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Olavo de Carvalho Edmund Husserl Contra o Psicologismo Prelec ¸˜ oes Informais em torno de uma leitura da Introduc ¸˜ ao ` as Investigac ¸˜ oes L´ ogicas Rio de Janeiro IAL 1996 i

CARVALHO, Olavo de. Edmund Husserl Contra o Psicologismo

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Page 1: CARVALHO, Olavo de. Edmund Husserl Contra o Psicologismo

Olavo de Carvalho

Edmund HusserlContra o Psicologismo

Prelecoes Informais em torno de uma leitura

da Introducao as Investigacoes Logicas

Rio de JaneiroIAL1996

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Atencao:

Este material nao foi revisadopor Olavo de Carvalho.

Nao basta crer em Deus; e preciso acreditar tambem no diabo.

Em nosso tempo, o diabo substitui a logica por uma falsa psicologia.

Frithjof Schuon

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Sumario

1 Prelecao I 31.1 A origem da logica . . . . . . . . . . . . . . . . . 31.2 As condicoes essenciais do conhecimento ci-

entıfico, ou: a ideia pura de ciencia . . . . . . . . . 81.3 Condicoes existenciais para a ideia de ciencia pura 191.4 Evolucao e transformacoes da ideia de ciencia . . . 321.5 Evolucao da Ideia de Ciencia . . . . . . . . . . . . 451.6 Caracteres gerais da obra de Edmund Husserl . . . 53

2 Prelecao II 66

3 Prelecao III 80

4 Prelecao IV 1064.1 Espinha dorsal da historia da filosofia . . . . . . . 106

5 Prelecao V 130

6 Prelecao VI 1466.1 4. A imperfeicao teoretica das ciencias particulares 1496.2 5. Complementacao teoretica das ciencias parti-

culares pela metafısica e pela teoria da ciencia . . . 164

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Sumario

7 Prelecao VII 1747.1 6. Possibilidade e justificacao de uma logica como

teoria da ciencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176

8 Prelecao VIII 207

9 Prelecao IX 220

10 Prelecao X 239

11 Prelecao XI 267

12 Prelecao XII 273

13 Prelecao XIII 294

14 Prelecao XIV 326

15 Prelecao XV 354

16 Prelecao XVI 375

17 Prelecao XVII 401

18 Prelecao XVIII 420

19 Prelecao XIX 448

20 Prelecao XX 473

21 Prelecao XXI 510

22 Prelecao XXII 561

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Sumario

23 Prelecao XXIII 584

24 Prelecao XXIV 622

25 Prelecao XXV 635

26 Prelecao XXVI 660

27 Prelecao XXVII 676

28 Prelecao XXVIII 702

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Introducao

Edmund Husserl representa, para mim, o prototipo da honestidadeintelectual, do rigor fundado na sinceridade de propositos. Pertodele, quase todos os outros filosofos do seculo XX parecem umpouco artificiais. Ele surpreende pela absoluta ausencia de pose,pela total boa-fe, pelo empenho total naquilo que esta fazendo epela completa ausencia de motivos secundarios de ordem social,literaria, polıtica, etc.

Esta leitura informal que sera feita de algumas paginas desuas Investigacoes Logicas mostrara o poder do espırito filosofico.Nao ha melhor porta de ingresso ao mundo da filosofia; o unicoobstaculo e que se trata de um texto denso, pesado, que afugentao principiante por sua aparencia temıvel — algo como o retrato deHusserl que lhes mostrei, um par de olhos perfurantes que parecemjulgar com severidade o recem-chegado, lendo na sua alma o teordas suas intencoes. Ele e como um guardiao na porta do temploda filosofia, pronto a afastar o intruso, o farsante, o beletrista.

O que mais nos surpreende na biografia de Husserl e que noperıodo de 1933 a 1938, com a Alemanha ja sob o domınio na-zista, ele, que era judeu, continuasse imperturbavelmente o seu tra-balho filosofico, produzindo nesses anos alguns de seus trabalhosmais importantes, sem emitir jamais uma queixa, uma lamuria,inteiramente dedicado a unica coisa necessaria o amor a sabedo-ria. Muitos alemaes notaveis, judeus ou nao, se espalharam entao

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Sumario

pelo mundo, representando no Exterior a sobrevivencia do espıritoalemao aviltado no interior pela tirania. Muitos obtiveram em ou-tros paıses a gloria merecida: Thomas Mann, Einstein, Eric Weil,Eric Voegelin e outros. Mas Husserl, que permaneceu e sofreu ca-lado, foi o maior de todos. Se Deus nao destruiu a Alemanha porconsiderar que la dentro havia cinco justos, Husserl era certamenteum deles.

Quando me pergunto como os nervos desse homem nao ce-deram ante o pavor reinante, so encontro uma resposta: ele eratalvez o unico, em todo o mundo, que compreendia realmente oque estava acontecendo. Ele sabia que o horror do seculo XXtinha raızes profundas, de ordem espiritual e intelectual, que es-capavam a maioria dos observadores. Essas raızes fincavam-seno solo da crise intelectual inaugurada a partir do Renascimento,quando as ciencias foram perdendo sua inspiracao originaria desaber apodıctico, para se contentarem cada vez mais com ar-tifıcios tecnicos e o deslumbramento de resultados praticos semfundamentacao intelectual suficiente. Husserl via nesse processouma traicao a busca da sabedoria, e certamente entendia os ma-les do presente como o efeito inevitavel de uma longa demissaoda inteligencia ante o reino deste mundo. Enquanto outros brada-vam contra o presente as vezes iludindo-se na esperanca de podercombater o mal com o mal , ele, dando o presente por perdido,sondava, no passado filosofico e cientıfico, o mal que corroia asraızes da racionalidade humana, para lancar as sementes de umfuturo melhor.

Nestas leituras, tentar-se-a recolher uma parte do seu legado.

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1 Prelecao I

Rio de Janeiro, 18 de novembro de 1992

1.1 A origem da logica

Os Quatro Discursos estao, dentro de um processo historico, numaconstante interacao. E como se os temas da preocupacao hu-mana, embora permanecendo os mesmos, passassem por distintosnıveis de elaboracao, de forma que podemos comparar os Qua-tro Discursos a uma arvore da qual o Discurso Poetico constituia raiz, uma raiz que mergulha no mundo da realidade mesma, nomundo dos cinco sentidos, no mundo da experiencia mais direta, edessa experiencia, desse fundo, se destacam diferentes orientacoeshumanas, que entram em luta atraves do Discurso Retorico. Aimaginacao mostra varios objetos, que se tornam objetos de de-sejo. Daı surge a multiplicidade dos desejos, e os desejos entramem luta atraves do Discurso Retorico — o discurso persuasivo.Cada desejo tenta se sobrepor aos outros, expressando sua pre-tensao atraves do discurso retorico. De varios discursos retoricos,nenhum e mais probante que o outro, embora uns possam ser maispersuasivos. Persuasividade, no sentido em que se usa o termo naTeoria dos Quatro Discursos, e o poder de obter a concordancia deum determinado ouvinte, ou de um determinado numero de ouvin-tes. Ser probante e ter condicoes de provar, nao para uma plateia

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em particular, mas, em princıpio, para toda e qualquer plateia ca-paz do pensamento racional. E o mesmo que cogente, ou forcoso.

Quando examinados por uma inteligencia mais neutra, nenhumdos discursos retoricos e mais convincente que o outro e nenhum etotalmente cogente, ou probante. Daı os discursos retoricos pode-rem se perfilar uns ao lado dos outros como concorrentes eternos.Existem preferencias, e verdade, mas e absolutamente impossıvelprovar por A + B que um e mais verdadeiro que o outro. Mesmoporque as bases com as quais se demonstraria a superioridade deum discurso nao servem para o outro discurso. Eles partem depremissas diferentes — e a decisao racional e impossıvel. Assim,a competicao dos discursos retoricos e interminavel, no plano emque se coloca.

Porem, os varios discursos retoricos confrontados — de umponto-de-vista neutro — revelam determinados pontos comuns.Revelam certas premissas que estao por baixo, e que podem sercomuns a todos eles. Pode-se mesmo, com um pouco de paciencia,descobrir que os pressupostos diferentes de que partem se assen-tam, por sua vez, em premissas comuns, diversamente enfocadas.E com base nessas premissas que eles poderao ser, se nao julgados,ao menos combinados de determinada maneira, que entao permi-tira encontrar uma verdade para alem do confronto de opinioes.E essa verdade se encontra no momento em que, confrontandovarios discursos de opiniao, varias preferencias, percebe-se que adiscussao toda esta baseada — de maneira quase sempre implıcitae ate subconsciente — num certo numero de princıpios, que porserem auto-evidentes, podem servir de criterio para a avaliacaoe correcao mutua dos varios discursos. Confrontar discursosretoricos, reduzi-los a um denominador comum, encontrar umprincıpio de base no qual eles possam ser julgados, essa e a funcaodo Discurso Dialetico.

Uma vez, porem, encontrados esses princıpios, verificamos

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1 Prelecao I

que eles dizem respeito a aspectos muito gerais, muito univer-sais da realidade. Mas nao estamos querendo conhecer somenteprincıpios gerais, estamos querendo um conhecimento efetivo so-bre determinadas particularidades, a fim de estender nosso co-nhecimento do real efetivo (nao de meras generalidades logicas),e nesse sentido e que tiramos consequencias mais particulariza-das dos princıpios colocados, estabelecendo assim criterios paraque os princıpios possam se transformar em meios de julgamentodas varias opinioes, de uma maneira apodıctica, infalıvel, indes-trutıvel. E isso e exatamente o que se chama o Discurso Logico.

Essa progressao dos Quatro Discursos corresponde a um mo-vimento historico. Todos os temas da discussao humana provemda imaginacao poetica, da imaginacao mıtica, simbolica. Dessecaldo de imagens e de sımbolos e que se formam as vontades hu-manas opostas e em luta — daı surgindo a discussao. Da discussaosurge, ao longo do tempo, um princıpio de arbitragem que se torna,por sua vez, a base de demonstracoes cientıficas. Esse processomostra tambem um estreitamento do leque dos temas; daquelessugeridos pela imaginacao poetica somente algumas linhas seraodesenvolvidas ate chegar-se a um conhecimento cientıfico do as-sunto. O conhecimento cientıfico, por sua vez, fornece uma basesolida para a acao humana, que retroage sobre o mundo existente,real, e o transforma mediante a tecnica. A tecnica, inspirada naciencia, muda a face do mundo e muda a experiencia humana; daısurgem novos temas e novas formas imaginativas e assim o cicloprossegue indefinidamente.

E importante nao atribuir a esse ciclo uma duracao definida. Omesmo ciclo e percorrido dentro de uma cultura varias vezes e comvelocidades diferentes. O mesmo ocorre no microcosmo da mentede um indivıduo. Podemos tomar como exemplo o surgimento deuma ideia cientıfica qualquer: e evidente que as ideias cientıficassurgem no plano da imaginacao, como meras hipoteses possıveis,

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1 Prelecao I

e as vezes sob forma simbolica, alegorica, como no caso de NielsBohr, que sonhou com a estrutura do atomo. Tendo sonhado coma estrutura do atomo, ele seria um perfeito idiota se imediatamenteatribuısse certeza a esta estrutura tal como ela havia se apresentadono sonho. A partir dessa imagem, porem, surge um desejo de saberse ela contem algum conhecimento verdadeiro. E surge um desejooposto, que e o desejo de nao se deixar enganar por uma meraimagem. Esse conflito, em seguida, e elaborado na apresentacaodas razoes pro e contra aquele modelo de atomo e, finalmente elepode ser elaborado numa teoria cientıfica capaz de ser provada ourefutada logicamente. Esse ciclo deve ter sido percorrido na mentede Niels Bohr em questao de minutos. Depois, e repetido ao longodos dias com uma duracao um pouco maior, e assim por dianteem elaboracoes sucessivas ate a formulacao final da demonstracaologica, que por sua vez pode fracassar ou ter sucesso.

Do mesmo modo, podemos encarar a evolucao da teoria atomicano seculo XX num plano coletivo, historico, seguindo exatamentea mesma sequencia: uma imaginacao coletiva encontrando esque-mas hipoteticos, em seguida apostando neles — ou contra eles —,depois confrontando-os, discutindo-os ate achar um princıpio dearbitragem. Em ultima analise, toda investigacao cientıfica segueesse ciclo e nao poderia ser de outra forma.

Assim, a ideia de que se possa haver uma especie de con-fronto, uma paridade oposta, entre o mundo poetico — o mundoda imaginacao —, e o mundo cientıfico, e uma coisa que so e crıvelpara quem desconhece por completo qual e o processo da desco-berta cientıfica, quer do ponto-de-vista da psicologia individual,quer do ponto-de-vista historico, da evolucao da cultura como umtodo: o Discurso Logico cientıfico, emerge do mito, do sımbolo,atraves da mediacao dos Discursos Retorico e Dialetico.

Esse dualismo foi criado por uma especie de decreto oficial,sobretudo na Franca, a partir da formacao das Faculdades de

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Ciencias e das Letras. Mas o fato de existirem dois organismosque estudem duas coisas distintas nao quer dizer que a distincaoentre essas duas areas do conhecimento humano seja tao nıtidaquanto a distincao espacial entre os dois edifıcios que contem asrespectivas instituicoes. As Letras e as Ciencias, de fato, nao sedistinguem assim tao facilmente quanto seus respectivos edifıcios.

Com isso se pode entao, entrar um pouco mais profunda-mente no Discurso Logico, este surge como uma resposta damente grega a uma situacao criada por tres fatores. Um de-les e a proliferacao dos discursos cosmologicos incoerentes. Osfilosofos pre-socraticos discutiam todos a mesma questao: de quese compoe o mundo? Qual e a substancia que esta por tras de todaa variedade de fenomenos cosmicos? Eles se perguntam sobre anatureza do Cosmos. O que e o Cosmos, em ultima analise? Oque seria a Physis?

Physis nao quer dizer so “natureza”, no sentido da colecao dosentes visıveis, mas no sentido dos princıpios que estariam por trasde todos os fenomenos visıveis; os princıpios que unificam to-dos esses fenomenos atraves de uma lei comum, fundada tambemnuma substancia universal. Os filosofos divergiam com relacaoa isso e cada um oferecia um discurso que parecia tao persua-sivo quanto os demais discursos. A proliferacao dos discursosfilosoficos divergentes inclina, naturalmente, a mente grega ao ce-ticismo e ao relativismo; este ultimo se expressa na ideia de “Cadacabeca, uma sentenca”, ou seja: ha uma verdade diferente paracada um; e o ceticismo por sua vez, se expressa na famosa formulaque seria mais tarde a de Francisco Sanchez: Quo nihil scitur, “quenada se sabe” nem se pode saber.

Nesse mesmo ambiente de ceticismo existe tambem um outrofator, que e uma posicao de predomınio, uma posicao de prestıgioda atividade retorica, que e a arte da persuasao. Os retoricospraticamente dominavam a educacao da classe letrada leiga. Os

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retoricos eram, sobretudo, educadores, professores, e o jovem es-tudante grego, sendo um jovem de classe aristocratica, se educava,fundamentalmente, para a participacao na polıtica, para a qual aarte da retorica era o instrumento principal.

A retorica e uma arte de persuadir, porem, a tecnica da per-suasao nao permite, por si mesma, saber se o conteudo do que estasendo dito e verdadeiro ou falso. Ela da simplesmente os instru-mentos psicologicos necessarios a persuasao, e nao ao julgamentodo conteudo do que foi dito. Entao, por um lado, no campo ci-entıfico-filosofico havia uma tendencia muito grande ao ceticismoe a equalizacao, a mutua neutralizacao de todos os discursos, demodo que a adocao desta ou daquela tese filosofico-cientıfica pa-recia mais uma questao de preferencia pessoal do que outra coisa.Por outro lado, esse ambiente de subjetivismo ainda era fomen-tado pelo proprio domınio da retorica. O grego letrado do tempode Socrates e um sujeito que nao acredita em nada, que acreditaque todas as ideias sao iguais, que todas valem mais ou menos amesma coisa e que, ademais, tem os instrumentos para persuadiros outros do que quer que seja.

1.2 As condicoes essenciais doconhecimento cientıfico, ou: aideia pura de ciencia

A fim de sanar esta situacao, Socrates e Platao inventam ummetodo de tirar duvidas, que formula uma serie de exigencias paraque o saber possa ser considerado verdadeiro, independentementeda persuasividade do orador que defenda a tese, de modo que, osvarios discursos retoricos, se pudessem ser reduzidos a um con-junto de formulas retoricamente neutras, todas nao-persuasivas,

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para neutralizar o efeito retorico, ficando somente com o conteudoexplıcito das teses defendidas para, em seguida, poder conferirsua veracidade. Ou seja, se pudessemos abstrair a eloquenciados varios discursos, de modo que todos ficassem chatıssimos,e ficassemos apenas com as teses explıcitas, com o conteudoafirmativo formal daquilo que esses discursos disseram, haveriaum meio de confronta-los, possibilitando, entao, investigar qualdisse verdade e qual disse falsidade. Para tornar possıvel fazeressa confrontacao, Socrates e Platao conceberam um conjunto deexigencias que formaram a ideia pura do que vem a ser Ciencia— Ciencia no sentido mais universal, no sentido do conhecimentoverdadeiro, certo, irrefutavel, fundamental.

O que sera dito em seguida a respeito das condicoes ouexigencias do conhecimento cientıfico nao e uma exposicao lite-ral do pensamento de Socrates e Platao, mas uma interpretacaohusserliana, que o mestre deixou disseminada em varios de seustextos, como Filosofia Primeira e Logica Formal e Logica Trans-cendental, e que aqui resumo livremente, acrescentando-lhe o queme pareca que deva ser acrescentado por minha conta; ou seja, ea minha livre interpretacao da interpretacao de Husserl. A vanta-gem de entrar no assunto por essa via e que, expondo os antece-dentes historicos, ja se atinge o nucleo do pensamento do proprioHusserl, isto e, tem-se uma visao husserliana dos antecedentes deHusserl. Husserliana no espırito e na fidelidade interior, entenda-se, ja que nestas prelecoes nao tenho um compromisso de exatidaofilologica permitindo-me, assim, introduzir, onde me pareca bomfaze-lo, minhas proprias ideias, na medida em que sejam fieis, naodigo a letra, mas ao ideal da obra de Husserl.

A primeira exigencia desta ideia pura de Ciencia, e a evidenciadireta, ou seja, o conteudo afirmado deve ser, no mais possıvel,evidente, ou seja, que ele nao possa ser de outra maneira, comopor exemplo, a afirmacao: “Nos estamos aqui, agora”. Cada um

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de nos sabe isto por evidencia direta sem precisar de provas.Se pudessemos saber todas as coisas com a mesma evidencia

com que sabemos que estamos aqui agora, tudo seria muito facile nem sequer haveria o confronto dos discursos. Porem, lamen-tavelmente, isso nao se da porque existem muitas coisas que pre-cisamos conhecer mas que estao para alem da nossa experienciadireta possıvel. Por exemplo, se alguem cometeu um crime, sopodemos ter uma evidencia direta de quem e criminoso se tiver-mos presenciado o crime — e aı nao haveria necessidade de in-vestigar. Caso contrario, nao podemos ter uma evidencia direta,mas talvez possamos ter uma evidencia indireta. Uma evidenciaindireta e uma verdade que em si mesma nao e evidente, mas quee garantida por uma outra que e evidente. Por exemplo, se voceesta aqui neste momento, para chegar ate a escada voce vai ter dedar um certo numero de passos. Eu nao tenho a evidencia de vocecaminhar, nao estou vendo voce caminhar, mas sei que, se quiserir ate a escada, vai ter de dar um certo numero de passos. O que seievidentemente e que voce esta aqui, e que a escada esta la. Combase nessa evidencia direta posso acreditar numa outra evidencia,menor, mais fraca, indireta, mas que e garantida pela evidenciamaior.

Isto posto, chega-se a uma segunda exigencia da ideia deciencia, que e a de transferencia de veracidade. E necessario queuma verdade possa garantir uma outra verdade menos evidente —se ficassemos apenas com as verdades evidentes nao irıamos muitolonge, nao transcenderıamos o cırculo da nossa experiencia imedi-ata. Portanto, para existir ciencia, e absolutamente necessario queumas verdades possam ser garantia de outras verdades que naopossam se garantir por si mesmas.

Porem, o que e que garante que a primeira verdade garanta asegunda verdade? E preciso tambem que haja um nexo qualquer,uma ligacao qualquer entre as duas verdades, e aqui, a terceira

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exigencia.Mas e preciso ainda que o nexo que estabelece a transferencia

seja, ele proprio, evidente, ou seja, nao pode ser um nexo qual-quer. Isso porque, se nao for evidente, ele tambem precisara sergarantido por uma outra evidencia — e assim por diante indefi-nidamente. Temos, assim, outra exigencia que e a da existenciade um nexo evidente. Se tenho aqui uma verdade, que chamo deevidente, e ali uma evidencia indireta, tenho de ter um nexo entreas duas. Porem, se esse nexo nao e evidente diretamente, isso querdizer que ele e uma evidencia indireta que depende de uma outraverdade evidente; e havera necessidade de um outro nexo, o qualse nao for evidente vai depender de uma outra verdade evidente,a qual esta ligada por um outro nexo. Se isso nao parar nunca,ou seja, se nunca encontrarmos um nexo evidente entre a verdadedireta e a verdade indireta, acabou-se a nossa Ciencia.

Essas sao, entao, as quatro condicoes gerais, ou teoricas, daCiencia. Ciencia quer dizer conhecimento verdadeiro. A evidenciaindireta nao e evidencia em si mesma, senao seria uma evidenciadireta. Se as duas verdades que nos queremos conectar sao real-mente diferentes uma da outra, inteiramente heterogeneas, estra-nhas entre si, entao, nao havera um nexo evidente possıvel. Maspode haver nexos acidentais. Um nexo so podera ser evidente naseguinte situacao: se entre a primeira verdade e a segunda verdadenao houver, na realidade, salto algum. Porem, quando examina-mos retroativamente percebe-se, de fato, que a segunda verdadee igual a primeira verdade, embora nao tivesse assim parecidode inıcio. Como se faz isso? Se temos uma verdade evidentede que estamos aqui e a escada esta la e, eu, partindo da pri-meira evidencia de que estamos aqui e a escada esta la, digo quepara chegar ate la, precisamos nos mover. O que e mover-se? Edeslocar-se no espaco. O que e aqui e la? Sao diferentes lugares noespaco. Entao, eu dizer que voce esta aqui, e exatamente a mesma

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coisa que dizer que para voce estar la tem que haver um movi-mento, um deslocamento. Ou seja, eu disse exatamente a mesmacoisa, so que com duas palavras diferentes, e a diferenca da fraseme enganou. Dizer que voce esta aqui e a mesma coisa que dizerque voce nao esta em outro lugar. Qual e a conexao entre dois lu-gares? E somente o movimento, que conecta os dois lugares. Nahora em que eu disse que voce esta aqui, ja esta implıcito que vocenao esta la, e que a unica maneira de voce chegar la e atraves domovimento, ou seja, somente explicitei o que estava implıcito. Eunao disse uma coisa nova; nao acrescentei um conhecimento novo,uma informacao nova.

Existem conexoes ideais como, por exemplo, a medida: daquiate la dista cinco metros. So que a medida, em si mesma, nao levaum corpo ate la. O que o leva e o movimento atraves desses cincometros. No instante em que eu digo que voce esta aqui, eu ja es-tou implicitamente dizendo que voce nao esta la, e que so atravesdo movimento voce pode chegar ate la. Retire essas duas coisase voce vera que a expressao “voce esta aqui” fica totalmente des-tituıda de qualquer significado. O que quer dizer a frase “voce estaaqui” sem ela significar que voce nao esta la? Nao quer dizer nada— isso ja esta incluıdo. De modo que, a analise do significado doque eu falei me leva a segunda verdade evidente. Eu nao acres-centei uma segunda proposicao, eu apenas desmembrei a primeiraproposicao, apenas expliquei o que a primeira queria dizer. Istosignifica que, entre a verdade direta e a verdade indireta, existeuma relacao que e como a do Todo e a da Parte. Esse e que e onexo, e que se chama de Silogismo. Silogismo e um conjunto detres proposicoes, o qual, dadas as duas primeiras, a terceira de-corre necessariamente. Um exemplo disso e o famoso: “Todos oshomens sao mortais; Socrates e homem; logo, Socrates e mortal.

Aquilo que eu digo de todos, evidentemente se refere a cada um,porque todo e cada um sao exatamente a mesma palavra. Portanto,

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a transferencia de veracidade e, evidentemente, no mesmo sentidode que, duas frases ditas sao a mesma frase. Quando eu digo quetodos os homens sao mortais, e que cada um homem e mortal, oque eu digo de um homem em particular ja esta incluıdo na pri-meira proposta. Portanto, eu nao disse uma coisa nova. O nexoque existe aı e o nexo entre o todo e o cada um. Eu disse apenasque todo e igual a todo e que cada um e igual a cada um. E se umacoisa e igual a ela mesma, essa coisa e uma evidencia. Apenasa formulacao da frase e que me pareceu diferente, porem, anali-sando o sentido da primeira frase, eu vejo que na segunda frase elaja estava dita. E se eu disse que todos os homens sao mortais, eunao posso negar que um deles seja mortal.

O que e o conhecimento evidente? E um conhecimento ondeexista a total impossibilidade de nega-lo, a nao ser introduzindoum duplo sentido nas palavras. Se um indivıduo diz, “eu nao estouaqui”, ou ele esta mudando o sentido da palavra eu, ou da palavraaqui. Se ele diz, “eu nao estou aqui; na verdade, eu estou na minhacasa”, isso significa que o sentimento dele, ou o seu coracao, estala, porem, nesse caso ele criou um duplo sentido porque ele estautilizando a palavra aqui num sentido espacial, e a palavra eu, naono sentido corporal, mas num outro sentido. Quando voce negauma evidencia, voce esta sempre jogando com um duplo sentidode palavras. Se eu digo, por exemplo, A = A, entao o primeiroA e o mesmo A do segundo lado da igualdade. Se digo que AA,eu estou negando a frase anterior? Se digo isso, significa que oprimeiro A nao e igual ao primeiro A e, se ele nao e o mesmo queo primeiro, nao e a ele que se refere a primeira sentenca (A = A).Se a segunda frase (AA) nao se refere a primeira (A = A), elanao pode ser a sua negacao. A pessoa tem a impressao que negou,mas nao negou. Ele so enganou a si mesmo. Para ficar mais claro,vamos numera-los: A1 = A2 e A3A4. Vamos supor que A1 = A3,e se A1A4, entao A4 e um outro A. A = A nao tem como ser

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negado — voce so pode imaginar que negou.Se voce duplica o sentido de uma palavra, entao, duas frases

aparentemente iguais sao, na verdade, duas frases diferentes, quenao se referem as mesmas coisas. Entao, uma frase nao pode sera negacao da outra. Se eu digo, por exemplo, “O Paulo esta decamisa azul”, e o Alexandre diz, “Nao! o Guilherme esta de ca-misa branca”, e evidente que a segunda frase nao e uma negacaoda primeira. Entretanto, e se ele chamar o Guilherme de Paulo?Isso significa que ele se equivocou de nome. Houve uma trocade nomes. Assim, nos podemos dizer que um conhecimento, umasentenca, uma proposicao, e evidente se ela nao puder ser negada,exceto mediante o uso de um duplo sentido. Isso e fundamental sevoce quiser ter certeza de qualquer coisa na vida.

Assim, tudo o que nao e diretamente evidente pode ser negado.Quando voce diz, “eu ja nao sou mais o mesmo”, significa quevoce esta atribuindo um duplo sentido a palavra eu. Num caso,designa uma individualidade, e aı e voce mesmo. Num outro caso,designa uma qualidade desse indivıduo. A individualidade conti-nua a mesma, so a qualidade e que foi alterada. Para que o in-divıduo fosse, primeiro pobre, depois rico, e necessario que elecontinue a ser o mesmo. Uma sentenca so e negacao da outraquando o sujeito e o mesmo.

O princıpio da identidade e imortal. E a propria unidade doreal. Isso significa que ele nao pode ser escamoteado pelos nos-sos mesquinhos jogos de palavra. No entanto, ha conhecimentosque sao verdadeiros, mas nao sao evidentes. Por exemplo, se voceme afirma que tem Cr$ 1.000,00 no seu bolso, isto nao quer dizer,para mim, que isso seja evidente. Eu posso negar isso sem duplosentido. Existe apenas uma veracidade contrastada com uma fal-sidade. Pode ser que isso seja uma verdade, e eu esteja dizendouma falsidade. Ou, pode ser o contrario. Mas nessa contradicaonao existe duplo sentido. A coisa pode ser negada mesmo.

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Um conhecimento qualquer de ordem cientıfica pode ser ne-gado. Por exemplo, voce pode negar toda a Fısica porque naoha contradicao. As teorias nao sao evidentes em si mesmas.A negacao de uma evidencia nao e a mesma coisa que umacontradicao logica. Contradicao logica significa voce negar al-guma sentenca anterior, cuja veracidade ja afirmou — A = A sesustenta sozinho, nao ha necessidade de outra afirmacao anterior;e AA se derruba sozinho. Contradicao logica e um falso nexo.Entre A = A e AA, nao ha nexo, sao frases isoladas. A = A sesustenta pela simples enunciacao — e obvio.

Portanto, eu gostaria que voces fizessem todas as tentativaspossıveis para derrubar o princıpio da identidade. Quando vocesestiverem definitivamente derrotados e comecarem, de algumamaneira, a aceitar o princıpio, voces comecam a aceitar a verdade.E para voce lutar consigo mesmo — e difıcil. Voce pode dizer,“Parece verdade...”, mas parecer significa uma verossimilhanca. Euma conviccao retorica. Voce esta retoricamente convencido doprincıpio de identidade.

O sujeito estar retoricamente persuadido do princıpio de identi-dade quer dizer que ele nao teve uma conviccao firme, pessoal.

Prove que, A = A, embora verdadeiro, prove que ele nao e umprincıpio auto-evidente. Prove que ele se baseia em alguma outracoisa. Prove se puder. Muitos filosofos caıram nessa tentacao.

Qualquer evidencia direta e uma repeticao do princıpio de iden-tidade, sob uma nova forma. E e tao valida quanto o princıpio deidentidade.

E se eu indagasse, se uma coisa que eu vejo, se ela e umaevidencia direta, nesse sentido? A resposta e nao, porque vocepode estar enganado. voce pode ser enganado pelos seus sentidos.

Se eu posso ser enganado pelos meus sentidos, como e que eusei que eu estou aqui? Resposta: voce nao precisa dos sentidospara saber que voce sempre esta, onde estiver, para voce saber que

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1 Prelecao I

voce faz o que voce faz.Quando Descartes diz que, “Eu posso duvidar de tudo, mas nao

posso duvidar que estou duvidando”, eu nao posso duvidar do queeu estou pensando (duvida ja e o conteudo do pensamento).

E se eu parar de pensar? Eu duvido que estou pensando, porem,eu faco essa duvida, sem pensar propriamente. Portanto, um su-jeito nao pode negar que ele esta pensando naquela hora. Porquenegar, ou afirmar, e pensar. E o famoso “cogito ergo sum”, que e,de novo, o princıpio de identidade, so que aplicado a minha pes-soa. Se eu digo que A = A, se eu afirmo isso, logo estou pensando(cogito ergo sum).

Toda investigacao sobre qualquer coisa sempre comeca comesse tipo de coisa.

No caso do silogismo anterior (Todo homem e mortal; Socratese homem; logo Socrates e mortal), para eu saber que a palavratodo e igual a cada um, basta saber o que significa a palavra todo.E cada um significa todos um. Entao, quando eu digo que essehomem em particular tambem esta incluıdo na mesma regra geral,eu estou apenas repetindo que todos e cada um. E esse nexo eauto-evidente. E a identidade do todo com cada um. Sao duasexpressoes da mesma ideia.

O nexo e a identidade entre a expressao todos e a expressao cadaum.

Nao confundir nexo logico com a premissa menor. No silo-gismo voce tem, Premissa maior, Premissa menor e Consequencia.A Premissa Menor e o elo entre as duas.

Nexo logico e a garantia (e, nao uma outra premissa) de que, deduas premissas dadas voce pode concluir uma terceira. Por que?Porque a terceira sintetiza as duas anteriores, dizendo a mesmacoisa, sob uma outra forma. Mas, e a mesma coisa que esta sendodita. Apenas transferindo de todos para cada um, e de cada umpara um um em particular.

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Se eu digo que todos os quadrados tem quatro lados, isso querdizer que, cada quadrado tem quatro lados. E, esse quadrado temquatro lados, como todos os outros. Alias, como cada um deles. Eapenas a forma verbal que foi mudada. E, eu posso ser enganadocom isso aı acreditando que eu estou falando uma coisa que naotem nenhuma relacao com a outra. So que, nao apenas tem umarelacao, como e a mesma coisa. E, se e a mesma coisa, entaoentra o princıpio de identidade, e que estou afirmando que A = A,que todos = todos, que cada um = cada um, etc. O nexo e oque mostra a identidade entre duas proposicoes diferentes. Assim,essas sao as condicoes gerais, ou teoricas, para que possa existirqualquer conhecimento.

Com base no que foi dito anteriormente, nos podemos pegarvarios discursos retoricos e conferi-los, uns com os outros, paraver se estao dizendo a mesma coisa, ou se estao dizendo coisas di-ferentes, se sao uma negacao um do outro, ou se trata de discursosinconexos como, por exemplo, “O Joao esta de camisa branca”,“Nao, a Maria esta de camisa azul”.

Com base no princıpio de identidade eu faco a comparacao ea selecao: se estao dizendo as mesmas coisas, se estao dizendocoisas diversas, se efetivamente se negam um ao outro, ou se saofalsas negacoes.

Se eu encontrar dois discursos que efetivamente se negam, querdizer, descontadas as diferencas, os erros de interpretacao, entao,daı temos um problema. Eu tenho uma alternativa, das quais umatera que ser verdadeira, e a outra, falsa. Porem, isso nao se aplicaa todos os discursos que se contradizem. Isso porque, primeiro, seprecisa reduzi-los a uma significacao comum. Por exemplo, “Joaomatou Pedro”. Qual e a negacao disso aqui? So havera negacaose houver o mesmo sujeito, o mesmo objeto, e o mesmo verbo, esomente introduzindo a palavra nao. Se o outro responde, “Nao,Joao nao matou Joaquim”, se a comparacao nao tem cabimento,

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entao a comparacao e absurda.Mas, os discursos podem ser contraditorios, por exemplo, “Joao

nao matou Pedro”. Se Joao e o mesmo, o Pedro e o mesmo, e ma-tar significa a mesma coisa, entao temos um problema, que teraque ser resolvido mediante uma afirmacao de uma das alternati-vas, e a negacao da outra. Assim, vemos que nao ha uma terceiraalternativa.

Porem, nas discussoes que nos efetivamente encontramos nodia-a-dia, existe nao somente uma terceira alternativa, comotambem, uma quarta, uma quinta, e uma sexta, ou mais. Isto por-que o sentido do discurso e multiplo. E, frequentemente, nao sereferem exatamente as mesmas coisas, porem, a diferentes aspec-tos da mesma coisa.

Se voce observar uma campanha eleitoral, e sempre assim queacontece. E inteiramente absurda. E o non-sense por completo.Trata-se de um show para enganar idiotas. E, as vezes, pessoasletradas tomam partido nisso. Por exemplo, o Cesar Maia diz, “ABenedita empregou o filho na Camara, sem diploma”. A Beneditaresponde, “Voce diz isso porque eu sou mulher, negra e favelada,e voce e racista”. A resposta do Cesar Maia deveria ser, “Mesmoque eu fosse racista, isso nao tem nada a ver com a estoria”. Soque isso nao repercutiria bem no eleitorado. Aı, ele tenta contornara situacao.

A discussao polıtica consiste sempre em confundir, conteudo,sujeito, proposito, etc. Mas, nunca responder no mesmo plano,ou seja, e a “arte do sabonete”. Isso nao e nem retorica, e sub-retorica. Nem nos tribunais, hoje em dia, voce ve a retorica pura.Houve um jurista que afirmou, “Antes, a corrupcao era constituıdade casos isolados. Depois do governo Collor, isso virou uma coisasistematica”. A resposta e a seguinte: “O senhor pesquisou? Temdados estatısticos? Quanto foi roubado antes, e quanto foi rou-bado agora? Se nao sabe, entao nao deve se pronunciar sobre o

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assunto”.O que estamos tentando aqui e colocar a questao de uma ma-

neira seria, com o intuito de resolver o problema, efetivamente.E o problema e o seguinte: se existem tantos discursos contra-ditorios, se falam tanta besteira, como fazer para nos orientar nomeio dessa confusao, para ter uma certeza firme de alguma coisa,ainda que fosse pouca?

Com isso, Socrates–Platao, inventam a ideia de Ciencia, que e oconhecimento seguro, que e a ideia que, ate hoje, orienta quaisqueresforcos cientıficos feitos no mundo inteiro para assumir qualquercoisa.

A ideia pura de Ciencia, o ideal de Ciencia, e algo que o ho-mem se esforca para alcancar, com diferentes graus de sucesso. Ecomo se fosse um objetivo a ser alcancado. E ele nao precisa seralcancado para que possa existir Ciencia efetivamente. Basta quea Ciencia esteja nessa direcao, e nao numa outra.

Isso significa que mesmo que a Ciencia tenha sido um fra-casso completo, desde os tempos de Platao ate hoje, ainda assim,nos dirıamos que e esse ideal que continua orientando os nossosesforcos, e nos continuamos tentando. E como disse o Barao deItarare, “Num pugilato com o adversario, ele, no fim, chegou aconclusao que era melhor demonstrar que a corrida de velocidadeera um esporte muito superior”.

1.3 Condicoes existenciais para aideia de ciencia pura

Uma vez colocadas essas condicoes, elas nao bastam. Para quepossa haver Ciencia, e necessario haver algumas outras condicoes,de ordem pratica.

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Repetibilidade do ato intuitivo. A primeira dessas condicoespraticas e a de que, o ato cognitivo pelo qual o homem capta umaevidencia tem que poder ser repetido, ou seja, se nao podemos terduas vezes a mesma evidencia, uma evidencia nao poderia servirde fundamento para uma outra evidencia. Seria a repetibilidade deum ato intuitivo. Isto porque, na hora que eu capto uma verdadeevidente, por evidencia direta, eu estou prestando atencao nela. Nahora em que eu me dirijo a uma evidencia indireta, se a primeiraevidencia desaparecer por completo, nao posso estabelecer o nexo.Isto quer dizer que, para que seja possıvel qualquer conhecimento,e necessario que voce tenha a mesma evidencia, pelo menos duasvezes.

Isto e mais grave do que parece, porque significa que o objetode dois atos diferentes, feitos num instante diferente, e exatamenteo mesmo. Quando digo que A = A, eu tenho dois atos intuiti-vos. So ao afirmar o princıpio de identidade a existe essa condicaopratica que tem que estar presente, ou seja, que dois atos intuitivosdiferentes que sao distintos no tempo, podem se repetir a mesmaevidencia e, ao mesmo objeto. Sem que haja nenhuma mudancasubstantiva.

Claro que, se eu digo dois atos, eles sao diferentes. Isto aquipoderia ser contraditado pela citacao de que “nao nos banhamosduas vezes no mesmo rio”, ou seja, tudo flui continuamente, e naotemos duas vezes a mesma experiencia. Isto, muitas vezes, e con-fundido, tomado no sentido de que nao temos duas experienciasno mesmo objeto. Assim, se proferimos a frase acima, e porqueo rio correu, e a agua ja nao e a mesma. Mas, como e que eu seique e o mesmo rio, ja que eu nao me banho nele? Se fosse umrio completamente diferente, eu nao perceberia que ele nao mu-dou em nada. Eu acreditaria estar entrando ali pela primeira vez.E, assim, eu nao poderia proferir a sentenca acima.

A objecao consiste em alegar que, o fluxo permanente em todas

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as coisas nao afeta o princıpio de identidade. Se afetasse, nao sepoderia proferir a frase acima, a nao ser que fosse um duplo sen-tido. Assim, quando digo que, “nao nos banhamos duas vezes, nomesmo rio”, e porque eu sei que, eu mesmo, entrei duas vezes nomesmo rio. Esse eu continua o mesmo. Ou mudou o rio, ou mudeieu. Se o rio mudou, e porque eu sei que eu fiquei. Ademais, naofiquei so eu, mas, tambem ficou o rio, com outras aguas. Ou seja,a constatacao do fluxo e impossıvel ser a constatacao do princıpiode identidade.

Qualquer mudanca, qualquer alteracao, so se torna cognoscıvelperante um fundo de identidade. Quer dizer, o princıpio de identi-dade nao e so um princıpio logico, nao e um princıpio psicologico,e um princıpio do ato real do conhecimento. Assim, podemos di-zer que a repetibilidade do ato intuitivo e o correspondente psi-cologico do princıpio de identidade.

Dispositivo de registro. A repetibilidade do ato intuitivo, porsua vez, pressupoe que, do primeiro ato, algo restou na memoria,algo permaneceu, atraves de um registro, ou qualquer dispositivode registro, que seria outra condicao pratica para que possa haverCiencia. Seja um registro na memoria, seja no papel, num dis-quete de computador, qualquer coisa que, evocando um conteudode um ato intuitivo passado, lhe permita repetir o mesmo ato sobreo mesmo objeto. Se nao existe o registro, nao existe a repetibi-lidade do ato intuitivo, e nao existindo isso, entao, nao podemosrealizar nada. Nao havendo a possibilidade do registro, isso sig-nifica que as quatro primeiras condicoes nao seriam afetadas, elascontinuariam de pe, so que o conhecimento seria impossıvel. Napratica, seria impossıvel.

Assim, podemos dizer que, se existisse um conhecimento, eleteria que ter evidencia direta, evidencia indireta, transferencia deveracidade, e nexo evidente. Porem, sendo o homem, organizadodo jeito que e, mas nao podendo repetir o ato intuitivo, esse conhe-

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cimento nao seria possıvel. Porem, todo esse raciocınio seria falso,porque ele mesmo pressupoe a repetibilidade do ato intuitivo.

Argumento cetico: “Eu nao sei nada”. Ora, se nada sei, nao seinenhum. Eu nao posso afirmar que nada se pode afirmar. A naoser que afirmar tenha duplo sentido. Por exemplo, “Nao se podeafirmar nenhuma regra geral sobre nada”. Entao, isto e um regrageral. Mas, e se colocarmos da seguinte forma: “Nao se pode pro-ferir nenhuma regra geral sobre nada, exceto esta regra”? Sabemosque ha alguma regra geral que e uma excecao a regra geral que, se-gundo a qual, nao ha regra geral. A pergunta seria: “De qual dasduas regras ela seria a excecao? Ela e excecao da regra geral, ou eexcecao da inexistencia de regra geral?” No primeiro caso, sendoela uma excecao, nega a generalidade de regra. No segundo caso,ela nega a si mesma. Seria a negacao da negacao.

Assim, os argumentos ceticos representam o pre-Mobral. Osargumentos ceticos sao todos jogos de palavras, e justamente porisso, eles exercem um certo fascınio. Principalmente para quemnao sabe que eles existem ha seculos, e acredita que acabou deinventar isso. O adolescente esta numa fase de ampliar o voca-bulario, dominar a terminologia e aprender a dominar as palavras.Entao ele e facilmente encantado pela arte de argumentar.

Entendemos que o conhecimento geral, que e o conhecimentocientıfico, alem de requerer essas condicoes teoricas, requertambem algumas condicoes praticas, das quais, a primeira e a doato repetitivo, a segunda seria o dispositivo de registro. No mo-mento que estou olhando para a evidencia indireta, ela e o foco daminha atencao, nao e mais aquela evidencia direta inicial, porem,esta nao desapareceu completamente. Ela esta retida sob formade um sinal, que me permite refazer o ato intuitivo, mas que naoestou fazendo no momento em que penso na evidencia indireta.A evidencia direta entra num pano-de- fundo, e a evidencia indi-reta ocupa a posicao principal. Mas, a primeira nao desapareceu,

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porque esta la colocada sob forma de um registro qualquer.E se eu afirmasse que nao existe possibilidade de dispositivo

de registro? Digo isso para mostrar a voces como a negacao dapossibilidade do conhecimento e absurda. E a absurdidade dasabsurdidades. E se a pessoa negar a fidelidade da memoria? Amemoria as vezes nao falha? O que e que impede que ela falhesempre? Do fato de que ela falha algumas vezes, nos entendemosque nao podemos mais confiar nela sempre. Entre nao poder con-fiar nela sempre, e nao poder confiar nela nunca, e apenas questaode grau. E se eu disser que, “ela falha de vez em quando”, ou “commuita frequencia”, ou “ela falha, quase sempre”, nao parece umaquestao de grau? Dizer que a memoria falha quase sempre naoe uma verdade porque voce guarda recordacao de cada uma dasfalhas dela. Logo, isso e uma negacao de evidencia, porque voceesta lembrando que ela falha. Voce tem que ter a recordacao de quehouve varias falhas, ou seja, voce nao poderia dizer, jamais, queela “falha quase sempre”. Isso quer dizer que nos temos que con-fiar na memoria? Nao, isso quer dizer apenas que e inviavel umacrıtica geral da memoria. Nos nao podemos corrigir a memorianesse ou naquele ponto em particular, mas nunca genericamente.Ou seja, o ser humano e impotente para corrigir a memoria, nasua essencia. Assim como, por exemplo, somos impotentes paracorrigir a percepcao dos sentidos na sua essencia.

Muita gente diz que existe uma instancia superior, que seria apropria Fısica, ou a Matematica, que pode fazer uma crıtica geraldos sentidos, e estabelecer a jurisdicao de que isso e uma impos-sibilidade logica, ou seja, que daqui nao da para passar. Isso eum erro. A ideia de que o homem possa estabelecer limites para asua propria memoria e uma absurdidade. E, mais ou menos, comodizia o Barao de Munchausen, “se puxar pelo cabelo para sair daagua”. Achar que as faculdades superiores da inteligencia , ouda razao, podem retroagir sobre a memoria, verificar que ela tem

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uma falha essencial e corrigi-la, e impossıvel, porque a razao sesustenta na sua memoria.

O homem nao tem outro remedio senao confiar na sua memoria.Mesmo que ela falhe. Mesmo sabendo que ela vai falhar nesse ounaquele caso. Tambem nao ha outro remedio senao confiar nossentidos, mesmo sabendo que eles irao falhar em varios casos.

Seguindo este raciocınio, podemos tambem dizer que os sen-tido falham as vezes, ou que os sentidos falham muito, mas naopodemos dizer que eles falham na maioria, ou na minoria das ve-zes. Nos nao podemos quantificar o erro geral dos sentidos. Seeu disser que os sentidos falham quase sempre, eu ja entrei numnon-sense, porque estou supondo que existe uma maneira de co-nhecer os objetos sensıveis, a qual e melhor que os cinco sentidos.Assim, eu conheceria qualidades sensıveis melhor que os meusproprios cinco sentidos, atraves da razao. Acontece que a razaonao conhece qualidades sensıveis. Isto significa que as faculdadessuperiores se assentam nas faculdades inferiores e as pressupoe, asvezes. Nao teria jeito de se sair delas.

Entendemos que os dispositivos de registros nao sao somenteuma necessidade para que possa existir a Ciencia, mas nos en-tendemos que efetivamente existem esses dispositivos de regis-tros e entendemos que eles tem que existir necessariamente, assimcomo tem necessariamente que existir a repetibilidade do ato in-tuitivo, e o nexo evidente, e a transferencia de veracidade, e asevidencias direta e indireta. As condicoes que fundamentam aideia de Ciencia sao, elas mesmas, verdadeiras. Ou seja, elas ja-mais poderiam ter sido colocadas a tıtulo de mera hipotese. Nocomeco nos raciocinamos como se elas fossem hipoteses, ou seja,se existisse o conhecimento cientıfico ele teria que se basear emevidencias. Porem, na hipotese da inexistencia de evidencias, ahipotese da existencia nao poderia ser formulada. Se nao existeum conhecimento evidente, essa hipotese nao sera adotada de ne-

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nhuma possibilidade de evidencia. Isto significa que o simplescaso de voce colocar as condicoes que possibilitam a Ciencia,afirma que a Ciencia, que o saber verdadeiro existe necessaria-mente. Ele nao e apenas uma possibilidade humana.

Ate que ponto pode ser absurdo as pessoas acharem que o ho-mem geralmente erra? Que a especie humana e falha, que ela naoconsegue conhecer a realidade? Isto e um pensamento comumem certos cırculos brasileiros, que esta muito em moda, que e oceticismo: que a especie humana nao e capaz de conhecer quasenada. Ora, so se medir o restante que ela nao conhece. E, se voceconhece efetivamente que ela desconhece, entao, voce tem umaideia da ignorancia dela. So que, para isso, voce se coloca numaposicao sobre-humana.

Colocar-se, hipoteticamente, numa posicao sobre-humana, solhe permitiria emitir um juızo hipotetico sobre o conhecimento hu-mano. Ou seja, se eu fosse Deus, eu saberia tudo aquilo que a hu-manidade nao sabe, e eu saberia como ela e ignorante. Mas, essejuızo tambem seria hipotetico. Supondo que eu fosse Deus, e euemitisse os seguinte parecer categorico: “A humanidade nada podeconhecer”. Isso seria a negacao de uma evidencia, porque hipotesee hipotese. Isto quer dizer que qualquer tipo de ceticismo e ab-surdo. Qualquer filosofia que negue a possibilidade de conhecer oque quer que seja, e absurda, auto-contraditoria, demente. A unicacoisa certa a dizer e “Existem limites reais, efetivos, empıricos, aoconhecimento humano”. Isto porque eu sei que nao conheco tudo,e eu sei que a humanidade nao conhece tudo. Porem, nao existenenhuma possibilidade de se fixar limites do que ela pode vir aconhecer.

Em princıpio o conhecimento humano existe, tem que existirnecessariamente, e uma necessidade imperiosa, indestrutıvel, eesse conhecimento e necessariamente ilimitado. Nao ha nenhumabarreira que possa ser colocada e que possa ser defendida filoso-

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ficamente como necessaria. Existem barreira acidentais, contin-gentes, por exemplo, um dia voce morre e nao conhece mais nada.Porem, ate que ponto voce vai conhecer, ate a hora que morre?Nao existe uma limitacao absoluta.

A ideia da limitacao do conhecimento humano e uma ideia queobcecou os filosofos durante quase tres seculos, como a ideia doBarao de Munchausen, onde voce poderia sair da agua puxandopelo proprio cabelo.

Assim, existem tres grandes correntes, segundo Kant, que sao:o dogmatismo, o ceticismo, e o criticismo. O dogmatico e aqueleque confia na possibilidade do conhecimento humano, sem limi-tes. A palavra dogmatico aqui nao tem o mesmo sentido queem religiao. Existem dois tipos de dogmatismo: o dogmatismoingenuo, ou pre-crıtico, e o dogmatismo pos-crıtico. A correntecetica nega a possibilidade do conhecimento humano. O ceticismose divide em ceticismo total e ceticismo parcial. A doutrina crıtica,do proprio Kant, nao afirma nem nega a possibilidade do conheci-mento, mas investiga essa possibilidade, e investiga seus limites.Mas o fato de voce investigar ja nao esta afirmando? Nao, por-que voce conhecer a possibilidade de uma coisa nao e a mesmacoisa que voce conhecer aquela coisa. Essa e a objecao de Hegel:“Como e que eu vou conhecer os limites do conhecimento, semconhecer coisa nenhuma?” E a mesma coisa que aprender a nadarsem entrar na agua. Hegel era um filosofo dogmatico. Ele afirmataxativamente a realidade do conhecimento. E a estoria do sujeitocuja casa esta caindo, e ele sai correndo e, de repente, ele se per-gunta: “Como e possıvel que o meu cerebro emita para as minhaspernas a ordem de correr, e elas obedecam?” Aı, ele para para in-vestigar esse problema, e a casa cai em cima dele. A investigacaocrıtica e isso, sem nenhum desrespeito a ela.

O que Kant fez foi uma necessidade historica. O kantismo e, aomesmo tempo, uma possibilidade para uma doenca e a cura para

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essa doenca. Havia a doenca, que e um empacamento da filosofiacausada pelo ceticismo. A ideia de que antes de voce julgar um co-nhecimento de uma coisa vai ser possıvel uma investigacao crıtica,e uma ideia ambıgua. Porque esse antes e apenas logico, e nao cro-nologico. Na pratica, se voce esta investigando a possibilidade deexistir alguma coisa e porque algo daquilo voce reconhece. Vocepode dizer: “Nao vamos investigar o fato, mas sim a possibili-dade de conhecer o fato”. Eu digo: “Mas nos podemos investigara possibilidade de conhecer a possibilidade”. E assim por dianteindefinidamente. E o caso do astrologo que diz para o rei que ahora da coroacao e muito seria, e que a hora certa para a coroacaoprecisa ser calculada. Aı, chega outro astrologo e diz que, calcularessa hora e algo muito serio e, entao, temos que calcular a horacerta para poder calcular essa hora certa. E nao ha fim nisso.

Karl Marx dizia: “Nao interessa interpretar o mundo; interessatransforma-lo”. Veio o Stalin, pegou a obra do Marx, uma hordade proletarios, e matou todo mundo.

A essa altura nos entendemos que essas coisas nao poderiam tersido colocadas aqui por hipoteses, mas que elas tem uma especiede integridade intrınseca. Ou seja, a evidencia direta nao pode serconcebida como hipotese, e o restante tambem nao. Mesmo ascondicoes praticas nao podem ser concebidas como hipoteses. E,nesse sentido, e nao no sentido religioso da coisa, nos vamos verque o conhecimento humano e essencialmente dogmatico, afirma-tivo.

Ate o momento nos so colocamos os princıpios da Ciencia.Pode ser que o conjunto inteiro das afirmacoes de cada cienciaesteja totalmente errado, mas seus princıpios continuam de pe.

Assim, esse conhecimento, para ser conhecimento, tem de serassim, e um conhecimento assim e necessariamente possıvel. Al-gum conhecimento assim existe, necessariamente, se existir o ho-mem. E se nao existir o homem, alguem, que nao seja o ser

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humano, tem que ter um conhecimento assim. Alguem sabe es-sas coisas. Essas coisas nao podem ser colocadas como simpleshipoteses.

Transmissibilidade essencial. Se existe um dispositivo de re-gistro, quer dizer que eu posso guardar um conhecimento anteriore, mediante um sinal qualquer (papel, memoria, pedra, etc.), taologo, em seguida, me faculta a reproducao do ato intuitivo sobre omesmo objeto. Se posso fazer isso de mim para mim mesmo, porque nao posso fazer de mim para um outro?

Isto significa que o conhecimento e transmissıvel, nao apenaspor acaso, mas essencialmente. Posso transmitir um conhecimentode mim para mim mesmo em momentos diferentes. De modo que,em momentos distintos, fazendo atos quantitativamente distintos,ou seja, um ato nao e um outro ato, eu incido novamente sobreo mesmo objeto. E essa repeticao, esse retorno ao mesmo ob-jeto, e uma condicao de possibilidade do conhecimento. Assim,se nao houver essa transmissao de momento a momento, nao haconhecimento algum. Portanto, em princıpio, a transmissibilidadefaz parte da essencia de qualquer conhecimento. Isso significaque aqueles pressentimentos profundos, aquela coisa que a gente“saca” as vezes, nao sao conhecimentos de maneira alguma. Saoapenas uma possibilidade de conhecimento.

Hegel dizia, “Se voce me pede uma arvore, eu te dou uma se-mente”. Voce fica satisfeito? O fato e que para uma semente viraruma arvore sao necessarias muitas outras coisas que nao estao con-tidas na semente. Por exemplo, precisamos de terra, e essa terradeve ter substancias capazes de alimentar a semente, precisamosdo transcurso do tempo, precisamos de uma serie de outras coin-cidencias como por exemplo o solo nao pode ser removido, etc.Assim, dizer que a semente e a arvore, ela e arvore de certa ma-neira, mas nao da maneira certa.

Entao, quando nos falamos de transmissibilidade, nos estamos

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querendo dizer expressividade. O conhecimento inexpresso naoe conhecimento de maneira alguma, porque se ele for totalmenteinexpresso, significa que voce intuiu aquilo num momento, e nomomento seguinte voce esqueceu. Mesmo o conhecimento quefoi esquecido, se foi totalmente retirado da memoria, se nao hapossibilidade da reposicao, e quando voce diz que nao se lembra,entao, como e que voce se lembra que conhece aquilo, ou nao?Se o conhecimento e expressivo, tudo aquilo que permaneca to-talmente inexpresso nao e conhecimento, e se for expresso, tantofaz expressa-lo de mim para mim mesmo, ou de mim para umoutro. E uma diferenca de mera quantidade, e nao faz a menordiferenca. Voce pode dizer que e difıcil transmitir, mas a dificul-dade de transmitir um conhecimento nao e nem um pouco maiordo que a dificuldade de adquiri-lo. A dificuldade de transmissao epratica, e nao teorica.

Espero que voces tenham entendido o que se chama discursoanalıtico, por causa de algo que foi dito ha pouco, que o nexoentre uma evidencia direta e uma indireta e, por si mesmo, umaevidencia, que nada acrescenta a primeira verdade, mas que ape-nas a analisa. Analisar significa desmembrar nos seus membrosconstitutivos. Quando digo que o conceito de estar aqui e o mesmoconceito de nao estar la, significa que nao acrescentei nada, apenasanalisei o conceito.

Intuicao e ir para dentro; Inteleccao e ler dentro; Insight e verdentro. Sao varias maneiras de dizer a mesma coisa. No en-tanto, se eu vi mas digo que nada se conservou na minha memoria,como e que eu sei que vi? Um insight e um insight quando o seuconteudo e claro e permanente. Nao confundir um insight comum pressentimento vago, uma imaginacao, um sentimento de nao-sei-o-que. Quando voce tem um insight, voce o tem com a mesmaclareza de que voce sabe que esta aqui, agora. Claro que voce podeter um insight de coisas tao enormemente complicadas que voce

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pode levar um tempo enorme para contar aquilo.Uma coisa e a expressao interna, de voce para voce mesmo, que

Socrates chamava de verbo mentis, a fala mental, a mente falandopara si mesma, ou atraves de palavras, ou atraves de figuras, ouatraves de gestos, ou atraves ate de uma tensao muscular interna.Voce mesmo entende a sua propria linguagem. Embora ja seja umaexpressividade que esteja contida ali. Voce passar dessa expressi-vidade, que e mais ou menos simultanea, e que repete varias vezeso mesmo ato intuitivo simultaneo (voce “saca” aquele conjuntotodo, varias vezes), para uma expressao no tempo (palavras orais,ou escritas, ou desenho, ou qualquer coisa que possa ser materia-lizada), pode ser muito complicado. As vezes, uma unica intuicaoque voce teve em dois segundos, voce pode passar o resto da vidatentando explicar. Vai depender da complexidade do objeto relaci-onado. Por exemplo, quando um arquiteto, vendo um determinadoterreno, ou paisagem, ele concebe a forma do edifıcio, ele so podeconceber o edifıcio inteiro, de uma so vez. Para colocar no pa-pel, desenhar, calcular, ele pode levar semanas. Para construir elepode levar anos. Na hora de calcular as proporcoes do edifıcio,veja quantas mediacoes logicas e matematicas ele tem que ter paraque ele possa desenha-lo. E muito complicado mas, tudo aquiloestava naquele ato intuitivo inicial. Que dele, para ele, estava per-feitamente claro. No entanto, se nao tivesse claro ali, nao estariaclaro nunca mais. Mozart “sacava a sinfonia num segundo, porqueele fazia uma audicao nao-auditiva, ele fazia um audicao intelec-tual. Para passar aquilo para o auditivo levava um tempo enorme.Vamos supor que Mozart tentasse imaginar sensitivamente a suapropria sinfonia. Ele teria que levar a duracao real dela. Para es-crever leva muito mais tempo que para executar. Uma obra devinte minutos pode levar horas para ser escrita.

Espero que voces possam vencer aqui neste curso, a doenca que,para a inteligencia brasileira de um modo geral, e a pior doenca,

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que e a falta de confianca na Inteligencia, que induz ao fanatismo,ao misticismo, esperar milagres, expressando os fatos daquilo quevoce menos deveria saber, ou voce necessitar de uma autoridadeque te de seguranca, ou seja, voce acreditar que 2 + 2 = 4 porquepapai falou. E claro que o papai tem razao, e evidente, e voce deveacreditar nisso, mas nao porque o papai falou, pois se o satanas empessoa te falasse isso, tambem era para acreditar.

Conseguir distinguir a autoridade do sujeito, e a crenca por au-toridade. Se Aristoteles, ou Platao, falou algo, significa que o ho-mem tem autoridade porque falou a verdade, e nao que e verdadeporque a autoridade falou.

Esse complexo de autoridade que existe no Brasil, onde todomundo precisa de uma autoridade para voce acreditar em algo,ou entao, voce so acha que so sera inteligente se sempre duvidarde todas as autoridades. Isso e uma estupidez. Nao se trata nemde voce obedece-las, nem de contesta-las, mas de voce ter umacabeca suficiente para voce pensar, e pensar igual a qualquer outrosujeito que se coloque no objeto do problema. Em 2 + 2 = 4, epara todo mundo encontrar o mesmo resultado, dogmaticamente.Nao porque uma autoridade mandou, mas porque e assim.

Se voces conseguirem superar isto aqui, adquirirem aquelacondicao de terem a inteligencia propria, alcancar as verdadesuniversais necessarias, voces irao colocar como que uma ilha nomeio de uma vida mental caotica, que e a vida brasileira, irao criarcondicoes de seguranca, ou seja, condicao de confianca em si mes-mos. Condicao esta que, a intelectualidade brasileira nunca tem.Toda a nossa vida intelectual e marcada por uma hesitacao, poruma dependencia da autoridade estrangeira. Nos nos tornamosdependentes deles, porque nos necessitamos deles, e isto porquenos nao somos capazes de averiguar por nos mesmos o que e e oque nao e. Entretanto, voce querer se rebelar contra eles, tambemnao funciona. Voce se livra da copia servil, nao no momento que

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voce se rebela, mas no momento que voce se torna mais forte doque ele. Portanto, nao se trata de acreditar ou rejeitar um conheci-mento mas, sim, de voce se perguntar se voce pode fazer algumacoisa.

Todos os nossos movimentos culturais nacionalistas foram mar-cados por um instinto de rebeliao servil. Rebeliao servil e umsujeito que cisma que existe uma autoridade, por quem ele estasempre rebelado contra ela. So que, se a autoridade morrer, eleesta liquidado. E preciso ter um pai para poder bater o pe con-tra, e dizer que e independente e, amanha, o pai morre, voce estasozinho e nao sabe mais o que fazer.

A ideia basica do curso foi a de retomar o projeto originario daFilosofia como ciencia suprema. Nao como uma atividade para-lela ao mundo da ciencia, como se tornou costumeiro nos ultimos150 anos (aproximadamente). Retomar este projeto, sem que aFilosofia se reduzisse a uma ciencia em particular, ela adquiririanesse caso a dimensao dessa ciencia por excelencia, mas nao sedistanciando de que em cada um dos seus momentos, o pleno ri-gor demonstrativo, que e caracterıstica da propria ideia de ciencia,como nos vimos antes. A ideia de ciencia, como foi aqui apresen-tado, nao e inteiramente fiel ao texto de Platao. E como se fosse oPlatao relido a luz do Edmund Husserl.

1.4 Evolucao e transformacoes daideia de ciencia

Tambem e bom saber que essa ideia de ciencia nunca foi contes-tada realmente por ninguem. E a ideia que esta presente em todosos esforcos cientıficos da humanidade, desde que alguem a ex-pressou, e mesmo antes. Porem, essa mesma ideia ao tender a

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uma realizacao, ela assume formas variadas. Ou seja, se nos per-guntarmos assim: dadas essas condicoes para que uma ciencia sejaverdadeira, quais sao os conhecimentos reais e efetivos que cum-prem essas condicoes? A resposta sera muitıssimo variada, e aprimeira resposta que nos terıamos foi dada pelo proprio Platao,e e uma resposta com a qual nos ja nao podemos concordar hojeem dia. Isto porque Platao acreditava que somente atendiam ple-namente a essas condicoes o estudo dos arquetipos, ou ideias, ouformas. E, nao dos seres humanos, ou do empırico.

Uma coisa e o conceito de ciencia verdadeira, que e a ideia purade ciencia. Outra coisa e a ciencia efetiva que alguem desenvolvevisando atender a essas condicoes. Com relacao a ideia pura, ja-mais houve contestacao. Porem, quanto a realizacao concreta, jae um assunto tao polemico que o proprio indivıduo que formulouas condicoes, ao tentar realizar, ja oferece uma alternativa que ageracao seguinte, com Aristoteles, ja nao pode aceitar.

A historia da Filosofia combinava os esforcos para retornardesde o estado real das ciencias, a cada momento (a ciencia sedesenvolve, entra em crise, se problematiza, se extingue, sai demoda, afunda, e aparecem novas ciencias), a ideia pura. Como sefosse um recomeco, uma refundamentacao.

A primeira dessas refundamentacoes e do proprio Platao. A se-gunda e de Aristoteles. A terceira e dos filosofos escolasticos. Aquarta e de Rene Descartes. A quinta e de Kant, sob o idealismoalemao. A sexta e do positivismo de Comte. A setima e de Hus-serl. E, esta ultima, e recomecar do zero. E como se dissesse: oestado presente das ciencias nao atende satisfatoriamente a ideiapura de ciencia.

Assim, o avanco dos conhecimentos prossegue de acordo comduas linhas: uma e a que vai sempre em frente, avancando, apre-sentando novos conhecimentos, fundando novas ciencia, abrindonovos campos de investigacao, etc. A outra linha e um movimento

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de correcao periodica do curso. E como se fosse o motor e o lemede um barco. Nao basta so andar, mas para aonde esta andando.

A insatisfacao dos grandes filosofos com o estado do conhe-cimento, tal como se apresentava aos seus olhos, parece que ahistoria da cultura seja pontilhada desses retornos. Dos quais nospoderıamos assinalar sobretudo esses, que seria o proprio Platao,que decide expressar a ideia pura de ciencia, embora essa ideianao estivesse sido expressada por extenso, ele nao estava retor-nando a um exemplo historicamente anterior, mas a uma especiede arquetipo intemporal.

Aristoteles. Porem, ao tentar desenvolver a ciencia propria-mente dita, com determinados obstaculos (ele expressou a ideia,mas nao conseguiu realizar de modo satisfatorio), entao, logo apartir desse recomeco platonico, existe um segundo recomeco comAristoteles, que vem com tanta forca que Aristoteles funda a maiorparte das ciencias que nos conhecemos hoje. A ciencia da Bi-ologia, e ele quem formula as bases. A ciencia da Fısica, daLogica, da Polıtica, sao todos conceitos aristotelicos. Nao exis-tia nada disso. Nos estamos tao acostumados com a Biologia, atanto tempo, que nos pensamos que ela brotou em arvore mas,esse esquema, essa delimitacao de um certo tipo de objeto, comobiologico, isso foi um pensamento de Aristoteles. A maior partedos conceitos que nos usamos, conceitos-chave como por exem-plo, conceito de causa, de especie, de genero, tudo isso, comecacom Aristoteles. De modo que ele “bola” as principais ciencias eos conceitos-chave principais da ciencia. E isso continua ate hoje.

O Cristianismo. Porem, esse mundo aristotelico se desenvolveem determinada linha ate que chega a um ponto de crise, na me-dida em que se torna incompatıvel com outros dados da realidadeque se desenvolveram a margem dele. Principalmente o proprioCristianismo, que inaugura certas nocoes que sao perfeitamenteestranhas ao mundo aristotelico. Uma delas que viria a alcancar

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uma importancia fundamental (inclusive para nos hoje), e a proprianocao de Historia. O desenvolvimento humano no tempo, comosendo uma especie de linha unica, que pode e deve ser vista comoum desenvolvimento organico da humanidade, com comeco, meioe fim, isso e uma ideia inaugurada pelo Cristianismo. A ideia daindividualidade, inclusive da inteligencia individual, de psique in-dividual, que para nos hoje e tao obvia (cada um tem sua indivi-dualidade), essa ideia, para Aristoteles, era muito difıcil de enten-der. Para Aristoteles existia uma inteligencia so. Tambem, a ideiade fim do mundo, de que o mundo pode acabar, que existe umacoisa antes do mundo, e outra depois do fim do mundo — paraAristoteles o mundo era eterno.

Na medida onde esses elementos todos, que nao sao de origemfilosofica, sao de origem religiosa, vao entrando na mente, noshabitos, nos valores das pessoas, chega a um certo ponto onde issocomeca a entra numa certa contradicao total com o mundo aris-totelico. Por exemplo, Aristoteles acreditava que existiam doisplanos de inteligencia, que ele chamava de intelecto agente e in-telecto por si. O intelecto por si e um para cada um; o intelectoagente e uma especie de inteligencia cosmica de que e uma so paratodos. Ele acreditava que quando voce morria nao sobrava absolu-tamente nada, somente sobrava o intelecto agente, e que esse eraum so. Assim, a ideia da imortalidade pessoal seria inconcebıveldentro do mundo aristotelico.

Na medida que as pessoas iam a igreja, rezavam, acreditavamnisso e, ao mesmo tempo, liam Aristoteles, era impossıvel que,mais dia menos dia, nao percebessem que havia uma contradicaoa isso. Essa contradicao, que nao era uma so, mas um monte de-las, ainda se agrava pelo fato de que a nocao aristotelica de inte-lecto universal foi endossada por filosofos islamicos, que a consi-deraram compatıveis, sobretudo com as expressoes superiores damıstica islamica, que era uma mıstica de reintegracao do indivıduo

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ao proprio ser divino, de anulacao do indivıduo com o ser divino,era a dissolucao do indivıduo.

Isso tudo dava a impressao que Aristoteles estava argumentandoem favor dos infieis (aos olhos do Cristianismo). Imaginem, entao,na Idade Media, voce ter todo o mundo grego, cuja cultura a Eu-ropa dependia, lutando a favor do outro lado. Era complicado.

Quem procura responder a isso, e reunificar a cultura europeia eSao Tomas de Aquino. Ele consegue dar uma expressao unificadaonde, o aristotelismo, a cultura grega, a romana, etc., tudo parececoerente de novo. Entao, essa e uma grande reforma.

Descartes. A outra grande reforma foi empreendida por ReneDescartes, que se depara com um fato, que para nos ainda e muitoatual, que e de que a cultura se desenvolveu demais, que tem gentedemais falando coisas, que existem muitos livros, que nao da paravoce ler todos, que nao da para voce saber tudo, e quanto maisvoce le, mais confuso fica. Esse e, na verdade, o ponto de partidade Descartes. Ele havia estudado muito na sua juventude, inclusivecom filosofos escolasticos, e tinha saıdo de la mais confuso do quetinha entrado. Assim, ele ve necessidade de refundar o mundo doconhecimento numa base subjetiva, individual, nao-coletiva. Eledescobre que e necessario acreditar no indivıduo, que ele e capazde encontrar o fundamento do conhecimento por si mesmo, e emsi mesmo, na sua propria experiencia interna, e nao simplesmentenas provas oferecidas pela Ciencia socialmente vigente.

Essa e uma das grandes conquistas, e ela ainda e coerente com odesenvolvimento do Cristianismo. Por isso mesmo que ela e umaperspectiva estritamente individual, pessoal e nao-coletiva. O as-sunto da salvacao da alma e pessoal, ninguem pode te ajudar. OCristianismo tem essa enfase subjetiva, pela afirmacao da imor-talidade da alma individual, pela afirmacao da individualidade dainteligencia, e pelo desenlace pessoal da questao da salvacao danacao. E logico que uma filosofia que fosse assim, impessoal, co-

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letiva, desde as suas bases mesmas, inteiramente objetivista, comoa de Aristoteles, nunca bastaria para a questao. Ou seja, alem devoce ter os motivos da certeza objetiva, e um fundamento de cer-teza subjetiva. Essa e a pergunta de Descartes: nao apenas qual eo fundamento real do conhecimento mas, como eu, indivıduo real,posso encontra-lo? A novidade que Descartes introduz e o eu.Ele pretende encontrar o fundamento da certeza dentro do proprioeu, no ato reflexivo do proprio eu, e nao na verificacao de umaevidencia externa, como os filosofos de ate entao.

Veja que em toda a obra de Aristoteles, Platao, Sto. Tomas deAquino, os escolasticos, o indivıduo humano esta completamenteausente, ou seja, a Filosofia e igual para todos. A escolastica ecoletiva, onde todos os assuntos sao tratados segundo uma ter-minologia uniforme, conceitos, tecnicas uniformes. Tudo dentrode uma coletividade intelectual vigente, altissimamente treinada.Eram profissionais de Filosofia, por assim dizer.

Assim, Descartes inaugura a Filosofia do amador, que raciocinasozinho, na sua casa. Isto porque este amador, esse investigador,esse buscador de conhecimento, ele ve que existe uma ciencia es-tabelecida, uma ciencia que tem uma autoridade coletiva, mas eletambem ve que ela contem contradicoes. E, ele como indivıduo,por mais que ele tente confiar na autoridade da ciencia recebida,ele nao pode fazer isso sem que ele tenha a condicao de que elepossa verificar isso pessoalmente. Assim, ele nao garante que umacoisa seja certa, e preciso que eu tenha a evidencia de que ela ecerta. E essa evidencia e uma conquista pessoal. Assim, Descar-tes faz essa grande descoberta de que o fundamento da atividadefilosofica esta no encontro de certas evidencias universais, por as-sim dizer, externas. O fundamento da Ciencia se da na propriaconsciencia humana.

A primeira certeza que o indivıduo tem nao e a certeza domundo, de Deus, da Ciencia, da religiao. Isso tudo sao certezas

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que ele vai descobrir depois. Sao certezas secundarias, e que de-pendem de uma anterior, que e a certeza de que a consciencia estapresente, de que o indivıduo tem certeza. Esse e o fundamentosubjetivo. Assim, se o homem busca uma evidencia, e ele mesmo,ou seja, a autoconsciencia e que e o fundamento do conhecimento.Com isso, ele traz de volta uma tradicao pre-Platao, que e o famoso“Conhece-te a ti mesmo”, de Socrates. Aquela linha socratica, quee a do exame, do livre- exame feito pelo indivıduo isolado, que naocomeca na Academia, comeca pelo amador (Socrates era um em-preiteiro), pelo indivıduo que se investiga.

Porem, essa tradicao do livre-exame, tao logo comeca comSocrates, ela fica esquecida durante mais de mil anos, para so-mente retornar com Descartes. E uma reconquista fundamental,porque todo o restante do desenvolvimento da Filosofia, desdePlatao ate Sto. Tomas de Aquino, e todo um empreendimento co-letivo. O desenvolvimento das varias ciencias e da Filosofia saosempre feito por grupos humanos, mais ou menos organizados,como a Academia Platonica, o Liceu Aristotelico, e as Universi-dades em geral.

Quando Descartes larga tudo isso, como um cidadao comum fe-chado em sua casa, tentando consigo mesmo, reconstruir dentro desua propria mente, o mundo do conhecimento, ele esta retomandoa uma das sementes da propria Filosofia, que e de Socrates.

Kant. A proxima grande retomada e com Kant, que empreendea busca da certeza, nao no sentido cartesiano, na certeza ıntima,mas a pergunta fundamental e: “Por que todas as ciencias naoprogridem do mesmo modo?” “Por que uma vao para frente e ou-tras nao vao?” “E, particularmente, por que todas as coisas queestao mais atrasadas sao justamente aquelas que tratam dos as-suntos mais importantes: Biologia, Metafısica, etc.?” “Por queas ciencias que teriam que nos dar respostas dos problemas maisgraves, e mais universais, nao progridem tanto quanto deveriam,

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mesmo usando o metodo cartesiano?”Kant se preocupa com a organizacao do mundo da ciencia como

um todo. Saber qual e o lugar de cada uma. Kant, praticamente,vai dividir as ciencias entre aquelas que tratam dos objetos de ex-periencia, e aquelas que tratam das condicoes internas. E como sefossem as ciencias do objeto do mundo, e as ciencias do sujeito,do homem. A segunda divisao de Kant e a de que todos os dadosda experiencia sao dados da experiencia humana. Portanto, todo onosso conhecimento e, por assim dizer, co-proporcional a propriaforma humana, a qual nos nao podemos escapar. Isto quer dizerque as respostas as perguntas fundamentais da Metafısica, sobreDeus, imortalidade, etc., so podem ser encontradas sob a formahumana, e nao sob a forma de uma objetividade externa. Naopodemos encontrar provas da existencia de Deus fora de nos, nanatureza.

Sao Tomas de Aquino, os escolasticos, acreditavam que a provada existencia de Deus esta na propria natureza. Kant diz que a na-tureza nao e, senao, uma representacao que nos mesmos fazemos,a partir de informacoes mais ou menos esparsas dos sentidos, quea nossa forma humana unifica na forma de conhecimento humano.Portanto, a nossa visao da natureza e determinada por categoriasde espaco e de tempo, que nao estao na natureza, mas em nos.Kant liberta o homem de uma especie de objetivismo que procu-raria no mundo externo as provas das respostas das maximas per-guntas e devolve o homem a si mesmo. A resposta esta em voce.Esta na propria experiencia da sua alma. Voce vera a exigencia deDeus, a exigencia da imortalidade, etc., e nao uma prova externa.A ideia de uma prova cientıfica da imortalidade, para Kant, seriao absurdo dos absurdos. Assim, para Kant, o homem nao pode-ria encontrar uma prova, uma evidencia de Deus, da imortalidade,no mundo da experiencia externa, nem da experiencia interna, nomundo fısico. Mas, o homem pode encontra-la no mundo da sua

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vontade, da sua liberdade moral. A unica prova da existencia deDeus e a liberdade moral do homem.

A partir dessa divisao estabelecida por Kant, a coisa toma doisrumos. Um rumo e o do idealismo alemao, com Hegel, Fichte,e Schelling, que, meio juntos, meio separados, empreendem a ta-refa de juntar aquilo que Kant havia separado. E para fazer istoeles desenvolvem a ideia da verdade absoluta, como algo que naopode ser encontrado, exceto no proprio desenvolvimento temporalda natureza da Historia. O Absoluto Deus nao pode ser conhecidocomo coisa, como fısico. Ele so pode ser conhecido no propriofluxo da sua manifestacao externa, a qual nos fazemos parte. Kantdiz que o espırito absoluto e ao mesmo tempo, uno — algo queexiste em si mesmo —, e ele e para ser algo que tem consciencia,que tem inteligencia. No seu desdobramento, na manifestacaoreal, ele se duplica. E ele aparece sob a forma de natureza porum lado, ou de objetividade, e de uma forma de inteligencia, oude subjetividade, por outro lado. Mas e a mesma coisa.

E facil perceber como o seu ego, o auto-consciente, e algo fragilperante esse dado do tal da materialidade do mundo, de tamanhodescomunal. Voce so pode conhecer, efetivamente, o que e ob-jeto de experiencia. Acontece que essa experiencia e a sua ex-periencia humana. No que o mundo realmente e, nos so recebemosaquilo que e compatıvel com a forma humana. O que esta fora daforma humana, para nos, nao tem sentido. Nos jamais saberemosse existe. So quem pode saber se existe ou nao e Deus. Assim,como nos vamos conhecer Deus? Eu nao posso conhece-lo porexperiencia. Tambem nao posso conhece-lo como ente subjetivo,cuja existencia efetiva posso provar, como eu provo a existenciade fenomenos fısicos. Por outro lado, a minha experiencia internatambem nao ajuda em nada, porque a experiencia que eu tenho demim mesmo esta enquadrada na categoria de espaco e tempo, quesao minhas mesmas. Assim, eu nao saio nunca da forma humana.

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Estou preso dentro dela. E, ele diz que o unico ındice, o unicosinal que existe de um Deus, ou de uma imortalidade, e a liber-dade humana. Mas, voce nao pode provar a liberdade. Voce naopode provar metafisicamente que o homem e livre. Ele diz que aliberdade e um imperativo categorico. Voce tem que agir como sefosse livre. E como se voce estivesse condenado a isso. Eu naoposso provar que o homem e livre, mas eu nao posso agir excetose eu supuser que eu sou livre. Que eu sou o autor dos meus atos.Eu nao posso agir supondo que os meus atos sejam determinadospor um outro. Ou seja, nao existe prova teorica, nem de Deus nemda liberdade humana. Eu nao posso provar que eu sou livre, maseu nao consigo pensar de outro jeito.

Ele diz que o caminho para Deus e o caminho pelo qual o ho-mem, ao inves de procurar provas de Deus, procurar desenvolver aMetafısica como ciencia, nesse sentido, ele aceita e assume a liber-dade, na qual implica a propria responsabilidade pelos seus atos,que voce e autor de seus atos. E essa liberdade e que e a chaveda divindade, da imortalidade, etc. O caminho para as respostasmetafısicas e um caminho que passa pela vontade humana, e naopela inteligencia. E um caminho pratico, e nao, teorico.

Por um lado, isto tem um merito enorme, porque ele libera ohomem para uma especie de ciencia religiosa mais pessoal. In-clusive, a Igreja Catolica jamais o perdoa por isso, porque, nessesentido, nao adianta voce ter uma doutrina externa pronta, comtantas provas, tantas demonstracoes, porque e somente assumindoa sua propria liberdade que voce vai chegar a conhecer algumacoisa desse outro mundo do divino. Ele diz, “Se nao tem provade que eu sou livre, que Deus existe, nao tem prova que a alma eimortal”, porem, de fato, eu nao consigo agir, a nao ser com basenesses tres pressupostos: liberdade, Deus e imortalidade. Cada atohumano, se for moralmente responsavel, ele pressupoe esses trespressupostos. Entao ele diz que existe uma especie de logica do

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ato moral, porque somente atraves dessa logica e que nos pode-remos adquirir conviccao em Deus, porem, essa conviccao jamaispodera ser sustentada em provas, porque se eu pudesse provar queDeus existe, eu nao seria responsavel pela minha crenca em Deus.

