirellio exclamava, batendo palmas, como se estivesse num carro de Barcelona:

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— Señores! El toro salió desembolado! A ello! A ello! — toreadores valientes de mí corazón! A criadagem toda, atraída pelo tumulto, aglomerava-se às portas do salão, divertindo-se extraordinariamente; José do Carmo, Camila, Marcelino, Mercedes, Daniel, todos se torciam de riso. Só o maître-d’hôtel, o grave e cerimonioso Cosmópolis, franzia os lábios com desprezo, estranhando muito em cavalheiro de fino trato celte manque de requ... Ouvindo tamanho barulho, os jogadores haviam deixado a roleta, acudindo a ver o que era; atores e atrizes, famintos de troça, rejubilavam com aquela deliciosa comédia de vida real; Leviccolo, radiante, animada, comovida com o gesto, dizia: D. Per bacco! Bravo! Bravo! Che birbante!... Mendonça no auge do entusiasmo, trauteava entre dentes, acompanhando as palavras com expressivo acionado: Sou rapaz de muita distinção, Desempenado das canelas... O Barão de Raymond, piscando os olhos e encolhendo os ombros, cofiando os bigodes e sacudindo moedas na algibeira, murmurava: — Qual! Está doido varrido... Não há que ver! — Que cabra fanfarrão! Que onça! Que tapir! — dizia Til Vóssio, afagando a loura barba. — Vai tudo abaixo! Livra! — ajuntava João Romão, dando um passo ao lado, para evitar o Romaguera, que vinha para cima dele. — Que Hércules! — notava Vincentim de Guimarães, invejando a robustez do bruto. Olívio de Bivar e Manhães de Azevedo: — Que belo escândalo! — diziam. Romaguera continuava a berrar. Em vão, o Dr. Biló e o Coronel Atanásio tentavam acalmá-lo. Nos corredores reinava incrível desordem. Senhoras já acomodadas, assustando-se com o enorme fracasso, receosas de um incêndio ou de um desmoronamento, saíam em trajes menores, empunhando velas, abotoando à pressa os seus roupões, com imenso gáudio dos rapazes. O

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castelhano Querubim, um dos banqueiros da roleta, de camisão, ceroulas, chapéu na cabeça e carabina na mão, interrogava ansioso: — Que é? Que é? Precisam do meu auxílio?! Dr. Silveira Jacques, procurado por toda a parte, ansiosamente, apareceu, afinal. — Sr. Comendador, que vem a ser isto? Contenha-se pelo amor de Deus! Tenha consideração ao menos com estas senhoras! Eu não posso permitir estas cenas vergonhosas em minha casa! Nesse momento, quatro soldados, que rondavam a praia, comandados por um cabo, invadiram o Sanatorium, para pôr termo ao conflito. O cabo, sem dar satisfações a ninguém, foi direto a Romaguera, que urrava ainda corno um tigre com furor: — O senhor está preso! Foi água na fervura. Romaguera voltou-se pálido de espanto! — Preso, eu? — O senhor mesmo... Siga! — Não vou! Não vou! Eu não posso ser preso assim. Sou comendador da Ordem da Rosa! — Qual comendador, nem meio comendador! A República acabou com todas estas baboseiras! Siga! Vá! — Eu sou comendador... comendador! Silveira Jacques, Raymond e o Dr. Biló, intervieram. — Tenha a bondade, Sr. Cabo, não faça isso... Por que cometer semelhante violência? — Porque este senhor está perturbando o sossego da cidade inteira e o meu dever é garantir a ordem. Então, o coronel Atanásio, solene, valendo-se da sua autoridade militar, pôs termo à audácia do inferior:

