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Olavo de Carvalho Ditadura

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Olavo de Carvalho Ditadura

 Bah! (jornal universitário gaúcho), maio de 2004

Como repercussão da matéria de capa da edição anterior, "40 anos

da ditadura", o filósofo, jornalista e escritor Olavo de Carvalho

gentilmente escreveu-nos um texto exclusivo com sua opinião sobre

esse turbulento período de nossa história.

* * *

Tudo o que tenho lido sobre o movimento de 1964 divide-se nasseguintes categorias: (a) falsificação esquerdista, camuflada ou não sobaparência acadêmica respeitável; (b) apologia tosca e sem critério,geralmente empreendida por militares que estiveram de algum modoligados ao movimento e que têm dele uma visão idealizada.

Toda essa bibliografia, somada, não tem valor intelectual nenhum.Serve apenas de matéria-prima, muito rudimentar, para um trabalhode compreensão em profundidade que ainda nem começou.

Para esse trabalho, a exigência preliminar, até hoje negligenciada, édistinguir entre o golpe que derrubou João Goulart e o regime queacabou por prevalecer nos vinte anos seguintes.

Contra o primeiro, nada se pode alegar de sério. João Goulartacobertava a intervenção armada de Cuba no Brasil desde 1961,

estimulava a divisão nas Forças Armadas para provocar uma guerracivil, desrespeitava cinicamente a Constituição e elevava os gastospúblicos até as nuvens, provocando uma inflação que reduzia o povo àmiséria, da qual prometia tirá-lo pelo expediente enganoso de daraumentos salariais que a própria inflação tornava fictícios. A derrubadado presidente foi um ato legítimo, apoiado pelo Congresso e por toda aopinião pública, expressa na maior manifestação de massas de toda ahistória nacional (sim, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”

foi bem maior do que todas as passeatas subseqüentes contra a

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ditadura). É só ler os jornais da época – os mesmos que hoje falsificamsua própria história – e você tirará isso a limpo.

O clamor geral pela derrubada do presidente chegou ao auge em dois

editoriais do Correio da Manhã que serviram de incitação direta aogolpe. Sob os títulos “Basta!” e “Fora!”, ambos foram escritos por Otto

Maria Carpeaux, um escritor notável que depois se tornou o principalcrítico do novo regime. Por esse detalhe você percebe o quanto era

 vasta e disseminada a revolta contra o governo.

O golpe não produziu diretamente o regime militar. Este foi nascendode uma seqüência de transformações – quase “golpes internos” – cujasconseqüências ninguém poderia prever em março de 1964. Na verdade,não houve um “regime militar”. Houve quatro regimes, muitodiferentes entre si: (1) o regime saneador e modernizador de CasteloBranco; (2) o período de confusão e opressão que começa com Costa eSilva, prossegue na Junta Militar e culmina no meio do governoMédici: (3) o período Médici propriamente dito; e (4) a dissolução doregime, com Geisel e Figueiredo.

Quem disser que no primeiro desses períodos houve restrição séria à

liberdade estará mentindo. Castelo demoliu o esquema políticocomunista sem sufocar as liberdades públicas. Muito menos houve,nessa época, qualquer violência física, exceto da parte dos comunistas,que praticaram 82 atentados antes que, no período seguinte, viessem aditadura em sentido pleno, as repressões sangrentas, o abusogeneralizado da autoridade. O governo Médici é marcado pela vitóriacontra a guerrilha, por uma tentativa fracassada de retorno àdemocracia e por um sucesso econômico estrondoso (o Brasil era a

46ª. economia do mundo, subiu para o 8º. lugar na era Médici, caindopara o 16º. de Sarney a Lula). Geisel adota uma política econômicasocializante da qual pagamos o prejuízo até hoje, tolera a corrupção,inscreve o Brasil no eixo terceiro-mundista anti-americano e ajudaCuba a invadir Angola, um genocídio que não fez menos de 100 mil

 vítimas (o maior dos crimes da ditadura e o único autenticamentehediondo -- contra o qual ninguém diz uma palavra, porque foi a favorda esquerda). Figueiredo prossegue na linha de Geisel e nada lheacrescenta – mas não se pode negar-lhe o mérito de entregar arapadura quando já não tinha dentes para roê-la.