Kant foi um dos grandes mısticos da humanidade. Se voce estasozinho, voce e livre, e como se fosse um ponto num espaco to-talmente indeterminado, onde nada te segura, nada te prende, teexige, e voce vai nos caminhos de uma determinada crenca, e naode outra, como uma exigencia da tua propria liberdade, e nao poruma prova externa. Assim, nos poderıamos dizer que, para as pes-soas que sao sinceramente desejosas de uma vida espiritual maisprofunda, Kant te da uma maneira de salvacao. Para quem naoesta a fim de nada, mas esta so querendo encher o saco da IgrejaCatolica, o Kant lhe da todos os pretextos. Kant tambem serve.Porem, a obra de Kant fecha as portas a Metafısica como ciencia.Na verdade, ele nao fecha totalmente a porta, porque o proprioKant tenta no fim da vida desenvolver uma nova Metafısica comociencia, a partir da propria nocao de liberdade humana, mas, aı elemorreu.

Assim, se podemos conhecer os objetos de experiencia, sendoque isso esta condicionado a nossa estrutura de percepcao detempo e de espaco, a categorias logicas, se so nos percebemos domundo aquilo que e captavel pela forma da esquematica humana,e se tudo que esta para alem da experiencia exclusivamente da sualiberdade pessoal, a geracao seguinte (nao os idealistas, mas ospositivistas, um pouco mais tarde), concluem que essas questoesde ordem metafısica, religiosa, etc., dependem do arbıtrio pessoal,e que portanto sao questoes que nao tem importancia cultural al-guma. Isso foi feito por Comte.

Assim, Comte inaugura a ciencia positivista, que trata dos da-dos da experiencia e deixa de lado as questoes metafısicas. Issotambem e uma grande contribuicao, senao as ciencias nao teriam

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prosseguido, teriam empacado nas questoes metafısicas. Porem, opositivismo e uma das linhas de desenvolvimento possıveis a partirde Kant. A outra linha e o idealismo alemao.

No mundo universitario alemao, o esforco da geracao imediata-mente seguinte, que foi marcada por Schelling, Hegel, e Fichte,o esforco e no sentido de reunificar os dois mundos, subjetivoe objetivo, que Kant havia separado tao radicalmente. Por umlado voce tem as ciencias de experiencia, a ciencia aplicando ospadroes logicos, os padroes de percepcao de espaco e tempo, aexperiencia do mundo, que chega a resultados efetivos, etc., porexemplo, na Fısica. Por outro lado, temos o mundo do conheci-mento metafısico, que na verdade nao sao conhecimentos, e quedependem de uma indefinıvel liberdade humana, e que portantosao nao-conhecimentos.

O idealismo alemao. Os filosofos do idealismo alemao perce-beram as consequencias tragicas que essa ideia do Kant poderiater mais tarde, que seria simplesmente tirar a preocupacao me-tafısica da jogada, que foi exatamente o que fez o positivismo, ese prender apenas ao mundo da experiencia sensıvel. Porem, paraessa reunificacao eles partiram da ideia do Kant de que o conheci-mento metafısico era um conhecimento de ordem pratica, moral,e nao, teorico, intelectual. E desenvolveram a ideia de uma teoriada pratica, de uma especie de evidencia intelectual, que nao vempronta num ato unico, mas se desenvolve no proprio tempo, noproprio tecido da vida real (uma especie de pensar, vivendo o pen-samento da vida mesmo). Era uma sıntese da teoria e da pratica.Que teoria e pratica seriam a mesma coisa. E um dos pensamentosmais complexos que a humanidade ja concebeu.

Nesse sentido, nos podemos colocar o que Schelling propos:o absoluto, ou Deus, Ele e ao mesmo tempo, ser, real, e Ele etambem, conhecer, e a inteligencia subjetiva. No processo da suamanifestacao, que nos chamamos da criacao, ele se desdobra no

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aspecto objetivo, que e dado pela natureza, pelo mundo corporeo, enum aspecto subjetivo, esta representado na inteligencia humana.Parece que e um abismo e, de fato e um abismo entre o mundoda objetividade e o mundo da subjetividade. Por exemplo, nosentendemos que a natureza esta regida por leis que sao matemati-camente expressadas pelo princıpio da necessidade terrena. E poroutro lado, nos entendemos que a nossa inteligencia, o nosso serhumano esta regido por um princıpio de liberdade, mas no abso-luto, liberdade e a necessidade teriam que ser uma coisa so. Senao houvesse necessidade alguma seria o caos total, e se nao hou-vesse liberdade alguma, entao, Deus nao poderia ser um sujeitocriador. Assim, os dois aspectos, homem e natureza, em Deus, saouma coisa so: liberdade e necessidade, objetivo e subjetivo. Quale, entao, o processo de retomada, redescoberta, dessa unidade pri-mordial?

A grande pista para isso aı e dada pela Mitologia. Toda a nossaideia atual sobre o mito, que o mito contem uma verdade me-tafısica profunda a ser descoberta, quem colocou isso foi Schel-ling. As duas grandes pistas, de um lado, o mito relacionado acriacao artıstica, onde uma coisa subjetiva se torna objetiva, ma-terial, sem perder a presenca do elemento subjetivo, de modo que,para Schelling a Arte era a suprema atividade humana.

Os mitos sao a linguagem divina por excelencia, a linguagemabsoluta. No mito, o objetivo e o subjetivo estao todos mistura-dos. Por isso que eles parecem non-sense. De modo que, se voceve na perspectiva correta, voce ve que eles sao a expressao de umaunidade interior da divisao de objetivo e subjetivo. O Schelling ede uma profundidade assombrosa, de modo que, todos nos vive-mos num mundo schellinguiano, sem nunca termos lido Schelling.O movimento esoterico que esta aı hoje, e um Schelling estragado.Jung e um Schelling estragado. Schelling e um dos grandes mar-cos da historia filosofica.

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1.5 Evolucao da Ideia de Ciencia• Socrates–Platao: ideia pura de ciencia.

• Platao: ciencia das formas ou dos arquetipos.

• Aristoteles: ciencia natural ou ciencia das coisas efetiva-mente existentes.

• Cristianismo: senso da historia, alma individual.

• Santo Tomas de Aquino: harmoniza o cristianismo com aciencia aristotelica.

(RUPTURA)

• Descartes: retorno a Socrates; a consciencia individualcomo sede da ciencia verdadeira.

• Kant:

– conhecimento interno (formal)

– conhecimento externo (material)

Idealismo Positivismopor reacao, por reacao

surge Marx surge E. Husserl

Este quadro me permite ter uma visao do que esta sendo discu-tido. Qual e o problema? Do que se trata? Trata-se, em ultimaanalise, sempre da mesma coisa: como atingir um conhecimentoverdadeiro?

Em relacao ao que seja conhecimento verdadeiro na suaideia pura, dificilmente houve mudanca. Aqueles que discutemquestoes, tentam abalar a nocao de ideia pura do conhecimento,

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sao sempre filosofos menores, que estao aı so para chatear, e es-timular uma reacao de algum grande filosofo. Sao geralmente osmovimentos ceticos que antecedem uma grande reacao. Sao sem-pre as mesmas duvidas, sob uma outra forma que provocam umareacao.

Fichte ja esta incluıdo aqui, porque Schelling ja e uma respostaa ele. Fichte resolve a questao do Kant pelo modo radical, onde soexiste o eu, o ego. Schelling prometeu mas nao realizou, somentedisse, afirmou, que o absoluto unifica o ser, e o saber, o conhecer,o objeto do sujeito, mas ele nao explica completamente como. OSchelling e uma promessa do conhecimento, e nao o conhecimentoefetivo.

Hegel so acredita no conhecimento quando ele esta totalmentedesenvolvido num sistema. Hegel faz o sistema do idealismoe o sistema do desenvolvimento da progressiva manifestacao doespırito na vida historica real, de modo que a nocao de teoria e depratica ja foi para as cucuias a muito tempo. A propria teoria e adistincao da propria pratica.

Hegel, Fichte e Schelling sao pessoas profundamente voltadaspara o mundo da acao, e nao para o mundo da inteleccao pura. E,nesse mundo da acao, para eles, e onde justamente vai aparecer aideia. A ideia do espırito esta justamente ali, no real. Segundo He-gel, essa manifestacao do espırito e o tecido da propria Historia. AHistoria e a dimensao suprema onde todas as contradicoes se re-solvem. Por isso mesmo e que Hegel nao aceita as contraposicoesestaticas (teoria contra outra teoria). Para ele, a teoria tem de queser vista como um momento de um desenvolvimento dialetico. Ateoria errada nao pode ser totalmente errada. Isto quer dizer que,o que nos definirıamos entre o que e uma verdade objetiva, do quee o processo de descoberta dessa verdade. Para ele, essa distincaonao existe. O processo de descoberta e a propria verdade. Hegeldiz que a historia da filosofia e a propria filosofia. A filosofia nao

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tem nenhum conteudo a nao ser o desenvolvimento dialetico dasideias ao longo da Historia. E esse desenvolvimento dialetico eo proprio conteudo da ciencia que nos chamamos de Filosofia, aqual, no fim do processo, toma conhecimento de si mesma. Comisso Hegel retoma essa ideia de Historia, que havia sido enxertadaali com o Cristianismo. A Historia e tudo.

A celebre formulacao de Hegel: “A essencia de uma coisa eaquilo que ela se torna. Nao e aquilo que ela e em potencial”.Para Aristoteles, a ideia de essencia, e a ideia do que ela vira como tempo. A essencia de uma coisa e independente dela existirou nao. Porem, Hegel diz que isso e somente uma potencia deessencia. Nao e uma essencia real, que e aquilo em que a coisa setornou. O sentido de um ato, e o resultado desse ato. Nao ha ne-nhum outro sentido. Se voce tem uma semente, e voce quer sabero que ela e, voce tem que plantar e, aı, ela ira se transformar emmanga, tomate, laranja, etc. Isto quer dizer entao que a pratica e apropria revelacao da essencia.

Todas essas coisas que estao em discussao vao dar nessa duplaraiz d o mundo ocidental que e, por um lado, o pensamento grego,e por outro lado, o Cristianismo. A questao que nos estamos li-dando ainda e a mesma: como e que nos vamos conjuminar essasduas coisas?

Para Platao a essencia praticamente nao existe, ela e apenasuma ideia. Mas, essa ideia e independente da existencia, ou nao-existencia, da coisa. Hegel acredita na nocao de uma essenciareal que se manifesta, nao no mundo das ideias, mas no processotemporal, atraves dos resultados. Para Hegel, tudo aquilo que epotencia, nao e nada. So existe se estiver plenamente desenvol-vido. A potencia que nao se manifestou, nao e potencia.

Karl Marx. Karl Marx complementa Hegel no seguinte sentido:ele concorda com Hegel que os enigmas filosoficos somente sedesenvolvem e se resolvem na Historia. A Historia nao e o de-

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senrolar das ideias ou doutrinas, como dizia Hegel, mas o desen-rolar dos atos humanos, de indivıduos reais (indivıduo, nao con-siderado isoladamente, como se fosse uma essencia metafısica,mas o indivıduo unido a outros indivıduos como um sistema derelacoes determinadas). Por exemplo, nos nao estamos aqui comoindivıduos abstratos (mas, como professor e aluno). E, o in-divıduo real, considerado fora dessas relacoes que demarcam assuas relacoes com os outros nao e absolutamente nada. Nuncaexistiu um indivıduo assim. Um indivıduo assim seria apenas umapotencia de ser humano. Porque quando alguem nasce, ja nasceufilho de alguem, num determinado lugar, e nao num outro, entaofaz parte de um conjunto de relacoes.

A Historia e a historia dos atos humanos, considerados noentrelacamento total das suas relacoes (economicas, jurıdicas,polıticas, etc.). Marx radicaliza a ideia de Hegel de que a praticae teoria. Marx ve os atos reais, fısicos, economicos, militares,polıticos, etc. Daı, ele pergunta como nos podemos descrevero mundo baseado num sistema dessas relacoes humanas? Eletambem ve que esse sistema nao e estatico, que ele muda, entao,ele pergunta: nessa mudanca, quais sao as relacoes decisivas cujasalteracoes, dependem das alteracoes de outras regras? Ele tem aimpressao que estao nas relacoes economicas.

A Historia e a historia dos atos humanos determinados por umconjunto de relacoes, as quais, impossibilitam outros atos. Porexemplo, se um e pai, e o outro e filho, entao, o filho nao podeagir como pai. Esta excluıdo. Fim de papo. E incongruente. Oato fica sem efeito. Se e patrao e empregado, patrao nao age comoempregado, e empregado nao age como patrao. Essas relacoessao de uma complexidade formidavel. Sao relacoes de ambitoeconomico, polıtico, jurıdico, psicologico, etc. Vendo que o se-gredo do enigma somente seria resolvido se fosse possıvel des-crever esse sistema de relacoes, ou seja, contar a Historia, contar

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o sistema de relacoes existente de atos determinados, e como eleevoluiu com o tempo, Marx pergunta: como fazer isso? Ele ve quea modalidade mais simples e estavel e a Economia, porque vocepode, facilmente, encontrar quatro sistemas basicos: um e o queele chama de comunidade primitiva, que e uma especie de socia-lismo, depois, um outro que ele chama de feudalismo; outro quee o capitalismo, e um outro que seria o socialismo, que era umacoisa que so existia em germe. Apenas os tres primeiros ele podiaidentificar.

Assim, vendo essas relacoes economicas como mais estaveis,ele acreditava que, para cada um desses sistemas havia uma infi-nidade de sub-sistemas que podiam se desenvolver em cima dessesistema economico, mas sempre ligados a esse sistema de base.Este e o famoso materialismo historico.

Positivismo. A partir de Kant, existe uma outra linha de desen-volvimento, que surge com o Comte, que e o positivismo, que ea proposta da organizacao do mundo das ciencias como sendo co-nhecimento positivo. O conhecimento positivo e o conhecimentoafirmativo, provado, dentro dos seus proprios limites, e que se li-mita, sobretudo, ao mundo da experiencia. Lida, principalmente,com a experiencia sensıvel. Abandona as questoes da metafısica,nao exatamente a liberdade humana, na maneira como entendiaKant, que ve que a liberdade humana e uma so para todos, que, oque existe de imperativo e categorico e igual para todos os sereshumanos, mas o positivismo nao admite exatamente isso, e sim,ele coloca entre parenteses essas questoes, deixando-as ao arbıtriode cada um.

Essa e uma tendencia que ainda existe hoje, no sentido dasquestoes metafısicas, religiosas (todo mundo tem direito de ter afe que quiser; todas as crencas sao igualmente neutras do ponto-de-vista da Ciencia). A Ciencia nao pode opinar sobre isto.

Husserl. Aı chegamos ao ponto que nos interessa, que e onde

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Edmund Husserl faz a mesma pergunta que todos fizeram. Re-sume todas essas perguntas dizendo que, se as ciencias tem quese ater apenas ao mundo da experiencia, se as ciencias positivas(Fısica, Biologia, etc.), se tornam donas do mundo conhecimento,isso se deve unicamente ao fato de que elas sao ciencias. Se naofossem validas nao seriam ciencias. E o que as torna ciencias?Qual e o princıpio da sua cientificidade? Esse princıpio pode serestabelecido pelas proprias ciencias positivas? O estudo da totali-dade dos fenomenos fısicos poderia me informar qual e o princıpiode validade do conhecimento fısico? Se elas sao ciencias e porqueobedecem a uma ideia pura de ciencia, a uma determinada ideiasde ciencias que elas nao poderiam fundamentar.

Assim, aceitando a ideia de ciencia positiva, ele procura leva-la mais adiante, dizendo que as ciencias somente tem autoridadena medida que sao ciencias. E, so serao ciencias se atenderema determinadas condicoes que nao dependem de nenhuma delas.A Biologia, a Quımica, a Economia, sao ciencias. Por que o co-nhecimento que elas produzem e valido? O conhecimento dosfenomenos economicos me dira qual e o princıpio que valida aEconomia como ciencia? Tudo isso, para ele, depende da ideiamesma de Ciencia. A ideia mesma de Ciencia e o que e o objetode algo chamado de Teoria da Ciencia. E, para a Teoria da Cienciarestabelecer o que e Ciencia, ela o tem que estabelecer cientifica-mente, ou seja, ela e Ciencia, por excelencia. O que e a Teoria daCiencia? E o que chamam de Logica.

O primeiro passo de Husserl sera ele demonstrar que nenhumaciencia positiva pode legislar nada, em materia de Logica. Ne-nhuma descoberta, seja em Fısica, Biologia, Matematica, etc.,pode afetar em absolutamente nada o princıpio da Logica. Se-ria uma absoluta autonomia da ciencia logica. Para refundamen-tar desde o inıcio, ja nao seria como em Descartes (uma desco-berta subjetiva), mas teria que ser um inıcio apodıctico, indes-

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trutıvel, como no comeco, um comeco que esteve sempre presenteno fundo de tudo isso.

Para recolocar a ideia de Ciencia ele diz que ia resolver o queele chama de “a crise das Ciencia”, o que significa que elas naosao muito cientıficas. Nenhuma delas. Seria como “apertar o pa-rafuso” de todas as ciencias, para que elas se tornem, todas, maiscorretas. Reconstruir todo o mundo das ciencias numa frase total-mente exata. Talvez esse seja o recomeco mais radical de todos osoutros. Ele deixa tudo entre parenteses, as questoes da metafısica,etc. Ele diz que nao sabe porque nao tem certeza de nada, dasquestoes da metafısica, nem das questoes morais, nem da Historia,etc. Ele diz que tudo isso so e valido se for Ciencia.

Assim, nos temos que saber qual e a condicao que torna umconhecimento absolutamente verdadeiro e, em seguida, saber seessa condicao esta presente em todos os conhecimentos verdadei-ros. O que move o sujeito para aprender nao e o simples desejopara aprender, mas e o desejo de se transformar. E o desejo deser amanha o que voce nao e hoje. Sem isso nao adianta estudarnada. A partir do momento que voce sabe alguma coisa, voce janao e o mesmo quando nao sabia. Agora, se eu sei, e continuo aser como se nao soubesse... Se eu sei os parametros, os criterios,para uma tomada de determinada decisao, mas ainda sinto a ne-cessidade de perguntar, entao, voce nao aprendeu nada. Depoisde uns dez ou quinze anos de estudo disto aqui (IAL), voce temque nao precisar de perguntar mais nada para ninguem (na esferapratica). Nos temos o direito de ter uma cota enorme de perplexi-dade na adolescencia e, essa cota tem que ir diminuindo. Agora,se voce esta perplexo, e nao sabe o que fazer, entao sera um pro-blema, porque tambem ninguem sabe. Voce tem que aprender avoce responder as suas proprias questoes. Chega a um ponto que,se voce nao pode se ajudar, ninguem mais vai te ajudar. Voce temque aprender a tomar as suas decisoes, nem que seja por tentativa

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e erro. Aquela ilusao de que voce pode ser guiado de tal maneiraque voce sera poupado dos erros, dos fracassos, de nao estar se-guro todo dia, isso tudo e sonho, ilusao, poesia e romance. Isso naoexiste. Voce pode ser guiado durante um perıodo da sua vida paraevitar quedas traumaticas, de certos erros, decepcoes, quando temdoze, quinze, dezesseis anos de idade, os quais podem acabar comvoce. Entretanto, as mesmas quedas e decepcoes, aos vinte e cincoou trinta anos de idade, voce tem que aguentar sozinho. Ninguempode te poupar disso, e se o fizerem, estarao te fazendo um mal. Oimportante e saber que nas questoes existenciais ninguem tem asrespostas. E, se eu as tivesse, eu nao as daria, porque elas so ser-vem para mim. Kant dizia: “Nao e possıvel voce fazer nada a naoser com base na suposicao de que voce e o senhor dos seus atos”.Sempre que nos agimos, o fazemos com base nesse pressuposto,porem, quando vamos raciocinar, nos erramos. O princıpio basicoda acao humana e: “Fi-lo porque qui-lo”.

No entanto, como e que eu vou raciocinar, se o que eu fiz, euconto a estoria errada? Eu raciocino na base de que nao fui euquem fiz, porque foram as condicoes externas, porque fui obri-gado, porque nao tinha outro jeito, etc. Existe uma tendencia deque, quando voce fez uma coisa que te frustra, voce diz que naoera bem aquilo o que voce queria, e se nao era bem aquilo o queeu queria, nao foi bem eu quem o fez. Se nao foi voce quem ofez, significa que voce mudou, entao, o que voce queria naquelaepoca nao e o que voce quer agora. So que isso nao e motivopara voce, retroativamente, dizer que nao foi voce quem fez, exa-tamente o que fez. Voce queria, e se queria, voce o fez. Depois,se deu errado, admita que escolheu errado. Se voce nao reconheceisso, nao vai aprender nunca. A perda da evidencia sobre os seusproprios atos tambem contraria os princıpios fundamentais que ti-nham sido descobertos por Descartes. A certeza que eu tenho naote serve nunca. Se voce concordou comigo porque acha que eu

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sou um sujeito legal, tambem nao adianta de nada. Se eu digo queA = A, mas voce nao tem firmeza disto, mas concordou, querdizer que voce pegou isto como uma verdade, mas nao como umaverdade absoluta. Voce nao captou totalmente. Voce recebeu aminha mensagem, mas nao a mensagem do objeto, do A. Voceprestou atencao em mim, e nao no objeto.

E claro que voce tem que captar isto atraves do que eu pensei,mas o que eu pensei e como se fosse um canal para que voce che-gasse ao objeto. Aquilo que voce ve atraves de mim, voce tem quever sem mim. Senao, sera como naquela parabola de Buda: “Osabio aponta para a lua e o nescio olha para o dedo”. Voce podeachar que o dedo e a lua. Voce tem que tentar provar o absurdo, atecansar, ate descobrir que e um absurdo. Por voce mesmo. Isto epara voces entenderem que ha certas coisas que o ser humano podenegar, ele tem a liberdade de negar, porem, ficticiamente. Ele tema liberdade de viver uma vida fictıcia se ele quiser, que e tomar asduas formas da mentira e da loucura. A mentira e quando voce eo autor do mal, e na loucura, voce e a vıtima. A neurose e umamentira esquecida, mas voce ainda acredita nela, entao comeca amentir e termina mal.

1.6 Caracteres gerais da obra deEdmund Husserl

A obra do Husserl divide-se num certo numero de etapas. E umaobra muito grande, pois ele era taquıgrafo, e tudo o que ele pen-sava de importante era passado para o papel imediatamente. Desseconjunto de anotacoes, ele publicou uma parte, e o resto esta sendopublicado ate hoje. Existem um certo numero de etapas que cor-respondem a determinados problemas.

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Husserl era judeu tcheco, nascido na Moravia.A obra de Husserl se divide-se em tres etapas: a primeira e a

colocacao do problema da ideia pura de Ciencia, da ideia do co-nhecimento verdadeiro e o afastamento das alternativas falsas queimpedem a formacao de uma verdadeira teoria da Ciencia.

Para que exista uma verdadeira teoria da Ciencia que expresseplenamente o conteudo do que e o conhecimento verdadeiro, asnormas do conhecimento verdadeiro, etc., existem uma serie denocoes que estao no ar, e que precisam preliminarmente seremdesbastadas.

A segunda seria a formulacao desta teoria e do metodo da teoriada Ciencia.

A terceira seria a formulacao do que seria a filosofia de Husserl.O que Husserl tivesse a dizer a respeito dessa ou daquela questaofilosofica concreta, ficou para o fim. Esta ultima parte so ficou co-nhecida postumamente, e as partes comunicadas em vida que exer-ceram uma influencia enorme em todo mundo, se diversificou emmuitas escolas, que partindo das primeiras bases, desenvolveramessas ideias num sentido completamente diferente do dele. Poreste motivo, Husserl sempre disse que nunca teve discıpulos. Hou-veram algumas pessoas que desenvolveram algo a partir do que eleescreveu. Max Scheler foi um deles. Scheler pega os indıcios dometodo fenomenologico e desenvolve num determinado sentido.Heiddeger e Jean-Paul Sartre, foram outros. Cada um desses de-senvolve, parte de uma parte inicial da fenomenologia, do metodo,num determinado sentido. Edmund Husserl sempre achou issomuito ruim, porque eles teriam que espera-lo acabar de falar. Porisso o pensamento de Husserl e visto de maneiras erroneas quandointerpretado a partir da obra dos seus muitos discıpulos.

A meta de Husserl e a restauracao da ideia essencial da Ciencia,a formulacao do metodo essencial da Teoria da Ciencia, o julga-mento do conjunto das ciencias existentes, e a reformulacao total

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do sistema das ciencias. E a reforma total do mundo das ciencias.Este e o objetivo. Ele o poe desde o comeco. Porem, ele tra-tando problema por etapas, exaustivamente, de modo que, quandopegava um problema, ele nunca se contentava com aquilo, de ma-neira que nao sobrasse mais nenhuma duvida. E o que ele fazaqui nessas investigacoes logicas. Esse texto nao e para ser esgo-tado neste curso. E algo para servir, em princıpio, de referenciapara nos o resto da vida. A dificuldade maior do texto do Hus-serl e o fato dele se estender demais sobre cada ponto, o que, deum ponto-de-vista retorico, pedagogico, e um verdadeiro desastre,porque voce acha que nao vai mais sair daquilo, nunca mais. Otexto que esta em suas maos poupa voces dos fatos intermediariosdas investigacoes dele.

Esta nao e a principal obra de Husserl, porem, aqui e onde elevai enfrentar as primeiras das grandes dificuldades, e voces veraoporque muitas dessas dificuldades que se resolvem aqui se cons-tituem de doutrinas filosoficas do seculo passado, e que, emboraja rebatidas inteiramente por ele, continuam presentes nas cabecasdas pessoas, como habitos arraigados. Tudo que e habito para nos,faz parte do natural. Se e habito e uma segunda natureza. Quandovoce pensa de uma maneira habitual, voce pensa que as pessoassempre pensaram assim, e que e da natureza humana. Isto querdizer que, ideias que sao destruıdas, do ponto-de-vista cientıfico,continuam sendo de fato crencas profundas arraigadas e, as vezes,inconscientes, dentro das pessoas.

Lendo este texto do Husserl, entendi porque existe, da parte detantas pessoas, dificuldades em acreditar que seja possıvel o co-nhecimento objetivo: porque os obstaculos criados a respeito daideia de conhecimento objetivo foram tantos, e de tantas fontes,que acabaram por virar senso comum, habito. Para desarraigareste habito so ha um jeito: ver de onde ele saiu e voce mesmodiscutir com ele. Nao apenas uma vez, mas muitas vezes, e sobre

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todos os aspectos, ate que voce o cerca de tal maneira que ele naoaparece mais. Isto quer dizer que esta leitura tambem tem um sen-tido psicoterapeuta. Esta leitura restaura o indivıduo a confiancana inteligencia humana. So que da um trabalho enorme.

6 Inıcio da leitura das investigacoes logicasProlegomenos a logica puraIntroducao1. A discussao em torno a definicao da logica e ao conteudo de

suas doutrinas essenciaisAinda hoje estamos longe de uma geral unanimidade com res-

peito a definicao da logica e ao conteudo de suas doutrinas essen-ciais.

Sabemos que a Logica trata das definicoes, dos silogismos, etc.Uma coisa e o conteudo das tecnicas logicas, e quanto a esseconteudo nao ha muito o que dizer, pois todos sabem o que e umsilogismo, premissa maior, premissa menor, etc. Quanto a issonao ha divergencia. Mas, nao e disso que Husserl esta falando.Ele esta perguntando, nao qual e o conteudo das tecnicas logicas,mas, primeiro, sobre o conteudo das doutrinas, ou teorias logicas.Teorias que respondem ou deveriam responder a pergunta: em queas tecnicas logicas se fundamentam? E, em segundo lugar: de quea Logica trata? Qual e o objeto dela?

Depois de dois mil anos de Logica, embora a ciencia da Logicaesteja bastante desenvolvida, ainda nao se tem clareza sobre o deque ela esta falando. Isto significa que o estudo da Logica se atemao aspecto empırico-pratico, ou seja, sabemos praticar a Logica,sabemos aplicar suas regras, mas nao sabemos exatamente o queestamos fazendo quando fazemos isso. O que e essa ciencia aque chamamos logica? Ela e uma formalidade, um conjunto deesquemas? Ela expressa leis reais que atuam na realidade exteriorou leis da mente humana? Ninguem sabe ao certo. O propriosucesso da Logica contrasta com a ausencia de qualquer clareza

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quanto a esses pontos.Das tres direcoes capitais que encontramos na logica, a psi-

cologica, a formal e a metafısica, a primeira alcancou uma pre-ponderancia decisiva.

Essa “preponderancia decisiva” e valida ate 1910. E, o que saoessas tres direcoes?

A primeira teoria que existe a respeito da Logica e cada umadessas teorias e uma direcao na qual a ciencia da Logica se de-senvolve e a teoria psicologica. Ela diz: a Logica e a ciencia dasleis do pensamento humano; e a ciencia de como nos efetivamentepensamos.

A segunda e a direcao formal, que hoje (1992), e dominante, eque diz o seguinte: a Logica e um conjunto de esquemas que possi-bilitam a coerencia do pensamento. Sendo que a coerencia do seupensamento nada tem a ver com a veracidade dela, tambem naotem a ver com o processo real pelo qual nos pensamos. E como sefosse a regra do jogo, que da a esse jogo uma coerencia, mas naoquer dizer que essa regra de jogo corresponderia ao modo naturalde nos pensarmos. A Logica seria uma combinatoria que permitecriar esquemas de pensamento coerente. Essa e a logica dos com-putadores. A terceira direcao, metafısica, que e a de Aristoteles,diz que a Logica e a traducao das leis ontologicas, das leis fun-damentais do real, tal como se manifestam no nıvel do discursohumano. “A Logica e uma ontologia do microcosmo do discursohumano”. diz Frithjof Schuon. Entao, as leis da Logica vigoramuniversalmente para o ser em geral, ou seja, se o discurso com aLogica e coerente, e porque o real e coerente.

Essas tres direcoes estavam em disputa no tempo de Husserl(1910), sendo que nessa epoca a direcao psicologica era domi-nante no mundo universitario, mas sem que tivesse eliminado asconcorrentes. Quando se diz que uma afirmativa foi “derrubada”,“superada” ou “abandonada”, voce precisa verificar se ela foi re-

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futada satisfatoriamente, ou se simplesmente saiu de moda antesmesmo de ter sido seriamente discutida. O jargao corrente dosdebates intelectuais, mesmo nas universidades, sempre confundeessas duas coisas. Aqui no Brasil e comum acontecer que, quandoalguem apresenta um argumento contrario a uma teoria, se digaque ele “derrubou” a teoria. As pessoas nao sabem o que e umateoria, e nao sabem o trabalho que da para derrubar uma teoria.Voce pode passar vinte seculos para derrubar uma, e as vezes naoconsegue. Dizem, por exemplo, que “a queda do Muro de Berlimrefutou o marxismo”.

Mas a conexao entre um fato historico e uma teoria geral e alta-mente problematica. Nao da para se estabelecer essa conexao taofacilmente. Para que esse juızo fosse valido, primeiro voce preci-saria provar que a teoria marxista contem como um dos seus pila-res, como uma das suas demonstracoes fundamentais, essenciais,e nao acidentais, a eficacia e a permanencia do Muro de Berlim.Mas demonstrar a conexao entre marxismo e a Uniao Sovietica jae complexo...

Voce pode nao refutar uma teoria, mas pode neutraliza-la comoforca historica; por exemplo, voce desaparece com todos os livrosque falam dela, ninguem mais os le, e a teoria nao tem mais forcahistorica atuando. Foi mais ou menos o que aconteceu com a fi-losofia escolastica depois do Renascimento. Ninguem mais leu oslivros escolasticos e isto ficou como uma “prova” de que as teoriasescolasticas estavam erradas ou nao tinham importancia. Mas apopularidade ou impopularidade entre os letrados nao nos diz seuma teoria e verdadeira ou falsa. O fato de uma teoria ter maisadeptos prova que ela e verdade? Nao. Pode acontecer que todostenham se enganado juntos.

Assim, em 1910, a dominante era a teoria psicologica, porqueela abordava as questoes de logica com o espırito das cienciasempıricas que entao obtinham grande sucesso a passavam por ser

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o modelo mesmo do conhecimento valido.Mas as outras duas continuam propagando-se; as questoes de

princıpio discutıveis continuam sendo discutidas; e, no que tocaao conteudo doutrinal, os distintos autores servem-se das mesmaspalavras para expressar pensamentos diferentes. Mesmo a logicapsicologica nao nos oferece unidade de conviccoes.

Questoes de princıpio, algumas discutıveis, outras nao; porexemplo, a Logica deve produzir pensamento coerente. Entre-tanto, uma questao que gerou desacordo universal esta incluıdanessa categoria. Se voce segue a logica da teoria psicologica,voce dira que, as categorias sao esquemas da percepcao humana.Porem, como a percepcao humana e exclusivamente humana, podeser que o mundo que nos vemos atraves dessas categorias seja to-talmente diferente do que vemos. Pode ser que aquilo que eu vejocomo uma deformidade seja uma qualidade, e vice-versa. Se eusigo a orientacao formal, eu digo: as categorias nao sao nada. Saoapenas grupos de palavras, de conceitos, que eu agrupo por simi-laridade, e que nao tem nada a ver, nem com o meu modo de ser,nem muito menos com o real. Se eu sigo a orientacao metafısica,eu digo: as categorias sao, ao mesmo tempo, grupos de conceitose aspectos do ser. Porem, esta questao continua sem resposta atehoje. Com relacao a pontos capitais da Logica, existe a incertezatotal.

2. Necessidades de uma nova dilucidacao das questoes deprincıpio

A circunstancia de que ensaios tao numerosos para impelir alogica pelo caminho seguro de uma ciencia nao permitam apreciarnenhum resultado convincente, deixa aberta a suspeita de que osfins perseguidos nao se aclararam na medida necessaria, para umainvestigacao frutıfera.

Ele tenta, com este texto, colocar a investigacao das questoesfilosoficas no caminho seguro da Ciencia. Temos que tomar cui-

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dado, pois Kant da como exemplo modelar de Ciencia que entroupelo caminho seguro, precisamente a Logica.

No comeco do estudo da Logica, nao foi colocado direito comque fim estavam fazendo aquilo. Qual era o objetivo? Isso querdizer que se estuda a Logica com tres finalidades completamentediferentes. Entao, talvez hajam tres sınteses completamente diver-sas, e nao uma so.

A concepcao dos fins de uma ciencia encontra sua expressaona definicao dessa ciencia. Nao que o cultivo frutıfero de umadisciplina exija uma previa e adequada definicao do conceito doseu objeto. As definicoes de uma ciencia refletem apenas as eta-pas de sua evolucao. Nao obstante, o grau de adequacao dasdefinicoes exerce tambem seu efeito retroativo sobre o curso daciencia mesma; e este efeito pode ter influxo escasso ou consi-deravel, conforme a direcao em que as definicoes se desviem daverdade. A esfera de uma ciencia e uma unidade objetivamentecerrada. O reino da verdade divide-se, objetivamente, em distin-tas esferas; as investigacoes devem orientar-se e coordenar-se emciencias, em conformidade com essas unidades objetivas.

Ele diz que se existe uma confusao tao grande quanto ao rumoque a Logica deve tomar, quanto a definicao mesma da Logica, see o rumo de uma investigacao psicologica, se e o rumo de umaelaboracao formal, de uma construcao formal (caso dos compu-tadores), ou se e o rumo de uma fundamentacao de ordem me-tafısica, se nao existe qualquer clareza quanto a isso, e muito pro-vavelmente porque os fins da ciencia da Logica nao foram aclara-dos desde o inıcio.

Uma Ciencia e definida em objeto material, objeto formal mo-tivo, e objeto formal terminativo. Objeto material e “o que?”;por exemplo, Economia e Historia: o objeto de estudo das duase o mesmo, que e a sociedade humana. Objeto formal motivoe o “por que?” voce estudou, por onde, por que lado voce se

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encaminhou no estudo? E o “pelo que”. A Historia estuda doponto-de-vista do encadeamento, das sequencias temporais. Sem-pre isso. Nao existe historia simultanea. A Economia olha doponto-de-vista de um dos componentes dessa sociedade humana,que seria a aprovacao e distribuicao das riquezas, em particular.Isto nao e nem cronologico, nem nao-cronologico. Nao pode-mos conceber a ideia de ciencia historica sem uma sucessao deacontecimentos, porem a Economia pode ser com sucessao, ousem sucessao. Por exemplo, pode haver uma historia economica,pode haver um estudo estrutural de uma sociedade, numa deter-minada fase, e isso e Economia tambem. Pode tambem haver ainvestigacao de leis que regem essa Economia, portanto, leis queexpressam uma repeticao. Objeto formal terminativo, e o “comque fins?”, ou seja, que pergunta voce pretender responder, emultima instancia, ou seja, se a sua ciencia estivesse plenamente re-alizada, o que ela te daria? Qual seria o resultado dela? Quandoessa ciencia estiver pronta, voce tera feito o que? No caso da Eco-nomia dirıamos que ela visa, naturalmente, criar uma tecnica. Nahora em que voce conhecesse tao bem as leis e o funcionamentoda Economia que voce pudesse regula-las, estaria realizado o ob-jetivo dessa ciencia. A ciencia economica nao se concebe, excetocomo prolegomeno a uma pratica, porque ela visa a dar ao homemum conhecimento que representa automaticamente um poder. Po-demos dizer o mesmo da Historia? Podemos dizer que o histo-riador deveria conhecer a Historia do passado tao bem, de formaque, daı para frente, ele pudesse regular o curso da Historia? Se-ria demencia. Portanto, nao e isso que voce espera da Historia.Nao e essa a finalidade dela. O princıpio (poderıamos dizer assim)da Historia seria compreender tao bem o passado que, com ele euficasse compreendendo o presente. Com uma Historia que reali-zasse isso, eu passo a entender o meu estado de coisas, e sei deonde ele saiu. Se a Historia realizasse isso, poderıamos dizer que

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ela alcancou o seu objetivo. Esse objeto, em ultima analise, e deordem teorica.

Com isso, nos podemos fixar a ındole, nao totalmente teorica,das ciencias da Historia e da Economia:

— objeto material: (e o mesmo) a sociedade humana;— objeto formal motivo: (diferente) uma olha por um aspecto

de sucessao temporal; outra olha somente sob o aspecto de umapar seletiva (historica ou nao);

— objeto formal terminativo: uma visa a produzir um domıniotecnologico, e a outra se esgota no objetivo teorico.

A hora que voce definiu Historia e Economia, ja esta dado nessadefinicao, a expressao da finalidade das acoes, aonde ela pretendechegar, ou seja, qual e o conhecimento que, uma vez dado poressas ciencias, eu consideraria como missao cumprida.

Voce pode dizer que uma ciencia e teorica ou pratica, nao comrelacao ao seu objeto material, ou objeto formal motivo, mas comrelacao aos seus fins. Se e um conhecimento que deve lhe dar umpoder de atuacao para fazer isso ou aquilo entao e uma Cienciapratica. Se e um conhecimento que deve lhe dar, simplesmente,uma inteleccao, um entendimento de algo, entao e uma Cienciateorica.

Porem, Husserl diz que nao e verdade que o cultivo de umaciencia requeira uma definicao mais ou menos confusa, parcial,por exemplo, o conceito de Economia: Husserl, partindo de umahipotese, diz que ela nao se refere unicamente a riqueza, e elediz que o sujeito nasce, esta respirando, ele esta provendo a suapropria subsistencia, e isto e um ato economico. O sujeito quevai a um jogo de futebol e, ao se distrair, ele esta atendendo umanecessidade humana que nao e de ordem, nem etico, moral, nemde ordem teorica, mas de ordem economica. Entao, isso e umacrıtica da definicao de Economia.

Se voce pensar a partir daı, voce vai entender que muitas vezes

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1 Prelecao I

os processos de fatos economicos nao sao compreendidos, porquea definicao de Economia e demasiado estreita em relacao a tota-lidade dos fatores em jogo. Por exemplo, todos os economistas,em geral, acreditam que um dos fundamentos da Economia e oprincıpio da escassez. Se existe a escassez de um produto, existea ciencia da Economia. Se existisse tudo em abundancia, nao ha-veria necessidade alguma da ciencia economica. Este conceito janao pode ser aceito, segundo esta analise que Husserl fez sobreo corpo humano, porque nao existe nenhuma escassez de ar, naoexiste nenhuma escassez de energia em um mundo que, segundo aFısica, e feito de energia.

Partindo disso, voce vai poder reformular toda a ciencia da Eco-nomia, abrangendo a multidao de assuntos que estao fora do inte-resse tradicional da Economia. No entanto, antes da Economia terlevado em conta esses novos fatores, ou seja, no tempo em que elanao tinha uma definicao suficientemente ampla de seu proprio ob-jeto, ja existia ciencia economica e ela ja fazia suas descobertas.Por exemplo, esta definicao de Economia que ele estava discu-tindo vai ser compatıvel com Karl Marx, que ve a acao economicacomo a totalidade das transformacoes que o homem introduz nanatureza, e nao somente quando ele lida so com bens e com di-nheiro.

XXXXXX estudou muito a obra de Karl Marx. O primeiro li-vro dele foi sobre Karl Marx. Quando ele enuncia esta definicaomais ampla da Economia, ele esta dizendo que no marxismo estaimplıcita esta definicao mais ampla que, no entanto, Karl Marxnunca deu. Ou seja, se voce, baseado na definicao academica,universitaria, de Economia, vai estudar Karl Marx, voce ja naoentende o que ele esta falando, porque entra na abordagem daEconomia, uma serie de fatores que outros considerariam extra-economicos, e que no entanto ele vai considera-los como o propriocentro da Economia.

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1 Prelecao I

O ar esta totalmente fora do interesse da Economia, e ele soentra na Economia se faltar ar. Se comecar a falta ar, a atmosferase polui, o ar comeca a ser vendido em lata. Isso ja acontece coma agua.

Com isso surge o problema: o problema da escassez e falso.Nao precisa que exista escassez para que uma coisa seja objetode estudo da Economia. Basta a possibilidade da sua escassez.Mesmo que a escassez seja forjada. Por exemplo, o comercio deagua nao existia na Europa, mas no mundo arabe ja era assim. Aagua era vendida a peso de ouro.

Pode haver uma forma mais requintada de escassez do que voceestragar alguma coisa? E voce estragou aquilo por que? Movidopor uma necessidade economica. Entao quer dizer que, a Econo-mia, que surgiu no seculo XVIII (Adam Smith, etc.), todos elesacreditavam num princıpio de escassez, e definem a ciencia queestuda o conjunto da producao e distribuicao da riqueza. Porem,existe algo que esta a disposicao do homem, e que nao pode serconsiderado como riqueza porque nao e um bem economico, maspode se tornar um bem economico amanha ou depois. E pode setornar um bem economico artificialmente, criado por uma outranecessidade economica anterior, logo, o princıpio da escassez naoe o fundamento da Economia. Se a escassez e gerada artificial-mente por uma necessidade economica anterior, entao, a propriaatividade economica do homem nao pode ser explicada pela es-cassez. Deve ser explicada por alguma outra coisa.

Vamos supor que nao houvesse escassez de nada. O homemnada produziria? A Economia classica diria que nao. Todos vi-veriam da economia extrativa. Sera que existiu, algum dia, o ho-mem que nao fazia nada? Tudo isso eram questoes que colocamque, embora a Economia tendo por objetivo descobrir determina-das coisas, antes que fosse ampliada a sua definicao, a ampliacaodessa definicao permite que voce reesclareca essas descobertas e

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as coloque dentro de um plano, dentro de um esquema mais geral,e mais correto.

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19 de novembro de 1992

Husserl um dos autores mais difıceis de se ler porque ele naotem expressividade literaria. Ele escreve como um matematico.Vai colocando um encadeamento de ideias. Para quem esta defora, a primeira vista, e um texto chato! Para cada ponto que eleaborda, ele repete de quatro a cinco maneiras diferentes, para aquestao totalmente, e usando varias terminologias possıveis. Issotem um espırito cientıfico, e nao pedagogico. Ele lecionava nauniversidade, mas seria como num curso de doutorado. Entre osalunos dele, voce tem os maiores filosofos do seculo: Heidegger,Max Scheler, Hartmann, e outros. Ele era um homem que tinhamuitas ideias, sua cabeca nao parava de produzir, e alem dele es-crever em taquigrafia, os alunos escreviam para ele. Ha varios tex-tos dele que foram redigidos por alunos dele, e voce ve a diferencano estilo dos textos que foram redigidos pelo proprio Husserl, porEugen Fink ou por Ludwig Landgrebe.

A grande pergunta dele surge da propria Matematica: por quea Matematica e tao certa assim? Como se da o fato de que nossaibamos que ela esta tao certa assim? De onde vem, qual e ofundamento da evidencia matematica? Ate que, no fim, ele vaiachar uma especie de parentesco entre o fenomeno da conscienciahumana e a certeza matematica. Essa seria a grande culminacaodo trabalho: a consciencia e a morada da evidencia. Nao e ne-cessario conhecer muita matematica para entender a filosofia dele,

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mas e bom ter uma referencia sobretudo do estado da Matematicana epoca, conhecer os autores a que ele se refere, quais eram asquestoes que estavam sendo discutidas tambem.

[Retomada da parte inicial do texto. Reexplicacao do que foicomentado ate agora.]

Pergunte as pessoas: o que e Logica? O que e Razao? Princi-palmente as pessoas que gostam de opinar sobre isso...

Sao tres os tipos de opiniao corrente: psicologica, metafısica eformal. Isto quer dizer que as ideias correntes que constituem oconjunto de pressupostos mais ou menos inconscientes em cimados quais ele se orientam, as ideias vem sempre de antigas dou-trinas que foram apresentadas explicitamente por filosofos. Ouseja, as ideias que nos achamos que brotaram em nos, espontane-amente, sao uma heranca cultural que vai como que filtrar atravesdos habitos, e sobretudo atraves das significacoes implıcitas na lin-guagem. De modo que, certas teorias, para nos nao surgem comoteorias, mas como se fosse uma maneira natural e espontanea dever as coisas. Quando, na verdade, nao e natural, nem espontaneas,mas como invencao de algum ser humano. Tornam-se lugares co-muns.

So que, quando o sujeito formulou pela primeira vez, nao eraopiniao dominante, porque senao ninguem formularia. Depoisaquilo vai se transmitindo as geracoes seguintes, sobretudo atravesdas nuancas que nos, automaticamente conferimos as palavras.Nuancas que nos nos acostumamos a ouvir. Significacoes que nosestamos acostumados a ouvir. Por exemplo, se voce perguntar aqualquer pessoa: o que e Razao? O que e racional? Muitos diraoque racional e o que e matematico, o que e cientıfico, o que e exato.Isso e achologia. Voce esta dizendo varios nomes da mesma coisa.Vencida a primeira batalha, que e a logomaquia (luta com as pala-vras, com o conceito das palavras), vamos falar da coisa propria-mente dita. Nao me de sinonimos, mas diga o que voce ache que e

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Razao. Alguns vao dizer que e a propria estrutura do cerebro, queo cerebro funciona de acordo com certas leis que sao determina-das pela propria natureza. Voce tem uma cadeia de neuronios quepermite estabelecer nexos, que sao as sinapses, que vai transmi-tindo uma informacao, e vai juntando essas informacoes em blo-cos. Essa seria uma maneira do sujeito explicar como o cerebrofunciona.

Se voce perguntar pelo conhecimento que nao e racional, o co-nhecimento intuitivo, a pessoa vai dizer que esse e um conheci-mento que voce nao pega com o cerebro. Agora, qual e a definicaode racional, para uma pessoa que e contra o racional? Se ela e con-tra e porque ela acha que e ruim. Se ela acha que e ruim, e porqueela sabe o que e! Mas, o que e?

Apertando a pessoa ela vai dizer, mais ou menos, que e artificial.Mas, se e artificial, entao, nao pode ser o modo natural de funcio-namento do cerebro, a nao ser que voce seja contra o cerebro. See artificial, e um conjunto de esquemas. Daı caımos na definicaoformal. Ao passo que antes, dizendo que a Razao funcionava nocerebro, caımos na definicao psicologista. E disso voce nao vaiescapar.

Pode ser que voce encontre um indivıduo que diga algo assim: aRazao e como se fosse um gigantesco computador que controla oCosmos. Controla sobre a realidade. Isso e a definicao metafısica.

Assim, pessoas que passaram a vida pensando nesta questao,vao chegar a essas oferecidas como resultado de perguntas que osseres humanos fizeram. Nos podemos nos posicionar com relacaoa uma ou a outra, e tendo posicionado nos podemos, em seguida,ser contra ou a favor da Razao, definida formalmente, psicologi-camente, ou metafisicamente. Por exemplo, eu posso achar que ocontrole geral nao satisfaz; posso ir contra isso. Posso achar que omundo e absurdo, que a realidade e absurda, e que Deus e mau.

Assim, se eu disser que a Razao e um esquema, e um conjunto

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de artifıcios para dar coerencia artificial ao pensamento, eu possoachar isso bom ou mau. Eu posso achar que isso e muito util,e eu posso achar que, com esse artifıcio, nos descobrimos a ver-dade. Mas, tambem, posso achar que, justamente, por ser arti-ficial, so nos leva a conhecimentos artificiais, que nos enganam,e que na verdade precisamos apelar a uma outra fonte, intuitiva,sentimental, etc. Posso tambem dizer que a Razao e o funciona-mento normal do cerebro humano, e posso achar que isso e bomou mau. Que isso e uma obra-prima da natureza que funciona per-feitamente bem, nos leva ao conhecimento da verdade, ou entaoao contrario. E um conjunto de conexoes bio- eletricas que nosfaz ver tudo errado. Distorce a nossa visao das coisas. Eu possoadotar uma das tres definicoes e, alem disso, posso me posicionara favor, ou contra aquela coisa a ser definida.

O que faz Husserl aqui? Ele vai, inicialmente, se posicionara respeito dessas tres formas. Ele vai colocar algumas outrasquestoes as quais dependem dessas tres respostas (formas). E,tratando dessas questoes, daı saira gradativamente, e muito tra-balhosamente, uma resposta. Por isso ele chama de investigacoes,termo que nao denota a defesa de uma ideia dada num fenomeno,mas a busca de alguma resposta.

Como Husserl pensava por escrito, nos podemos le-lo como seestivessemos pensando naquilo, exatamente naquela ordem. Ouseja, nos estamos ouvindo o sujeito pensar. Isso e bom para afastara ideia de Filosofia como genero literario. A Filosofia nao estano livro. Uma obra literaria esta na obra, materialmente, mas aFilosofia esta no filosofo. Esta no conhecimento que ele tem, enaquele em quem ele transmite. Por isso que na Filosofia nao haoutro jeito para facilitar, senao a transmissao oral. Por escrito emuito difıcil. Para que voce possa aprender alguma coisa, so peloescrito, isso pressupoe uma especie de co-naturalidade entre a suamente e a mente do escritor. Isso nem sempre se realiza.

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Quando cessa a comunicacao direta, comeca o desentendi-mento, a diferenca de interpretacoes. Enquanto voce faz aexplicacao direta, fica mais facil, porque voce capta por exem-plo pela presenca do sujeito, pelo tom de voz, que no escrito vocenao captaria a nao ser que o filosofo seja um poeta capaz de criara atmosfera na qual aqueles pensamentos seriam compreendidos.A nao ser que voce encontre um sujeito que tenha uma mentali-dade parecida com o filosofo, e que entenda daquilo, mesmo queseja so de ouvir falar. E o caso de Sao Tomas de Aquino comAristoteles. Sao Tomas nao sabia nem grego, e no entanto foi omaior interprete de Aristoteles ate a epoca dele, e depois tambem.Sao Tomas leu Aristoteles numa traducao latina feita a partir deuma traducao arabe! Como voce explica que ele tenha compreen-dido tao profundamente? Por pensar parecido, por uma afinidade.

As vezes, mesmo com o ensino direto, a diferenca de mentali-dade, de personalidade, e tao grande que nao permite que o sujeitoseja captado exatamente pela intencao que teve. Ele e captadoparcialmente, e um aspecto lateral do seu pensamento e ouvidocomo se fosse um aspecto central. Assim, e importante voce no-tar se voce tem um aspecto de co-naturalidade com o sujeito. Sevoce tem, deu sorte, e se nao tem voce pode ter certeza que vocevai se enganar muitas vezes. E vai ter que se corrigir. Mesmoquando e uma coisa simples, por exemplo, um filosofo que teveum texto quase todo mal interpretado, como Descartes, que alias,como filosofo e literalmente quase perfeito. E tao elegante, taolımpido, que voce entende ao contrario. Voce acredita que estaentendendo porque parece que o que ele esta falando e simples.Por exemplo, quando ele fala da sequencia de negacoes que vocefara quanto a existencia das coisas, negacao do mundo exterior,negacao dos seus sentimentos, negacao das suas memorias, etc. Efacil voce entender, por exemplo, que voce nao e o seu sentimento,que o sentimento e uma coisa que voce tem, que esta em voce mas

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nao e voce. Isso da para entender! Entretanto, faca efetivamente aabstracao dos seus sentimentos reais. Procure ter autoconscienciaque independa dos seus sentimentos. Uma coisa e voce entenderqual foi a proposta de Descartes, outra coisa e voce realiza-la paraver, materialmente, a coisa como ela e. Mas, em geral, as pessoasse contentam com o entendimento da leitura, entender a filosofialiteralmente, como se estudar Filosofia fosse ler.

A leitura representa para a Filosofia o que a partitura representapara a musica onde, depois de ler, voce tem que tocar. E diferentedo que e uma poesia, ou um romance, onde voce leu, esta lido.Uma peca, voce assistiu, esta assistido. A experiencia estetica seesgota ali mesmo. O maximo que voce pode fazer e analisar, re-cordar, etc., mas a experiencia estetica fica inteiramente na horada leitura. Voce nao precisa escrever o romance para entende-lo.

No entanto, na Musica, por exemplo, voce, de fato, so chega auma compreensao efetiva se voce e capaz de executa-la. A Musicarequer uma execucao para voce descrever esse ato. Ha pessoas queestao habituadas e que, lendo a partitura, compoem a musica ima-ginativamente, ouvem mentalmente a musica, mas mesmo assimnao podem garantir que e exata.

Na Filosofia voce tem uma reproducao de uma experiencia inte-lectual, e se voce nao a refaz, voce pode ferir uma filosofia inteira,nao adianta. Um exemplo disso seria voce associar a propria lei-tura de Rene Descartes com alguma tecnica de relaxamento quelhe permitisse abstrair totalmente os sentidos, para poder pensarcomo Descartes. Daı voce pode dizer se entendeu ou nao. Mesmoa leitura analıtica nao resolve nada.

Assim, ler e somente o comeco, e para saber que existe. Ana-lisar e apenas decompor de maneira que voce possa guardar asequencia de operacoes. E aı que vai comecar a Filosofia mesmo,e aı que voce vai comecar a filosofar, repensar para saber se e ver-dadeiro ou falso. Ou seja, primeiro o sujeito precisa decorar a

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partitura para poder toca-la e, depois de tocar e que ele vai ver sefoi bom ou ruim. A interpretacao tem que ser boa senao ela podeestragar a musica, ou pode mudar o seu estilo completamente.

O ouvinte pode gostar da musica por razoes fortuitas, por exem-plo, no meio da sinfonia de uma hora, pode haver uma determinadamelodia que o agradou, mas a melodia e um elemento, ela nao e amusica. Uma mesma melodia pode ser usada em varias musicas,com melodias muito ruins, podemos fazer grandes obras. A me-lodia e como se fosse a materia-prima. Por exemplo, quando vocevai a um restaurante, voce nao vai julgar a qualidade da comidapelo simples estado em que a carne estava quando chegou ao res-taurante. O que me interessa e saber o que o cozinheiro fez comessa carne. E aı que entra a arte do cozinheiro.

Assim, diz Husserl, existem tres direcoes capitais no que dizrespeito a compreensao do que e a Logica, ou o que e a Razao, oque e a deducao matematica. A psicologica diz que a Logica e umaciencia natural, experimental, que observa o funcionamento docerebro, o nosso modo de pensar. A formal que ve a Logica comoum conjunto de artifıcios inventado pelo ser humano para dar ar-tificialmente, e a posteriori, uma coerencia a um pensamento, quepode ter sido produzido por meios propriamente incoerentes. Ametafısica que diz que a Logica e um conjunto de leis ontologicas,de leis que regem a propria realidade.

Husserl diz que, apesar da Logica ser uma ciencia muitıssimoantiga, e que com respeito as suas tecnicas, nao sofreu alteracaodesde o tempo de Aristoteles, ela ainda nao alcancou clarezaquanto a sua propria natureza, quanto ao que sao propriamenteessas tecnicas, por que elas funcionam, e qual e o fundamento dapropria Logica.

Ele destaca dois aspectos: primeiro, a definicao da Logica. Adefinicao significa o que e o objeto em estudo, e qual e o angulopelo qual essa ciencia enfoca esse objeto, e qual e a finalidade.

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Veja que na definicao do objeto, do modo, e da finalidade, nos ca-sos das orientacoes psicologica, formal e metafısica, essa definicaoe completamente diferente. Qual seria o objeto material da Logicapsicologica? E o processo real do pensamento. E estudar como aspessoas pensam. Como se faz isso? Observando como elas pen-sam, e retirando por inducao. Pelo fato de que voce ve que existemcircuitos que se repetem, voce chega a conclusao que as regras na-turais do pensamento sao essas e aquelas. Esta e uma ciencia quetem por objeto material o pensamento real, como um fenomenoque efetivamente acontece na vida real, que o encara desde oponto-de-vista de ciencia experimental, de ciencia de observacao,por inducao, com o objetivo de formular as leis que expressam omodo real pelo qual nos pensamos.

Qual e o objeto material da Logica formal? Nao e o pensa-mento real, mas o pensamento ideal. Nao como nos realmentepensamos e, sim, como nos deverıamos pensar para que o nossopensamento fosse coerente. E uma combinatoria que nao se in-teressa pelos fenomenos reais. Ela se interessa em conceber, in-ventar, um sistema de regras que permita o pensamento coerente.Como ela estuda o pensamento coerente? Do ponto-de-vista deconceber esquemas que permitam o pensamento coerente. E comque finalidade? O de expressar plenamente essas regras, de modoque, esse processo de coerencia e acao fique mais facil. Por exem-plo, a Matematica investiga como o cerebro produz o resultado dascontas, ou ensina a fazer contas? Ensina a fazer contas. A Logica,tal como se entende na atribuicao matematica, e uma Logica pu-ramente formal. E um conjunto de esquema puramente inventadopara determinado fim, e que nao se interessa em saber como essesesquemas sao realmente acionados pelo ser humano real. Assim,a Matematica e a mesma, seja utilizado pelo ser humano real, sejapelo computador. Isto nao significa que o cerebro humano pensaexatamente igual como o computador pensa. E pouco importa.

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E se, amanha o homem inventar um outro tipo de maquina quereproduza esses esquemas de uma forma mais simples que o com-putador, tambem sera a mesma Matematica. Assim, nao se tratado pensamento real, pensado por criaturas reais, mas se trata dopensamento ideal, que e como toda e qualquer criatura deveriapensar, caso queira que o seu pensamento seja coerente. Criaturasnaturais (homem), ou artificiais (computador). E um pensamentoque estabelece parametros que permitem realizar uma sequenciade operacoes, nao importando a forca, a energia, ou a causa quecoloca essas operacoes em acao. Por exemplo, um programa decomputador e perfeitamente indiferente ao fato do computador sermovido por eletricidade, gasolina, ou pela forca do pensamentopositivo (o programa em si).

As ideias estao aı ha seculos, e nos naturalmente pelo tipo deassociacao de palavras, usado ao longo de nossa vida, nos aca-bamos achando que uma determinada maneira de pensar e natu-ral. Por exemplo, acreditar que do estudo do pensamento realnos podemos acabar deduzindo regras formais. Sera possıvel?Se o sujeito responder que acha que sim, isso indica que ele temuma inclinacao psicologista. Ha um grande numero de psicologoscelebres que apostaram nisso. Husserl vai se posicionar contra ateoria psicologista. So que da um trabalho enorme para demons-trar que isso e impossıvel.

O que importa nao e apenas voce acertar; que a hipotese da teo-ria seja certa. O importante e que, se voce lanca a teoria certa, queela seja provada, e, se voce lanca uma teoria errada, que ela sejadesmentida. Se a logica psicologista tem como objeto materialo pensamento real, e se o modo dela enfocar e o modo como asciencias experimentais enfocam os seus respectivos objetos, istoe, por observacao e inducao, a finalidade so pode ser a mesma dasdemais ciencias de observacao, que e, a inducao de leis gerais queexpressem regularidades, repeticoes (este e o objeto final). Voces,

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observando milhares de casos, de pensamentos, de raciocınios, deassociacoes de ideias, etc., voce acaba reduzindo esta variedade aum conjunto de leis que expressam esquemas repetidos.

Com relacao a orientacao formal, ela, evidentemente, nao temesse mesmo objeto material, porque ela esta pouco se importandosobre como as pessoas pensam: “Nao adianta examinar como aspessoas pensam porque, geralmente, pensam errado” — este pode-ria ser o seu argumento. Alem do que, poderia dizer o formalista,voce vai estudar o pensamento humano, mas ainda tem o pensa-mento animal, tem o pensamento das plantas. No entanto, se umaplanta fosse fazer a mesma equacao (2 + 2 = 4) teria que che-gar ao mesmo resultado nosso. O objetivo da logica psicologistae, poderıamos dizer, puramente cientıfico e teorico; o objetivo daorientacao formal e tecnico-pratico (formar regras para que vocepossa pensar com eficiencia, e pensar corretamente), ou seja, fazerum bom programa de computador e nao explicar como funcionao computador. Alias, para voce ser um genio em programacao decomputadores, voce nao precisa ter a menor ideia do que acontecedentro deles. A orientacao metafısica diria que as leis da Logicasao as leis da Ontologia. O princıpio de identidade nao e um meroesquema logico, ele e algo que vigora na realidade. Assim, as leisprincipais da Logica (princıpio de identidade, princıpio de nao-contradicao, etc.), sao os princıpios que explicam a realidade in-teira.

Qual seria o objeto material da orientacao metafısica? Como asleis ontologicas aparecem ao nıvel da linguagem do pensamentohumano? Objeto material: se as leis da Logica nao sao nada emsi mesmas, mas sao apenas expressao de leis ontologicas, entaofica claro que a Logica e uma extensao da Ontologia. Considera-se como uma ontologia regional. A ontologia de um determinadoobjeto, o pensamento humano. O pensamento humano como ex-pressao do ser. Esse e o objeto material da orientacao metafısica.

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Ou seja, como esse fenomeno chamado pensamento humano ex-pressa a propria unidade do real?

Voce pode dizer que isso e um pouco confuso, porque nos po-demos cair no problema anterior. A orientacao metafısica nao re-solve o enigma, o confronto, das duas anteriores.

O pensamento expressa o ser, porque o pensamento existe, e elefunciona segundo as leis do ser, ou e porque e o contrario: se vocepensar corretamente, segundo as regras corretas, voce captara oser? Ou seja, ele capta o ser psicologicamente, ou formalmente?Bem, isso fica para depois...

O objeto terminativo da orientacao metafısica e chegar a umaexpressao geral da linguagem do pensamento como expressao doser. Voce pode perguntar: expressao formal ou real? Por exemplo,dentro da totalidade do ser existe um determinado ente, que e o ho-mem, o qual pensa, e ele pensa segundo tais e quais leis. Voce tratatudo metafisicamente, so que pelo lado psicologico. Vejamos deoutra maneira: dentro do mundo do ser existe um ente que pensae, quando pensa corretamente apreende a verdade do ser. Este eum tratamento metafısico, so que pelo lado formal. A orientacaometafısica pode estar ate certa, porem ela nao pode ficar certa, seficarmos em duvida sobre de qual das maneiras ela esta certa. Ouse e das duas maneiras.

Se voce for raciocinar, nao como um orador de palanque, quetao logo ele faz uma frase bonita, ja te persuadiu, ou nao comouma crianca que imagina, e quando ela imagina um tigre, ela ficacom medo, quando imagina um doce fica com fome, quando ima-gina um brinquedo fica alegre, ou seja, no fundo e um panaca quefica fazendo um cineminha para enganar a si mesmo. Se voce naopensar assim, vai pensar como um matematico que quer encontrarum resultado correto, da conta, e que tem que obedecer a estruturados numeros mesmos, e nao a sua propria vontade. Voce vai en-tender tambem que se a Logica e um instrumento basico de todas

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as ciencias, e se na pratica funciona dessas duas maneiras, mas sevoce nao esta seguro quanto a sua natureza, o que e essa Logica, equal o alcance dela, voce pode estar aplicando tudo errado. Ou acoisa pode estar dando certo por outros motivos. Ou, no mınimo,poderia dar mais certo do que da. As ciencias poderiam rendermais, alcancar respostas mais facilmente.

Para que voce possa estabelecer elos entre as varias ciencias(que fazem uso da Logica), se voce nao esta seguro do que e essaLogica, este elo comum e obscuro. Por exemplo, entre a Antro-pologia e a Fısica, qual e o elo? A antropologia e uma coisa queo homem faz, e uma atividade humana, e estudar Fısica e outraatividade humana. Entao, elas estao conjuminadas no homem.Voce pode explicar as duas como atividade humana. O que e isto?Orientacao psicologica.

Porem, o fato das duas atividades estarem reunidas no mesmohomem, significa, por acaso, uma sıntese entre os conteudos dasrespectivas ciencias? E claro que nao. Do mesmo modo, vocepode ter duas atividades dıspares: jogar futebol e mascar chicletes.e o mesmo sujeito. No entanto, o que uma coisa tem a ver com aoutra? Facam um sıntese, ou seja, expresse numa unica regra ofutebol e o chicletes, ou, a importancia do chicletes no futebol,relacione as duas coisas de uma maneira que nao seja puramentecasual. Nao da! Nao ha nexo.

Por outro lado, nos poderıamos fazer uma conexao puramenteformal, no sentido de que, as regras de raciocınio que voce usanuma, e a mesma que voce usa na outra (logica probabilıstica,estatısticas, etc.). Voce usa a mesma forma de raciocınio. Entre-tanto, ja que voce juntou a forma, conexione, de alguma maneira,os conteudos! Se a estatıstica que voce usa para fazer previsaode resultado de eleicao e a mesma que voce usa para saber se vaihaver uma chuva de meteoros em algum lugar, me diga onde estaa conexao entre esses dois fatos. E se um desses conhecimentos

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pode avaliar o outro ou nao, ou, se sao completamente distintos,por que sao distintos? Finalmente poderıamos tentar conectar me-tafisicamente. Dentro de uma teoria geral do ser nos terıamos umateoria dos diversos tipos de seres, e estaria situado la a parte, o as-pecto, a dimensao do ser estudado pela Antropologia, Fısica, etc.Isso seria o certo. Mas, acontece que todas as tentativas de se fa-zer isso, caıram por terra. Nao ha nenhuma metafısica que possafuncionar ate hoje como princıpio coordenador geral das ciencias.Nao existe uma ontologia geral ate hoje que possa dar conta da to-talidade do mundo das ciencias. E, no fundo, e a isso que o Husserlquer chegar. As duas primeiras explicacoes, psicologica e formal,falhariam por contradicao interna; a terceira, simplesmente porquenao existe.

No fundo, ele quer chegar a uma ontologia geral. Ele quer umarefundamentacao da ideia pura de Ciencia para, com base nisso,fundar uma ontologia geral que possa servir para a organizacaodo mundo das ciencias. Ele nao fala do ponto-de- vista externo,como aquela classificacao feita a posteriori e meramente de utili-dade pratica (ciencias humanas e ciencias exatas), divisao admi-nistrativa, puramente externa, e que nao tem nada a ver com oconteudo das ciencias. Alias, pressupoe-se que as ciencias exatassejam humanas, e as ciencias humanas sejam inexatas.

Ele esta falando de uma ontologia geral que permita estabeleceras divisoes reais do ser, e fazer com que os sistemas das cienciascorrespondam a essas divisoes reais. No final dos seus trabalhos,Husserl deu algumas indicacoes bem precisas de onde se vai che-gar. Nos podemos dizer o seguinte: o problema da ideia pura daciencia esta colocado, o problema da criteriologia esta colocado, afundamentacao da nocao de verdade e de evidencia esta colocada,e alguns princıpios da ontologia geral estao colocados. O resto,com o tempo se faz. Acontece que os discıpulos dele nao fizeramisso, porque, como ele foi ditando e falando por mais de 10 anos,

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e cada parte do problema parecia tao importante em si mesma, osdiscıpulos ja partiam para outros desenvolvimentos.

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21 de novembro de 1992

Diferenca entre verdade e falsidade: na pratica, se distingue adiferenca entre verdade e falsidade. Mas, as pessoas nao tinhamuma consciencia clara de que existia um pensamento verdadeiro eum pensamento falso. Nao seria errado dizer que, ate a formacaodessa consciencia, que se da na Grecia, com Socrates–Platao, to-das as pessoas que pensavam, tendiam a acreditar que, pelo fatode uma coisa ser pensavel, ela era automaticamente verdadeira. Euma tendencia que existe nas criancas, e que sobrevive na idadeadulta, na esfera da imaginacao. Para o bem da humanidade de-veria ser progressivamente extirpada a medida que voce evoluısse.Um exemplo disso e o fato de que as pessoas, mesmo conhecendoa distincao do verdadeiro e do falso, mesmo tendo estudado Fi-losofia, conhecido a Ciencia, etc., continuam tendo a reacao dese sentir mal quando imaginam imagens nocivas. Quando voceimagina uma cena desagradavel voce se sente mal, como se elaestivesse acontecendo mesmo. Dificilmente voce tem esse distan-ciamento. Por exemplo, no cinema, onde uma pessoa se sente malporque uma cena lhe foi mostrada, embora ela esteja conscientede que a tela do cinema so possa estimula-la visualmente, e que osangue mostrado e massa de tomate, que e uma experiencia exclu-sivamente visual, nao acompanhada dos sinais dos outros sentidosque dariam a consistencia real, a pessoa chega a ter uma reacaoorganica. Isso e um resıduo de realismo ingenuo que, no fundo,

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consiste em voce acreditar em tudo o que voce pensa.Uma das principais funcoes da Educacao e tirar isso das cabecas

das pessoas. Levar a consciencia da distincao entre verdadeiro efalso as suas ultimas consequencias. Inclusive na esfera dos re-flexos imediatos. Esta e uma conquista tardia da humanidade, doponto-de-vista historico da evolucao da humanidade. E para o in-divıduo pode ser uma conquista mais tardia ainda. Por exemplo,se voce ve qual e o mecanismo da formacao das conviccoes naspessoas em geral, voce ve que e a propria possibilidade de formu-lar uma ideia. Ou seja, dentre as varias ideias que nos poderıamoster a respeito de um determinado assunto, o indivıduo acredita na-quela que ele consegue formular. Pelo simples fato de ele conse-guir formular aquilo, lhe parece mais verossımil. Acontece queum outro indivıduo, por coincidencia, conseguiu formular umaoutra ideia. Por exemplo, se voce pega as pessoas progressistasou conservadoras. Uma pessoa e progressista porque ele conse-guiu conceber os benefıcios do progresso. O outro e conservadorporque ele conseguiu enunciar mentalmente os malefıcios do pro-gresso. Entretanto, e se eu conseguisse formular perfeitamente asduas ideias, ou seja, criar argumentos em favor de um, e argumen-tos em favor de outro. Dessa forma eu ja nao sou mais vıtima domeu argumento, da estrutura do meu argumento. Eu entendo que,para alem dos esquemas argumentativos que eu invento, deve exis-tir uma realidade que, talvez nao esteja bem captada no meu argu-mento. E, eu entendo que posso conceber, articular, mentalmente,argumentos, por exemplo, a favor dos benefıcios do progresso. E,que eu posso, igualmente, conceber um esquema que me mostreos malefıcios do progresso. Assim, se eu puder argumentar a fa-vor de A e de nao-A, e porque deve haver uma realidade que estapara alem dos meus esquemas argumentativos. Eu nao identificomais a minha facilidade de argumentar com a realidade mesma.Eu percebo que o pensar nao e o ser.

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Porem, mesmo depois que eu consigo fazer isso na esfera inte-lectual, eu continuo operando do mesmo modo anterior, na esferada imaginacao, onde as coisas que eu consigo imaginar me pare-cem reais, porque o sistema nervoso reage igualmente a imagemvista e a imagem imaginada. Isso e a base da hipnose. Isto signi-fica que o ser humano e facilmente hipnotizavel, porque ele e facil-mente auto-hipnotizavel. Se o ser humano nao fosse tao propensoa se enganar a si mesmo, nao seria tao propenso a ser enganadopelos outros. Alem disso, a pessoa e propensa a ser enganada,exatamente nas mesmas coisas onde ela gostaria de se enganar. Enao nas outras coisas. Assim, nos conhecemos a realidade atravesdo pensamento e da imaginacao. Nao ha outro meio.

Porem, o pensamento e a imaginacao sao um pouco lentesatraves das quais nos captamos alguma coisa. Nao sao a reali-dade mesma. Em geral, como os indivıduos tem muita dificul-dade de pensar, por exemplo, voce coloca uma questao, o sujeitonao consegue montar o argumento, ele se sente numa atmosferaopaca, esta tudo escuro, ele nao esta enxergando. No momentoque ele consegue montar o primeiro raciocınio, ele sente que che-gou a algo, e ele acha que chegou a realidade, quando na verdadeele chegou apenas ao seu proprio pensamento.

Uma das finalidades supremas da educacao e varrer isso devoce. Nao ser enganado nem pelo seu pensamento, nem pela suaimaginacao, nem pelos seus sentidos. Isso seria, em suma, le-var as ultimas consequencias o projeto cartesiano que era o duvi-dar de tudo, ate prova em contrario. Duvidar nao do pensamentohumano em geral, porque as mesmas pessoas que sao vıtimasdo seu proprio pensamento, e creem ingenuamente em tudo oquanto pensam, imaginam, sentem, essas mesmas pessoas, as ve-zes, enunciam duvidas a proposito da inteligencia humana em ge-ral, a proposito do valor da Ciencia, etc.

Assim, se o sujeito e cetico em relacao aos outros, como e que

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ele nao o e em relacao a ele mesmo? Se ele duvida de toda in-teligencia humana, que a razao e falha, etc., mas tudo o que elepensa e verdadeiro. Isto e a forma mais horrıvel de mentalidadeque existe. Lamentavelmente, num meio onde as pessoas nao temeducacao e a mentalidade geral. As pessoas nao tem educacaoe, ao mesmo tempo, sao convidadas a opinar. E o que acontecehoje, com frequencia. As pessoas podem ate opinar, mas acre-ditam que os outros tem o dever de ouvi-las, de ouvir qualquercoisa. Por exemplo, voce chega para um garoto de doze anos epergunta o que ele acha do impeachment do Presidente, ele fala etodo mundo tem que ouvir. Num meio assim, o indivıduo e convi-dado a amar as suas proprias opinioes, e desprezar o conhecimentohumano em geral, a civilizacao, a Ciencia, etc. Daı a pessoa virauma especie de hitlerzinho, napoleaozinho; ele acredita em tudoquanto ele fala, porque a palavra dele fica como se a voz do egofosse a voz de Deus. Se voce junta um monte de egos desse tipo,a somatoria e a opiniao publica, que acredita que e a verdade, quee a voz de Deus.

O processo da educacao deve, em primeiro lugar, fazer voce du-vidar do seu proprio pensamento, e ao mesmo tempo, fazer voceadquirir um sentido de reverencia em relacao a inteligencia hu-mana, da humanidade em geral. Voce comeca a entender que seo seu pensamento e capaz de alcancar a verdade algumas vezes,nao e por merito seu, mas por experiencia acumulada ao longodos milenios, e sedimentada na propria linguagem, e que nao foivoce quem inventou. Por exemplo, uma lıngua pode ter esquemasprontos para voce pensar isto ou aquilo, para voce formular certospensamentos e nao ter esquemas para formular outros. Assim, essafacilidade que voce tem de articular certas palavras, certas ideias,essa facilidade nao e merito seu. Voce a recebeu com a lıngua quevoce aprendeu. E, isso mesmo ja e uma heranca cultural.

Voce aprende a ter desconfianca em relacao as suas ideias ou

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aos seus argumentos, imaginacao, sentimentos, mas aprende a terrespeito pelo trabalho da humanidade inteira. Ou seja, inverte aformula. A educacao e desligar o indivıduo dos habitos e precon-ceitos da sua propria personalidade, do seu proprio meio familiar,e meio social imediato, e vincula-lo a humanidade. Tirar o in-divıduo da cultura pequena e coloca-lo na cultura grande. Vocepassa a adquirir uma dimensao humana, voce passa a ser gente. Ecomeca a pensar como um habitante da Terra, e como um persona-gem de todo o processo da Historia da cultura. Quando colocamosas coisas dessa forma, vemos que o numero de pessoas educadas,no nosso meio, e infinitesimal. Se pegarmos todos os nossos de-putados e senadores, quase todos sao, nesse sentido, pessoas quevivem no mundo da ilusao, que jamais podem acertar, a nao serpor uma feliz coincidencia, por um favor da Divina Providencia.Todo mundo tem o direito de errar, mas esse direito e, mais ou me-nos, co-extensıvel a esfera das consequencias das suas palavras.Por que uma crianca pode falar um monte de besteiras e ninguemliga? Porque o que ela fala nao tem consequencia alguma. Noentanto, se um pai de famılia, que ganha salario-mınimo, acha queda para comprar um carro cuja prestacao e o dobro do salario dele,isto tem consequencias! Entao, ele nao tem mais esse direito deerrar.

Vejam que a nossa classe dirigente erra, ja ha duzentos anos.Nunca acertou uma vez. Ela nao tem direito de estar enganada atanto tempo assim. Idem para a nossa classe intelectual.

A educacao visa, sobretudo, abrir a pessoa as portas da inte-ligencia humana em geral, e fazer com que elas superem essa auto-ilusao. Ensinar as pessoas a verem as coisas mais indiretamente.A humanidade e mestra do indivıduo. Mas, no meio iletrado, o in-divıduo corrige a humanidade inteira. Da licoes, acha que quem sosabe e ele. Se acontece uma mudanca social rapida, e o indivıduoacha que ele se atualizar com essa mudanca, ele esta se instalando

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no real, aı e que ele esta mais maluco. Voce se informar dos novosfatos do mundo so aumenta o seu numero de problemas. Novosfatos sao novas possibilidades de erros, porque se voce ja estavaerrando com meia duzia de fatos, quando tiver sessenta, vai errardez vezes mais.

Nao se trata do conhecimento de novos fatos, mas da correcaodo seu julgamento sobre os fatos. Como voce interpreta os novosfatos. Voce pode partir de princıpios falsos que podem servir dechave para a explicacao falsa de milhoes de novos fatos, so quequanto mais fatos voce vai explicando por princıpios falsos, maiorvai ficando a falsidade do conjunto. A preocupacao que existe noensino atual acerca da atualizacao e extemporanea, porque vocenao precisa. A educacao nao tem que acompanhar os progres-sos da Ciencia. Se voce ensinar um indivıduo a ter lucidez sufi-ciente para ele entender a geometria de Euclides, compreende-laprofundamente, o restante da evolucao da geometria, ele capta emum mes por conta propria. E continua capaz de se informar comgrande rapidez.

A preocupacao com a atualizacao e uma preocupacao com oquantitativo. Nao adianta voce tentar passar toda a informacao.Depois ele adquire a informacao por si. A funcao da educacao naoe ficar correndo atras das novas conquistas da Ciencia. A educacaonao e jornalismo, que e uma coisa periodica. Educacao significaex-ducere, ou seja, levar o indivıduo para fora. Ou seja, voce estapreso dentro de um mundo subjetivo seu, onde voce so olha paradentro, e a educacao faz voce olhar para fora. Sair do mundopequeno e olhar o mundo grande, real, que esta a sua volta.

A distincao entre o verdadeiro e o falso leva um tempo parasurgir historicamente. Voce pode encontrar tribos de ındios ondeessa distincao ainda nao existe. Os ındios, que no seculo XXcomecaram a ter muito contato com o branco, levaram trinta aquarenta anos para perceber que o branco mentia. O Juruna e um

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exemplo que, depois de varios contatos com o branco, ele decidiucomprar um gravador, porque o branco fala uma coisa e faz outra.

Nao estar habituado a distinguir entre veracidade e falsidadena conversa diaria vem do fato de que voce nao esta habituado afazer essa distincao em geral. Ou seja, voce nao esta habituado deque o seu pensamento funciona: eu penso assim, ele pensa assim,entao, parece que a natureza se comporta de acordo com o jeito quenos pensamos. Assim, nos vivemos num mundo onde so existeveracidade. A falsidade nao existe. Mas, o conjunto que vocepensa, somado, e tudo falso. Por ninguem pensar ao contrario,todos se enganam, uns aos outros ha seculos, exatamente assim.

O mundo mıtico e um mundo onde existe uma confirmacao co-letiva de um pensamento mais ou menos uniforme. Todo mundoacredita nas mesmas falsidades e nada acontece que desminta es-sas falsidades. E como se dissessemos que sao falsidades que naocontrariam flagrantemente nenhum acontecimento. E como se fos-sem falsidades inofensivas.

Porem, se o indivıduo sai daquela tribo e entra em contato comoutra tribo, ele entra no mito da outra tribo. E se o sujeito entranuma outra sociedade que ja nao e mais tao premida pelo mito,mas onde existe uma forma diferenciada de pensamento indivi-dual, o indivıduo ja nao entende mais nada. Para que nos possamossobreviver nessa sociedade, temos que desenvolver um sentido desaber quais sao as pessoas mais honestas, e quais as menos deso-nestas. Temos necessidade de desenvolver uma escala de confia-bilidade. Isto para o ındio nao existe. La e tudo igual. A distincaoentre o verdadeiro e o falso nao faz parte do mundo indıgena.

Na historia do ocidente essa ideia so se expressa claramentecom Socrates–Platao. Socrates convoca, pela primeira vez nahistoria, a ideia de que a coletividade inteira pode estar enganadaa respeito de coisas fundamentais. Por isso mesmo e que o cha-maram de um sujeito ımpio, que destruıa os deuses. E era mesmo!