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— Cabo, sou eu que mando, volte para trás! Não admito que desacate um homem de bem, como é o Sr. Comendador Romaguera! Eu me responsabilizo por ele! — Bem, Sr. Coronel, queira desculpar. Retiro-me. — E, fazendo a continência do estilo, saiu com os quatro soldados. EM ÊXTASE Nem à quermesse, nem ao baile, assistira Ester. O seu pobre corpo, quebrado pela nevrose, murchava e morria. Depois do passeio à gruta — fora essa a última vez que saíra ao sol e ao ar livre — mais frequentemente, as crises voltaram, duas e quatro por dia, terríveis. Dona Malvina, desesperada, já, sem confiança em Silveira Jacques recorrera a todos os médicos de São Bernardo. Chegavam e sacudiam logo a cabeça: quem não via que a morte já se havia apoderado daquele corpo mirrado, comido pela moléstia? Um deles, todavia, por comiseração, não saiu mais de junto da cabeceira da moça. Dona Malvina ficava assim mais requente: a presença de um facultativo reanimava-a, dava-lhe ainda à alma um derradeiro raio de esperança. Chamava-se Viçosa esse médico. Moço ainda, sempre espandongado, rindo muito, com um riso que mostrava uma dentadura suja, tinha um andar acapoeirado, gestos largos e francos de boêmio. Não era ignorante. Ganhava apenas para comer: boêmio incorrigível, conservara a independência e a despreocupação dos seus tempos de estudante. No Rio, logo depois de formado, quase morrera tísico: o clima de São Bernardo o salvara. E para ali ficou, vendo doentes que em geral lhe não pagavam:casou, encheu-se de filhos, habituou-se à pacatez vadia daquela vida sem ideal e sem futuro. Boa alma! Os rapazes chamavam-lhe o Dr. Bórgia. Por quê? É que médico tinha a mania de oferecer jantares em casa. Sucedia, porém, que a sua boa vontade era incomparavelmente maior que o recheio da sua bolsa e que a perícia da sua cozinheira. De modo que os jantares eram abomináveis; quem aceitava um desses convites homicidas preparava-se para ficar de cama no dia seguinte, às voltas com uma gastralgia. Daí a fama de envenenador de que gozava o Dr. Viçosa, e a pavorosa alcunha com que o condecorava o reque Cândido. Interessou-se muito pela pobre moça, logo a vez primeira que a viu. Foi no dia seguinte ao baile que o chamaram. A música, a vozeria, a agitação da festa tinham agravado a moléstia da histérica. Só, no seu quarto abafado, cheio de um cheiro nauseante, misto de éter e suor de agonia. Ester ouvira, pela noite

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longa e triste, o rumor da festa em que rolava, delirando, toda a sociedade fina de São Bernardo. Era a vida! Era o prazer! Era a alegria! Era o amor! A orquestra enchia todo o hotel de acordes vivos, de notas ardentes, de valsas... Risadas claras cantavam alto... E ela só! Morrendo! Finando-se a pouco e pouco, miseravelmente! E ao seu lado, D. Malvina, desesperada de Deus, e dos homens, já sem lágrimas, amaldiçoava aquilo, que era como uma profanação, um escárnio... Todos vivendo e gozando! E a sua pobre filha, tão nova, tãoboa, tão bela, descendo a mais e mais para a cova... De manhã, às seis horas, quando sobre as salas e os corredores desarranjados do hotel pesava um ar de tédio, de modorra, de cansaço, a infeliz moça queixou-se de um recrudescimento horrível da cefalalgia cruel que a acabrunhava periodicamente. Agora, a dor era hedionda. Parecia que lhe metiam a cabeça dentro de um capacete de aço, que lhe esmagava a pouco e pouco os ossos. Sob os lençóis, agitava-se, sacudido de um tremor contínuo, o corpo, que mal avultava na cama, tão acabado, tão comido o deixara já o sofrimento. E com as mãos escarnadas, de cadáver, transparentes e ossudas. Ester apertava a cabeça e gemia. Depois, uma imobilidade de catalepsia lhe tomou os músculos. Um êxtase indefinível lhe adoçou a fisionomia, pondo-lhe um clarão de sonho nos grandes olhos negros, abertos, fixos no teto, e um sorriso de anjo nos grandes lábios roxos e frios. Foi assim que o Telles Viçosa a veio encontrar. Não lhe disse nada. Deixou-se ficar no quarto, compreendendo que aquilo era o fim, e querendo ao menos com a sua presença dar coragem à mãe da moça, já que toda a ciência do mundo não poderia salvar da morte aquela infeliz. Ao meio-dia, o êxtase durava ainda. Uma infinita meiguice, uma inefável expressão de bondade iluminava a face da condenada. O hotel acordara já. Saíam dos quartos fisionomias ainda amarrotadas de fadiga e sono. E senhoras começaram a afluir ao quarto da doente, interessadas. A Marquesa do Tijuco foi uma das primeiras. Uma grande expressão de desgosto lhe contraía a face. Chegou, beijou D. Malvina, e quedou sobre uma cadeira, olhando Ester. Lágrimas lhe turvavam os olhos... E disse com pena: — Coitadinha! Parece Santa Teresa de Jesus chamando o seu Esposo divino!