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É uma estupidez acreditar que esses quatro regimes formem unidadeentre si, podendo ser julgados em bloco. Na minha opinião pessoal,Castelo foi um homem justo e um grande presidente; Médici foi omelhor administrador que já tivemos, apesar de mau político. Minha

opinião sobre Costa, a Junta Militar, Geisel e Figueiredo não pode serdita em público sem ferir a decência.

Em 1964 eu estava na esquerda. Por vinte anos odiei e combati oregime, mas nunca pensei em negar suas realizações mais óbvias, comohoje se faz sem nenhum respeito pela realidade histórica, nem emocultar por baixo de suas misérias os crimes incomparavelmente maisgraves praticados por comunistas que agora falseiam a memória

nacional para posar de anjinhos.

 A História oficial de 1964 

Olavo de CarvalhoO Globo, 19 de janeiro de 1999 

Se houve na história da América Latina um episódio sui generis, foi aRevolução de Março (ou, se quiserem, o golpe de abril) de 1964. Numadécada em que guerrilhas e atentados espoucavam por toda parte,seqüestros e bombas eram parte do cotidiano e a ascensão docomunismo parecia irresistível, o maior esquema revolucionário jámontado pela esquerda neste continente foi desmantelado da noitepara o dia e sem qualquer derramamento de sangue.

O fato é tanto mais inusitado quando se considera que os comunistasestavam fortemente encravados na administração federal, que opresidente da República apoiava ostensivamente a rebelião esquerdistano Exército e que em janeiro daquele ano Luís Carlos Prestes, apósrelatar à alta liderança soviética o estado de coisas no Brasil, voltara deMoscou com autorização para desencadear – por fim! – a guerra civilno campo. Mais ainda, a extrema direita civil, chefiada pelos

governadores Adhemar de Barros, de São Paulo, e Carlos Lacerda, daGuanabara, tinha montado um imenso esquema paramilitar mais ou

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menos clandestino, que totalizava não menos de 30 mil homensarmados de helicópteros, bazucas e metralhadoras e dispostos a opor àousadia comunista uma reação violenta. Tudo estava, enfim, preparadopara um formidável banho de sangue.

Na noite de 31 de março para 1o. de abril, uma mobilização militar meioimprovisada bloqueou as ruas, pôs a liderança esquerdista para correre instaurou um novo regime num país de dimensões continentais – sem que houvesse, na gigantesca operação, mais que duas vítimas: umestudante baleado na perna acidentalmente por um colega e o lídercomunista Gregório Bezerra, severamente maltratado por um grupo desoldados no Recife. As lideranças esquerdistas, que até a véspera se

gabavam de seu respaldo militar, fugiram em debandada para dentrodas embaixadas, enquanto a extrema-direita civil, que acreditava terchegado sua vez de mandar no país, foi cuidadosamente imobilizadapelo governo militar e acabou por desaparecer do cenário político.

Qualquer pessoa no pleno uso da razão percebe que houve aí umfenômeno estranhíssimo, que requer investigação. No entanto, a

 bibliografia sobre o período, sendo de natureza predominantementerevanchista e incriminatória, acaba por dissolver a originalidade do

episódio numa sopa reducionista onde tudo se resume aos lugares-comuns da "violência" e da "repressão", incumbidos de caracterizarmagicamente uma etapa da história onde o sangue e a maldadeapareceram bem menos do que seria normal esperar naquelascircunstâncias.