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Ele estava destruindo os deuses, no sentido do mito coletivo. Porexemplo, o grande mito grego da linguagem. A linguagem e omundo onde existe a verdade, portanto, tudo o que pode ser fa-lado, deve ser verdade. Esse e o mito que sustenta a retorica: voceconseguiu falar, se expressar, conseguiu nos fazer entender, nosvemos o que voce falou, e dizemos: e verdade!

A retorica se baseia nisto: tudo o que e falavel, e verdadeiro.Socrates mostra que esse discurso, nao obstante ele ser expressivo,e auto-contraditorio. Nao tem fundamento no real. Isto quer di-zer que, na evolucao de uma comunidade qualquer, supondo umaevolucao ideal onde nao haja cortes criados por interferencias ex-ternas, voce poderia falar de uma fase poetica, onde a palavra e apropria realidade, onde a palavra e diretamente uma forca (comoem Homero), no sentido de que, por exemplo, quando Jupiter falauma coisa, ela e verdade automaticamente, ou como esta na Bıblia,quando na hora que Deus fala, a luz se faz na mesma hora, ondese acredita na palavra humana como se ela tivesse a forca magica,criativa, plasmadora divina.

Em seguida a essa fase, entramos numa fase retorica, onde janao se acredita nessa forca da palavra sobre as coisas, mas na forcadas palavras sobre as pessoas. Assim, onde existem varios discur-sos em confrontacao, o discurso mais forte, mais persuasivo, quemais toca o coracao, fica sendo a propria expressao da verdade.Daı, chega Socrates e introduz o elemento dialetico, ou seja, elecompara o discurso com o discurso mesmo, e mostra que o sujeitoesta afirmando aquilo que ele mesmo tinha acabado de negar. Elemostra ao indivıduo que ele nao sabe do que esta falando. Porexemplo, um militar, ele fala sobre a guerra. Mas, se voce per-gunta o que e a guerra, ele diz: “A guerra e um conflito”. Vocediz: “Entao, se eu brigar com minha mulher, isto e guerra.” Elediz: “Nao e bem isso...” E assim por diante ate que o militarfica todo atrapalhado. Isto quer dizer que, as vezes, o indivıduo

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sabe se posicionar perante uma coisa na pratica, mas nao sabe doque aquilo se trata. Ou seja, conta apenas com o conhecimentoempırico. O sujeito so serve para aquelas situacoes vividas que,naturalmente, sao militares, e nao extensıveis a outras situacoes.

Apos essa fase, naturalmente tende a surgir, se a sociedade che-gou a evoluir ate o ponto de criar uma discussao dialetica, isto e,exigir a confrontacao dos discursos, aı entra a duvida, existe a to-mada de consciencia do carater duvidoso dos discursos, e daı surgea criacao das ciencias.

Assim, havia de um lado a confrontacao dos varios discursos fi-losoficos, uns contradizendo os outros, as vezes, se contradizendoa si mesmos, o que gerava o ceticismo, a propensao a nao acre-ditar na possibilidade de conhecer a verdade. De outro lado, adominancia da retorica, que permitia a credibilidade universal dosmais eloquentes, cuja palavra era como se fosse a palavra divina.Ainda, por um outro lado, esses dois elementos sao desafiados porSocrates.

A retorica e os deuses da cidade que, mais tarde, Santo Agosti-nho chamara de Teologia Civil. Aquelas coisas que uma sociedadeinteira acredita, que sao os mitos em que se baseia a vida social, eque nada tem a ver com a religiao do espırito, isso, Santo Agosti-nho chamava de Teologia Civil. Nao e senso comum, e uma partedo senso comum. E aquilo em que os membros de uma sociedadeinteira acredita a respeito dessa sociedade e que jamais e questi-onado, como se aquilo fossem dogmas. Por exemplo, a crencade que existe liberdade de informacao, e de que a liberdade deinformacao e uma das bases da sociedade moderna. Este e ummito da nossa teologia civil.

Na mesma medida em que crescem os meios de informacao,cresce a area das informacoes consideradas confidenciais, secre-tas, que ninguem pode saber. A importancia adquirida pelosservicos secretos na administracao dos Estados e um fato do seculo

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XX, e e um fato polıtico dos mais importantes, como ficou provadono caso da URSS. A URSS era apenas a KGB. Foi so desmontar aKGB que a URSS caiu por inteiro. Isto mostra que e possıvel vocemontar um Estado inteiro na base de retencao de informacoes, eda difusao de informacoes falsas. Do mesmo modo, com relacaoa CIA, 80% dos problemas que os Estados Unidos tem, foram cri-ados pela propria CIA. Nos so ficamos sabendo quando o chefedo FBI morre e deixa as suas memorias. Eu nao sou contra ou afavor do servico secreto. Ele e uma realidade do seculo XX, e euacredito que, mais do que a democracia, mais do que o estado dedireito, a base da polıtica do seculo XX, foi o servico secreto.

A ideia de que ha um progresso democratico crescente e intei-ramente falsa. A medida que progride a democracia, progridem osmeios de compensa-la. Isto e uma amostra do que e teologia civil.

O ceticismo resulta do proprio confronto dialetico. Assim, sepor um lado existe uma propensao cetica, e por outro lado existeum domınio da retorica, entao, acaba ninguem acreditando emnada. E a sensacao de estar sendo enganado 24 horas por dia.E o que nos sentimos hoje aqui no Brasil.

Porem, com isso, ha um elemento de ordem positiva, quecomecou a se desenvolver como uma ciencia demonstrativa muitofirme, que era a Geometria. Assim, quando parecia que nao se-ria possıvel a verdade a respeito de nada, surge Euclides, e mostraque e possıvel a verdade a respeito de alguma coisa. E qual e adiferenca entre o modo de pensar da discussao publica e o modode pensar de Euclides? Se na discussao publica nos so chegamosem falsidades e duvidas, e Euclides chega a certeza, e porque eledeve ter uma tecnica, um jeito, um esquema qualquer de descobrira verdade.

E isso que inspira Socrates–Platao, ou seja, deve ser possıveluma ciencia certa, deve ser possıvel escapar do reino da falsidade.Essa possibilidade que Euclides havia demonstrado na pratica,

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mediante o estudo da Geometria, e o que vai ser teorizado porSocrates–Platao, sob forma da ideia pura de Ciencia, na qual elesdestacam essas tres condicoes teoricas, e essas tres condicoespraticas. Primeira condicao teorica: o conhecimento tem queser tao fundamentado quanto as evidencias diretas inegaveis (porexemplo, as frases, “eu estou aqui, agora”, ou “eu sou eu”, ou“uma coisa e igual a ela mesma”, etc.). Se todos os conhecimentos,todos os assuntos pudessem ser tratados com essa evidencia, esta-ria tudo resolvido. Nos estarıamos vacinados contra o erro. Porem,nao e possıvel. Assim, e necessario que haja uma evidencia in-direta, uma evidencia que e garantida por uma outra evidencia,como no processo do raciocınio do silogismo, onde dadas duasverdades, elas garantem uma terceira. Porem, para que tudo issoseja possıvel e necessario essa terceira condicao, que o nexo entrea primeira verdade (a que garante), e a segunda verdade (a ga-rantida), seja ele proprio evidente. Isso acontece quando a pri-meira verdade se refere a todos os membros de uma especie e asegunda verdade se refere a um ou a alguns deles, porque, daı,as duas frases estao dizendo a mesma coisa, apenas sendo ne-cessario trocar a expressao todos pela expressao cada um, que eexatamente igual, de modo que, essa transferencia de veracidade,nao acrescente uma verdade nova, mas apenas mostra para voceuma verdade que, no fundo, ja estava sabida. Este seria o proce-dimento dito analıtico. As condicoes praticas sao: primeiro, queo ato intuitivo (o que capta a evidencia), possa ser repetido, por-que se voce tem a evidencia e a esquece imediatamente, voce naopode transferir a veracidade dele para nada. Segundo, para quehaja a repetibilidade do ato intuitivo, tem que haver algum regis-tro, pelo menos na propria memoria. Registro que, uma vez mos-trado para o indivıduo, lhe permita refazer o ato intuitivo a respeitodo mesmo objeto. Por exemplo, se na demonstracao do teorema,“A soma dos quadrados dos catetos e igual ao quadrado da hipo-

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tenusa”, e porque eu si que o quadrado da hipotenusa se refereao mesmo triangulo do qual eu havia calculado os quadrados doscatetos. Para eu completar a demonstracao, eu tenho que repetira mesma intuicao inicial varias vezes. Terceira condicao: se osdispositivos de registro sao indispensaveis, entao tem que haver atransmissibilidade. Tem que haver uma linguagem, um processoqualquer de significacao. Portanto, o conhecimento e essencial-mente transmissıvel.

Mais tarde, Hegel da grandes risadas da expressao “cienciasocultas”, porque se e oculta e porque ninguem viu; se ninguemviu, ninguem sabe; portanto, nao e Ciencia. Seria a ciencia in-transmissıvel.

Em seguida, vemos que essa ideia pura de Ciencia orienta todosos esforcos de todos os pensamentos, pelo menos no Ocidente,onde nos podemos acompanhar a evolucao historica, ao longo dedois mil anos. Porem, essa mesma ideia vai passando por suces-sivas versoes e aperfeicoamentos, ou reflexoes, aprofundamentos.Pode-se escrever toda a historia da Filosofia com base na historiadas tentativas de realizacao da ideia pura de Ciencia. Assim, desta-camos um certo numero de passagens que foi enumerado em oito,mas que, desdobrando, nos vemos que foram dez.

Essas reflexoes em torno da ideia pura de Ciencia, nao se refe-rem apenas a historia da Filosofia, mas no mundo das ciencias po-sitivas tambem. Vejam que, conhecimentos que sao consideradoscientıficos numa epoca, porque parece que atendiam aos anseiosdessa epoca, numa epoca seguinte, voce ve que nao atendiam taoperfeitamente bem, e sao rejeitados. Nao sao mais consideradoscientıficos. E como se voce pudesse dizer que o esforco dialeticochega a verdade atraves de uma sucessao de erros. Por tentativa eerro.

Nos vemos entao que essa evolucao, mais ou menos, passa poressas dez etapas. Primeiro, com Socrates–Platao, a formulacao

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inicial do que e a ideia pura de Ciencia. De fato, nos poderıamoscomecar essa evolucao com Parmenius. Na hora que ele diz, “oser e”, e “o nao-ser nao e”, ou seja, o caminho da verdade, e ocaminho da opiniao, ja temos aı um princıpio. So que ele naodiz como fazer isso. So deu o nome da coisa. Existe verdade, eexiste falsidade, existe o ser, e existe o nao-ser, existe o caminhoda verdade, e existe o caminho da opiniao. Daı Parmenius morreue nada continuou.

Com Socrates–Platao voce tem a expressao do conteudo dessaideia. Porem, ao mesmo tempo que expressam, a sua primeira ten-tativa de realizacao ja e falha, porque Socrates–Platao acreditamque o conhecimento verdadeiro nao e possıvel a respeito de qual-quer coisa, mas so a respeito de um determinado tipo de coisas,que sao as ideias, ou modelos, eternos. E, o mundo da experienciaso oferece um conhecimento, mais ou menos, fictıcio. Assim, ecomo se eles mesmos tivessem puxado o tapete de sua propriaideia.

A segunda revolucao e feita por Aristoteles, no sentido de pro-por a realizacao efetiva dessas ideias com relacao aos objetos re-ais. Aristoteles nao so faz um projeto, formula exigencias, masefetivamente, o realiza atraves da aquisicao de conhecimento devalor permanente da humanidade. Conhecimentos que duram atehoje. Por exemplo, nao so formula inicialmente a Logica formal,que continua intacta ate hoje (pode ser aumentada, mas nao di-minuıda), e que geracao apos geracao se revela como um edifıcioindestrutıvel, como tambem, ele inaugura as principais cienciasque nos cultivamos ate hoje, como a Psicologia, a Biologia, aFısica, a Polıtica, a Historia. Claro que no meio dessas realizacoesexistem uma infinidade de erros. Particularmente, houve erros gra-ves na Fısica. Entretanto, mesmo assim, o que se conserva vivo naciencia aristotelica e quase tudo.

A terceira revolucao, feita por Sao Tomas de Aquino que, so-

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bretudo, enxerga na ciencia aristotelica uma impossibilidade devoce dar conta de um domınio teologico, e ver que por falta deimaginacao metafısica, Aristoteles havia proposto coisas comopor exemplo a eternidade do mundo (Aristoteles achava que oreal existente, cosmico, e eterno), o que de certo modo, e auto-contraditorio; a ciencia aristotelica nao permite enfocar a relacaodo indivıduo humano com o infinito divino. E como se existisseem Aristoteles uma certa confusao entre o quantitativo e o quali-tativo.

Sao Tomas de Aquino vai trabalhar nesses pontos, tratando deabrir essa nocao de Ciencia para as duas grandes dimensoes dapreocupacao do Cristianismo, que seriam, a infinitude divina, ea unicidade intransferıvel da alma humana, a perenidade da almahumana.

Para Aristoteles, nos so podemos individualizar a alma na me-dida em que individualizamos o Cosmos. E quando nos subimosas dimensoes superiores da alma, como a inteligencia, ele nao maisve individualidade nisso. E como se tudo fosse uma inteligenciaunica e coletiva. E a mesma coisa que dizer que o indivıduoso e distinto do outro corporalmente. Nao existe uma nocao dealma psıquica individual humana. Isso leva a uma infinidade decontradicoes, e e isso que Sao Tomas de Aquino procura conser-tar, de maneira a completar o edifıcio aristotelico.

Em seguida, a outra grande revolucao e com Descartes, ondea ideia pura de Ciencia tem fundamento na autoconsciencia doindivıduo humano. Uma coisa e voce conceber a ideia pura deCiencia tal como ela e em si mesma. Outra coisa e voce se preocu-par com os meios em voce realiza-la, e na hora em que voce se pre-ocupa com os meios de realiza-la, com as condicoes praticas, vocetem que acrescentar mais uma aquelas que o mundo antigo haviadescrito, que e o fundamento da ideia da veracidade na propriaconsciencia humana. Assim, se o indivıduo, sozinho, meditando,

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nao encontra um ponto de apoio firme, ele fica separado da ideiapura de Ciencia. Ele nao tem como chegar a ela. Com isso, Des-cartes descobre o fundamento pratico da ideia de Ciencia na sub-jetividade humana, que e o chamado cogito cartesiano — cogitoergo sum —, “penso, logo existo”. Isto e, ao mesmo tempo, oinıcio pratico da construcao da Ciencia, mas e tambem o funda-mento teorico, porque esta e a primeira evidencia inegavel, direta.

Descartes parte de uma investigacao pratica, ou seja, como queeu, completamente existente, posso chegar ate a verdade? Elechega a uma resposta teorica que e a primeira evidencia nao sona ordem da descoberta, mas a primeira tambem na ordem logica,que e a autoconsciencia do indivıduo. Ou seja, qualquer coisa queeu descubra, antes de descobrir a mim mesmo, e uma evidenciasecundaria. Eu nao posso saber nem o princıpio da identidadese, primeiro, eu nao descobrir o princıpio da minha identidade, oprincıpio da identidade referido a mim. Depois e que eu o estendoas outras coisas.

Em seguida, Kant estabelece uma limitacao na aplicabilidadeda ideia pura de Ciencia. E como se fosse uma conquista negativa.Ele diz que nao e para ter Ciencia neste sentido apodıctico, a naoser a respeito de duas coisas: dos objetos de experiencia; a res-peito das formas do nosso proprio entendimento. A Logica, e tudoo mais que nao seja nem pura forma do proprio conhecimento hu-mano, e nem objeto de experiencia, escapam da possibilidade deser objeto de uma Ciencia pura e deve, portanto, ser conhecido poroutro meio. Por exemplo, Deus nao e pura forma no mesmo enten-dimento, ou seja, nao e um dos esquemas que presidem o desenro-lar do pensamento logico, e nem do conhecimento pelos sentidos,e ele tambem nao e objeto de experiencia. Assim, Ele nao podeser objeto de Ciencia pura. Ele nao pode ser objeto de evidencia,de transferencia de veracidade, etc. Portanto, Deus so poderia serconhecido de uma maneira moral, ou seja, nao e um conhecimento

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firme; e um conhecimento que depende da liberdade do indivıduo.E como se nos dissessemos que e um nao-conhecimento. No en-tanto, Deus tem que poder ser conhecido de alguma outra maneiraque seria a aceitacao da liberdade humana.

Com isso, Kant inaugura uma tecnica, que as pessoas nao se daoconta. Parece que fecha todas as portas ao conhecimento de tudoo que seja transcendente, mas nao e isso. Ele esta dizendo apenasque o acesso a esse mundo do infinito, nao e um acesso intelectual.E um acesso volitivo. Nao e por um ato cognitivo, mas por um atode vontade.

Kant deve ter lido muito Sao Paulo apostolo. Fala da Fe, quesignifica um ato de vontade. E esse e um dos elementos funda-mentais da mıstica protestante, e um dos pontos de separacao entreo protestantismo e o catolicismo. O catolicismo segue Sao Tomasde Aquino e acredita na possibilidade de um conhecimento inte-lectual de Deus, embora nao por experiencia. E o protestantismodiz que isso so acontece por um ato de vontade. Com isso Kantprocura salvar o carater infinitivo da divindade, na medida ondea liberdade humana se abre para uma dimensao de infinitude eindeterminacao. E como se dissesse que a alma que peca e punidapela sua propria liberdade, e nao por uma instancia externa que acastiga.

Portanto, quando nos violamos uma lei da natureza, como a leimatematica, por exemplo, onde o indivıduo que compra uma coisaque ele nao pode pagar, ele e punido de fora para dentro. Nao eele quem se pune na sua liberdade. Kant acreditava que a lei mo-ral, a lei divina, e destituıda. Nao e uma lei que se pune de forapara dentro, como uma lei da natureza. A Igreja, com isso, achaque Kant e um barbaro. Eu — Olavo —, nao acho que isso sejamalefico, mas benefico. Pelo menos livra voce da ideia de queDeus e como se fosse um ente apenas maior do que os outros. Elecura voce da ideia de naturalizacao de Deus. Esse Deus absolu-

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tamente transcendente, inacessıvel, incompreensıvel logicamente,de que falam os protestantes, e que Kant fundamenta tao bem, Ele,pelo menos tem a vantagem de que Ele jamais pode ser confundidocom o Cosmos, com a natureza.

Kant, entao, via o abismo que havia entre o mundo do conhe-cimento e o mundo da Fe, do ato de vontade, da liberdade. Parafins praticos de educacao do homem, ou para fins praticos da vidamıstica, e uma solucao muito util. A obra de Kant e uma viamıstica, um caminho mıstico. E para quem quer seguir. E claroque a maior parte dos mısticos contemporaneos nao tem nem amenor capacidade de perceber isso, nem de longe. Porque, paraeles, mıstico e aquilo que tem algo de mitologico.

A obra de Kant nao e somente uma obra teorica. Porem, doponto-de-vista teorico, o que ele faz e um desastre, porque elefecha a porta a determinado tipo de conhecimento, ou seja, a obrade Kant so e boa para quem e muito bom. E uma obra que so deviaser lida por quem e santo...

A partir de Kant, surgem duas correntes possıveis. Uma quetenta reunificar o mundo do conhecimento, e o mundo da liber-dade, que vem com Schelling, com sua filosofia do absoluto quee, ao mesmo tempo, ser e saber, sujeito e objeto, determinacao eliberdade, ao mesmo tempo, e que se desdobra em dois aspectosantagonicos e complementares, na natureza e no homem, ao semanifestar sob a forma da criacao. Segundo Schelling, esses doisaspectos, subjetividade e objetividade, eles sao reunificados no re-torno da consciencia as suas fontes originais, para o que serve deunificador do caminho dos mitos e a criacao artıstica. Schelling etambem um outro grande mıstico. Vejam que existe o tempo todouma tendencia de estreitar, ou de ampliar a ideia do saber, a ideiada Ciencia pura. Kant restringe; Schelling amplia.

Hegel vai, entao, objetar e diz que o sistema de Schelling eapenas um apelo e nao uma realizacao. Schelling diz que o que

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precisa fazer, mas nao faz. Ele nao descreve efetivamente o pro-cesso da exteriorizacao do absoluto. Ele fala que existe essaexteriorizacao, essa manifestacao, que o absoluto se desdobra nassucessivas manifestacoes do ser, mas ele nao diz como isso acon-tece. Ele nao diz o que o absoluto faz realmente no processo dasua manifestacao. Ele vai identificar a filosofia da manifestacaodo espırito com a filosofia da Historia, que e entendida como umprocesso de sucessivas afirmacoes e negacoes, que em seguida setransformam em novas afirmacoes e negacoes, e assim por diante.

Nessa altura, acontece uma coisa importante, que a antigaideia da dialetica, como metodo da Filosofia, inaugurada porAristoteles, e retomada de uma outra maneira por Schelling e He-gel, onde ela deixa de ser apenas um metodo humano de descobrira verdade e ela passa a ser a propria lei que constitui o real. ParaHegel e Schelling, a realidade e dialetica. Nao so o nosso processode conhecimento e dialetico, mas a propria realidade e dialetica,porque o conhecimento faz parte do processo de desdobramentodo proprio espırito, isto e, do proprio real. Para os filosofos doidealismo alemao, a dialetica nao era um metodo de descoberta,como era para Aristoteles, mas e o proprio processo da existenciado real, da qual faz parte o proprio conhecimento. O processo hu-mano da descoberta do real, o conhecimento humano, e o proprioreal. Quando o homem descobre algo, e o proprio espırito que seredescobre.

Entao, nao se pode fazer a distincao entre a teoria e a pratica, ou,entre o real externo e o seu conhecimento. Isso quer dizer que oprocesso classificatorio e distintivo da Filosofia antiga e aqui aban-donado, em favor de um processo dialetico que engloba as variasclasses e especies, num todo que esta em perpetua transformacaoe, naturalmente, a distincao aristotelica entre ciencias teoricas eciencias praticas nao existe, porque o conhecimento e um pro-cesso que se desenrola no tempo, e que e uma pratica. Esta pratica,

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por sua vez, nao e separada do real que o conhecer conhece, masquando o homem conhece, e o proprio real que se conhece a simesmo, na medida em que o proprio homem e real. Os filosofos doidealismo alemao comprimem, num processo unico e dramatico,tudo aquilo que a Filosofia dos seculos anteriores havia se preo-cupado em distinguir e classificar com atencao. Como se todasessas praticas e especies, conceitos, esquemas, etc., fosse vistopor eles, tudo ao mesmo tempo, como um processo dinamico. Eclaro que eles nao poderiam ter feito tudo isso se a filosofia an-terior nao tivesse feito todas essas classificacoes. O processo dedesdobramento analıtico das partes precede, depois, a sua sıntesefinal. Essa direcao de reunificar o que Kant havia separado e uma,que comeca com o idealismo alemao.

Por outro lado, a outra linha de desenvolvimento, e a linha doPositivismo, que vem com Augusto Comte, que tenta, nao reu-nificar o que Kant havia separado, mas formalizar a separacao etorna-la definitiva. E toda uma corrente positivista que, de umamaneira ou de outra, tem sua origem em Comte.

A logica positivista e psicologista. A orientacao formal surgedo conhecimento, se torna quase que um dogma oficial. Istotraz um certo benefıcio, porque permite a formacao inteiramenteautonoma das ciencias positivas que, a partir daı, comecam a pro-gredir muito rapidamente, na medida que elas nao tem que pres-tar satisfacoes de ordem metafısica. Ate o Idade Media, se vocedescobrisse u, novo fato cientıfico, esse fato nao era intuıdo ateque voce o confrontasse com todas as doutrinas. Por exemplo, osistema de Copernico: toda a Europa leu o livro de Copernico eusou os calculos de Copernico, e ninguem deu grande importanciaa aquilo, porque aquilo nao parecia ter consequencias de ordemteologica. Foi so quando Giordano Bruno interpretou o sistema deCopernico no sentido teologico, extra-oficialmente, e que o pro-blema se deu.

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Nas estorias das polemicas contra a Igreja Catolica, a quase to-talidade que se diz contra ela e mentira. A Igreja Catolica proi-biu o sistema de Copernico: isso e mentira. O que ela proibiufoi a interpretacao teologica que se estava fazendo. Entretanto,se os planetas vao para la ou para ca, isso nao tem importanciateologica. Se voce interpreta esse fato teologicamente, num sen-tido contrario, aı tem-se a polemica teologica. Quando se diz quea Inquisicao proibiu os livros de Copernico, atrasou o progressoda Ciencia, isso e balela. Eu li o Index dos livros proibidos, e lanao tem um unico livro de Copernico. As obras de Galileu, New-ton, Copernico, nada disso foi proibido. Ao contrario, pois a obrade Copernico foi introduzida na Penınsula Iberica pelo sujeito queera chefe da Inquisicao, e que era astronomo.

A partir do seculo XIX, com o advento do positivismo, as des-cobertas cientıficas sao tornadas autonomas, no sentido de queelas nao tem que ser justificadas filosoficamente, ou metafisica-mente. Elas comecam a valer por si, independentemente de suasconsequencias filosoficas. Por um lado, isso permite um rapidodesenvolvimento dessas ciencias; por outro lado, cria uma con-fusao enorme, porque vai perdendo, gradativamente, a unidade domundo da cultura. E, gradativamente, vai comecando a entrar onon-sense.

Paralelamente a isso, acontece um outro processo, que e o fatode que a dimensao da Historia que Hegel havia identificado comoo proprio processo de manifestacao do absoluto, e que e, no fundo,um aproveitamento filosofico de uma ideia crista (o Cristianismointroduz a nocao de historicidade do homem), e as consequenciasfilosoficas disso so vao se tornar plenamente manifestadas 1800anos depois, com Hegel, que mostra a Historia como sendo oreal propriamente dito. E este processo de historicizacao da re-alidade, da propria Filosofia, que para Hegel, a historia da Filo-sofia, o desenrolar temporal das doutrinas, e o proprio conteudo

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das filosofias, ele por certo vai ser submetido a uma transformacaopor Karl Marx, que vai dizer que o mecanismo fundamental daHistoria nao e o confronto das ideias e das doutrinas no campofilosofico, mas o confronto das acoes humanas reais dentro de umquadro de relacoes que delimita a acao humana: relacoes jurıdicas,economicas, militares, polıticas, etc. De maneira que a propriaHistoria, que passa a ser Historia social, e nao a Historia cultural,e que passa a ser a chave.

Na obra de Husserl surge a resposta da situacao criada pelopositivismo. Husserl vai a margem do desenvolvimento Hegel-Marx, na medida onde a autonomia das ciencias, permitindo a suaextensao qualitativa, abre a brecha para a incoerencia dentro domundo da Ciencia. Na medida que surge a incoerencia, ou seja,aquilo que e verdade aqui e desmentido acola, vai entrando o non-sense, nao so dentro dos interstıcios entre as varias ciencias, masdentro do proprio ambito de cada ciencia em particular. Um exem-plo disto e o caso de Georg Cantor.

Husserl parte do fato que ele chama de “A Crise das Ciencias”,nao no sentido de que elas nao estejam descobrindo nada, nao nosentido de que elas nao progridam, mas no sentido da sua propriacientificidade, ou seja, sao ciencias ou nao? Sao ciencias verda-deiras ou sao apenas um tecido de conjecturas, retoricamente co-locadas a sociedade, como que embasadas numa autoridade de umgrupo social determinado que se auto-intitula “a classe cientıfica”?

Husserl nao e, evidentemente, contra as ciencias. Ao contrario,ele apenas quer que elas, de fato, cumpram a sua promessa doconhecimento apodıctico, demonstrativo. E isso e tanto mais im-portante quanto ele ve a propria civilizacao europeia como fruto,criacao da Ciencia, toda ela marcada pelo ideal de Ciencia. Por-tanto, onde estiver um defeito, uma rachadura, uma incoerencia nomundo das ciencias, ela se propagara por toda a civilizacao, maiscedo ou mais tarde, assim como se fosse uma civilizacao fundada

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num mito, onde as incoerencias do mito, mais tarde, acabariamcom a propria civilizacao.

A obra de Husserl e de salvacao da civilizacao europeia. E aobra de um abnegado que abriu caminho para o que ele chamade “os bons europeus”, que sao aqueles que amam a civilizacaoda Europa e que, embora vendo as contradicoes e defeitos dela,procuram tocar para frente, e nao destrui-la. Ele dizia que essanova sensacao criada pela perda do sentido de veracidade nasciencias, deveria ser enfrentada com uma coisa que ele chamade “o heroısmo da razao”, que e a Razao que se supera a simesma, que vence a absurdidade dos seus proprios produtos, dosseus proprios efeitos. Ele propoe um retorno a nocao primariada evidencia; o que e a evidencia; o que e conhecimento correto;e nesse sentido ele ve que existem duas evidencias que ninguemnega.

A primeira e a do cogito cartesiano, que e a evidencia doproprio indivıduo humano que existe. Ele considera isso umaaquisicao definitiva do mundo cientıfico. Ninguem derruba isso.O fundamento da veracidade na subjetividade, a ideia de que aexistencia e o auto-reconhecimento do ego auto-consciente, e aprimeira condicao sine qua non do fundamento da Ciencia, e e umaevidencia inegavel. Nenhum homem pode negar que ele existe.

A segunda evidencia que ninguem nega e a veracidade dadeducao matematica. Ninguem nega que 2 + 2 = 4.

Porem, parece que essas duas evidencias que nao tem nada a veruma com a outra, porque o modo pelo qual chego a uma evidenciamatematica e totalmente diferente pelo modo o qual eu chego aevidencia subjetiva. Aı ele levanta o ponto-chave: as evidenciasmatematicas sao evidencias na medida em que a consciencia asatende, elas sao evidencias na consciencia, para a consciencia.Do mesmo modo que a evidencia da sua propria existencia, e umevidencia para a consciencia. Assim, o problema que se esta tra-

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tando e saber o que e consciencia, e quais sao os diferentes modospelos quais as evidencias podem se apresentar a consciencia.

A consciencia humana e uma so, e essa mesma conscienciatoma consciencia de si mesma, e toma conhecimento da exatidaoda deducao matematica. Portanto, essas duas coisas se dao para aconsciencia. Isto quer dizer que existem dois tipos de evidencia,diferentes. O modo de apresentacao da verdade sao totalmentediferentes.

Assim, primeiro passo: descrever a consciencia, e ver os variosmodos de evidencia com o que a verdade se apresenta. Te-mos que fazer uma fenomenologia da consciencia, descrever aconsciencia, e no momento em que ele vai tentar reunificar o nocaode evidencia, que e comum as duas, mostrando a consciencia comoo lugar onde aparece a evidencia, ele vem primeiro com a filoso-fia da Logica, ou seja, uma filosofia pela deducao matematica e,segundo, a filosofia da consciencia.

Porem, aı comeca o grande problema: a consciencia, no caso,nao pode ser encarada no sentido psicologico, porque senao vocesupoe que a consciencia possa ser estudada pelos dois metodos ad-mitidos em Psicologia, que seriam, um, o metodo de observacao eexperimentacao, ou metodo de introspeccao. E ele diz que, o pri-meiro metodo pressupoe que voce coloque entre parenteses a vera-cidade dos conteudos de consciencia. Quando o psicologo estudacomo voce realmente pensa, que meios ele tem de saber que o quevoce pensa e verdadeiro ou falso? A veracidade ou falsidade doconteudo de um pensamento nao e um problema psicologico. Sevoce vai estudar psicologicamente como se produz uma evidencia,voce nao vai estudar o objeto da evidencia, e sim, somente o modode producao da evidencia em sua mente — quando aqui nos esta-mos interessados exatamente no contrario.

Nos entendemos que existem diferentes objetos de evidencia.Quando Husserl fala numa fenomenologia da consciencia, nao e

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no sentido psicologico, e sim, numa fenomenologia dos diferentesconteudos de consciencia, ou seja, o conteudo matematico e um,e o conteudo do cogito e outro. Entretanto, que se possa estudara consciencia de uma maneira extra- psicologica, aı e que surgetodo o problema, porque entao, se escapa da ideia de Ciencia, talcomo se admitia na epoca, que seria a Ciencia no sentido posi-tivo, no sentido experimental. Para isso, Husserl empreende pre-liminarmente um exame das filosofias da Logica, e das filosofiasda consciencia, ate entao existentes. E, este texto do Husserl, serefere ao exame crıtico das filosofias da Logica ate entao conhe-cidas. Para Husserl, a Logica e a teoria da Ciencia, do conheci-mento cientıfico. Essa teoria tem que provar que existe a possi-bilidade do conhecimento verdadeiro, independentemente do seumodo de producao psicologico, porque senao, a propria Psicologianao poderia ser uma ciencia. Se a definicao do que e veracidadeem Ciencia depende de que exista previamente uma ciencia paraestudar o funcionamento da consciencia que nos da essa verdade,nos entramos em contradicao. A veracidade e a falsidade tem quepoder ser definidas, e os seus criterios tem que poder ser esta-belecidos, independentemente de qualquer consideracoes de or-dem psicologica, ou seja, independentemente se voce pensar como cerebro, com o estomago, ou ate independentemente de saber sevoce pensa, tem que haver um criterio do que e o conhecimentoverdadeiro. Condicoes puramente formais, logicas, que nao temnada a ver com o procedimento real do pensamento, por exemplo,assim como as regras da Geometria sao reais, independentementedo processo do seu pensamento. Vejam que ao se explicar umalei geometrica, as pessoas captam essa lei por diferentes manei-ras. Por exemplo, pensem num triangulo. Agora, me digam: essetriangulo apareceu solto no espaco, desenhado num papel, recor-tado num pedaco de madeira? Como? Qualquer que seja o modo,eu pergunto: algum desses triangulos e geometricamente diferente

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do outro? Nao! Isto quer dizer que voces pegaram a mesma ideiageometrica, por processos psicologicos que independem de suasassociacoes de ideias, as quais foram totalmente fortuitas. Istoquer dizer que, a veracidade dos calculos geometricos que vocefaz, que existem no triangulo, independe do modo psicologico peloqual voce apreendeu a ideia. Mesmo que fosse o homem das ca-vernas, o triangulo continuaria tendo tres lados, e o quadrado dahipotenusa continuaria a ser a soma dos quadrados dos catetos.

Assim, Husserl indaga: “E possıvel a Logica pura?”, ou seja,a teoria pura da Ciencia. Nao apenas a formulacao da ideia purada Ciencia, que e uma coisa, porem e possıvel formar uma Logicainteira? Ou seja, e possıvel o conjunto total dos criterios do co-nhecimento de maneira inteiramente pura, sem referencia aos da-dos psicologicos? Ele diz que se nao e possıvel isso, entao nao epossıvel Ciencia alguma. Ou destacamos a Logica da Psicologia,ou entao, essa Logica nao pode fundamentar a propria Psicologiacomo ciencia.

O mundo dos psicologos esta, ate hoje, lesado em todas as pes-soas que nao estudaram Edmund Husserl, e estudaram o restanteda Psicologia. Isto porque tendem a reabsorver nos fenomenospsicologicos, todo o mundo do conhecimento e a explorar o co-nhecimento psicologicamente, e portanto voce relativiza psicolo-gicamente, mas, ao mesmo tempo esse mesmo indivıduo que fazisso, sabe que a Psicologia nao tem fundamento cientıfico. Resul-tado: tem que apelar para o mundo do mito. Por isso e que osjunguianos logo vao para o lado do mito, comecam a ler o Schel-ling.

O futuro da Ciencia, a cientificidade da Ciencia, a sua baseverıdica, repousa nessa possibilidade: ou existe a Logica pura,ou entao tudo isso e uma demencia. E e justamente isso queele vai comecar a se esforcar, por etapas, a partir deste livro dasInvestigacoes Logicas. E um novo Sao Tomas de Aquino, um novo

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Aristoteles.

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4 Prelecao IV16 de dezembro de 1992

4.1 Espinha dorsal da historia dafilosofia

• Socrates–Platao: ideia pura de ciencia.

• Platao: ciencia das formas ou dos arquetipos.

• Aristoteles: ciencia natural ou ciencia das coisas efetiva-mente existentes.

• Cristianismo: senso da historia, alma individual.

• Santo Tomas de Aquino: harmoniza o cristianismo com aciencia aristotelica.

(RUPTURA)

• Descartes: retorno a Socrates; a ciencia individual comociencia verdadeira.

• Kant:

– conhecimento interno (formal)

– conhecimento externo (material)

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• Kant

– Idealismo: por reacao, surge Marx

– Positivismo: por reacao surge E. Husserl

Esta e a espinha dorsal da historia da Filosofia. E claro que exis-tem muitos ramos laterais, secundarios, auxiliares, mas a espinhadorsal e esta.

Se voce conseguir situar cada filosofia, cada ideia, cada obra,dentro desta evolucao, voce sabe onde as pessoas estao. Esta e aideia geral. Este e o problema que se discute.

Isto quer dizer que, a essa altura, nos ainda estamos coloca-dos dentro de uma fase onde a ideia pura de Ciencia requer umaespecie de visao do conhecimento em duas partes, mutuamenteexcludentes. Nos ainda estamos dentro de uma atmosfera kanti-ana, onde uma ciencia pura, verdadeira, parece que so pode serrealizada com relacao a uma parte dos fenomenos, ou seja, aquiloque e objeto de experiencia. E, aquilo que esta colocado para alemda experiencia nao e objeto de conhecimento propriamente dito.Por exemplo, o problema da Logica sem fundamento ontologico.Nos podemos conhecer a Logica, evidentemente, porque nos te-mos experiencia do nosso proprio pensamento, e podemos entaoestabelecer as regras segundo as quais esses pensamentos se re-alizam, ou devem se realizar, para tais ou quais fins. Porem, setudo isso tem fundamento ontologico ou nao, isso e uma questaometafısica.

Assim, ou desistimos de fundamentar ontologicamente aLogica, ou realizamos uma Logica sem fundamentos ontologicos,uma Logica que seria uma ciencia puramente formal, e baseada,em ultima instancia, numa arbitrariedade humana, baseada emconvencoes, ou seja, a Logica como ciencia puramente norma-tiva. A logica de computadores e puramente normativa. Basta um

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conjunto de leis, e cria um sistema dedutivo que seja coerente comessas leis. Entretanto, se tudo isso e coerente com o real pouco im-porta, o computador vai funcionar do mesmo modo. E a partir detudo o que foi dito que nos devemos entender o texto de Husserl.

Este texto pergunta fundamentalmente, o que e a Logica? Se euma ciencia empırica, baseada no estudo do pensamento humanoreal; se e uma ciencia metafısica, fundada em leis ontologicas, eque reflete na unidade do pensamento, na unidade do real; ou se euma ciencia puramente normativa, formal, constituıda de um sis-tema dedutivo, fundado em normas convencionalmente adotadaspelo homem. Estas sao as tres orientacoes que Husserl fala noprimeiro capıtulo: psicologica, metafısica e formal.

2. Necessidade de uma nova dilucidacao das questoes deprincıpio

Husserl diz que as tres orientacoes da Logica, ou seja, essestres modos de definir a Logica, aos quais correspondem tres mo-dos respectivos de desenvolver, e esses tres modos ainda estao emconflito, muito embora, na epoca dela o modo psicologico tenhaalcancado um maior numero de adeptos. So que isso nao querdizer nada.

Assim, nenhuma das tres correntes ofereceu argumentos con-tundentes que pudessem convencer os partidarios das demais. DizHusserl, “A circunstancia de que ensaios tao numerosos para im-pelir a logica pelo caminho seguro de um ciencia nao permitamapreciar nenhum resultado convincente, deixa aberta a suspeita deque os fins perseguidos nao se aclararam na medida necessaria,para uma investigacao frutıfera”.

Por que ele fala em “caminho seguro de uma ciencia”? Essa euma das expressoes que Kant usa no comeco dos seus trabalhos.Ele assinala alguns dos tracos que indicam se uma ciencia entroupelo caminho seguro, ou se ela esta perdida. Um dos sinais deum caminho seguro seria a unanimidade quanto aos resultados, e

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quanto aos caminhos a seguir. Essa unanimidade nao se observa naciencia da Logica, e que portanto, Husserl diz que ela nao entroupara um caminho seguro de uma ciencia.

Curiosamente, a Logica e a ciencia que Kant dizia ser a cienciapor excelencia. Kant considerava a Logica como a ciencia que ha-via entrado no caminho seguro. Husserl demonstra aqui que nao enada disso. Ele diz que uma parte da Logica entrou pelo caminhoseguro, que e o esquema dedutivo, e quanto a isso ninguem dis-cute. Porem, quanto a natureza da Logica, e quanto ao campo deextensao de validade de seus princıpios, a discussao continua atehoje. Ele quer dizer que os fins nos casos sobre a discussao quantoa natureza da Logica, nao foram aclarados de maneira suficiente,e por isso mesmo os resultados da discussao nao sao firmes.

A concepcao dos fins de uma ciencia encontra sua expressaona definicao dessa ciencia. Nao que o cultivo frutıfero de umadisciplina exija uma previa e adequada definicao do conceito deseu objeto. As definicoes de uma ciencia refletem as etapas de suaevolucao. Nao obstante, o grau de adequacao das definicoes exercetambem seu efeito retroativo sobre o curso da ciencia mesma;

Voce pode ter varias definicoes na mesma ciencia conforme elavai se desenvolvendo, porem e fundamental que as definicoes naoestejam totalmente erradas, ou deslocadas com relacao ao objeto.Elas podem, por exemplo, ampliar o campo do objeto, ou podemespecifica-lo, conforme as novas descobertas vao sugerindo umcaminho ou outro. Porem, se acontece da definicao se desviarcompletamente do objeto, a ciencia perde o rumo.

E esse efeito pode ter influxo escasso ou consideravel, conformea direcao em que as definicoes se desviem da verdade. A esferade uma ciencia e uma unidade objetivamente cerrada. O reino daverdade divide-se, objetivamente, em distintas esferas.

Isto aqui e absolutamente decisivo e que, pelo menos no meiobrasileiro, as pessoas tem muita dificuldade de captar.

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Em geral, pelo menos no campo que eu tenho visto dos alunos,nos ultimos dez anos, pelos quais eu tomo uma medida do quese passa no meio universitario, a tendencia vigente do brasileiro ede viver a realidade como uma especie de pasta caotica, na qualtodas as distincoes sao estabelecidas apenas pelo arbıtrio humano.Ou seja, o indivıduo ve o mundo como um caos onde esta tudomisturado, e ve as distincoes como mais ou menos convencionaise arbitrarias, ou seja, como meramente praticas.

Assim, distingue-se entre um campo da Fısica e outro da Biolo-gia, entre o real e o possıvel, entre o dentro e o fora, etc., apenaspor uma convencao, por uma necessidade pratica. Sendo que essasdistincoes nao correspondem a tracos da propria realidade. Quasetodo mundo pensa assim. Mas, nao e que pensem assim por te-rem examinado o problema, mas, sem jamais terem examinado oproblema.

Existe um preconceito de que todas as distincoes, inclusive asdivisoes do proprio sistema das ciencias sao, primeiro, arbitrariase, segundo, meramente praticas. Husserl afirma exatamente ocontrario. Ele diz que a esfera de uma ciencia e uma unidade ob-jetivamente fechada. Ou seja, se quisessemos fazer entrar outrosfatores nessa esfera, nao conseguirıamos. Ele nao diz que deveser, ele diz que e. Isso e muito importante. Com isso esta suben-tendido que um sistema das ciencias so e valido quando as suasdivisoes, ou seja, as denominacoes das varias ciencias, correspon-dem a divisoes objetivas do real. Por exemplo, quantas cienciaspodem estudar um objeto?

Pelo pressuposto inconsciente na mentalidade do nosso meiouniversitario, qualquer coisa pode ser objeto de qualquer ciencia,sob qualquer ponto-de-vista. Basta voce inventar um ponto-de-vista qualquer que voce tera uma nova ciencia.

O que Husserl diz e exatamente o contrario: as ciencias so saovalidas, elas so existem efetivamente, e elas so podem ser prati-

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cadas efetivamente, quando as divisoes dos seus campos corres-pondem rigorosamente as divisoes do proprio real. Isto nao querdizer que o sistema das ciencias tenha que esgotar essas divisoesmas, pelo menos, as que estao nela, sao divisoes que refletem, naoapenas pontos-de-vista, ou desejos, ou interesses humanos, mas aconstituicao dos proprios objetos. Um unico exemplo permitiriatornar isso bastante claro, e isto e uma coisa tao simples que, umavez visto, as pessoas percebem que e assim: como nos poderıamosfazer uma ciencia que pudesse por no objeto, ao mesmo tempo, aspropriedades dos triangulos e o crescimento das plantas? Comopoderıamos achar uma conexao causal, na qual, o crescimentodas plantas afetasse as propriedades dos triangulos? Existe algummeio de que algo que aconteca a qualquer planta desse mundo, dosoutros mundos, afetasse a propriedade dos triangulos? E absolu-tamente impossıvel. Essas coisas nao interferem uma na outra,jamais. Sao planos distintos, portanto, sao objetos distintos.

Quando um indivıduo sente as divisoes como arbitrarias, ouconvencionais, e que ele esta confundindo o mundo, tal como ele eestudado pelas ciencias, com o mundo da experiencia sensıvel, daexperiencia real humana, que nao sao o mesmo mundo. O mundoque chega a nossa experiencia de indivıduo e o mundo concreto,onde todos os efeitos, todas as linhas de causa, comparecem aomesmo tempo, ou seja, nos experimentamos, ao mesmo tempo, osefeitos que estao ligados entre si, e os que estao desligados. Porexemplo, se um aluno me faz uma determinada pergunta relativa aaula anterior, eu compreendo que isso e um efeito da propria aulaanterior que eu dei. Porem, esse mesmo aluno que manifesta umefeito de um acontecimento anterior, ele tambem chega aqui ves-tido de verde, ou de amarelo, e essas duas coisas acontecem aomesmo tempo, e e o mesmo aluno que vem vestido de uma dascores, por causa de uma escolha arbitraria que ele faz, e que mefaz essa pergunta derivada da aula anterior. Ou seja, eu observo,

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ao mesmo tempo, indıcios, num todo inseparavel, os efeitos deduas linhas de causa que nao tem nada a ver uma com a outra. Oconcreto quer dizer exatamente isso.

O acontecimento concreto e aquele no qual se juntam todas aslinhas de causas, as que estao ligadas entre si, e as que nao estaoligadas entre si, e que somente se juntam no acontecer concreto.Porem, a Ciencia nao se interessa pelo acontecimento concreto.Ela so se interessa pelas conexoes de causas. Por que a Cienciahaveria de se interessar pelo acontecer concreto? Isto e materiada experiencia humana, comum e corrente. Se a Ciencia tratassedisso ela seria uma simples repeticao da experiencia, e de nadaserviria. Ou seja, aquilo que nos ja sabemos pelas vias comuns ecorrentes, nao pode ser materia de Ciencia. Da experiencia con-creta nos sabemos os fatos, aquilo que sao efeitos (factum est),aquilo que esta sendo, o que ja e fato. E, tudo aquilo que e feito,e feito pelo composto de uma infinidade de causas diferentes, queconvergem num mesmo lugar e momento. Porem, essas causasnao estao conectadas em si mesmas, umas com as outras, emboraestejam ambas conectadas ao mesmo fato. O conhecimento daaula anterior, e a cor da roupa, estao juntas ambas no mesmo in-divıduo, mas nao sao eles que se juntam um ao outro. E o in-divıduo quem os junta. O que pode acontecer e que efeitos de tipofısico, e de tipo economico-sociologico, convirjam num determi-nado momento. Por exemplo, um sujeito da um tiro no outro. Abala mata o sujeito devido ao impacto. Esse impacto pode sercalculado por leis fısicas, porem, por que o sujeito matou o ou-tro? Isto poderia ser calculado por leis fısicas? Nao. Pode ser pormotivos psicologicos, ou sociologicos, que nada tem a ver com oimpacto da bala. No entanto, o indivıduo foi morto, precisamente,porque o encadeamento das leis fısicas que determinam o impactoda bala, e o encadeamento das causas psicologicas que determi-naram o tiro, convergiram no mesmo momento. Isto e o que se

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chama de concreto.Portanto, para poder captar o que e o ponto-de-vista cientıfico,

nos temos que sair do aspecto concreto para que nos possamospegar quais sao os encadeamentos de causa que estao necessari-amente conectados entre si, ou seja, que sempre vem juntos, eaqueles que podem vir separados. Ou seja, o impacto de uma baladepende do seu calibre, e a causa psicologica pelo qual o indivıduomatou o outro, depende de acontecimentos anteriores, de ordempuramente psicologica. Essas coisas nao estao conectadas entresi, mas apenas no indivıduo real. Assim, coincidiu de que Joao ti-nha tais motivos para matar Jose, e Joao tinha uma bala de calibre38. Nao poderıamos, dessa forma, estabelecer uma relacao diretaentre o motivo psicologico e o calibre da bala e, portanto, o seu im-pacto. Essa relacao e indireta e estabelecida atraves de um terceirofator que e o indivıduo ser o autor do ato. Entre o calibre da balae o seu impacto existe uma relacao necessaria, mas entre o calibreda bala e a motivacao psicologica que motivou o tiro nao ha umarelacao necessaria, portanto, isso nao pode ser objeto de Ciencia.Nao pode existir Ciencia das conexoes fortuitas porque senao se-ria uma Ciencia inesgotavel, nunca chegaria a nada. E como sevoce tivesse uma Ciencia que estabelecesse uma estatıstica entreo horario de partida dos avioes nos aeroportos de todo o mundoe a quantidade de nascimentos de criancas. Nao e impossıvel quevoce ate encontre uma certa coincidencia, por exemplo, quandopartem mais avioes, nascem mais criancas, porem a nossa razaopercebe que nao ha uma conexao entre uma coisa e outra, mesmoquando elas coincidem.

A incapacidade que o indivıduo tem de sair do plano da ex-periencia concreta e se colocar no plano abstrato que separa asvarias linhas de causa, ela vem junto, necessariamente, com aimpossibilidade que o sujeito tem de distinguir o necessario dofortuito. Por que? Porque so existe conexao necessaria em li-

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nhas causais unıvocas, por exemplo, entre o calibre e o impacto dabala. Entretanto, a conexao entre o impacto da bala e a motivacaopsicologica e fortuita. Se eu nao consigo me desligar do aconte-cimento concreto, eu nao consigo perceber quais sao as ligacoesnecessarias, e quais sao as fortuitas. Por isso mesmo e que eu te-nho uma imagem do mundo que e caotica, onde qualquer coisapode acontecer a qualquer momento, por qualquer causa. Isso e,evidentemente, um sinal de muita fragilidade intelectual. E umimpressionismo. O indivıduo esta tao impressionado pelo aconte-cimento concreto que ele so consegue ver um amalgama de causase efeitos misturados, e nao consegue ver que, por tras, existemconexoes necessarias e outras, fortuitas. Portanto, daquele acon-tecimento em particular, ele nao tira nenhuma conclusao que sejaaplicavel para um outro acontecimento, e se tentar vai tirar a con-clusao errada.

O problema e que, pessoas que tenham formacao universitaria,que se dedicam a profissao cientıfica, pensem desta forma, isso egravıssimo. Se for assim, a pessoa esta fazendo Ciencia com amentalidade magica, ingenua, de uma crianca de cinco anos. Enecessario que a sua imaginacao tambem pense junto com o seusaber, e que voce possa, dentro do mesmo acontecimento, separarimaginativamente os varios aspectos, uns dos outros, para voce verquais estavam ali por uma necessidade, e quais estavam de maneirafortuita.

O indivıduo confundir o que e necessidade logica com o encade-amento causal, real, e tambem um sinal dessa mesma fragilidade.O indivıduo esta tentando sair do concretismo, e o faz por um abs-tracionismo excessivo. Seria a pessoa que tem uma mentalidaderacionalista, ou seja, tudo aquilo que esta no raciocınio, tem queacontecer, necessariamente. Isso so acontece se houver, entre osdados, uma conexao real, homologa a conexao fısica dos seus ra-ciocınios.

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Nos estamos num situacao, que acontece no meio letrado brasi-leiro, onde tudo aquilo que foi conquistado pela humanidade, aolongo dos seculos como, criterios de distincao, instrumentos declassificacao do mundo, etc., tudo isso esta inacessıvel ao brasi-leiro. Assim, dada qualquer problema para resolver, na mao deindivıduos assim, mesmo que seja da sua ciencia em particular,eles farao muita confusao.

Sinceramente, eu acho impossıvel que o sujeito pratique bemuma ciencia se ele nao tem ideia de, se o campo daquela cienciatem uma unidade real ou fictıcia, real ou convencional, teoricaou pratica. Simplesmente nao e possıvel, porque se o indivıduonem sabe se aquele objeto existe ou foi inventado por ele mesmo.Ele fica desorientado em face do objeto e, mais dia menos dia,ele vai comecar a fazer burrada. O pior e que todo o mundo dasciencias existentes, Biologia, Economia, Historia, etc., so tem va-lidade em cima dessas distincoes. Se eu conheco as ciencias, masnao conheco as distincoes que as estabelece, que as criam, que asdelimitam, na realidade eu nao sei o que e Ciencia. Mesmo aquelaque eu pratico profissionalmente.

Por razoes como essa e que o problema do Brasil nao e a miseriamas, sim, o de ser um paıs desorientado, e que so nao esta numamiseria maior porque Deus e brasileiro. e um paıs cujos recursossao desproporcionais as realizacoes exatamente por ser formadode pessoas que estao num nıvel intelectual muito atrasado. O piore que isso e verdade, embora eu gostaria que nao fosse, mas acon-tece que quando voce ve como uma discussao e iniciada, como elase desenrola, e ao resultado que ela chega, nao importa em quesetor seja, sempre chega a uma confusao, porque sao pessoas quenao acreditam no conhecimento objetivo, nao tem ideia do que e,e encaram o mundo como um pastiche, no qual todos os conceitossao uma especie de joguinhos, regras de jogo que nos inventa-mos. Pergunte a um psicanalista se existe o id, objetivamente? Ele

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existe como uma unidade, ou ele e uma funcao de alguma outraparte do ser humano realmente existente? O id e sujeito de atos?E difıcil voce achar um psicanalista que tenha se colocado essapergunta. Todos falam do id como se ele existisse, como se elefosse uma outra pessoa: o Jose quer isso, mas o id do Jose queraquilo, ou seja, o Jose parece uma so pessoa, mas e, na verdade,duas! O id vira uma especie de “encosto”.

Assim, saber se os objetos de que voce fala sao entes, saofuncoes, sao modalidades, sao aparencias, ou epi-fenomenos, issoe fundamental. Se eu nao sei se estou falando de um ente, ou deuma palavra, entao nao vai adiantar nada... E claro que eu possofazer raciocınios sobre conceitos inexistentes. As vezes, para com-pletar certos argumentos logicos, voce procede como em Algebra:voce tem uma coisa que voce nao sabe se existe ou nao; voce a de-nomina de x e continua raciocinando em cima dela. Mas, se vocenao sabe se o x existe ou nao, e nao o distingue, voce nunca podechegar a resultado algum que preste.

Vejam, por exemplo, as nossas discussoes que prosseguem exa-tamente a noventa anos, nos mesmos termos. Ha um artigo deMonteiro Lobato, de 1910, discutindo as causas da inflacao. Adiscussao e exatamente a mesma. Discute-se este problema hanove decadas e nao o resolvem..., assim como uma infinidade deoutros problemas. Se o povo, em determinados momentos, aderea modas estrangeiras, entao fica impossıvel.

Assim, o povo, enxergando o mundo como um caos, ele ficadesorientado, e fica procurando algo que lhe sirva de referencia, equando aparece uma nova palavra, uma nova ideia, ele se agarraa aquilo como um naufrago se agarra a uma tabua. Isso acon-tece, nao porque ele tenha espırito de imitacao, mas porque tem oespırito de salvar a pele. Para ele nao ficar completamente louco,ele se agarra a uma nova palavra que pode ser, por exemplo, mo-dernidade. Ele nao sabe o que e, mas tambem nao precisa, desde

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que isso lhe de a esperanca de salvar a sua pele.Com relacao as discussoes de problemas de interesse publico,

dificilmente voce ve alguem que queira colocar as coisas e astente resolve-las efetivamente. Ha um amor por certas ideias, demodo que voce depende delas, e se elas morrerem voce sente queo seu mundo caiu. Essa nossa impressao de estarmos isolados domundo, ela e verdadeira, mas nao pelos motivos que as pessoaspensam, por estarmos a margem da modernidade. Sempre pensamque e por motivos economicos e e evidente que nao e por isso. Naosei por que um paıs pobre nao pode acompanhar o movimento deideias do mundo! E evidente que pode. Sobretudo, eu nao sei porque um paıs pobre nao pode saber como foi o movimento de ideiasnos tempos de Platao e Aristoteles. Quanto dinheiro voce precisapara saber disso?

O que acontece hoje e ver as pessoas tentando alcancar umaatualidade, e quando voce consegue, ja nao e mais atual. Isso eimediatismo, que e uma coisa do indivıduo so visar o interesse doseu grupo, e nao conseguir enxergar; esse espırito de reivindicacao(queremos isso, queremos aquilo) que e como se a sociedade fosseum pai que nao lhe da as coisas porque ela nao quer, porque elae malvada. Assim, cada um reivindica a sua parte, e ninguemtem a menor ideia de que existe um conjunto, e esse conjunto, asvezes, nao pode atender a todo mundo. Ainda, as pessoas reivin-dicam coisas urgentıssimas, e coisas perfeitamente futeis, com omesmo vigor, com a mesma enfase. Assim, temos situacoes ondeo indivıduo que esta no hospital do INAMPS, e reivindica o san-gue que precisa, e o hospital nao tem, enquanto o juiz federal queganha, apenas, 50 milhoes por mes, e que ve o funcionario equiva-lente ganhando 65 milhoes, esta igualmente revoltado, e reivindicanos mesmos termos: “Isso e uma injustica! E intoleravel!”. Isso etotalmente desproporcional.

Todo ser humano tem direito a isso ou aquilo, e o pai tem o di-

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reito de nao dar para a crianca o que ele nao tem. Portanto, ficoutudo na esfera puramente verbal. Essa estoria de reivindicacaopode ate acabar descambando para a hipocrisia. Um hipocrita eum sujeito que se coloca deveres morais que estao acima da capa-cidade dele. Assim, ele nao pode atender ao seu proprio padraomoral elevado, vive abaixo do padrao, vive se condenando, e aomesmo tempo, tendo que se esconder. Ele e um para se mostrar,e outro para dentro. Naturalmente ele tem um complexo de in-ferioridade enorme, e para compensar isto, ele tera que encontraruma serie de procedimentos mais ou menos rituais, compulsivos ecompletamente malucos. E um sistema adaptativo muito compli-cado o relacionamento neurotico. O neurotico e o sujeito que viveem bases muito complicadas. A relacao dele com todas as coi-sas e indireta, simbolica, cheia de mediacoes. E um codigo muitocomplexo, e a regra do jogo tambem e muito complexa.

Quanto mais voce exige da sociedade o que ela nao pode dar, ouseja, cada nova lei que proclama mais um novo direito para mim,e um crime, porque a lei ja consagrou muito mais direitos do quea sociedade brasileira pode atender. Se ela nao pode atender, porque a lei?

Isso aı e so uma das manifestacoes dessa patologia intelectual.Eu nao vejo esperanca de melhora para a sociedade brasileira en-quanto nao houver uma especie de saneamento da nossa vida in-telectual; enquanto ela nao comecar a enxergar claro. Sempre queexiste um debate publico, sobre qualquer coisa, e seguro que ostermos reais que aquilo se coloca nunca aparecerao.

Com relacao a essa visao do real como um pastiche, onde estatudo misturado com tudo, nao e preciso dizer que as pessoas quenao conseguem enxergar essas distincoes reais e que, nao obs-tante, sao obrigadas a estudar determinadas ciencias, e sentem omundo da Ciencia como opressivo, quando aparece uma coisa cha-mada holismo, elas sentem um verdadeiro alıvio. O holismo e a

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justificacao cientıfica dos pastiches. O que adianta voce ensinarCiencia se antes voce nao ensinou o indivıduo a perceber que ascoisas, os eventos, tem conexoes necessarias, e tem conexoes quesao fortuitas. Ou seja, se voce nao ordenou a propria visao domundo da experiencia, se esse indivıduo chegou a idade adultaainda com uma visao infantil, fantasmagorica, do real, voce naoconseguira enfiar Ciencia na cabeca de um botocudo para que decerto. O problema todo fica colocado numa fase da educacao queesta entre o primario e a universidade, que seria a faixa onde de-veria entrar tudo isso.

Assim, este texto do Husserl, se for bem estudado, ele ira ar-rancar essas coisas das suas cabecas, ele vacinara voce contra essasensacao de caos e, sobretudo, fundamentar, fazer uma especie deexperiencia do que pode ser um conhecimento firme. De pronto,ele parte da ideia de que as Ciencias, ou tem as denominacoes, assuas definicoes separadas, de acordo com as divisoes do real, queo proprio real impoe, ou entao elas nao valem de nada, nao saoCiencias absolutamente. Isto, ele nao vai demonstrar neste livro,pois nao e assunto deste livro. Ele esta partindo disto como umpremissa, entao, ele nao vai mais se explicar a esse respeito.

Entao, entenderam o que Husserl quer dizer com “esfera ob-jetivamente cerrada”? Existem uma definicoes que valem entreobjetos, mas que nao se referem a princıpios diferentes do conhe-cimento desse objetivo. Por exemplo, pode existir uma ciencia dosanimais, mas nao pode existir uma ciencia dos leoes. Nao podeporque ela seria exatamente igual a ciencia dos leopardos, ou aciencias das oncas, etc. So muda o denominacao do objeto. E, fun-damentalmente, a mesma ciencia, que usa os mesmos princıpios,os mesmos metodos, apenas aplicam a objetos diferentes. Naosao objetos genericamente diferentes, nem especificamente dife-rentes. E uma diferenca de um indivıduo para outro indivıduo. Eunao posso estudar os leoes com os mesmos princıpios que eu es-

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tudo as leis de mercado, ou que eu estudo os oceanos. Entretanto,eu posso estudar os leoes com os mesmos princıpios que eu estudoos leopardos. E um conteudo diferente, da mesma ciencia, so queaplicado a um outro objeto, da mesma ciencia. Ou seja, os leoesnao estao conectados entre si com um sistema de lei diferente da-quele que conecta os leopardos ou as oncas. Enfim, os leoes naoconstituem uma esfera objetivamente cerrada.

A esfera de uma ciencia e uma unidade objetivamente cerrada.O reino da verdade divide-se, objetivamente, em distintas esferas;as investigacoes devem orientar-se e coordenar-se em ciencias, emconformidade com essas unidades objetivas.

Ou seja, essas unidades objetivas estao dadas no real. Elas, asvezes, nao sao evidentes a primeira vista. No mundo concreto,no mundo da experiencia, as varias esferas de conexao aparecemmisturadas sempre, e isso mesmo e a definicao do concreto. Nose que temos que, gradativamente, perceber como esses varios gru-pos de conexoes se distinguem. A medida que descobrimos no-vas diferencas ou novas relacoes entre grupos de conexoes, esta-remos aperfeicoando o edifıcio da Ciencia para que o campo daCiencia se torne mais completo e ao mesmo tempo mais distinto.Por isso ele diz que a definicao de Ciencia vai variando segundo asua evolucao.

Pois bem: quando um grupo de conhecimentos e problemas seimpoe como grupo coerente e leva a constituicao de uma ciencia,a inadequacao de sua delimitacao pode consistir meramente emque se conceba a princıpio a sua esfera de um modo demasiadoestreito, em relacao ao dado, e que as concatenacoes dos nexosfundamentais ultrapassem a esfera considerada e se concentremnuma unidade sistematica mais ampla.

Isto quer dizer que uma ciencia se constitui estudando um grupode fenomenos, mas pode acontecer que entre esse grupo, e umoutro que esta ao lado nao haja, fundamentalmente, distincao al-

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guma. Entao voce acaba percebendo que aquilo tambem faz parteda sua ciencia.

Husserl diz que isso nao e um problema, ao contrario, voce ape-nas amplia o campo da ciencia. Por exemplo, no caso da Zoologia,e evidente que ela se desenvolveu estudando uma fauna europeia.So que existem outras especies de animais, totalmente diferentes,que voce nunca ouviu falar, e que representam desenvolvimen-tos que seriam inesperados em face daquelas especies de animaisque voce ja conhece. Ou seja, especies de animais que seguiramuma outra linha de evolucao, diferentes das especies que voce jaconhece. Isto nao quer dizer que eles devam ser objeto de outraciencia, porque essas diferentes linhas de evolucao que levarama constituicao dessas outras especies, sao baseadas nos mesmosprincıpios que fundaram a evolucao das especies conhecidas. As-sim, a estreiteza do campo nao e um problema.

Incomparavelmente mais perigosa e a confusao de esferas,a mescla do heterogeneo numa presumida unidade, sobretudoquando radica numa interpretacao completamente falsa dos obje-tos.

Podemos citar o exemplo de mesclas heterogeneas numa pre-sumıvel unidade. Se voces olharem qualquer mapa do mundo,anterior aos grandes descobrimentos, voces verao demarcados aEuropa, a Asia, um pedaco da Africa, em volta deles um montede agua, e para alem disso, a zona dos monstros marinhos. Istoquer dizer que a Geografia da Idade Media estudava tambem osmonstros marinhos. Para que uma ciencia possa dizer se para lade um certo limite geografico existem monstros marinhos ou nao,ela poderia utilizar os metodos da Geografia? Com o metodo daGeografia podemos delimitar se um determinado ser e monstruosoou e normal? E impossıvel saber disso por meio da Geografia.

Assim, quando a Geografia fala de “zona de monstros ma-rinhos”, ela esta colocando, dentro do seu objeto, uma ordem

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consideracoes que lhe e totalmente estranha. Quando isso acon-tece, fica muito difıcil voce desmentir o erro porque como apropria ciencia nao da criterios para voce decidir a questao, a fal-sidade daquilo nao pode ser averiguada pela propria ciencia queesta tratando do assunto. Entao, a mentira se propaga.

E o que acontece em Astrologia, se um astrologo le o mapadas suas reencarnacoes passadas ou futuras. A existencia ou naoda reencarnacao e assunto astrologico? Como poderıamos decidiressa questao por meio da Astrologia? Essas sao tıpicas mesclasheterogeneas de uma unidade presumida. Outro exemplo: quandoum astrologo, baseado no seu mapa, diz que voce e conservadorprogressista. A propria definicao do que seja conservador progres-sista escapa totalmente dos conceitos astrologicos.

A Antropologia pode dizer se uma raca e superior ou nao? O ra-cismo, ou o anti-racismo, pode ser fundamentado? Saber se algunshomens sao superiores a outros e um problema antropologico? Aciencia que estuda a variedade das culturas das especies humanasnao e a mesma ciencia que gradua as qualidades humanas. Um in-divıduo pode ser superior a outro sob determinado ponto-de-vista,por exemplo, moral, etico, etc. Assim, voce precisaria recorrer auma outra ciencia para resolver essa questao. Acontece que essaciencia nao existe. Nao existe uma ciencia que estuda a superiori-dade de um ser humano sobre o outro, sob todos os pontos-de-vistaao mesmo tempo. A Etica pode dizer que um sujeito e melhor queo outro. Mas, ela pode dizer se um indivıduo e mais bonito que ooutro? Ou mais forte? Nao pode. A clınica medica pode dizer seum indivıduo tem mais saude que o outro, mas ela pode dizer seum indivıduo e, moralmente, melhor que o outro? Todas as supe-rioridades e inferioridades conhecidas sao especıficas. Nao existea ciencia da superioridade geral.

Portanto, isso nao e objeto de conhecimento humano. Sendo as-sim, como e que a Antropologia pode discutir sobre isso? Quando

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voce diz que uma raca e melhor que a outra, voce esta falando me-lhor em termos gerais, e nao nesse ou naquele ponto. Se assimfosse, e evidente que uma raca e melhor do que a outra sob certosaspectos, e pior sob outros aspectos. Entretanto, quando se fala deuma superioridade geral, a pergunta e: o que determina essa supe-rioridade geral? Qual e a ciencia que estuda isso? Nenhuma. Nocaso, a Antropologia acambarca um objeto que nao e, nem da suaarea, e nem de qualquer outra. Qualquer debate sobre isso nao vaidar em nada.

Que um ideologo discuta sobre isso, tudo bem. Mas um cien-tista, perder um minuto discutindo sobre isso, e um absurdo. Issonao e materia cientıfica. Ademais, a pergunta “existe uma raca su-perior?”, e intrinsecamente contraditoria, porque uma raca e umadiferenca especıfica, e nao geral. Existe alguma superioridade ge-ral que possa ser devida a uma diferenca especıfica? Claro quenao! Se existe uma diferenca de tipos humanos, so pode haveruma superioridade — ou inferioridade — que esteja vinculada aessa diferenca mesma. Portanto, jamais podera ser geral. Entreseres da mesma especie, onde ha tipos diferentes, jamais poderahaver uma superioridade geral, sob todos os aspectos.

Isto e o que Husserl quer dizer com “a confusao de esferas”, quepode chegar ao ponto de uma ciencia tomar a seu encargo uma de-terminada questao que somente podera ser resolvida pelo saberuniversal. Pode acontecer, em outros casos, da ciencia simples-mente tomar a seu encargo um saber que depende de uma outraciencia, porque se referem a objetos que estao conectados entresi, por um tipo de nexo, que nao aquele que une os objetos dessaciencia. Isso e metasbases exaloguenos, ou seja, transposicao paraum outro genero. voce esta falando de um genero de coisas e,repentinamente, sem que voce perceba voce esta falando de umoutro genero de coisas, por exemplo, como no caso da Geografiada Idade Media, quando ela fala de caracterısticas geograficas e,

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de repente, ela esta falando de monstros marinhos.Uma transposicao para um outro genero, assim inadvertida,

pode ter os efeitos mais nocivos: fixacao de objetivos falsos; em-prego de metodos incomensuraveis com os objetos, confusao decamadas logicas, de modo que as proposicoes e as teorias funda-mentais, ocultas sob os disfarces mais singulares, vao perder-seentre series de ideias completamente estranhas, como fatores apa-rentemente secundarios, ou consequencias incidentais.

Em todos os debates cientıficos, nao-decididos, sempre existeuma coisa desse tipo. Um dos exemplos seria os debates em tornode condicoes de evolucao. Existe uma evolucao animal no tempo,de modo que as especies mais aptas vao se substituindo as especiesmais inaptas. Aptas, em relacao a adaptar-se a aquele ambiente emparticular. Acontece que a adaptacao ao ambiente em particularpode ser inadaptacao com outro ambiente em particular. Como oambiente ao qual uma determinada especie se adaptou, mediantetais ou quais alteracoes, pode, amanha, ser novamente alterado.Isso significa que a sobrevivencia do mais apto, como lei geral etambem auto-contraditoria.

Nao existe a aptidao geral. So existe aptidao especıfica para issoou aquilo, portanto, a sobrevivencia do mais apto jamais poderiaser uma lei geral para explicar todos os casos. Por exemplo, ospeixes sao muito mais aptos para viver embaixo dagua do que osseres humanos. Isso significa que quando a agua secar o peixemorre, a nao ser que ele se adapte a uma vida fora dagua. Isso, defato, aconteceu em certas regioes da Terra, onde secas prolonga-das acabaram fazendo com que certos peixes se adaptassem paraficarem fora dagua por muito tempo. Existe ate uma ilha ondeos peixes a atravessam pulando fora dagua. Para que isso ocor-resse, os peixes tiveram que perder uma serie de capacidades, e setornaram monstruosamente feios. Entretanto, a adaptacao a essacircunstancia em particular facilita a sua evolucao posterior, ou,

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ao contrario? A especie teve que se transformar tanto que, para seadaptar a uma determinada circunstancia, que depois ela nao podese adaptar mais a seguinte, porque senao ela morre. Se fosse as-sim, voce ve que a circunstancia, o clima, a vegetacao, etc., que aTerra ja passou por tantas alteracoes, que ficaria quase impossıvela sobrevivencia de quase todas as especies.

Portanto, podemos dizer que o princıpio de sobrevivencia dosmais aptos pode funcionar em certos casos, mas ele nao pode serum princıpio explicativo geral. Quem diz que em determinadascircunstancias os inaptos nao podem ser favorecidos por qualquercoisa? Existe uma evolucao no sentido da complexidade crescentedos organismos, mas essa evolucao, resultar do princıpio da so-brevivencia do mais apto, isso e quase impossıvel. A ideia de quedeterminados fatos da natureza, ou seja, o fato de que uma de-terminada especie sofreu certas alteracoes no curso do tempo, fazexplicar que se recorre a um princıpio geral, na verdade, vai com-plicar tudo formidavelmente. Talvez fosse mais facil apelar a unsdez ou quinze princıpios explicativos diferentes do que a um so.

A grande ambicao de Darwin foi oferecer uma explicacao paratodas as transformacoes sofridas por todas as especies ao longode todos os tempos. E uma teoria tao grande, tao ambiciosa, quejamais podera ser comprovada, nem desmentida, como alias o eate hoje.

Assim, quem disse que a ciencia da Biologia, considerada emsi mesma, poderia fornecer explicacao para a transformacao so-frida por todas as especies de animais? A fauna terrestre, no seutodo, nao esta so submetida as variacoes climaticas, geograficas,locais, mas as condicoes do planeta como um todo. Portanto, vocepode procurar explicacao terrestre enquanto queira. Ou voce vaiter que considerar o sistema solar como um todo, ou nao vai acharexplicacao alguma. Portanto, nao faz parte da Biologia terrestre,o dever de explicar a evolucao terrestre como um todo. Isso e

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uma metasbases exaloguenos. Isso e um problema de Biologiacosmica, e nao de Biologia terrestre. A entrada de um asteroidena orbita do nosso planeta pode provocar tais alteracoes que matemilhares de especies animais de uma vez so. Isso significa queessas especies estavam inadaptadas? O que adiantaria se adaptara um acontecimento fortuito? Se elas se adaptassem a essa brevealteracao estariam adaptadas para sempre.

A Biologia terrestre so pode explicar os fatos dentro dos ambitosterrestres. E claro que voce nao poderia explicar as transformacoesbiologicas sem apelar as transformacoes geofısicas, geologicas,climaticas, etc. Mas, isso e Biologia? Nem existe essa cienciaainda. E muito complicado. E querer dar um pulo maior que aspernas. Quando alguem levanta uma pergunta enorme como essa,ele so ira encontrar uma resposta metafısica. A teoria da evolucaoe uma teoria cosmologica. Depende de toda uma cosmologia. Porque o proprio Darwin nao percebeu que a pergunta era insoluvel?Talvez porque lhe faltassem dados para ele perceber que a questaoera maior do que ele imaginava. Talvez por ele olhar tudo comolhos de biologo.

Naquela epoca nao haviam viagens espaciais, as pessoas naotinham o habito de pensar a Terra colocada dentro de um sis-tema, embora soubessem disso. A imaginacao de Darwin era aterrestre, entao, a ideia de um conjunto, parecia sensato naquelaepoca. Hoje, e insensato. Hoje, temos uma consciencia de ecolo-gia cosmica. Teilhard de Chardin ja percebera que a ideia de umaevolucao terrestre pressupunha uma evolucao cosmica. Darwin,nem de longe havia pensado nisso. Com isso ele resolveu a per-gunta? Nao, ele so ampliou a pergunta.

Assim, esclarecer a teoria da evolucao em termos biologicos efixar um objetivo falso. A Biologia nao tem obrigacao disso. Nempode faze-lo.

Estes perigos sao mais consideraveis nas ciencias filosoficas do

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que nas ciencias da natureza exterior, nas quais, o curso de nossasexperiencia nos impoe divisoes nas quais e possıvel organizar aomenos provisoriamente uma investigacao frutıfera.

Vejam que, embora a Biologia tenha colocado um obje-tivo falso, ainda assim e possıvel voce continuar procedendo ainvestigacoes parciais sobre isso ou aquilo sem grandes danos. Ofato da Biologia nao poder resolver a questao da evolucao comoum todo nao impede que voce possa reconstituir a evolucao deuma determinada especie em particular. Ou seja, ainda que no fima investigacao toda va tomar um rumo completamente diferente,aquele pedacinho investigado continua valido dentro dos seus li-mites. Isto porque a investigacao que toma por base o mundo real,este mundo real nos impoe divisoes. Por mais que a resolucao daquestao da evolucao dependa de consideracoes de ordem da Eco-logia cosmica eu posso, por exemplo, reconstituir a evolucao daespecie cavalo porque o cavalo tem certas analogias com os outrosesqueletos de cavalos de outras epocas, e isso e suficientementedistinto do esqueleto dos tubaroes ou dos elefantes. E uma divisaoque o proprio real nos impoe.

Nas ciencias da natureza, as vezes, as divisoes dos seres estaotao claras que nao ha possibilidade de confusao. Porem, nasciencias filosoficas isso nao acontece. Nao ha experiencias paravoce verificar. Mesmo as investigacoes parciais dependem daorientacao do conjunto para serem bem sucedidas. Portanto, aquie preciso mais cuidado ainda. E, no caso, a Logica e uma cienciafilosofica.

3. As questoes discutidas. O caminho a empreender.As questoes discutidas tradicionalmente em relacao a

delimitacao da logica sao:

1. Se e uma disciplina teoretica ou pratica.

2. Se e uma ciencia independente ou subordinada.

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4 Prelecao IV

3. Se e uma disciplina formal ou considera tambem uma“materia”.

4. Se e a priori e demonstrativa ou empırica (a posteriori) eindutiva.

Propriamente so ha dois partidos: a logica e uma disciplinateoretica, independente, formal e demonstrativa; ou e uma tecno-logia que depende da psicologia.

Que diferenca faz a Logica ser uma disciplina teorica ou serpratica? Independente ou subordinada? Formal ou material? Apriori ou a posteriori, isto e, demonstrativa ou empırica? Qual aimportancia disto?

[ Olavo faz uma parada nos comentarios para discorrer sobre ainteligencia humana. ]

A inteligencia humana nao se divide. Nao existe inteligenciaespecıfica. So existe geral. Se o sujeito e burro em alguma coisa, eburro em tudo. Qualquer burrice especıfica que voce tenha e umadeficiencia geral. Se voce diz que tem uma incapacidade para aMatematica, eu digo que essa sua incapacidade lesara, por exem-plo, a sua capacidade narrativa.

O maximo que voce pode admitir e que voce tem um desenvol-vimento desigual nos diferentes setores. Voce nao pode consentircom uma incapacidade intelectual para nada. Os diferentes tiposde objeto nao existem separadamente uns dos outros. Uma inca-pacidade intelectual especıfica lesa um pouco todas as outras ca-pacidades. O que voce pode e aproveitar essa melhor capacidadede um objeto para desenvolver a capacidade que voce nao tem.

Voce tem que ser capaz em tudo, embora voce nao tenha igualinteresse por tudo. Voce nao precisa desenvolver realmente, masvoce tem que sentir que tem a capacidade de desenvolver o quevoce quiser. Por exemplo, o exercıcio de voce expor o que vocepensa sobre um assunto que voce ignora completamente. Se voce

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pensar realmente, se voce fizer uma cadeia dedutiva, partindo dopouco que voce tem, voce ve que, sempre o que voce falar, podeestar deslocado em relacao aos dados reais, mas manifesta um con-junto de possibilidades que e sensato. So quando voce tem isso eque voce pode compreender os dados reais. A pratica e baseadanisso. Porem, as pessoas nao fazem isso reflexivamente, e naoentendem que isso e uma lei universal.

Um assunto qualquer, no qual voce nao tenha uma conjecturarazoavel, voce nunca vai chegar a entender a realidade dele. Istoporque a imaginacao precede o raciocınio, entao se voce nao pre-para a imaginacao para aquilo, voce nao chega a compreender asignificacao dos dados para o entendimento.

O procedimento cientıfico e voce constituir toda a hipotese nasua cabeca, e quando voce pega os dados reais, e so voce tirar isso,ajustar aquilo, e pronto. Na verdade, a explicacao da producao dofato seria muito mais breve do que o imaginado. Se voce pensarsobre qualquer assunto que voce desconhece, em primeiro lugarvoce vai ver que voce conhece muito mais do que voce imaginava,e em segundo lugar voce vai ver que a imaginacao abre um ocopara o conhecimento entrar, senao o conhecimento desliza no va-zio e se perde. E como comer sem fome.

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17 de dezembro de 1992

[ continuacao dos comentarios da aula anterior sobre o3 do texto. ]Por que umas pessoas tomam partido de uma dessas questoes, e

outras tomam de outra? Em nome de que e com que fins? O quee uma ciencia teoretica, e o que e uma ciencia pratica? O que fazuma disciplina teoretica? Qual a finalidade dela?

Exemplo de uma proposicao teoretica: “Esta parede e branca”.A proposicao teoretica fala de alguma coisa sobre a realidade. Aforma da proposicao teoretica e, “Isto e aquilo”, ou, “Tal coisaacontece”. A proposicao pratica e condicional: “Para obter talefeito, voce faca assim”.

A mesma proposicao pode ser dita sob forma teoretica oupratica, por exemplo, “O quadrado da hipotenusa e igual a somados quadrados dos catetos” (proposicao teoretica); “Para obtero quadrado da hipotenusa, somam-se os quadrados dos catetos”(proposicao pratica).

Uma ciencia pratica enuncia uma regra. Ela nao faz umaproposicao sobre a realidade. Uma ciencia teoretica se expressaem proposicoes categoricas, e para uma ciencia pratica todos osjuızos dela sao condicionados, sao hipoteticos. Por exemplo, nummanual de televisao podem haver alguns juızos teoreticos: a TVe assim, tem isso, foi feita na epoca tal, etc. As instrucoes sao osjuızos praticos: “Se voce quiser ligar a TV, faca isso”, “Se quiser

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ajustar a cor, gire o botao”, etc. Isso nao e uma afirmativa sobre arealidade, isso e um juızo hipotetico, condicional.