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E ficou, calada, chorando. Depois, como ouvisse o soluçar angustiado de D. Malvina, teve uma frase de supremo desconsolo: — Ah! Minha pobre amiga! Tenha coragem! Se soubesse... Hoje é o dia das desgraças!... D. Malvina não respondeu. Provavelmente, nem ouviu. Toda a sua alma estava ali, alheada de tudo e de todos, pairando dolorosamente sobre aquele corpo adorado de onde a vida fugia. Que lhe importavam todas as outras desgraças? A desaventurada senhora nem soubera dos escândalos da véspera... Também, não eram só esses escândalos o que preocupavam a Marquesa. Ah! — já estava habituada a esses destemperos de linguagem e de ação de gente tão ordinária!... Mais graves acontecimentos lhe angustiavam o espírito... Na véspera, chegara um telegrama do Rio para Romaguera. Ele, atarantado com o baile e com o ciúme, não abrira logo. Mas, agora andava a mostrá-lo a todos, com ar de triunfo. — Grandes notícias! Notícias extraordinárias! O telegrama dizia que constava ter Saldanha da Gama proposto ao governo a rendição da esquadra. Que, não tendo sido aceita essa proposta, travar-se-ia ao meio dia de 13 o combate e que este seria tremendo. Os custodistas protestaram: — “Ah! veriam! Qual rendição! Eram calúnias! Travasse-se o combate, e veriam! A revolta ia triunfar!” Os governistas, por seu turno, bradavam entusiasmados que chegara a hora do castigo e da desafronta. Raymond, para expandir as suas esperanças, tirou do fundo da memória uma citação latina: Dies irae!... Isso preocupava a Marquesa. Um secreto pressentimento a advertia de que grandes desgraças estavam iminentes. E, olhando a moça que morria, ela talvez perguntasse a si mesma se o seu belo ideal, tão carinhosamente alimentado, não ia também morrer dentro em breve, golpeado por uma tremenda desilusão...

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Às quatro horas, o vigário de São Bernardo sacramentou a moça. Os seus braços tinham agora uma rigidez de morte. O olhar, parado, perdia pouco a pouco o brilho. E só o coração vivia naquele miserável corpo sem movimento, mas batendo tão fraco que a custo a mão trêmula de D. Malvina lhe sentia as pulsações hesitantes dentro do peito adorado da filha. Ao anoitecer, Ester era cadáver. Passara da vida à morte, sonhando. Um choro alto cresceu dentro do quarto. Foi preciso arrancar dali a pobre D. Malvina, alucinada. E quando a conduziram, em braços, para a sala de jantar, os criados acendiam os lampiões, e ouvia-se perto, no gabinete de jogo, a voz de Raymond, que já, agarrado à roleta, dizia: Dois cartões no reque zero!... A FALÊNCIA Ester está morta; pálida e fria, mãos cruzadas sobre o seio virginal, fronte corada de rosas brancas, jaz imóvel, como dormindo um sono tranquilo, de que não despertará jamais. No salão grande, em que há dois dias, apenas, ressoavam as harmonias do concerto e as músicas estimulantes do baile, foi armada a câmara ardente. Forraram-se as paredes de panos negros, com emblemas fúnebres bordados a prata; ao centro ergueram a essa; sobre a essa, o esquife de damasco roxo, com franjas e flores de ouro; ao fundo, precisamente onde estivera o estrado da orquestra, um altar aparecia, e no altar um crucifixo rodeado de círios, que espalhavam meia luz mórbida e triste. Círios maiores ardiam alinhados em duas longas alas paralelas, ao redor do esquife; e deles caía uma auréola indecisa sobre o rosto macilento e descarnado da moça. Estava bela D. Ester, tinha a beleza particular da morte em plena juventude. Era uma flor ceifada em todo o esplendor do seu viço; faltava-lhe sem dúvida a frescura matinal, o brilho primaveril, o encanto da cor purpurina e viva; mas adornava-a certo toque fugitivo de melancólica suavidade, talvez ainda mais simpática e atraente do que as galas da saúde e da mocidade... A paz da eternidade se lhe refletia no rosto, em que nenhum vestígio haviam deixado as contorções de sofrimento físico; dir-se-ia não ser uma mulher, mas uma estátua sagrada esse vulto estendido em repouso entre flores e lumes; a sua palidez era de marfim antigo, fria e delicadíssima; e os seus lábios, onde apenas um leve tom sanguíneo ficara, entreabriam-se nesse sorriso plácido e santo, que nenhuma criatura viva possui, e apenas se encontra em imagens de igreja, esculpidas e contornadas com intuito de piedoso fervor. Toda a gente do Sanatorium estava sob a impressão daquela morte, comovente, embora prevista, e na memória se lhes retraçavam as cenas lúgubres da recente agonia,