Os trezentos esquerdistas mortos após o endurecimento repressivocom que os militares responderam à reação terrorista da esquerda, em

1968, representam uma taxa de violência bem modesta para um paísque ultrapassava a centena de milhões de habitantes, principalmentequando comparada aos 17 mil dissidentes assassinados pelo regimecubano numa população quinze vezes menor. Com mais nitidez ainda,na nossa escala demográfica, os dois mil prisioneiros políticos quechegaram a habitar os nossos cárceres foram rigorosamente um nada,em comparação com os cem mil que abarrotavam as cadeias daquelailhota do Caribe. E é ridículo supor que, na época, a alternativa aogolpe militar fosse a normalidade democrática. Essa alternativasimplesmente não existia: a revolução destinada a implantar aqui um

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regime de tipo fidelista com o apoio do governo soviético e daConferência Tricontinental de Havana já ia bem adiantada. Longe de secaracterizar pela crueldade repressiva, a resposta militar brasileira,seja em comparação com os demais golpes de direita na América

Latina seja com a repressão cubana, se destacou pela brandura de suaconduta e por sua habilidade de contornar com o mínimo de violênciauma das situações mais explosivas já verificadas na história destecontinente.

No entanto, a historiografia oficial – repetida ad nauseam pelos livrosdidáticos, pela TV e pelos jornais – consagrou uma visão invertida ecaricatural dos acontecimentos, enfatizando até à demência os feitos

singulares de violência e omitindo sistematicamente os númeroscomparativos que mostrariam – sem abrandar, é claro, a sua feiúramoral – a sua perfeita inocuidade histórica.

Por uma coincidência das mais irônicas, foi a própria brandura dogoverno militar que permitiu a entronização da mentira esquerdistacomo história oficial. Inutilizada para qualquer ação armada, aesquerda se refugiou nas universidades, nos jornais e no movimentoeditorial, instalando aí sua principal trincheira. O governo,

influenciado pela teoria golberiniana da "panela de pressão", queafirmava a necessidade de uma válvula de escape para o ressentimentoesquerdista, jamais fez o mínimo esforço para desafiar a hegemonia daesquerda nos meios intelectuais, considerados militarmenteinofensivos numa época em que o governo ainda não tomaraconhecimento da estratégia gramsciana e não imaginava açõesesquerdistas senão de natureza inssurrecional, leninista. Deixados à

 vontade no seu feudo intelectual, os derrotados de 1964 obtiveram

assim uma vingança literária, monopolizando a indústria dasinterpretações do fato consumado. E, quando a ditadura se desfez pormero cansaço, a esquerda, intoxicada de Gramsci, já tinha tomadoconsciência das vantagens políticas da hegemonia cultural, e apegou-secom redobrada sanha ao seu monopólio do passado histórico. É porisso que a literatura sobre o regime militar, em vez de se tornar maisserena e objetiva com a passagem dos anos, tanto mais assume o tomde polêmica e denúncia quanto mais os fatos se tornam distantes e os

personagens desaparecem nas brumas do tempo.

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Mais irônico ainda é que o ódio não se atenue nem mesmo hoje em dia,quando a esquerda, levada pelas mudanças do cenário mundial, já vemse transformando rapidamente naquilo mesmo que os militares

 brasileiros desejavam que ela fosse: uma esquerda socialdemocrática

parlamentar, à européia, desprovida de ambições revolucionárias deestilo cubano. O discurso da esquerda atual coincide, em gênero,número e grau, com o tipo de oposição que, na época, era não somenteconsentido como incentivado pelos militares, que viam na militânciasocialdemocrática uma alternativa saudável para a violênciarevolucionária.

Durante toda a história da esquerda mundial, os comunistas votaram a

seus concorrentes, os socialdemocratas, um ódio muito mais profundodo que aos liberais e capitalistas. Mas o tempo deu ao "renegadoKautsky" a vitória sobre a truculência leninista. E, se os nossosmilitares tudo fizeram justamente para apressar essa vitória, por quecontinuar a considerá-los fantasmas de um passado tenebroso, em vezde reconhecer neles os precursores de um tempo que é melhor paratodos, inclusive para as esquerdas?

Para completar, muita gente na própria esquerda já admitiu não

apenas o caráter maligno e suicidário da reação guerrilheira, mas acontribuição positiva do regime militar à consolidação de umaeconomia voltada predominantemente para o mercado interno – umacondição básica da soberania nacional. Tendo em vista o preçomodesto que esta nação pagou, em vidas humanas, para a eliminaçãodaquele mal e a conquista deste bem, não estaria na hora de repensar aRevolução de 1964 e remover a pesada crosta de slogans pejorativosque ainda encobre a sua realidade histórica?