E muito grave que um indivıduo que tenha formacao univer-sitaria nao saiba o que e ciencia teoretica e ciencia pratica. Umdiagnostico medico e teoretico: “Voce tem tal doenca”. A te-rapeutica, a prescricao medica, e pratica: “Se voce quiser se curar,tome o remedio tal”.

Existem ciencias praticas, inteiras, que nao sao nada mais doque a transcricao de uma ciencia teoretica para a formula hi-potetica, quando se trata de objetos de acao humana. A Geome-tria nao e so uma descricao das propriedades, mas a descricao deoperacoes possıveis. Idem para a Matematica: 2 + 2 = 4 e igual avoce dizer que, para obter 4, some 2 + 2 — vira uma regra.

Entretanto, nem toda ciencia pratica e uma transcricao diretade uma ciencia teoretica. Ha algumas que saem de outras fontes.Codigo de transito e um juızo pratico porque ele nao diz como otransito e realmente, mas diz o que voce deve fazer para obter umadirecao correta.

As pessoas geralmente pensam que qualquer coisa que se refiraa realidade e pratico. O pratico nao se refere a realidade, mas a suaacao. Numa coisa onde nao ha interferencia do indivıduo, nao hapratica alguma. O teoretico representa o que e, independente daminha acao. As pessoas pensam que o que e teorico nao se referea realidade, por exemplo, acham que dizer que o triangulo tem treslados, e pratico.

Vejam o que voces estudaram na faculdade e digam o que eteorico ou pratico. Artes Dramaticas: se voce estudasse todasmaterias teoreticas voce saberia a Arte Dramatica? E se estudassesomente as materias praticas? Em qual dos dois casos voce saberiamais? Qual e o objetivo do curso? A Escola de Artes Dramaticasensina, fundamentalmente, o que e alguma coisa, ou ela ensina afazer alguma coisa? No caso, aqui, predomina o aspecto pratico.

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Se voce sai da Escola de Artes Dramaticas sabendo toda a historiado Teatro, mas nao sabe fazer teatro, nao adianta de nada.

Medicina: a ciencia medica e, em si mesma, fundamentalmentepratica; Filosofia: e fundamentalmente teoretica — ela fala o quee; Biologia: e fundamentalmente teoretica — nas suas finalida-des; Economia: a Economia ensina a fazer o que? Nada. O ob-jetivo do curso se esgota no aspecto teoretico. Se o sujeito sabecomo funciona a sociedade economica, o que e a riqueza, o quee dinheiro, o que e capitalismo, etc., entao ele e um economista.Engenharia: e pratica. Se o indivıduo sai da faculdade sabendo oque e uma ponte, o que e uma maquina, mas nao sabe faze-los,ele nao e um engenheiro. Musica: e pratica. Voce saber o quee um instrumento, o que e uma musica, mas nao sabe como fun-ciona, nao faz de voce um musico. Fısica: e teoretica. Saber oque e materia, tempo, espaco, etc., faz de voce um fısico. Socio-logia: e teoretica. Administracao de Empresas: o sujeito tem quesair de la sabendo administrar uma empresa? Nao. e uma cienciateoretica. Ele aprende como funciona uma empresa. A pratica naofaz parte, nao e fundamental para se saber de Administracao deEmpresas. Ao encarar como parte real da vida do indivıduo, tudovai ser pratico.

Acontece que nao e a Economia que e pratica. Sou eu quemtenho que ter uma acao pratica para aprender Economia. O queeu estou interessado aqui e no conteudo da ciencia, e nao o queeu possa fazer com ela. A Engenharia, por exemplo, e pratica noseu conteudo. Ela ensina a fazer alguma coisa. Mesmo que vocenunca faca. Ja a Fısica nao ensina a fazer nada. O administrador deempresas nao precisa sair da faculdade sabendo administrar umaempresa. Quando ele compreendeu a teoria toda, ja sera suficiente.Administracao de Empresas nao vai ensinar voce como adminis-trar uma empresa, mas vai ensinar o que e uma empresa, comofunciona, etc. A pratica de administracao nao e transmitida ver-

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balmente. O aluno pode fazer um estagio para aprender como ateoria se comporta na pratica. A caracterıstica da ciencia pratica eque ela se expressa em proposicoes, em regras.

Geometria: e pratica, “para obter tal coisa, faca assim”. Psico-logia: e teoretica. Psicanalise: e pratica. Escola de Psicanaliseensina a fazer analise. E o psicanalista que nao sabe fazer analise,nao e psicanalista. No caso da Administracao de Empresas, aparte pratica da materia e quase intransmissıvel. O sujeito temque aprender no dia-a-dia. Se e intransmissıvel e porque naoha uma ciencia pratica correspondente. Nos casos onde o saberpratico e difuso, vago, cheio de possibilidades, aı temos um saberteoretico. No dia em que a Administracao de Empresas, toda, pu-der ser reduzida a uma serie de esquemas formulados e, uma vezseguidos, de um resultado x, daı ela sera uma ciencia pratica. AAdministracao de Empresas suscita problemas porque ela tem umobjetivo pratico, tem um ideal pratico, mas ela fica sempre aquemdesse ideal. Ela quer se transformar numa ciencia pratica, so queainda nao conseguiu, pois e uma ciencia nova.

Assim, que diferenca faz a Logica ser uma ciencia teoreticaou pratica? Se ela fosse uma ciencia teoretica, que tipo deproposicoes ela enunciaria? Que diferenca faz o princıpio de iden-tidade ser teoretico ou pratico? Faz uma diferenca brutal. Se vocediz que uma coisa e, efetivamente, igual a ela mesma, isso e umaproposicao teoretica. Sendo A = A uma proposicao teoretica,significa que voce deve raciocinar como se uma coisa fosse iguala ela mesma. E uma regra do raciocınio. Isso e uma proposicaopratica.

Uma coisa e voce afirmar a identidade de uma coisa com elamesma. Outra coisa e voce dizer que, conducao do raciocınio,voce deve proceder como se uma coisa fosse igual a ela mesmae, portanto, jamais diferente. Existe tambem, um outro princıpiochamado de nao-contradicao, onde uma coisa nao pode ser igual e

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diferente de outra, ao mesmo tempo. No caso do princıpio de iden-tidade ser considerado teoretico, ele e, por si mesmo, um princıpio.No caso dele ser considerado um princıpio pratico, ele e absorvidono princıpio de nao-contradicao. Ou seja, basta voce raciocinar demaneira nao-contraditoria, que o princıpio estara atendido. Mas,a Logica tem condicoes de emitir proposicoes teoreticas? Ou elatem que se limitar a emitir regras praticas? Se voce diz que temque atender as duas, voce admitiu que ela e uma ciencia teoretica,pois de toda ciencia teoretica voce pode tirar uma ciencia pratica.

Entretanto, que consequencias isso teria para a totalidade donosso conhecimento? Se eu raciocino logicamente, e o meu ra-ciocınio logico esta fundado num saber teorico segundo o qualuma coisa e igual a ela mesma, esse princıpio de identidade fun-damenta tudo o que eu disse para adiante. Se eu raciocino apenascom base numa regra pratica de nao-contradicao, esta regra praticagarante a coerencia logica do restante, mas nao fundamenta. Ecomo se fosse tudo um vasto conjunto hipotetico.

Nao se pode confundir pratico com empırico, com aplicavel.Sao questoes completamente diferentes. Um conhecimento podeser pratico, e a priori. As condicoes a priori nao dependem da ex-periencia. E por inducao que voce faz geometria, ou seja, tirandoda pratica, da experiencia real, ou ao contrario, e a priori que vocesabe que ha um triangulo retangulo, que o quadrado da hipotenusae igual a soma dos quadrados dos catetos? E a priori ou a posteri-ori?

Uma ciencia teoretica diz que as coisas sao realmente: um qua-drado tem quatro lados realmente. Uma regra pratica diria o se-guinte: faca as contas como se o quadrado tivesse quatro lados.Ou seja, uma ciencia pratica nada fala sobre a realidade, apenassobre o resultado possıvel.

Assim, quando se comeca a discutir a questao da Logica, as al-ternativas que se apresentam sao sempre essas quatro citadas por

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Husserl. Se voce faz um raciocınio sobre um problema para sa-ber o que aconteceu, para saber o que e, o problema e teoretico.Se e para saber o que voce vai fazer, qual e a decisao a tomar, oproblema e pratico. Entretanto, para voce decidir o que vai fazer,voce precisa saber totalmente o que vai acontecer? Nao. Mui-tas decisoes sao tomadas, as vezes, precisamente porque voce naosabe nada. Sao duas formulas de raciocınio completamente dife-rentes, embora haja uma relacao entre elas.

Porem, se nao sabemos se um determinado conhecimento eteoretico ou pratico, nos simplesmente nao sabemos como nos po-sicionar diante dele. Nao sabemos o que esperar dele. A praticacomprova a teoria, quando ela deriva da teoria. E o caso da Ge-ometria, onde o saber pratico e uma simples conversao do sa-ber teorico, desde proposicoes categoricas, para proposicoes hi-poteticas. Entao, resultado pratico confirma o teorico. Entretanto,isso nao vale para o caso de outros saberes.

Uma teoria pode ser falsa, mas nao deixa de ser uma teoria. Seeu digo que os gatos voam, isso e uma proposicao teoretica. Seeu digo: “Para que os gatos voem, instalem neles um par de asas”,isto e uma proposicao pratica — e ambas sao falsas.

Somente a proposicao teoretica pode ser verdadeira ou falsa. Apratica nunca e verdadeira ou falsa. Ela pode ser correta ou in-correta. Se ela e condicional, nada afirma sobre a realidade. Emprincıpio, qualquer proposicao da qual voce possa dizer que elae verdadeira ou falsa, ela esta colocada como teoretica. Quandouma pratica qualquer deu errado, voce investiga o por que, poisvoce esta esperando uma resposta teorica. Quando a pratica con-firma a teoria? Quando o nexo entre o saber teoretico e o saberpratico faz parte da propria teoria. Isso e muito importante. Porexemplo, o motor a vapor foi construıdo cem anos antes de que sesoubesse por que ele funciona. Nao havia teoria. No caso, a teoriado sujeito estava completamente errada. Ele nao tinha a teoria cor-

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respondente. A maior parte dos inventos tecnicos do mundo mo-derno foram assim. Nos imaginamos que toda a tecnica modernaderiva da Ciencia moderna. Vejam que todos os inventos feitospelos primeiros cientistas modernos — Galileu, Newton, etc. –,as invencoes das maquinas, todas elas eram apenas instrumentosde observacao cientıfica. Instrumentos para facilitar a investigacaoteoretica. A unica finalidade pratica desses inventos eram facilitara propria Ciencia teoretica. Nao havia nenhuma finalidade pratica.O saber e teoretico ou pratico em relacao ao seu conteudo, e naoao seu possuidor.

Voltando ao texto, uma coisa e a Logica como saber, que fala dealguma coisa real. Outra coisa e a Logica como tecnica de fazeralguma coisa. Segunda questao: a Logica e uma Ciencia indepen-dente? Se voce diz que a Logica e uma ciencia que estuda o pensa-mento, entao o conhecimento da Logica depende do conhecimentodo que e pensamento. Assim, a Logica dependeria da Psicologia.Entao ela nao seria independente. Assim, que a Logica faca parteda Psicologia, e uma decorrencia necessaria de qualquer definicaoda Logica que implique a palavra pensar, ou, pensamento, mas senos dissessemos que a Logica e a ciencia que trata da coerencia,independentemente dos pensamentos terem sido pensados ou nao.Ou seja, independentemente de alguem ter pensado tal coisa ounao, se pensar assim esta coerente, e se pensar assado, esta co-erente. Isso depende de um conhecimento do pensamento real?Nao. Por exemplo, para voce saber que uma conta de 2 + 2 sejaigual a 4, para voce ter certeza de que essa conta esta certa, e deque o resultado 5 estaria errado, e preciso que voce conheca o pro-cesso psicologico pelo qual se pensa tudo isso? Nao, porque senaoa Matematica seria um ramo da Psicologia. Ou seja, muito antesque alguem se lembrasse de perguntar como e que nos pensamos,muito antes de existir a Psicologia, ja existia a Aritmetica. Ela naopoderia existir se dependesse da Psicologia.

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Porem, nesse segundo caso, a Logica seria uma ciencia in-dependente? O que e coerencia? E a nao-contradicao? Bastanao ser contraditorio para ser coerente? Duas proposicoes saocoerentes, nao so quando elas se exigem mutuamente. Seria anao- contradicao e implicacao da interdependencia. Por exemplo,quando voce diz que todo homem e mortal, e Socrates tambem ehomem, necessariamente ele sera mortal. Isto e uma implicacaorecıproca. Voce nao pode afirmar as duas primeiras sentencassem que elas exijam a terceira sentenca. Voce nao pode afirmara terceira sem que ela se baseie nas duas anteriores. Porem, anao-contradicao e a propria identidade, e uma maneira de expres-sar a identidade. E o princıpio de identidade e teoretico, ou epratico? Se voce dissesse que ele e pratico, o que aconteceria coma Logica? Se voce disser que o princıpio de identidade e pratico,entao ele e uma regra do bem-pensar, o qual, para ser aplicado, naodepende de mais nenhum outro conhecimento alem dele mesmo.Entao, a Logica seria uma ciencia pratica e independente.

E se voce disser que o princıpio de identidade e teoretico? Umacoisa e igual a ela mesma e uma afirmacao sobre todas as coisasreais, e sobre todas as coisas possıveis. Isto nao e uma afirmacaode ordem metafısica ou ontologica? Nesse caso, a Logica e depen-dente de uma ciencia metafısica.

Assim, nos temos a primeira alternativa: teoretica e pratica. Etemos a segunda alternativa: dependente e independente. No casoda dependencia, nos temos duas dependencias fundamentais: de-pendencia da Psicologia, ou da Metafısica. Se eu digo: a Logicae uma ciencia da coerencia entre as verdades, entao ela e umaciencia teoretica, fundada na Metafısica. Esta questao decide odestino do mundo ha seculos. Todas as posicoes que as pessoas to-mam em funcao de quaisquer problemas estao determinadas numadecisao previa a respeito deste ponto. E a posicao que voce tomarcom relacao a este ponto determinara o restante do seu pensamento

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pelo resto da sua vida. Isto sera grave se para voce os seus pensa-mentos sao importantes. Se eles forem irrelevantes, entao nao temimportancia alguma. Por exemplo, o sujeito que vive inteiramentesegundo os habitos do seu mundo, do seu centro de referencia.Claro que ele tambem tem opinioes, mas ele jamais age segundo aopiniao dele. Entao, a opiniao dele e irrelevante. Ou seja, a quasetotalidade da humanidade nao decide coisa alguma jamais. Naoprecisa decidir. Ja decidiram por ele. Assim, ele pode ter qualqueropiniao. Pode achar que a Logica e teoretica ou e pratica, ou queo quadrado e redondo, tanto faz.

As opinioes sao importantes quando o indivıduo lhes da im-portancia pratica. Se a sua opiniao nao e ouvida por ninguem,nem mesmo por voce, entao voce pode ter qualquer opiniao. Adiferenca, na escala dos seres humanos, entre os inferiores e os su-periores, e esta. O homem inferior e aquele cuja opiniao, cujo pen-samento, e irrelevante para ele mesmo. Embora ele goste da suaopiniao, ele pode ate defende-la, mas ele nao pretende realmenteagir segundo aquilo que ele pensa em nenhum momento. Ele pre-tende, as vezes, usar o pensamento como uma especie de disfarcepara justificar, a posteriori, aquilo que ele ja fez. Ou seja, o pen-samento nao tem utilidade nenhum para essa pessoa, e colocadonela como se fosse um luxo. Talvez, se colocasse um disquete ecomputador nessa pessoa ela funcionasse melhor.

Vejam, por exemplo, que a Terra esta passando agora por umprocesso de modernizacao da economia, ou seja, implantar ocapitalismo de modo global. Nao pode haver capitalismo semque haja condicoes sociais e culturais que permitam o capita-lismo. Isto quer dizer que muito antes de voce introduzir asmodificacoes economicas que produzirao esse capitalismo mo-derno, voce comeca a introduzir as modificacoes culturais e psi-cologicas para isso. Existem orgaos internacionais que estudamisso, e que planejam a mudanca de mentalidade das nacoes sub-

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desenvolvidas para que ingressem no capitalismo. Isso significavoce suprimir determinados valores, e colocar outros. Portanto,mudar a conduta, os sentimentos, a imaginacao, os sonhos, o sub-consciente das pessoas. Isto e planejado por cientistas sociais, enao nos interessa julgar se isto e bom ou nao, mas o fato e queestao fazendo. O que importa e: voce tem interesse real em saberquando uma mudanca de opiniao, de gosto, sua, foi planejada so-cialmente ou aconteceu espontaneamente? Como que um habitoque antes era considerado negativo, de repente, entra no universode uma pessoa? E uma mudanca radical, porem nao percebida.

Por isso e que a maior parte das pessoas nao tem, propriamente,gostos pessoais. Nao tem nenhum conteudo pessoal. Tudo vemde fora. Ha alguns sujeitos que se identificam com aquilo, no mo-mento, e se voce o contraria, ele se sente ofendido no seu ıntimo.Voce violou a liberdade dele. Isto e um processo que acontecedentro de nos, diariamente. Assim, eu nao gostava de uma coisae amanheci gostando. Eu nao tolerava tal coisa e, de repente, eunao ligo mais. Por que mudou isso em mim? Foi uma livre esco-lha? Eu pensei, meditei, ou fui arrastado por uma onda de imagensque vem da sociedade? E essa onda de imagens, ela e um produtoespontaneo da convivencia social, ou foi planejada num escritorioem Nova Iorque? E no caso de eu perceber que foi planejada, euconcordo com esse planejamento ou nao? Eu tenho condicao deescolha?

O Brasil todo esta passando por este tipo de transformacao, eas pessoas, inclusive letradas, entram nessa corrente sem perceberque estao sendo levadas. Portanto, jamais se posicionam conscien-temente. Nao estou dizendo que e para combater, para contestar.Eu, pessoalmente, sou a favor desta transformacao, mas voce sabese voce e? Voce poderia ser contra!

Para o indivıduo que amanhece gostando do que ele nao gos-tava, sem perceber, as ideias dele nao tem importancia alguma.

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O seu pensamento, tudo o que voce pensa, e baseado apenas numconjunto de regras, numa tecnica mental, mais ou menos arbitraria,mais ou menos convencional, ou, ao contrario, expressa uma re-alidade? Voce e um computador que pensa segundo regras ar-bitrarias, ou voce e um ser livre, pensante, auto-consciente, capazde captar as verdades? Para mim, este e o problema maximo. Eunao gosto de pensar nada, nao gosto de gostar de nada, sem queeu possa dizer: fi-lo porque qui-lo. Eu quero ser um sujeito livre eresponsavel pelas minhas acoes, e saber que fui eu quem fez. Naogosto de ser manipulado pelas costas. Mesmo porque, voce podeacabar pagando pelo erro dos outros.

A sociedade nao e tao maligna assim que te impeca de saber detudo isso. Ela deixa voce saber dessas coisas, por exemplo, atravesde livros publicados. No entanto, que uma massa de pessoas maisordenadas, um pouco mais conscientes, de pessoas trabalhadoras,nao queira saber disso, da para entender. Que as pessoas que temum certo peso, uma certa autoridade, por exemplo, chefes de pe-quenas empresas, tambem nao queiram saber disso, ja comeca aficar ruim, mas ainda e toleravel. Mas, que a intelectualidade naoqueira saber disso, aı ja e demencia! Nao e possıvel que um paısseja inteiramente determinado desde fora na sua vida mental, nasua vida ıntima. E uma nacao que nao existe. E um sem-caratertotal, teleguiado completo. Por exemplo, aqui, quando um intelec-tual resolve levantar e defender as reivindicacoes do movimentonegro, do movimento gay, das criancas de rua, etc., ele acha queesta exercendo a sua liberdade criativa, se posicionando contrauma sociedade que o oprime. Ele nao esta nao. Ele esta obe-decendo a um programa.

Urge, para certos organismos multinacionais, trocar todo o re-pertorio de ideias da nacao brasileira, da classe letrada brasileira,mudar toda a tematica, em uma decada, e esta mudando com umafacilidade impressionante. E muito importante que certos valo-

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res tıpicos de sociedades protestantes sejam assimilados no con-texto catolico brasileiro. E isto esta sendo feito. E muito impor-tante criar uma sociedade individualista e reivindicante, onde to-dos os grupos estejam contra todos. Isto porque o grande inimigodas multinacionais chama-se Estado, Unidade Nacional. Precisamacabar com isto, no entender delas. Nao estou contra elas, poisacho que a luta e um processo inevitavel.

Assim, tem que haver uma situacao onde ninguem possa falarem nome do paıs como um todo. Voce nao acha estranho que osmeninos de rua facam um movimento de reivindicacao no mesmoplano que, por exemplo, os juizes federais fazem movimentos dereivindicacao porque se sentem injusticados, porque eles ganhamapenas 50 milhoes de cruzeiros por mes, e o funcionario equiva-lente ganha 65 milhoes? E voce ouve o menino de rua falando, eouve o juiz federal falando. Estao os dois igualmente indignadoscom a injustica. voce acha que isso acontece naturalmente? Voceacha que isso seria possıvel, no Brasil, a uns quinze anos atras?Uma greve de altos funcionarios?! Nao aconteceria jamais. Qual-quer um teria vergonha de fazer isso. Hoje ninguem tem — porque? Porque reivindicar e bonito, e um dever que qualquer umtem.

Sao transformacoes desse tipo, que acontecem tao lentamente,que voce nem percebe. As vezes esses planejamentos sao feitoscom cinquenta anos de antecedencia, e vao sendo corrigidos otempo todo. Voces tem ideia de quanto os Estados Unidos inves-tem em educacao superior para criar tecnicas para obter isso? Saomuitas pessoas envolvidas. Vejam, por exemplo, como a esquerdabrasileira assimilou rapidamente o discurso contra a corrupcao. Anossa esquerda sempre foi, tradicionalmente alheia ao nosso pro-blema da corrupcao. Corrupcao era assunto da direita, da UDN.E a esquerda, naturalmente, achando o capitalismo uma coisa cor-rupta em si mesma, nao podia achar que o combate a caso isolados

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de corrupcao fosse uma coisa importante. Vejam que em menosde tres anos a esquerda inteira apareceu com a bandeira contra acorrupcao. Ninguem discutiu se isso era importante ou nao. Comose faz isso?

Nao estou dizendo que isso seja errado, mas e errado quando aclasse letrada engole as coisas sem examinar. Como que a menta-lidade do movimento operario foi passando para as outras classessociais? Hoje em dia reivindica-se tudo. Quando voce entra nomecanismo da reivindicacao, voce ja esta perdido. Voce aceitoua regra do jogo. Voce se proletarizou voluntariamente. Voce fezdo outro o seu patrao. Por exemplo, pedir aumento, para mim eum absurdo. Eu teria vergonha. Se for o caso de pedir aumento,eu prefiro pedir demissao. Se o sujeito nao esta pagando o que ejusto, o que e digno, e eu estou sendo aviltado, eu nao vou recla-mar. Nos reclamamos com uma pessoa que tem espırito de justica.Com ladrao nao se reclama nada. Voce convive com o ladrao eainda quer que ele compreenda o seu problema?! Mas, isso, pensoeu.

O jornalismo e considerado profissao liberal. E, profissional li-beral nao recebe salario, recebe honorarios, pagamento honorıfico.Se o sujeito, tendo muito, me paga pouco, ele nao esta me explo-rando, ele esta me desonrando. Com exploracao de mao-de-obravoce faz uma greve e o sujeito te paga mais — voce negocia. Noentanto, voce negocia com quem te ofende a tua honra? Nao! Seele esta me desonrando, no mınimo, voce parte para um duelo.

Porem, dessa proletarizacao da classe media, quem nao re-clama? Comecaram a reclamar na hora que essa proletarizacaocomecou a doer no bolso. Porem, antes dela atingir o seu bolso,ela ja tinha atingido a alma! As pessoas estavam indefesas contraa proletarizacao porque ja tinham mentalidade de proletarios. Pri-meiro voce adquire uma mentalidade de proletario, depois e quevoce reclama que se proletarizou.

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Assim, isso sao transformacoes psicologicas muito graduais,mas, as vezes, muito rapidas e que nao sao sequer discutidas. Porexemplo, hordas de pessoas que saem da Igreja Catolica, que di-zem ser repressiva, para entrar numa outra seita religiosa. Assim,ele nao aceitavam aquela repressao, e vao para outra, as vezes milvezes mais repressiva — por que? Porque algo foi feito para quevoce chegasse a esse resultado. Voce pensa que esta fazendo umacoisa, mas na verdade esta fazendo outra. E como o burro e a ce-noura. O burro acha que esta indo atras da cenoura. Voce, que posa cenoura la, sabe que esta pondo o burro para puxar a carroca.

Se voce acha que tudo o que e verdadeiro, esta na esfera dopratico, e a teoria nao se refere a nada, o que acontece com o seupensamento? Voce age primeiro para pensar depois. Voce so podeir por inducao. Se o pensamento teoretico nao tem o seu vigorproprio, voce tem que, primeiro, entrar na pratica. Quase todomundo pensa assim.

Se voce nao tem uma classe letrada que esteja consciente dissotudo, capaz de identificar mudancas psicologicas nela mesma,voce nao tem autonomia de pensamento. Voce e totalmente hip-notizado, comandado. Eu posso ate aderir a essas mudancas, masso depois de pensar. Essa e a diferenca entre o sujeito, para quem,o seu pensamento tem importancia, e aquele que somente acata osacontecimentos na pratica.

Assim, se voce disser que a Logica e apenas uma cienciatecnica, um saber tecnico, para o pensamento obter um determi-nado resultado, aı segue-se uma serie de consequencias. Entre-tanto, e preciso saber a importancia que isso tem para voce.

Nao ligar para nada e proprio do sujeito que esta liquidado. E oultimo estagio, ele esta na rale, ele nem liga mais se ele come ou senao come, se morre... A medida que voce vai subindo na escala depoderes, e na escala de qualidades humanas, as coisas comecama se tornar importantes. A quintessencia dessa importancia, seria

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como a pureza de um ritual. Se voce errar mil vezes, voce tem querecomecar mil vezes. Voce sabe a importancia daquele ponto, sabeas imensas consequencias que derivam daquilo. E isso e muito im-portante. Se nos consideramos que nos so temos o direito de teressa exigencia caso ocupemos os postos de mando na sociedade,e porque ja nos colocamos como rale. Se voce acha que pensar eexaminar as coisas e para o patrao, para o chefe, aı nao tem maisjeito. Prestem atencao que, se voce pensar dessa maneira, seria omesmo que voce cuspir na sua propria cara. Para o cientista so-cial que faz o planejamento das mudancas sociais que irao ocorrerno Terceiro Mundo, tudo isso e muito importante. As vezes, aFundacao Rockfeller paga um sujeito, durante anos, so para elepensar uma coisas dessas, porque isso e muito importante para oconjunto da coisa. Se o intelectual, o estudante brasileiro, achaque isso e uma questao que para ele nao tem importancia, que so-mente as pessoas que tem poder e que tem que pensar nisso, issoe uma coisa tragica.

A exigencia com um rigor, ate uma elegancia, da inteligencia, euma exigencia necessaria. Se voce espera que as pessoas, primeirote coloquem numa posicao social superior, para daı voce ser umaristocrata, voce nao sera aristocrata jamais. Se voce pensa assim,voce esta confundindo aristocracia com dinheiro no bolso. Se oconhecimento nao vale nada em si mesmo, e vale so pelo talao decheques, entao ele realmente nao vale nada. Que o sujeito do talaode cheques pense assim, eu entendo, mas que o proprio intelectualtambem pense assim... Que o ladrao roube, eu entendo. O que eunao entendo e que voce ofereca o seu bolso.

Vejam que a opiniao de um unico filosofo vale mais do que mi-lhares de tiros dados por todos os exercitos, porque ele vao dartiros por causa da consequencia dessa opiniao. A partir do mo-mento onde, na Renascenca, a classe cientıfica desistiu da ideiagrega da Ciencia como uma especie de visao global que levava a

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uma perfeicao humana, desistiu do aspecto etico da Ciencia, asconsequencias disso foram monstruosas, e se prolongam ate hoje.E por causa disto que o mundo tem a sua forma de hoje, tem ocomunismo, o nazismo, o capitalismo, etc. Se nao tivesse aconte-cido essa desistencia, nao teria acontecido nada disso tambem. Asconsequencias sociais, polıticas, dessas ideias filosoficas, sao demuito longo prazo.

A Historia e como se fosse uma roda que gira, e ela tem umcentro que a faz girar. Esse centro e como se estivesse permanen-temente pegando fogo. Se voce chega perto dele, voce queima osdedos, mas e aı que voce se torna gente mesmo. De outro modo,voce esta rodando e os outros estao fazendo o que querem.

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18 de dezembro de 1992

Nos vimos entao as quatro alternativas. A terceira questao esaber se a Logica e uma disciplina formal, ou se deve tomar oconhecimento como uma “materia”.

Aristoteles dividia a Logica em duas partes: a formal e a mate-rial. Existe a Logica material, que hoje nos chamamos de a teoriado conhecimento. O que significa a Logica ser formal ou material?Que diferenca faz?

Vamos ler um pouco mais e depois retornamos a esta questao.Propriamente so ha dois partidos: a logica e uma disciplina

teoretica, independente, formal e demonstrativa; ou e uma tecno-logia que depende da psicologia.

Essas alternativas que existiam no tempo de Husserl, hoje, janao sao somente essas duas. Existem outras possibilidades queveremos um pouco mais adiante. Temos que entender esses con-ceitos dessas alternativas para seguir adiante.

A priori e demonstrativo, seria como a Geometria: partindo demetodos postulados, voce faz toda a demonstracao a priori, semdepender da experiencia. A parte a priori seria a parte que e evi-dente. Embora a priori e evidente nao queiram dizer a mesmacoisa, pois nao se identificam. A priori e quando independe daexperiencia, ou seja, por mera analise dos conceitos dados voceja obtem aquele conhecimento — como em Geometria; e pordeducao.

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Em Geometria voce da o conceito de uma figura e, analisandoesse conceito, voce descobre as propriedades daquela figura semprecisar de investigar outra figuras na realidade. Se for empırico,ao contrario, o conceito nao contem tudo. Por exemplo, se eu tedou o conceito de leao, desse conceito voce consegue descobrirquantos meses e a gestacao de uma leoa? Nao. Voce precisariaobservar a leoa por outro meio que nao seja o proprio conceito.Entretanto, do conceito de angulo voce deduz todas as proprieda-des do triangulo. Nem todas elas sao evidentes a primeira vista.

Quando se diz que o conhecimento a priori, analıtico, nadaacrescenta ao conceito, nao quer dizer que ele nada acrescente aoseu conhecimento. Ao contrario, na Geometria, frequentemente,voce ve que por analise voce chega a descoberta de proprieda-des que voce jamais teria suspeitado num primeiro momento. Adeducao e uma investigacao, so que ela investiga tomando comoobjeto, unicamente, os conceitos dos entes que estao dados no pro-blema. No conhecimento empırico, o conceito nunca resolve to-talmente o problema. O conceito de leao nao abrange todas aspropriedades de leao. Mas o conceito de triangulo, abrange.

Assim, voces acham que a Logica e a priori e demonstrativa,ou empırica e indutiva? Pela Psicologia voce tem o conhecimentodos processos reais do pensamento. A definicao do pensamentoja contem todas as propriedades do pensamento? Pela analise doconceito do pensamento voce descobre como funciona a memoria,a imaginacao, etc.? E claro que nao. Voce precisa de outros es-tudos. Se a Logica dependesse da Psicologia, entao nos necessi-tarıamos de um estudo empırico. Ver como as pessoas realmentepensam, e daı, tirando por inducao, voce ter as leis do pensamentocorreto. No caso dela ser uma disciplina a priori, dados certos con-ceitos, todo o conteudo da Logica se seguiria por mera deducao.

Entretanto, Husserl diz que, de fato, so existem dois partidos,e a discussao se dividia nessas duas correntes: uma que dizia

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que a Logica e uma disciplina teoretica, independente da Psico-logia, e formal e demonstrativa e, outra que dizia que a Logica euma tecnica que depende da Psicologia. Nao esta excluıdo queseja uma disciplina formal e demonstrativa, porem, de caratertecnico, pratico, que e a posicao que surge mais tarde com a Logicaanalıtica (posterior a obra de Husserl). A Logica analıtica surgea partir de determinadas obras que sao anteriores a Husserl, maselas so se desenvolvem depois dele. Para ela, a Logica analıtica euma disciplina puramente formal, sem carater teoretico, mas ape-nas tecnico. Se fossemos discutir essa questao hoje, terıamos queincluir essa alternativa.

Nao aspiramos propriamente a tomar parte nessas discussoes,propomo-nos aclarar as diferencas de princıpio que atuam nelase os objetivos essenciais de uma logica pura. Tomaremos comoponto de partida a definicao da logica como uma arte e fixaremosseu sentido e sua justificacao.

Husserl nao vai, propriamente, se posicionar ante essas alterna-tivas, mas ele vai partir para uma definicao corrente.

Que a Logica seja uma disciplina teoretica ou pratica, o fato eque ela e uma disciplina pratica tambem. Ninguem discute queexista uma tecnica logica. So que uns dizem que ela tem fun-damento teoretico, e outros dizem que nao. Ela parte da definicaocorrente, unanime, da Logica como tecnica e, analisando esse con-ceito, ele vera se consegue, a partir daı, fundamentar uma Logicapura, teoretica, mas tambem, formal.

Que isto relaciona-se naturalmente a questao das basesteoreticas desta disciplina e de sua relacao com a psicologia. Estaquestao coincide essencialmente com a questao cardinal da teoriado conhecimento, que concerne a objetividade deste.

Ele diz que a questao da natureza logica, e das suas relacoescom a Psicologia, se identificam com a questao central da teoriado conhecimento, que e a questao da objetividade, da validade, do

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conhecimento. Por que isso acontece? Por que a decisao quantoa natureza da Logica afeta a resposta que nos vamos dar a estaquestao da teoria do conhecimento?

O resultado de nossa investigacao sobre este ponto e a obtencaode uma ciencia nova e puramente teoretica, que constitui o funda-mento mais importante de toda arte do conhecimento cientıfico e euma ciencia a priori e puramente demonstrativa. Com o que ficaraadotada uma posicao clara face as questoes colocadas.

Husserl vai chegar, em ultima analise, a conclusao de que aLogica e uma disciplina formal, porem, teoretica, a priori, e pu-ramente demonstrativa. Portanto, tambem uma ciencia indepen-dente.

Capıtulo IA LOGICA COMO DISCIPLINA NORMATIVAE ESPECIALMENTE COMO DISCIPLINA PRATICANeste capıtulo ele vai ver a definicao corrente da Logica como

tecnica, como arte, e a partir desta definicao, colocar essas mes-mas interrogacoes, e qual e a relacao entre a Logica, assim defi-nida como tecnica, e a Psicologia. Ou seja, se a tecnica logica, talcomo ele define, tem um fundamento psicologico ou nao, e se eladepende desse fundamento psicologico.

6.1 4. A imperfeicao teoretica dasciencias particulares

A mestria com que um artista maneja seus materiais ou apreciaas obras de arte, so por excecao se baseia num conhecimentoteoretico seguro das leis que prescrevem ao curso das atividadespraticas, sua direcao e sua ordem, e determinam os criterios valo-rativos.

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O sujeito sabe fazer alguma coisa e voce pergunta: “Qual e ofundamento teorico e pratico disso que voce faz?” Na maioria doscasos voce vai ouvir: “Nao sei!”

Por exemplo, no caso dos escritores, a grande maioria nao vaisaber explicar qual e a tecnica que ele utilizou para escrever deter-minado livro. No momento da realizacao da sua obra, o escritor“inventa” um jeito, uma tecnica, conforme as coisas vao aconte-cendo. O que ele pode ter aprendido anteriormente em termos detecnica nao ajuda em quase nada no momento de escrever umanova obra. A tecnica de cada escritor so serve para o proprio es-critor.

No entanto, ao se examinar os livros — a posteriori –, voce veque ali ha uma tecnica, e ela, por sua vez, tera algum fundamentoteorico, mesmo que seja implıcito. O fato e que no momento queo escritor esta executando o trabalho, ele nao esta pensando nisso.E totalmente inconsciente.

Isto nao sucede so nas belas-artes, mas tambem a criacao ci-entıfica. Nem mesmo o matematico, o fısico ou o astronomo ne-cessitam chegar a inteleccao das raızes ultimas de sua atividade. Ocientista nao pode ter a pretensao de haver provado as premissasultimas de suas conclusoes, nem de haver investigado os princıpiosem que repousa a eficacia de seus metodos.

Ele diz que essa inconsciencia do aspecto teorico nao existe sona criacao artıstica, mas tambem na investigacao cientıfica. Namaior parte dos casos, o sujeito procede a sua investigacao ci-entıfica sem ele estar, propriamente, consciente de qual e o fun-damento teorico-cientıfico a que ele se assenta. Recorre-se a de-terminados metodos como, por exemplo, a inducao. A inducao eutilizada em 99% das investigacoes cientıficas, mas se voce per-guntar ao sujeito por que a inducao funciona, ele nao vai saberresponder. Peguem, por exemplo, uma pesquisa qualquer. Vocechega a conclusao de que o fumante passivo aspira 60% da fumaca

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do fumante passivo, logo ele tera uma probabilidade x ou y de con-trair tais doencas, as quais estariam sujeitos os proprios fumantesativos. Por que isto te persuade? Qual e o fundamento da vera-cidade desse teu raciocınio? Na quase totalidade dos casos naosaberao a resposta.

Acontece que na criacao artıstica isso nao tem um grau de pro-blema maior porque o trabalho do artista se esgota na hora que eletermina a obra. Essa obra nao sera prosseguida. Isso e muito im-portante. No caso da Ciencia, isso e imperdoavel, porque aquiloque cada cientista descobriu sera usado como fundamento de umapesquisa posterior. E, se voce nao sabe o fundamento da pri-meira pesquisa, entao a duvida se perpetua. Isto quer dizer que osmetodos e conceitos usados normalmente na Ciencia, que sao fun-damentos da veracidade dela, nunca estao perfeitamente aclara-dos na pratica, e as pessoas continuam confiando nesses metodos,ate por uma questao de habito. As pessoas nao tem uma cer-teza pessoal a respeito daquilo. Tambem acontece de que quandovoce vai investigar esses fundamentos voce descobre que eles naosao tao fundamentados assim. Para um sujeito que entenda umpouco do metodo de desenvolvimento cientıfico, a maior parte dasinvestigacoes cientıficas, sobre tudo e qualquer coisa, sera consi-derada muito insatisfatoria.

E a estatıstica? A estatıstica e uma formalizacao matematica dainducao. Qual e o fundamento teorico da inducao? Ha o funda-mento metafısico, que e a homogeneidade do real onde na maiorparte as coisas que se passam de uma determinada maneira ten-derao a se passar da mesma maneira nos casos restantes. Por queno ambito do mundo real as coisas nao poderiam se passar semprena base da excecao? Por que a homogeneidade tem que imperar?Ou seja, se tais fatos se passam assim, em 80% dos casos, por quetem que se passar da mesma maneira nos outros 20%?

Quando voce vai examinar por que isso funciona, voce ve que

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para se ter uma certeza absoluta de que esse raciocınio tem funda-mento, seria necessario recorrer a um pressuposto de ordem me-tafısica, para saber que o real e homogeneo. Que o real e ho-mogeneo, pode ate ser contestado. E uma premissa metafısicacomo qualquer outra. A maior parte dos indivıduos que recorrea argumentos estatısticos, eles nao tem ideia de que eles estao fun-dados numa metafısica. Eles acham que aquilo e uma exigenciadecorrente do proprio fato. Acontece que os fatos jamais saoestatısticos em si mesmos. Todo e qualquer fato que acontece,so acontece de maneira singular e concreta, e nunca nas mesmascondicoes. Voce faz estatıstica a partir do momento que voce re-corta certos aspectos homogeneos de todos os fatos, os agrupa numconceito unico e, em seguida, quantifica. Mas, tudo isso e vocequem fez. O fato nao ve assim.

Entao, o que legitima o seu experimento? Por que o raciocınioestatıstico indica uma probabilidade real? Qual e o fundamentoda inducao? Dizer que o percentual e um dado, isso e um ab-surdo. Um percentual jamais pode ser um dado, porque ele euma medicao. O percentual e uma interpretacao que voce estafazendo em cima dos dados. Nenhuma medicao e natural, e dada.A medicao e sempre uma comparacao de fatos que tem a ver comuma determinada unidade que voce escolheu por uma razao ar-bitraria. Ou seja, ja e uma construcao da mente.

Por que essa construcao funciona? Que ela funciona, e obvio,nos sabemos que funciona. Sabemos por nossa propria ex-periencia. Entao, e a nossa propria experiencia que serve de fun-damento da inducao. Se voce disser que a inducao funciona por-que na maior parte dos casos ela funciona, que tipo de raciocınioe esse? E uma inducao. Assim, isso forma um cırculo vicioso.Quando voce usa como fundamento da coisa que pretende de-monstrar a mesma coisa que esta para ser demonstrada, isso e,evidentemente, ilogico. A inducao funciona porque indutivamente

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se prova que a inducao funciona. Entao, a inducao e a prova dainducao. Isto nao tem fundamento algum. Ou a inducao tem umfundamento logico, nao-indutivo, ou ela nao tem fundamento al-gum.

A inducao nao se refere a classificacao de objetos, segundo asvarias esferas. Ela se refere a previsao do comportamento de de-terminados objetos conforme a quantidade de vezes onde eles secomportaram assim nos casos anteriores. Husserl nao levantou oproblema da fundamentacao da inducao. Eu e quem estou discu-tindo isto aqui.

Vejam que na quase totalidade dos casos de pesquisas ci-entıficas, as pessoas fundamentam as conclusoes com base emconceitos que ainda nao se sabe o que e. Por exemplo, o cancere um conceito meramente empırico. E um conceito mais indica-tivo do que qualquer outra coisa. E difıcil voce discutir o que ecancer, e o que nao e. Nao ha limite preciso, como nos conceitosgeometricos. Quando voce usa conceitos meramente empıricos,as suas conclusoes tem validade meramente empırica. Se essa va-lidade empırica e fundada num raciocınio meramente empırico,entao ela tem uma validade meramente estatıstica, a qual se fun-damenta numa inducao, que talvez nao tenha fundamento algum.Essa e a verdade.

No fundo voce sabe que a inducao tem fundamento, so quenao e obvio. e, se voce desconhece qual e o fundamento, voceacredita que e um fundamento absoluto e voce pode sempre con-fiar na inducao. Ate porque, voce pensa que a inducao e umacoisa que a realidade impoe por si mesma, quando na verdade ainducao depende de uma premissa de ordem metafısica, que e ahomogeneidade do real. Se o mundo fosse caotico, funcionassecomo uma combinatoria totalmente casual de circunstancias for-tuitas, a inducao nao valeria absolutamente. Assim como nao valea inducao num jogo de cara-ou-coroa. Se a inducao vale, e porque

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o mundo nao se comporta como num jogo de cara-ou-coroa. Essee um dos fundamentos alegados pela inducao. E a famosa frasedo Einstein: “...(?).”. Mas ha quem diga que joga sim. O sujeitopega essas supostas regularidades reivindicadas pela Ciencia naarea dos fenomenos e mostra que essas regularidades nao sao taoirregulares assim.

Partindo da experiencia voce pode mostrar tanto a regularidadequanto a irregularidade, tanto a homogeneidade quanto a heteroge-neidade, e na hora que voce fez tudo pela heterogeneidade, adeusa inducao. Isto quer dizer que toda pesquisa cientıfica se assentaem determinados fundamentos metodologicos que sao a razao quevoce tem para crer que as suas razoes sao verdadeiras. Na praticaos indivıduos nao se preocupam em conferir os fundamentos emque se apoiam, mas confiam nesses fundamentos por uma razaoobvia do costume, do habito.

Quando voce examina a pesquisa cientıfica a luz do que vocesabe de metodologia, voce fica horrorizado. De qualquer ex-periencia voce so aproveita um por cento, e olhe la! O proprioprogresso, com a crescente quantidade de pesquisas, aumenta apossibilidade de erros, na medida onde esse avanco nao e compen-sado por uma fundamentacao cada vez mais firme. Se um sujeitoesta progredindo, entao, as pessoas dao credito a ele. Por daremcredito, ele se lanca em novos negocios e da a impressao de maisprosperidade, e aumenta o credito, e assim por diante. No entanto,sera que o sujeito tem bens para sustentar toda essa coisa? Naotem. Entao ele progride so para frente, e nao para baixo tambem.Ele nao tem fundamento, base.

O dito progresso da Ciencia, em grande parte e ilusorio. Ele soseria um progresso na medida onde ele tivesse um lastro. Senaoe como emitir cheques, um atras do outro, sem ter fundos. Vejam, por exemplo, as ultimas pesquisas de qualquer campo cientıfico.Procurem ver se elas tem um fundamento absoluto, ou se elas estao

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somente baseadas numa serie de procedimentos costumeiros. Aomeu ver, o aumento do numero das pesquisas nao representa ne-nhum avanco. Isto porque voce vai pesquisar mil vezes a mesmacoisa, mil vezes vai chegar a conclusoes mais ou menos certas,mais ou menos iguais as outras, e se a primeira ja nao tiver funda-mento, a seguinte tambem nao tera. Assim, trata-se de fundamen-tar a primeira pesquisa, para daı prosseguir.

Muitas vezes voce assenta uma determinada conclusao comohipotetica e continua pesquisando, e usando aquela hipotese comobasica, que gerem novas hipoteses, e assim por diante. O queacontece e que a tecnologia avanca, mas a Ciencia avanca muitomenos. Ate porque, uma unica descoberta cientıfica prolifera emmilhoes de resultados tecnologicos. Quanto de Ciencia existe numcomputador? Muito pouco, e com esse pouco voce tira milha-res de conclusoes tecnologicas, e as pessoas tomam o avanco tec-nologico como se fosse o avanco do conhecimento, e nao e. E oavanco da tecnica. E as coisas funcionam. Entretanto, o impor-tante nao e saber que funciona, mas por que funciona. Se funcionae voce nao sabe como, a Ciencia gradativamente vai se transfor-mando num empirismo de bolso, e na medida que isso acontece,daqui a pouco ela comeca a se transformar, outra vez, numa ma-gia. Mesmo os simples avancos das descobertas teoricas, se naoforem sendo refundamentados, eles proliferarao em novas desco-bertas, e todas so tem valor hipotetico. Acaba virando crenca. Porexemplo, na ciencia polıtica, todo mundo acredita que existe umavanco do estado de direito, que caracteriza a Historia dos tresultimos seculos. E acreditam que isso e de fato, que vale. Issoequivale a uma divisao mais equanime do poder? No meu ponto-de-vista nao, porque se ha introducao de novos fatores de poder,que eram desconhecidos como, por exemplo, o servico secreto.Voce nao pode democratizar o servico secreto. Na medida que aimportancia do servico secreto aumenta, a divisao do poder fica

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cada vez mais hierarquica. Voce tem uma democracia na partepublica da polıtica, mas esta criando uma aristocracia, que estamais distante da base, do povo, que qualquer democracia jamaisesteve. Nao devia, mas e real. Em certos casos, muito importantes,como no proprio Estado americano, o servico secreto adquire umatal importancia que os fatos historicos fundamentais saem dele enao do movimento democratico. E mais ainda. Existem meios deatuacao da elite letrada sobre a consciencia popular, meios que ahumanidade jamais imaginou, jamais ousou conceber. Na medidaem que essa elite detem conhecimentos secretos e um meio secretode atuacao, ela cria uma aristocracia mais fechada do que jamaishouve em qualquer outra epoca. So seria comparavel as castasda sociedade egıpcia, onde meia duzia de pessoas detinha todo oconhecimento e governava sobre a massa que ignorava tudo, noconjunto e nos detalhes. O servico secreto pode ser comparado aisto.

Eu tenho a tendencia a acreditar que tudo isso que aconteceucom o Collor foi por causa do SNI. Voce acha que aquela genteque estudou aquilo, a vida inteira, para fazer so aquilo, vai paracasa e tudo bem? Vao virar motoristas de taxi? Voce acha que acomunidade de informacoes se dissolve so porque voce mandoueles para casa? Esse e um fator fundamental para producao doseventos de uma sociedade na historia. Porem, o povo que se baseiaem jornais, ele ve uma outra linha de causa. Ou entao, o povoinventa essa linha de causa para justificar esses acontecimentos.

O homem nao suporta a incoerencia, o absurdo, entao, quandoele nao entende as coisas que estao sendo mostradas a ele, e elenao tem explicacao, ele inventa uma. A que lhe parece mais sa-tisfatoria, ele a acomoda ali. Ele nao vai investigar mais profun-damente. O homem tem a tendencia a ver as coisas de maneirahomogenea. Onde ele ve o caos aparente, ele homogeniza, e dasmaneiras dele fazer isso, a primeira e a fantasia. Uma das funcoes

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do sonho e homogeneizar os dados daquilo que ele nao entendeu.Entretanto, o sonho homogeneıza os dados, nao com a forma

dos eventos, mas com a forma do seu corpo. Voce adapta os fatosnas divisoes de categoria que o seu corpo conhece. Isso e comovoce classificar os livros na estante conforme o tamanho e, depois,supor que aquilo la e o sistema do conhecimento. Voce catalogou,mas nao de acordo com a natureza da informacao, e sim de acordocom a natureza do recipiente. E isso, pode criar uma interpretacaoque, ao mesmo tempo pareca coerente, global, e totalmente falsa.E o que acontece na quase totalidade dos fatos.

Nas ciencias da natureza acontece a mesma coisa. Por exemplo,a ideia de que um conhecimento objetivo seria um conhecimentoque descrevesse os fatos tal como eles se passam em si mesmos,sem qualquer observador humano, e a base da maior parte do pen-samento cientıfico.

Examinando o que foi exposto aqui, nos podemos perguntar:qual e a forca do elemento retorico em Ciencia? Quando Galileuquis provar que dois objetos, de peso diferente, jogados de cimade uma torre, cairiam ao mesmo tempo, por exemplo, algodao echumbo. O fato e que eles caıram ao mesmo tempo, e isso con-traria a percepcao sensıvel. De fato, muitas vezes, o resultadoreal sera tornado nebuloso pela intervencao de outros fatores, porexemplo, o vento. Entao, isso teria muito mais a ver com a su-perfıcie ocupada pelo objeto que com seu peso. Assim, para tentardemonstrar isso, ele recorreu a um argumento retorico: fazer comque as pessoas conseguissem imaginar a queda desses dois obje-tos, nao visto desde o chao, onde eles estavam, mas visto desdeum outro lugar, de um outro sistema de referencia. A partir domomento que eles conseguiram enxergar de uma outra maneira,aquilo pareceu verossımil. Isto e um argumento retorico.

Por outro lado, na medida onde voce cria um procedimento me-todologico, rotineiro, habitual, consolidado, ele mesmo se torna

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um argumento retorico. A estatıstica aparece hoje como algo quevale por si mesma. A estatıstica jamais prova o que quer que seja.Se voce usa a estatıstica, e justamente porque voce nao pode pro-var nada. Voce tem que se contentar com o probabilismo. O pro-babilismo representa respostas provaveis. Se e provavel, nao estaprovado. O provavel significa aquilo que, em condicoes melho-res, talvez se possa provar algum dia. Por isso e que e provavel.Entretanto, 2 + 2 = 4 nao e provavel, e provado.

Nos poderıamos fazer a seguinte estatıstica: das conclusoes es-tatısticas estabelecidas, quanto por cento vai ser provado efetiva-mente quando houvessem condicoes melhores? Qual a probabi-lidade que existe de haverem melhores condicoes de observacaodisto, pelos proximos mil anos? Ou seja, em todos esses casos,nos teremos que continuar confiando na base de que Deus devesaber como se resolve esse problema.

E evidente que nem toda Ciencia e assim. Vejam, por exemplo,a Embriologia. Ela depende muito pouco de estatıstica — quasenada. Ela pode desenvolver as fases da evolucao de um embriao,e a entrada em cena de um fator que altera o conjunto, com cer-teza quase apodıctica. Um sujeito que procede nesses criteriosmetodologicos, sem fundamentos, ele nao tem ideia do quanto eincerto o que ele esta afirmando. Acontece que, milhoes dessasincertezas somadas, produzem uma autoridade macica, sem con-tar com a intervencao de outros fatores, alheios, como o deficienteintercambio das informacoes cientıficas, ou como a falta de da-dos homogeneos em todas as partes do mundo, etc. Exemplo deinterpretacao erronea do princıpio da homogeneidade: se e assimnos Estados Unidos, deve ser assim no resto do mundo.

Um medico que diz que x% dos pacientes que tem tal sintoma,tem um segundo outro sintoma. Partindo deste princıpio, um ou-tro medico investiga o seguinte: os que tem x% dos que tem osegundo sintoma, tambem tem um terceiro sintoma. Daı voce re-

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laciona com o primeiro sintoma, e assim voce vai montando todauma cadeia hipotetica. Se voce abalasse a inducao, voce abalouessa Ciencia inteira. Por mais que a definicao dos objetos delaseja correto, por mais que os metodos sejam organizados, todaela se baseia na inducao. A inducao nao e errada. Ela funci-ona. O problema e que o indivıduo que nao sabe qual e o fun-damento da inducao, acredita exageradamente nela, e nao intro-duz um princıpio de correcao. A inducao nao tem um fundamentoabsoluto. Ela tem um fundamento probabilıstico, por um lado, eum fundamento metafısico, por outro lado. Se voce conhece ocarater metafısico desse fundamento, com base nisso, voce podeintroduzir um princıpio de limitacao da inducao, senao, voce naopode. Eu nao estou falando que o sistema todo da Ciencia estaerrado porque ele se baseia na inducao. Eu nao sou louco. Ainducao e uma base muito firme e muito solida. Porem, ela esolida porque ela se baseia num pressuposto metafısico. Entre-tanto, tudo aquilo que e baseado num pressuposto metafısico temsua validade circunscrita por esse mesmo pressuposto metafısicoe pelas condicoes de sua aplicabilidade. Nem todas as esferas doreal sao homogeneas. Se eu digo: se uma coisa aconteceu em 75%dos casos, devera acontecer nos demais. Isso nao e igual em to-das as esferas de realidade. O princıpio de homogeneidade vale,mas como princıpio. Este princıpio tem que ser desdobrado emregras mais especificadas para cada campo, para cada esfera deter-minada, onde ha homogeneidade, maior ou menor, de acordo comtais condicoes.

A Fısica e uma ciencia que leva em conta esse tipo de coisa. Elasabe que a homogeneidade e limitada para cada campo. Quandovoce passa da Fısica newtoniana para a Fısica relativista, ouquantica, voce muda de campo. Neste campo, maior ou menor,a homogeneidade nao e a mesma, porque o princıpio da homo-geneidade nao e um princıpio fısico, e sim metafısico. Sendo

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metafısico, ele nao pode obviamente se aplicar em toda a reali-dade. O princıpio de identidade e metafısico: uma coisa e igual asi mesma. Me diga, entao, no mundo da experiencia, qual a coisaque permaneca exatamente igual a si mesma? Nada permanece.

O que e metafısico? E aquilo que abarca a totalidade dopossıvel. E que so e valido na escala da totalidade do possıvel.Quando voce parte para o mundo da experiencia, ele se deso-mogeiniza, ele tem distintos graus de aplicabilidade. Assim, seo sujeito, por exemplo, na pesquisa medica, pode se basear noprincıpio da homogeneidade media, ele esta doido! Ele esta su-pondo que as coisas vao funcionar ali como funcionam para amecanica classica. Mas a mecanica classica funciona porque elaesta num universo perfeitamente circunscrito. Como circunscrevero corpo humano se ele depende de fatores ecologicos, astrologicos,etc., e se ele e uma coisa que esta recebendo influencias de todosos lados?

Numa coisa que e tao elastica, as estatısticas tambem tem queser elasticas. E isto nao e levado em conta na pratica, porquedaria muito trabalho, e haveria muito menos medico publicandopesquisa, e ele tem que publicar pesquisa para fazer currıculo.Ao inves de ter feito 120 pesquisas, seria melhor se tivesse feitouma so, bem feita. Mas, como o sujeito diz que fazer todas es-sas consideracoes nao e preciso porque, em media, todo mundoprocede assim e mais ou menos funciona. Baseado num costume,ele faz funcionar mais ou menos; resultado: nenhum dos pesqui-sadores esta seguro quanto a validade efetiva dos seus resultados,e todo mundo depende da aprovacao do conjunto. E puramenteuma retorica, para nao dizer, como numa religiao, onde voce de-pende da aprovacao da massa de fieis para se sentir seguro. Istoe Ciencia? Isto acontece tambem devido a organizacao social dapesquisa cientıfica. Sempre se acredita que, no conjunto, as pes-quisas vao se compensar, uma a outra. So que isto e uma mentira,

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porque se uma pesquisa diz A, e a outra diz B, se nao houver umterceiro sujeito que leia as duas, para confrontar e sintetizar nacabeca dele, elas vao ficar, eternamente, guardadas no arquivo, secontraditando uma a outra, sem que ninguem saiba. A sıntese sose opera na mente do indivıduo que a formou. O sujeito solta umapesquisa, e a comunidade cientıfica nem se da ao trabalho de lero seu trabalho, e os erros que ali tiverem, jamais serao corrigidos.E preciso a intervencao de um elemento, extra-cientıfico, extra-intelectual, um elemento puramente psicologico, na formacao daconviccao cientıfica. Quanto mais pesquisas cientıficas sao publi-cadas, mais isso piora. Isto quer dizer que o numero de pesqui-sas e um pessimo indicador do avanco do progresso cientıfico. Eainda ha quem reclame que as universidades estejam publicandopoucos trabalhos. O que importa e voce aperfeicoar a mesma pes-quisa para voce chegar a um resultado correto. Uma tese de dou-toramento na Franca e o coroamento de um vida. O indivıduoapresenta uma tese de mestrado, e continua trabalhando com basenaquilo para depois de muitos anos, somar as conclusoes das pes-quisas e elaborar uma tese de doutoramento. Aı ele vira doutor.

Aqui no Brasil, a tese de doutoramento e uma coisa que se se-gue imediatamente a uma tese de mestrado. Isto e um absurdo.Voce esta convidando as pessoas ao charlatanismo. Qualquer su-jeito que tenha estudado um pouco esses assuntos aqui, por maisdesonesto que ele seja, ele vai perceber que aquilo nao tem fun-damento algum. Certamente, ele ficara um pouco mais inibido depublicar conclusoes apressadas. Nenhum indivıduo que nao tenhameditado sobre o fundamento da inducao deveria ter direito de pu-blicar conclusoes baseadas em inducao. O maior ...(?) do seculo,Karl Popper, disse que nao existe inducao nenhuma. Se nao existeinducao, ela, em si mesma, nao tem fundamento algum. Para acharo fundamento dela, voce tem que converte-la numa forma dedutivae toda vez que voce fizer isso, voce fica horrorizado. Voce ve o

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mundo de hipoteses que estao la para completar o edifıcio logico.Um cientista que faz isso e que nao esta consciente desse caraterhipotetico, ele esta acreditando na conclusao dele. Acontece queum outro cientista acredita nele e, baseado nisso, continua o ra-ciocınio, e assim por diante.

O sujeito tem e que fazer a pergunta: “Mas, como?”, “Quidest?”. Teoricamente falando, a inducao tem fundamento, so queteorico e geral. Para que este fundamento se torne valido, e pre-ciso que o pressuposto metafısico no qual ele se baseia, que e oprincıpio da homogeneidade do real, seja afinado por uma serie deontologias regionais. Ou seja, esta realidade aqui e homogenea,ou aquela outra, etc., nesse plano, encarado nesse nıvel tal, etc.Como as pessoas nao sabem que ela e um pressuposto metafısico,elas acham que a inducao e valida homogeneamente para todos ossetores da realidade. Ha setores da realidade onde trinta por centodos casos e uma taxa altissimamente significativa, e ha outros ondenoventa e nove por cento dos casos nao indica absolutamente nada.

A inducao tem uma inducao validade geral, e dessa validadegeral, voce partir para as validades especıficas, dentro de cadacampo, e acreditar que todos sao iguais, isso e uma outra coisa.Por exemplo, o raciocınio que um sujeito faz com relacao ao fumo,e o mesmo que outro sujeito faz com relacao a votos. Nao existedistincao. O que e considerado significativo num setor, e conside-rado igualmente significativo para outro, como se toda a realidadeobedecesse homogeneamente ao princıpio da homogeneidade. Apropria Fısica ja demonstrou que nao e assim.

E por isso que Husserl vai falar, em seu ultimo livro, “A Crisedas Ciencias Europeias”, que as ciencias estao em crise, nao nosentido de que elas nao facam descobertas, mas que elas estaoperdendo a sua cientificidade. Daqui a pouco as ciencias acabamvirando um misticismo que e reforcado pela aprovacao do numerode seus fieis, e que por isso mesmo, quando voce levanta uma dis-

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cussao cientıfica, ela nao e discutida cientificamente, mas na basedo entusiasmo, do fanatismo. As pessoas se ofendem com as teo-rias alheias, levam tudo para o pessoal. Os fundadores da cienciamoderna, se vissem isso ficariam profundamente decepcionados.

A maior parte desses erros que vao se acumulando, e pelo fatode voce tomar as palavras por coisas. No momento que voce seposiciona com um conceito, na mesma hora, voce tambem esta po-sicionando perante todas as coisas que se apresentam sob aqueleconceito. Seria como raciocinar com bases universais: a Ciencia,o fumo, etc., e achar que voce pode, nessas materias, raciocinara priori. O que voce falou do conceito abrange todas as proprie-dades do objeto considerado. Na discussao vulgar, o sujeito tomaposicoes desse tipo: “Voce e a favor disso ou daquilo?” Na ver-dade, sao discussoes sobre palavras, sobre conceitos universais.Sao discussoes que se dao em princıpio. Nos casos particulares,na realidade concreta, a sua discussao deveria ser a mesma.

Tambem nao e impossıvel que existam determinados setores dosaber que sao mais solidos do que outros. Porem, dentro dos se-tores menos solidos, existem trabalhos que sao mais solidos doque todos da outra ciencia mais solida. Por exemplo, me mostrena ciencia biologica, um trabalho no qual se possa confiar tantoquanto eu confio, por exemplo, no livro do ...(?), “O Outono daIdade Media”. Vai ser difıcil voce achar um trabalho biologicoque seja tao firme quanto esse da Historia. O que nao quer dizerque o que voce falou genericamente sobre tal ou qual conceito,deva valer para todos os exemplares da Historia.

O cientista nao pode ter a pretensao de haver provado as pre-missas ultimas de suas conclusoes, nem de haver investigado osprincıpios em que repousa a eficacia de seus metodos.

Se essa eficacia nao estiver claramente fundamentada em cadacaso, entao, ela e uma eficacia do tipo consuetudinario, baseadono costume e, em ultima analise, e uma eficacia do tipo retorico.

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Mas esta e a causa do estado imperfeito de todas as ciencias,da falta de claridade e racionalidade ıntimas da ciencia. Mesmonas matematicas os investigadores que manejam com mestria osmetodos da matematica se revelam com frequencia incapazes deprestar contas da eficacia logica desses metodos e dos limites desua justa aplicacao.

6.2 5. Complementacao teoretica dasciencias particulares pelametafısica e pela teoria da ciencia

Para alcancar esse fim teoretico e preciso, primeiro, uma classe deinvestigacoes que pertencem a esfera da metafısica.

A missao desta e fixar e contrastar os pressupostos de ındole me-tafısica, em geral nem sequer advertidos, que constituem a base detodas as ciencias referentes ao mundo real. Tais pressupostos sao,por exemplo, a existencia de um mundo exterior, que se estendeno espaco e no tempo, a submissao de todo evento ao princıpio dacausalidade, etc.

Qual e o fundamento do princıpio de causalidade? Quando sediz que uma coisa e causa de outra, o que se esta querendo dizerexatamente? Nao vou nem perguntar o fundamento, mas, antes, osignificado. O que significa “ser causa de”? Dizer que uma coisae causa da outra quando causou algo e uma frase baseada na ideiade causa, e nao esclarece o que e ser causa mesmo.

Outra questao: esse processo que voce denominou de causa,existe na realidade ou e apenas uma conexao logica criada pelamente humana? Se voce nao sabe nem uma coisa nem outra, evoce, no entanto, continua atribuindo a tais ou quais fenomenos,tais ou quais causas, voce nao sabe o que esta falando.

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Claro que na maior parte dos casos voce vai usar a palavra causano sentido geral, costumeira, habitual, e as pessoas entenderao nosentido de que elas estao habituadas a entender, e que nesse sen-tido, voce parecera estar falando de uma coisa que voce sabe oque e, porque voce acredita que os outros saibam do que voce estafalando. Mas, nem voce, nem os outros, tem uma ideia real do pro-cesso causal e, na verdade, estao falando de uma convencao: de-nominando de causa, tal ou qual coisa. No maximo voce alcancaisso aı.

Jung disse: “Voce diz que o movimento da bola de bilhar causao movimento da outra, mas o fato e que, no fenomeno voce nao veisso. Voce so ve uma bola rolando e, depois, voce ve a outra bolarolando. Voce nao ve conexao causal. Se voce falar do impulso deuma bola na outra, voce ja pressupoe a ideia de causa. Mas, o quee causa? Um exemplo: um fenomeno que contem dentro de si, umoutro. Isso seria uma maneira de ser causa? Por exemplo, quandovoce diz: “Quando chove e porque a agua estava nas nuvens, e elacaiu de la”. Isto quer dizer que a nuvem foi causa da chuva, nessesentido. A mae que traz dentro de si o seu filho, ela e causa dofilho, nesse sentido. Ou seja, no processo vital dela, esta incluıdoesse filho. Mas, e as bolas de bilhar? Existe o efeito, mas ele eparte da causa, assim como o filho e parte do organismo da mae?Sera que causa e isto? Ou seja, da para entender que, onde houvero organismo da mae, ali esta o fenomeno do filho. Ela o traz comoum prolongamento de si.

Um efeito e um prolongamento da causa, como se fosse umaparte da causa, que a partir de um certo momento se destacadela. A causa estaria para o efeito, como o continente esta parao conteudo. Se voce pega um jarro cheio de agua e o carrega,voce carrega a agua necessariamente. Efeito seria um sinonimode pertinencia. Mas, e as bolas de bilhar? Uma estava dentro daoutra, por acaso? O movimento da segunda bola, estava no movi-

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mento da primeira? No caso da mae, a vida da mae se transferepara o filho porque a vida do filho e a vida da mae. O filho estavivo, porque a mae esta viva. Porque eles sao uma so unidade.Ela nao precisa transferir, porque a vida dela esta na vida do fi-lho. E simplesmente um processo de separacao. Um processo deautonomizacao. O mesmo ocorre no caso do jarro com agua.

E as bolas de bilhar? Como voce poderia ver que o movimentoda segunda esta contido no movimento da primeira, se sao doismovimentos de dois corpos distintos no espaco? Se, nunca, umabola esta onde a outra esta? Se eu jogo a agua fora do jarro, aagua se separa do jarro, e se o filho nasce, ele se separa do corpoda mae. No caos da bola, uma jamais esta onde a outra esteve.Como e que se chama essas coisas de causa? O braco nao fazparte do taco, que nao faz parte da primeira bola, que nao faz parteda segunda bola, portanto, a explicacao nao pode ser a mesma dojarro. Se o impulso passa de uma corpo para o outro, e porque nospodemos conceber o impulso separado do corpo. No entanto, naoprecisa resolver o problema. E so voce saber que voce nao sabeo que e causa. Voce pode reconhecer a causa mas, por exemplo,uma pessoa que voce ve todos os dias, por causa disso, voce sabequem e ela? Entretanto, se voce nunca tivesse visto, voce nuncaperguntaria quem e. Se eu nunca tivesse visto uma bola imprimirmovimento a outra bola, eu nao levantaria a pergunta. Portanto,reconhecer nao resolve absolutamente o problema. E justamenteporque voce consegue reconhecer que o problema aparece.

Assim, se o sujeito nao sabe que o conceito de causa e um con-ceito problematico, o que significa a atribuicao que ele faz de umacausa a alguma coisa? Nao significa nada. E flatus vocis. Porquese ele nao sabe o que e causa, como e que ele vai dizer que umacoisa e causa da outra?

Esses conceitos fundamentais: causa, existencia, realidade, in-ferioridade, posteridade, etc., tudo isso sao conceitos metafısicos

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que sao usados o tempo todo em pesquisas cientıficas. Tudo issoconstitui um vocabulario que o indivıduo desconhece. Na melhordas hipoteses, ele sabe o significado convencional. e qual e o sig-nificado convencional de causa? Nem isso, as vezes, o sujeito estaconsciente. Isto significa que qualquer pesquisa cientıfica feitanessa base, ele e uma tentativa de explicar fenomenos desconhe-cidos, com base em princıpios igualmente desconhecidos. Comestes princıpios (causa, realidade , posterior, etc.), voce explica oreal. E o mesmo caso da inducao.

A ideia de Ciencia e voce explicar determinados fenomenosou fatos a luz de determinados princıpios, que para voce sao in-teligıveis, ou seja, voce torna inteligıveis os fatos atraves dessaexplicacao. Explicacao significa voce desdobrar o fato nos seusprincıpios constitutivos. Se os princıpios, para voce, sao ininte-ligıveis, o fato explicado por princıpios ininteligıveis e ...(?) Noentanto, o processo que voce aplica aos princıpios, e aos fatos, paraobter a explicacao, qualquer crianca pode aprender. Voce repete asequencia de operacoes utilizada em qualquer pesquisa cientıficaexatamente como um macaco pode aprender a apertar as teclas damaquina de escrever e produzir um soneto de Camoes. Nao querdizer que ele saiba ler.

Eu digo que na maior parte dos casos, as pesquisas cientıficasforam feitas, rigorosamente, assim. E uma sequencia de operacoesque o indivıduo aplica mecanicamente, usando instrumentos queele desconhece, para explicar fatos que ele nao entende. Emqualquer investigacao voce procura reduzir o desconhecıvel aoconhecıvel. Ate mesmo uma investigacao policial, quando vocechega a conclusao de que o autor do crime foi este aqui, supondoque voce saiba quem e este aqui, o Antonio da Silva. Quem e oAntonio? Nao sei. Qual e o CIC e a RG dele? Nao sei. Qual e acor dele? Nao sei. Onde ele mora? Nao sei. Ele existe? Tambemnao sei. Na polıcia ninguem aceita isso, mas na Ciencia se aceita.

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Se fosse para fazer Ciencia de verdade, era para se aplicar todosos princıpios de evidencia, nexo, etc., como faziam Newton, Des-cartes, Kepler, etc. Na pratica cientıfica feita por uma multidaode indivıduos que receberam um rotulo de cientista, nao acontecenada disso. Na pratica e uma atribuicao de determinados rotulosdesconhecidos, a outros fatos que, na verdade, eram conhecidos.Alguns fatos a explicar sao mais inteligıveis que a explicacao ob-tida. Ou seja, antes de pesquisar voce estava entendendo o que es-tava acontecendo; depois, voce nao tem nem isto. Isto e o que Hus-serl chama de crise da ciencia europeia. Elas se tornam cienciasem crise, na medida onde sao infieis ao conceito de Ciencia. Namedida onde nao depende do real ate que ele de a sua inteligibili-dade. No entanto, se contentam com a aplicacao de um mecanismorotineiro que, na verdade, e trocar palavra por outra palavra.

Tudo o que o homem inventa de bom, depois entra nos habitosdas pessoas e elas continuam fazendo porque nao sabem. Virauma rotina, um fetiche, e continua sendo cultuado em si mesmo.As vezes, ate a ideia originariamente era boa. Mas, por nao sabe-rem bem o que era, os sujeitos acabam por inverter o significado,completamente, ate servir ao contrario do proposito originario. Ea estoria do banco da praca onde havia um cartaz dizendo: “Eproibido sentar aqui”. Passaram-se trinta anos ate que alguem selembra de que a prefeitura havia mandado pintar o banco e esque-ceram de tirar o cartaz...

Os atos que sao puramente imitativos nao podem se constituirnuma ciencia jamais. Existe a tecnica da pesquisa cientıfica, aqual e uma derivacao da Logica. Essa derivacao e facil de apren-der. Voce pega qualquer manual, que ele te diz o que fazer. Alias,ate a metodologia cientıfica foi substituıda no ensino, pela tecnicada pesquisa cientıfica. Hoje em dia, a tecnica da pesquisa ci-entıfica esta sendo substituıda pela tecnica da redacao de trabalhocientıfico! Newton nao sabia da tecnica de redacao, ele nao sabia

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nem como apresentar as contas ordenadamente, mas ele sabia oque era Ciencia. Ele sabia fazer, e sabia porque aquilo valia.

Tudo aquilo que nasce da criatividade, da espontaneidade hu-mana, depois, se torna um rotulo, uma formula cristalizada, re-petıvel. Na hora que se torna repetıvel, a inteligencia some. Viraum rito. Aquele rito, por si mesmo, vai desencadear tal ou qualefeito, entao, e uma interpretacao magico-religiosa.

A sequencia de operacoes denominada “pesquisa cientıfica” naoproduz conhecimento cientıfico. Ela produz se voce tiver a plenainteligencia do que esta fazendo. Se voce tiver toda aquela meto-dologia cientıfica, aı sim. Nao e a rotina, a sequencia de habitosque magicamente produz esse efeito, mas a maior parte dos cien-tistas pensa que seguindo a ordem, seguindo a seta, eles irao con-seguir. Isso e fetichismo. Isto aqui e um fenomeno que na maiorparte dos paıses do Terceiro Mundo, aparece de uma forma maisgrotesca. O erro de base vem do Primeiro Mundo. Nos apenaspadecemos e aumentamos esse erro. Por exemplo, as injusticas docapitalismo; sera que foi algum latino-americano quem inventouisso? Nao. Foi o europeu. Mas o latino-americano sofre aquilomuito mais do que o europeu.

Do mesmo modo, as aberracoes da pseudo-cultura cientıfica,tambem nao foi nenhum ugandense quem inventou, mas no en-tanto, ele sofre aquilo com muito mais impacto que o europeu, por-que este tem uma serie de mecanismos de compensacao. Quandoalguem faz um erro, logo vem um outro que reclama. Aconteceque aqui, nos sempre copiamos o que tem de pior. Entao, tudo oque Husserl fala sobre o estado das ciencias europeias, por voltade 1930, voce ve que em qualquer paıs do Terceiro Mundo, as con-sequencias daquilo aumentaram de maneira apocalıptica. A pontode voce ver uma nacao inteira, pobre, passando fome, e financi-ando uma ciencia inutil, produzindo balelas. E os sujeitos quefazem isso, ainda reclamam que o paıs tem que dar mais dinheiro

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para eles.Um outro exemplo sobre o princıpio da homogeneidade: ele

pressupoe um espaco tridimensional, euclidiano, homogeneo, emtodas as direcoes. Nos sabemos que o espaco tridimensional eucli-diano e um espaco ideal, nao de fato, real. E um espaco metafısico,nao um espaco fısico. O espaco fısico tem outras caracterısticasque a Fısica moderna nem apontou. Se o princıpio da Geome-tria euclidiana nao vale para o espaco real no qual nos vivemos,nas condicoes desse Cosmos aqui, significa que o Cosmos nao ehomogeneo em todas as direcoes, nem em todos os tempos. Porexemplo, por que voce supoe que o homem de Neanderthal, ouos gregos, os romanos, enxergavam da mesma maneira que nos?Quando nos dizemos que o ceu e azul, sera que o que eles cha-mavam de azul e exatamente igual ao que hoje nos chamamos deazul? Sera que nao houve modificacoes profundas na percepcaohumana ao longo da Historia? Existe uma Historia cosmica, o qualexiste um tempo em que a Historia se modifica. Mas, se modifica,de que vale a nossa inducao ao longo dos anos? Ela vale quandovoce tem a ideia do campo delimitado ao qual aquilo se aplica.Qual e o princıpio de delimitacao do campo em, por exemplo, pes-quisa medica? Nunca perguntaram isto. Tanto nao perguntaramque partem de pesquisas pretensamente universais sobre o fumo, ocancer, e assim por diante. Mas isso sao entidades abstratas. E pre-ciso que haja um princıpio de delimitacao e especificacao de cadacampo. Isto mal comecou. quando se fala dos erros da profissaomedica, o erro que o povo e o erro da pratica mesma. Mas, esseserros seriam diminuıdos em oitenta por cento se nao houvessemos erros no campo biologico.

Entretanto, sempre ha um resıduo de erros praticos, por exem-plo, incompetencia, burrice, desonestidade, e uma serie de outrosfatores aleatorios. No entanto, eu acredito, sinceramente, que aquase totalidade da profissao medica e constituıda de gente ho-

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nesta. De gente que, ate quer acertar, mas nao pode acertar. Naverdade, o que me espanta e que hajam tao poucos erros, porquenessas condicoes era para ter muito mais erros.

Por outro lado, os erros da profissao medica abrem os flancosa ataques de movimentos alternativos, mısticos, que dizem quea ciencia medica esta baseada em princıpios errados. Como osmedicos veem que existe o problema dos erros medicos, se sentemculpados, e cedem a esse tipo de argumentacao. Quando nao epara ceder. A Ciencia nao esta errada. Nos apenas nao estamosfazendo Ciencia. Estamos fazendo outra coisa. Tem que corrigir,mas dentro da mesma linha de fidelidade ao ideal puro de Ciencia.

Qualquer empreendimento humano, se ele nao e perpetuamentecorrigido por um retorno ao intuito originario, voce se esquece doque esta fazendo ali, acaba caindo na armadilha, e vai parar longedo proposto original. Se voce nao sabe o que esta fazendo, vocevai sendo gradativamente empurrado, sem perceber, para outro ob-jetivo.

A Ciencia nao esta errada. A Ciencia e um ato humano, umavontade humana. Ninguem e cientista forcado, obrigado pelas leisda natureza. Foi uma serie de decisoes humanas, sustentadas porum intuito humano. O que norteia um impulso humano? A nocaode um objetivo. Se voce esqueceu o objetivo, e continua achandoque pelo piloto automatico vai acabar parando no mesmo ligar,isso e um absurdo. O sujeito nao pode esquecer qual e o objetivoda investigacao: ele deve estar querendo procurar um nexo evi-dente, fundamentado entre tais ou quais fenomenos. Ele precisaconhecer esses fenomenos de um modo evidente, e estabelecer en-tre eles um nexo de evidencia, porem que esse nexo seja logica-mente evidente com o resultado. Fazer Ciencia e isto. Nao e outracoisa.

Para cada operacao cientıfica em particular, trata-se de vocelembrar o que e Ciencia. Senao, voce aperta o botao do piloto

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automatico e continua como se, sem evidencia nenhuma, e pelosimples fato de que voce seguir o procedimento padrao, aquilo pu-desse ter alguma validade cientıfica. Em geral, nao tem nenhuma.Voce vai ver que, na maior parte dos casos, o indivıduo esta maisou menos inconsciente. Ele esta apenas seguindo uma rotina pro-fissional. E ele acredita que nao cabe a ele estar consciente dasimplicacoes daquilo tudo, porque a classe social a que ele pertenceha de corrigi-lo. Ele conta com um mecanismo de correcao social,automatico, o qual nao vigora na quase totalidade dos casos. eleesta supondo que existe um super-cerebro que se chama “classecientıfica”, e que o corrigira.

A classe cientıfica e composta de cientistas. Se nenhum cien-tista fala, avisa, a classe inteira nao ficar sabendo. Nao e nem ga-rantido que eles vao ler o seu trabalho, visto que eles nao prestamatencao nem no trabalho deles. Nas ciencias humanas, isso chega aefeitos de uma monstruosidade sem par. Por exemplo, existe umaescola sociologica, que foi fundada por ...(?), e que fundaram umarevista chamada “L’Annee Sociologique”, que parte do princıpiode que as estruturas fundamentais do pensamento humano sao umatransposicao, uma externalizacao de padroes sociais. Ou seja, a es-trutura social, polıtica, etc., surge primeiro, e como imitacao disso,surgem os esquemas do pensamento logico. Isso e uma estupidez.Isso e uma coisa que os sociologos admitem como um pressupostoimplıcito, e nunca pararam para pensar se isso pode ser assim. Soque isso ja esta derrubado, com Husserl, em 1910, e a sociologiamundial ainda nao tomou conhecimento disso.

Na hora que voce demonstra aqui que os nexos logicos funda-mentais, nao dependem da psique humana, do funcionamento damente humana, como e que poderia surgir, nao so da mente hu-mana, mas uma criacao da definicoes de papeis sociais, e daı vocecopia, adapta, e fica uma coisa chamada pensamento logico? Onexo logico e anterior a qualquer experiencia humana, e anterior

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ate a humanidade, e nao depende absolutamente dos circuitos dopensamento humano real. O ponto basico dele e que a Logicapura se identifica com o calculo puro, com a Aritmetica pura. Sea Logica e uma parte da Psicologia, a Aritmetica tambem e. Istoe o mesmo que dizer que a Aritmetica foi inventada a partir dasdefinicoes sociais, que o raciocınio, a veracidade da Aritmeticadepende das definicoes sociais.

Isso e um problema que no campo da metodologia, ninguemsustenta mais essa tese. a tese psicologista acabou aqui. Mas, nocampo da sociologia, sao todos psicologistas, porque eles nao seposicionam declaradamente em face disso. Eles tomam isso comoum pressuposto. E toda uma nova safra de estudos e baseada nessepressuposto. Ou seja, estao exatamente 82 anos atrasados. Bastapegar o livro do Husserl para saber disso. Mas, eles nao fazemisso.

Se voce pegar a Sociologia brasileira, como a Sociologia noBrasil, e uma ciencia de bar. A intelectualidade brasileira nuncaparou para pensar no assunto. Com base nisto, voce explica osmovimentos sociais, voce orienta o pensamento da sociedade. Istonao e Ciencia, e uma retorica, e uma forma de dominacao, e umacasta de mandarins.