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tão intensa e profundamente dolorosa. Era objeto de unânime compaixão a pobre, desolada mãe, que, sem dar um grito, sem derramar uma lágrima, ficara atônita, muda, estúpida, com o olhar vago e espantado, com as feições reprimidas, como petrificada de horror e angústia ao peso de tamanha desgraça; esse golpe supremo rompera o último vínculo que a prendia ao mundo, e, daí por diante, a sua existência, provavelmente curta, se arrastaria ao acaso, sem norte, sem guia como batel cuja bússola se perdeu no meio de um mar tenebroso. Ela ficara no quarto, silenciosa, alheia a tudo: as senhoras, entre as quais a Marquesa, estavam sentadas em círculo ao redor dela, cercando-a de atenções e carinhos; mas a mãe infeliz nada reparava nem percebia, em concentração absoluta de sentidos e faculdades: de quando em quando, levantava-se, atravessava o corredor e entrava no salão; dirigia-se para a essa, cruzava as mãos à beira do esquife, e quedava imota, meia hora, a contemplar a sua filha bem-amada... No hotel, reinava um silêncio inviolável; todos os semblantes traduziam uma íntima consternação. Foi no meio dessa consternação e desse silêncio que se espalhou a notícia extraordinária da retirada do Dr. Silveira Jacques. Cosmópolis fora procurá-lo para combinar com ele o serviço fúnebre e não o encontrara em seus aposentos; correra toda a casa, indagara pela vizinhança, e ninguém soubera dar-lhe informação segura; somente um carregador da estrada de ferro contara-lhe que, na véspera à noite, o doutor e seu irmão Joãozinho Silveira lhe haviam confiado alguns baús e malas para os despachar secretamente na estação. Era meio-dia. A nova espalhou-se pela cidade com incrível rapidez. No comércio, causou ela uma sensação mista de assombro e revolta; não havia em São Bernardo estabelecimento de certa importância, a que o Dr. Silveira Jacques não devesse quantia considerável; a ninguém pagara vinte réis. Nunca se vira nessa terra honesta, de costumes simples e francos, patifaria tão bem feita; e os negociantes, aturdidos oscilavam entre o espanto produzido por tamanha audácia, e a raiva de se verem logrados tão indignamente na sua boa-fé. Mas, afinal, como era de prever, triunfou este último sentimento. Em um abrir e fechar de olhos, os credores convocaram uma reunião e chegaram a um acordo; essa reunião era o que se podia imaginar de mais híbrido e heterogêneo nos anais das falências célebres. Ali, ao lado do Sr. Antônio Maia, diretor-presidente da Companhia de Viação Férrea, que presidia à assembléia, e do Sr. Afonso Gurgel, um dos mais fortes capitalistas do lugar, havia um barbeiro de São Bernardo, Roberto Mangoni, o açougueiro, italiano também, o fornecedor de galinhas, D. Alexandrina, uma velha gorda, doceira de fama, que