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19 de dezembro de 1992

Mas esta fundamentacao metafısica concerne meramente asciencias que tratam do mundo real, e nem todas tratam deste;por exemplo, as ciencias matematicas, cujos objetos sao pensadoscomo meros sujeitos de puras determinacoes ideais, independente-mente do ser e do nao ser real. A segunda classe de investigacoesse refere a todas as ciencias, porque diz respeito a aquilo que fazcom que as ciencias sejam ciencias. Estas investigacoes sao a “te-oria da ciencia”.

Em princıpio, ele se divide em dois lados nesse aspecto, por-que, de em lado, para que exista um conhecimento fundamentado,e necessario que se tenha alguns pressupostos que digam respeitoao que e a natureza do real. Por exemplo, o princıpio de homoge-neidade, onde o real e homogeneo, nao existem hiatos, nao existeuma transicao que passa de um universo regido por determinadasleis, para outro universo, regido por leis completamente diferentes.

Isto e um pressuposto de ındole metafısica. Inclusive, algunsfilosofos nao aceitaram isso. Epicuro nao aceitava isso. Ele diziaque o mundo, tal como nos o vemos, resulta de uma combinacaofortuita de atomos que se movem em todas as direcoes. Ora, se deuuma combinacao fortuita aqui, pode ter dado outra combinacaofortuita, diferente, em outra parte. Daı o princıpio de homogenei-dade, nao vale.

Isso parece muito extravagante, mas ainda hoje, ha quem pense

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assim. Mesmo dentro da Fısica, ha alguns sujeitos que se incli-naram para uma solucao desse tipo. E evidente que, se optamospor uma metafısica dessa ordem, a fundamentacao da Ciencia, oucai por terra, ou teria que ser completamente diferente. Porem,Husserl diz que isso aı se refere somente as ciencias que tratamdo mundo real, do mundo das experiencias. Ha ciencias que naoconcordam com isso, por exemplo, Matematica pura, quando dizque 2+2 = 4, nos estamos tratando desses numeros como sujeitosde juızo meramente possıvel. Independente de existir um 2, ou deexistir um 4, 2 + 2 vai continuar sendo 4. Nao depende que seja2 isso ou 2 aquilo, e nao depende de que exista nem mesmo o 2.Se nos concebermos a Matematica como um esquema puramenteinventado, as suas leis continuariam exatamente as mesmas.

Estas ciencias nao necessitam deste tipo de fundamento me-tafısico. Porem, necessitam de um outro tipo de fundamento, quenao se refere ao sue objeto, mas a elas mesmas. Ou seja, umafundamentacao que distingue essa ciencia de um outro conheci-mento nao-cientıfico e prescreve certas exigencias que elas temque cumprir para poderem ser verıdicas. Mesmo que a ciencia naotrate do mundo real, se fosse uma ciencia puramente formal, comoa Matematica, ainda assim e preciso que ela tenha um fundamentoque explique por que ela e uma ciencia, porque o calculo funci-ona. O primeiro tipo de fundamento e metafısico, e o segundoseria gnosiologico, ou referente a teoria da Ciencia. A Gnoseolo-gia e a Epistemologia seriam a mesma coisa.

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7.1 6. Possibilidade e justificacao deuma logica como teoria da ciencia

A ciencia refere-se ao saber. Nao que ela seja uma soma ou te-cido de atos de saber. So em forma de obras escritas tem ela umaexistencia propria, ainda que cheia de relacoes com o homem esuas atividades intelectuais. Ela representa uma serie de dispositi-vos externos, nascidos de atos de saber e que podem converter-sede novo em atos semelhantes, de inumeraveis indivıduos.

Ou seja, como e que a Ciencia chega ao nosso conhecimento?Como e que nos sabemos que existe Ciencia? Principalmente, por-que existem livros, disquetes, filmes, etc., que registram algunsatos de saber que foram cometidos por homens, em outras epocasremotas, ou recentes.

Husserl diz que a Ciencia nao se constitui propriamente dos atosde saber, mas dos conjuntos de registros desses atos de saber, eque esses registros se caracterizam pelo fato de que eles podem setransformar, novamente, em atos de saber, na hora em que voceentende, intelige, aqueles atos.

A nos basta-nos que a ciencia implique ou deva implicar certascondicoes previas para a producao de atos de saber, cuja realizacaopelo homem “normal” possa considerar-se como um fim acessıvel.Neste sentido a ciencia aponta ao saber.

Qual e a relacao entre a ciencia e o saber? A ciencia nao seconstitui propriamente do saber, mas de um conjunto de dispo-sitivos externos que, para um homem normal, em circunstanciasnormais, propiciariam uma renovacao, uma retomada, desses atosde saber.

Pois bem, no saber possuımos a verdade. No saber efetivo,possuımo-la como objeto de um juızo justo. Mas isto so nao basta.

Veja que ha um juızo que corresponde a verdade, ou seja, nos fa-

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zemos o ato de saber a medida e no momento onde proferimos, oupodemos proferir, em voz alta, para nos mesmos, uma sentenca dotipo x e y, sendo que x, de fato, coincide de ser y. Ou seja, quandoo conteudo do nosso juızo corresponde a verdade, dizemos queisso e um juızo justo. E o saber, particularmente o saber cientıfico,se apresenta para nos sob a forma de uma sequencia de juızos, umconjunto imenso de juızos, de afirmacoes que se pretendem justas,ou seja, correspondentes com a verdade.

E necessario, ademais, a evidencia, a luminosa certeza de queaquilo que reconhecemos que e, ou de que aquilo que rechacamosnao e;

Nao basta que o juızo seja justo. E necessario que nos saibamosque ele e justo, e que o juızo contrario e falso.

Assim, a Ciencia seria uma serie de juızos, ou proposicoes, quesao verdadeiras porque nos temos a evidencia de que aquilo queelas afirmam, e de verdade, e de que o contrario daquilo nao e.

Certeza que e preciso distinguir da conviccao cega, da opiniaovaga, por resoluta que seja. A linguagem corrente, porem, naose atem a esse conceito rigoroso do saber. Chamamos tambemato de saber, por exemplo, o juızo que vem enlacado com aclara recordacao de haver pronunciado anteriormente um juızo deidentico conteudo, acompanhado de evidencia (“Sei que o teoremade Pitagoras e verdadeiro, mas esqueci a demonstracao”).

Nao e necessario para que seja um ato de saber, que existauma evidencia presente. Se eu repito agora, sem renovar o ato daevidencia, um juızo que eu me recordo de haver proferido outrora,com evidencia, isso tambem e chamado de um ato de saber.

Nos vamos ver que isso e a fonte de quase todos os proble-mas, porque o ato de evidencia pelo qual obtive um conhecimento,outrora, ele se expressa numa formula, numa proposicao, e essaproposicao pode ser registrada e pode continuar sendo repetida in-definidamente, sem ser acompanhada de sua evidencia respectiva.

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Na medida em que se faz isso, e evidente que se pode introdu-zir, gradativamente, sutis mudancas de significado, de modo queo juızo fundado em evidencia acaba sendo usado posteriormentepara fundamentar falsidades.

Porem, teoricamente, nos poderıamos dizer que somente o juızoacompanhado de evidencia e verdadeiro. O outro nos nao sabe-mos. Na pratica, nao da para voce puxar, a todo momento, umato de evidencia a respeito de todos os juızos. Entao voce liga opiloto automatico e vai pronunciando aquela serie de juızos quevoce se lembra de terem sido evidentes algum dia. Periodica-mente, quando voce faz a pergunta: “Por que eu confio nisso?”,“Qual e o fundamento disso?”, e voce vai rever o fundamento deevidencia, voce ve que fez um monte de erros. Isso significa queo saber nao pode funcionar totalmente no piloto automatico, em-bora aquilo que nos chamamos de Ciencia na vida pratica, se apoieamplamente nesse piloto automatico. Isto porque a Ciencia e umconjunto de registros produzidos pelo homem, e transmitido degeracao a geracao, de sociedade a sociedade.

Assim, pela exigencia pratica, e evidente que a maior partedisso acaba sendo transmitido na base da credibilidade atribuıdaa propria classe cientıfica, e nao na base de atos de evidencias, denovas intuicoes feitas pelos indivıduos a quem o conhecimento foitransmitido. Resultado: junto com as evidencias, vai passar ummonte de informacoes falsas. Isso e um problema pratico. Prati-camente insoluvel.

Este e um dos motivos pelos quais eu nao acredito muito noprogresso do conhecimento. Acredito que existe progresso no re-gistro dos conhecimentos e, pessoalmente, tendo a acreditar queso existe conhecimento no instante do ato intuitivo. Isso, Husserlnao diz, mas ja e um radicalismo de minha parte.

O conhecimento efetivo e muito mais raro do que se imagina.O homem possui muito menos conhecimento do que ele supoe

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que tenha. O que ele tem e um potencial de formulas que saocomo comida desidratada. a transmissao da massa de informacoesso aumenta a esfera do conhecimento potencial. Entao, qual e adiferenca que existe entre a realidade da experiencia e os registrosdos conhecimentos? Ambos sao conhecimento em potencial. Seeu tenho aqui uma pedra, ela tem uma determinada estrutura, umacomposicao, etc., e tudo isso e um conhecimento potencial queesta nela. Tao logo eu examine a pedra, eu trarei a luz todo esseconhecimento, eu conscientizarei toda essa estrutura que esta den-tro da pedra. Elas estao colocadas sob forma de presenca fısica, ese tornarao uma presenca intelectiva. O aspecto intelectivo da pe-dra esta nela, mas so potencialmente. Assim, chega um momentoem que eu intelijo, e a pedra se transforma num objeto de conheci-mento, e nao so em objeto existente. O conhecimento registrado,o livro, por exemplo, e exatamente a mesma coisa.

A atividade cognitiva humana produz objetos materiais que ape-nas sao a traducao da inteligibilidade das coisas, numa inteligibi-lidade verbal — que tambem tem sua dificuldade. Entao, o conhe-cimento se realiza, excepcionalmente, em certos momentos muitoprivilegiados, quando o sujeito presta uma grande atencao a aquelemomento em que ele tem um ato intelectivo.

Tudo isso que eu estou colocando e de minha parte. Husserlnao fala nada sobre isso. Ao contrario, ele acredita piamente nacomunidade cientıfica, na possibilidade de um saber produzidocoletivamente, e entendido coletivamente. Eu ja sou um poucomais pessimista do que ele. Tentam formar um intelectual cole-tivo, numa coletividade de pessoas de Q.I. 25. Se nao houver, pelomenos, um sujeito inteligente, o intelectual coletivo desaparece.

Assim, o que seria propriamente a Ciencia? Seria um con-junto de objetos materiais, que registram certas informacoes emcodigos, tal como elas sao quantificadas na propria natureza. Soque a natureza esta quantificada com a formula material, e nos pas-

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samos para uma forma verbal e linguıstica que, teoricamente, seriamais facil de ser decodificada. E so isso. Porem, esse “mais facil”e relativo, porque a facilidade diminui a medida que aumenta o vo-lume de registros. Eu acho que este e o maior problema do seculoXX. Levy-Strauss disse que a cultura e uma especie de almofadaentre o homem e a natureza, e que nos nunca temos um contato di-reto com o mundo real a nao ser atraves da cultura. Acontece que acultura e constituıda de potenciais de conhecimento, por exemplo,o sujeito que coleciona livros sem jamais os ler. Isso hoje e muitocomum. Por que isso acontece? Porque ele acha que comprando aEnciclopedia Britanica, ele tem melhores meios de conhecimento.A enciclopedia e como se fosse uma programa de computador, quese voce pedir as informacoes ele te dara, mas se voce nao pede, elanao te dara nada.

Isso tudo eu comecei a pensar a mais de vinte anos atras, e euvi que se e assim, entao o problema da educacao nao e a trans-missao do conhecimento, mas e a criacao de condicoes para umaespecie de estado de evidencia quase permanente. E, mais ainda,o tempo que voce leva na escola, desde que voce entra ate quevoce saia, aproximadamente dezoito anos, nesse perıodo, quantoque a Ciencia caminhou em novas descobertas? Quanto aumentouem volume de pessoas, a classe cientıfica? Quantos novos insti-tutos foram fundados? Quantos novos livros foram publicados?De forma que quando voce sai da faculdade, voce ja foi vencidopela corrente. Cria, entao, o que hoje e a corrida contra o cresci-mento das informacoes. E essa corrida e utopica. Qualquer umque entre nela ja perdeu. So que tudo isso aı surge do conceitoerrado do conhecimento, e as vezes o conhecimento e o registro.E como se fosse um conjunto de numeros numa loteria que, de vezem quando voce vai sortear algum.

Nao adianta absolutamente voce tentar atualizar o sujeito, fazercom que ele ganhe a corrida. Nao adianta voce organizar melhor a

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informacao como, por exemplo, existe hoje um investimento mun-dial na organizacao da informacao cientıfica para que tudo sejamais facilmente acessıvel. So que quanto maior a facilidade deacesso, quanto mais organizado esta, mais informacao voce pro-duz. A propria produtividade da maquina do conhecimento es-maga o indivıduo. O crescimento do conhecimento e compen-sado por um crescimento proporcional da ignorancia. As vezes atemaior. E o que e pior, cada nova geracao surge tao burra quanto aanterior. So que o que ela tem que aprender e muito mais que a an-terior. Resultado: se nos entendemos o conhecimento, a educacao,como um problema da transmissao das informacoes, nos ja perde-mos a guerra.

Nao obstante, voce ve que o conhecimento, de fato, progride,e que algumas ciencias, de fato, progridem. Isto quer dizer que abase desse progresso nao e a transmissao da informacao. E algumaoutra coisa. E algum outro mecanismo, aparentemente magico,que esta por baixo de tudo isso, e que permite que, de algum modo,o homem acabe sobrepujando isso tudo. O problema fundamen-tal da educacao consiste em criar condicoes para que o indivıduopossa inteligir — e so. Mas, o que ele vai inteligir? Nao sei, por-que nao sei quais informacoes vao aparecer na sua frente. Nao seido que ele vai precisar. Isso e imprevisıvel.

Deste modo tomamos o conceito de saber num sentido maisamplo.

A nota mais perfeita da justeza e a evidencia, que e para noscomo que uma consciencia imediata da verdade mesma. Masna imensa maioria dos casos carecemos deste conhecimento ab-soluto, e em seu lugar serve-nos a evidencia da probabilidade.A evidencia da probabilidade de um situacao A nao funda aevidencia de sua verdade; mas funda aquelas valoracoes compa-rativas e evidentes, pelas quais logramos distinguir as hipoteses eopinioes razoaveis das irrazoaveis.

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Em primeiro lugar, ele tem o ideal de uma serie de conhecimen-tos, que seria que o conhecimento fosse evidente, mas na praticaisso nao acontece. Na maior parte das coisas, nos so temos umaevidencia indireta, ou seja, uma evidencia atraves de uma prova,atraves de uma longa cadeia dedutiva. Mesmo neste caso, o objetosobre o qual temos a evidencia nao nos e oferecido integralmente,mas so sob a forma de uma probabilidade.

A nota mais perfeita da justeza do juızo e que ele seja evidente,e que essa evidencia de uma consciencia imediata sobre a ver-dade mesma. Seja la essa verdade o que for. No momento, issonao nos interessa. Mas na imensa maioria dos casos, carecemosdesses conhecimentos absolutos, e em seu lugar nos temos umaevidencia da probabilidade, maior ou menor. Ora, a evidencia daprobabilidade de um juızo nao funda a veracidade desse juızo. Ofato de que um juızo seja provavel nao quer dizer que ele sejaverdadeiro. Porem, essa evidencia de probabilidade fundamentaa valoracao de varias hipoteses que nos possamos concluir daı.Ou seja, uma evidencia de uma probabilidade fundamenta o jul-gamento razoavel de hipoteses concernentes ao mesmo assunto.Apenas razoavel. Isso e problema do terreno da dialetica.

Todo conhecimento repousa, pois, em ultima instancia, naevidencia.

Nao obstante, subsiste uma duplicidade no conceito de saber.Saber, no mais estrito sentido da palavra, e evidencia de que certasituacao existe ou nao existe. De acordo com isto, a evidenciade que certa situacao objetiva e provavel e um saber no sentidomais estrito (rigoroso) no tocante a probabilidade; mas, no tocantea existencia da situacao objetiva mesma, e um saber em sentidomais amplo (vago).

Se nos temos a evidencia de que uma situacao objetiva existe,ou nao existe, por exemplo, nos temos a evidencia de que nos es-tamos aqui, agora; essa evidencia nao e probabilıstica. Porem,

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lancamos a pergunta: “A Noemi esta presente?”. E uma perguntaprobabilıstica, porque ha uma probabilidade de que ela esteja pre-sente, sob forma incerta. Ela pode estar atras da porta, pode estarno banheiro, etc.

Porem, se nos chamamos de saber a primeira dessas hipoteses, ade que nos estamos aqui, isso e um saber no sentido estrito. Porem,se nos dissemos que ha 72% de probabilidade de que a Noemi es-teja aqui, atras da porta, isto e um saber, nao no mesmo sentido daanterior, porque nos temos uma evidencia da probabilidade, masnao uma evidencia da coisa. Quando nos chamamos isto de saber,isto e um saber no sentido mais elastico.

Vejam, entao, que demencia que e as pessoas confiarem tantoem estatıstica, como algo seguro. Estatıstica e uma unidade deprobabilidade. E a probabilidade so e um saber num sentido deri-vado, elastico. Ela nao e bem um saber. E exatamente o que eleesta dizendo aqui.

Neste ultimo caso fala-se de um saber ora maior, ora menor,e se considera o saber em sentido estrito como o limite ideal eabsolutamente fixo a que em sua serie ascendente se aproximamassintoticamente as probabilidades.

Isto e uma curva que vai se aproximando de um limite, mas naoo alcanca jamais. A evidencia de probabilidades se aproxima deum saber evidente, assintoticamente. Se a evidencia de probabili-dades for de 100%, entao ja nao e mais probabilidade. E um saberno sentido estrito.

Mas o conceito de ciencia exige mais do que mero saber. E ne-cessario algo mais: conexao sistematica em sentido teoretico; eisto implica a fundamentacao do saber e o enlace e ordem perti-nentes na sucessao das fundamentacoes.

Agora a coisa complicou. Para que seja Ciencia, voce temque ter um saber. Esse saber so pode ser no sentido estrito, numnumero dito de casos. Na maior parte dos casos, e um saber pro-

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babilıstico que se aproxima idealmente de um saber estrito, queele nao vai alcancar nunca.

Porem, em qualquer dos dois casos, se trata de um saber no sen-tido estrito, ou no sentido amplo. Mas o saber so nao constitui aCiencia. A Ciencia e um conjunto de conexoes entre esses sabe-res, e essas conexoes, por sua vez, elas tambem tem que ser umsaber. A Ciencia esta mais propriamente nos nexos entre os variossaberes e nos fundamentos desses nexos.

A essencia da ciencia implica, pois, a unidade do nexo dasfundamentacoes, em que alcancam unidade sistematica nao so osdistintos conhecimentos, mas tambem as fundamentacoes mesmase, com estas, os complexos superiores de fundamentacoes, a quechamamos teorias.

Vamos fazer um diagrama: temos um conhecimento A, um ou-tro B, outro C, e outro D. Esses conhecimentos, de fato, estaosendo conhecidos por evidencia. Porem, por um simples enlace,atraves de um nexo de um sistema de causas presentes.

A(causa)B = (identidade) = CDQuando voce diz que A e causa de B, voce descobre que B e

identico a C. Entao, voce conectou B e C atraves da identidade.Assim, identidade, espaco, tempo, sao os nexos com que voce vaifundamentando as varias evidencias isoladas que voce tem.

Entretanto, como que esses fundamentos se enlacam entre si?Nos podemos perguntar: Existe identidade no tempo? Quando sediz que uma coisa e igual a outra, essa identidade persevera notempo? Ou a identidade so existe entre objetos ideais? Isso e umaquestao metafısica, nao e?

Entenderam como que os conhecimentos dependem dos ne-xos, e estes das fundamentacoes? O fato de poder fornecer umaexplicacao de conjunto para esses fundamentos, que fundamentamos nexos, e que por sua vez, fundamentam o conhecimento, e issoque caracteriza a Ciencia. Se voce sabe que um fato tem algo a

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ver com um outro fato, mas nao tem ambos que ver com isso, es-ses dois fatos sao concomitantes? Um e causa do outro? Um easpecto, uma parte, do outro?

Na clınica medica isso acontece o tempo todo. Por exemplo, umsinal qualquer que voce perceba no corpo de um paciente, isso euma evidencia, e um dado evidente. Como e que voce vai conectaristo com uma determinada patologia? Voce vai dizer que isto e umsinal daquilo. Mas, e um sinal, em que sentido? Foi a doencaquem causou aquilo, ou aquilo e parte da doenca? Na medidaem que voce vai interpretando esses sinais, voce esta enlacandoos varios conhecimentos a luz de categorias de causa, identidade,parte e todo, posterior e anterior, etc. Na pratica, e exatamente issoo que voce faz.

Entretanto, esses nexos que voce descobre entre os fatos, quefundamento teria? O que e isso? Entao, vai haver um fundamentoteorico dessas fundamentacoes. Isso e o que se chama de teoria.Isto quer dizer que, sem a teoria que fundamente os fundamentos,as coisas nao tem nexo algum.

Por que as pessoas acham que a medicina magica dos primiti-vos esta errada? Porque ela conexiona as coisas de maneira errada.Por exemplo, se voce fica doente, o sacerdote diz para voce pegaro seu animal totemico, como uma simpatia, para que a doenca sejacurada. O sacerdote esta estabelecendo um nexo entre uma coisae outra. Daı, chega o cientista e diz que esse nexo nao existe. Epuramente imaginario. O processo da simpatia e simbolico. Noproprio simbolismo voce nao fundamenta tudo igual. E diferentevoce propor um simples nexo analogico e voce ver uma ligacaoreal entre aqueles entes. Por exemplo, essas cadeias de analogiasque se fazem com o simbolismo. Em que medida o sol, o leao, e ogirassol — que estao conectados simbolicamente — estao conec-tados realmente? Em que medida voce, mexendo num deles, voceafeta o outro?

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A magia diz que e possıvel que voce, atraves de um deles, al-cance o outro. Mas nem sempre. E preciso que haja um monte deoutros nexos. Na verdade, o raciocınio magico e muito mais com-plexo que o cientıfico. Vejam, por exemplo, o processo alquımico.Ele consiste na regeneracao do mundo metalico por uma inter-ferencia humana. Voce vai transformar o chumbo em ouro, e comisso voce vai regenerar uma parte da natureza que esta ...(?). Euacho que isso e possıvel. Porem, como se faz isso? Primeiro,voce precisa descobrir o nexo que existe entre um mineral e umvegetal. Porem, este nexo so se torna evidente em determinadosmomentos, muito peculiares, onde as conjuncoes astrologicas, decerto modo, o evidencia. Entao, voce precisaria colher elemen-tos minerais de uma planta, porem, em um determinado momento,sob uma conjuncao astrologica, que pode acontecer talvez no ano2073. Vejam o conjunto imenso de nexos que tem que ser estabe-lecidos.

Na verdade, os nexos que sao usados na Ciencia moderna saomuito mais simples. Muito mais faceis de voce encontrar. Ouseja, a fundamentacao teorica da alquimia e muito mais compli-cada. No fim vai ser a mesma coisa, porque voce vai lidar com umnumero de elementos infinitamente mais rapidos. Se voce vai a ummedico e diz: “Doutor, estou com o nariz escorrendo”. Ele temuma evidencia dos sentidos, ao ver que o nariz esta realmente es-correndo. Isto e uma saber, uma informacao, que ele tem. Porem,depois, ele vai dizer que isto e um sinal de alguma coisa. Este sinale um complexo de outros sinais, no qual ele acredita enxergar umadeterminada patologia. Qual e o nexo entre uma coisa e outra?Qual e a funcao desse nariz escorrendo? Se o nariz escorrendo euma gripe, sera que nao pode haver uma gripe sem nariz escor-rendo? Pode. Pode haver uma gripe sem dor alguma, em partealguma? Nao. Entao, o nexo entre o nariz escorrendo e a gripenao e o mesmo nexo entre a dor e a gripe.

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Esses varios sinais estao conexionados diferentemente. Istoaqui pode ser, por exemplo, um sinal mais ou menos casual. Podeser ate, uma idiossincrasia daquele medico: sempre que ele ve umindivıduo gripado, ele pensa nas ...(?). Isto e uma idiossincrasiadele, que esta conexionada com a gripe, mas somente atraves daconformacao pessoal daquele indivıduo.

Mas existem outros sinais que estao sempre presentes na gripe,que podem ser, algia, astenia, etc. O que esta sempre presente emtoda gripe? Poderia ser um estado febril. Mas o estado febril euma febre em potencial. Se o indivıduo nao tem febre, como eque se pode dizer que ele esta num estado febril? Porque ele teveantes, e pode ter novamente daqui a pouco, nao e mesmo? Vejamcomo e complicado!

Isto quer dizer que, quaisquer sinais e quaisquer sintomas, ja-mais estao conexionados uns com os outros, em funcao de umapatologia, porem em funcao de uma constituicao individual. Oconjunto de nexos e completamente diferente. Vejam que o con-ceito de uma patologia, gripe, icterıcia, hepatite, bicho-de-pe, etc.,tudo isso sao elementos teoricos com os quais voce fundamentaas conexoes que estabelece. Por exemplo, voce ve dois sinais evoce diz que isto e hepatite, e eles costumam aparecer juntos nahepatite, probabilisticamente. Porem, um outro medico diz quetudo isso nao existe, e que e tudo um nome que voce da. Um si-nal nao esta conexionado com outro porque existe uma entidadechamada hepatite, porem, porque este indivıduo tem uma determi-nada constituicao, e nessa constituicao esses sinais se conexionamdeste maneira. Entao, a nocao de constituicao “come” a nocao dapatologia.

Esta e a tendencia dos homeopatas. Eles nao gostam de nomesde doencas, mas so gostam de nomes de constituicoes individuais.Quando o homeopata diz que voce e sepia, ou que voce e (natriummuriatico), ele esta falando o conjunto de nexos que se produzem,

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nao em funcao de uma doenca, mas em funcao de uma constituicaoindividual, a qual se manifesta de uma maneira, ora saudavel, oradoentia.

Assim, se voce estrutura toda a clınica medica em cima dasnocoes das patologias, ou das constituicoes, voce tem um modode raciocinar completamente diferente num caso e no outro. Vocepode pegar indivıduos diferentes, por exemplo, um gordo, enorme,vermelho, e outro, astenico, com 1,20 metros de altura, pesando41 quilos, e voce poderia raciocinar de maneira mais ou menosanaloga em ambos os indivıduos, se os dois estivessem com hepa-tite. Porem, se voce raciocina baseado na constituicao, voce naopode fazer isso jamais. Eles jamais terao a mesma doenca. Assim,a doenca para um e concreta, para o outro e abstrata. E tudo te-oria mesmo. E o que e teoria? E um conjunto de nexos entre asfundamentacoes, com as quais voce vai conexionar depois, variosconhecimentos, varios dados.

A nocao de doenca, de patologia, e um dos fundamentos parase dizer que existe doenca, e os mesmos quadros que se repetementre indivıduos diferentes. Assim, este conceito de doenca e umdos fundamentos do raciocınio que, depois, voce vai fazer. Porem,outra pessoa nao pode dizer que nao existe doenca propriamente,mas so existem as constituicoes individuais. Isto quer dizer queos sinais encontrados terao que ser conexionados, nao em funcaodeste fundamento denominado doenca, mas em funcao deste outrofundamento denominado constituicao. Sao duas teorias diferentes,e elas vao fundamentar sistemas diferentes de nexos que voce es-tabelece entre os sinais. E se fosse magia? Seria a mesma coisa.So que os conceitos fundamentais da magia sao muito mais com-plicados. E uma fundamentacao muito mais indireta, e por issomesmo, na pratica nos acabamos abandonando-a. Ou praticandomagia sem fundamento algum. Seria uma pseudo-magia.

Voce diz que a icterıcia e um sinal da hepatite. Isto quer dizer

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que a hepatite causou a icterıcia? A doenca e causa do sinal? Seassim fosse, onde quer que ela estivesse presente, o sinal tambemestaria presente. Se, as vezes esta presente, as vezes nao esta, entaonao basta a doenca para causa-la. Ha uma outra causa concomi-tante. O mesmo sinal poderia estar numa outra doenca. Entao,voce nao pode dizer que a doenca e a causa do sinal. A patologia esempre a mesma coisa. A hepatite e sempre a mesma coisa. Isto eum conjunto de esquemas generico, pratico, comum, apresentadoem casos diferentes. Com isso voce constroi o conceito de umadeterminada patologia. Isto e uma teoria.

Por outro lado, ha uma outra teoria que se desinteressa de tudoisso, e estuda as constituicoes individuais. Entao, a constituicaodo indivıduo e x ou y, e ela podera se apresentar de maneira sa,ou de maneira morbida, em tais ou quais circunstancias. Mas, temque haver uma terceira teoria que conexione os dois criterios e quenao seja nem uma, nem outra.

Nao se precisa dizer que, na pratica, as pessoas fazem essa fusaosem estarem conscientes em o que elas estao se baseando. Comoisto pode dar certo, eu nao sei, mas o fato e que costuma darcerto. Se voce perguntar se macumba funciona, as vezes funci-ona, mas tambem nao sei por que. Na pratica cientıfica, existeuma faixa de fe, magia, fantastica. Isto funciona porque os fun-damentos teoricos, embora nao estejam conscientes na mente doindivıduo, eles existem, e eles estao disseminados no corpo da pro-fissao medica, cientıfica, de modo ...(?)... [ troca de fitas ] Entre-tanto, quando falha, falha tudo ao mesmo tempo. O coeficientese seguranca, por exemplo, e uma outra teoria de ordem proba-bilıstica. Como e que este coeficiente de seguranca esta conexi-onado com estas outras tres teorias? E muito raro que haja umindivıduo que esteja, de fato, consciente de todo esse conjunto denexos na hora de praticar. Esta e a grande diferenca entre umgrande cientista e um pequeno cientista. Um sabe da complexi-

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dade da coisa toda, e por isso mesmo esta aterrorizado. O outronao esta, e diz que se ele nao sabe, alguem deve saber. E, alemdisso, ainda existe a margem de seguranca.

Assim, quanto mais o indivıduo esteja consciente do funda-mento teorico daquilo que ele esta fazendo, mais claramente elepercebe nexos, e distingue os nexos reais, dos imaginaveis, e dosprovaveis.

Estamos falando de clınica medica. Imaginem na pesquisa pura.Na clınica medica e inevitavel que voce ligue o piloto automatico,confiante de que havera um colega que assinalara o erro, ou que opaciente manifeste o seu erro de uma maneira nao-letal, e voce iracorrigi-lo, se voce quiser.

Vejam que entre qualquer ato de inteligencia cientıfica, medica,e a teoria do fundamento, existe uma longa cadeia, e isto e muitomais complicado do que parece, e que estas teorias ficam coloca-das ali no fundo como uma retaguarda que esta orientando o con-junto, mas, de longe, sem aparecer. Porem, a quase totalidade doserros pode se explicar pela aplicacao da teoria errada, e nao por-que o conjunto da ciencia medica esteja errada. A ciencia medicaesta certa, mas como um conjunto, o qual e um saber potencialque esta depositado nos livros, nos disquetes, etc., e o fato e queo paciente nao vai consultar os livros, mas vai consultar um, ouum grupo de determinados medicos. Se este saber todo nao serealiza efetivamente na mente daquele indivıduo, nao como co-nhecimento teorico, e sim como fundamento teorico daquele nexoque ele estabelece naquele momento, o paciente estara em apuros.

Portanto, o problema nao e voce ensinar um monte de coi-sas ao medico, mas e preciso que voce de uma conviccao paraque ele intelija as coisas corretamente na hora em que ele en-xerga. Senao, ele vai confundir concomitancia com causa, comuma manifestacao acidental, com um efeito necessario, e assimpor diante. Vejam, por exemplo, um programa de computador,

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que e um conjunto imenso de nexos que foram estabelecidos poroutras pessoas, em outras epocas, transformados em linguagem decomputador e registrados ali. Ou seja, e toda uma cadeia dedu-tiva, a qual voce so tem o produto final, e voce nem tem ideia decomo tudo aquilo foi feito. Deste modo voce esta muito longeda fundamentacao. O livro foi um instrumento que proporcionouprogresso num certo sentido, e ignorancia num outro sentido. Naoe pelo fato de que a coisa esta escrita no livro que voce nao pre-cisa sabe-la pessoalmente. Eu acredito no conhecimento portatil,ou seja, aquele que esta no indivıduo, pronto para ser efetivado aqualquer momento, onde houver necessidade. O que esta no livro,no computador, nao e conhecimento. E um registro de conheci-mentos. E e justamente no acumulo do registro nao-efetivado que...(?) o indivıduo. Eu acho que esse e o problema maximo daeducacao. A capacidade de voce absorver registros depende dauniversalidade entre tudo o que nao seja o conhecimento teorico.Em suma, so interessa o conhecimento teorico. O resto vem com apratica. A pratica e infinitamente variada, segundo os casos. Naoadianta voce guardar tudo uniformemente. Na hora em que voceuniformiza a pratica e cria as rotinas, aı e que voce introduz o bes-teirol.

Qual e a diferenca entre o saber teorico, normativo, sabertecnico, e saber pratico? Se a educacao nao levar isto em conta,tudo o que ela ensina, depois, vira pastiche. O sujeito achar queo conhecimento tecnico e melhor que o pratico, ele e um louco.Toda tecnica e uniforme, e tecnica so ensina a lidar com tipos deproblemas, e nao com problemas especıficos. Portanto, a tecnicanada tem de pratica. O que se resolve com a pratica e porque naotem tecnica. A tecnica se constitui sempre de preceitos gerais,aplicaveis a tipos, a especies de casos. Nao existe uma tecnica deum caso em particular. Isto e precisamente a pratica. A tecnicaque voce inventa na hora, e um saber pratico. O que fundamenta o

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saber pratico e o saber teorico, e nao o saber tecnico. Quanto maissaber tecnico voce tem, mais voce se confunde. O que interessae voce ter um saber teorico profundo, e uma flexibilidade praticatotal. A tecnica voce inventa na hora.

E claro que um pouco de tecnica uniforme voce precisa ter, masnunca confiar sempre nela. A tendencia na medicina e voce confiarna uniformizacao tecnica cada vez mais. O sujeito que nao tem osaber teorico, cada vez sabe improvisar menos.

[ intervalo da aula ]Temos, entao, uma hierarquia desse negocio todo:

Saber --> nexo --> fundamentos --> teoria.

Porem, nao da para mapear isso de uma maneira tao simples,porque quando voce chega a um nexo, qualquer tipo de ligacaoque voce estabeleca entre fatos e um nexo. Entretanto, a partirdo momento que voce estabeleceu um nexo, por exemplo, “A ic-terıcia e um sinal da hepatite”, mas nao indica necessariamente ahepatite, voce pergunta: “Por que?” Qual e a diferenca que voceestabelece entre esse nexo que existe, entre icterıcia e hepatite, eoutro tipo de nexo que indicasse um efeito necessario da hepatite?Qual e o nexo que voce estabelece entre o tracado do eletrocar-diograma e o estado do coracao do paciente? O primeiro nexo eque voce supoe que o tracado acompanha a subida e a descida deuma tensao eletrica, o que ja nao e muito exato. Daı, as variacoesda tensao eletrica refletiriam alteracoes no movimento cardıaco,e essas alteracoes refletiriam determinadas alteracoes sentidas noproprio orgao. E toda uma cadeia de nexos. E um sinal muito in-direto. E cada um desses nexos se fundamenta em alguma coisacompletamente diferente. Para um simples sinal, voce precisa deum conjunto de nexos baseados em fundamentacoes totalmentediferentes.

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O motivo pelo qual voce cre que o tracado num papel refleteuma variacao de potencial eletrico, e nao uma outra coisa, e um.So isto ja e um conjunto imenso de nexos. Quem te diz queuma forma grafica pode ser analoga ao ritmo do tempo? Durantequanto tempo aquele coracao bateu? Como e a medida, e comofazer com que aquela medida seja precisa, e qual e o princıpio daanalogia entre estas duas coisas? Na Musica, por exemplo, existeum nexo entre o tracado e o tempo, porque voce determinou queexiste. Voce convencionou. Mas, nao e o que acontece com oeletrocardiograma. Aquele tracado expressa um transcurso que jaaconteceu. Independe de voce.

Por aı voce ve que ha uma serie de nexos que depende de umafundamentacao que vai, em ultima analise, se apoiar na teoria dapercepcao humana. Tudo isto esta pressuposto aı. E se uma destasteorias cair, cai o eletrocardiograma junto. E como a ponte Rio-Niteroi, onde a fundamentacao, a base, esta debaixo dagua, e vocepassa por ela, porque voce acredita que a base esta la, embora vocenao saiba se isto e verdade.

Imaginem se voces vao investigar isso na esfera da Psicanalise.Um ato que voce cometeu ao montar uma frase e interpretadocomo um sinal de que voce cometeu uma erronea associacao deideias, o qual e interpretado como uma confusao entre duas esferasdesconectadas, o qual e interpretado como funcao de existencia defocos de preocupacao estranhas ao assunto, a qual e interpretadacomo um sinal de uma tensao remanescente de um outro aconteci-mento, que nao tem nada a ver com o assunto, o qual e interpretadocomo um sinal de um conflito que aconteceu com o pai e a mae,quando voce tinha quatro anos de idade. Como isso acontece?Claro que tudo isto pode estar muito certo, mas nao e assim, semmais nem menos, como se isso fosse uma coisa evidente.

A Ciencia e um bloco totalmente sistematico, onde tudo estaapoiado em tudo. Nao ha espacos vazios. Por exemplo, no caso

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do eletrocardiograma, voce esta se fundando na eletricidade, na Fi-siologia, na Fısica, etc. Ou seja, qualquer sujeito, partindo do ele-trocardiograma, e remontando para tras, ate os seus fundamentos,vai ver que ha esses fundamentos. So que sao fundamentos com-plexos, indiretos. E, se ele tiver consciencia disso, ele tem muitomais criterio para saber da aplicabilidade real daquela coisa. Se eusei por que uma coisa significa outra, eu posso saber com mais fa-cilidade quando ela significa, realmente, ou quando nao significa.No caso da Psicanalise, um determinado objeto, um engano, umequıvoco, a Psicanalise ja interpreta como sendo um sinal dissoou daquilo, sem saber toda a cadeia de nexos. Se soubesse, eletentaria, em primeiro lugar, explicar este lapso por qualquer ou-tro motivo, e se nao conseguisse, daı ele iria tentar a explicacaopsicanalista.

Este e, precisamente, o princıpio metodologico. Qualquer ato,gesto, deve ser explicado por um intuito consciente. Se todas aspossibilidades de explicacao por intuito consciente imediato, per-tinente a situacao falharem, lance a hipotese de que o sujeito estamentindo conscientemente, esta fingindo. Se isto ainda falhar,lance a hipotese de que aquilo pode ser uma acao induzida por ter-ceiros, e se isto falhar, daı voce apela para o inconsciente. E maisfacil voce achar a situacao imediata, a situacao imediatamente an-terior, a acao das pessoas, do que voce achar o tal do inconsciente,o tal do id. Se na primeira vez voce ja apela para o id, aı e muitofacil. Isto porque eu ja acho que ha uma relacao direta de umaentidade chamada id, como se fosse uma outra pessoa, e que e overdadeiro autor dos meus atos, e eu sou um fantoche.

Este tipo de explicacao mostra que o indivıduo nao tem a me-nor ideia de qual e o fundamento real da propria explicacao dasituacao. Claro que ela tem um fundamento, mas como este fun-damento e feito atraves de um complexo sistema de nexos, nao eo fundamento direto. E se nao e direto, nao pode ser aplicado em

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todos os casos.O que Husserl diz aqui, que caracteriza a Ciencia nao e, exata-

mente, os varios saberes que estao ligados, mas que eles estao li-gados atraves de nexos fundamentados que, por sua vez, se apoiamem teorias, ou seja, em sistemas explicativos gerais. Quando vocedistingue um nexo causal, de uma simples concomitancia, comono caso da icterıcia, que seria causada pela hepatite, entao voceesta discutindo o que e um efeito direto de um determinado estado,o que e um efeito indireto, e o que e uma fusao de duas correntescausais.

Qual e a diferenca exata entre um nexo causal e uma conco-mitancia? Hume ja nao dizia que nao existe nexo causal nenhum,que e tudo concomitante? Se e possıvel tratar desta discussaosem estar demente, significa que a nocao de causa nao e assimtao obvia. Ela parece obvia porque nos estamos acostumados ausa-la no dia-a-dia, e nos confiamos na autoridade da sociedade,da camada letrada, que deve saber o que esta falando. Da mesmamaneira que a crianca que acredita que o colo da mae e o lugarmais seguro do mundo, e ela nao sabe que a mae dela e esqui-zofrenica, e nao sabe que ela esta tramando joga-la do alto de umedifıcio naquele momento! E a sensacao de falsa seguranca.

Assim, sempre que nos nos apoiamos nesse conceito costu-meiro, nos estamos, em ultima analise, nos apoiando no caratersistemico da Ciencia. A Ciencia e um conjunto indubitavel e tudodeve, em ultima analise, fazer sentido. Na maior parte dos ca-sos, sao tiros no escuro. Todo mundo sabe que a Ciencia e umconhecimento organizado. Entretanto, a enciclopedia nao e umconhecimento organizado? Se voce organiza, por exemplo, pelaordem alfabetica, ele nao esta organizado? Se voce organiza umconhecimento pela sua ordem didatica, do mais facil para o maisdifıcil, ele nao esta organizado? Se voce organiza este conheci-mento pela ordem de utilidade, ou seja, os que sao de utilizacao

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mais frequentes, tambem nao esta organizado? So que nada dissoe Ciencia.

A Ciencia nao e um saber organizado, mas e um conhecimentoorganizado em funcao da sua fundamentacao teorica. De qualqueroutra maneira nao e Ciencia. A historia da Fısica nao e cienciafısica, e evidente. A sucessao das descobertas fısicas nao estaorganizada exatamente segundo a ordem da sua fundamentacao,porque voce pode ter descoberto uma coisa, e ter descoberto a suafundamentacao depois. A Ciencia e uma organizacao hierarquicaonde a explicacao do fundamento teoretico ocupa a base, e as ou-tras conexoes vao se apoiando nesta base, ate que voce chega a po-der estabelecer nexos entre os dados considerados isoladamente.

Prestem bem atencao que no conceito alquımico tambem nadaesta separado. Uma ciencia magica que supusesse um hiato noreal, e uma autocontradicao. Ao contrario, a magia pressupoe ateum numero de nexos maior, mais estreito, do que a Ciencia. Aunica crıtica que nos podemos fazer ao mundo magico e que elee um sistema de nexos tao bem organizados, que e utopico. Naoexiste uma explicacao geral que de tanto fundamento a tantas coi-sas assim. E como se voce dissesse que a magia e racional demais.Nela, tudo esta excessivamente explicado.

No fato de que a forma sistematica nos pareca a mais puraencarnacao da ideia do saber nao se exterioriza meramente umtraco estetico da nossa natureza.

Isto aqui e fundamental. O homem tem, por um lado, umaespecie de ordem, de totalidade e harmonia. Nesse sentido, nospoderıamos dizer que a razao e como uma expressao do senso deintegridade do proprio organismo. Isso existe de fato.

Piaget estuda o surgimento das operacoes racionais do homemcomo atos derivados de uma especie de impulso de integridade ede autoconservacao do organismo psicofısico humano. Isto e o quenos poderıamos chamar de fenomeno estetico. O estetico e aquilo

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que enxerga as coisas sob a categoria da unidade, da harmonia, doequilıbrio. Harmonia e equilıbrio sao formas da unidade.

Existe um outro autor, que foi professor da USP, Etienne Sou-riau, cujo primeiro trabalho estabelece correspondencia entre opensamento logico e o que ele chama de “uma visao estilizadadas coisas”. A Logica, para ele, e uma estilizacao do pensamento.Neste sentido, o pensamento logico e a organizacao cientıfica doCosmos emanam do mesmo impulso pelo qual o homem produzobras de arte, no sentido de unificar numa forma harmonica o fluxomais ou menos incoerente da experiencia. E isso que Husserl serefere quando ele fala que esse carater sistematico da Ciencia naoprovem de um mero impulso estetico, embora ela pudesse provertambem.

Quando voce fala de um impulso estetico, e no sentido de vocedar uma forma unitaria ao fluxo da experiencia. E por isso quevoce faz arte. Por exemplo, quando voce conta uma estoria, quasetodas as estorias de todas as pessoas que voce conhece, aconte-cem concomitantemente a milhoes de outras estorias, que nao temnada a ver com o assunto, mas que estao ali cruzadas, formandouma especie de caos. Entretanto, voce isola uma estoria singular,e a encara na sua forma apenas, separando- a de todos os elemen-tos materiais que pudessem interferir no curso dos acontecimen-tos. Voce faz isso por um impulso estetico, para encarar a formado acontecimento de uma maneira total, unitaria, harmonica. Porque o homem faz isso? Piaget responde que e por um impulsode autoconservacao da forma do seu organismo. Isto quer dizerque o impulso que leva voce a organizar racionalmente, estetica-mente, a experiencia, e o mesmo impulso que faz voce se defender,por exemplo, de uma agressao. Ou seja, o carater caotico da ex-periencia e uma agressao ao nosso organismo psicofısico, e nosnos defendemos desta agressao organizando o todo, atraves destaforma estetica, logica.

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Mais particularmente, Etienne Souriau, estudou a analogiaquase perfeita entre o que e o impulso estetico e o pensamentologico. Assim, este elemento existe, porem, ele existe no homem,e ele pode ser uma das causas que impelem o homem a fazerCiencia, e de uma forma, precisamente, sistematica. Porem, ofato de que o homem tenha este impulso para a unidade, ou formasistematica, do conhecimento, nao quer dizer que esta forma sis-tematica seja, de fato, a mais adequada para o conhecimento doreal.

O que Husserl esta dizendo e que, independentemente do im-pulso humano para o sistematismo logico-estetico, a forma sis-tematica e a ideal para o conhecimento do real. Portanto, diz ele,se as ciencias sao idealmente organizadas em forma sistematica,isto nao deriva de um mero impulso estetico nosso, mas derivada organizacao do proprio real. Se um outro ser, que tivesse umaorganizacao completamente diferente da humana, se quisesse ob-ter um conhecimento, faria a mesma coisa, com ou sem impulsoestetico. No nosso caso isto e uma feliz coincidencia. Nos temoseste impulso estetico e o real e organizado em esferas distintas, esegundo nexos tambem organizados. E nao e so uma coincidenciaporque nos tambem fazemos parte do real.

O sistema nao e invencao nossa, mas reside nas coisas; o reinoda verdade nao e um caos desordenado; nele rege uma unidade deleis; e por isto a investigacao e a exposicao das verdades deve sersistematica, deve refletir suas conexoes sistematicas e utiliza-las,ao mesmo tempo, como escala do progresso, para poder penetrarem regioes cada vez mais altas partindo do saber ja dado ou obtido.

A ciencia nao pode prescindir dessa escala. A evidencianao e um acessorio natural. Para que investigar relacoes defundamentacao e construir provas, se somos partıcipes da verdadenuma consciencia imediata?

“A evidencia nao e um acessorio natural” — nao e tao natu-

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ral quanto respirar, andar, etc. Se ela fosse um acessorio natu-ral, estaria funcionando vinte e quatro horas por dia, e de tudoo que voce conhece, voce teria um conhecimento imediatamenteevidente. Entao, e obvio que nao acontece assim tao naturalmente.E, sendo assim, daı surge a necessidade de investigar as relacoesde fundamentacao, e construir formas, ou seja, a evidencia indi-reta.

Mas, de fato, a evidencia que impoe o selo de existente asituacao objetiva representada, ou a absurdidade, que lhe impoeo de nao-existente, so sao imediatas num grupo de situacoes obje-tivas primarias, relativamente muito limitado.

Somente para certas situacoes primarias que a evidencia saltaaos olhos. Por exemplo, estar ou nao estar aqui, agora. Uma coisaser ela mesma, ou nao. Ou seja, a evidencia marca a veracidadede um situacao objetiva. E a absurdidade, que e o contrario daevidencia, marca a nao-existencia.

Porem, na maior parte dos casos, a existencia, ou a nao-existencia, nao estao patentes, e so podem ser verificadas atravesde uma cadeia de nexos.

Ha inumeraveis proposicoes verdadeiras, de cuja verdade so nosapercebemos quando as “fundamentamos” metodicamente.

Existem muitas coisas que sao verdadeiras, mas nao sabemospor que sao verdadeiras.

Este fato de que necessitemos de fundamentacoes nao so tornapossıveis e necessarias as ciencias, mas, com as ciencias, uma te-oria da ciencia, uma logica.

Se este sistema de fundamentacao e necessario, justamente por-que nos falta a evidencia, as fundamentacoes tambem nao saoevidentes de inıcio. Elas tambem sao resultado de uma ou-tra fundamentacao, e assim por diante, ate chegarmos em certasevidencias primarias.

Portanto, o estudo das fundamentacoes e tambem uma ciencia,

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que Husserl chama de Logica. Ele entende como Ciencia, o sa-ber fundamentado numa unidade teoretica. E o saber organizado,segundo a ordem das fundamentacoes teoreticas. E ele entendecomo Logica, a teoria da fundamentacao, ou seja, a teoria da vali-dade da Ciencia. E a teoria que diz porque a Ciencia e Ciencia, ouse ela nao e Ciencia de maneira alguma.

Assim, poderıamos admitir tanto uma Logica geral, que faca afundamentacao em geral. Por exemplo, a definicao de evidenciaseria a mesma para toda ciencia, porem, voce poderia admi-tir uma serie de Logicas especiais, conforme os objetos ma-teriais e formais das varias ciencias requeressem diferentes ti-pos de fundamentacoes. Por exemplo, e facil voce ver que afundamentacao e uma em Aritmetica, e outra em Biologia. NaMatematica nao existe nenhuma fundamentacao que dependa deuma evidencia sensıvel, mas em Biologia existe.

Qual e a natureza de cada uma dessas fundamentacoes? Quale o seu alcance? Qual e a validade de cada caso? — e assim pordiante. Tudo isto faz parte de uma teoria especial da Ciencia.

Se todas as ciencias procedem metodicamente, entao o es-tudo comparativo desses instrumentos metodicos havera deproporcionar-nos os meios para estabelecer normas gerais.

Nao so as normas gerais que valham para todas as ciencias, mastambem as normas especiais ou locais, que valham para cada de-terminada ciencia.

Vamos fazer a seguinte hipotese: que o mundo seja um aglo-merado caotico, do tipo epicuriano, onde os atomos se encontramcasualmente, e formam seres e coisas. E que, os atomos se encon-trando fortuitamente, desde milhoes de anos, conseguiram formarem determinado planeta, um ser que tem um impulso estetico.

Isto nao e impossıvel. E este ser tende a juntar todos os dadosda experiencia, todas as informacoes que lhe chegam, como seformassem uma unidade. E evidente que este ser e o que esta mais

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enganado de todos, porque ele ignora o caos. Ele enxerga a ordeme a unidade onde so existe caos e multiplicidade.

Millor Fernandes acredita nisto piamente. Ele segue a filosofiade Epicuro, talvez sem saber quem seja Epicuro, mas tudo o queele fala, pensa e diz e baseado nisto. E a teoria epicurista: o ho-mem forma uma unidade porque ele tem um impulso para tanto,mas o mundo e um aglomerado caotico. Entretanto, algum devoces e capaz de dizer que o mundo nao e um caos?

Ha uma teoria metafısica, que diz que o mundo e uma ordem,ou que o mundo e um caos. Essa discussao e complicada. Vocepode oferecer argumentos para determinada teoria, e tambem, paraoutra. Entretanto, da para perceber que, num caso, a Ciencia pre-tende retratar uma ordem no mundo, e no outro caso, ela implantauma ordem no mundo. Ela e uma expressao do desejo humano.

Essa ideia do caos, que parece maluca, ela e dominante emvarios meios. Eu nao acredito que haja pessoas que pensem as-sim, so para arranjar discussao a toa. Elas foram levadas a pensarassim, talvez por experiencias que tiveram. Eu acredito que esta euma teoria errada. Mas ela nao e impensavel.

Suponha que o mundo seja caotico, mas que ha parcelas quesejam organizadas, ou que funcionam como se existisse algumaordem. Ou seja, entre a forma total do caos e o que nos proje-tamos como ordem, existe, as vezes, uma coincidencia, que sejasuficiente para fundamentar uma acao racional humana. Existeum enorme numero de cientistas que pensa assim. Esta e uma dasverdades alternativas.

O proprio Ortega y Gasset pensava um pouco assim: aqui estaa realidade, e aqui esta a teoria fısica. Esta teoria coincide coma realidade em determinados pontos, e no resto ela e totalmenteinventada, imaginaria. Se estes pontos coincidem com a aplicacaotecnica, ou por testes de laboratorios, jamais saberemos se existeerro aı. O fato e que sao erros que funcionam. Isto deriva da pers-

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pectiva do pragmatismo: uma teoria cientıfica e verdadeira, naoquando ela expressa a ordem real dos fenomenos, mas quando elacoincide com os fenomenos em determinados pontos, suficientespara sustentar uma nacao humana. Isto tudo tera que ser estudadocom muito cuidado, mais tarde.

Eu tambem acho que isto esta errado, mas nao e a absurdidadetotal — e possıvel. Nos nunca devemos pensar que quem naopensa como nos esta maluco. Muitas vezes e maluquice mesmo,outras vezes e pura enganacao, mas muitas vezes nao e nada disso.E uma hipotese viavel. Hans Vahinger dizia: “Tudo se passa comose fosse assim”. E o esquema do Ortega y Gasset.

A luz do Husserl, tudo isto cai maravilhosamente. Ele dizque tudo isto e maluquice. Se existe um caso de demonstracaocompleta de alguma coisa, esta aqui no texto de Husserl, de ma-neira completa e exaustiva, sob todos os aspectos possıveis e ima-ginarios. Nao ha nada que voce possa dizer depois.

A ideia psicologista esta no fundo de todas essas teorias. To-das elas se baseiam na Psicologia, de uma maneira ou de outra.Elas se baseiam na ideia de que a Logica e um processo do pen-samento humano. Se voce retira esta viga de baixo da estrutura,cai o pragmatismo, cai o epicurismo, cai tudo! Voce ve que elessao impossıveis. So que ele aborda isto sob um aspecto que vocesainda nao tinham pensado. Como todas estas teorias exercem umefeito paralisante na mente humana, remove- las e fazer um be-nefıcio, porque voce vai investigando e, mais dia, menos dia, ecapaz de voce levantar uma hipotese dessas. E voce vai ficar oresto da sua vida paralisado ali, e nao vai saber sair, porque nao efacil sair. Quando William James, por exemplo, propoe essa coisa,nao e para nos enganar nao. Ele esta a fim de descobrir a verdade,chega a isso, e depois nao sabe como sair, e diz: “E assim!”.

Existe hoje, na Sociologia, toda uma corrente dominante queesta presa ao psicologismo. E nao sabe como sair dele. O texto de

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Husserl nao Logica, mas uma filosofia da Logica, ou seja, depoisde ter aprendido a teoria do Husserl, voce comeca a filosofar sobreele mesmo. Ele e o seu primeiro assunto. Epicuro e muito impor-tante na Fısica atual, e eu acho que ele e todos os seus discıpulosestao doidos da cabeca.

As condicoes do ensino, da pratica social da Ciencia sao ad-versas a ideia mesma de Ciencia. Se existe uma classe cientıfica,que e formada de batalhoes de pessoas, se as pesquisas tem quese suceder, umas as outras, como coelhos que se proliferam, se epreciso atender a todas as exigencias de pesquisa obrigatoria, tudoisso e incompatıvel com a ideia de Ciencia mesma. Quem disseque o saber organizado pode ser organizado com essa velocidade?Para que fosse possıvel progredir nessa velocidade e permanecerorganizados cientificamente, isso e utopico. Nos precisarıamos deser mais que humanos.

O progresso acelerado da Ciencia, como as pessoas acreditamque existe, ele nao apenas nao existe, mas ele nao poderia exis-tir em nenhum planeta do universo. E uma balela. O conheci-mento progride, mas nao e assim. Vejam num seculo, quantasdescobertas em Ciencia foram feitas? Uma, duas, e isso ja e umagrande coisa. As descobertas nao saem assim, uma atras da outra,e quando saem assim, elas vao perdendo o seu carater cientıfico,vao perdendo fundamentacao. Entram num mecanismo entropico,ou seja, aumenta a quantidade e diminui a diferenciacao vertical.Tanto faz uma pesquisa chegar a esta conclusao, como a conclusaooposta, porque ela esta destinada, nao a fornecer o conhecimentosob forma cientıfica, mas a sustentar a determinada pratica social.

A organizacao social da Ciencia e muito recente, ela se consti-tui a partir do seculo passado, e a Ciencia e muito antiga. A partirdo momento onde a producao cientıfica se organizou, ela progre-diu no sentido quantitativo, ou seja, tem muita gente ganhandodinheiro com isso. Ha verbas imensas sendo carreadas para este

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fim. Este progresso quantitativo da profissao, ele toma um rumoque destroi o fundamento da propria Ciencia, ou seja, ele cria umtipo de classe cientıfica que nao pode ser cientıfica em hipotesealguma. No instante seguinte, se instala uma gigantesca confusaoonde chegam aquelas constatacoes ceticas: “A Ciencia nao nos en-sina a viver; nao nos da felicidade, etc.”, ou seja, toda uma seriede queixumes e lamurias, vindo de uma certa parte da populacao,aliado a quantidade imensa de fracassos da profissao cientıfica, pa-rece fornecer o argumento para o tipo de pensamento alternativodo tipo neo-romantico, etc. Isto tudo esta fracassando porque aCiencia nao e Ciencia, e o negocio e tomar LSD, ficar doidao, eaı e que nos vamos encontrar a verdade. Ou seja, um erro produ-zido por um outro erro. E esse erro vem de que a Ciencia, na suapratica, espera que a vocacao cientıfica na mesma medida onde elaprogride quantitativamente e socialmente.

Esta contradicao tem que ser resolvida de algum modo Ou teraque haver uma mudanca total da cultura da producao cientıfica,ou a Ciencia acaba. Isto porque as ideias mais malucas, maisbarbaras, comecam a entrar na propria area da producao cientıfica.Na USP voce tem seminario de esoterismo, macumba, ufologia,duendes, etc., e eles acham que com isso vao superar os erros daCiencia. So que os erros nao sao da Ciencia enquanto ideia pura.Os erros sao da profissao cientıfica. Isto e o que nos estamos vendoneste fim de seculo: uma especie de suicıdio da Ciencia.

O livro “O Tao da Fısica”, por exemplo, nao tem nem Fısica,nem Tao! E, no entanto, fez um sucesso enorme na comuni-dade cientıfica. Virou uma especie de bıblia. Isto e uma pseudo-revolucao, um pseudo-progresso, na verdade e uma fuga.

A proposta do Husserl e ser mais cartesiano que o Descartes.Ele tem um livro que medita sobre a proposicao de Descartes, ondeele vai mostrar as limitacoes da proposta cartesiana, e o que estafaltando para completa-la. Ele nem acabou de falar, e ja estao

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querendo trocar por outra. As pessoas nao entenderam o Husserl.O que as pessoas querem e propor uma reforma da Ciencia queatenda aos anseios de felicidade dos indivıduos. Isto e uma tre-menda retorica. A proposta e encantatoria, mas o fato e que naofunciona, de maneira alguma, em area alguma. Alias, nao ha umaunica pesquisa cientıfica concreta baseada nisto. O pensamentosistemico nao sai disso aı. O pensamento sistemico e o sistema detodos os nexos, do nexo universal da fundamentacao da Ciencia.Nao ha nenhum conhecimento separado, e tambem nao ha esferasdos fenomenos que estejam separadas.

Isto aqui tem raızes na acao humana, tem raızes na imaginacaoe na percepcao sensıvel. Isto existe desde Aristoteles. O fato e quea Ciencia, a partir do seculo XIX, ela perde essa nocao sistemicana mesma medida onde perde a raiz na ideia pura de Ciencia. Daı,surgem pessoas oferecendo, nao a cura desse mal, mas uma uto-pia, que seria o holismo, a Nova Era, etc. A alquimia e muito maissistemica do que isso. Quando voce tem um pensamento muitocomplexo, muito abrangente, as pessoas ja te carimbam, por exem-plo, se eu digo tudo isso, elas vao dizer que eu sou racionalista, queeu sou contra o esoterismo, a magia, a alquimia, etc. Quando eufalo de astrologia, elas dizem: “Esse aı e astrologo...”. Elas te ca-rimbam e ficam esperando que voce va defender as alternativas x,y e z, e va responder A, B, C e D.

A luz dos Quatro Discursos, o que eu estou fazendo aqui e aideia de uma filosofia integral da cultura humana, que abrangeesse aspecto da Ciencia, do conhecimento imaginativo, abrangea ideia da revelacao do mundo, e se prolonga na ideia pura deCiencia. Se voce esperar para ouvir ate esse ponto, voce tera umaideia do conjunto. Mas, eu acredito que esse seja o conjunto, esseseja o sistema, que nos poderıamos dizer, tradicional, embora naoesteja expresso em parte alguma. Estou apenas tentando expres-sar uma coisa que esta aı, implıcita em todo desenvolvimento da

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cultura, e nao estou negando nada, nao estou afastando nada. Nomomento em que falo pensamento sistematico, ja esta dito tudo.Sistema quer dizer” onde se juntam todas as raızes”. Nao e umaideia de holismo generico, onde da uma sensacao de todo, de sen-timento de todo. Para ter sentimento de todo, basta tomar LSD,beber cachaca, etc. Espero que voces me ajudem neste empreen-dimento.

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13 de janeiro de 1993

Vamos voltar um pouco atras na questao da ideia pura deCiencia. A ideia pura de Ciencia define a direcao de todos osesforcos intelectuais da humanidade, existentes a dois mil anos oumais. Todos que investigaram qualquer coisa, em princıpio, esta-vam norteados por essa ideia pura, no sentido do saber apodıctico,indestrutıvel. Mesmo quando o indivıduo so acredita no conhe-cimento precario, parcial, relativo, ainda assim ele esta norteadopor essa ideia do saber apodıctico. Acontece que ele julga nega-tivamente o saber positivo, ou seja, o saber efetivamente existenterecebe um julgamento negativo a partir desta comparacao com osaber apodıctico, possıvel.

Partindo da ideia pura de Ciencia, e vendo que a Ciencia efe-tivamente existe, o sujeito ve que a ideia que existe nao atende aestes requisitos, e nem poderia atender. Ao passo que outros acre-ditam que se ela nao atende a isso, ela podera vir a atender algumdia. De qualquer modo, o que ninguem questiona e a ideia pura deCiencia. Esta ideia e composta do seguintes elementos:

1. Evidencia: que se define por um saber, ou uma sentenca,que so pode ser negada mediante um duplo sentido. Esta se-ria a definicao tecnica da evidencia. Uma evidencia e umsaber que so pode ser negado por uma frase cujo ato delocucao e uma negacao do seu conteudo. Se o seu conteudo

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e verdadeiro, ela nao pode ser proferida, e se ela pode serproferida, e porque ele nao e verdadeiro. Isto nada tem a vercom contradicao logica.

2. Evidencia indireta: ou prova; e a sentenca que nao e ime-diatamente evidente em si mesma, ou seja, que pode ser ne-gada sem duplo sentido. Entao, ela nao pode ser dita verda-deira em si mesma, mas ela depende de uma outra anteriorque a fundamente, que a justifique, e que a garanta.

3. Porem, para que uma sentenca possa garantir outra, e ne-cessario que exista um nexo, e que este nexo seja, elemesmo, evidente, ou seja, nao necessite de uma prova. Umdos nexos evidentes e o nexo entre parte e todo, por exem-plo, uma frase que voce disse ja esta embutida na outra, re-presenta apenas uma parte da outra, entao, a veracidade damaior contem a veracidade da menor, e a garante portanto.

Estas sao as tres condicoes teoricas.Se a ideia pura de Ciencia emprega uma evidencia que nao e

tao difıcil em si mesma, por que existe o erro, por que existe afalsidade, e por que existe tanta discussao? Esta ideia pura deCiencia ja permite elucidar, de cara, em que consiste a pseudo-ciencia; em que consiste a falsidade. Se nos temos tres condicoespara que um saber seja apodıctico, devem haver tres condicoes quepermitem que este saber seja falso. Para que um saber seja falso,ele tem que atender uma das seguintes condicoes:

1. Falsa evidencia: e quando voce toma por inquestionaveluma coisa que e questionavel. Quando voce julga que umadeterminada sentenca so poderia ser negada mediante umduplo sentido quando na verdade ela poderia ser negada semduplo sentido algum. Dito de outro modo, e quando existe a

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possibilidade da sua negacao, porque a evidencia nao existea possibilidade real da sua negacao. Toda negacao de umaevidencia e uma negacao fingida. Quando um indivıduonega uma evidencia, ele nao esta negando, de fato. O fatodele negar ja prova aquilo com o que ele esta negando. Naoe o conteudo da negacao dele que prova a veracidade doque ele nega, mas e o ato dele negar. Por isso, nao e umacontradicao logica, que e uma contradicao interna do dis-curso, ao passo que a negacao, na negacao da evidencia, acontradicao e externa. Nao e entre uma parte do discurso eoutra parte. E entre o discurso e a condicao da sua pronun-ciabilidade, ou seja, o discurso que negue a evidencia naopode ser pronunciado, a nao ser que a evidencia seja ver-dadeira. Porem, nos podemos achar que uma determinadasentenca, uma determinada contradicao, uma determinadacondicao, atende a este requisito, quando na verdade ela naoatende.

2. Evidencia indireta tomada como direta: ou seja, tomadacomo princıpio. E quando ha uma sentenca, uma conviccao,uma proposicao, uma crenca, que nao e garantia de simesma, e que e tomada como se fosse uma evidencia di-reta, ou um princıpio, de modo que ate mesmo as evidenciasdiretas deveriam ser fundamentadas por elas. Isto aqui e omais grave que existe, porque ate a falsa evidencia pode sercorrigida.

3. Falta de nexo: esta condicao pode acontecer sem nenhumdos erros anteriores. E o que se chama de erro de logica.Quando nos cometemos uma das muitas figuras do falso si-logismo, ou seja, de uma coisa nos concluımos outra que,logicamente, nao se segue a ela. Esta e facil de corrigir. Se

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voce entregar para um computador, ele corrige. Isto aqui ea propria contradicao.

A primeira condicao, que e uma falsa evidencia, e uma falsainterpretacao das conviccoes que nos tiramos da experiencia. Euma ma observacao, ou, uma observacao parcial.

Vejam que, normalmente, os erros cientıficos que nos conhe-cemos sao todos atribuıdos a primeira, ou a terceira, condicoes,porem, a causa fundamental de erros, ao longo da Historia, vemda segunda condicao. Por exemplo, vamos supor que nos diga-mos que as categorias da Logica emanam da estrutura social (estae uma tese muito disseminada hoje em dia). Na medida em que hauma estrutura social, ha funcoes e instituicoes e, estas funcoes saointrojetadas e, daı, com elas, voce conserva o princıpio de identi-dade, o princıpio de causa e efeito, etc. Ou seja, a Logica e umatransposicao da estrutura social para o nıvel do discurso. A per-gunta e a seguinte: Qual e a prova que voce tem disto? A provae que eu estudei tais e quais sociedades, e tenho aqui um pilhade provas de que e assim. Ou seja, sua prova e por inducao. Ainducao e um dos meios de prova que existe em Logica, mas e ummeio que tem valor probabilıstico. Portanto, toda inducao tem quese fundamentar nos princıpios logicos. Se a sua prova atende aalguma coisa e porque ela atende os princıpios logicos, entretanto,se eles, por sua vez, nasceram do mesmo fato que voce esta estu-dando, entao, voce entra num cırculo vicioso. A inducao e tomadacomo se fosse uma evidencia inicial e, com base em algo que ob-tive por inducao, isto e, por um nexo, eu pretendo fundamentara propria evidencia. Assim, para que eu pudesse provar a minhatese, eu necessitaria de , como evidencia, os princıpios logicos,mas se eles nasceram dos mesmos fatos que estou estudando, euentro num cırculo vicioso.

Quase todos os antropologos do mundo inteiro pensam assim.

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O que prova que a Antropologia e uma pseudo-ciencia, embora,nao em tudo. Se eu digo: o princıpio de identidade nasce da ex-periencia repetida, ou seja, o homem aprende o fundamento doprincıpio de identidade atraves da experiencia. Mas, como eu vousaber se e a mesma experiencia? Se eu tenho experiencias repeti-das, elas podem me levar a uma conclusao, justamente, porque eutenho o princıpio de identidade. Se eu nao tivesse, eu nao chegariaa conclusao alguma. Entao eu tomei um nexo como fundamentode uma evidencia.

Isto aqui e a pedra-de-toque para voce nunca mais ficar assus-tado com nenhuma pseudo-ciencia. Se voce aplicar isto aqui combastante cuidado, voce ve que praticamente noventa por cento doque se toma como cientıfico, como provavel, nao tem fundamentoalgum. Isto e a base de um erro que, se ele se torna convincente, eporque o sujeito acrescentou o elemento retorico. A retorica nao eum erro. As pessoas a usam com um sentido pejorativo, mas ela,em si mesma, nao e pejorativa.

Existem uma serie de outras condicoes, que o saber precisa,e que sao praticas. E existem outros tantos erros relativos ascondicoes praticas tambem. Para que um ser humano possa terum saber apodıctico, alem das tres condicoes teoricas, ele precisater mais alguma coisa, que sao as condicoes praticas.

1. Repetibilidade: se eu nao tenho condicao de repetir duasvezes o mesmo ato intuitivo, o mesmo conteudo essencial,em duas circunstancias diferentes, qualquer conhecimentose torna impossıvel. Inclusive, para que eu negasse a possi-bilidade desse conhecimento, eu tambem precisaria repetiro mesmo ato intuitivo.

2. Registro: registro na memoria biologica, que conservao esquema simplificado do conteudo do ato intuitivo, na

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ausencia do ato intuitivo. Quando voce nao esta intuindonada, quando voce esta intuindo outra coisa, o conteudo daintuicao anterior se conserva, de algum modo, para que vocereconheca. Ou seja, no ato intuitivo, quando ele se repete,nao ha apenas um conhecimento de algo, mas ha um reco-nhecimento, no sentido de que voce sabe que a coisa conhe-cida agora, e a mesma que foi conhecida antes.

3. Transmissibilidade: se as duas condicoes anteriores exis-tem e porque existe um esquema transmissıvel de um mo-mento a outro momento. E aquilo que eu conservo do pri-meiro ato intuitivo, nao no seu conteudo inteiro, mas apenasuma parte suficiente para me permitir a repeticao do ato. Seeu posso conservar um registro simplificado, de momentoa momento, o que me impede de transmitir esse registro?Toda dificuldade de transmissao de conhecimento e de or-dem pratica, e nao, teorica. Por exemplo, a deficiencia delinguagem: a pessoa fala outra lıngua; a burrice do interlo-cutor; a falha de memoria; diferenca de codigos; diferencade sensibilidade entre uma pessoa e outra, etc. Tudo isso saodificuldades praticas, que podem variar conforme os sujei-tos envolvidos. Assim, o indivıduo que disser que o conhe-cimento essencial e intransmissıvel, e a mesma coisa queele dizer que esse conhecimento que ele acabou de trans-mitir nao e essencial. Se a intransmissibilidade do conhe-cimento essencial nao e essencial, ela e acidental. Se elae acidental, isto significa que, essencialmente, ele pode sertransmitido e que, acidentalmente, nao pode. Mesmo quevoce receba uma revelacao, ela e transmissıvel. O maximoque a pessoa poderia dizer e que o conhecimento e essen-cialmente intransmissıvel, mas que, acidentalmente, ela re-cebeu uma transmissao. Mas voce tambem poderia dizer: o

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que me impede que, acidentalmente, eu tambem receba? Atransmissibilidade nao e acidental no conhecimento. Ela eessencial. Sem ela nao existe conhecimento algum. Existeapenas a potencia do conhecimento, que e o simples ato in-tuitivo. Nesse sentido, todo conhecimento e um reconheci-mento. Se voce nao reconhece, e o mesmo que nao conhe-cer. Assim, existe tambem a possibilidade de conhecimentofalso, atraves de falsas condicoes praticas.

a) Falsa repeticao: quando voce acredita que uma coisaque esta sendo intuıda agora, e uma mesma que foiintuıda em outra ocasiao que nao esta. Por exemplo,uma falsa recordacao, um erro de memoria.

b) Registro falso: pode ser um documento falso, um tes-temunho falso, um registro perdido, etc.

c) Erro de transmissao: por exemplo, quando voce falauma coisa e o sujeito entende outra.

A totalidade da historia dos erros esta contida aqui nestascondicoes.

Quadro resumido das possibilidades do saber verdadeiro e do saber falso

Condicoes teoricas e praticas

Saber verdadeiro Saber falso

Condicoes teoricas

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1. Evidencia 1. Falsa evidencia

2. Evidencia indireta 2. Substituicao da evidenciaindireta a evidencia direta

3. Nexo evidente 3. Falso nexo ou ilogismo

Condicoes praticas

4. Repetibilidade 4. Falsa repeticao; erro de memoria

5. Registro 5. Erro de registro

6. Transmissibilidade 6. Erro de transmissao

Assim, por que existe tanto erro? Existe porque o indivıduoquer, porque se nao quisesse, simplesmente, aplicaria estescriterios, e no caso de nao poder tirar a duvida quanto ao que vaidizer, simplesmente deveria dizer: “Nao sei!”.

O fato e que, os homens de Ciencia, se por um lado sao nortea-dos pelo ideal de Ciencia pura, por outro lado sao seres humanostambem, e tem uma serie de outros interesses alem do ideal deCiencia pura: vaidade, preconceito, atmosfera de bajulacao profis-sional, desejo intenso de provar determinada tese que ele ama, eassim por diante.

Quando uma pessoa, em crianca, na adolescencia, ela e criadadentro de uma fe religiosa, e perde essa fe, e muito raro o indivıduoque mantem a questao religiosa em suspenso. Na maioria dos ca-sos, ele dirigira o seu esforco cientıfico no sentido de destruir areligiao que ele abandonou, e em um por cento dos casos ele man-tera a questao religiosa em suspenso. Max Weber e um exemplo

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do ultimo caso. Nem todo indivıduo que e religioso, e militante nasua religiao, e tente destruı-la no seu conteudo cientıfico. Entre-tanto, noventa e nove por cento dos ateus, sao ateus militantes. Odesejo de destruir os fundamentos da religiao que foi abandonada,torce completamente o esforco cientıfico da pessoa. Se voce aban-donou uma religiao, nao tem mais fe, nao significa que voce saibaque aquilo e falso. Nao ter fe e uma coisa, mas voce nao pode terfe no contrario. Ha uma distancia imensa entre voce nao ter fe,nao acreditar na Bıblia, e voce acreditar na negacao de cada umadaquelas frases. Se voce nao acredita que Deus criou o mundo emsete dias, isso nao significa que voce acredita que Ele criou em oitodias. O fato de voce ter perdido a credibilidade numa determinadaafirmacao, nao implica que voce tenha uma outra para substituı-la. Voce nao pode provar a descrenca. Uma descrenca nao e umatese cientıfica. voce simplesmente nao acredita. Se a fe e um aovoluntario, voce acredita se quiser ou nao. Se nao existe a provaintegral da fe, tambem nao existe a prova integral do contrario.

O caso do judeu, por exemplo, e peculiar. Um sujeito que largaa fe, em geral, ataca a sua Igreja. O judeu que se torna ateu, ataca areligiao dos outros. Por um motivo muito simples: o judeu, comominoria, nao pode perder o apoio da sua comunidade. O Judaısmonao e so uma religiao, mas tambem uma comunidade organizadaeconomicamente. Se ele ataca o Judaısmo, ele perde o apoio da co-munidade judaica, e ele tera que contar com o apoio dos catolicos,protestantes, etc.

Eu sou muito mais desconfiado dos ideologos ateus do que dosideologos religiosos, porque voce ve sempre o desejo do sujeitoprovar alguma coisa que derrubaria completamente, no entenderdele, os fundamentos daquela religiao que ele abandonou. Mas,se voce abandonou aquilo, por que nao vai estudar outra coisa?Por que voce nao deixa em suspenso esta questao? Se voce teveum ato voluntario de abandono, por que voce nao deixa os outros

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fazerem um ato voluntario de adesao? Max Weber foi um dos quemanteve uma linha cientıfica estritamente correta. Ele nao tinha feem coisa alguma, mas nao enchia o saco de ninguem.

Assim, nao existe um sujeito mais devoto do que o ateu. Emgeral, o abandono da religiao vem sempre cheio de ressentimentos.Um exemplo caracterıstico e o do fundador da Sociologia, ...(?).Ele e um ex-judeu, e como tal, ele tem que puxar a coisa para umlado que seja fundamentalmente anti-religioso. Ele nao e capaz dese colocar num outro plano.

Voce poderia perguntar: Aristoteles tinha fe em que? Eletambem nao tinha fe em nada. E nem por isso existe um intuitoreligioso, nem anti-religioso. Ele adota o caminho filosofico. Sevoce adota o caminho da Ciencia, isso nao deixa de ser, de algummodo, uma forma de religiao, e ela deveria te bastar.

Voltando ao assunto aqui, a condicao fundamental que cria apseudo-ciencia e quando uma evidencia indireta e tomada comofundamento de outras evidencias. Por exemplo, o sujeito quepretendia fundamentar o princıpio de identidade numa nocao designo. O matematico Gotrieb Freg (?), pretendia fazer isso. Umsigno e uma coisa que representa outra coisa, e que nao e essacoisa. Isto e para mostrar que o mundo da Ciencia nao e formadode pessoas puras, que estao la investigando a verdade, etc. Ha ummonte de pessoas que pode agir com os motivos mais indecorosos,e disfarcam bem, como qualquer outro domınio da acao humana.

Isto se torna uma tendencia mais dominante na medida ondea comunidade cientıfica aumenta, onde existe mais padronizacaoda atividade cientıfica, onde existe um exercito maior de pes-soas se dedicando a isso, uma fiscalizacao menor, e onde existea departamentalizacao (cada um fica escondido da fiscalizacao pe-los indivıduos da outra ciencia). Por exemplo, em Sao Paulo, umaluno de Economia, me disse que na primeira aula da faculdade,lhe ensinaram que a Economia e uma ciencia natural. Como ele

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jamais vai sair da faculdade de Economia para olhar aquilo porum outro lado, como ele jamais vai entrar numa faculdade de Bi-ologia, se ele nao compara a Biologia com a Economia, ele podepassar o resto da vida acreditando que ela e uma ciencia natural.Ele nunca viu uma ciencia natural. Se te disserem que o elefante eum peixe, sem voce jamais ter visto um peixe, voce acredita. As-sim, a lei da oferta e da procura e uma lei natural, da natureza. Ouseja, a lei da oferta e da procura passa a funcionar como se fosseuma especie de equilıbrio ecologico, quando nao e assim. Esta leijamais vigorou em parte alguma do mundo.

Essa ideia da Economia como ciencia natural aparece quando aburguesia, em ascensao, procura obter uma liberalizacao que, an-tes, nao tinha. Entao, ela diz que a sua atividade nao precisa serregrada por ninguem, porque a natureza era a regra. E uma ideiameramente ideologica, pois se fosse realmente uma lei natural,tudo ja estaria funcionando seculos antes. Mas, quem reivindicaessa liberalidade economica? So quem esta interessado nessa ati-vidade economica, e nao quer ser atrapalhado por um Estado, oupor uma Igreja. Quem advoga em favor do mercado diz que ele,por si so, se ajeita. Claro! Deixa eu fazer o que eu quiser que, au-tomaticamente, tudo se ajeita! E a ideia do PC Farias: o dinheiroque ele me roubar, quando ele comprar alguma coisa, voltara parao mercado, e depois de alguns milenios, voltara para o meu bolso...

Assim, para um estudante de dezoito anos de idade que ouve,no primeiro dia de aula, que a Economia e uma ciencia natural,como ele vai dizer que nao e? Quando ele se interessar em saberse isto e verdade ou nao, ele ja estara com cinquenta anos e ja naoadianta mais.

Do mesmo modo, se voce faz faculdade de Direito, Filosofia,etc., pode ter certeza que ha um monte de ideias como essa na suacabeca. Isto porque, nunca, as pessoas das varias faculdades sereuniram para ver se o que ensinaram na sua, sustenta, em parte, o

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que ensinaram na minha. Voces veriam que sobraria muito pouco.Se todas elas sao ciencias, e porque devem atender a determina-dos criterios comuns a qualquer ciencia. Entao, vamos examinara Ciencia a luz da teoria da Ciencia. E, o conceito fundamentalda teoria da Ciencia e a ideia mesma do conhecimento apodıctico.Portanto, o que nao atender a isso, ou e um conhecimento par-cial, secundario, que depende de outros para ser fundamentado,ou entao e falso. Assim, onde existir uma evidencia indireta, to-mada como evidencia direta, isso e imperdoavel. Isto se chamavıcio redibitorio. E o que nao tem jeito de ser consertado. e umcontrato de ma-fe, impossıvel de ser cumprido, e que tem que seranulado.

Daı pode-se ver que o edifıcio da Ciencia tem muito menos an-dares do que voce imagina. O progresso da Ciencia existe, masele e muito menos do que a propaganda afirma. O que avanca e atecnologia. Uma so descoberta cientıfica da margem a milhoes deavancos tecnologicos. Por exemplo, quando Leibniz desenvolveuo sistema binario, nao parou de ter consequencias ate hoje. O com-putador, por exemplo, e um sistema binario; o resto e eletronica.Nao ha tantas descobertas cientıficas. Ha aplicacoes dessas desco-bertas. O reflexo condicionado, por exemplo, e uma realidade.Mas, vejam tudo o que se tirou do reflexo condicionado desdeentao. A descoberta genetica e outro exemplo.

Assim, para cada descoberta cientıfica, ha milhares de hipotesesinteressantes, e tambem milhares de erros. No entanto, nao pode-mos contar a proliferacao de hipoteses como progresso. Tambemnao podemos contar a proliferacao de aplicacoes tecnologicascomo progresso cientıfico.

Hoje em dia, cresce muito o know-how e nao o know-what.Sabe-se muito como fazer, mas o que voce sabe continua a mesmacoisa. Assim, esses conhecimentos do progresso da tecnologia saobaseados em mudancas acidentais, perifericas, que para o usuario

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da coisa vao fazer uma diferenca brutal, mas que nao mudam aessencia do objeto. Por exemplo, um carro com pneu careca, e ou-tro com pneu novo, nao faz uma diferenca enorme? Mas, em quedifere cientificamente um carro do outro? Nada, ha apenas umdiferenca pratica, mas, nao teorica, de natureza (por exemplo, umtriangulo e diferente de um elefante). A diferenca cientıfica queinteressa e justamente a diferenca teorica. Na pratica, as vezes,e ate melhor voce nao saber a teoria da coisa. Alias, na pratica,tudo e mais facil que na teoria, porque na pratica voce conta coma acidentalidade, com a sorte. As coisas podem se resolver semque voce tenha a menor ideia. Entretanto, se voce quer a solucaoteorica perfeita, nesse caso, demora um pouco mais. Se vocenao consegue resolver o seu problema em particular, como vocequer resolve-lo em geral? A importancia pratica, e a importanciateorica, sao exatamente inversas. Um problema tem importanciateorica para voce quando ele nao tem importancia pratica urgente,porque senao nao da tempo de saber a teoria. Nesse sentido fısico,filosofar e nao-viver, e viver e nao-filosofar. Se eu estou padecendodo problema pessoalmente, eu sou o ultimo que tem interesse emteorizar esse problema. E, se eu vou teorizar, e porque aquele pro-blema nao e um problema meu, urgente. E um problema que eusinto, por uma identificacao, ou as vezes por uma compaixao.

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14 de janeiro de 1993

Numa prova de Historia do vestibular da UNICAMP, oitoquestoes sao relativas ao Brasil e a acontecimentos atuais. O restofica distribuıdo a Grecia, Asia, Inglaterra do seculo XII, e so. Dasoito questoes, ha uma, que embora seja sobre a historia do Bra-sil, sobre Tiradentes, ela e feita de modo a evocar uma problemapresente que e o plebiscito entre Republica e Monarquia.

A desculpa que o sujeito tem sobre isso e muito simples: aHistoria nao deve ser uma ciencia fossil, que vive do passado, ecomo disse Benedito Croce, toda historia, e a historia do presente.

Acontece que se e assim, a historia do presente nao e mais pre-sente do que a historia do passado. Essa e a sutileza. Se o in-divıduo nao e capaz de considerar perfeitamente atual o que acon-tecia na Grecia, no seculo IV, ele nao tem o sentido historico. Sea proximidade da data, lhe da ainda uma ilusao de centralidade,ou de importancia maior, o sujeito nao esta entendendo absoluta-mente nada do que e Historia.

Em segundo lugar, o fato do acontecimento presente parecermuito importante, nao quer dizer que ele seja efetivamente impor-tante historicamente. Isto porque no conjunto todo das conexoes,o fato que hoje parece algo transcendental, vai se anular perfeita-mente. Basta voce estudar as coisas que aconteceram, por exem-plo, a trinta anos atras, e voce percebera que a perspectiva do queo acontecimento deixou, as vezes, mostra que ela era bem menos

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importante do que ele parecia ser na epoca. As vezes, mostra queo importante nao era nada daquilo que voce estava imaginandonaquele momento.

Discute-se hoje o parlamentarismo, e o pessoal se esquece queele ja existiu, e tambem foi tentado com todas essas promessasde resolver os problemas do paıs, a crise entre o legislativo e oexecutivo, etc. A Historia mostra que aquilo ficou totalmente semefeito.

Do mesmo modo, a famosa polıtica neo-liberal do Collor, quea dois anos atras foi celebrada como se fosse a grande viradahistorica do Brasil, e hoje nos vemos que nao deu em nada. Domesmo modo que eu lhes asseguro, a retirada do Collor, tambemsera um nada. Historicamente, nada influira.

Nessa mesma prova da UNICAMP, ha uma pergunta relativa apolıtica economica do perıodo da ditadura, mencionando que elaera conduzida pelo ministro Delfim Neto, e formulada de formatal que, o aluno tera que se posicionar contra, de alguma maneira.Eu era, evidentemente, contra essa polıtica economica, na epoca;continuo sendo contra hoje, mas eu acho que voce obrigar o alunoa se posicionar contra um ato de um indivıduo que e polıtico, empleno exercıcio do seu mandato, e uma interferencia nos aconteci-mentos presentes. Pelo simples fato do sujeito estar vivo, significaque a historia dele ainda nao acabou, e que o que voce fala delehoje, influenciara os acontecimentos. Mesmo nas epocas de maiorluta ideologica, jamais ocorreu a ninguem, usar o vestibular para“pichar” um sujeito em particular, vivo e atuante. Um paıs ondeacontece isso, e um paıs onde vale tudo. O pior e que num vestibu-lar, o aluno nao a mınima condicao de discutir a pergunta. Ele estaquase que implorando para ser aprovado. Ele esta totalmente inde-feso quanto a isso. Ele tem que aceitar a jogada nos termos em quelhe foram propostos, senao ele nao passa no vestibular. Normal-mente, qualquer propagandista, de qualquer ideologia, teria pudor

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de fazer uma coisa dessas. No Brasil as pessoas nao tem mais essepudor. E sao os mesmos que falam da Etica. Eu acho que a propriapreocupacao com a Etica mostra um sintoma de uma mente cul-pada. O Brasil esta carregando culpas que ele desconhece, e quetodos estao precisando de um tipo de expiacao. E para expiacao,tanto serve o Presidente do paıs, quanto o Guilherme de Padua.

Num congresso de Psicologia, foi apresentado um perfil psi-cologico, difamatorio, do Collor. Isto e uma atitude criminosa.Voce nao pode expor um perfil psicologico de um sujeito vivo,em publico, sem a autorizacao dele. Nao existe perfil psicologicoque possa qualificar moralmente um sujeito. Isso e contra todosos princıpios de qualquer ciencia. E nao importa que seja contrao Collor, o Guilherme de Padua, etc., todos eles nao valem nadamesmo, mas mesmo que fosse com o satanas, o dracula, o Hi-tler, tanto faz, esta errado. Estas pessoas podem se sujar porque jaestao sujas. Entretanto, indivıduos que pretendem passar por auto-ridades cientıficas, por guias da opiniao publica, essas tem que terum pouco mais de compostura, e se recusar a fazer, e falar, certascoisas.

Esses indıcios de perturbacao da inteligencia, me parecemmuito graves, do que os acontecimentos de ordem fısica, porexemplo, aproveitar o assassinato da Daniela Perez para retomara tese sobre a pena de morte, num momento desses... Se ha ummomento em que nao se deve discutir a pena de morte e justa-mente agora , porque mesmo que a pena de morte fosse aprovada,o Guilherme de Padua nao poderia ser enquadrado nela porque alei seria posterior ao julgamento dele. Isto e oportunismo estupido.

Assim como no tempo do Collor, uma coisa esquisita que acon-teceu, que foi o pessoal de esquerda fazer uma alianca com o pes-soal mais direitista do paıs, em torno da ideia do moralismo, hoje,esta acontecendo algo parecido entre o pessoal do teatro e o Ama-ral Netto: estao todos pregando a pena de morte.

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Tudo isso sao sintomas, os quais nos temos que observar, apren-der a racionar fora do esquema. Para fazer isso, e necessarioque voce adquira um mundo proprio, ou seja, voce ter uma visaopropria do que voce nao esta enxergando, e as imagens que lhesao projetadas pelos outros, nao te influenciem. Se voce nao ve ascoisas com os seus proprios olhos, aquilo que esta sendo oferecidonao existe para voce. Criar esse mundo proprio, para cada um, e oobjetivo da educacao. Educacao vem do latim ex-ducere, ou seja,levar para fora. Para fora do ovo, que simboliza toda a estruturade valores, habitos, proibicoes, leis, de gostos , que voce herda doseu ambiente familiar e que funciona como uma casca protetoraate que voce esteja apto a andar com seus proprios pes. Uma dasfinalidades da educacao e quebrar a casca do ovo para que vocepossa sair andando. Esse e um dos sentidos que pode ser interpre-tado o duplo nascimento: o homem duas vezes nascido — ...(?)Mukta.

No simbolismo hindu e associado a uma ave. a ave nasce duasvezes: primeiro quando bota o ovo, e segundo, quando ela quebraa casca do ovo. Este segundo nascimento e feito atraves da propriaeducacao, que funciona como uma especie de chocadeira, que vaiaquece-lo, para que voce cresca e deseje quebrar a casca. Quemquebra a casca e a propria ave. Se a educacao nao intervem notempo devido, o ovo chocado apodrece.

O fenomeno atual, que se chama adolescencia ...(?) e um si-nal de um fracasso na educacao, na medida em que ela se tornaapenas um meio de aquisicao de ofıcios, ela nao serve para li-bertar o indivıduo do seu meio familiar, do seu meio de origem,ao contrario, ele o prende ainda mais a ele. O indivıduo acreditaingenuamente que a simples aquisicao de um ofıcio, ou de um em-prego, vai liberta-lo do meio familiar, quando evidentemente issoseria o efeito sem a causa. O que liberta voce do meio familiar equando voce consegue um mundo interior maior do que aquele do

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meio familiar. Mesmo que voce continue fisicamente ligado a ele,voce estara livre.

Se, ao inves de voce conquistar um mundo interior maior, vocepretende apenas realizar um ofıcio, acreditando que ter o seuproprio dinheiro, te libertara da famılia, voce esta louco. Vocepode ganhar dinheiro, morar em outro lugar, que voce estara sem-pre circunscrito a aquele ambiente de valores. O pinto quebra acasca do ovo no momento em que ele esta forte para quebra- la.Esta forca e o proprio conteudo da alma, o conteudo da psiqueindividual que exige um territorio maior, e nao apenas outro. Seo mundo das preocupacoes, dos objetivos familiares, ainda lhe esuficiente, voce continua querendo as mesmas coisas; voce queruma casa e seu pai tambem queria, ou seja, voce simplesmenteesta repetindo. E como se fosse uma extensao do mesmo mundo.Voce nao esta vivendo uma vida propria, nao esta suficientementeindividualizado.

Evidentemente, seria utopico que eu, sozinho, aqui neste curso,tentasse acreditar conseguir, por mim mesmo, suprir toda a faltade educacao, e chocar todos em dois anos, para que voces saiamvoando. Este curso constitui um sinal do que poderia ser umaeducacao, e so nao e por causa das dificuldades de tempo (es-casso). A educacao e uma influencia macica, que age sobre vocediariamente, varias horas por dia, e que se sobrepoe a influencia dafamılia, e que e mais forte do que a influencia da famılia no planodo passado.

Voce tem um futuro que te puxa diariamente, e e evidente queem quatro aulas por mes eu nao posso fazer isso. Isto aqui e maisum cardapio do que o alimento. E mais um indıcio do que poderiaser uma verdadeira educacao, do que a realizacao dessa educacao.Nunca esquecam disso.

O fato disso nao ser possıvel nao deixa de ser vantajoso, sobcertos aspectos, porque e possıvel que o indivıduo se liberte do

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meio familiar tornando-se subserviente ao meio escolar. Este sub-terfugio, para nos, esta excluıdo. Aqui, o indivıduo vai sozinho, ounao vai a parte alguma. O fato de que as pessoas, frequentemente,necessitem de apoio uns dos outros, e recebam este apoio, em partee bom, porque as vezes voce nao aguenta a pressao da vida, maspor outro lado, isso nao pode virar um vıcio. Esta na hora de porna cabeca que voce esta sozinho, e que nos nem podemos choca-locompletamente.

6. Possibilidade e justificacao de uma logica como teoria daciencia.

A ciencia refere-se ao saber. Nao que ele seja uma soma ou te-cido de atos de saber. So em forma de obras escritas tem ela umaexistencia propria, ainda que cheia de relacoes com o homem esuas atividades intelectuais. Ela representa uma serie de dispositi-vos externos, nascidos de atos de saber e que podem converter-sede novo em atos semelhantes, de inumeraveis indivıduos.

A Ciencia parte de um ato de saber, se torna um registro, o qualtem que conter a possibilidade de uma repeticao futura, senao eledeixa de ser um saber, e passa a ser um enigma.

A nos basta-nos que a ciencia implique ou deva implicar certascondicoes previas para a producao de atos de saber, cuja realizacaopelo homem “normal” possa considerar-se como um fim acessıvel.

Em princıpio, a Ciencia deveria ser um conjunto de dispositi-vos de registros, acessıvel a um homem normal, de modo que, aoter acesso a estes registros, ele pudesse repetir os atos intuitivospertinentes.

Neste sentido a ciencia aponta ao saber.Esta e a relacao entre a Ciencia e o saber: o saber so se da no

momento do ato de saber, mas o que nos chamamos de Ciencia etambem um fenomeno social, uma instituicao social. E a colecaode registros, e dos atos que visam a manutencao, o aumento, e adecifracao destes registros. E a relacao deste conjunto denomi-

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nado Ciencia, com o saber, e uma relacao como o da potencia aoato, ou seja, a Ciencia se justifica na medida onde ela representaa potencia para um ato de saber. Se nao existir a possibilidade daatualizacao, nao e mais Ciencia.

Husserl nao perguntou isso, mas eu pergunto: sera que peloproprio tamanho do registro ele ja nao deixou de ter algumarelacao possıvel com o saber? O simples fato de ser grande naoquer dizer nada, porque e grande em relacao a capacidade desse ouaquele, mas sempre poderia surgir, um dia, um indivıduo capaz deabarcar tudo aquilo. Nao e que ela seja praticamente impossıvelde se transformar em saber. Ela e teoricamente impossıvel. Haum impedimento teorico, absoluto, de que esse conjunto de regis-tros venha a se tornar um ato de saber, mesmo supondo-se umamente sobre-humana capaz de abarcar o conjunto de informacoes,ela nao tiraria daı conclusao alguma. Se fosse so pelo volume,ele mostraria uma impossibilidade pratica. Se nos imaginassemosuma especie de super-homem intelectual, ele seria capaz de abar-car tudo isso, porem, se o registro e caotico, existe uma impossi-bilidade de voce transformar aquilo em um ato de saber. Faca aseguinte hipotese: pegue todos os livros da Biblioteca Nacional;existe um impedimento pratico de voce ler todos eles. Porem, senos pegarmos todas as paginas, corta-las, e misturarmos as letras,o impedimento nao sera pratico, sera teorico, porque o resultadosera impossıvel de se ler.

No momento, onde a acumulacao de atos de saber adquire, elamesma, uma caracterıstica caotica, no sentido em que uma partedesmente a outra, em que nao ha linguagem comum, nao ha co-nexao, em que um saber e incomunicavel de uma ciencia para aoutra, nao e possıvel encontrar relacao alguma entre determina-das pesquisas e outras pesquisas. E isso nao acontece so entre asciencias, mas dentro de uma mesma ciencia. Assim, em que me-dida isso tem alguma relacao com o saber? Talvez esta pergunta,

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no tempo de Husserl, fosse ainda prematura, mas hoje em dia janao e mais.

Na minha opiniao, qualquer trabalho cientıfico, para que ele pu-desse ser incluıdo no anuario de uma universidade, ele precisariapassar por uma peneira muito mais profunda. Nao apenas pelosespecialistas da area, mas pelos especialistas das areas contıguas.Pode ser que um indivıduo, pesquisando algo a luz da Economia,chegue a uma conclusao que, do ponto-de-vista da Sociologia, ouda Psicologia, essa conclusao seria um absurdo, e que ja esta des-mentida de antemao. Se as coisas fossem para ser feitas de ma-neira seria, era para ser assim. O problema estaria resolvido.

De fato, nao e possıvel que a Ciencia progrida pelos simplesfato de ter mais gente se dedicando a ela. O numero de cientistasque se coloca em atividade numa determinada ciencia e relevanteate certo ponto. Entretanto, a partir dali a situacao se inverte. Voceprecisa ter um numero mınimo, sem o qual nao da para funcionaro intercambio cientıfico. A medida que vai crescendo a comuni-dade cientıfica, cresce o intercambio de ideias, e a coisa frutifica,como foi no Renascimento, com a criacao das grandes academiascientıficas, universidades, etc. Porem, quando o crescimento quan-titativo da camada cientıfica ultrapassa um certo limite, ele ja naorepresenta mais um progresso, mas sim um problema.

O acesso as profissoes cientıficas deveria ser barrado, e so deve-ria ser aberto a pessoas que tenham condicoes excepcionais. Ha-veria necessidade de uma elitizacao, porque a maior parte das pes-soas que estao indo para a profissao cientıfica, nao tem vocacaocientıfica. Elas querem e um emprego. O homem de Ciencia temque ter uma serie de qualidades, principalmente morais, sem asquais ele nao pode exercer a profissao. Um exemplo recente e osujeito que descobriu a AIDS, e suspeita-se que um roubou a pes-quisa do outro — isso e um escandalo! Quando Darwin lancou aorigem das especies, teve um outro sujeito, na Australia, que tinha

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lancado a mesma ideia, e Darwin reconheceu! Vejam a diferencade um verdadeiro homem de Ciencia.

Em algumas ciencias, um indivıduo sozinho pode faze-las pro-gredir, como por exemplo na Matematica pura, ou na Fısicateorica. No entanto, em outras, voce precisa de mais gente, so queate um certo ponto. O crescimento quantitativo e bom enquantoele favorece o intercambio, mas a partir do momento em que elecomeca a criar um impedimento...

E nao e so o problema do volume, mas da qualidade, e do nıveldas informacoes tambem. Essas informacoes serao colocadas emplanos onde a comparacao seja possıvel. A informacao pode serheterogenea, uma nao ter nada a ver com a outra, e voce nao temcomo comparar, nao tem como tirar uma sıntese. Aı, comeca aatrapalhar.

Isto tambem repercute no problema da terminologia. Quandoas pessoas nao se entendem no sentido das palavras que usam, naoe apenas porque eles nao combinaram quanto ao sentido das pala-vras, mas porque eles estao olhando para coisas diferentes. Todaconfusao de palavras tem uma outra confusao pior por tras. A con-fusao de palavras e, no fundo, uma confusao de coisas. No Bra-sil, por exemplo, as pessoas nao respeitam a linguagem. Se vocecombinar significados, convencionais e uniformes, para algumaspalavras, pode ser que um monte de coisas que estavam designa-das equivocadamente pelas mesmas palavras, fiquem sem palavrasque as designem. E como o acordo versa somente sobre as pala-vras, os objetos serao retirados do consenso. Quando existe umaconfusao terminologica muito grande, voce pode ter certeza queo objeto daquela ciencia e muito equıvoco, e ficam todos olhandopara varios lados da mesma questao.

O nıvel intelectual da pesquisa cientıfica esta caindo vertigino-samente. A pesquisa medica, por exemplo, esta tao padronizadaque o sujeito, usando aqueles procedimentos uniformes, acredita

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que ele esta observando alguma coisa. Acontece que ele nao esta,porque dos fatos envolvidos, ele esta apenas selecionando certosaspectos que correspondem ao modelo padronizado da pesquisa,e desde que haja uma aparencia de uniformidade da hipotese, dosmateriais, dos metodos, etc., e do resultado, ele acredita que aquiloesta certo. Mais ainda, hoje em dia, se chama de pesquisa medicao seguinte: eu dei um remedio para quinze pessoas e elas ficaramboas, logo... Nao ha nisso um trabalho de inteligencia. E a simplesrepeticao de uma rotina.

E claro que o mundo cientıfico, em geral, esta tao bem organi-zado ate um certo ponto, que a pesquisa rotineira acabava funcio-nando, mas quando voce, pela pesquisa rotineira, acaba ocupandonovas areas, aı voce comeca a fazer erros um atras do outro. Agrande parte dos fracassos da profissao medica, que o pessoal domovimento alternativo atribui ao fato da Medicina cientıfica ra-cionalizar as coisas, vem justamente pelo fato de que ela nao ecientıfica absolutamente, e ela e completamente racional. Se fossecientıfica mesmo, funcionaria. Nao existe mais diferenca entre apesquisa cientıfica e a observacao empırica mais rudimentar. Umahipotese cientıfica tem que ser fundamentada logicamente mesmo.Os sujeitos fazem uma hipotese qualquer, puramente empırica,por exemplo, eu faco a hipotese de que martelada na cabeca curabicho-de-pe. Por que? Ah!, porque sim! Eu nao vou discutir teo-ria, eu nao tenho tempo, porque eu sou um homem de Ciencia! Eudou martelada na cabeca de quinze pessoas; oito curaram, logo,esta provado cientificamente. Aı voce faz o calculo estatıstico daprobabilidade daquilo acontecer. So que a estatıstica nao significanada, nesse caso, porque nem a hipotese significa nada. A precisaoestatıstica que se usa entra no fim. A estatıstica serve para voceavaliar a significancia de um resultado em face de uma media jaconhecida anteriormente. Porem, isso nao vai introduzir diferencanenhuma entre um enfoque cientıfico e uma simples observacao

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empırica. A diferenca de empırico para o cientıfico, e o funda-mento da hipotese. Ou seja, por que investigar essa hipotese e naooutra? Eu trabalhei para uma revista medica por quatro anos, enunca vi um sujeito que tivesse consciencia disso.

Ha um livro chamado “Metodos da Pesquisa Cientıfica”; os su-jeitos confundem metodo da pesquisa cientıfica com a tecnica dapesquisa. Hoje em dia ja estao confundindo a tecnica da redacaocom a pesquisa cientıfica. Como se pode dizer que isso seja umprogresso? E por isso que o pessoal da medicina alternativa dizque a pesquisa cientıfica atual e um embuste, mas nao por ela sercientıfica.

Isto tudo e para voces verem como a relacao entre Ciencia esaber, no sentido em que Husserl esta falando, nao e uma relacaoaberta e, sim, uma relacao indireta e problematica. Eu penso queas coisas que sao causadas pela desonestidade nao sao tao graves.Se o sujeito e um corrupto, que recebe dinheiro de um laboratoriopara inventar um monte de mentiras para promover os seus pro-dutos, isso nao e tao grave. O grave e quando os vıcios mentaiscriados por essas pessoas sao adotados uniformemente por todasas pessoas honestas, que nao estao ganhando nada com isso, ecom a maior das boas intencoes, acabam achando que o certo eisso. Ha uma grande diferenca entre voce vender 900 gramas deacucar como se fosse 1 quilo, e voce alterar a balanca, de 1 quilopara 900 gramas. Aı, nao sera so um saco que voce vai venderpor 900 gramas, serao todos. O errado vira norma e nao tem maisjeito de consertar. Eu nunca acho que a corrupcao, em si mesma,seja uma coisa grave. O grave e quando todas as distorcoes criadaspela corrupcao acabam virando um modelo, uma norma.

Eu nao acho grave quando se diz que a classe polıtica e cor-rupta. Eu acho grave e quando o povo inteiro e corrupto. Leiam“A Historia dos Doze Cesares”, e voces verao que o proprio PCFarias e uma pessoa da mais elevada dignidade, porque houve um

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progresso moral da classe dirigente. Nao ha um polıtico do seculoXX, nem mesmo Hitler, que chegasse aos pes dos cesares. JulioCesar se prostituiu carnalmente a um sujeito para obter a sua pri-meira nomeacao — comecou assim a carreira dele. E daı paracima: emprestar a mulher para outro, entregar as filhas, as irmas,tudo isso era normal naquela epoca. O proprio Hitler jamais me-xeu com a mulher do proximo. Quando disseram para ele quehavia um sujeito da assessoria dele que transava com criancinhas,ele ficou indignado. Ou seja, por mais louco que ele fosse, eleja havia adquirido um padrao que estava muito acima dos dozecesares.

So que o problema nao e esse mas, sim, quando o povo comeca araciocinar de maneira totalmente errada. E, sobretudo, os intelec-tuais nao entravam nesse esquema. Havia sempre uma liderancaintelectual capaz de dizer nao, as vezes em prejuızo proprio, comoe o caso de Cıcero: sem armas, poder, ele ofereceu uma oposicaoferrea, e acabou morrendo por isso mesmo. Sempre houve quemfosse capaz de dizer nao a este mundo corrupto. Hoje em dia,isso esta se tornando uma raridade. Esta se criando toda uma falsacamada intelectual de modo a que voce nao tenha mais diferencaqualitativa entre o que fala um Cıcero e o que fala um legitimadorde discursos contratado.

A educacao nas escolas, por um lado, ao inves delas tentaremfornecer uma medida de valor mais universal, mais intemporal,ao contrario, elas entram na atualidade e assumem inteiramente opadrao de valores da atualidade, o qual e promovido pela propriaindustria editorial, e pelos meios de comunicacao. Entao, nessecaso, nao tem mais jeito.

Tudo o que dissemos ate aqui e para ver a relacao entre o queo Husserl chama de saber e Ciencia, onde ele usa a Ciencia nosentido nao so dos atos de saber, mas no sentido do conjunto dosatos, registros, etc., ou seja, no sentido do saber atual, efetivo, e

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potencial. Assim, nesse sentido, a Ciencia tem com o saber umarelacao problematica, ambıgua. Porem, daı para diante o que eleira falar, se referira a Ciencia, no sentido de ...(?)

[ fim da fita ]Pois bem, no saber possuımos a verdade. No saber efetivo,

possuımo-lo como objeto de um juızo justo.O saber e o saber da verdade; e o saber cujo conteudo e verda-

deiro. O ato do saber se manifesta internamente e externamente,conforme um juızo justo. Um juızo justo e um juızo que afirmaque aquilo que e, e, ou, aquilo que nao e, nao e. A forma do sabere uma sentenca, a qual pode ate mesmo ser implıcita. No mo-mento em que voce ve esta parede, e constata que ela e branca,existe aı um juızo implıcito. Voce nao formula este juızo, “a pa-rede e branca”; mas no fato de voce ver a brancura da parede, ereconhece-la, o conteudo deste saber se expressa num juızo, “aparede e branca”, o qual e justo.

A tudo o que voce sabe, corresponde um juızo, uma sentenca,e se voce nao o expressa em juızo, pelo menos, o juızo estaimplıcito. Nao existe nenhuma forma de saber que nao seja umjuızo. Isto acontece porque, psicologicamente falando, o fluxo danossa atividade cognoscitiva, as vezes, e tao rapido que nos nao ex-pressamos claramente os juızos que contem as nossas conviccoese observacoes. Mas os juızos estao la, implıcitos.

Mas isto so nao basta. E necessario, ademais, a evidencia, aluminosa certeza de que aquilo que reconhecemos e, ou de queaquilo que rechacamos nao e;

O que e a Ciencia? A Ciencia e um saber que contem umaespecie de uma verdade sob a forma de um juızo justo, mas naobasta so isso. E necessario que voce tenha a evidencia da justezado juızo.

Pode acontecer que voce, ao fazer um juızo que seja verdadeiro,mas cuja evidencia voce nao possui, por exemplo, quando voce

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fala um frase que coincide de ser verdadeira, mas que voce nao tema evidencia, ou a prova daquilo. Ou seja, a Ciencia se caracteriza,nao so por ser um saber verdadeiro, que se expressa num juızojusto, mas por ser um saber que possui o fundamento dessa justezanum evidencia. Uma frase que e verdadeira, mas da qual voce naopossua a evidencia, se e verdadeira por acaso, ou por sorte, nao eCiencia de maneira alguma.

certeza que e preciso distinguir da conviccao cega, da opiniaovaga, por resoluta que seja.

E por valida que seja. Se temos uma opiniao que e verdadeira,mas cuja prova, cuja evidencia, nao possuımos, isto esta fora doambito da Ciencia.

A linguagem corrente, porem, nao se atem a esse conceito rigo-roso do saber. Chamamos tambem ato de saber, por exemplo, ojuızo que vem enlacado com a clara recordacao de haver pronun-ciado anteriormente um juızo de identico conteudo, acompanhadode evidencia (“Sei que o teorema de Pitagoras e verdadeiro, masesqueci a demonstracao”).

Normalmente, nao precisamos ter a evidencia atual. Se houveja, anteriormente, um juızo de identico conteudo, acompanhadode evidencia, e eu o repito, isto tambem e um saber que pode seraceito como cientıfico.

Deste modo tomamos o conceito de saber num sentido maisamplo.

A nota mais perfeita da justeza e a evidencia, que e para noscomo que uma consciencia imediata da verdade mesma. Masna imensa maioria dos casos carecemos deste conhecimento ab-soluto, e em seu lugar serve-nos a evidencia da probabilidade.A evidencia da probabilidade de uma situacao A nao funda aevidencia de sua verdade (mas funda a evidencia da verdade daprobabilidade); mas funda aquelas valoracoes comparativas e evi-dentes, pelas quais logramos distinguir as hipoteses e opinioes

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razoaveis das irrazoaveis. Todo autentico conhecimento repousa,pois, em ultima instancia, na evidencia.

Mesmo no caso do raciocınio de probabilidades, eles tambemsao fundados numa evidencia, que e a evidencia da propria proba-bilidade.

Nao obstante, subsiste uma duplicidade no conceito de saber.Saber, no mais estrito sentido da palavra, e evidencia de que certasituacao objetiva existe ou nao existe. De acordo com isto, aevidencia de que certa situacao objetiva e provavel e um saberno sentido mais estrito (rigoroso) no tocante a probabilidade; mas,no tocante a existencia da situacao objetiva mesma, e um saberem sentido mais amplo (vago). Neste ultimo caso fala-se de umsaber ora maior, ora menor, e se considera o saber em sentido es-trito como o limite ideal e absolutamente fixo a que em sua serieascendente se aproximam assintoticamente as probabilidades.

Mas o conceito de ciencia exige mais do que mero saber. E ne-cessario algo mais: conexao sistematica em sentido teoretico; eisto implica a fundamentacao do saber e o enlace e ordem perti-nentes na sucessao das fundamentacoes.

Esquema mostrando como Husserl fundamenta as ciencias

1. Saber

2. Verdade

3. Expressa num juızo justo

4. Com evidencia (dos fundamentos da justeza)

5. Pode ser:

a) amplo

b) estrito

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6. Conexao entre os saberes (juızos)

7. Enlace e ordem na sucessao dos fundamentos

8. Unidade sistematica:

a) dos conhecimentos

b) dos fundamentos que sustentam os conhecimentos

A Ciencia nao e conhecimento organizado. E a organizacaodo proprio conhecimento. Tudo isso e um variacao em torno deevidencia direta e evidencia indireta. Apenas detalhamos a ideia.

A essencia da ciencia implica, pois, a unidade do nexo dasfundamentacoes, em que alcancam unidade sistematica nao so osdistintos conhecimentos, mas tambem as fundamentacoes mesmase, com estas, os complexos superiores de fundamentacoes, a quechamamos teorias.

Nos podemos ter um tipo de conhecimento que organize sis-tematicamente os conhecimentos, mas que nao estejam fundadosnuma unidade sistemica de fundamentacao. Por exemplo, o casoda Daniela Perez. Digamos que eu seja o delegado. Eu tenho afotografia do local, o relatorio das testemunhas, os testes feitospela Polıcia Tecnica, o relatorio dos policiais que investigaram ocrime, e a reconstituicao. Os fundamentos da veracidade de cadaum desses elementos sao diferentes. Formam eles, por acaso, umaunidade sistemica ou nao? Se a testemunha diz que viu o fulanola no local do crime, daı eu faco um teste de visibilidade no local.O fundamento da veracidade do testemunho nao e o mesmo fun-damento da veracidade do resultado do teste, o qual se baseia emtoda uma concepcao teorica sobre a relacao entre a luz e a visibi-lidade, e este fundamento teorico e uma ciencia inteira. Se voceretirasse a ciencia da Otica, acabou o teste. No entanto, eu nao pre-ciso da ciencia da Otica para julgar o depoimento da testemunha.

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Eu preciso de um outro fundamento. Se eu digo que posso julgarpela cara da testemunha, pelo tom de voz, etc., podemos ver queesses fundamentos estao desnivelados, e eles nao formam conexaosistemica. Mas, por que eles nao formam, e nao poderiam formaruma conexao sistemica? Porque uma investigacao policial nao euma ciencia, e uma tecnica. Uma tecnica junta conhecimentos he-terogeneos, que estao conectados entre si. Ou seja, as razoes quevoce tem para crer numa parte da investigacao sao diferentes dasrazoes que voce tem para crer numa outra parte. Por isso mesmo eque a investigacao policial nao pode ser uma ciencia.

Do mesmo modo, a clınica medica nao e uma ciencia, e umatecnica. Por exemplo, um medico, na clınica, ele pode levar emconta o tom de voz do paciente e, ao mesmo tempo, ele tambemleva em conta um exame de laboratorio. Voce tem aı um dadosubjetivo e um dado objetivo, e que voce nao pode dispensar nemum nem outro, portanto, aquilo nao e redutıvel a uma ciencia.

A Administracao de Empresas tambem nao pode ser umaciencia, ela e uma tecnica, porque ela implica conhecimentos cujacredibilidade e determinada por fatores completamente diferentese desnivelados. Se pudessemos reduzir todos esses elementos aum unico sistema de fundamentacoes, fundado num princıpio, ounum grupo de princıpios coerentes entre si, terıamos uma cienciacompleta.

Em Biologia, todas as razoes que voce tem para acreditar que ascoisas se passam de tal ou qual modo, estao referidas a uma unicateoria, que fundamenta um unico metodo. A tecnica e uma uni-dade sistematica dos conhecimentos, sem a unidade sistematicados fundamentos. Tudo o que e unificado, reunido, o e para al-guma coisa, e por alguma coisa. Por isso estamos todos reunidosaqui, agora. Os conhecimentos estao reunidos na tecnica e existeuma finalidade. Numa ciencia, os conhecimentos estao reunidosem funcao da unidade de um objeto em si mesmo. E uma unidade

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cerrada em si mesma, como diz Husserl. Na tecnica, qualquer co-nhecimento, referente ao que quer que seja, mas que seja util parao fim que voce tem em vista, pode entrar na tecnica. Mesmo queeles sejam de fundamentos completamente diferentes, e que naotenham fundamento algum.

Em Matematica, o criterio experimental vale? O metodo indu-tivo vale em Matematica? Claro que nao! A base da Matematicae dedutiva. A demonstracao de que o metodo funciona e dife-rente da aplicacao do metodo. E a diferenca do que seria o estudomatematico da inducao, e o estudo indutivo da Matematica. EmMatematica pura, e evidente que a inducao nao serve de prova, em-bora, no aprendizado da Matematica, voce use a inducao. Numatecnica voce pode usar elementos indutivos, dedutivos, o que qui-ser, contanto que sirva para o mesmo fim. A tecnica unifica osseus conhecimentos por fora, para alem da natureza do objeto, etendo em vista um fim humano. A tecnica coere o conhecimento,so nao coere o fundamento. E como se voce implantasse naqueleobjeto uma finalidade, que nao esta nele e que ele, por si mesmo,nao poderia determinar.

Vejam, por exemplo, a Historia como ciencia. Ela e muitorecente. A Historia comeca a ser ciencia no momento que elacomeca a ordenar, nao os acontecimentos que ela narra, mas, sim,quando ela comeca a ordenar as razoes da credibilidade. Porexemplo, voce tem um documento escrito, e tem um monumento.Como voce interpreta o documento e o monumento, e qual o nıvelde credibilidade que voce deve dar a cada um? A Historia se tornaciencia no momento que ela tenta fundamentar as suas afirmacoes,uma por uma, e tambem criar um nexo entre as fundamentacoes.Assim, qual e o valor relativo de um documento escrito ou de ummonumento, ou de uma moeda, ou de uma vestimenta? Para aciencia historica, tudo isso e documento e, em princıpio, existeum conjunto de fundamentos que se desdobram, em leque, para a

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avaliacao de todos esses tipos de documentos, e e o nexo unificadoentre esses fundamentos que da o carater cientıfico da Historia. E,nao, a simples organizacao dos fatos. Essa organizacao poderiaser acidental, poderia ser externa, tecnica, qualquer coisa.

A Ciencia nao e conhecimento organizado, mas e a organizacaodo proprio conhecimento, e do fundamento desses conhecimen-tos. Este texto do Husserl e o primeiro onde voces podem veruma explicacao do que e Ciencia, de uma maneira tao simples, taoevidente, tao brilhante, e que expresse uma coisa que todos temna cabeca, e que na pratica o homem de ciencia pratica tudo isso,mas que nao tinha sido dito antes. voces podem pegar este textoe aplica-lo nesse ou naquele caso, e verao que funciona sempre.Por exemplo, identifique casos onde ha o erro da evidencia indi-reta passar como princıpio. Ao aprenderem isso tudo que esta notexto, colocarem isso tudo na cabeca, eu acho que voces cravaraoum pilar nas suas personalidades intelectuais. Existem outros pi-lares, e este e um deles. E por isso que eu acho uma bobagemalguem nao crer no poder do conhecimento humano.

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15 de janeiro de 1993

A essencia da ciencia implica, pois, a unidade do nexo dasfundamentacoes, em que alcancam unidade sistematica nao so osdistintos conhecimentos, mas tambem as fundamentacoes mesmase, com estas, os complexos superiores de fundamentacoes, a quechamamos teorias.

Isso seria as fundamentacoes de fundamentacoes. O exemploda investigacao policial, dado anteriormente, e particularmentefrutıfero, porque voce pode, nele, ir remontando desde uma multi-plicidade ate uma unidade possıvel.

O delegado dispoe de testemunhas e depoimentos para investi-gar o crime. Por outro lado, ele dispoe de documentos escritos,cartas, papeis que estivessem de posse da vıtima, etc. Ele temtambem exames feitos no local, a perıcia, e tem alguns testes que,nao se referindo diretamente ao que aconteceu, podem servir paraa sua avaliacao como, por exemplo, o teste de visibilidade.

Qual e o fundamento da credibilidade de cada um desses ele-mentos? Nos vemos que estes fundamentos sao desnivelados, ouseja, um tem mais credibilidade que o outro, mas os motivos dacredibilidade sao totalmente divergentes. Voce nao acredita numaperıcia pelas mesmas razoes que voce acredita num depoimento.Se voces tentarem definir essas razoes de credibilidade, e busca-rem o fundamento da veracidade de cada uma dessas coisas, vocesencontrarao varias ciencias envolvidas. Muito mais do que voces

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imaginam. E voces encontrarao os motivos pelos quais eu achoque todos os delegados de polıcia deveriam ser demitidos, porqueeles deveriam dominar, pelo menos, umas cinquenta ciencias.

Assim, em que se fundamenta a crenca num depoimento de tes-temunha? Por exemplo, a coerencia com os fatos, pode ser avali-ada psicologicamente? Nao. como voce poderia pegar a coerenciainterna se voce nao tivesse uma correta interpretacao do que o su-jeito esta dizendo, levando-se em conta todas nuancas da lingua-gem pessoal dele, a linguagem do grupo social, etc.? Isso se des-dobraria, basicamente, no aspecto sociologico, e no aspecto psi-cologico, que seria a coerencia externa: coerencia com os outrosdepoimentos, testemunhos, com os fatos observados diretamente,com os resultados de testes e perıcias, etc. Assim, que condicaotem um delegado de entender um assunto dessa complexidade? Selevarmos em conta que, depois do inquerito policial, ainda ha ainterferencia do juiz, o qual ainda tem que compreender a menta-lidade do delegado, os habitos da Polıcia, a estrutura do inqueritopolicial, e a coisa se complica mais ainda.

Vamos supor que o delegado tenha todas as condicoes de en-tender a complexidade do seu ofıcio, e que ele quer fazer o me-lhor possıvel. As coisas que sao derivadas da ignorancia indivi-dual, da inepcia, e da corrupcao, sao acidentais e nao podem serlevadas em conta na nossa analise. Nos temos que partir da me-lhor hipotese possıvel, porque se voce for partir, nao sob o aspectoideal, mas do aspecto real, entao, o que um delegado precisa saberpara conduzir o inquerito? Nesse caso, ele nao precisaria sabercoisa alguma, nem precisaria ler o inquerito, porque nao haveriaproblema algum, estaria tudo resolvido. Mas estamos partindo damelhor hipotese possıvel.

Quando confrontamos os testemunhos com os fatos, tudo issotem a ver com tecnologia da Historia. Porem, qual e o princıpiode confiabilidade do teste de visibilidade? Ele nao tem um fun-

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damento unico. Ele e uma relacao de conhecimentos de Otica ede Fisiologia. E, estes, por sua vez, se fundamentam num metodocientıfico, estabelecido por Claude Bernard (?). Se voce acreditanesse metodo cientıfico, entao adeus teste de visibilidade. Supo-nha que o teste desse como resultado o fato de ser quase impossıvelque alguem consiga enxergar naquelas condicoes, e a testemunhainsistisse em dizer que viu — como se sai dessa? A Fisiologia res-ponde esta questao? A Otica responde? A Psicologia responde?Como fica a situacao? Entrega-se a Deus?

Eu acho que no fundo e isso mesmo. Eu acho que o sistemajudiciario faz justica por sorteio. Nao e possıvel que eles errem natotalidade dos casos. No infinito, acaba tudo em 50% e 50%. Ouseja, entre os inocentes que eles condenam, e os culpados que elesabsolvem, ha tambem os inocentes que sao absolvidos, e os culpa-dos que sao condenados. Isto porque quando o inquerito chega aum ponto desses, ele entra numa regra retorica. A retorica e a psi-cologia do discurso, e essa regra diz o seguinte: Nao e verossımilque o inverossımil nunca aconteca (Aristoteles). Ou seja, o inve-rossımil acontece, de vez em quando, e pode ser que voce estejadentro de um desses casos.

Porem, isto aqui nao explica, apenas abre uma possibilidade.Daı, voce teria que partir para novas verificacoes. Como fazerisso? Voce teria que testar novamente os testemunhos, por outrosmeios, nao teoricos, porque o teste avalia apenas a possibilidadeteorica, logo, geral. E nao aquele testemunho em particular. Por-tanto, se voce nao consegue resolver o caso geral, voce tem queaveriguar mais particularmente aquele caso para ver se, por inve-rossımil que fosse ele, ainda assim, poderia ter acontecido. Voceteria que repetir tudo isso a esse detalhe em particular. Por exem-plo, voce teria que avaliar talvez, a possibilidade de uma coin-cidencia, de alguem, por acaso, ter iluminado a area, etc. Voceteria que avaliar, sair do terreno da regra, das leis que definem a

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visibilidade em geral, e voce teria que entrar no terreno da aci-dentalidade. E claro que os conhecimentos de Fisiologia, Otica,Historia, Linguıstica, e da Retorica, eles nao poderiam ser coeri-dos num fundamento unico. Seria uma multiplicidade de funda-mentos. Assim, cada uma das partes teria que ser julgada comcriterios diferentes. E a unica chance que esse negocio tem dedar certo, e de que o indivıduo que procede a aplicacao da tecnica,possua, ele mesmo, cada um dessas conhecimentos. Essa e a unicagarantia.

Quando voce tem uma ciencia organizada, as vezes, voce naoprecisa conhecer o conjunto. Voce tem o fundamento central, eaquilo abrevia o trabalho. Mas, se se trata de conhecimentos he-terogeneos, portanto, que tem fundamentacoes diferentes, eles sose unificam no indivıduo que detem a totalidade daqueles conhe-cimentos.

Assim, o delegado teria que possuir nele, sintetizado, comosıntese pratica, e nao, teorica, todo esse conjunto de conheci-mentos e seus respectivos fundamentos. Entretanto, nos esta-mos aqui fazendo uma teoria da investigacao policial? Sim, es-tamos investigando teoricamente o quid est — o que e? —e e por isso que isso se chama um complexo superior defundamentacoes. Quando voce pega um bolo de conhecimentose suas respectivas fundamentacoes, e procura unificar tudo aquilonuma fundamentacao geral, voce esta fazendo uma teoria, seja deuma ciencia, ou de uma tecnica. So que eu acho que as pessoas en-volvidas na questao, jamais pensaram numa teoria da investigacaopolicial porque, se pensassem, teriam desistido da profissao. Outeriam decidido continuar nela, para exerce-la de maneira inepta.

Na pratica, as vezes, eles acertam, porque nao e verossımil queeles errem sempre. Mesmo que o sistema judiciario seja total-mente corrupto, e impossıvel que ele cometa injustica na totali-dade dos casos. O juiz pode ser corrompido pela parte inocente:

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o sujeito esta inocente, e ve que nao tem chance de provar a suainocencia, daı ele compra o juiz, que entao o absolve, so que pelosmotivos errados. Tambem, se voce nao tem provas suficientes paraincriminar o culpado, voce poderia comprar o juiz, para que ele ocondene. E possıvel que tudo isso aconteca.

Nas faculdades de Direito, habitos de retorica sao tao arraigadosnos estudantes que, depois de formados, e difıcil que um advogadopense de forma diferente. Nao adianta voce dar esses conhecimen-tos para o delegado, se ele nao tem o arcabouco teorico que mostrea ele a necessidade absoluta desses fundamentos. Um delegado euma autoridade terminal, nao ha ninguem por tras dele para in-vestigar o que ele esta fazendo. Mesmo quando vai para a justica,o juiz nao vai levar integralmente a serio o inquerito, mas vai sebasear nele. Ele ja vai receber a coisa toda ja dirigida num certosentido, mesmo que ele tenha que revogar tudo aquilo. A linhade investigacao de um juiz ja esta pre-determinada. Pior ainda,e que pela lei brasileira, o juiz nao pode mandar investigar nada,a nao ser dentro daquilo que as partes em conflito tenham colo-cado. O juiz nao pode levantar um terceiro ponto-de-vista, mesmoque ele saiba que exista. Quem propoe, quem tem a iniciativa nainvestigacao e, de fato, o delegado. So que o resultado do inqueritonao tem validade, nem para absolver, nem para condenar alguem.No Brasil, indiciado e inquerito, ja querem dizer a mesma coisaque condenado. Isto gracas a uma nuanca criada pela nossa im-prensa. Se o sujeito for processado, entao nem se fala!

Ora, o sujeito ter mil processos, e estar absolvidos em todos,significa que ele esta legalmente inocente. O que importa e o pro-nunciamento oficial, porque o que nao e oficial tem validade sub-jetiva para quem diz. Assim, a sociedade como um todo, so podeadmitir aquilo que a propria sociedade verificou atraves do orgaosconstituıdos exatamente para isso. Se a absolvicao de nada vale,de que vale a condenacao? Essa mentalidade esta profundamente

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arraigada no Brasil, e precisa ser reiterada das cabecas. Por quea condenacao representa a culpa, e a absolvicao nao representa ainocencia? Porque a ideia mesma de lei nao esta na cabeca daspessoas. Estado de direito e isso: condenado, condenado; absol-vido, absolvido. Essa e a regra do jogo. Eu tambem quero issopara mim! So se deve considerar o sujeito como culpado quandoa sentenca e do tipo transitado em julgado, ou seja, nao tem maiscondicao de apelacao. Daı, fim.

Voce pode dizer que o sistema judiciario e corrupto. Eu digoque tanto faz. Nao faz a menor diferenca. Se a sentenca num sis-tema judiciario corrupto nao vale, como voce vai sanear o propriosistema? Imaginem que todos os juizes sejam corruptos. Entao, deagora em diante nos nao vamos mais obedecer as sentencas deles.Neste caso, entao, e que nao tem mais conserto a corrupcao. O fatode um juiz ser corrupto e um problema grave, justamente porquea sentenca dele vale. Se nao valesse nada, tanto faz. Entretanto,se voce nao respeita a sentenca de um juiz, que diferenca faz eleser corrupto ou nao? Para sanear um sistema judiciario, a primeiracoisa a ser feita e levar a serio a sentenca de um juiz. Aceitar comose fosse honesta. A unica maneira de voce punir um juiz corrupto,e atraves de uma sentenca de outro juiz. Ou, entao, nos vamos terque fazer justica com as proprias maos.

Assim, o fato de voce colocar em duvida os resultados dassentencas, principalmente no caso de absolvicao, isso ajuda a cor-romper o sistema judiciario. A sentenca condenatoria, essa e quenao deveria ser levada tao a serio, ate que o sujeito seja realmentecondenado. O problema e que, aqui no Brasil, so o fato de voceser indiciado num processo, ja significa que voce e o culpado. En-tretanto, o brasileiro so pensa assim com relacao aos outros. Sefor no caso dele, em particular, aı e o contrario.

Isto significa que o povo nao tem educacao polıtica para vivernum estado de direito. Ele nao aceita a regra do jogo. Ele aceita,

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mas diz que e uma falsa regra, e ele ira cumprir uma outra re-gra, que ele mesmo inventou. Assim, todo o sistema judiciariovira uma superestrutura ideologica, uma especie de corrente queserve para bater na cabeca do adversario. Nao e, de fato, umaregra para ser cumprida. E uma especie de inversao de todosos princıpios de direito. Aqui no Brasil, voce vai a uma loja deeletrodomesticos, voce pede um credito, e eles consideram voceum estelionatario, ate prova em contrario. Essa ideia de que aabsolvicao nada prova, mas que a condenacao prova, e a inversaototal dos princıpios jurıdicos. Mesmo a condenacao nada prova.Punir o culpado nao e tao importante. Fazer a justica nao e puniro culpado. So se deve punir o culpado quando nao houver outrojeito, outra solucao. Os juristas romanos ja diziam,”...(frase em la-tim)...”, perfeita justica, e a perfeita injustica, ou seja, e para fazerjustica quando nao ha outro jeito. Se der para resolver na base danegociacao, sera melhor. Quem tem muita experiencia disso saoos juizes de varas de famılia, que sentenciam alguma coisa, muitoa contragosto. Eles nao se interessam em punir. Eles se interes-sam em chegar a um acordo. Mesmo no caso de casos hediondos.Isto porque se comeca uma sequencia de condenacoes por crimeshediondos, ...(?)

Uma vez, Bertrand Russerl escreveu um artigo sobre a China,dizendo que o povo chines havia dado um exemplo de amor pelaeducacao quando os professores, que nao recebiam o salario a umano, entraram em greve e, em solidariedade, todo o povo da cidadetambem havia entrado em greve, e isto foi considerado um sinal demuito amor pela educacao.

Ortega y Gasset escreveu uma carta dizendo: se ele achaque para nos louvarmos o nosso amor pela educacao, nos pre-cisarıamos comecar por nao pagar os professores e, em seguida,fazer greve em favor deles.(?)

Qual e o raciocınio que esta implıcito aı? A resposta que e dada

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a uma irregularidade, ela tambem e uma irregularidade. O melhornao e voce fazer a segunda, mas o melhor e nao ter tido nem aprimeira. Vamos supor que um sujeito tenha matado um parenteteu. O sujeito diz para voce: voce quer me por na cadeia, ou quer10 milhoes de dolares de indenizacao? Se optarmos pela cadeia,ela nao resultara em benefıcio para ninguem. O desejo de fazerjustica e dos mais perversos que existe. O cargo de juiz e algo queuma pessoa deveria aceitar como um flagelo. Quando Cristo disse:“Nao julgueis para nao ser julgado”, Ele quer dizer que nao e paravoce julgar nada. Ha situacoes em que voce e obrigado a julgar,e daı voce julga. Mas, se voce nao esta moralmente obrigado afazer um julgamento, nao o faca. Voce nao e a vıtima, e apenas oparente da vıtima. O que a vıtima desejaria? Em primeiro lugar,morto nao fica satisfeito, nem insatisfeito. Essa estoria de que “osmortos clamam por vinganca”, e para justificar um instinto maudos vivos. “Eu nao sei o que e a morte. Como vou condenaruma pessoa a uma coisa que eu nao sei o que e?!” — disse umavez, ...(?). Este argumento dele e forte. A morte pode ser ateum benefıcio. So que ha um outro argumento contrario que dizque nos nao queremos castigar, mas sim nos livrar desse sujeito.Acontece que, quem tem que se livrar desse sujeito e a sociedade,atraves de um juiz nomeado para isso, o qual tera que assumir essaresponsabilidade, se nao houver outro jeito. O ideal e voce tentar,novamente, devolver esse sujeito a sociedade, de alguma maneiraintegrado. Parece que todo mundo tem um apetite por julgar. Deonde vem esse desejo de julgar? Em parte por culpas acumuladas,em parte ressentimento por nao ter poder algum, e o sujeito estalouco par assumir um cargo que ele acha que e uma delıcia.

Eu acho mais lıcito a vinganca pessoal, direta — um duelo. Aabolicao dos duelos foi um dos maiores erros da humanidade. Oduelo e um jogo, e voce aceita a regra do jogo: quem morrer,morreu; quem viver, viveu. Se o sujeito nao aceita a regra, entao

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ele tem que fazer alguma coisa: reparacao, desculpas, indenizacao,etc. Essa coisa de querer condenar, julgar, e de quem esta muitoressentido, porque o outro te fez um mal. Por que ele fez isso?Porque tambem estava ressentido, e assim por diante. O duelo eraum codigo, de uma outra epoca, onde a honra pessoal contava.O fato de voce nao aceitar o duelo, equivalia a uma confissao deculpa. Porem, essa confissao de culpa te livra da pena, emborate desqualifique socialmente. No Brasil, o duelo foi consideradoilegal com o advento da Republica. Na Franca, a ilegalidade doduelo veio depois da Primeira Guerra Mundial.

O proprio aperfeicoamento das leis no Estado moderno, ainstalacao de um monopolio da punicao e da recompensa, e umaespecie de declaracao de que o povo aceita isso, nao tem o sentidode honra. O estado democratico de direito e o regime da maioriaque nao vale nada. Entra o Estado para arbitrar, porque as pessoasnao podem se arbitrar. Os contratos pessoais so sao validos dentrode certos limites, que o Estado estabelece. A liberdade de contra-tar nao e total no Estado moderno, porque ele parte do princıpiode que existe um desnıvel muito grande, e de que existe muita de-sonestidade. O Estado moderno e feito, fundamentalmente, parapessoas que sao desonestas.

Numa tribo de ındios nao e necessario isso. Eles nao precisamde que um Estado tome conta deles. Numa tribo de ındios o nıvele mais ou menos o mesmo. O contrato pessoal vale alguma coisa.

Quanto mais voce aperfeicoa o Estado, isto e um sinal de quea moralidade publica e muito baixa. A tendencia do Estado inter-ferir cada vez mais, e um sinal de que as pessoas nao conseguemgovernar a si mesmas. Se voce deixa o sujeito sem fiscalizacao,ele vai aprontar alguma coisa. O proprio povo pede para ser fisca-lizado. Por isso que eu nao acredito em progresso, nem em retro-cesso. Quando uma coisa progride, outra estraga. Todo progressoe relativo. Aperfeicoar as leis e, ao mesmo tempo, fazer subir o

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nıvel de moralidade publica e algo quase contraditorio. Um povomoralmente elevado, pode viver sob um regime injusto e tiranico.Aquilo nao o corrompe. Alias, isto aconteceu muitas vezes. Ve-jam o povo judeu. Quantos milenios eles nao viveram sob regimestiranicos, e nem por isso eles se roubavam uns aos outros. Mas,e um povo pequeno. Se e com uma sociedade de massa, a coisacomplica.

A ideia de uma sociedade perfeita, a humanidade inteira per-feita, ter um Estado perfeito, leis perfeitas, administracao perfeita,todo mundo e santo, o nıvel de moralidade e altıssimo, tudo isso euma utopia. Quanto mais perfeito e o Estado, pior e o povo.

Um dos segredos dos americanos, e que o Estado, la, funci-ona muito menos do que se imagina. Por exemplo, para a entradade imigrantes ilegais, eles fecham os olhos quanto a isso. JamesBryce, era um diplomata ingles que, em seu livro “A ComunidadeAmericana”, vai mostrando a formacao do Estado americano, apartir das comunidades independentes. Este e um fenomeno quenunca havia ocorrido.

Aqui no Brasil, o Estado se forma anteriormente as comunida-des. Nos Estados Unidos, as pessoas, acostumadas a tomarem assuas decisoes locais, no momento que fizeram sua independencia,havia uma forte corrente anarquista, que achava que nao devia ha-ver governo algum.

Eu acho que esse e um dos segredos dos Estados Unidos. Porisso que a constituicao deles e pequena, simples. E para naocomplicar. E melhor deixar as coisas de maneira meio vaga,onde cabe tudo, que depois nos resolvemos. Nao existe umaConstituicao muito minuciosa, que tenha durado muito. Quemfaz uma Constituicao muito grande, tem que fazer varias.

Outro fator que lhes permitiu ter essa frouxidao das leis do Es-tado, e o rigorismo moral-religioso. E um moralismo atroz. Se osujeito cresce cheio de disciplinas, ele tem um impedimento inte-

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rior. Entao, nao ha necessidade de um impedimento exterior. Umdos motivos do aumento de criminalidade, que ninguem fala, e acrise religiosa, uma indefinicao religiosa. Essa massa de pessoasque sai da Igreja Catolica e vai para outra religiao, e depois vaipara outra, isso e, evidentemente, uma crise mental. Tudo se re-sume naquela velha contradicao de voce desejar uma ordem, umaetica social e, ao mesmo tempo, voce nega o fundamento dela.

Esse e um dos dramas brasileiros. Nao ha ninguem aqui queacredite em princıpios eticos absolutos. Sao raros os casos depessoas que estao vinculados a uma religiao em particular. Todomundo acredita em princıpios convencionais, por isso, nao temmuito sentido voce fazer um combate pela Etica. Tanto faz essaou aquela Etica.

Eu acho que a raiz disso e fundamentalmente intelectual, por-que voce nao tem uma camada letrada capaz de educar a nacao.Ela mesma e a primeira que se deseduca. A ideia de que um de-legado deva ser um homem de cultura, nao existe hoje em dia. Auns quarenta anos atras, ainda havia essa ideia. Qualquer pessoade formacao universitaria era considerada de elite. Hoje, nao. Aqualificacao cultural diminuiu, mas ao mesmo tempo a responsa-bilidade aumentou. A ideia da formacao profissional e uma ideiaque entrou no tempo da ditadura militar, com o Jarbas Passari-nho, que “atualizou” o nosso ensino universitario, transformando-o em ensino profissional. A ideia de que a funcao da universi-dade seria a de te dar uma profissao, e nao uma cultura, faz comque o sujeito va pelo criterio do mınimo indispensavel, como numconcurso. Por exemplo, voce entra num concurso para Fiscal deRenda. Se voce passa em primeiro lugar, voce ganha um salario de15 milhoes, e se voce passar em ultimo lugar, voce ganha o mesmosalario. Entao, qual e a vantagem em tirar o primeiro lugar?

[ Voltando a questao da fundamentacao ]Uma simples investigacao policial se apoia em conhecimentos

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de diversas procedencias, cuja fundamentacao e diferente. Naohavendo a possibilidade de coerir essas diversas fundamentacoesnuma teoria unificada, voce teria que fazer uma especie de teo-ria da heterogeneidade, que e o que nos estamos fazendo aqui,agora. E o unico ponto onde tudo isso se unifica e na cabeca doindivıduo. Na cabeca do delegado existe uma sıntese de Fisiologiacom Historia, porque ele precisa desses dois conhecimentos parapoder julgar esse caso em particular.

Se, ao investigarmos tudo isso, nos descobrimos um funda-mento comum a todos esses fundamentos, nos terıamos uma teoriaunificada, e isso se constituiria numa ciencia unica. Seria possıvelvoce fazer uma teoria unificada da investigacao policial? Ou seja,um sistema axiomatico, partindo de um nucleo de princıpios, dasconsequencias de ordem fisiologica, psicologica, e linguıstica? Doponto-de-vista holıstico, deve ser possıvel, porque, partindo do seruniversal, tudo esta esclarecido. Na pratica, e claro que nao acon-tece isso. Por isso que eu acho que entre o plano metafısico e oplano cientıfico, existe um abismo. Ha coisas que nos so consegui-mos perceber metafisicamente, de maneira puramente teorica, semnenhuma traducao imediata. Nao tem utilidade cientıfica alguma.

No fato de que a forma sistematica nos pareca a mais puraencarnacao da ideia do saber nao se exterioriza meramente umtraco estetico da nossa natureza.

Por que a Ciencia tem que ser unificada? Argumento kantiano:a realidade e heterogenea, variada, e nao tem unidade alguma. En-tretanto, o homem tem as suas formas a priori da inteligencia, tema sua estrutura cognitiva, a qual tende a unificar tudo. O homemda uma forma unificada a aquilo que nao tem.

Na verdade, o real nao e o mundo. O real e um caos infinito depossibilidades. Assim, se a Ciencia tende a uma forma unificada, epor causa de uma tendencia nossa de unifica-la. Esta ideia kantianae aprofundada depois na ideia da razao como uma forma superior

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do sentido de autoconservacao.A razao tende a unificar o nosso conhecimento, dar uma forma

unitaria, sistematica e perseverante, no mesmo sentido em que oorganismo procura conservar a integridade da sua forma. Quandoo animal come alguma coisa, e rejeita partes, e assimila outraspartes, ele assimila o que e semelhante. Assimilar e tornar similar.Uma parte do que ele comeu se transforma nele mesmo: o coelhocome alface, e o alface vira coelho (Jean Piaget). E o animal rejeitao que nao e assimilavel. Ao assimilar, voce esta reiterando a formado seu organismo. O organismo cresce, na mesma medida em queele reitera essa integridade, senao ele morre.

A razao seria uma extrapolacao, um abstrato mental, psi-cologico, desse senso de autoconservacao, e por isso mesmo,as construcoes racionais conservam a sua integridade, e crescemao mesmo tempo. Um sistema dedutivo, axiomatico, ele podese estender indefinidamente sem perder a unidade de sua forma.Pergunta-se: a Ciencia tende a uma forma sistematica so porqueo homem e assim, ou por algum outro motivo? Husserl respondeque nao. Nao e so por uma tendencia humana a unidade que aCiencia e unitaria, mas porque o real, o objeto do conhecimentotambem tem uma integridade. Mesmo que o homem nao tivesseessa tendencia, ele teria que se adaptar, de alguma maneira.

Isto e uma posicao claramente anti-kantiana. O mundo do co-nhecimento e de unidades objetivamente distintas, que formam umtodo. Elas formam em si, ainda que voce nao conheca esse todo.

O sistema nao e invencao nossa, mas reside nas coisas; o reinoda verdade nao e um caos desordenado; nele rege uma unidade deleis; e por isto a investigacao e a exposicao das verdades deve sersistematica, deve refletir suas conexoes sistematicas e utiliza-las,ao mesmo tempo, como escala do progresso, para poder penetrarem regioes cada vez mais altas partindo do saber ja dado ou obtido.

A propria tendencia humana a unidade e, de certo modo,

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propıcia ao conhecimento do real, que e ele tambem, um sistema.E uma analogia. O homem entende o mundo, e o mundo entendeo homem. Essa e a teoria mais velha, classica.

Porem, existem outras, como a teoria kantiana que diz que omundo e o caos, e so o homem tem a unidade; outra diz que omundo tem a unidade, e o homem e o caos; outra diz que os doissao o caos, e que nada e possıvel, etc.

A ciencia nao pode prescindir dessa escala. A evidencianao e um acessorio natural. Para que investigar relacoes defundamentacao e construir provas, se somos partıcipes da verdadenuma consciencia imediata?

Ou seja, se tudo pudesse ser conhecido por uma evidencia ime-diata, nao haveria necessidade de uma escala de progresso. Naohaveria um conhecimento melhor ou pior; seriam todos melhores.

Mas, de fato, a evidencia que impoe o selo de existente asituacao objetiva representada, ou a absurdidade, que lhe impoeo de nao existente, so sao imediatas num grupo de situacoes obje-tivas primarias, relativamente muito limitado.

Quais sao os conhecimentos, ou situacoes objetivas primarias,nos quais e possıvel uma evidencia imediata? Se voce nao fizeruma demarcacao dos setores onde e possıvel uma evidencia ime-diata, voce nunca vai distinguir perfeitamente o que e um conhe-cimento firme, e o que e um conhecimento incerto.

Onde esta o ponto de apoio arquimedico, o ponto firme, ondeo conhecimento pode se apoiar? Esta pergunta e absolutamenteobrigatoria a qualquer indivıduo que pretenda desenvolver umamentalidade intelectual. Ele tem que procurar por si mesmo. Naoimporta se o ponto que voce encontrar nao vai coincidir perfeita-mente com o dos outros. Geralmente eles nao coincidem, mas sesomam, de alguma maneira. Esta busca do fundamento inicial, eo que define mesmo o esforco filosofico.

Ha inumeraveis proposicoes verdadeiras, de cuja verdade so nos

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apercebemos quando as “fundamentamos” metodicamente.Este fato de que necessitemos de fundamentacoes nao so torna

possıveis e necessarias as ciencias, mas, com as ciencias, umateoria da ciencia, uma logica. Se todas as ciencias procedemmetodicamente, entao o estudo comparativo desses instrumentosmetodicos havera de proporcionar-nos os meios para estabelecernormas gerais (as quais se constituirao a teoria das ciencias).

7. Continuacao. As tres peculiaridades mais importantes dasfundamentacoes.

Elas tem, em primeiro lugar, o carater de complexos fixos, noque diz respeito ao seu conteudo. Para chegar a certo conheci-mento, nao podemos escolher como pontos de partida quaisquerconhecimentos dentre os imediatamente dados; nem nos e lıcitoinserir no curso restante do pensamento, ou dele excluir, quaisquermembros.

Voce nao chega a uma fundamentacao de uma verdade, partindode qualquer ponto, de qualquer coisa. Nao e partindo de qualquerelemento do conhecimento que voce chega ao seu fundamento.

Em segundo lugar, nao ha nenhum cego arbıtrio que tenhaamontoado multiplas verdades P1, P2, · · ·S, dispondo em seguidao espırito humano de tal maneira que ele tenha de ligar irremedia-velmente (ou em circunstancias “normais”) o conhecimento de Sao conhecimento de P2.

Isto aqui e fundamental. Nao existem verdades soltas que se-jam agrupadas por uma simples necessidade, ou por uma simplestendencia dos seres humanos. As verdades, se sao verdades, elastem entre si, uma determinada conexao que nao ha jeito de vocemudar. Por exemplo, suponha o silogismo: todo homem e mor-tal; Socrates e homem; logo, Socrates e mortal. Sao duas verda-des: e verdade que todo homem e mortal, e tambem e verdadeque Socrates e mortal. Entre estas duas verdades existe uma certarelacao, que nao e arbitraria, que nos nao podemos inverter, e que

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nos nao poderıamos enxertar uma terceira verdade qualquer nesseraciocınio, porque existe uma relacao de todo e causa, uma relacaode pertinencia. Nos tendemos a ver isso com uma certa conexaode modo que existisse uma verdade: P1 = todos os homens saomortais; P2 = Socrates tambem e mortal. A sequencia dela naofomos nos que colocamos, pois existe uma relacao intrınseca.

Isto nao sucede em nenhum caso.Vejam que ele nao disse: geralmente; ele nao disse: quase sem-

pre. Entre as verdades, so existe duas hipoteses: ou voce nao co-nhece a relacao entre elas, portanto, voce nao pode sequer saber sesao verdades, nao pode saber se ha fundamentacao, ou ela tem umaconexao necessaria, um encadeamento inevitavel, porque se naohouver encadeamento nenhum, se sao verdades soltas, ou elas saoevidencias primarias, que nao necessitam de provas, ou entao, aprova, o fundamento delas esta em alguma outra coisa, em algumaoutra verdade, com a qual ela tem uma relacao necessaria. Vocenao pode sair combinando verdades umas com as outras, ao seubel prazer, porque para que possa haver combinacao e necessarioque haja relacao entre elas.

Nas conexoes de fundamentacao nao reina a arbitrariedade e oacaso, mas a razao e a ordem; e isto quer dizer: a lei reguladora.Todas as fundamentacoes tem algo em comum, uma constituicaoıntima homogenea, que expressamos claramente na “forma do ra-ciocınio”: todo A e B, X e A, logo X e B.

Todas e quaisquer fundamentacoes, de qualquer tipo, em qual-quer domınio do conhecimento que exista, tem que ser destaforma. Verifiquem isto. Sempre a relacao entre todo e parte —sempre. Mesmo quando voce parte para o raciocınio magico,simbolico, analogico. Por exemplo, quando um astrologo diz quevoce e gago porque tem Saturno na Casa 3. O fundamento dissoe que todo aquele que tem Saturno na Casa 3 e gago; se vocetambem tem Saturno na Casa 3, entao, voce e uma parte deste con-

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junto, logo, tambem e gago. E sempre assim. Isto e onipresente.Nos so pensamos assim, e as verdades sao sempre conectadas as-sim, em todas as hipoteses possıveis. Nao ha nenhuma excecao.Sempre que voce acredita em alguma coisa, e porque voce acreditaque aquela coisa e parte de uma outra veracidade, mais vasta, quee tomada como evidente.

Isto significa que para cada pequena coisa que voce acredita serverdadeira, existe, por tras, uma lei geral. Voce esta sempre afir-mando uma lei geral. Isto e a mesma coisa que dizer que nao existejamais um conhecimento fundamentado no particular isolado. Ouesse particular isolado e conhecido como uma evidencia direta,que nao necessita de prova, entao ele e fundamento de si mesmo,ou se ela e fundada numa outra coisa, e porque ela e parte de umtodo, que e tomado como evidencia.

A forma mesma que e denominada o silogismo, ja esta suben-tendido toda e qualquer afirmacao de fundamento de um conheci-mento. Isso e para mostrar que nao foi inventado, apenas foi dadoum nome, porque ja estava la, ja era assim.

Mas nao so estas duas fundamentacoes tem algo em comum,mas tambem a tem outras incontaveis. E mais ainda. A forma deraciocınio representa um conceito de classe, sob o qual recai a infi-nita multidao de enlaces entre proposicoes, que tem a constituicaorigorosamente expressada nessa forma.

Este “Todo A e B, X e A, logo X e B” e um conceito de classe.E uma classe de raciocınio. Nao importa qual e o conteudo do ra-ciocınio. Todos e quaisquer raciocınios que pretendam ser umafundamentacao, quaisquer que sejam os seus conteudos, tem sem-pre essa forma. Onde quer que haja uma fundamentacao, vocevai encontrar um raciocınio com este formato. Expresso, ou inex-presso, manifestado ou subentendido, mas sempre tem.

Mas ao mesmo tempo existe a lei a priori, segundo a qual todapresumida fundamentacao, que ocorra em conformidade com essa

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forma, e realmente uma fundamentacao correta, se partiu de pre-missas justas.

Existe uma lei a priori e que dado um raciocınio desta forma, acoisa fundamentada e verdadeira, se aquela fundamentacao partiuda premissa ...(?). Se o que voce afirma de um todo e verdadeiro,o que voce afirma da parte fundada, tambem e verdadeiro.

E inerente ao curso das fundamentacoes uma certa forma,que lhes e comum com outras inumeraveis fundamentacoes,que permite justificar de um so golpe todas essas distintasfundamentacoes. Nao ha nenhuma fundamentacao isolada; eisaqui o fato sumamente notavel. Nenhuma enlaca conhecimentoscom conhecimentos sem que — seja no modo externo do enlace,seja a um tempo neste e na estrutura interna das proposicoes — seexpresse um tipo determinado que, formulado em conceitos gerais,conduz em seguida a uma lei geral.

Toda e qualquer fundamentacao, sobre toda e qualquer coisa,estara sempre referida a esta forma, e esta e a forma de uma leigeral. Qualquer conviccao que tenha sobre qualquer coisa, e quevoce cre que e fundamentada, ali esta expressando sempre uma leigeral. Claro que, nao explicitamente.

Isto pode ser um dos exercıcios mais elucidativos que existe:perceber a lei geral que esta afirmada em cada frase das pessoas.Se voce ve o sujeito falando de uma certa maneira, procedendode uma certa maneira, e voce capta a lei geral que ele afirma isso,voce sabera como ele ira proceder em outras circunstancias simi-lares. Se nos nao obtemos essa generalizacao, entao, teremos querepetir a experiencia muitas vezes e, as vezes, nao tiramos con-clusao alguma.

A incapacidade de aprender com a experiencia e um dos sinaisda burrice. A rapidez em captar a experiencia, portanto, a neces-sidade de pouca experiencia, e um sinal de inteligencia. O su-jeito que passa mil vezes pela mesma experiencia, e nao chega a

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uma conclusao alguma, voce diz que ele e, flagrantemente, burro.Isto quer dizer que esta na raiz de qualquer aprendizado, essageneralizacao.

Em terceiro lugar, poderia crer-se possıvel o pensamento de queas formas de fundamentacao dependem das esferas do conheci-mento. Mas e patente que isto tambem nao ocorre.

Nao importando qual e a esfera do conhecimento a que serefira, a fundamentacao tem essa forma sempre. Se ha umafundamentacao, entao existe sempre um recurso explıcito, ouimplıcito, a uma lei geral, tomada como certa, ou como evidencia.

Nao ha nenhuma ciencia em que nao se apliquem leis a casossingulares,

E nao e concebıvel um outro tipo de ciencia. Hoje em dia, hamuita gente falando em ciencias esotericas, tradicionais, etc. Adiferenca entre ela e as ciencias ditas modernas nao e essa; porexemplo, para Astrologia, Alquimia, o princıpio e exatamente omesmo. Isto quer dizer, sumariamente, que nenhum conhecimentoe irracional. Se eu falo que ha um conhecimento ...(?) e inegavel, eporque ele nao e irracional, mas ele e a-racional, e extra-racional.Os princıpios sao, por assim dizer, pre- racionais. Seria irracionalse fosse fundamentar num mesmo esquema que nao obedece a essaforma do todo e parte, ou que a desmente. Isso, de fato, jamaisaconteceu.

isto e, em que nao aparecam com frequencia raciocınios daforma que nos serviu de exemplo. Mais ainda: todas as demaisespecies de raciocınios se prestam a ser generalizadas de tal modo,a ser concebidas de maneira tao “pura”, que resultem livres detoda relacao essencial com uma esfera de conhecimentos concre-tamente delimitada.

Ou seja, nao ha nenhuma especie de raciocınio que se apliquesomente a um determinado setor da realidade. Voce sempre vaicair nas mesmas. E muito interessante voce fazer a averiguacao

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disso em conhecimentos que se pretendem irracionais, supra-racionais, porque voce vai cair sempre na mesma coisa.

Resumindo, entao, as tres propriedades das fundamentacoessao:

1) Voce nao pode partir de qualquer ponto para chegar numafundamentacao;

2) Existe uma sucessao ordenada de fundamentacoes;3) Elas sempre obedecem a forma do todo e parte.8. Relacao dessas peculiaridades com a possibilidade da ciencia

e da teoria da ciencia.Se nao fosse verdade fundamental que a todas as

fundamentacoes lhes e inerente uma certa “forma”, nao pe-culiar ao raciocınio presente hic et nunc, mas tıpica para toda umaclasse de raciocınios,

Hic et nunc, quer dizer, aqui e agora. E o raciocınio que voceesta fazendo concretamente, neste momento.

So ha raciocınios tıpicos. Nao ha raciocınios singulares. Todoraciocınio e um esquema tıpico. Existem milhoes de outros ra-ciocınios, numa serie inesgotavel de raciocınios semelhante amesma forma. Todos aplicaveis a inumeras situacoes, e nao harepeticao singular.

e que ao mesmo tempo a justeza de todos os raciocınios dessaclasse esta garantida justamente por sua forma; se antes sucedesseo contrario, nao haveria ciencia. Ja nao teria sentido falar demetodo; todo progresso seria ao acaso. Ja nao seria possıvel apre-ender, de uma fundamentacao dada, o mais mınimo com relacao anovas fundamentacoes futuras,

Todo conhecimento se esgotaria nele mesmo, e uma coisa, umavez provada, nao provaria nada mais alem daquilo. A possibili-dade de extensao do conhecimento reside na inexistencia de ra-ciocınios singulares. E justamente porque a forma de raciocınioe sempre a mesma em todos os casos que, de um conhecimento

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em particular, voce pode tirar algo para todos os casos. E assim aCiencia pode se estender.

pois nenhuma fundamentacao teria nada de exemplar para ne-nhuma outra, nenhuma encarnaria em si um tipo. Nao teria ne-nhum sentido buscar uma prova para uma proposicao previamentedada.

Se cada vez que voce faz um raciocınio, o fizesse de uma formatotalmente diferente, a forma de um nao valesse para o outro, entaocomo e que voce vai buscar a forma que ele teria que ser? Seria ocaos total.

A verdade nao e uma coisa que de muito trabalho para encontra-la. O trabalho maior e admiti-la. As vezes ela e tao patente quevoce gostaria que fosse de um outro jeito; voce gostaria de com-plicar. Depois que voce descobre que 2 + 2 = 4, voce nao precisarepetir que e 4, mas, sim, voce precisa parar de repetir, “e se for 5?E se for 6?”

Quando voce aprende algo, sabe intelectualmente, mas nao con-segue proceder de acordo com aquilo, na pratica, entao nao temmais jeito. O fato e que a mente humana trabalha demais, nao emuito criativa, seu jogo de imaginacao nao para, e as vezes elanao se conforma que a verdade seja tao pobre. As pessoas, porexemplo, gostariam que o passado tivesse sido de outro jeito. Eelas ficam imaginando como seria se fosse, e as vezes voce ima-gina tao bem, tao vividamente, que voce se persuade. So que todavez que voce faz isso, voce tambem cria, simultaneamente, umaimagem contraria, entao, cria uma agitacao.

O mundo das imagens e o mundo dos contrarios. E um cajado,com duas cobras entrelacadas. O movimento das cobras e o movi-mento da mente em torno da verdade (cajado). O segredo da coisaconsiste, como no mito de Hercules, que nasce segurando duasserpentes, uma de cada lado, nao deixando que elas se afastemdemasiadamente.

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O movimento da mente e inevitavel. Pelo fato de voce estarvivo, a mente faz esse movimento sinuoso. Esse movimento ea propria vida. Mas, e fundamental que a mente nao se afastedemasiado, e que seja balizado por uma reta, ate que no pontoonde existe uma verdade admitida, o movimento para. E o pontode encontro das duas serpentes no cajado. Estas sao as verdadesconquistadas.

Entao, so existe um certo numero de raciocınios, e e muito limi-tado esse numero. Existem 64 tipos de silogismos possıveis, dosquais 19 sao probatorios, e os outros nao sao. Todos eles estaodentro deste esquema de A = B, X = · · ·, e etc.

Como a buscarıamos? Irıamos contrastar todos os grupospossıveis de proposicoes, para ver se seriam utilizaveis como pre-missas da proposicao dada? O homem mais inteligente nao terianeste ponto a menor vantagem sobre o mais estupido. Uma ricafantasia, uma extensa memoria, uma capacidade de atencao in-tensa, etc. sao belas coisas; mas so adquirem significacao intelec-tual num ser pensante, cujo fundamentar e descobrir tenha formassubmetidas a leis.

Ele quer dizer que, todas as faculdades cognoscitivas so con-seguem ter alguma importancia porque existe esta possibilidadede uma fundamentacao submetida a leis. Senao, elas nao ser-viriam para absolutamente nada. Por exemplo, um sujeito temuma memoria extraordinaria, guarda todos os fatos, e outro temuma memoria pequena. O que um diz vale tanto quanto o ou-tro. Estes fatores sao puramente acidentais, externos. A qualidadedas faculdades que estejam em causa, nada tem a ver com a ve-racidade do conhecimento produzido por elas. E perfeitamentepossıvel que um imbecil completo, agindo segundo estas leis aqui,acerte, onde o genio erre. Um sujeito, por exemplo, um autista,que faz operacoes aritmeticas com incrıvel rapidez, sera que eletem a veracidade dos resultados? Nao. No mesmo sentido que

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uma maquina de calcular tambem nao tem. Ele tem apenas arepeticao da forma que nos sabemos que e verdadeira. Quandovoce programa uma calculadora, voce a programa segundo estaforma. E voce a programa assim, porque esta forma e verdadeira.Se voce programar a calculadora da forma falsa, ela tambem iraaplicar a forma falsa igualmente. Entretanto, nos podemos saberque esta forma tem um valor fundamentante, e por isso mesmo ausamos. Mas, o simples fato de voce a usa-la, nao significa quevoce tenha consciencia de sua veracidade. Essa consciencia deveracidade e do tipo intuicao de evidencia. Nos sabemos que oque e valido para o todo, e valido para a parte, porque nos sabe-mos que ha identidade entre o todo e cada um, a qual se baseiana identidade de cada um = cada um. Ou seja, nos conhece-mos o princıpio de identidade com evidencia — e so por isso. Nospodemos ate nao saber aplicar. Nos podemos errar, mas entre o in-divıduo pensante, capaz de reconhecer o princıpio de identidade, eoutro, nao-pensante, capaz de fazer o calculo mais extenso, o pri-meiro leva vantagem. As capacidades intelectuais nao interessam.Para o exercıcio correto da vida intelectual nao e preciso ser inteli-gente, mas e preciso ter o senso de veracidade. E uma capacidadeinata do seu temperamento, e voce pode te-la ou nao. Isaac New-ton, por exemplo, nao tinha capacidade de calculo, mas ele tinha aintuicao da veracidade matematica. E so isso que interessa, o restoe questao de forca fısica. So que fazer forca na direcao errada naoadianta absolutamente nada.

O pensador exercitado encontra provas mais facilmente do queo nao exercitado. Por que? Porque os tipos de provas se gravaramnele de um modo cada vez mais profundo, mediante uma variadaexperiencia.