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presidira ao preparo da ceia do grande baile, e até duas ou três lavadeiras. Os próprios criados do hotel, a quem o diretor pedia dinheiro aos cinco e aos dez mil réis, apareceram no fim da sessão, senão para fazerem valer os seus direitos, ao menos para protestarem contra a burla de que eram vítimas. O Daniel parecia o mais furioso nas suas reivindicações, e falava de meter no xadrez aquele crônico, que além de o lesar em 200$000 de ordenado, não lhe restituíra 30$000 tomados a título de empréstimos. Decidiram os credores, depois de apresentarem documentos de toda sorte, letras a vencer naquele dia, créditos simples, recibos, contas legalizadas, que se abrisse a falência; certamente, era um incômodo enorme para os hóspedes do hotel, que tinham de sair todos para o meio da rua: mas que fazer? Era aquele o único recurso garantido pelo código do comércio. Assim, uma comissão de cinco proprietários, presidida pelo Sr. Antônio Maia, dirigiu-se ao Sanatorium, acompanhada do juiz, do escrivão e do delegado para verificar oficialmente o desaparecimento do Dr. Silveira Jacques. Mas, no vestíbulo, já os aguardavam o Barão de Raymond e Cavalcanti, nomeados pelos companheiros de casa para medianeiros nesse negócio. — Sr. Antônio Maia — disse Raymond — não é por nosso interesse que pedimos um prazo de vinte e quatro horas ao menos... Já não falamos do transtorno natural de uma mudança em malas e da dificuldade de encontrar em São Bernardo acomodações para tanta gente. Mas o senhor vê que temos um cadáver em casa. É preciso antes de tudo cuidarmos dele, prestar a essa pobre moça morta os últimos serviços de piedade... Compreenda que o aparato de um arrolamento, as formalidades de uma falência, não condizem com cerimônias fúnebres. Portanto, os senhores não recusarão sustar as diligências até amanhã ou depois... — Sem dúvida, — respondeu o Sr. Maia, que sabia aquilatar no seu devido valor as boas razões. — Nem vimos nós aqui vingar nos hóspedes, as culpas do diretor. Pelo contrário, queremos poupar às famílias todo o incômodo. E faremos quanto for compatível com a necessidade de garantir os nossos direitos... O enterro é hoje à noite? — É. Às oito horas. Parece-me que nada faltará e todas as providências estão tomadas. Já convidamos vários amigos da cidade, e o senhor convidará os que entender. — Em que cemitério vão sepultá-la? — No do Carmo. Creio que a coitada de D. Ester recebeu antes de falecer o hábito da Ordem Terceira.

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Às oito horas, pouco mais ou menos, desceu o cortejo as escadas do hotel. Fora lancinante o adeus da mãe aflitíssima. Saindo do torpor, do letargo absoluto em que parecia imersa, readquiriu no momento da saída todo o vigor da sua angústia. Rompendo o círculo das senhoras, que a rodeavam, atirou-se para o féretro, quando o iam tirar da essa, e debruçou-se sobre ele, apertou freneticamente, loucamente, e uniu os seus lábios, num longo e fremente beijo, aos lábios gelados da filha. Ficou assim não menos de cinco minutos, apertando cada vez mais ao seio o cadáver rígido; os assistentes, consternados, respeitavam-lhe a dor suprema; alguns empalideciam e choravam. Mas, por fim, foi mister arrancar a infeliz senhora daquele êxtase pungente e horrível e, então, é que tiveram de arcar com a sua resistência tenaz. Ela não gritava, nem parecia fazer esforço algum; lutava apenas com a imobilidade; e os seus braços tinham a dureza e a tensão de duas barras de aço. Mas, de súbito, foram afrouxando naturalmente, desligaram-se de tudo, e D. Malvina tombou para trás, inanimada; a Marquesa e D. Carmita, auxiliadas por Álvaro Cândido, a transportaram para o quarto. Era já noite fechada; noite tépida, serena, estrelada, dessas em que o perfume das flores se evola pelos jardins mais intenso e concentrado Realmente, no parque, em volta do Sanatorium, ondas de aromas volteavam, aromas diversos, que se fundiam, distinguindo-se melhor as magnólias, dos manacás, das acácias e dos jasmins-do-cabo. No vestíbulo, um irmão de São Francisco distribuía grandes tochas; e os circunstantes, empunhando-as, dispunham-se lentamente em duas compridas alas. Precedido pelo vigário, que rezara na câmara ardente as primeiras preces, o esquife passou; e logo as duas alas puseram-se, em movimento, passo a passo. Atravessaram vagarosamente o parque; e passaram o portão da esquerda; seguiram praia acima, e entraram pela ponte severa de pedra. Uma banda de música tocava marchas fúnebres. Impossível de descrever a sensação de luto e agonia que causava o espetáculo daquele préstito silencioso, caminhando nas sombras da noite, em cuja escuridão sobressaíam atrozmente dezenas de luzinhas trêmulas, agitadas pelo movimento do cortejo... Tal impressão era agravada pelos acordes plangentes e tristíssimos das marchas fúnebres, que pareciam sair de um núcleo tenebroso, tal a mancha negra e errática que formavam ao longo o grupo dos músicos, na cauda de acompanhamento. Estavam abertas de par em par as portas da Igreja do Carmo. Depositado o esquife sobre a essa, armada na nave central, começou o vigário a entoar a encomendação. Do coro, uma dúzia de mulatos tenores e barítonos mais ou menos afinados — respondia com todo o fôlego dos pulmões, puxando as notas, cavernosas e ululantes, como se fosse preciso fazerem-nas ouvir a toda a cidade de São Bernardo. Cantaram, cantaram, cantaram; o vigário entoou outros salmos, deu a volta à essa, parando em frente a cada uma das faces,

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aspergindo o caixão, e rezando o Pater Noster. Outra vez, começaram os mulatos o seu cantochão; e destarte encheram talvez uma hora, alternando-se com o padre, e berrando sem tréguas e sem fadiga. — Ora, mas que absurdo costume desta gente daqui! Não acham a morte bastante lúgubre, querem torná-la mais lúgubre ainda, e além de tudo odiosa... Quem pode assistir a isso, sem um sentimento de pavor e repugnância?... — observava Manhães de Azevedo a Joãozinho Romão, que estava a seu lado. — Isto aqui é assim, por uma só razão: porque sempre foi assim... Este povo é aferrado aos seus hábitos, e não os larga nem a cacete. Eu muitas vzes, em conversas e em artigos de jornal, censurei este uso absurdo — Mas foi inútil... — É um resto de selvageria medieval ou indígena — acudiu Olívio Bivar. — Até certo ponto, é pitoresca... Vicentim de Guimarães, num acesso de neurastenia, retirou-se aterrado. A encomendação terminara; e o cortejo saía do templo, caminho do cemitério próximo. “DIES IRAE” Que crônico! Que crônico! — uivou Daniel, à porta do hotel, no círculo indignado dos criados. — Gatuno de gravata lavada! Se te pilho num canto escuro que eu cá sei!... Feroz desse modo, por toda a manhã se expandira a cólera do Daniel e de todos os criados do Sanatorium, verberando o procedimento do fujão. E já nenhum deles se prestava a auxiliar os hóspedes, atrapalhados com a precipitação da mudança. — Lá se avenham! — bradava o português; — todos eles são a mesma canalha de gatunos crônicos! Aqui já não há criados, nem patrões! Ao anoitecer, devia ser fechado o Sanatorium. Já pelo vestíbulo, pelos salões, pelos corredores, empilhavam-se as malas, as caixas, os baús. Carregadores vindos do Hotel Martinelli e da Pensão Corrêa, onde haviam conseguido arranjar cômodos alguns dos desventurados hóspedes, vítimas da fuga de Silveira Jacques — circulavam. Uma confusão indescritível reinava. Eram três horas da tarde e ainda ninguém almoçara. Cosmópolis, muito digno, recusava-se terminantemente a consentir que se acendessem os fogões. E, corretamente abotoado num terno preto, cruzando a largas passadas a cozinha, resmungava, num francês arrevesado:

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— Far de coquins! Fripouille!... Conhecia-se, agora, em todos os seus pormenores, a história da deserção do Silveira Jacques. As suas malas, arrumadas às pressas, haviam sido previamente mandadas à estação, uma noite. E na madrugada seguinte, toda a família saíra às ocultas, em ponta dos pés, com precauções de criminosos. Ninguém os vira tomar o trem. Bilontra consumado, o Silveira fugira como um escroque vulgar, arrastando na vergonha dessa fuga toda a família. No salão de jantar, autoridades e credores procediam ao arrolamento de móveis, de utensílios, de gêneros. Antônio Maia, folheando os livros comerciais da casa, tinha exclamações de espanto e pavor: o velho negociante nunca vira igual desordem, desfaçatez semelhante, equivalente relaxamento. O dinheiro entrara e saíra sem que uma simples nota que fosse, lançada às pressas nos livros, revelasse esse movimento. Que horror! Às quatro horas, D. Carmita apareceu no vestíbulo, dando o braço a Raymond. Um murmúrio de espanto correu rodas dos rapazes. Como? Era então o Barão quem afinal levava a melhor? Vidigal, corrido, fumava a um canto, raivosamente. E Vicentim de Guimarães disse, com filosofia: — Vejam vocês! E ainda há quem queira contestar o soberano e iniludível poder do dinheiro! Aqui tem uma moça requestada por três homens: a um deles, ao mais moço, ao mais belo, ao mais espirituoso, dá as suas preferências durante meses. Em torno dela, a discórdia ferve, rugem as altercações, andam murros e bofetadas numa roda viva. Chega, afinal, o epílogo da peça. E ela, que parecia desprezar o dinheiro, atira-se a um capitalista velho... A moça fazia as suas despedidas, sempre pelo braço do argentário. Apertou mesmo a mão do Vidigal, com desembaraço. O Barão, acompanhando-a, sorria. E, despedindo-se também dos que ficavam, explicava-se: Ia para o hotel Martinelli... mas só ficaria lá uma noite: partiria na seguinte manhã para Barbacena, onde se demoraria mais uns dois meses. E quando, todo inclinado para a rapariga, desceu com ela a escadaria do hotel, a sua mão direita, metida na algibeira da calça, remexia moedas triunfantemente. E as moedas tiniam, cantando em notas ardentes e claras, a vitória suprema do Dinheiro... Mal tinham transposto o portão, rangeu no vestíbulo o bando barulhento da troupe de D. Ifigênia da Costa. Ela, à frente, com a sua gordura pesada, tinha na

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face um ar de desapontamento: — Que maçada! Tinha de ir morar no teatro, na caixa... Pelo braço do Mendes, Leviccolo dava pulinhos. E, segurando por um cordel de seda o seu cachorrinho, cantarolava: Dansons à la ronde, Joyeusement … C´est la fin do monde… du monde !... Dansons à la ro…o…o…on…de !... E toda a troupe gargalhava, encantada com aquela aventura, tão digna das suas tradições boêmias. Mendonça, careteando, de bengala ao ombro, garganteou fanhosamente: É marchar! É marchar! Rataplan! Plan! Plan! Romaguera, nesse momento, fez uma entrada teatral. Agitava na mão um telegrama: — Vitória! Vitória! — fugiram sem combate os bandidos! — derrotados! Derrotados em toda a linha! Todos acorreram ansiosos. E ele leu o telegrama, que lhe havia chegado naquele mesmo instante. Recebera-o mesmo na estação... E viera para o Sanatorium a galope. Encontrara no caminho D. Carmita, muito risonha, muito alegre, muito aconchegada a Raymond. Tivera um minuto de cólera. Mas entregara-se logo de novo à sua alegria de governista enragé... Oh! Aquela vitória do governo era a sua glória! Como ia ele esmagar com o seu triunfo aquela corja de oposicionistas, cuja hostilidade surda lhe havia sempre cercado a vida, em São Bernardo, de desapontamentos, de vexames, de ridículos!... O telegrama era minucioso. Dizia que os navios e as fortalezas dos revoltosos, na baía do Rio, hostilizados durante uma hora, tinham ficado mudos sob a chuva das bombas e das granadas; as forças do governo tinham reconhecido, afinal, que os redutos rebeldes haviam sido abandonados; o almirante Saldanha, com toda a sua oficialidade, refugiara-se a bordo de um navio português... Levantaram-se logo protestos: — É impossível! Isso é um absurdo! Que fé pode merecer este telegrama?....