Isto e fundamental, do ponto-de-vista pratico. A fundamentacaoe tambem um exercıcio, um habito da mente. Se a mente esta con-tinuamente buscando as fundamentacoes, ela acaba pegando quais

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sao os procedimentos esquematicos que levam a isso, que fazem,que se aplicam a cada caso, e quais nao se aplicam. Ao passoque, se a mente se dirige num outro sentido, ela vai encontrar osesquemas necessarios para fazer alguma outra coisa. Por exem-plo, voce pode ser um inventor de subterfugios, ou seja, um men-tiroso atroz. Voce vai saber produzir as frases necessarias paraque tal ou qual coisa seja admitida por tal ou qual interlocutor,no momento. E voce pode desenvolver esta habilidade indefinida-mente. E a mesma habilidade que voce desenvolve quando pro-cura a verdade em cada coisa. Voce so vai procurar o que vocequer. Para isso, basta voce entender que, no comeco de uma vidaintelectual, voce tera que tomar uma decisao: eu quero encon-trar o fundamento verdadeiro, ou quero encontrar um subterfugio,uma justificacao. A justificacao seria o contrario do que e justo.Voce quer tornar justo; fazer com que seja justo, aquilo que naoe. Os esquemas retoricos, para esse fim, sao inesgotaveis. O quepode tornar uma coisa crıvel para uma pessoa, depende da pessoaque voce esta falando, depende da situacao. Existe um esquemapara cada situacao. voce pode ser tao inventivo quanto queira. E,quanto mais facilmente ele persuade, mais facilmente ele se per-suade. Tanto que e muito raro voce encontrar um grande retoricoque seja, ao mesmo tempo, um grande filosofo.

A filosofia de retorica e para uso pratico. E um pouco de filoso-fia que serve para o gasto, porque nao e uma mente orientada paraa verdade. Existem determinadas formacoes, educacoes, univer-sitarias que sao para fazer retoricos como, por exemplo, o Direito.Se voce colocar na faculdade de Direito uma mente cientıfica, defato, o aluno fica quinze anos no primeiro ano do curso.

Na verdade, em muitos aprendizados existe um elemento demistificacao que e necessario para que o indivıduo aceite aquiloe siga adiante. Por exemplo, em qualquer ensaio tecnico voce temuma serie de coisas que nao estao fundamentadas, que poderiam

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ate ser falsas, mas que para voce conseguir aquele resultado, vocevai precisar engolir desse ou daquele jeito. Se voce decidir parare examinar aquela coisa, pode ser que voce destrua aquela regra.Isto tornaria a investigacao da verdade uma forca autonoma e, decerto modo, hostil a ordem social. Por isso mesmo que Deus, sa-bendo disso, colocou o amor a investigacao da verdade em umnumero muito pequeno de cerebros. Senao, seria um problema.a maior parte das pessoas, de fato, tem que aceitar um monte dementiras, e continuar agindo como se aquilo fosse verdade, atesegunda ordem.

A mentira tambem e psicologicamente e socialmente ne-cessaria, ate certo ponto. E o caso da verdade traumatica. Vejamo exemplo do ovo: o ovo e uma casca do indivıduo. As mentirassao uma casca para o indivıduo. Enquanto a crianca alcanca o seudesenvolvimento biologico natural, e necessario que ela seja pro-tegida de verdades traumaticas. A verdade nao e fisiologicamenteconveniente aquele indivıduo, ate um certo momento. Entao, eletem que ser protegido daquilo, mas so ate certo momento. Se essaprotecao continua, apos o ser humano ter atingido o seu desenvol-vimento biologico natural, ela se torna lesiva. Viver num mundode fantasias e muito bom para quem nao tem que tomar decisaopropria. A crianca pensa, com a unica finalidade de alcancar umasatisfacao, para se manter num estado homeostasico, no qual elapossa crescer e se desenvolver com criterios.

Para a crianca so interessa o pensamento que faz bem a ela, enao para o meio em geral. Por que? Porque as decisoes dela naoafetam ninguem. Mas, e o pai de famılia que tomar uma decisao,que nao reflete o real, mas que e apenas boa para ele? Nao e me-lhor voce pensar que voce e rico, do que voce pensar que e pobre?Sim, voce se sente melhor. Porem, e bom continuar passando che-que indevidamente com base no pensamento que voce queria serrico? E claro que nao!

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O pensamento que e util, organicamente, o e para um indivıduoporque e um pensamento egoısta, que visa a sua auto- protecao. Nahora que esse pensamento comeca a servir de base para decisoesque afetarao os outros, aı o compromisso dele nao e mais de inte-gridade fısica de um sujeito, mas com a integridade do meio. Nestecaso ele tera que obedecer a razao, a verdade. Porem, e claro que,em qualquer sociedade, o numero de pessoas que permanecem in-fantis e muito grande, porque o numero de pessoas que tomamdecisoes e muito pequeno. A maior parte das pessoas nunca tomadecisoes a respeito de quase nada. O sujeito pode continuar in-fantil. Pode, e deve continuar infantil porque ele vive uma vidamiseravel, uma vida quase que de escravo, e ele so pode encontraro reconforto no mundo da ilusao. Assim, e melhor que ele fiquemesmo na ilusao, porque se ele descobrisse a verdade, ou ele teriaque mudar de vida, o que seria muito difıcil, ou ele sucumbiria sobo impacto de uma verdade que ele nao aguentaria.

Vejam, por exemplo, o problema das bombas atomicas, que du-rou tantas decadas. Claro que haviam pessoas que tomavam de-cisoes relativas as armas atomicas, e essas pessoas ficavam apavo-radas, porque tinham que saber a realidade daquele perigo e pensarnele com realismo, para pode tomar decisoes. Porem, a massa dapopulacao tinha que viver baseada numa ilusao de que aquilo eraimpossıvel, quando de fato nao era. Toda noite, antes de dormir,eu verifico se o gas esta fechado, se a porta esta trancada, etc. E ascriancas pequenas? Elas nao podem pensar nisso, porque senao fi-cariam aterrorizadas. A crianca pequena, para crescer, ela precisaconfiar que ela e indestrutıvel. Ela pensa que se vier um mons-tro ela da um tiro de raio laser nele, ou aplica um golpe mortalde karate, etc. Ela precisa dessas mentiras para se sentir segura.Entretanto, e o pai que pensasse assim?

O pensamento fantasista e fundamentalmente egoısta, que fogedo real, porque nao assume a responsabilidade pelas decisoes. Se

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nos abandonamos o mundo dos pensamentos agradaveis, nos oabandonamos por um amor aos nossos semelhantes. O mesmoreconforto que a crianca encontra naquele mundo ilusorio de auto-satisfacao egoısta, e a satisfacao que o pai encontra em se sacrificarpelas criancas que ama. Sao duas formas da felicidade: uma eegoısta, narcisista; a outra, altruısta, propria do adulto.

...(?) tem um frase linda que diz: “Ser sincero e morrer umpouco”. Toda vez que voce e sincero, que voce fala a verdade, vocetem que matar mais uma ilusao. E voce so aguenta isso se conse-guir uma outra satisfacao, num outro plano, que e a satisfacao doamor ao proximo, do amor a Deus, etc. Voce vai reconquistandono plano da universalidade, a felicidade que voce traz no plano doegoısmo individual. Isto e a raiz da vida humana. O homem foifeito para isso.

Por isso que eu ...(?) com pessoas adultas que buscamsatisfacoes de adolescentes, lambendo o proprio ego, dizendo “euquero isso!”, “eu preciso disso!” Voce nao precisa de nada! Voceprecisa e de servico, de encargo, de responsabilidade, de amor aoproximo, para aprender a aguentar. O exemplo de Ghandi e de umauto-sacrifıcio total pelo proximo. Coisa de maluco! A felicidadedele era a comunidade hindu viver em paz.

Quando eu vejo um sujeito que diz que precisa da roupa que elequer, da comidinha que ele quer, o empreguinho que ele quer, anamoradinha que ele quer, o carrinho que ele quer, tudo para elenao ficar tristinho, eu acho isso asqueroso! Tem que dizer comoEinstein: “A felicidade e um ideal ...(?) dos porcos”. voce tem quebuscar a realizacao de um supremo valor que torna a vida humanavaliosa, independentemente de ir para cima ou para a morte. Nestesentido, o sacrifıcio e o unico sentido da vida humana. Sacrifıcioe uma obra sacra, sagrada.

O sacrifıcio e nessa direcao, de largar o mundo da ilusao egoısta,o mundo da auto-protecao, que e bom para as criancas, e encon-

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trar satisfacao em algo que transcenda a sua pessoa, que seria obenefıcio da humanidade, ou mesmo de um famılia. O homemque se sacrifica pela sua famılia, ja e um ser humano evoluıdo.

Para que um indivıduo viva uma vida de auto-satisfacao, e ne-cessario que o protejam de suas fantasias infantis. O teste e oseguinte: retirem o sujeito de dentro desse universo protegido, eo jogue sozinho numa situacao, e voce vai ver que ele e menosque um bebe. O homem tem que estar preparado para saber queele, individualmente, nao pode ser nada. Ele so e alguma coisa emfuncao do valor que ele se dedica, pelo qual ele se mata. Curiosa-mente, a negacao da individualidade e que da o unico valor a ela.O indivıduo se mata por uma coisa universal, e daı ele encarna esseuniversal. So isso pode ser o fundamento da Etica, ou da Moral, oresto e conversa fiada. Voce vale aquilo que voce e. A medida doquanto voce ama, e o quanto voce se da. Se o que voce ama e umcarro importado, ou uma dose de cocaına, voce vale isso.

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16 de janeiro de 1993

O pensador exercitado encontra provas mais facilmente do queo nao exercitado. Por que? Porque os tipos de provas se gravaramnele de um modo cada vez mais profundo, mediante uma variadaexperiencia. As qualidades de tato cientıfico, intuicao previdente eadivinhacao estao em relacao com isto. Na natureza geral dos ob-jetos da esfera correspondente radicam certas formas de conexoesobjetivas, e estas determinam por sua vez peculiaridades tıpicasem todas as formas de fundamentacao preponderantes nessa es-fera. Nisto reside a base das rapidas presuncoes cientıficas. Todaprova, todo descobrimento repousa nas regularidades da forma.

Peguem um determinado domınio. Existem certos tipos de es-quemas probatorios que sejam de uso corrente, que aparecam commais frequencia, de modo que, quando o caso se apresenta, vocelogo percebe.

Em Ginecologia, por exemplo, me de um esquema que tal coisaindica tal outra, como, por exemplo, num diagnostico diferencial.Pode ser por eliminacao, de modo que, quando voce tiver quinhen-tos diagnosticos diferenciais, voce tenha esse esquema compara-tivo.

Outra pergunta: o que leva voce a fazer um diagnostico dife-renciado entre duas patologias, e nao entre tres, quatro, cinco oumil? Como voce escolhe essas duas? Voce escolhe essas duas por-que voce e um pensador exercitado, senao voce teria que escolher

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varias.O que Husserl esta dizendo e que isso so e possıvel porque os

esquemas de provas sao sempre identicos, no tempo, senao, naoseria possıvel.

Se a forma regular torna possıvel a existencia das ciencias, aindependencia da forma com relacao as distintas esferas do sabertorna possıvel, de outro lado, uma teoria da ciencia. Se nao fosseesta independencia, haveria uma serie de logicas coordenadas en-tre si, mas nao haveria uma logica geral.

O esquema que se usa no diagnostico diferencial, e o mesmoque se usa pelo delegado de polıcia para fazer uma acareacao. Epossıvel uma logica geral, porque esses esquemas sao sempre osmesmos.

9. Procedimentos metodicos das ciencias: fundamentacoes edispositivos auxiliares para as fundamentacoes.

As fundamentacoes nao esgotam o conceito de procedimentometodico, embora tenham, uma significacao central.

Todos os metodos cientıficos, que nao tenham por si mes-mos o carater de verdadeiras fundamentacoes, ou sao abreviacoese substitutivos das fundamentacoes, destinados a economizaro pensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futurasfundamentacoes.

Existem metodos cientıficos que nao tem, por si mesmos,carater de fundamentacao. Eles nao servem de prova, mas servem,ou para economizar raciocınio, para abreviar, como por exem-plo, a estatıstica, ou entao, como dispositivo auxiliar que servepara preparar, para facilitar, assegurar, tornar possıvel as futu-ras fundamentacoes. Por exemplo, classificacoes que voce faz,com vistas a tornar abarcavel o terreno que voce vai trabalhar. Aclassificacao pode ser ate fictıcia, que depois voce conserta. Exis-tem uma serie de procedimentos que fazem parte do metodo, mas

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nao tem carater de fundamentacao.Um metodo cientıfico consiste, fundamentalmente, nas

fundamentacoes. Estas devem ser as mesmas para todas asciencias, ou devem obedecer aos mesmos esquemas. No entanto,os dispositivos auxiliares podem ser infinitamente variados con-forme os campos a que voce recorre. E justamente porque tantagente confunde uma coisa com a outra que nao se percebe a uni-dade da teoria da ciencia que esta subjacente a todos os metodos.

A Estatıstica tem que se fundamentar numa coisa que se chamainducao. A inducao e um tipo de raciocınio no qual falta, justa-mente, a premissa maior. Falta o todo, e voce so tem a parte. To-mando essa parte, voce supoe qual e o todo, no qual ela se encaixa.Se voce tem uma premissa menor, e uma consequencia a que elase refere, entao, deve haver uma premissa maior. E uma suposicaode silogismo. O fundamento da inducao, em ultima analise, e omesmo raciocınio entre todo e parte. A inducao, por si mesma,nao e fundamento de nada, mas ela e um procedimento auxiliar.

A Estatıstica e um procedimento auxiliar da inducao. Assim,a Estatıstica, por si mesma, jamais poderia ter valor probatorio.Ela tem porque existe a inducao, e a inducao, por si mesma, nadaprova, porque ela depende da estrutura silogıstica que ela suben-tende. Daı que o grande metodologista Karl Popper, diz que naoexiste inducao nenhuma. so existe deducao.

A inducao nao faz parte da Logica. A inducao e um mero pro-cedimento tecnico, exterior a Logica. Ela nao e um metodo ci-entıfico, e apenas uma tecnica auxiliar.

Assim, por exemplo, para referir-nos ao segundo grupo, e im-portante requisito para a seguranca das fundamentacoes que se ex-pressem os pensamentos de um modo adequado, mediante signosbem diferenciaveis e unıvocos.

A terminologia adequada faz parte desses recursos e dispositi-vos auxiliares.

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A linguagem, embora ninguem possa prescindir dela, e um ins-trumento sumamente imperfeito. Na definicao nominal vemos,pois, um procedimento metodico auxiliar para a seguranca dasfundamentacoes.

Isto e a definicao nominal. Nao sabendo o que e uma coisa,voce define o sentido em que vai utilizar uma determinada palavra,mesmo que nao exista um objeto correspondente. Uma coisa evoce dizer o que e algo; outra coisa e voce dizer o sentido em quevai usar a palavra.

Coisa semelhante sucede com a nomenclatura, o metodo declassificacao, etc.

Exemplos do primeiro grupo de metodos nos sao oferecidos pe-los metodos algorıtmicos,

Algoritmo e um esquema de uma operacao que pode ser repe-tida indefinidamente, que pode ser cada vez mais complexa, masbaseada sempre nesse mesmo modelo.

Se voce acha um algoritmo que expresse uma sequencia com-plexa de operacoes, voce pode pular essa sequencia complexa,usando somente o algoritmo. Por exemplo, quando voce faz umcalculo astrologico, voce tem uma sequencia de operacoes pre-determinadas. Voce poderia reduzir aquilo a um algoritmo. Osprogramas de calculo do mapa astral sao feitos assim.

Mas, tudo isso nao valeria de nada se nao tivesse afundamentacao por tras. Por que o algoritmo funciona? Nao epelo mesmo princıpio do todo e parte? Toda e qualquer operacaofeita segundo aquele modo, obedecera ao mesmo esquema. Entao,se em geral e assim, em cada um dos casos tambem sera assim.

algoritmos, cuja funcao peculiar e poupar-nos a maior partepossıvel do verdadeiro trabalho dedutivo, mediante ordenacoes ar-tificiais de operacoes mecanicas com sinais sensıveis. Neste grupoentram tambem os metodos literalmente mecanicos. Cada um des-tes metodos representa uma soma de dispositivos, cuja selecao e

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ordem estao determinados por um complexo de fundamentacoes,que prova em geral que um procedimento dessa forma, anda quese realize de um modo cego, ha de proporcionar necessariamenteum juızo particular objetivamente valido.

Nao se pode esquecer que a selecao e a ordem desses metodos,quais os que se aplicam, e determinado por um complexo defundamentacoes, que em ultima analise vai cair na nocao deevidencia. Ou seja, se cair a evidencia, cai tudo isso.

Entretanto, so existe evidencia para o sujeito. Assim, se ha osujeito cognoscente, nao ha evidencia. Uma coisa nao pode serevidente em si, mas uma coisa pode ser verdadeira em si. Aevidencia nao e um carater inerente ao objeto. A evidencia e otipo de relacao que se estabelece entre a coisa e o sujeito cognos-cente, de modo que se voce retirar o sujeito, cai a evidencia, caemas fundamentacoes, caem os procedimentos de prova, etc.

A estrutura da Ciencia e de tal maneira fundada na nocaode fundamentacao, que por sua vez, esta fundada na nocao deevidencia, que a propria Logica so vale se o enlace de umaproposicao com a outra for, ele mesmo, nao um objeto de provalogica, porem uma evidencia, como a do todo e parte.

Entretanto, acontece que o progresso dos meios auxiliares, pelotamanho do progresso que as novas geracoes de cientistas, ja edu-cadas dentro de uma atmosfera criada por estes meios auxiliares,mecanicos, que isso pareceu mudar a propria ideia do que fosseCiencia, ou conhecimento. De modo que, hoje em dia, a nocaocorrente de Ciencia e a seguinte: partindo do princıpio de que osraciocınios logicos e matematicos, que dao a Ciencia um caratercientıfico, ja estao todos unificados pelo uso de computadores, eespalhados pelo mundo. Isto significa que passa a ser cientıfico,tudo aquilo que puder ser equacionado nos termos do que essescomputadores aceitem, e o resto que nao puder ser colocado nessalinguagem, e retirado como irrelevante. A cientificidade passa a

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poder ser medida mecanicamente, de acordo com programas pre-determinados. Parte-se hoje, sem nenhuma necessidade de que umsujeito consciente examine aquilo. Assim, o que e cientıfico ounao-cientıfico, hoje em dia, e a adaptabilidade a um determinadoconjunto de programas.

Neste caso, nao ha mais o sujeito, nao ha mais a evidencia, ecom isso, nao ha mais a distincao entre verdadeiro e falso. ACiencia e julgada, nao em termos da sua veracidade ou falsi-dade, mas em termos de sua utilidade para o seu desempenho damaquina total da pesquisa cientıfica. E possıvel voce fazer umapesquisa cientıfica sem nenhum cientista, manda-la para uma uni-versidade, ninguem vai ler a sua pesquisa, ela vai ser aprovada, vaiser utilizada e vai ser repetida, sem quase que nao haja nenhumainterferencia humana.

Neste caso, a propria distincao do pratico e do teorico vai paraas cucuias, nao importa mais. O que importa e que o conhecimentoteorico passa a valer, nao em funcao da veracidade ou da falsidade,mas em funcao da facilidade, maior ou menor, do que ele se en-caixe dentro do todo da pesquisa cientıfica atualmente em curso,e e avaliado tambem segundo a sua capacidade de otimizar essamaquina geral da pesquisa cientıfica. Tudo isso sem a intervencaohumana. Tudo vira um imenso piloto automatico.

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12 Prelecao XII

10 de fevereiro de 1993

Eric Weil disse em um dos seus livros que nao e possıvel voceapresentar os pensamentos de um filosofo com maior brevidade doque ele mesmo apresentou.

Se fosse possıvel isso, o proprio filosofo o teria feito. Voce sopode acrescentar alguma coisa a mais. Se voce le somente umlivro de Kant, e nao a sua obra completa, voce nao vai ter nuncauma ideia completa de seu pensamento.

9. Procedimentos metodicos das ciencias: fundamentacoes edispositivos auxiliares para as fundamentacoes.

As fundamentacoes nao esgotam o conceito de procedimentometodico, embora tenham uma significacao central.

Todos os metodos cientıficos, que nao tenham por si mes-mos o carater de verdadeiras fundamentacoes, ou sao abreviacoese substitutivos das fundamentacoes, destinados a encontrar opensamento, ou representam dispositivos auxiliares, que ser-vem para preparar, facilitar, assegurar ou possibilitar as futurasfundamentacoes.

Isto aqui e uma coisa que voces podiam tomar como umexercıcio. Em qualquer discussao sobre metodo cientıfico, aoinves de se falar sobre as fundamentacoes (porque voce deveriaacreditar que tal ou qual afirmacao cientıfica e verdadeira, quaissao os princıpios e criterios de credibilidade da Ciencia), ou se

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fala de substitutivos, abreviaturas, para economizar o pensamento,ou se fala de dispositivos auxiliares.

Nao e preciso dizer que a maior parte dos livros que atualmentese publica no Brasil, que constituem o metodo cientıfico, tratamapenas de abreviacoes ou dispositivos auxiliares. Se confunde ametodologia cientıfica com a mera tecnica de pesquisa cientıfica.A tecnica que fundamenta os metodos. Os metodos, por sua vez,tem que ter uma fundamentacao na teoria da ciencia, e daı vocetem a tecnica. A tecnica vai se constituir sempre das duas coi-sas: metodo de economia de pensamento, ou entao, dispositivosauxiliares, que facilitam, asseguram, as futuras fundamentacoes.

Isto significa que o conceito de metodo cientıfico esta se tor-nando, cada vez mais, uma especie de receituario da pesquisa. Estereceituario pode, facilmente, ser formulado em linguagem de com-putador, e nos chegamos ao ponto onde uma pesquisa cientıficapode ser feita quase sem nenhuma participacao da inteligencia hu-mana, e o resultado se devendo quase exclusivamente ao meritodo autor do programa que esta no computador. Como exemplo,o famoso livro de Paul Kennedy, “Ascensao e Queda das GrandesPotencias”, o qual e uma obra do computador. A obra nao foi feitano, mas pelo computador. Ele colocou no programa um monte dedados, e praticamente o relatorio saiu pronto.

Em Sao Paulo, ha um aluno meu, que trabalha na FIESP, e afuncao dele e justificar cientificamente tudo o que a FIESP queira.Ele disse que eles tem la um monte de programas desse tipo, parapoder editar uma pesquisa cientıfica em quinze minutos. Ele seautodenomina um legitimador de discursos.

Essas tecnicas estao muito avancadas hoje em dia. Por um lado,abrevia o tempo da pesquisa cientıfica. Por outro lado, isto abrea toda uma pseudo-ciencia, a vigarice. Por exemplo, ha progra-mas para montar a redacao do relatorio final. E uma formula dorelatorio. E preciso estar ciente que isso nao permite nenhuma

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descoberta efetiva mas, sim, permite uma especie de retorica ci-entıfica que logo vai se constituir, creio eu, em 90% da producaocientıfica. Se for assim, voce nao precisa estudar mais nada. Ape-nas informatica. O resto, o conteudo, somente uma pessoa precisaestudar.

E claro que tudo isso examinado a luz da teoria da Ciencia, nemum por cento tem valor. Se voce apertar o sujeito quanto as razoesda credibilidade, voce nao vai muito longe. O metodo cientıficoseria, para abreviar, a sugestao de uma sequencia de atos que, emprincıpio, seriam favoraveis para voce obter a resposta a determi-nadas questoes. Todo metodo e hipotetico. O metodo nao e um co-nhecimento. O metodo e uma estrategia para voce obter uma res-posta a determinadas questoes. Este metodo, por sua vez, tem quese basear em algum princıpio logico que, por sua vez, se prolonganum conjunto de tecnicas que permite a sua realizacao material.Todo metodo e baseado num conjunto de fundamentacoes refe-rentes a uma determinada esfera do ser, da realidade. Se voce naoconhece as razoes pelas quais essa esfera foi recortada assim, e naode outro modo, entao o seu metodo nao tem fundamento. Quemdiz que determinado assunto pode ser estudado, por tal ou qualangulo, pelo qual voce deseja estuda-lo? O metodo, em si mesmo,ele vai se basear sempre num determinado recorte, que seriam zo-nas do ser. Essas zonas sao definidas pelo qual o Husserl chamade Ontologias Regionais. Se voce nao tem essas fundamentacoes,voce nao pode tirar o metodo. O metodo e a maneira da desco-berta, mas de uma descoberta que voce nao fez. Se voce esta pen-sando num metodo, e porque voce ainda nao descobriu nada. Ecomo se o metodo fosse um plano. A fundamentacao vem da On-tologia Geral, da Ontologia Regional, depois sai o metodo, e daı atecnica. Algumas ciencias usam tecnicas de outras ciencias, que-rendo colocar nelas, mas nao tendo feito a ontologia regional.

A Ontologia e sempre uma resposta a pergunta: o que e? Quid

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est? Sempre que voce faz esta pergunta, voce chega, as vezes, adescobertas assombrosas, porque as coisas eram muito diferen-tes do que voces imaginaram. Entretanto, se voce ja parte deuma determinada definicao, determinados conceitos, convencio-nais, habituais, costumeiros, e “bola” o seu metodo dali para di-ante, o seu metodo tambem so tera valor consensual, ou hipotetico.Isso aı faz com que voce possa chegar a determinadas descober-tas que nao deixam de ter validade, mas tem validade dentro deum corpo de hipoteses tao vasto que para voce acreditar nelas,praticamente voce precisaria conceder preliminarmente uma cre-dibilidade a toda uma enciclopedia de informacoes. Ou seja, ummonte de pressupostos, mais aquele, mais aquele, etc., entao, es-sas descobertas seriam validas. Se acontece desses pressupostosserem compartilhados por toda uma comunidade humana, entaoo erro nao aparece. Se voce parte de crencas comuns a respeitoda natureza de tal ou qual fenomeno, dentro daquela coletividadenao ira surgir duvida alguma a respeito das conclusoes a que vocechegou.

Porem, a inexistencia de duvidas numa determinada coletivi-dade nao quer dizer que as coisas criadas sejam realmente solidas.Nao e um fundamento autonomo, com comeco, meio e fim. Eum fundamento consensual, baseado na crenca publica, numa de-terminada hipotese. Por exemplo, em Sao Paulo, fizemos umainvestigacao preliminar — quid est? –, sobre o dinheiro. O que eo dinheiro? Chegamos a conclusao que o dinheiro nao e um con-ceito economico, mas sim um conceito jurıdico. Se voce aborda-lopelo lado economico ele vai ficar cada vez mais enigmatico. Em-bora voce possa calcular todo o comportamento dele, voce jamaissabe o que e, e a partir de um certo ponto, a ciencia economicase transforma no que ela e hoje, um calculo exato dos desvios dassuas proprias previsoes. Nesse momento voce comeca a usar umatecnica, um instrumental cada vez mais aprimorado, para estudar

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uma coisa cada vez mais obscura.E justamente aı que entramos no que o Husserl chama de “crise

das ciencias”. Elas so formam uma retorica. O pior e que, nao ha-vendo da classe cientıfica uma consciencia filosofica mais aguda,eles nao tem nenhuma ma consciencia. O sujeito, as vezes, naosabe que e um charlatao. Um filosofo, quando “chuta” muito, elesabe que e um charlatao. O filosofo polones Kolakowski disse que,no seculo XX, nenhum filosofo esteve isento do sentimento de serum charlatao. Mas, na Ciencia, nos nao poderıamos dizer a mesmacoisa. Raramente um homem de ciencia tem esse senso agudo deser um charlatao, e no entanto, o sujeito, as vezes, e isso mesmo.

Para voces que, um dia, estudaram essa ou aquele ciencia emparticular, deveriam estuda-la novamente, a partir dessa velha per-gunta — quid est? –, porque aı voces verao que as coisas seraodiferentes, porque o que voces sabem, de fato, e bem menos. Em-bora sempre sobre uma margem de realidade, cuja natureza vocedesconhece, e suas implicacoes voces tambem ignorem, mas que,ate certo ponto, podem ser manipuladas, usadas. Por exemplo,saiu no jornal a notıcia de um computador que obedece as or-dens do seu pensamento, sem precisar de bater as teclas. Hoje,ele consegue escrever a razao de dois, tres caracteres por minuto.Se voce procurar pela tecnica que eles utilizaram para isso, veraque e apenas o aprimoramento da eletroencefalografia. Cientifica-mente isso nao e nada. E o mesmo princıpio. Este tipo de desco-berta te joga um pouco de areia nos olhos. Voce acha que e umacoisa fantastica, e que e algo novo, quando nao e. O princıpioe o mesmo. E so continuar aprimorando que o computador vaiconseguir escrever fluentemente.

O conceito publico que se tem sobre a Ciencia e o de que elatem um domınio extraordinario sobre a realidade das coisas. Naoe bem isso. Na maior parte dos casos, sao determinadas operacoesque voce conhece e, geralmente, dentro de linhas de avancos

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tecnologicos muito bem determinadas. Sao sempre as mesmas.Mesmo o avanco tecnologico, para ser algo diferente, e muito raro.Vejam o caso dos supercondutores, que seriam uma coisa nova. Japrovaram que nao e tao facil assim. Entretanto, o publico ve aclasse cientıfica como se fosse uma casta sacerdotal encarregadade conhecer o mundo, e dizer para todos como o mundo e. Elesdetem o poder da visao, como a classe guerreira deteria o poderda acao. Qualquer camada intelectual sempre exerce essa funcao.Como essa funcao, hoje em dia, parece caber a elite universitaria,e natural que o povo lhe atribua todas as caracterısticas, e todos ospoderes, que uma tribo de ındios atribui ao seu paje, e os povosantigos atribuıam aos seus profetas. Lamentavelmente, nao e bemassim.

Para resumir: temos, fundamentacao, metodo e tecnica. Temosa teoria da Ciencia em geral, a teoria da Ciencia em particular, ba-seada na sua Ontologia Regional, depois temos o metodo, e depoistemos a tecnica. Depois voce tem a Ciencia propriamente dita,posteriormente os resultados que, com tudo isso, ainda podem serdecepcionantes.

O problema e que, quando os metodos algoritmos passam a sera propria essencia da coisa, da a impressao que a Ciencia e umamagica que produz resultados do nada. Acontece que nao existematalhos. Tudo voce tem que melhorar, comecando sempre pelapergunta, Quid est?

Assim, por exemplo, para referir-nos ao segundo grupo, e im-portante requisito para a seguranca das fundamentacoes que se ex-pressem os pensamentos de um modo adequado, mediante signosbem diferenciaveis e unıvocos. A linguagem, embora ninguempossa prescindir dela, e um instrumento sumamente imperfeito.Na definicao nominal vemos, pois, um procedimento metodico au-xiliar para a seguranca das fundamentacoes.

Coisa semelhante sucede com a nomenclatura, o metodo da

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classificacao, etc.Tudo isso sao esquemas para economizar pensamentos. Porem,

essa economia e duvidosa. Ha sequencias inteiras de pensamentoque, teoricamente, voce poderia entregar para um computador fa-zer, e ele, de fato, o fara, de acordo com um linha pre-determinada.

Acontece que me parece que o avanco real da Ciencia nao e feitoexatamente assim. Em primeiro lugar, o computador nao opera in-tencionalmente. Ele nao sabe para o que ele esta pensando tudoaquilo. Mesmo que voce tenha mil alternativas, ele so ira ope-rar dentro de certas linhas pre-determinadas. E como se voce naoestivesse ali para observar. E um procedimento amplamente in-consciente. Isso pode ajudar, e pode atrapalhar.

Exemplos do primeiro grupo de metodos nos sao oferecidospelos metodos algorıtmicos, cuja funcao peculiar e poupar-nos amaior parte possıvel do verdadeiro trabalho intelectual dedutivo,mediante ordenacoes artificiais de operacoes mecanicas com si-nais sensıveis. Cada um destes metodos representa uma somade dispositivos, cuja selecao e ordem estao determinados por umcomplexo de fundamentacoes, que prova em geral que um procedi-mento dessa forma, ainda que se realize de um modo cego, ha deproporcionar necessariamente um juızo particular objetivamentevalido.

Se voce pega todos os programas de deducao que estao nos pro-gramas de computador, tudo isso esta baseado nos fundamentosmesmos da Logica. Qual e a diferenca de voce operar com eles, evoce ter uma conviccao pessoal dos fundamentos da Logica? Hauma grande diferenca. A propria facilidade que o indivıduo realizaa operacao, nao implicando da parte dele nenhum esforco pessoal,pode fazer com que o indivıduo, no fim, ate duvide do resultadoda deducao, quando na verdade, esta certıssimo.

Quem vai ter que concordar, ou discordar, desse padrao, no fim,sera o indivıduo. Se voce, partindo dos fundamentos da Logica,

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faz uma deducao inteira, voce obtem, no fim, uma certeza pessoal.Se voce entrega isso para o computador, que te da o resultado nofinal, voce pode nao ter aquele sentimento de certeza, aquela fir-meza pessoal.

Mas basta de exemplos. Esta claro que todo verdadeiro pro-gresso do conhecimento se verifica nas fundamentacoes.

10. A ideia de teoria e a ideia de ciencia como problemas deteoria da ciencia.

As fundamentacoes soltas ainda nao constituem ciencia. Estaimplica certa unidade no conjunto das fundamentacoes, certaunidade na serie gradual delas; e esta forma unitaria tem umasignificacao teleologica para alcancar o fim supremo do conheci-mento, isto e, nao a investigacao de verdades soltas, mas do reinoda verdade, ou das regioes naturais em que este se divide.

Isto aqui e fundamental, porque toda a articulacao que se possafazer de metodo cientıfico, ela so se justifica em funcao de umadeterminada finalidade. Esta finalidade e nada mais do que a ne-cessidade da verdade sobre determinada coisa; vai se fundamentarno conceito da verdade e na ideia de um objetivo a alcancar. Esteobjetivo, que e a ideia pura de Ciencia mesma, se ele sai da suafrente, entao toda a operacao cientıfica fica totalmente sem sen-tido. Voce pode sempre se contentar em procurar a verdade den-tro de certos parametros. Por exemplo, definindo como verdadeisso ou aquilo, e comecamos a procurar a verdade dentro dessesparametros. Nao se pode mais chamar isso de Ciencia porque sevoce se baseia em determinados parametros, mais ou menos con-vencionais, voce esta ...(?) pensamento hipotetico, onde se essesparametros forem efetivos, entao, tais ou quais estudos serao ver-dadeiros. Mas, e proprio do pensamento cientıfico exigir algo maisdo que a mera hipotese, do que a mera nao- contradicao.

A verdade descoberta dentro de certos parametros convencio-nais, e sempre uma verdade logica, ou seja, uma verdade que nao

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implica contradicao. Ora, uma coisa que nao implica contradicaoe uma mera hipotese. Para ser verdadeira e preciso algo mais quea nao-contradicao. Toda e qualquer confianca dada a parametrosconvencionais, ou pelo menos nao-discutidos, arrisca transformartodo o edifıcio da Ciencia num conjunto de hipoteses muito inte-ressante, mas fundadas apenas na nao- contradicao interna. Porexemplo, o pessoal da Logica Matematica desenvolveu um sis-tema dedutivo em tabuas completas de alternativas, com as quais,de uma sentenca, dada como verdadeira, tais outras se podem de-duzir verdadeiramente ou nao. Tudo isso e, de fato, automatizado,mas todo o problema fica sendo sempre a primeira sentenca quevoce vai colocar la.

Um computador nao poderia jamais trabalhar fora do parametroque voce mesmo coloca. E esse parametro e que e o ponto de dis-cussao. O resto, pelo simples fato de ser uma deducao automatica,nao tem interesse em si mesmo.

A questao fundamental da Ciencia e: o que ela investigar, e porque ela vai investigar? E, por que investigar isso e nao aquilo?Nao e tanto o como investigar. Todas as decisoes cientıficas fun-damentais estao colocadas antes do problema do metodo. Dentrode muitas ciencias voce ve o contrario: e um conjunto de procedi-mentos muito exatos, para proceder as investigacoes, e uma quaseausencia de discussao dos conceitos basicos. Por exemplo, nos vi-mos isso com relacao ao caso anterior do dinheiro. Havia muitoseconomistas na discussao, e ninguem sabia o que era dinheiro. Ja-mais haviam pensado nisso. Confundiram dinheiro com riqueza,com valores, com bens, com moeda.

A missao da teoria da ciencia devera ser, portanto, tratar dasciencias como unidades sistematicas, ou, dito de outro modo, da-quilo que as caracteriza formalmente como ciencias, daquilo quedetermina sua recıproca limitacao e sua interna divisao em esfe-ras, em teorias relativamente cerradas, de suas especies ou formas

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essenciais, etc.Este problema aqui e gravıssimo. A divisao da Ciencia deve

corresponder, em princıpio, a divisao do ser em esferas, de modoque voce possa estar seguro de que um determinado tema, queesta delimitado de tal maneira, a investigacao de um outro tema,vizinho, nao interferira em nada no andamento das investigacoesque voce faca.

Nos podemos estar seguros de que as descobertas psicanalıticasnao afetem em absolutamente nada as descobertas em GeometriaDescritiva. Isto porque sao esferas do ser, realmente independen-tes. Este e o verdadeiro problema. Por exemplo, desta discussaodo dinheiro, chegamos a conclusao de que a Economia, entendidacomo uma ciencia autonoma, em relacao a ciencia do Direito, euma coisa absurda. A Economia e uma divisao da ciencia jurıdica.O exame da questao do dinheiro nos leva, fatalmente, a isso.

Que esta pergunta, simplesmente, nao tenha sido feita, se ex-plica pelo fato de que os indivıduos sempre tomaram o dinheirocomo uma definicao normal. O que se chama de dinheiro dentrodeste contexto? E como se eles falassem, nao em dinheiro, mas em“dinheiros”. Existem fenomenos diferentes chamados de dinheiroaqui e acola. Aqui, o pessoal esta chamando de ...(?) Isto naochega a ser uma definicao nominal, mas poderia ser uma definicaoiniciativa, definitiva, que indica mais ou menos onde esta, e comoreconhecer um objeto quando ele se apresenta.

Mas, nao diz o que e este fenomeno, em todos os casos. So-bretudo, nao indica o seu parentesco, a sua semelhanca, e suadiferenca com outras coisas que levam o mesmo nome, em outroscontextos.

A propria ideia de que uma coisa como o dinheiro, possa ser ob-jeto de um conceito geral, e uma coisa que para o economista nosparecia estranho porque ele respondera sempre assim: o dinheirovaria conforme a sociedade, conforme a epoca, etc. E como se

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dissesse que este e um fenomeno que so tem acidentes, so tempropriedades, ele nao tem essencia. O que e uma absurdidade,porque se a coisa chega a ter propriedades, se chegam a aconteceracidentes, e porque algo ela e. O nada nao sofre nenhum acidente.

Se nos perguntarmos o que e o dinheiro, nao neste contexto, masse buscarmos assim, algo que se denomina dinheiro, e dado o qual,dele decorre, necessariamente, todas as propriedades reconhecidasa isto que chamamos de dinheiro, desde que o mundo e mundo, noshaverıamos de encontrar alguma coisa.

A conclusao final sera de que, o que se chama dinheiro, tem to-das as propriedades que tem, realmente, e nao so nominalmente,pelo fato de que o dinheiro nao e nada mais do que um direito.Isto jamais foi dito em toda historia da Economia. Se voce partedo princıpio de que o dinheiro e uma unidade de conta usado emdeterminado comercio, nos perguntarıamos: mas como que umaunidade de conta poderia ter a propriedade produtiva que o di-nheiro tem? Todos sabem que dinheiro rende dinheiro. Uma sim-ples unidade de conta nao pode ter esta propriedade, portanto, estadefinicao esta errada.

Mais ainda: o poder de ser desejado, ser ambicionado pelos ho-mens, isto tambem e uma propriedade do dinheiro. Se ele e apenasuma unidade de conta, um sımbolo de um valor, entao terıamosque dizer que a humanidade, ao desejar dinheiro, estaria comple-tamente louca, porque ela deseja um sımbolo. A moeda e desejadanao por um fetichismo, mas e desejada porque ela lhe correspondea um direito real, assegurada por uma autoridade. O sujeito quedeseja dinheiro, ele nao esta desejando um sımbolo, o que ele quere um direito.

O dinheiro e uma abstracao em relacao aos bens, e o credito euma abstracao em relacao ao dinheiro. Tanto o credito, quanto odinheiro, voce pode resumir num conceito unico, que e um direito.Em Direito, a definicao de dinheiro e uma quantidade determinada

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de bens indeterminados. Mas, nao haveria dinheiro em hipotese al-guma, a nao ser que haja uma autoridade que garanta ao possuidordo dinheiro, seja em forma de moeda, de madeira, de cheque, notapromissoria, de uma quantidade abstrata marcada num cartao, naoimporta. Todas as formas de dinheiro sao sempre um direito quee assegurado por uma autoridade. Se nao houver uma autoridadeco-autora, que obrigue voce entregar uma determinada quantidadede bens em troca de uma determinada quantidade de dinheiro, odinheiro nao vale rigorosamente nada.

O aspecto simbolico e irrelevante. O aspecto de unidade deconta tambem e irrelevante, porque voce nao precisa fazer as con-tas em dinheiro. Voce pode fazer as contas em qualquer outra uni-dade. O unico aspecto relevante e o jurıdico. O dinheiro se baseianuma autoridade, a qual tem um poder coercitivo. Este e o unicoconceito de dinheiro que se possa admitir como cientıfico.

Rasgar dinheiro, por exemplo, e um crime porque voce estacontestando a autoridade que garante aquele dinheiro. Se fosseum sımbolo, voce poderia rasga-lo a vontade, porque nao fariadiferenca alguma. O proprio Karl Marx, de tanto entender disso,ele foi obrigado a explicar a cobica do dinheiro pelo lado demen-cial, pelo lado fetichista. Isto e a mesma coisa que dizer que toda ahumanidade desejando dinheiro, sao todos uns loucos. O primeiroque percebeu essa demencia foi Marx.

O dinheiro, por ser um direito a uma quantidade de bens quali-tativamente indeterminados, ele tem uma propriedade a mais queos outros nao tem, que e a sua conversibilidade universal. Ele e ounico bem que pode ser trocado imediatamente por qualquer um, eos outros nao, so podem ser trocados por bens determinados. vocepode trocar dinheiro por dinheiro, trocar dinheiro por credito, quee uma especie de direito a um dinheiro, e assim por diante.

E errado dizer que o dinheiro e um bem, porque ele nao chegaa ser um bem, porque se ele fosse um bem, ele teria um valor

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de uso. Dinheiro nao tem valor de uso (a nao ser como papelhigienico...), ele so tem valor de troca. Nos poderıamos dizer queas moedas cunhadas em ouro sao uma especie de equıvoco, porqueseria como se fosse uma pompa da autoridade, seria por motivossimbolicos. Se fizermos uma moeda de plastico, com um valorfacial, e uma assinatura, o que vale e a assinatura, e nao o materialplastico. Por isso a moeda de ouro foi um equıvoco, na medidaonde se voce tem uma coisa com valor de uso, pode ser que numdeterminado momento, o valor de uso seja maior que o direito queaquela moeda lhe assegura. Entao, a autoridade se desmoraliza, eela ja nao e mais dinheiro.

Em suma, o dinheiro nao e nada mais do que um direito. Odireito tem que ser provado de alguma maneira, entao, voce temuma moeda, um papel, ou um sinal material que ateste este di-reito como, por exemplo, um contrato. O dinheiro e um direito, ea moeda e um documento que atesta este direito. Ou seja, e umconceito inteiramente jurıdico, e nao economico em si. O surgi-mento do dinheiro e um dos fatos da progressiva introducao deuma ordem jurıdica na esfera economica.

O Direito e uma coisa que se alastra. Existe cada vez maisintervencao do Direito em todos os domınios da vida. Isto e umadas poucas constantes que existem na historia do mundo. Cadavez que o Direito se alastra, significa que a autoridade vai colo-cando seu dedo em cada vez mais domınios da vida. O advento dodinheiro e um passo importantıssimo desse progressivo fenomenoque o Miguel Reale chama de “jurispacao da vida”, ou seja, o Di-reito vai ordenando, moldando a vida.

Assim, sendo uma realidade de ordem fundamentalmentejurıdica, nao tem como voce explica-la fora do fenomeno do po-der, e que a autoridade sem poder e nada. Voce resolveria a coisainteira na base da Polıtica e do Direito.

Eu dou um doce para quem conseguir me apresentar um con-

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ceito puramente economico do dinheiro. Um conceito sem inter-ferencia de ordem jurıdica, e que nao seja meramente nominal,indicativo, e sim, um conceito do qual decorram todas as propri-edades reais do dinheiro. Entre os quais, o primeiro deles e o seufamoso poder produtivo.

Na Idade Media se achava que o dinheiro nao tinha poder pro-dutivo, porque para eles o dinheiro era um sımbolo, e o que tinha opoder produtivo eram os bens. Eles se esqueceram que o dinheiroe, quaisquer bens, e por isso mesmo e melhor voce ter dinheiro doque ter bens. O dinheiro e abstrato em relacao aos bens conside-rados. Mais tarde, e melhor voce ter credito do que ter dinheiro,porque o credito e o dinheiro do dinheiro. O credito e mais abs-trato, portanto, mais abrangente. E e por isso mesmo que ele tem opoder de produzir. Mais vale Cr$ 10,00 do que Cr$ 10,00 de bana-nas, porque as bananas so poderao ser trocadas por quem necessitede bananas.

A universalizacao do credito (cartao de credito) e um outropasso, fundamental, nessa “jurispacao” da atividade economica.Ou seja, voce nao precisa nem mostrar o comprovante. O creditoja te e dado por conta de um documento que esta arquivado emalgum lugar, do qual voce nao tem copia. Mais tarde sera possıvelvoce ter isso sem cartao de credito, por exemplo, pelo toque da suamao numa maquina que o reconheca.

O dinheiro tem toda a caracterıstica do direito, que e uma bilate-ralidade, ou seja, o direito de um corresponde a uma obrigacao dooutro, e esse direito, e essa obrigacao sao garantidas por uma auto-ridade mediadora. A inflacao, por exemplo, e ou nao e uma propri-edade do dinheiro? Claro que e! A inflacao nao pode ser explicadapor um acidente. Ela e uma propriedade pela simples razao de quea autoridade que garante o funcionamento daquilo, que garante aordem jurıdica, e portanto, o valor do dinheiro, ela tambem tomaparte na atividade economica. Ela tambem compra, vende, toma

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emprestado, etc. So nao existiria inflacao na hipotese de voce teruma autoridade que estivesse fora e acima da atividade economica.Mas como ela participa da atividade economica, tao logo ela estejaendividada, ela mudara o valor do dinheiro. Ate o Banco Centralprecisa de dinheiro para pagar os funcionarios, conta de luz, etc.Para isso nao acontecer teria que existir um banco abstrato, quetenha uma nao- sede, que empregue nao-funcionarios, etc. Se oBanco Central participa da atividade economica, ele nao pode serum arbitro totalmente isento. Isto significa que, a partir da horaque existe o dinheiro, a inflacao decorrera disso, quase que ne-cessariamente. A possibilidade de existir inflacao e muito maiordo que a de nao existir. A nao ser que a autoridade seja absoluta,ou seja, a autoridade seja proprietaria de todos os bens colocadosdentro do seu territorio. Neste caso, ela estara acima da atividadeeconomica, porque ela desenvolvera dentro dos domınios da auto-ridade. Entao, a situacao e a seguinte: ou a tirania absoluta, ou ainflacao.

Por outro lado, nos sabemos que a inflacao decorrera sempredo endividamento da autoridade, ou da cobica (ela pode nao estarendividada, mas pode querer sempre mais). Assim, o endivida-mento da autoridade e a unica causa da inflacao. Todas as outrascausas sao acidentais. O endividamento da autoridade significaque ela nao tem bens suficientes para arcar com seus compromis-sos. Isto significa que a autoridade e ilegıtima, que nao tem po-der de fato para se sustentar. Se tivesse, ele, automaticamente, setraduziria em bens. Por exemplo, seria o caso do antigo Estadosovietico: seria um Estado ilegıtimo porque tudo e dele, inclusiveo pensamento das pessoas. Fora disto, a autoridade tera sempreum coeficiente de ilegitimidade. Nao pode existir uma autoridadetotalmente ilegıtima, que seria aquela que tem o poder integral defazer tudo o que quer. Ou seja, a falta de poder e a ilegitimidade.Um governo legıtimo e aquele que e efetivamente obedecido. A

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obediencia e prova de legitimidade. Se o povo aceita, quem estano poder, fica.

Entao, sempre havera um coeficiente de ilegitimidade, que cor-respondera a um coeficiente de inflacao. Se a inflacao e alta, eporque o governo tem pouco poder, e ele tera que governar nabase do truque, da mentira. Por outro lado, nao e preciso dizer quea sociedade estruturada assim, esta toda montada na mentira. Se oEstado vive do seu proprio endividamento para com a sociedade,nos serıamos, teoricamente, credores de um governo que pode nospor na cadeia a qualquer momento. Sendo uma sociedade mon-tada na mentira, nao e possıvel que nada dentro da sociedade sejaclaro, definido. Por isso que as grandes crises inflacionarias cor-respondem a grandes crises psicologicas, sao epocas de loucura.Vide a Alemanha entre as duas guerras. Foi a epoca onde surgiu ocinema expressionista, O Vampiro de Dusserldorf, etc. O povo sopensava em demonios, vampiros, etc.

O fenomeno da inflacao, que e tao enigmatico, pode ser simples-mente deduzido como uma propriedade, partindo-se do conceitode dinheiro. Assim, depois de ter comida, roupa e moradia, e me-lhor ter dinheiro do que ter bens. O capitalista quer um acrescimode dinheiro, que corresponda a um acrescimo de poder efetivo.Nada mais normal e sao na humanidade do que querer isto. Noentanto, se voce perguntar por que querem tanto, aı nos teremosque transmutar a pergunta: por que o homem quer poder? Nestecaso, saımos da Economia e entramos na Psicologia Polıtica. Ja eum outro problema.

Eu falei tudo isto aqui por causa do problema da divisao de es-feras relativamente cerradas. Algumas pessoas sustentam que apartir da psicologia animal voce pode esclarecer a psicologia hu-mana. Ao contrario, eu acho que e mais capaz de voce explicar oanimal, a partir do homem. O homem pode ser tao animal quantoo rato, mas o rato nao pode ser tao gente quanto o homem.

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Nas ciencias ditas humanas, a partir do proprio conceito deciencias humanas, quase todos os conceitos sao transposicoes. Porque? Porque as pessoas nao fazem a questao principal: quid est? Apropria heranca cultural, as descobertas de um geracao sao trans-postas para uma outra, sao tomadas como um ponto de partida, eaceitas como resultados convencionados.

Na discussao que tivemos sobre o dinheiro, em Sao Paulo, foiquase impossıvel evitar que as pessoas discutissem a questao apartir das nocoes dadas, ou por Karl Marx, ou por Adam Smith,etc. O sujeito nao responde o que e dinheiro. Ele responde o queKarl Marx, ou Adam Smith, disseram a respeito do dinheiro. Ouseja, quanto mais o sujeito estuda, mais burro fica, porque ele naoconsegue fazer a pergunta basica.

Esta e a proposta do Husserl: voltar as coisas mesmas. Eclaro que voce nao vai abolir essa heranca cultural, mas vocevai tentar descobrir o fenomeno, a coisa tal qual ela representa,e nao a sucessao de interpretacoes que foi feita em cima dela. Asinterpretacoes tambem tem la o seu valor, mas elas so adquiremum valor a partir do momento que voce tem um fenomeno. O queadianta eu saber o que Karl Marx fala sobre o assunto, se eu naosei o que e dinheiro? Ademais, Karl Marx tambem nao disse o quee...

O que voce acha da opiniao de Aristoteles sobre PTLX?Aristoteles pode ter dito algo sobre PTLX, eu posso ter estudadoa opiniao dele, discorrer sobre ela, mas eu nao sei o que ele estafalando. Se voce soubesse o que e PTLX, o conceito obtido porvoce mesmo esclareceria e te daria criterios de avaliacao para vocesaber o significado, o valor relativo das opinioes de Aristoteles.Vejam, por exemplo, as opinioes que as pessoas tem sobre alguemque voce desconhece; e mais ou menos isso.

Por isso mesmo a abordagem historica da Filosofia e um pro-blema gravıssimo. Se voce nao ataca o conceito mesmo, voce vai

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ter uma sucessao de opinioes sobre assuntos desconhecidos.Estas distincoes que nos estamos fazendo aqui, agora, com

relacao aos varios campos de conhecimento e da sua separacao,mais ou menos relativos, nos deverıamos exercitar isso o tempotodo. Senao fica aquela coisa de ginastica pela TV, onde o instru-tor nao sabe se os alunos que estao assistindo ao programa estaorealmente fazendo a ginastica. A parte pratica deste curso e to-talmente feita por voces. Por isso, nao e um ensino propriamentedito, pois nao ha um acompanhamento do aprendizado do aluno.

Uma coisa que seria interessante de mostrar para voces, seriaaqueles 150 internatos que existem nos Estados Unidos, onde hauma forma de ensino mais integrada, mais global. Entretanto, euacho que este curso aqui, sua forma pedagogica, e melhor, prin-cipalmente no aspecto teorico, porque o conceito que eles dao lae da educacao liberal, que e um conceito muito bonito, mas pu-ramente pedagogico, sem um embasamento filosofico firme. Elenao tem unidade teorica. Ele foi feito na base do pragmatismo,da experiencia acumulada, que tanto pode dar certo, como podedar errado. Muitas vezes a educacao liberal se perde naquela coisavaga de cultura geral, onde voce da uma “palhinha” de cada as-sunto, aprende umas opinioes aqui e ali, e voce vira uma especiede diletante. Neste erro nos nao caımos.

Porem, isso que estamos aprendendo e so uma teoria, umahipotese. Nao sei se voces vao dar uma continuidade para isso,mas eu estou fazendo a minha parte. Eu faco o que tem que serfeito, e pouco me importa se vai dar certo ou errado. O homempoe, e Deus dispoe.

A forca deste curso e a sua unidade, embora isso ainda seja suafraqueza, porque esta unidade ainda esta apenas na minha cabeca.Seria preciso que algumas outras pessoas fossem capazes de captara unidade profunda deste curso, fundada na Teoria dos Quatro Dis-cursos, com todas as suas implicacoes morais, psicologicas, etc., e

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decidissem tocar este trabalho adiante. Isto ainda nao aconteceu,mas por enquanto voces podem ter uma ideia do estado de coisas,a partir dessas entrevistas que nos estamos fazendo. Por aı vocespodem ter uma ideia de quanto a formacao dos indivıduos nao epropriamente uma formacao. Na verdade, ela e disforme.

Dificilmente voce encontra uma pessoa que tenha algumacolocacao filosofica clara perante o mundo. Uma colocacaoautonoma, que venha dele mesmo, e por isso mesmo a nossa cul-tura e derivada, subdesenvolvida, e um efeito de uma outra cultura.Durante mais de cem anos se acreditou que a cultura nacional se-ria autonoma, caso ela lidasse com os nossos temas, com os nos-sos problemas e adquirisse um carater local. Esse e o grande erro.Uma cultura nao e autonoma por tratar de problemas locais. Ela eautonoma quando e capaz de partir dos problemas desde a sua raiz.Quando ela tem uma colocacao, fundamentalmente dela, peranteos problemas basicos. A autonomia deve ser vista quase em ter-mos de auto-suficiencia, no sentido de que se nos desconhecemostal ou qual resposta dada por um filosofo alemao, ou grego, a talou qual problema, isso nao nos fara falta porque nos ja pensamosnesse problema tambem.

A nossa cultura toda pega os problemas ja muito elaborados.Nos sempre estamos trabalhando a partir de palavras, frases, pos-turas prontas, e nao atraves de um enfrentamento direto do pro-blema. Voces verao que todos os nossos intelectuais ja fazemum discurso a partir de uma certa empostacao que ele recebeude uma cultura estrangeira, tomada no ponto atual do seu de-senvolvimento, quando a verdadeira autonomia seria conseguidaquando voce pegasse esse material estrangeiro, nao a partir do seuponto atual, mas do seu ponto de partida. De fato, nao interessatanto voce acompanhar a producao cultural e a evolucao das ideiasagora, quanto voce enfrentar os problemas pela sua propria conta.Percorrer o caminho por sua propria conta. Daı vemos a tremenda

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importancia da obra de Mario Ferreira dos Santos. Ele e o unicopensador brasileiro, irredutıvel a qualquer hipotese. Nao que eletrate de problemas nacionais, mas de problemas eternos. Por issomesmo ele e uma fonte rica, e talvez por isso mesmo ele e recu-sado, porque so consegue entrar no debate cultural brasileiro seas pessoas conseguem identificar o que for corrente, ou estiver namoda. O certo seria dizer que so existiu, em toda a historia bra-sileira, um unico filosofo, que e o Mario Ferreira. O resto saofilosofantes, que pegam certos temas que estao em discussao, eacompanham nos termos que ja estao colocados. Quando, na ver-dade, e proprio da Filosofia recusar todos os temas que ja estejamem discussao, e recomecar tudo de novo. Refazer o caminho e aessencia da Filosofia.

A Filosofia e uma atividade individual, na qual o indivıduo en-frenta o problema diretamente, num plano de universalidade, sema mediacao do geral.

E justamente onde a heranca cultural da sociedade nao socorreo indivıduo, e ali que comeca a Filosofia. Se a heranca cultural jatraz todos os problemas resolvidos, entao nao ha necessidade dese filosofar. Ninguem vai filosofar sobre o que nao precisa.

Isto tambem acontece com os outros departamentos. Vejam, porexemplo, a literatura brasileira. Se voce pensar bem, ela comecae acaba com Machado de Assis, que e o unico que voce pode di-zer que e uma fonte. Os outros sao, de certa maneira, um pro-longamento. Nao ha nenhum autor ficcional, do mundo, ondetudo o que acontece no livro, seja uma perfeita simulacao. Estasimulacao da linguagem, onde nao interessa sequer saber se e ver-dadeira ou falsa, isso foi Machado de Assis quem inventou. De-pois outros tiveram a mesma ideia, mas o proprio Pirandello, quetrata da simulacao, a estetica dele nao e simulada. Ele e um au-tor naturalista escrevendo sobre personagens simulados. Aquelascoisas vivas sao simuladas mediante uma tecnica naturalista. Mas

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Machado de Assis, nao. A falsidade era uma essencia nao so psi-cologica dos personagens, mas a essencia da propria estetica deMachado de Assis.

Pegue um livro de Robert Schweitz (?) e ele vai explicar comoque isso se tornou possıvel. Era preciso uma condicao social muitoparticular para permitir o surgimento de uma estetica dessas. Ecomo so aqui foi possıvel essa condicao social, Machado de Assise um autor que desorienta os leitores estrangeiros, porque e tantaambiguidade que fica difıcil eles compreenderem isso.

Saiu ha pouco uma tese, um livro, que prolonga a historia da Ca-pitu, onde ela, com cem anos de idade, conta a sua propria historia,e ela confessa que transou mesmo com o tal de Escobar. Mas, aıperdeu a graca, porque o interessante e voce ficar sem saber seaconteceu ou nao a transa. Mas, tudo funciona como se fosse.Essa e a essencia do Brasil.

Tudo isso aı para dizer que ninguem poderia nos inspirar maisa isso do que o proprio Husserl, por exemplo, sacar as coisas di-retamente. Voce nao pode mudar toda uma tradicao que esta atrasde voce, mas voce a coloca entre parenteses. Voce nao endossa.Entretanto, aqui no Brasil, o sujeito com vinte anos de idade jaaderiu a alguma coisa. O sujeito acaba de entrar para uma escolade Psicologia, e ele ja e junguiano, reichiano, freudiano, etc., e ficanisso o resto da vida. Ha pessoas que fizeram toda uma carreirabaseado na ideia de ser representante de, por exemplo, Jung, ouReich. Se voce nao adotasse uma linha unica, as pessoas ficam de-sorientadas, e nao sabendo o que fazer com voce, entao nao fazemnada. E exatamente o que fizeram com o Mario Ferreira.

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11 de fevereiro de 1993

Cabe subordinar igualmente este tecido sistematico defundamentacoes ao conceito de metodo, e atribuir portanto a te-oria da ciencia a missao de tratar nao somente dos metodos quese apresentam nas ciencias, mas tambem daqueles que se cha-mam ciencias; nao so distinguir as fundamentacoes validas dasnao validas, mas tambem as teorias e as ciencias validas dasnao validas. Esta missao nao e independente da anterior, pois ainvestigacao das ciencias como unidades sistematicas nao e con-cebıvel sem a previa investigacao das fundamentacoes.

Quando voce fala de ciencias validas e nao-validas, um exemplode uma ciencia nao-valida seria uma que tivesse ...(?) a respeito,por exemplo, do conceito da Economia. A Economia como ciencianatural, evidentemente, nao e valida. Ela pode ser alguma outracoisa, nao uma ciencia natural. Uma proposta assim seria total-mente inviavel, porque nao existe o objeto correspondente. Entao,voce teria que situa-la numa outra relacao com outras ciencias.Seria, em parte, uma ciencia normativa, em parte uma cienciahistorica.

11. A logica ou teoria da ciencia como disciplina normativa ecomo arte.

Uma ciencia e verdadeiramente ciencia, um metodo e verdadei-ramente metodo, se e conforme ao fim a que tende. A logica as-pira a investigar o que constitui a ideia de ciencia, para poder saber

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se as ciencias empiricamente dadas respondem a sua ideia, e ateque ponto. A logica renuncia ao metodo comparativo da cienciahistorica, que trata de compreender as ciencias como produtosconcretos da cultura das distintas epocas, por suas peculiaridades egeneralidades tıpicas, e explica-las segundo as circunstancias dostempos. A essencia da ciencia normativa consiste em fundamentarproposicoes gerais em que, com relacao a uma medida fundamen-tal normativa — uma ideia ou fim supremo –, sao indicadas de-terminadas notas, cuja posse garante a acomodacao a referida me-dida. Isto nao significa que a ciencia normativa deva dar necessa-riamente criterios gerais; assim como a terapeutica nao indica sin-tomas universais, nenhuma disciplina normativa da criterios uni-versais. O que a teoria da ciencia em particular pode dar-nos saocriterios especiais.

Quando a norma fundamental e ou pode chegar a ser um fim,brota da disciplina normativa uma arte. A teoria da ciencia seconverte em arte da ciencia.

12. Definicoes da logica inspirada nesta concepcao.Definicoes como: arte de julgar, de raciocinar, do conheci-

mento, arte de pensar (lart de penser) sao equıvocas. O fim daarte em questao nao e propriamente o pensamento, nem o conhe-cimento, mas aquilo para que o pensamento mesmo e um meio.

Mais se acerca da verdade a definicao de Schleiermacher, aodizer que e a arte do conhecimento cientıfico.

Se voce definisse a Logica como arte, ou tecnica do conheci-mento cientıfico, voce esta pressupondo um determinado fim paraum conhecimento cientıfico para cuja consecucao essa arte daria asnormas. Esta definicao seria incompleta porque haveria uma falta;voce incumbiria a propria Logica de definir o que e conhecimentocientıfico, e o que nao e conhecimento cientıfico. Voce incumbea ela tambem determinar o fim. Por isso que Husserl propoe estadefinicao da Logica como teoria da Ciencia. Ela seria uma ciencia

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da Ciencia, que vai determinar os caracteres do que seja o conhe-cimento cientıfico como fim, como meta a ser alcancada, e emseguida verificar os meios pelos quais se pode alcancar isso.

E importante o que ele diz aqui, que nao interessa para a Logicaas ciencias efetivamente existentes, encaradas do ponto de vistahistorico como realidades porque, por um lado, ela e uma cienciapura, que investiga a ideia de Ciencia, e por outro lado, e umaarte ou tecnica do conhecimento cientıfico considerado em geral,ou seja, independentemente das suas realizacoes, e das realizacoesque historicamente tenham alcancado nessa ou naquela epoca. Aideia de que a Ciencia e tudo o que trata do corporeo, isso poderiaser admitido ate como uma realidade historica.

Durante uma fase houve uma certa tendencia implıcita, na co-munidade cientıfica, a so admitir como Ciencia, por exemplo, aFısica, ou a Quımica, e todas as outras como pseudo-ciencias. Istoaconteceu durante uma certa fase; nunca chega a ser uma ideia do-minante em toda a comunidade cientıfica, e e apenas um eventohistorico que nao tem nada a ver com a ideia de Ciencia. Noseculo passado, mal se formou essa tendencia, ja estavam se for-mando as ciencias sociais, as ciencias humanas. Isso aı e fazeruma tendencia pequena, de uma manifestacao local, historica, apropria ideia de Ciencia. Tambem, isso e confundir a expressaomatematizavel com o que e corporeo — nao tem nada a ver. Hojeem dia, voce nao pode nem dizer que a Fısica lida com o corporeo.Temos, hoje, o neutrino, que e uma partıcula que e capaz de atra-vessar dois buracos ao mesmo tempo...

A ideia de Ciencia e aquela que esta aqui no texto de Husserl.Qualquer coisa que atenda a isto aqui, em mais ou em menos,participa, em mais ou em menos, do carater de Ciencia. Seja As-trologia, seja Profecia, etc.

Vejam que nao existe nenhum conhecimento de ordem religi-osa que nao pretenda possuir um pouco desse carater de Ciencia.

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Isto e facil de ver quando todas as religioes argumentam em causapropria na base de uma veracidade que atenderia a esses requisitosda evidencia. Uma revelacao e uma evidenciacao, tornar evidenteo que voce nao via antes, o que voce passa a ver a partir de umcerto momento. E muito difıcil voce dizer que para Moises, noalto do Monte Sinai, que o conhecimento ali adquirido nao fosseevidente. Ele teria um problema de transmissibilidade, mas naolhe faltaria a evidencia, pelo menos para quem estava la.

Nao seria impossıvel voce imaginar a hipotese de que voce,atraves de uma tecnica, permitisse o acesso de um indivıduo adeterminadas vivencias que lhe dariam uma evidencia que os ou-tros nao tem. Tudo isso voce precisaria deixar em aberto. Oulevamos a serio a ideia de Ciencia, e nao tentamos usa-la, nos es-condendo atras dela, e defendendo concepcoes que no fundo sao apreferencia do indivıduo, ou ela so serve para jogar pedra nela, quee o que muitos fazem. A alternativa e deixar em aberto a questaode quais as ciencias que realizam, e quais as que nao realizam;quais as que podem, e quais as que nao podem. Mesmo o fato deuma determinada ciencia jamais ter historicamente chegado a rea-lizar esses requisitos, nao quer dizer que ela nao seja uma ciencia.Quer dizer apenas que no decorrer do tempo, e nas condicoes reaisque se desenvolveu aquele estudo, nao se chegou a realizar.

Enquanto nao houver uma demonstracao de uma impossibili-dade intrınseca, voce nao pode negar o carater de uma ciencia.Voce pode dizer apenas que a coisa e duvidosa. Ainda nao sepode dizer que, por exemplo, a Ufologia seja uma ciencia. Ounico problema e a definicao do objeto, pois UFO e um objetonao-identificado, e que voa. Voce parte de uma definicao negativa.A Ufologia tem uma contradicao intrınseca, pois ela supoe umaclasse de objetos, nao-identificados, que no entanto, tem certaspropriedades em comum — e uma auto-contradicao. Por exem-plo, a Ufologia nao pode pressupor a origem desses objetos. Se

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eles sao nao-identificados voce nao sabe rigorosamente o que e.voce apenas pressupoe uma origem extraterrestre. Se voce diz quee uma nave interplanetaria, como voce diz que e nao-identificado?Esta perfeitamente identificado. Boa parte desses conceitos denao-identificados existe justamente no sentido de atender a umaespecie de objetividade privativa. Como e que voce alcanca umconhecimento objetivo? Uma vez definido certos requisitos do co-nhecimento cientıfico, alguns indivıduos acharam que para vocealcancar uma objetividade cientıfica passaram a se privar de certospressupostos subjetivos. Isso e o que eu chamo de objetividadeprivativa. E o nao-envolvimento do indivıduo.

A partir da Renascenca, surge a ideia de que os objetos apre-sentam certos caracteres que so podem ser percebidos subjetiva-mente, como por exemplo a cor, a forma. Mas ha outros quenao dependem do indivıduo, que podem ser vistos de maneira in-dependente, por exemplo, a extensao, o volume, etc. Caracteresprimarios seriam aqueles mensuraveis objetivamente independen-temente da sua percepcao de indivıduo concreto. Os outros carac-teres seriam secundarios, como a cor. Isto sugeriu a ideia de queso seria objeto real do conhecimento cientıfico aquilo que pudesseser medido independentemente de um sujeito com percepcao con-creta. A partir daı se desenvolve o que eu chamo de objetividadeprivativa, ou seja, voce apagando uma parte dos caracteres de umobjeto, o resto que sobra e objetivo. Por exemplo, suponha umasala. Nesta sala ha partes que so podem ser vistas por determi-nados indivıduos desde a posicao que eles estao. E ha partes quepodem ser vistas por todos ao mesmo tempo. A primeira partenos vamos chamar de subjetiva, e a segunda, de objetiva. Reduzaesta sala a parte que todos veem ao mesmo tempo, e o resultadonao se parecera absolutamente com esta sala. Isto e objetividadeprivativa.

Em Fısica se acreditava que o volume, o peso, etc., nao de-

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penderiam do indivıduo, e que todos veriam a mesma coisa. Noentanto, a recepcao a cor depende de um determinada estruturado indivıduo. Um daltonico, por exemplo, ve diferente. Mas separa conseguir objetividade bastasse isso seria muito facil. Alemdo mais, os objetos assim descritos ficariam muito diferentes dosobjetos de percepcao. Para isso, nos terıamos que supor que portras do mundo perceptıvel, existe um outro mundo, que e com-posto apenas das qualidades matematicas dos seres, e que este e overdadeiro mundo objetivo. Mas a selecao dessas qualidades ma-tematicas e abstrativa. Esta abstracao nao se faz sozinha. Alguemtem que fazer. Entao, foi voce quem selecionou. Do conjuntoque voce percebeu, voce separou uma metade, que por ser mate-matizavel, nao tem sentido voce dizer que ela e mais real, maisobjetiva do que a outra. Seria o caso de perguntar: uma cadeirae uma cadeira, ou e um feixe de atomos? Parece uma cadeira,mas no fundo e um aglomerado de atomos. No entanto, voce podeinverter o raciocınio e dizer que isso e, na verdade, um feixe deatomos, mas parece como se fosse uma cadeira. Acontece queum feixe de atomos poderia ser observado independentemente douso que voce faz e do significado que voce atribui ao feixe, masa cadeira, nao. Quem diz que uma escala e mais valida do que aoutra? E o non-sense completo. E mais, alem de ser um feixe deatomos, eles nao estao agrupados de uma maneira qualquer, por-que se uma cadeira e um feixe de atomos, um elefante tambem e.A diferenca que existe e que caracteriza o objeto nao e se ele ecomposto de atomos, partıculas, mas a forma como eles se agru-pam. De modo que, a nocao de que a visao fısica do mundo comocomposto de partıculas que se atribui um movimento, ela teria, porconsequencia, abolir a diferenca entre as formas dos objetos e so-brar somente a materia de que eles sao compostos. O que seriao mundo se fosse apenas composto de partıculas em movimentose que elas nao se agrupassem em formas reconhecidas? Nao se

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pareceria em nada com este mundo! Isto seria a mesma coisa quedizer que o Jose e de fato um monte de carbonos, mas aconteceque esse monte de carbonos se agrupou de tal maneira, e com taispropriedades, que deu num negocio que nos chamamos de Jose.

Os objetos nao tem a sua forma individual determinada pelo fatode serem compostos de partıculas, mas por alguma outra coisa.O mundo das realidades fısicas e um mundo abstrativo, que estacolocado, por assim dizer, por baixo deste mundo como a suamateria. Tambem, para mim, e obvio que nao existe nem um unicoobjeto no mundo que possa ser inteiramente caracterizado apenaspor suas propriedades fısicas — nao e possıvel. Como voce dis-tinguiria fisicamente, por exemplo, um jacare de uma lagartixa?Sera que o jacare nao tem algumas outras propriedades? Sera quee por causa do tamanho? Se existisse uma lagartixa de tres metrosde comprimento, ela deveria subir nas paredes do mesmo jeito. Oconjunto das propriedades fısicas, quımicas, de uma determinadasubstancia nao chega a constituir essa mesma substancia, indivi-dual, real, concreta. Mas chega a constituir, por exemplo, umaespecie. Os objetos que a Fısica estuda sao classes, nao objetosreais. Ela estuda classes, distinguidas apenas por suas proprieda-des fısicas. Se sao classes, sao entidades logicas, e nao entes reais.

No fundo, isso e uma especie de platonismo, voce dizer que asclasses sao mais reais que os indivıduos que as compoe. Todo omundo da Fısica moderna e muito embuıdo da ideia platonica deencontrar por tras da realidade sensıvel, uma outra que seria a ver-dadeira realidade, composta apenas de combinacoes matematicas.Isto seria um platonismo intra-mundano. Ao inves de colocar asideias puras no ceu, as colocam aqui mesmo, e consideram maisreais do que os entes fisicamente considerados.

A ideia de dizer, por exemplo, que o sistema de Copernico emais verdadeiro que o sistema de Ptolomeu, na verdade e maisuma questao de mudanca de escala. Copernico disse que a Terra

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gira em torno do Sol, mas se voce observar desde um outro pontode vista, voce ve que tambem nao e a Terra que gira em torno doSol. Ambos descrevem um determinado movimento que tem comopolo a estrela Vega, e que da a impressao que a Terra gira em tornodo Sol, se voce considerar apenas os dois. Assim, visto da escalada percepcao normal humana, o Sol gira em torno da Terra. Vistoda escala do sistema solar exclusivamente, a Terra gira em tornodo Sol. Visto de uma outra escala, nenhum gira em torno do outro,mas apenas da a impressao.

Isto e um jogo de perspectivas. Conforme a posicao em quevoce esteja, muda a perspectiva e voce ve um movimento dife-rente. Para voce dizer que o movimento da Terra em torno do Sole um movimento absoluto, so se voce isolar apenas o sistema solar.Como existem milhares de objetos se movendo uns em relacao aosoutros, a descricao de um movimento absoluto e impossıvel. Omovimento absoluto so existe geometricamente; fisicamente naopode existir. Por exemplo, eu posso fazer um cırculo aqui, e vocesacham que e circular na medida onde voces tomam esta sala e estequadro-negro como ponto fixo de referencia. Mas a Terra nao estagirando? Enquanto eu faco este cırculo, ele ja virou um cone.

Voce pode fazer uma experiencia simples: voce esta num treme uma lampada cai do teto. Qual o movimento que a lampada faz?Visto de dentro do trem, ela faz um movimento vertical. Visto defora do trem, ela faz um movimento curvilıneo. Acontece que,enquanto isso, a Terra girou e o movimento fica meio espiralado.Alem da Terra girar em torno do seu eixo, ela tambem gira emtorno do Sol, entao o movimento torna-se mais complexo. Issosem considerarmos que o sistema solar tambem girou em torno daestrela Vega, e assim por diante, sem fim.

Entao, qualquer ponto de vista e igualmente valido dentro doslimites que ele mesmo estabelece. A unica coisa que nao e possıvele a troca dos objetos entre si. Mesmo as nocoes de para cima, para

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baixo, para o lado, etc., so sao validas se voce fixar um ponto, umNorte. Dentro do movimento conhecido da esfera celeste, vocecoloca la um ponto que se move menos do que os outros e voceo chama de Norte. Entretanto, se voce colocar esse conjunto deuma perspectiva um pouco maior, voce tambem vera que aqueleponto tambem nao e imovel. Neste sentido, o sistema ptolomaicoe uma descricao absolutamente perfeita do movimento que o Solfaz em cima das nossas cabecas. Inclusive a medicao nele e rigoro-samente valida. Tanto que, nao so em Astrologia, mas tambem emNautica se utiliza o sistema ptolomaico, que e muito mais simples.Se fosse calcular heliocentricamente seria a maior complicacao.

Entao, o ponto de vista geocentrico e tao valido quanto o he-liocentrico, jupteriocentrico, etc. Qualquer ponto pode ser tomadocomo centro. No entanto, ate hoje se da a impressao de que quandoveio sistema de Copernico se descerrou o veu da ilusao, e nospercebemos a realidade. E como o sujeito que esta no cinema efaz a grande descoberta: “Ah!, estao todos enganados! Os ato-res nao estao la na tela! Eles estao, de fato, naquela maquinala em cima!!...”, e ele acha que descobriu a realidade, a verdade.Cada vez que voce descerra o veu da ilusao, voce tem um snap-ping (estalar de dedos), voce tem uma mudanca total do quadro depercepcao, a qual te leva a outra ilusao.

A estrutura real do mundo so pode ser inteligıvel, so pode sercaptada por uma especie de inteligencia pura, capaz de raciocinardentro da relatividade total. Capaz de conceber a relatividade totaldos movimentos do mundo em relacao a uma especie de Norte,nao-fısico, em relacao ao absoluto nao-fısico. Quando Einsteintoma como parametro a velocidade da luz, todos os movimentosque se passam aqui sao relativos. O unico que permanece cons-tante e a velocidade da luz, e portanto pode ser tomada como ab-soluta. No entanto, isto e valido provisoriamente. Nao como umaverdadeira teoria cronologica. Einstein so inventou um novo sis-

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tema de medicao, no qual voce pega um determinado parametro,que e provisorio e mais ou menos convencional, mas que parte dedeterminado campo, permanecendo igual porque suas variacoesnao interessam, e mede todas as suas variacoes em relacao a elas— e so isso.

Mas, se voce disser que a velocidade da luz e constante em to-das as direcoes, e portanto e um absoluto, entao voce teria quedizer que ela nao e uma velocidade. Ela seria uma outra coisa,porque toda velocidade e relativa. Se voce quiser encontrar umparametro absoluto que nao possa ser medido por nenhum outroparametro, entao ele tem que ser de ordem nao-fısica. Voce pode-ria fazer uma suposicao ideal, por exemplo, o pensamento divino,que esta simultaneamente em todos os lugares, e que nos nao po-demos captar de maneira alguma. A partir desta suposicao idealde um absoluto permanente, constante, voce mediria todo o restocom ele. Acontece que para muitas pessoas, esta transposicao paraum ponto de vista ideal, as deixa sufocadas. Sentem que estao per-dendo o pe. O famoso salto abstrativo de que falava Hegel, e umsalto para um abismo. A maioria cai ali. As pessoas querem umparametro fısico.

Ha duas saıdas: uma delas e voce procurar uma especie de ab-soluto fısico, que voce poderia considerar a Terra. A Terra e fixa,e o resto todo se move. Entretanto, vem um outro e diz que a Terratambem se move, e a unica coisa fixa e a velocidade da luz. Masele tambem esta enganado.

Nao e possıvel voce fazer nenhuma Fısica sem voce partir de al-guns parametros metafısicos. A Fısica tambem esta cheia de Me-tafısica. Nao ha saıda. voce fica medindo uma coisa em relacaoa mesma coisa, e nunca sai disso. Por exemplo, quando as pes-soas discutem sobre o buraco negro e que o universo e finito. Eo que tem depois desse universo? E o nao-universo? E o nada,totalmente desprovido de quaisquer propriedades? Esse nada, e

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um nada espacial? Ora, dizer espaco vazio, implica que ha umespaco! Eles descrevem o universo dotado de certas propriedades,e quando terminam essas propriedades, eles dizem que e o nada!Sera que eles acharao outras propriedades la?

O universo pode ser finito, mas nao fisicamente. O universo fisi-camente finito e uma contradicao de termos. Onde quer que existaespaco, ha um universo, ainda que nada aconteca la dentro. Ao fa-lar de finitude do universo, voce pode falar em dois finitudes: umadelas no sentido fısico, que e onde termina o mundo das propri-edades fısicas conhecidas, e para la voce vai ter um espaco ondenao ha essas propriedades fısicas. Se voce chamar de universoapenas o campo determinado pelas propriedades fısicas conheci-das, voce dira que o universo termina ali. Mas, e a parte faltantedo espaco vazio, voce vai chamar do que? Para mim e universotambem. Nao e metafısico. O mero fato de ser um espaco vazionao o torna metafısico. Nao e por ele ser um espaco vazio queele deixa de ser uma realidade fısica, porque voce ainda o definefisicamente pela mera aplicacao de certas propriedades. Entao, elenao e nao-fısico, ele nao e supra-fısico. Ele e, por assim dizer, umextra-universo, e o unico conceito que se tem dele e a privacao decertas propriedades. Se o universo esta em expansao, ele tem queter espaco para tal.

O problema, na verdade, e que as pessoas estao doidas para verDeus, fisicamente. No fundo, voce pode ter uma cultura cientıficaimensa e nao entender que ela toda se baseia em dois ou tres con-ceitos que podem, perfeitamente, permanecer incontidos (?). Sevoce diz que o universo e a totalidade daquilo que pode ser fisi-camente distinto, ou pela presenca de certas propriedades, ou pelasua ausencia, entao ele nao termina fisicamente. voce poderia con-ceber um termino, mas nao no sentido fısico. Por exemplo, Deusteria certas propriedades que vao alem de todas as propriedades douniverso. Entao, Ele pode fazer e desfazer desse universo. Outras

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pessoas chegam a conclusao de que esse universo, fisicamente re-conhecido, e apenas um de uma serie. Ele pode acabar e surgiremoutros. O conjunto desses universos e mais o espaco onde eles semanifestam, isso e o que chamamos de universo mesmo. Isso tudoe o mundo. E claro que nao e o absoluto.

No fim, a coisa vai se basear numa filosofia muito capenga. Sevoce aplica os metodos mais exatos, de observacoes, de medicoes,etc., resulta num fim que e uma fantasia matematicamente calcu-lada. Metafisicamente nao tem valor nenhum. Se existem dezmilhoes, ou dez bilhoes de universos, que diferenca faz?

Entao, isso aı e um monte de vıcios que surgem nas cienciasa partir da Renascenca, motivados pelo desejo de encontrar umaespecie de absoluto material, que no fundo e o impulso de verDeus fisicamente. E um esoterismo de muito baixo nıvel. Toda aciencia da Renascenca, ela mesma nao percebe a base retorica dassuas argumentacoes. Por exemplo, para voce tornar o sistema deCopernico mais crıvel do que o sistema de Ptolomeu, voce tem quefazer com que as pessoas imaginem o mundo de outra maneira.Entao, e uma mudanca imaginativa. Voce vende um quadro queparece ser mais verdadeiro. E uma argumentacao retorica.