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— Que formidável patranha! — disse com desprezo Vidigal. — Patranha? Mentira? — rugiu Romaguera. E ia já saltar sobre o rapaz, com todo o seu velho ódio acordado às súbitas, quando, contendo-se, teve um sorriso de desdém. Oh! Para que havia ele de se exaltar, se para a sua vingança bastava a derrota tremenda, cuja notícia estava acabrunhando aqueles sebastianistas?... E limitou-se a dizer sarcasticamente: — Acha então que é uma patranha? Pois vá à estação, Sr. Sabe-tudo! Vá a estação, e diga-me depois se é patranha! De fato, o Alfredo Pereira, qne chegava de lá, confirmou a notícia. O chefe do tráfego recebera da estação central um telegrama circular do diretor, comunicando a rendição das forças revoltosas e ordenando-lhe que embandeirasse a gare, em sinal de regozijo. E quando Alfredo acabou de falar, uma girândola de foguetes espocou perto, festivamente, seguida logo de outras. E Romaguera crescia... Como que o seu corpanzil se esticava... Um orgulho desmarcado lhe inchava as bochechas fartas. E o seu olhar, carregado de ódio e desprezo, varria o grupo. Não disse mais uma palavra: dobrou lentamente o seu telegrama, enfiou-o na algibeira, e saiu, pausado e solene, como um triunfador. E dentro do hotel, no grupo dos hóspedes, pesou um silêncio penoso. Mas Leviccolo exclamou: — E então? Que temos nós com isso? Vamos comer! Não posso mais! Houve um rebuliço geral. Sim, já era tempo de ver se era possível jantar! A troupe foi a primeira a sair. No jardim, as atrizes devastaram os canteiros. Logo depois, D. Eufrásia Fontoura, a Aquidabã, acompanhada da Lancha Lucy e das torpedeiras, saiu também. As meninas carregavam caixas de chapéus, trouxas de roupa. Iam para a Pensão Corrêa. O grupo dos rapazes, logo em seguida, marchou para o Martinelli. E reque Cândido dizia a Olívio Bivar, apontando a Aquidabã, que caminhava com gravidade, escoltando as suas embarcações pequenas: — Veja lá! Lá debanda toda a esquadra do Custódio!

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Vazio o jardim; vazio o vestíbulo. A tarde caía. No ar fresco, as árvores palpitavam à viração. Dentro da sala de jantar, a voz rouca do escrivão enumerava objetos arrolados. Com a aproximação da noite, uma tristeza indizível cobria o imenso edifício, fulminado por aqueles acontecimentos espantosos. E, de minuto, em minuto, estrepitavam no ar foguetes, celebrando a vitória do governo. Foi então que três pessoas apareceram à porta do Sanatorium: o velho Cavalcanti e os Marqueses do Tijuco. Cavalcanti arranjara para o nobre casal acomodações numa casa particular. Viera buscá-los cedo. Mas a Marquesa quisera que fossem os últimos a sair. O Marquês, trêmulo, mais trêmulo, mais pálido do que nunca, começou a descer, pequenino, tropeçando, de degrau em degrau, ajudado por Cavalcanti. E a Marquesa parou um momento no tope da escadaria. Vestia de preto. Alto, forte, imóvel, o seu vulto se destacava, como o de uma estátua. Esteve olhando em torno, com um largo olhar em que se espelhava toda a amargura, toda a desolação daquela desgraça. Dir-se-ia o gênio das ruínas, pairando sobre os escombros de um cataclisma. Mas, violenta, uma girândola estrondou mais perto. A nobre senhora estremeceu. Ah! Eram os funerais do seu sonho!... E desceu. Duas lágrimas lhe correram pela face gorda. Cavalcanti, vendo essas lágrimas, e compreendendo-as, esboçou uma frase de consolo e carinho. — Senhora Marquesa... Ela, porém, fitou-o com desdém. Com que direito se metia aquele plebeu a entender das suas mágoas e das suas desilusões?... Anoitecia. Um profeta, com a sua vara longa em cuja ponta ardia uma chama, vinha já, ao longo da praia, acendendo os lampiões. E os foguetes cantavam no ar calmo, requentes, festivos, estalando...

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