O fato e o seguinte: o primeiro quadro de referencia e imagina-tivo, e o segundo tambem. E qualquer outro quadro de referenciasera imaginativo. Toda visao de um mundo que possa se expressarsob um quadro imaginativo, ela sera sempre relativa, provisoria, enenhuma e mais real do que a outra. Se voce ve este mundo comoum cenario no qual tudo e lindo, todos sao deuses, cheios de fadas,duendes, etc., e outra pessoa ve isto aqui como um inferno, cheiode diabos, todos sofrendo, etc., a diferenca e retorica. Duas visoessubjetivas como estas nao podem competir em termos de veraci-dade, porque elas nao estao colocadas no plano do verdadeiro e dofalso, mas no plano do verossımil. Para um garoto de ginasio, hojeem dia, a visao do mundo como partıculas em movimento parece

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mais verossımil do que a visao do universo cheio de deuses. En-tretanto, a propria facilidade que as pessoas, hoje, passam de umavisao dessas para a outra, mostra que nenhuma delas e verdadeira.E o sujeito que de dia e fısico, e a noite e pai-de-santo. A unicacoisa que os dois tem em comum e que eles fumam charuto...

Isto e o problema do snapping, que e o termo que os psicologostem utilizado para a hipnose, para mudanca de percepcao que vocesofre quando faz certas experiencias psicologicas. Por exemplo,voce entra para o Santo Daime, bebe o lıquido, dez, quinze vezes, ede repente da o snapping, e todo o sue quadro de percepcao muda.Muda o referencial todo. Pelo impacto da experiencia voce podeter a impressao de que voce saiu da ilusao para a realidade, masvoce saiu de uma ilusao para outra ilusao. Voce tem um insightespecial. E o caso de voce descobrir que a lampada acende, naoporque tem uma forma de energia la dentro, mas porque ha ummonte de anoeszinhos la dentro.

Sempre que voce tem um insight, voce tem uma impressao darealidade. E a coisa mais enganosa que existe. O mundo dos sen-tidos e da imaginacao jamais podem se situar na realidade por-que ele so lida com a possibilidade. Entretanto, uma possibilidadepode disputar com outra, em termos de verossimilhanca, ou seja,voce quer que aquilo seja real. Voce se identifica com uma visao, enao com a outra. E uma diferenca entre duas imagens poeticas, su-blinhadas retoricamente. Portanto, se voce teve o impacto de umaexperiencia, voce ja esta fazendo o papel de trouxa. Isto porque es-tas faculdades nao estao aı para nos dizer o que e a realidade, masapenas para criar um quadro das possibilidades, dentro do qualvoce, intelectualmente, aos poucos, vai recortando o que e real.

Qualquer visao que voce tenha, qualquer impacto sensorial emvoce, ele nao e acompanhado do sinal do real ou do irreal. O nossoaparato perceptivo nao pode dizer o que e real ou irreal. Nao existediferenca sensıvel entre o que e real ou irreal. Entre a imagem

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imaginada, e a imagem vista, voce estabelece uma distincao que epuramente intelectual, e que e recortada pelo costume apenas. Odecisivo para escolher entre as duas imagens, ou sera o costume,ou sera uma diferenca de impacto, ou tera que ser um criterio inte-lectualmente valido, que considera que todas as imagens valem amesma coisa. Por exemplo, a visao animista do mundo vale tantoquanto a visao cientıfica porque sao apenas visoes. Para saber oque e real, voce vai ter que explicar como e que pode existir ummundo que seja composto de partıculas atomicas, ou subatomicas,em movimento, e dentro do qual existem certos tipos de seres, aoqual esse mesmo universo aparece sob a forma de deuses, fadas,etc. Isto porque o fato e que essas duas coisas acontecem, e entreessas duas imagens voce nao pode criar um elo imaginario, porqueseria abstrato demais. Essas duas visoes sao discordantes demais,imaginativamente falando. So a inteligencia pura e capaz de criarum elo, uma sequencia de explicacoes que juntem a possibilidadedessas duas visoes.

Acontece que num tempo onde as pessoas acreditam ja na visaodo mundo composto de partıculas, elas ainda acreditam, de certomodo, no mundo animista. E so entendem o segundo em relacaoao primeiro. O mundo de partıculas so existe dialeticamente comonegacao do anterior. Por exemplo, o sujeito que, durante o diaacredita num mundo de partıculas, quando ele sonha, ele acreditanum mundo cheio de deuses. Se voce suprimir a capacidade delesonhar com os deuses, tente ensinar Fısica para ele... Se voce apa-gasse o mundo imaginativo, o mundo racional tambem nao funci-onaria. Como diz o Crocce (?), “o homem so e um animal logicoporque ele e tambem um animal fantastico”. Ele so tem logicaporque ele tem fantasia.

Sera que somente o homem e assim, e que a realidade em torno ecompletamente diferente? Se voce suprimir o pensamento magico,some tambem o pensamento logico. Imaginem a cabeca humana

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com dois andares, um com o pensamento logico, e o outro com opensamento magico, sendo que o pensamento logico esta no an-dar superior porque o cerebro tambem tem camadas (hipotalamo,cortex, etc.). Se tirar o hipotalamo, o cortex, sera que ele vai fun-cionar melhor?

Voce tem tambem o mundo. Se esse mundo funciona de acordocom a visao magica, ou seja, quem diz que a verdade e a visaomagica ou e a visao logica? Sera que o mundo tambem nao temdois andares? O homem tem um pensamento magico, simbolico,no andar de baixo, e em cima tem o pensamento logico, o qual sose desenvolve depois e em funcao do primeiro. Se tudo der certono primeiro, fica tudo igual. Se nao der certo, o sujeito fica doido.Se a imaginacao desordenar, o sujeito fica maluco. O pensamentologico so funciona se estiver colocado ordenadamente sobre o pen-samento magico, atraves da intermediacao da vontade, que e a uni-dade da personalidade.

Entao, voce tem o sujeito humano e o objeto. Se esse sujeitohumano funciona em dois andares, sera que e possıvel que dentrodesse universo, que nos chamamos de objeto, exista um ser cujaestrutura perceptiva nao tenha nada que ver com o universo? Ouseja, o homem e uma excecao? Isso me parece inviavel. Isto signi-fica que o universo em torno tambem nao pode ser abrangido pornenhuma dessas visoes, mas que tem que existir nele uma parteque funcione segundo um determinismo logico-matematico, umaparte que funcione atraves de conversoes absurdas de realidade ede irrealidade, e assim por diante, que seria a parte magica, e umaparte que depende da vontade, da interferencia humana, onde ohomem esta colocado, nao so como observador, mas como peca,ele tambem funciona dentro desse universo.

Isto explica porque os debates sobre determinismo e indetermi-nismo nunca chegam a uma conclusao. Nem podem chegar. Omundo tem uma parte que funciona de maneira determinista, e

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outra que funciona indeterministicamente. Uma parece com umamaquina, e outra se parece com um sonho. Mas, o mundo e assimmesmo, e o homem tambem e assim.

Tambem nos parece que na articulacao desse mundo, o homemtem um certo papel e que, de certo modo, a visao cientıfica temfalhado na medida onde ela nao leva em conta o papel ativo dessehomem na construcao do mundo. Voce acha que um ser como ohomem poderia subsistir num universo totalmente magico, comose tudo funcionasse por magia, vivesse dentro de um sonho ondeum hipopotamo, de repente, virasse uma borboleta, e depois aborboleta virasse uma fada, etc.; o homem nao conseguiria vi-ver dois dias assim. Por outro lado, o homem poderia viver den-tro de um universo rigorosamente logico, que funcionasse comouma maquina? Tambem nao! O homem subsiste dentro disso por-que ele tambem e parecido com o universo. Isto e o princıpioantropico. O universo e constituıdo de tal maneira que, la dentro,ha um lugar onde o homem possa viver. Ou seja, a existencia douniverso e compatıvel com a existencia do homem. Isto significaque nenhuma descricao logico-matematico do universo vai poderesgota-lo sem ela chegar no ponto onde as coisas parecem estarfuncionando na base da arbitragem, que e onde a Fısica chegou.Voce vai pelo determinismo universal ate um certo ponto, e de re-pente tudo fica confuso: daqui para frente e indeterminıstico, emais la para frente e o caos! E sempre assim. Mas, voce tambemnao e assim?

As pessoas dizem que estes sao dois mundo que se excluem.Mas, eles nao se excluem; eles estao costurados, so que a costurae voce! Esse negocio de colocar o homem no centro do universo,isso eu acredito mesmo. O homem esta no centro do universo, naono sentido de estar no centro geografico, mas ele esta colocado,por assim dizer, como um eixo, nao somente cognitivo, mas, creioeu, que seria possıvel a prova completa desse princıpio antropico.

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O universo tem as propriedades do homem.Vamos dizer que voce descubra uma verdade num campo pu-

ramente cientıfico. O que significa uma verdade cientıfica cujacontrapartida moral voce nao conheca? Se eu desconheco total-mente as consequencias que uma determinada verdade cientıficatem para mim, eu so a conheco parcialmente.

11. A logica ou teoria da ciencia como disciplina normativa ecomo arte.

Uma ciencia e verdadeiramente ciencia, um metodo e verdadei-ramente metodo, se e conforme ao fim a que tende. A logica as-pira a investigar o que constitui a ideia de ciencia, para poder saberse as ciencias empiricamente dadas respondem a sua ideia, e ateque ponto. A logica renuncia ao metodo comparativo da cienciahistorica, que trata de compreender as ciencias como produtosconcretos da cultura das distintas epocas, por suas peculiaridades egeneralidades tıpicas, e explica-las segundo as circunstancias dostempos.

Nos podemos dar um exemplo: no tempo de Aristoteles nao ha-via muita distincao entre o que seria uma observacao cientıfica euma observacao empırica. Ou seja, uma observacao comum e cor-rente, feitas em condicoes mais ou menos fortuitas, era admitidapelo proprio Aristoteles como um fonte mais ou menos fidedigna.Observacoes que ele mesmo tinha feito ate ali eram computadascomo dados significativos.

Mais tarde, so se passa a aceitar como observacao cientıfica asobservacoes feitas em determinadas condicoes. Com isso, algumacoisa se ganha, alguma coisa se perde. Se ganha, por exemplo,em exatidao, certeza, dentro do campo observado, e se perde narelacao entre o conhecimento assim adquirido e a experiencia co-mum, corrente, dos homens.

Esses dois tipos de Ciencia — ciencia aristotelica e ciencia re-nascentista –, as diferencas entre elas sao explicadas historica-

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mente. Conforme o modo de pensar da epoca, os varios conhe-cimentos que se tinha, voce pode, a partir daı, explicar porquea Ciencia tomou esse rumo na Grecia e na Europa renascentista,mas esse nao e um assunto da Logica. Ela nao esta interessadaem referir os modos de ciencia ao panorama cultural historico daepoca. Ela esta apenas interessada em julgar se essa ou aquelaciencia atende a essa finalidade expressa no ideal do conhecimentocientıfico.

Em que medida nos podemos dizer, por exemplo, que a cienciarenascentista atende em mais ou em menos esse ideal do que aciencia aristotelica? Nos podemos dizer que hoje se acredita cor-rentemente que a ciencia renascentista e mais cientıfica, de certomodo. Isso se levarmos em conta como parametro para avaliacaodessas duas coisas apenas a exatidao e a confiabilidade dos dadoscolhidos.

Por outro lado, nos tambem poderıamos fazer a objecao de quea experimentacao cientıfica e feita de um quadro de referencia quee muito diferente do que o Husserl chamava de o mundo da vida— Lebenswelt –, que e o mundo da experiencia comum e cor-rente, em parte mais artificial, mais inventado, hipotetico e que,por isso mesmo, se apos feitas as observacoes, tiradas as con-clusoes, nao houver um princıpio de correcao, de relativizacao doresultado obtido de modo a reenquadra-lo dentro do Lebenswelt,entao a Ciencia acaba criando um outro mundo, que se superpoe aomundo da experiencia, e que as vezes pretende substitui-lo. Comisto, ela escapa do proprio ideal de Ciencia.

Mas, o que interessa nao e a causa historica, o por que que tudoisso aconteceu. A Logica tem que ver apenas essas duas modali-dades de ciencia em funcao de um ideal. Ver o que uma atende,o que a outra atende ou deixa de atender. Em suma, a Logica vaiestabelecer o que e Ciencia, em seguida, a partir desse modelo,desse padrao, julgar a cientificidade das varias ciencias.

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Muitas vezes a consideracao do aspecto historico obscurece oproblema. Por que? Porque existe uma especie de ideologia doprogresso, onde se acredita que o que vem depois tem necessa-riamente que ser melhor. Entao, se passamos daquele tipo deobservacao a esse, e porque vimos as deficiencias do modo deobservacao anterior. Isso e verdade, mas no momento onde vimosas deficiencias do modo anterior, e inventamos um novo modo,ainda nao vimos as deficiencias desse novo modo. Elas so apare-cerao com o tempo.

As distorcoes do modo de observacao renascentista so se torna-ram claras no seculo XX. No fim do seculo XVIII, Kant tomava anova ciencia fısica, de Newton, como se fosse uma verdade purae final, como a ciencia pura e modelar. Isto porque as deficienciasainda nao tinham aparecido. Na hora que elas comecam a apa-recer, elas sao de dois tipos: primeiro, elas se referem a escalaonde foram feitas as observacoes. Na medida onde voce comecaa imaginar a possibilidade de observacoes feitas noutra escala ecomeca a desenvolver aparelhos com uma observacao mais fina, eevidente que essas novas observacoes vao te dar um quadro muitodiferente do que voce tinha na Mecanica Classica. Na hora quevoce ve que os princıpios da Mecanica Classica nao se aplicama realidades fısicas menores, infinitesimais, ou entao nao se apli-cam numa escala universal, macroscopicamente, aı voce ve queaquelas observacoes tinham sido feitas dentro de um quadro muitolimitado.

Nao e impossıvel ver aqui as novas observacoes feitas a partirdesse novo progresso, desse novo aprimoramento da observacaocientıfica, voltem a coincidir com algumas coisas constatadas notempo da ciencia aristotelica. Aquilo que tinha sido aparente-mente superado, retorna. Por isso e que todo progresso da Cienciae muito relativo. E um progresso que pode, amanha, se revelarcomo uma perda. Mas uma perda no qual voce sempre leva al-

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guma vantagem. Ninguem pode negar a perfeicao do quadro tododa Mecanica Classica dentro de um certo quadro de referencia que,por um lado e macroscopico, ou seja, e referido ainda a percepcaocomum, humana apenas, desprovida das chamadas qualidades se-cundarias, por exemplo, cor, forma, etc.

O mundo ...(?) e o mundo que seria observado por um ser hu-mano, do tamanho de um ser humano normal, mas que somentepercebesse as qualidades matematizaveis e padronizadas. E claroque um ser humano assim nao existe. Seria o mundo ideal. Mastoda ciencia sempre observa somente o mundo ideal, e essa e exa-tamente a forca dela, e a sua fraqueza, porque se as descobertascientıficas nao sao de novo referidas ao ser que as produziu, quee o ser humano, se nao sao reenquadradas no mundo da vida —Lebenswelt –, entao elas ficam sem sentido. Ela acaba inventandoum outro mundo que compete com o mundo da experiencia, e quepretende as vezes ser mais real do que ele, mas no qual voce naopode viver, nao pode atuar de maneira alguma. Voce pode pro-var que tal ou qual sistema de observacao, dentro de tais ou quaisparametros, pode produzir frutos. Mas, voce nao tem nenhumaprova de que os outros tambem nao poderiam fazer o mesmo, oupoderiam fazer melhor.

Nos podemos dizer que, hoje, a propria expansao da educacao,ela permite o acesso a educacao de pessoas cada vez menos ca-pacitadas. Cada vez e preciso ser menos inteligente para ser umcientista. Se voce pegar os cientistas da Renascenca — Galileu,Newton, Descartes, etc. –, voce ve que monstros eram eles, e acomunidade cientıfica inteira era constituıda de pessoas mais oumenos desse nıvel. So que era uma comunidade pequena. Hojee exatamente o contrario. Vejam, por exemplo, nos Estados Uni-dos, onde estabeleceram uma lei, no qual tinham que haver umataxa de alunos negros nas escolas. Entao, voce tinha que aprovaros sujeitos necessariamente. Claro que isso foi feito para aten-

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der a um problema extra-cientıfico, de ordem social, e de fato oresolve, mas em grave prejuızo para a qualidade da ciencia re-sultante. Aqui no Brasil, por exemplo, quando o ministro JarbasPassarinho fez uma reforma universitaria, para abrir uma univer-sidade a cada esquina para atender uma reivindicacao dos chama-dos excedentes, que eram aprovados no vestibular, mas fora daclassificacao por falta de vagas. Teoricamente eles tinham um di-reito a uma vaga universitaria, mas a quem incumbia a obrigacaode dar uma vaga a ele? Entao, o sujeito ficava sem ensino, e issocriou uma situacao delicada, com passeatas, greves, etc. Daı, pararesolver a questao, abriram um monte de vagas. Mas o que issotinha a ver com a atividade propria da universidade? Nada. Quala diferenca entre um movimento para obter vagas numa universi-dade, e um movimento para obter vagas num hotel? Na verdade,sao direitos identicos. E um aspecto em que a organizacao cha-mada universidade coincide com qualquer outra organizacao. Auniversidade sofre essa reivindicacao, nao enquanto universidade,mas enquanto instituicao publica. Ou seja, pelo genero, e nao pelaespecie. Portanto, o atendimento a resolucao do problema, nadatem a ver tambem com a especificidade da ocupacao universitaria.

Porem, o ensino e uma atividade muito peculiar, onde a questaodecisiva nao e dar o ensino, mas sim que o sujeito o receba. Di-zer que ele tem direito a educacao e uma especie de contradicao,no meu entender. A educacao nunca pode ser um direito, porqueela nao depende de um outro indivıduo. A educacao depende demim. A educacao e uma decisao, e nao um direito. Por exemplo,dizer que voce tem direito de ser corajoso, tem direito a coragem,e um non-sense, porque voce sera corajoso se voce quiser. O su-jeito ativo do processo educativo nao e o professor, mas o proprioaluno. A educacao nao pode ser colocada nem como um dever,mas como uma opcao livre. Quando voce a coloca como um di-reito, o sujeito, por ter acesso aquele meio, ele acredita que esta

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obtendo a educacao. Isso desvia todo o problema.O que e a educacao? E o indivıduo adquirir, para ele, o conheci-

mento, o domınio de certas coisas. Nao tem sentido, e ilogico vocecolocar isto na esfera do direito. Isto tem que ser colocado na es-fera da capacidade da vontade. Nao cabe a ninguem reconhecer oseu direito a educacao, aos meios da educacao. Ademais, os meiostambem sao muito variaveis. Quanto custa a educacao de um in-divıduo? A minha educacao, por exemplo, nao custou muito. Elacustou algum tempo, geralmente fora das horas de trabalho, e oslivros que comprei. Nao custou mais do que isso. Quanto custa aformacao de um desses filosofos que sai todo ano das faculdades?Voce precisa de predios, bibliotecas, funcionarios, equipamentos,etc., e se voce divide pelo numero de alunos, veja o custo que sai.

Entretanto, e proprio da sociedade democratica colocar as coi-sas em termos de direito. Mas aı o problema nao e de direito, masse a educacao efetivamente se faz ou nao. O maximo que um go-verno pode dar e certos meios de acesso. Mas se ele da acesso aeducacao a um bando de gente, isso nao garante que ele va realizaros fins da educacao.

No meu entender, as verbas destinadas a educacao sao muitomais do que suficientes. Nao precisava tanto. Por outro lado,ou a educacao visa a produzir conhecimento, ou ela visa a asse-gurar emprego para um bando de gente. Estas duas finalidadesestao muito misturadas. Se voce perguntar para a grande maio-ria dos estudantes universitarios, que se fosse possıvel ter acesso aesse tipo de emprego sem nenhum estudo, agora, ja, se eles que-riam ou nao? A grande maioria diria que sim. Isto significa que aeducacao, o conhecimento, esta se tornando um meio para um de-terminado fim, que permanece individual, voltado para ele mesmo.A educacao nao e dada para aquele indivıduo em funcao de umservico social que ele vai prestar, mas em funcao do atendimentode uma reivindicacao unilateral, dele. E o caso, por exemplo, dos

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medicos. Durante uma certa epoca, as pessoas que se formavamem Medicina, tinham a consciencia muito nıtida de serem privile-giados. Como se tivessem recebido um premio de loteria. Tinhamconsciencia de que aquilo custava um custo social, fora do co-mum, e que portanto alguma coisa eles deveriam devolver. Mashoje isto nao existe mais. O sujeitos acham que o governo montoutoda aquela maquina com a unica finalidade de lhe dar um meiode acesso a ele ganhar um dinheiro. O que e, evidentemente, umsuicıdio da sociedade.

Isto transformou a discussao da educacao numa confusao muitogrande. Da acesso a educacao nao apenas a pessoas intelectual-mente inqualificadas, mas como a pessoas que nao tem a menorideia da responsabilidade inerente aquele trabalho. Em Sao Pauloha a faculdade de Estudos Orientais, que e um deposito de pessoasque nao encontraram vagas nos outros cursos. Houve ate um depu-tado, que e um animal, o Gastone Righi, que fez uma analise do fe-chamento desta faculdade da USP, porque ele achava que nao ser-via para nada. Acontece que toda a historia do seculo XX, comecana faculdade de Estudos Orientais. Tudo o que ocorreu no seculoXX, voce pode explicar a partir da entrada de uma influencia ori-ental, que vem da faculdade de Estudos Orientais, onde as pessoasestudam o chines, o arabe, etc., trazendo esse conhecimento paraca. Por exemplo, como e que voce teria a acupuntura se nao fossea faculdade de Estudos Orientais? Foram os medicos que foramla traduzir os textos da acupuntura? Nao, foram os linguistas, osorientalistas. E assim por diante. Entao, esta faculdade, no mo-mento, ela serve apenas para atender a uma reivindicacao subjetivade determinados indivıduos, como se eles fossem os mimados dasociedade. Esses mesmos indivıduos fazem greve quando o precodo restaurante sobe 10 cruzeiros.

Para mim, o estudante nao poderia fazer greve jamais, por mo-tivo nenhum. Ele tem e que estudar. Sera que ele nao entende

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tudo o que ele esta recebendo de presente? Ele pensa que ele e oque? Um proletario explorado? E exatamente o contrario, ele eum menino mimado, a quem a sociedade da tudo de melhor. Tal-vez, poderia existir uma especie de greve ao contrario, que seria aprestacao de servicos gratuitos.

Pelo fato da universidade dar acesso a pessoas de muito baixonıvel intelectual e moral, nem o mercado atendera a reivindicacaodelas. O sujeito que se formou em algo, nao quer saber se aquiloe socialmente util, ou se a sociedade precisa daquilo. Ele quer esaber de ter uma oportunidade para ele. A profissao universitariaque atualmente tem o mais alto salario inicial e a de advogado. Istoresulta simplesmente do fato de que quando terminou o governodos militares, comecou o governo dos bachareis.

E claro que pessoas que estudaram por estes motivos, elas ad-quirirao o conhecimento pelo mınimo indispensavel para poderparecer advogado, medico, engenheiro, etc. E para este mınimo,e claro que os procedimentos algorıtmicos sao uma mao- na-roda,uma verdadeira maravilha, porque vai pela lei do menor esforco.Entao, e claro que para a quase totalidade dessas pessoas, estesprocedimentos serao a quintessencia daquele setor do conheci-mento, e se apegarao aquilo como se fosse um verdadeiro fetiche,porque se tirar aquilo, eles estao roubados.

Entao, se me perguntarem se eu sou a favor da democratizacaodo ensino, eu respondo que, ao contrario, sou a favor da elitizacao,porque o acesso e excessivo. A sociedade nao tem meios de ali-mentar essa gente toda. Por que existe o desemprego nessas areas?Porque tem gente demais. Evidentemente, nao ha necessidade detanto advogado, filosofo, etc. Entao, temos a sociedade inteira,a comecar pelos famintos, os proletarios, todos trabalhando, paraque uma casta de privilegiados possa brincar com essas coisas.

A promocao desses processos simplificados, abreviados, a quin-tessencia da propria Ciencia, e devido a isso. Quanto mais se pu-

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der reduzir o trabalho a procedimentos algorıtmicos melhor paraeles. Melhor porque num raciocınio economico e uma reducaode tempo. Acontece que nao existe, por exemplo, um medico ge-ral. Cada medico e um indivıduo. Ou ele sabe ou ele nao sabe.Entao, voce economiza o tempo de todos de maneira que ninguemsaiba de nada. A cadeira de Economia, por exemplo, houve umaperda porque o sujeito ficou la, anos estudando, voce pagando, eele nao sabe nada. a propria definicao do objeto de ensino e o in-divıduo, e nao a coletividade. Numa coletividade onde ninguemquer aprender nada, onde nenhum indivıduo saiba de nada, masque pela media, somando as varias ignorancias, de para obter anota mınima, isso e o fracasso total. O problema nao e formarmedicos, mas saber se sao medicos!

As ideias pseudo-cientıficas surgem devido a esses problemas.O sujeito nao foi la para averiguar o que e, ele nao refez o caminho,nem esta interessado nisso. Isto nao e so culpa das autoridades,mas e culpa de todo mundo. A culpa e de cada um. Lutar peloensino melhor, e como voce lutar pelo aumento do nıvel da suamoralidade. Voce nao tem que lutar por isso. Ela esta em voce; ouvoce faz, ou voce nao faz.

Qualquer oportunidade de ensino poderia ser aproveitada inte-gralmente. Entao, seria o caso de perguntar, por exemplo, parao sujeito que entra numa faculdade de Filosofia: suponha que osprofessores fossem uma porcaria, fossem desinteressados, entao,por que voce nao mata as aulas e vai para a biblioteca, requisita oslivros, e faz o seu curso? Se os professores nao me dao, eu tenho oaparato fısico a minha disposicao. A ma qualidade dos professoresnao e desculpa. A ma qualidade do ensino nao justifica a ma qua-lidade do aprendizado. Suponha que voce tenha um professor quesaiba muito pouco, que fale um monte de besteiras, mas voce naotem nem a curiosidade de saber por que o que ele fala e besteira?Se o professor disse que o Aristoteles e isso ou aquilo, mas voce

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acha que nao, por que voce nao vai ver o que Aristoteles falou re-almente? Mesmo o pior dos professores e uma oportunidade deensino.

Por que isso acontece em termos de Brasil? Em primeiro lugar,eu acho que o conhecimento nao faz parte da vida brasileira. Vocesaber as coisas, nao e considera importante. Nao e moeda cor-rente. Eu acho, inclusive, que ha elementos cultural-psicologicosque sao adversos a qualquer resultado. Por exemplo, a enfase quese da para o sujeito passar de ano. O importante e passar, ou seja,e nunca ter estado la... Isto porque esta todo mundo pobre, preci-sando de emprego, acaba gerando esse tipo de raciocınio. Aqui noBrasil, voce querer saber as coisas, voce acaba ficando mal visto.O absurdo e que o paıs e subdesenvolvido, cheio de dıvidas, e seda ao luxo de oferecer faculdades a pessoas que nao querem nada.Muitos desses desvios filosoficos, que no mundo aparecem comomeramente potenciais e nao chegam a se manifestar, aqui eles ad-quirem corporalidade. Entao, como e que voce poderia fazer umaelite cientıfica, cultural, para fazer as coisas darem certo? So sefor por magica! O fato de voce saber algo, qualquer coisa, ja tetorna uma pessoa suspeita.

O que adianta nao e dar verbas para a educacao, mas fazermudanca cultural mais profunda. Uma mudanca nos habitos psi-cologicos da nacao. No panteao dos herois nacionais, quantos bra-sileiros sao cultuados pelo seu saber? So Rui Barbosa. Mas, quetipo de saber tinha o Rui Barbosa? Ele tinha um saber retorico— so isso. Ou seja, nao ha um heroi cultural. Assim, onde naoha herois culturais, nao ha o ideal do sabio. Isto esta totalmentefora do repertorio vital dos indivıduos. E um escandalo, no sentidobıblico. O escandalo e um fato cuja constatacao faz voce perder afe na vontade divina. Realmente, o panorama cultural- psicologicoaqui e muito tragico. Este e o unico problema real do Brasil.

Vejam, por exemplo, um pai de famılia, que esta desempregado,

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doente, e corno, os filhos fumam maconha, e alem do mais ele estalouco. Entao, como e que ele pode resolver tudo isso antes recu-perar a sanidade? Nao ha jeito. Ponha a cabeca do sujeito no lugarque ele conseguira resolver tudo com sua propria capacidade: eleda uma prensa na mulher, ensina ao filho o que deve fazer, arranjaum trabalho, e as coisas comecam a melhorar. Entretanto, com acabeca fora do lugar, desorientado, o desgaste e inevitavel.

Vejam que qualquer problema simples, aqui no Brasil leva anose anos de debate. Em Curitiba e que eu vi ate que ponto nas outrascidades voce gasta mao-de-obra a toa. Um unico prefeito tinhaas ideias e as colocou em pratica. Eu pergunto: quanto custou?Quantas reunioes de alto nıvel aconteceram? A reuniao de altonıvel era quando ele ia para casa a noite, pensava, e chegava a umaconclusao. Pensando ou nao pensando, o salario do prefeito serao mesmo. Entao, para resolver uma infinidade de coisas, bastaum sujeito pensando. Nao precisa de um monte de gente e tantadiscussao. Acontece que la em Curitiba, o prefeito pensava, e aspessoas resolveram dar um voto de confianca nele. E o fato e queele governou Curitiba como um autocrata; na maioria dos casos,nem o secretariado dele sabia o que ele estava fazendo. E melhordo que um milhao de liberais obscurecidos, porque parte para ademocracia, todo mundo discute, falam o que querem, e no fimnao se resolve nada.

Entao, isso tudo nao e um problema de direito, de legislacao,e um problema cultural onde a estrutura de personalidade dos in-divıduos nao e apta a solucao dos problemas. Por exemplo, te arru-mam um emprego numa firma que fabrique camisinhas. Entao, elatem determinados problemas objetivos a resolver. Quanto tempovoce gasta, quanto dinheiro a firma gasta ate que os seus execu-tivos recem-admitidos tenham conseguido satisfazer todas as suasnecessidades objetivas, sentindo-se pertencendo, aprovados, etc.?Acontecerao reunioes e reunioes, onde as pessoas falarao as coi-

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sas, nao porque isso seja pertinente a fabricacao das camisinhas,mas pertinente ao problema deles.

As pessoas te dao opiniao, nao porque tem algo a dizer, masporque elas tem uma duvida sobre se elas tem capacidade paraaquilo, se elas serao aceitas naquele lugar, entao elas ficarao tes-tando. Embora isso ja devesse ter sido testado aos quinze anosde idade. Ja devia estar resolvido. Isso e dinheiro jogado fora, otempo todo. Se voce trouxe um problema e nao da para falar quale o problema, entao o problema nao existe. Se esse sistema fosseadotado oficialmente, todo mundo ia ficar de boca calada para oresto da vida. Entretanto, nao se perderia tanto tempo.

Mas por que e assim? Porque o que esta em jogo nao e o pro-blema efetivo. O que esta em jogo e a convivencia humana. Noentanto, por que a personalidade das pessoas e tao mole? Porquenao existem valores e ideais culturais que norteiem a formacao deuma sociedade forte. Se voce nao sabe a que modelo de condutavoce tem que atender, voce nunca sabe se voce esta agradando ounao. Em alguns lugares, eu creio que voce tem isso. Quando se en-tra para o Exercito, tem la um modelo de militar que nos tentamosnos enquadrar rapidamente nele. Logo, logo voce fica sabendose voce serve para aquilo ou nao. Tirando, talvez, o Exercito e aIgreja Catolica, onde logo voce fica sabendo se voce serve para pa-dre ou nao, no resto nao existe esse padrao. Um executivo de umagrande industria, por exemplo, que qualidades de conduta deveriater? Por exemplo, falar pouco e nao perder tempo. A economiade tempo e um traco absolutamente fundamental. Se o sujeito ti-vesse esse valor muito claro em sua mente, na medida em que eleatendesse a isso, ele estaria satisfeito, estaria seguro de si, nao im-portando com o que os outros pensem. Mas se ele mesmo nao temesse parametro com o qual se julgar, ele depende do julgamentoalheio: saber se fulano gosta de mim, se os outros me aprovam,etc. E, com isso, voce perde alguns anos. Se o sujeito conseguiu

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passar por toda essa barreira de questoes subjetivas, no fim e queele vira presidente de uma empresa. Tudo isso e uma perda for-midavel.

Em relacao a Ciencia, o que e voce ser um cientista? O que vocetem que atender? Que caracteres voce tem que ter? Esses valoresnao estao claros na sociedade, de maneira alguma. Qual e a funcaode um filosofo? Tudo isso representa valores que sao a formula devida, basica, que um educador — Sprangler — chama de faith: ohomem religioso, o homem teoretico, o homem economico, etc.,ao todo, sao seis. Cada um deles representa um conjunto de va-lores que marca uma conduta ideal, a qual, se voce entra na res-pectiva carreira, voce tem que atender. Se eu entro numa carreiratecnica, mas as minhas necessidades sao outras, completamentediferentes, por exemplo, eu gosto da intercomunicacao humana,de biologia, entao voce esta no lugar errado. Esses valores fazemparte da educacao, e eu acho que isso o Estado deveria fazer. OEstado deveria oferecer esses modelos. Ajudar a pessoa a se si-tuar, ja que a famılia nao da. O Estado aqui, sempre vem antes dainiciativa social. E o que da o primeiro lance, e o educador, o re-formador, o legislador, entao ele tem que assumir de verdade essepapel.

Nao e possıvel voce educar uma nacao ao mesmo tempo em quevoce vai fazer tudo do jeito que ela quer, e vai concordar que elafique do mesmo modo. Um educador esta ali para transformar apessoa, isso e obvio. A propria viabilidade do sistema democraticoaqui ja era para ter sido questionado mil vezes. Toda hora caımosnuma ditadura, e nao e a toa. Nao e porque ha uma meia duziade homens maus. E porque voce tenta pelo lado democratico, daıvoce elege o Fernando Collor, da uma crise, e olha aı a ditadurade novo. O problema e que quando voce tem uma ditadura, aspessoas nao aproveitam esse perıodo para fazer mudancas basicas.O Getulio Vargas ainda fez. Colocou alguns valores, mas muito

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pouca coisa. Na epoca dos militares nao aconteceu nada nessaarea.

Quando nos vemos a consequencia disso na area da atividadepuramente intelectual, cientıfica, filosofica, etc., aı se nem os exe-cutivos das grandes empresas sao capazes de serem formados,imaginem formar filosofos... Imaginem o coeficiente de falsidadeque existe na conduta desses indivıduos que tentam representarum papel que ele desconhece, que nunca sabe se ele e um bommedico, engenheiro, executivo, ou nao. E, esses sao papeis queo indivıduo precisa conferir pela resposta alheia, se ele aceita ounao. Imaginem o papel de filosofo. Nao ha um sequer que me digase ele e ou nao e. Entao, ele esta sozinho no espaco, tentando seauto-definir. E uma especie de coisa em si. A coisa e muito vaga.Todo mundo vivendo com aquela sensacao de falsidade, de vazio,que vem por ele estar sempre vivendo um papel que ele nao temcerteza se ele e. Um papel que o dignificaria, que ele ate gostariade ser, mas que ele nao sabe exatamente como fazer. Entao, eletem que perguntar para os outros: sera que eu sou isso ou aquilo?

Esse e o problema psicologico-cultural de base que impedequalquer educacao. Quando voce decidir por uma carreira naoe so voce adquirir conhecimento, mas e voce adquirir as condutasrespectivas. E claro que devem haver condutas que sao essenci-ais a determinadas profissoes, e condutas que sao mais ou menosacidentais, com certos cacoetes mentais. Estes cacoetes podemmudar de epoca para epoca. Em cada profissao voce tem, nao ovocabulario tecnico, mas o vocabulario social daquele meio, e quenao faz parte da estrutura da profissao. E apenas uma contingenciamomentanea. Mas, quanto fosfato as pessoas gastam para adquiriresse vocabulario? E esses trejeitos? Para que ele possa se sentirum economista, um medico, etc. E um absurdo!

No fim de tudo, e para voce poder imitar um papel, ao qual vocenao tem certeza que voce pertence. Entao, quase todo mundo,

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numa certa idade, se for um pouco honesto, vai ter que entenderque esta no lugar errado. No fundo, quase todo mundo se sentecharlatao.

Nos aqui temos que pensar tudo isso, nao na escala social. OBrasil e uma coisa. Nos somos outra coisa. Tudo o que esta sendodito aqui, tem que ser traduzido para o caso pessoal, e ver comoe que voce corrige isso dentro da sua escala. Quando decidi serfilosofo, eu pautei a minha conduta por essa linha. Se os outrosnao entenderem o papel que estou representando, isso e problemadeles. Geralmente nao entendem. Mas, pelo menos, eu nao fico“patinando no vazio”, eu sei o que eu estou fazendo. As pessoasnao precisam me entender. Eu estou me entendendo.

O fato e que cada um de voces vai procurar ver quais sao osvalores que determinam, que moldam a conduta, da pratica da-quela ciencia, daquela arte, e se pautarem por isso. De modoque, as pessoas que convivem com voce, aos poucos venham asaber o que voce esta fazendo ali, qual e o seu proposito real. Porexemplo, medico, hoje em dia, ignora que voce so trata de um in-divıduo. Isso faz parte da natureza da profissao medica. Nao existeterapeutica geral. Nao e como, por exemplo, um engenheiro indus-trial, que so vai resolver problemas de ordem geral. No entanto,o medico nao pode tratar de quinze pessoas ao mesmo tempo. AMedicina e essencialmente clınica, o resto e acidental. As pessoasfazem Medicina como se fosse uma coisa industrial, quando naoe. A divisao de trabalho na Medicina tem nıveis intransponıveis,que em outras esferas isso nao acontece. O problema e que as pes-soas acreditam que essa divisao realmente existem. O especialista,em princıpio, e o medico que sabe algo mais de uma determinadaarea. a Medicina e clınica. O termo clınica vem do grego kline,que significa leito. Clinicar e voce sentar no leito e ouvir, tratar,o doente. As divisoes de Engenharia, por exemplo, sao radical-mente distintas. O sujeito para ser Engenheiro Civil nao precisa

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saber absolutamente nada de Engenharia Naval. A unica coisa emcomum sao algumas materias basicas. No entanto, Medicina e Ve-terinaria, sao realmente diferentes, porque o objeto e diferente. aespecializacao, as especies, em Engenharia existem fisicamente,mas em Medicina as especializacoes sao apenas entes de razao. Ecomo se fosse uma especializacao metaforica. A propria distincaoentre cirurgia e clınica ja e motivo de discussao. Hoje, com os mi-crocomputadores, qual e a impossibilidade que existe de que ummedico tenha, praticamente, a totalidade da informacao medica noseu consultorio? Nada impede isso. O indivıduo nao pode sabertudo, mas tambem nao precisa ser uma biblioteca, basta ter um mi-crocomputador. Isso amplia o raio de acao dele formidavelmente.

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12 de fevereiro de 1993

[ Olavo deu uma parada nos comentarios sobre Husserl, e dis-cutiu o artigo de uma revista sobre a Quımica do Amor ]

Na medida onde a Igreja, no comeco da Idade Media, estavaprocurando educar, civilizar, de certo modo, disciplinar uma castaguerreira, de origem paga, percebendo que essas pessoas nao eramcapazes de nocoes de tipo moral, direta, que era muito complexopara elas, procurou ver se nao podia, atraves do erotismo, dirigiras acoes desses indivıduos no sentido benefico.

Como eram pessoas altamente erotizadas, a Igreja tentou dirigiros impulsos eroticos desses indivıduos no sentido de uma mulherinacessıvel, para que o desejo dessa mulher inacessıvel pudesseformar uma especie de base sensıvel, para que eles pudessem che-gar a compreender a aspiracao pelo divino.

Neste perıodo surge a Etica de Cavaleiros, que serve a sua dama,que geralmente era a esposa do rei, ou do senhor feudal, a qual eproibida para ele. Ele e incentivado, de certo modo, a se apaixonarpor ela justamente porque ela e inacessıvel. Se ele transar com ela,ele morre. Assim, todo o erotismo do indivıduo e canalizado nessesentido, o que faz com que ele sofra, e sinta um fundo de nostalgia.Essa nostalgia forma uma base sensıvel para que essa gente pensena nostalgia do paraıso perdido, na nostalgia do divino, etc. Foiuma especie de truque psico-pedagogico inventado pela Igreja, eque funcionou durante centenas de anos.

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Quando acabou a Idade Media, acabaram os cavaleiros, os se-nhores feudais, etc., e a burguesia, lendo aqueles livros, gos-tou, tambem quis viver isso, e daı surge o amor romantico, naconcepcao moderna, que e uma coisa totalmente fora do lugar,porque o cavaleiro medieval, de certo modo, pagava com a suavida a aquisicao dessa amante, que ele nao tinha como premiomaterial. Se ele transasse com a mulher do rei, o premio era amorte. Pior do que a morte, era a sua desqualificacao como cava-leiro, que e como aparece na estoria de Sir Lancaster. Ele cai emdesgraca porque na medida onde ele segurou com as maos aquelaque deveria permanecer como uma medida inatingıvel, ele des-faz a magica. Entao, sua vida perde o sentido. Ou seja, o amorromantico e feito para nao ser realizado. Daı e que surge o fato deque em toda a civilizacao do Ocidente o culto do amor romanticolembre o culto do adulterio. Isto porque o amor romantico jamaisse realiza no casamento. Pode haver uma imagem de casamentoidealizado, que jamais se realiza, porque a estoria termina quandoo sujeito se casa. E o tal “e foram felizes para sempre...”

Entao, e evidente que esse complexo de emocoes que se deno-mina de amor romantico, isso e uma bela de uma balela, que voceja deveria ter jogado pela janela, e tentando dar ao amor algumoutro fundamento que poderia ser, por exemplo, etico.

Eu entendo o amor como um ato voluntario, e que deve ser man-tido. A paixao e so um estopim, e que pode passar. Se voce amauma pessoa, voce e bom para ela quando voce gosta dela, e quandovoce nao gosta tambem. Voce ve isso, por exemplo, na relacaopais-filhos. Voce so e bom para o teu filho quando ele te agrada?So quando ele e bonitinho, simpatico? Quando ele se comporta demaneira repulsiva, voce tambem deve ser bom para ele. Entao, umfundamento etico seria mais interessante do que esse fundamentoonırico.

Se e uma fundamento bioquımico melhor ainda, porque ele nao

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toma o conceito de fatalidade. Eu me ligo a uma pessoa, nao por-que ela tenha tais ou quais qualidades excelsas, ela pode ate nemprestar, mas e bioquımico, e genetico, e uma fatalidade, que nofundo um conceito dos homens. As pessoas se apaixonam umaspelas outras por uma fatalidade. Se nos falamos de fatalidade,falamos de genetica, no fundo estamos falando da mesma coisa:voce nao tem controle sobre o destino, assim como voce nao temcontrole se for genetico. Entao, se aparecer um cientista que dizter descoberto um fundamento bioquımico do amor, melhor ainda.Essa seria a minha reacao pessoal.

Assim, a materia que foi publicada na revista nao e destinada amim, porque eles comecam o texto dizendo que o mesmo sera de-cepcionante quanto ao que voce pensa do amor, que seus sonhosirao acabar, etc. No entanto, se a materia conseguiu obter comoresposta esse sentimento de decepcao, entao a retorica funcionou.E quando a retorica funciona significa que voce, nao gostando doque esta dito na materia, voce a le exatamente com os olhos como que se premeditou que voce lesse. Ou seja, o objetivo foi intei-ramente cumprido.

A retorica e voce colocar uma questao com um certo prisma,dando duas alternativas, fingindo que defende uma delas, porquedaı voce sabe que optarao pela outra. Voce escapa disso se vocesair dessa discussao: “o problema nao e esse. O problema e outro”.

E obvio que nao existe, para mim, e nao poderia existir jamaisdentro de tudo aquilo que discute o assunto, um conflito entre omundo encantado da paixao romantica e o mundo desencantadoda bioquımica. Este conflito e uma colocacao auto- contraditoriana medida onde, se voce diz que um determinado fenomeno bi-oquımico causa um complexo de emocoes, entao o fenomeno bi-oquımico certamente nao e inimigo desse complexo de emocoes,porque e justamente a sua causa. Entao, por que optar? Porque ejustamente a bioquımica que esta fazendo a magica. O problema

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nao existe. E a mesma coisa que um sujeito da um tiro no outro,e voce diz: “Isto aqui nao foi a morte do fulano, mas foi o assas-sinato dele pelo sicrano”, ou seja, nao foi a morte de um ser hu-mano, foi um disparo que causou a interrupcao do funcionamentode um determinado organismo. E aı voce fica muito decepcionado:“Entao foi so isso?”

Compreenderam como um jogo de palavras recria uma emocaono leitor? E as palavras respondem exatamente do jeito que foipremeditado pelo autor do texto. A imprensa, de um modo geral, eletal porque ela esta tao habituada a fazer isso, que ela mesma naopercebe; o proprio redator nao percebe a eficacia da falsificacaoque esta fazendo. Ele esta combinando uma informacao cientıficacom um fundo de valores culturais, psicologicos, etc, e escrevedessa ou daquela maneira porque sabe da reacao. Ou seja, elesabe como o ouvinte vai ouvi-lo.

Pergunto eu: ele sabe a colocacao real dos problemas indepen-dentemente do auditorio a que ele se dirige? Nao, isso nao chegaa ser colocado, porque se fosse colocado ele nao conseguiria es-crever essa materia. Senao, teria que ser um sujeito maquiavelico.Um sujeito que estivesse consciente de que ele esta moldando umaquestao cientıfica para provocar uma determinada reacao, despro-positada, ele teria uma ma consciencia, e nao conseguiria exerceressa profissao sem ter que se drogar todo dia. O que nao repre-senta a maior parte dos casos. As pessoas exercem a sua funcaocom boa consciencia. Isto significa uma mente que esta moldadaa retorica ainda. Ele pensa em funcao da reacao psicologica deum leitor, o qual tambem le em funcao da intencao psicologica doredator. Mas, e a quımica, e o amor, onde ficam nisso? Nao ficam.Nao foram examinados em nenhum momento. De modo que voceconsegue, ao dizer a causa de alguma coisa, fazer com que o leitorse veja entre duas alternativas, entre a causa e a coisa. Isto acon-tece, como podem ver, inclusive com a TIME, considerada uma

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boa publicacao.Entao e assim: todos nos, num primeiro momento, somos idi-

otas porque ja somos treinados para isso. Entretanto, voce temque reverter essa situacao. Voce tem que se perguntar por que fi-cou chocado com o texto. O jornalismo e uma forma moderna daretorica. Ele e um modo de escrever que e modulado segundo umaexpectativa de uma determinada reacao, que na cabeca do jorna-lista, as vezes, e a unica possıvel. Ele identifica aquela reacao da-quele publico, com as alternativas reais oferecidas pelo problema.Mas, isso nao deixa de ser uma magica. O perfil dos leitores deuma revista e um esquema, uma constelacao de reacoes provaveis.E essa constelacao de reacoes e tida como se fosse uma expressaocompleta das alternativas reais existentes em quase cada problema.Por exemplo, se voce discute a Igreja Catolica, voce tem que vero problema atual da Igreja Catolica em termos de conservador eprogressista. Ou voce e um, ou e outro, ou esta em duvida. Por-tanto, todo noticiario sera feito dentro dessa clave, de modo queas reacoes padronizadas possıveis sao tidas como as categorias se-gundo as quais aquele problema pode ser visto. Tipos de reacoespsicologicas se transformam em categorias logicas. Muitas des-sas linhas equivalem a posicoes publicamente assumidas e outrasnao, sao atitudes mais ou menos inconscientes, habituais, comopor exemplo, esta em torno do amor. Todas as pessoas definemo amor como se fosse uma coisa magica, inexplicavel, logo, sedizemos que ele e algo bioquımico, elas vao ficar decepcionadas.Portanto, vamos trabalhar dentro dessa linha: a Ciencia desencan-tou o amor! Uns irao gostar, outros nao gostarao, e outros ficaraoem duvida. A discussao toda vai ser em torno disso.

Mas voce pode recusar esse jogo. Uma das finalidades dessecurso e fazer com que voces atendam a isso: voce so tomar partedo jogo, voce so permitir determinadas reacoes pro, contra, ou deduvida, em face de uma determinada alternativa, quando voce con-

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corda com a montagem da alternativa. Neste caso, por exemplo,eu discordo frontalmente; esta alternativa nao existe. Porque seexiste um fenomeno e uma causa, voce vai optar entre o fenomenoe a causa. Como e que a explicacao do fenomeno bioquımico po-deria desencantar a constelacao de sentimentos magicos que estamesma reacao bioquımica, segundo a materia, provoca? E quererprocurar chifre na cabeca de cavalo. Levantar uma questao inexis-tente.

Neste caso, o jornalismo presta um desservico a elucidacao doproblema. Ele nao esta fazendo um servico ao patrao dele, ele estafazendo um servico dele, porque o patrao nao importa. Isto estana estrutura mesma da atividade jornalıstica, nao importando emqual e o ponto onde ela se apoia. Se fosse uma revista do Mi-nisterio Publico seria a mesma coisa. O jornalismo e isso. Se elefor alem disso, ele entra na discussao dialetica, e sai da farsa. Eas alternativas que ele vai ter que colocar nao serao os conflitosque ele vai expressar, e as alternativas que ele ira colocar nao cor-responderao mais as diferentes expectativas publicas em torno doassunto. Ou seja, ele tera que colocar um problema de maneiraque nao coincida com as reacoes espontaneas das pessoas. Istosignifica que as pessoas terao que fazer um esforco para entendera alternativa. As pessoas teriam que estudar a questao, e o jorna-lismo foi feito para quem nao quer estudar a questao. A retoricasempre supoe uma passividade da parte do auditorio, o qual podeoptar entre as alternativas dadas. Mas ele nao pode inventar umaterceira alternativa. Vejam, por exemplo, o caso do plebiscito: te-mos parlamentarismo, republica, monarquia, ou presidencialismo.Suponha que voce nao queira nenhuma dessas alternativas, e digaque quer, por exemplo, um sistema oligarquico-anarquista. So quenao ha esta alternativa na cedula. Ou entao, voce pode ser contra oplebiscito, mas tambem nao tera esta alternativa. Um sujeito quefosse, por exemplo, adepto do movimento separatista diria que o

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plebiscito nao e mais do que um truque de uma federacao agoni-zante para se preservar, encobrindo, disfarcando o fenomeno dasdiferencas regionais, que clamam por uma separacao.

Quem manda na opiniao publica nunca e o chefe da correntede opiniao dominante, mas e o que monta a alternativa. Isto e umaregra universal. Quem ganha mais nao e o time vencedor, e o donodo estadio. Quem ganha mais entre o leao e o domador e o dono docirco. Quem ganha mais nao e o boxeador, mas o empresario dele— e sempre assim. Portanto, sempre que uma pessoa te convidaa tomar partido, a te pedir uma opiniao, pode comecar a descon-fiar que ele ja esta “batendo a tua carteira”, porque ele colocouduas alternativas e as pessoas participarao dentro da clave que eledeterminou. Acontece que essa clave e meramente subjetiva, cor-responde as atitudes possıveis dos indivıduos, e nao aos aspectosreais do problema. A alternativa nao e essa. Portanto, pouco im-porta se vai dar isso ou aquilo, o que importa e a manutencao doquadro de referencia. Todo discurso retorico funciona dentro deum quadro de referencia pre-fabricado, e nao pode muda-lo.

A retorica so serve para favorecer um partido ou outro, dentrodos efetivamente existentes, dentro daqueles que estao presentes.Portanto, o raciocınio retorico nada tem a ver com a natureza doproblema, como por exemplo, o racismo: voce e contra ou a favor?E se eu disser assim: o racismo e evidentemente uma ideologia ra-cista, e o combate ao racismo tambem e uma ideologia racista.Isso e como eu vejo. Por exemplo, o combate ao racismo pres-supoe que determinadas racas tem o direito a afirmacao de seusvalores raciais e culturais, tradicionais, e outras nao. Na ideologiado anti-racismo nao e bonito o preto que afirma a sua identidadede preto? E o branco que afirma a sua identidade de branco? Naopode? Mas quem foi que inventou essa coisa toda? Foi o preto?Nao, foi o branco europeu. Com que proposito? Aonde quer che-gar com isso? Isso e uma transformacao do mundo numa etapa de

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colonialismo imperial — portanto racista –, para uma nova formade colonialismo do tipo transnacional. Voce nao pode manter,por exemplo, uma situacao imperial sem uma dose de racismo.Se voce monta um escritorio de administracao inglesa na Africa,como e que cem mil ingleses vao mandar em quarenta milhoesde africanos, sem os ingleses se considerarem uma raca superior?Mesmo que eles nao sejam, eles terao que dizer que sao, senaoeles nao aguentam. O antigo colonialismo implicava no racismoquase que necessariamente. Porem, e se o que voce quer nao emais isso? Voce nao quer mais tomar conta do territorio e manterla uma administracao colonial. Voce quer que o proprio coloni-zado faca a administracao, explorem os seus proprios compatrio-tas e te mandem o dinheiro. Quem te impede de fazer isso? Oanti-racismo foi feito, nao para beneficiar as racas oprimidas, masapenas para acabar com os antigos imperios coloniais e favorecerum novo tipo de imperialismo, puramente capitalista. Portanto,eu sou contra o racismo, e sou contra o anti-racismo tambem. Euacho que esse problema nao existe realmente. Ele e inteiramenteabsurdo.

Por outro lado, voce ve que a definicao das varias racas eambıgua. Na Africa do Sul, por exemplo, tinha banheiro parabranco e para preto. Mas se voce era japones voce entrava nobanheiro de branco, e se voce era chines, tinha que entrar no ba-nheiro de preto. Que raio de racismo e esse? O racismo sempre foium pretexto. Ele nao e o ponto. A ideologia racista e tao aparente,tao fraca, que nunca deve ser levada a serio, porque tem algumacoisa por tras. O conflito de racas nao existe ha muitos anos. Con-flitos de religioes, de nacoes, de cultura, de interesses economicos,de territorios, etc, tudo isso existe. Mas, e de raca? Isto e so umnome que voce da para enganar as pessoas e fazer com que elasoptem pelas alternativas que voce colocou. E tudo pura retorica.

Voce dizer que uma raca e superior que as outras, e racismo ou

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nao e? O sionismo, por exemplo, e uma ideologia racista porqueos judeus se consideram o povo eleito. O judeu nao e um povoprofetico? O que e um profeta? Nao e um sujeito que manda nosoutros? Ele nao representa a palavra de Deus? E todo mundo temque obedecer. O judeu tem que mandar no mundo. Esta escritona Bıblia. Entao, se esta na religiao dele, ele tem que se propor amandar no mundo. Mas isso nao pode porque e racismo. Entao,vamos proibir o judeu de praticar a sua religiao. Mas isso nao podeporque e contra a liberdade de crenca. Entao nao tem solucao! Seo judeu tem o direito de crer e praticar a sua religiao, ele tem odireito de acreditar que ele e um povo superior. Se ele tem essedireito, o chines, por exemplo, tambem tem esse direito. Eles po-dem se achar o centro do mundo e que o resto e periferia. Entao,cada povo e um povo racista ao seu modo. Isto esta na naturezadas coisas. Nao tem como abolir isso aı.

Entao, essas sao alternativas que se colocam, visando um de-terminado resultado que pouco ou nada tem a ver com a questaocolocada. Se voce examinar melhor as coisas, compreender bem aTeoria dos Quatro Discursos, nunca mais voce toma partido nessetipo de discussao. Dadas duas alternativas, voce sempre vai procu-rar mudar o quadro, a nao ser que aquelas alternativas correspon-dam a diferenca real, atenderem aos aspectos reais do problema,as alternativas objetivas. Se voce ve criancas discutindo para sa-ber, por exemplo, se elas devem brincar disso ou daquilo, quantasvezes a mae ja nao decidiu que elas nao vao brincar de coisa al-guma porque esta na hora de tomar banho, de almocar, etc. Ouseja, eles estao totalmente fora do problema, estao optando entrecoisas inexistentes e que nao serao levadas a pratica. A maior partedas discussoes publicas e assim. Quando as pessoas acabavam deoptar, ja mudou todo o quadro, e ja nao e mais aquilo que estavamdiscutindo.

Certa vez me pediram para saber se eu era contra ou a favor do

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divorcio. Eu disse que era contra, mas com a ressalva de que eu eracontra, porque eu era contra o casamento. Este tipo de reacao pa-radoxal vira, as vezes, uma defesa da integridade e da inteligencia.Convidado a optar entre absurdos, o melhor e embolar tudo. Seisto tudo aqui que estou falando, nao e ensinado na faculdade deJornalismo, que os princıpios da retorica sao a mae do Jornalismo,voce nunca vai entender o seu jornalismo. Voce nunca sera capazde colocar os assuntos acima do nıvel do Jornalismo.

Por outro lado, como as pesquisas cientıficas, as correntes ci-entıficas, so adquirem um relevo maior na medida onde alcancama imprensa, isto significa que e isto que produz a verdadeiratragedia, quando os padroes de pensamento exigidos na imprensaretroagem sobre as pesquisas cientıficas. Um sujeito que pesquisae e uma autoridade em Teologia, ele nao tem autoridade em tudo omais — Polıtica, Sociologia, Economia, etc. A tragedia acontecequando o Jornalismo, portanto a retorica, acaba tomando conta detudo. Acaba moldando a cabeca de todos. Esse e o maior pro-blema.

A ideia de que existe aqui uma cultura cientıfica e filosofica deque o Jornalismo apenas difunde, sem alterar, e nao determinar oconteudo do que fala, so aumentando o volume de sua voz, essaideia e radicalmente falsa. Os quadros de alternativa propostospelo Jornalismo acabam, a longo prazo, determinando o propriaconducao da pesquisa cientıfica. Por exemplo, na selecao de prio-ridades: que chefe de departamento tem a coragem de colocar to-das as verbas em uma pesquisa que nao tenha a menor repercussaopublica? Entao, aı a imprensa determina. Em Sao Paulo houveaquele famoso artigo de um jornal, que disse que a USP estavadecadente porque estava publicando poucos trabalhos cientıficos.Eles encostaram o reitor na parede, e o reitor foi sincero, dizendoque eles publicavam poucas coisas porque eles descobriam pou-cas coisas. Voce nao pode obrigar as pesquisas cientıficas a darem

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certo, nao e? Assim, o reitor foi sincero, e todo mundo o criticou.Isso significa que a obrigacao de publicar x textos, de tanto emtanto tempo, haja descobertas ou nao, foi adotado nas universida-des.

O Jornalismo e isso: o jornal tem que sair todo dia, haja notıciaou nao. E como o numero de paginas determinado pelo quese chama de espelho publicitario. Se voce tem anuncios para xpaginas, voce vai ter que preencher aquelas paginas, mesmo quenao tenha acontecido nada. Voce que faca cair um aviao, ponhauma bomba num predio, ou como dizia o comentarista polıticoque escrevia uma coluna dele as 10 horas da manha e, depois, aolongo do dia, ele se esforcava para que tudo acontecesse do jeitoque ele havia escrito. O Jornalismo e um conjunto de tecnicas,nem sempre a servico de um poder. O Jornalismo ja tem um poderimplıcito. O problema nao e que o lado ruim seja o conflito. Oproblema e: quem montou o conflito?

Quando falo de um poder que dirige isso, eu nao estou me re-ferindo a classe dominante de um paıs. Estou me referindo a umamentalidade dominante de uma epoca, sobre a qual, pouquıssimaspessoas ou grupos, tem um controle direto. Por exemplo, para per-ceber isto aqui que estou falando, quantas pessoas no Brasil per-cebem tambem? Devem ser uma tres ou quatro pessoas, as quaisestao profundamente conscientes. E desses, um ou dois trabalhampara, por exemplo, o FMI ou coisa do genero. Dirigem a coisanesse sentido, mas e muito facil para eles porque nao se conheceoutras alternativas.

A direcao total dos debates que marcam uma epoca e, de certomodo, dirigida por uma classe dominante, mas nao por toda aclasse dominante. E so a elite da elite. A CIA deve ter algu-mas pessoas que estudam exatamente isto: como se montam osconflitos. Isto e uma retorica, e a retorica e, de certo modo, umaparte da ciencia polıtica ligada a arte da guerra, a Polemologia.

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A classe dominante inteira nao sabe disso. Somente a nata daclasse dominante. Nao e realmente um processo dirigido. Naotem uma direcao coletiva, e as vezes basta um sujeito para mon-tar uma coisa dessas. Uma vez montada a situacao, ninguem saide dentro, porque ninguem conhece o conjunto. Por isso que osefeitos historicos tem resultados que nunca sao os equivalentes doconflito em jogo. Na ultima guerra mundial, de um lado voce ti-nha os Estados Unidos, Franca, Inglaterra e URSS; e do outro lado,voce tinha a Alemanha, Italia e o Japao. Quem ganhou a guerra?Os aliados. Entretanto, o que era a Alemanha antes da guerra?Um paıs na miseria total, arrasado. O que e a Alemanha depois daguerra? A maior potencia europeia. O que era a Inglaterra antes daguerra? Uma grande potencia colonial. O que e a Inglaterra depoisda guerra? Um paıs de segunda classe, que depende dos EstadosUnidos. Este foi o resultado final. Hegel ja dizia que a essenciade uma coisa e aquilo no qual ela se tornou no fim. Portanto, parasaber o que estava em jogo, voce tem que ver quem ganhou o jogo.Quem ganhou o jogo nao foi a parte que estava jogando, mas umaoutra parte. Havia uma outra guerra por tras. A guerra entre ocapitalismo norte-americano de um lado, e de outro lado as an-tigas potencias coloniais, foi ganha pelos Estados Unidos, com aalianca da URSS. Portanto, a URSS foi fortalecida nesse processo,fortaleceu os Estados Unidos, colocou-o numa posicao muito maiselevada do que antes, e em seguida, a URSS foi deglutida por esseprocesso. Ha quinze anos que eu digo que o comunismo e umaetapa da historia do capitalismo. O sumico da URSS faz parte doprocesso. O que existe aı e um conflito entre a aristocracia e umanova classe de capitalistas. Esse capitalismo mandou nos EstadosUnidos, e tambem na URSS. Com que dinheiro se fez a revolucaosovietica? Com o dinheiro americano. A verdadeira guerra eraentre os Estados Unidos e a Inglaterra. Se esse conflito fosse feitoabertamente as pessoas ficariam chocadas. Entao, da-se uma volta

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para se chegar la. Vejam, por exemplo, uma biografia recente doChurchill, que condena o Churchill porque o livro diz que a Ingla-terra poderia ter evitado a guerra, ter feito a paz em separado com aAlemanha e deixado Hitler e Stalin brigando entre si. Havia muitagente na Inglaterra que era a favor disso. Foram todos chamadosde nazistas e postos na cadeia. Por exemplo, foram os inglesesque fizeram primeiro bombardeio de populacao civil na SegundaGuerra Mundial, porque haviam pessoas na Inglaterra que nao su-portavam a ideia de nao haver guerra, da paz em separado. Naverdade, eram agentes americanos infiltrados, conscientes ou in-conscientes.

Vejam, por exemplo, a biografia de Lord Mountbatten; ele eravice-rei da India, era um socialista, tinha simpatia pela URSS.Entao, como e que voce da para esse sujeito autoridade sobre oimperio colonial, se nao fosse so para destruir? Na hora de des-truir ele e nomeado para destruir. De outro lado, na biografia deRoosevelt, voce ve a nıtida simpatia dele pelo lado sovietico, econtra a Inglaterra. Entao, a verdadeira briga era essa.

Entretanto, isso vai aparecendo aos poucos, a medida que asdecadas vao se passando, e voce vai lendo so depoimentos, ashistorias, etc. No comeco voce se choca, mas depois voce se con-vence: a trama toda era para desmontar a Inglaterra, em benefıcioaparente de duas grandes potencias — Estados Unidos e URSS –,porem, em benefıcio de uma so: os Estados Unidos. Sera que essadesmontagem da URSS, aconteceu sozinha, da noite para o dia?Sera que nao ha 50 anos de trabalho da CIA la dentro? Como epossıvel que todos aqueles sujeitos que estavam la na URSS, de re-pente, nao sao mais comunistas? Eles ja nao eram a mais de vinteanos! Voce acha que o Gorbatchev mudou de ideia assim, numestalar de dedos? Ou, ao contrario, ele sempre esteve conscientedo que fez?

Na verdade, a URSS foi implodida. Mas, como e que voce faz

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isso? Voce vai, gradativamente, colocando gente sua la dentro. Eisso ja estava dentro do plano. O processo inteiro de desmantela-mento da URSS foi totalmente conduzido pelos americanos. Comisso, os americanos estao comecando agora o maior imperialismoque ja se viu na historia. Vejam que atualmente eles tem o unicogrande servico secreto que existe no mundo. O negocio dos Esta-dos Unidos e ter os maiores Exercito, Marinha, Aviacao e servicosecreto do mundo. O resto e conversa fiada. O Japao, por exem-plo, nao tem hoje Exercito para tomar Hong-Kong, entao nao haproblema eles terem dinheiro. Se for preciso, os americanos vaola e tomam o dinheiro. Nao ha perigo amarelo algum.

Nos Estados Unidos existe hoje as nocoes de imperio e nacao.O imperio e feito para governar o mundo, e tem que arcar com aresponsabilidade do mundo. Por outro lado, eles sao uma nacao,com um povo desigual, problemas internos, etc. Essas duas nocoesvivem em eterno conflito desde que o Estados Unidos existe. Oimperialismo americano comecou em 1820 com seu avanco sobreo extremo-oriente. Essa refrega que existe entre o Estados Uni-dos e o Japao e muito antiga, e foram os Estados Unidos quemcomecou. Vejam que os planos de imperialismo foram discutidosdurante cem anos. Nao e algo que simplesmente comecou na Pri-meira Guerra Mundial. E como se voce dissesse: a nacao nao quer,mas o imperio quer. Vejam que o imperio esta realizado hoje, comBush. Eu li uma nota na revista TIME, do secretario de assun-tos estrategicos, onde ele diz que a polıtica do Bill Clinton seraprosseguir a linha do Bush, de intervencoes americanas, apoiadona ONU. Essa e a maior descoberta dos ultimos tempos. E o im-perialismo que todos querem. A Guerra do Golfo e um exemplo.Bush esperou que todos pedissem pela intervencao armada dos Es-tados Unidos. A ultima vez que o mundo pediu pela intervencaodos Estados Unidos foi na Segunda Guerra Mundial, mesmo assimpor um motivo que parecia obvio para todos. Os Estados Unidos,

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ou tem um presidente que serve ao imperio, ou um que serve anacao. E sempre assim. Bush, por exemplo, e um novo Roosevelt,que projeta os Estados Unidos no mundo. No entanto, a nacao“queima” o Bush.

Tudo isso e em funcao da retorica. A retorica pega as alterna-tivas que estao a sua disposicao, das quais voce pode estar de umlado, ou pode estar do outro, ou voce pode estar em duvida, oupode estar neutro. So ha essas quatro alternativas. Dentro delase que a retorica ira trabalhar. Num julgamento, por exemplo, ouo sujeito e inocente, ou e culpado. Voce so tem essas duas al-ternativas. Voce pode, por exemplo, contestar a competencia dotribunal para julgar aquilo, ou entao voce questiona o fundamentodo proprio processo. Daı nao tem processo. Se voce chegou aformar um juri e porque o processo foi aceito, ja esta em anda-mento, e so tem essas alternativas. Entao, o negocio nao e optardentro do processo. E ver se voce aceita o processo ou nao. Todojuiz, quando recebe uma peticao, um processo, antes dele julgara materia, ele vai julgar se o processo e procedente ou nao. Domesmo modo, o leitor teria direito a esse julgamento preliminar.O julgamento, nao no conteudo da questao, mas a questao em si.Quem monta o conflito pode mais do que qualquer dos dois ladosdo conflito. Isto, por definicao.

Por isso que toda e qualquer reacao — sem excecao –, a qual-quer coisa lida na imprensa, se voce quer realmente passar paraum plano onde voce exerca a sua liberdade interior e real de jul-gamento, e nao apenas a liberdade formal, externa, voce tem quedar um passo atras. Voce deve se perguntar: sera que eu querome posicionar em face dessa questao? Muitas vezes a alternativae colocada em torno de coisas absurdas, e de escolhas que sao ine-xistentes, e portanto irrelevantes. Por exemplo, voce gosta maisdos sentimentos amorosos, ou da causa bioquımica que causa es-ses sentimentos? Voce escolhe a bola ou a esfera? E assim por

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diante.O mundo da retorica, da Polıtica, da Historia, da influencia hu-

mana sobre o homem, esse mundo e feito de adesoes e repulsas,qual seja, decisoes da vontade: a vontade pro, e a vontade con-tra. A decisao de como montar o quadro nao e tomada na esferada retorica. Ela requer uma visao maior do que a visao internado conflito. Assim, quem monta o conflito, nao o monta retorica-mente. E se voce quer entender realmente o que esta se passando,voce tem que transcender o quadro da opcao retorica e se colocaracima dela. Para se colocar acima, voce tem uma serie de pro-cedimentos dialeticos. Nos vamos ensinar isso mais tarde, mastambem tem as proprias recomendacoes do senso comum. Entreas quais, esta velha regra de que “pelos frutos os conhecereis”. Ouseja, o vencedor nao esta necessariamente entre os partidos queestavam em luta.

Por outro lado, hoje se sabe que existe o famoso geopolıticoCarl Ritter(?), que foi um dos grandes geografos da humanidade,e Ritter delineou para Alemanha um projeto de tres guerras mun-diais, nas quais ela perderia todas, e cada vez que perdesse, sairiamais rica. O plano de Ritter esta sendo cumprido a risca. A ter-ceira guerra planejada nao envolveria diretamente a Alemanha; setravava no Oriente Medio. Isto e um documento arquivado no Mu-seu de Berlim. Esta la, e so ler. Eu nao sei, de fato, ate que pontoesse trabalho do Ritter influenciou os fatos. Nao sei em que me-dida essa ideia pode ter sido causa de eventos. De qualquer modo,os grandes conflitos que se travam na Historia, os reais conflitos,nunca estao equacionados do jeito que parecem as guerras do dia.Por tras da guerra, existe uma outra guerra, que e a que sera efeti-vamente vencida e que voce so entende no fim. Voce ve isso porquem ganhou no fim. Isso e um criterio infalıvel, por isso mesmoque o estudo da Historia contemporanea, a do dia, e muito difıcil.Por isso mesmo e que eu fiquei chocado com a estoria do vesti-

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bular de Historia da Universidade de Campinas, que so fazia per-guntas sobre a Historia atual. Sobre esses eventos atuais nos naopodemos ter uma compreensao profunda, pelo fato de que eles naodesencadearam suas consequencias, entao nos nao sabemos quemesses acontecimentos sao. Voce precisaria esperar que o discursose complete para ver aonde quer chegar.

Eu so acredito numa Historia com um certo recuo de uns qua-renta, ou cinquenta anos, pelo menos. a Segunda Guerra Mun-dial, hoje, ja se pode ter uma certeza cientıfica do que se tratou,do que realmente estava em jogo. O que aconteceu depois dissoainda vai demorar muito tempo. Voce pode tentar articular a coisade alguma maneira e tomar uma posicao, mas sempre provisoria.Vejam, por exemplo, o filme JFK, sobre o assassinato do Ken-nedy, onde ao assistir o filme voce fica horrorizado porque o com-plexo industrial militar americano quer matar o jovem idealista,democratico, etc. Todos colocam aquilo nestes termos. Nao ha nomundo, ninguem que desaprove o Kennedy frontalmente. O fato eque ele tinha um projeto de acabar com a CIA. Suponha que ele ti-vesse acabado realmente. Desmonta-se a CIA: o que iria acontecerdepois? Iam montar uma CPI, pior do que a que montaram para oCollor. Iam acabar com o Kennedy. Seria pior do que morrer pre-maturamente. Ele seria totalmente enlameado em sua reputacao,e ter a sua acao historica totalmente apagada. Estas eram as ver-dadeiras alternativas: ou nos o matamos, fisicamente, ou nos omatamos, historicamente. Nao ha outra alternativa, tem que optarpor uma das duas. A terceira alternativa seria o suicıdio nacional,pois o paıs desmonta o se servico secreto e se mata. Desmon-tar o servico secreto e absolutamente impensavel. Quem estavarealmente interessado em matar o Kennedy nao era o complexoindustrial militar americano. Ele estava interessado, remotamente,porque ele seria prejudicado a longo prazo. Mas a curto prazo oprejuızo maior seria da CIA. O risco era imediato. O prejuızo para

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o complexo industrial militar era uma hipotese mais a longo prazo.A tese do filme esta correta, foi uma conspiracao e mataram o

sujeito. Ate aı tudo bem. No entanto, as causas remotas sao me-ramente conjecturais, e elas sao totalmente desnecessarias, porquese eu sou o diretor da CIA, e vao desmontar o meu departamento,tudo o que nos fizemos aqui para criar uma barragem contra o co-munismo vai ser colocado em perigo, e alem do mais nos vamosperder o nosso emprego, e o que nos iremos fazer? So sei fazeristo aqui. Entao eu tomo a iniciativa de matar o sujeito. O filmevai longe demais na especulacao das causas.

Uma coisa que realmente chama a atencao e que e a mais esqui-sita de todas e a seguinte: o famoso relatorio Warren, era de autoriade um sujeito quase esquerdista. Warren foi um sujeito que maisabriu a legislacao americana para todas as reformas, todas as aber-turas de direitos humanos, algumas ate estapafurdias. Entao, comoe que esse sujeito, de repente, se transforma num defensor do com-plexo industrial militar, e tenta ocultar a conspiracao em torno doassassinato? Um sujeito que durante setenta anos age num certosentido, nos esperamos que ele continue a agir da mesma forma.Eu acho que esse e mais misterio do que o proprio assassinato. Ecomo se, de repente, voce visse o Lula querendo impedir a todocusto a investigacao a respeito da corrupcao do Quercia. Nao seriaestranho? Ate o fim Warren dizia que o assassinato foi feito porum indivıduo isolado, e que nao havia conspiracao alguma. Issoe para voces verem que nao da para ter o quadro inteiro de umasituacao historica.

Eu acho que hoje em dia vale a pena estudar a Segunda GuerraMundial. As pessoas todas que estiveram la ja contaram a suahistoria, e e impossıvel supor uma conspiracao universal da men-tira, no qual todas as pessoas, de todos os lados, grandes e pe-quenas, todos escondem a verdade. Sempre alguem conta ahistoria verdadeira. Essa estoria de que a Inglaterra bombardeou a

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populacao civil em primeiro lugar, ela e abafada, mas um dia umsujeito conta a verdade, escreve um livro. Sempre a verdade acabaaparecendo, mesmo que a longo prazo. O entao Primeiro-MinistroChamberlain, que assinou o tratado de paz com os alemaes, re-conhecendo a invasao de parte da Tchecoslovaquia, na epoca foiconsiderado um “banana”. Hoje, se analisarmos bem, talvez nao ofosse realmente.

Eu sou contra qualquer conspiracao sinistra, conspiratoria, ma-quiavelica, feita pelo Mal, ao longo da Historia. Na verdade esimplesmente a fragilidade humana. As pessoas colocadas em al-tas posicoes tambem sao assim. Entao, nao precisa ninguem cons-pirar. A propria somatoria das varias burrices produz um resultadodesses. Ninguem pode dizer que esta isento disso. Podemos dizerque estamos isentos disso na medida em que voce nao tem a res-ponsabilidade polıtica, nao tem o poder, para se poder examinaras coisas mais ou menos de longe, com serenidade. Quando vocele uma notıcia dessas, nao se trata de voce ser contra a imprensa,porque eles estao fazendo o servico deles, que e a retorica, ou ojornalismo. Entao, eles agem como jornalistas, e voce como estu-dante de Filosofia. E o Dharma. E voce cumprir com o seu dever,que e intransferıvel, diferente do dever do outro. O Dharma delese tocar lenha na fogueira, e o seu nao e este, senao voce se queima.

Certamente, o sujeito que escreveu tudo isso, nao tera gastadomeses, ou anos, estudando o que voce esta estudando, que e adiferenca entre um discurso retorico e um discurso dialetico. Elenao tem sequer essa condicao de fazer essa distincao, mas vocetem. E voce quem tem a obrigacao de nao ser enganado, e nao elede parar de escrever retoricamente. Posicoes polemicas do tipo “Aimprensa e corrupta”, “conspiracao comunista”, nao e realmente onosso negocio, embora, as vezes, eu fale numa linguagem enfatica,que pareca estar jogando tomate, mas o intuito nao e esse. O in-tuito e puxar para cima e tentar ver as coisas de uma maneira seria,

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de modo que quando voce chega a tomar uma posicao, nao e maisuma opcao, mas e quase uma imposicao dos fatos.

Um ideal filosofico seria voce tomar todas as posicoes comoposicoes definitivas ditadas pela ordem real das coisas, e reduzirao mınimo as tomadas de posicao subjetivas. Voce nao defenderaque 2 + 2 = 4 pelos mesmos modos e pelas mesmas razoes do su-jeito que defende o Lula ou o Maluf. Voce pode defender ate maisserenamente, mas com uma certeza muito mais embasada. As ve-zes voce nem precisa defender, voce apenas diz que 2 + 2 = 4;se voce nao acredita, aja como 2 + 2 = 4. Voce nao precisapersuadir as pessoas. E a diferenca entre persuadir e convencer.Por que convencer nao e vencer? Suadir, quer dizer voce influen-ciar, voce empurrar. E o prefixo per, significa em volta. Quandovoce persuade, voce cerca o sujeito, voce o domina. Convencere vencer juntos. Os dois admitem a mesma coisa. Numa batalhadialetica nao ha vencedor. Os dois estao procurando a verdade.Portanto, na colaboracao dialetica nao interessa quem esta com atese certa, pois o que esta com a tese errada tambem esta ajudando.Sempre alguma tese vai estar errada, outra vai estar certa, ou umacombinacao das duas, ou a exclusao das duas. O que interessa e oresultado.

Na discussao dialetica, por exemplo, e importante que voce bus-que, para uma tese que voce nao aceita, tantos argumentos quantovoce busca para a tese que voce aceita. E preciso voce aprender adefender o contrario do que voce acredita, senao nao ira funcionar.A dialetica acontece fechando as alternativas, ate que sobra umaque nao tem saıda, e tem que ser por la, goste voce ou nao.

Na retorica e o contrario; o que interessa e voce puxar argu-mentos decisivos em favor da sua tese, e esconder o argumentocontrario. Se for possıvel nao chegar a discuti-los, melhor ainda.a nossa tese ja e pressuposta, nao como certa, porem como vence-dora e como ja aceita. Assim como, por exemplo, todos os candi-

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datos a um cargo eletivo, todos se declaram confiantes na vitoria,embora as pesquisas de opiniao lhe deem 3% dos votos. Eles secomportam como se ja estivessem eleitos. Isso faz parte do jogo.Aquele que conseguir representar o seu papel com suficiente fir-meza, talvez consiga persuadir os outros. Voce vota num sujeitoporque acha que ele ja ganhou. So que ele ganha justamente por-que voce votou nele. Voce faz o efeito parecer a causa.

Por outro lado, abaixo da persuasao retorica, voce ainda vaiencontrar procedimentos mais subterraneos ainda. Esse negociode programacao neurolinguıstica, sai fora do campo da persuasaoporque ela nada tem a ver com o assunto. Ela e a criacao de umadisposicao favoravel. Quando um sujeito fala uma coisa da qualvoce concorda, e expressa o seu sentimento ıntimo, voce se sentebem, nao e? Por exemplo, quando falo mal do seu inimigo; ouquando voce se divorcia, e eu dou a maior forca para a sua de-cisao, etc. Voce se sente bem e apoiado, mas por que? Porqueo interlocutor concorda com voce. Mas, e se houvesse um jeitode fazer voce ja se sentir bem antes, independentemente do que ointerlocutor vai falar? Mesmo que o que o interlocutor fale sejatotalmente diferente do que voce pensa, como voce ja se esta sesentindo bem, voce pensa que e a mesma coisa que ele disse. Porexemplo, se voce chega para um sujeito catolico e diz que JesusCristo nao e Deus. Ele jamais pode se sentir bem de ouvir isso, naoe? Ele so se sentira bem se voce confirmar a tese dele, criar umaharmonia entre os dois. Concordancia sao os coracoes que batemjuntos, e discordancia sao os coracoes que batem descompassada-mente, um em relacao ao outro. A concordancia cria um senti-mento agradavel. Sossega os coracoes. E se voce conseguisse ob-ter esse sossego independentemente do conteudo eidetico da teseser contraria ao que voce pensa? Voce aprovaria a tese contrariacomo se fosse sua, sem perceber que existe uma discordancia. Istoja nao e mais retorica, mas e sacanagem, e das grandes. E uma

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forma de hipnose. Ele concorda com o contrario do que ele pensaporque ele nao percebe que e o contrario. E como se uma pes-soa assinasse um contrato de aceitacao de um cartao de credito,acreditando que esse documento que ele esta assinando e uma re-cisao de contrato. E claro que depois ele pode perceber, mas aıpode ser tarde. Na hora que voce esta assinando aquilo, voce sesente como voce se sentiria caso estivesse fazendo exatamente oque voce quer. Voce pode, por exemplo, fazer um sujeito apanhare sentir que bateu.

Isto nao chega a ser uma persuasao retorica porque esta total-mente desligado de quaisquer opcoes conscientes. A retorica euma opcao consciente dentro de um quadro pre-determinado, quenem sempre e legitimo, mas voce conhece as opcoes. A diferencaentre a retorica e a programacao neurolinguıstica e que, na retoricavoce vota no Collor porque acredita que ele e o melhor, e naprogramacao neurolinguıstica voce vota no Collor acreditando queesta votando no Lula. Voce enxerga Lula onde esta escrito Collor.Isto baixa cada vez mais o grau de liberdade de consciencia. Naretorica existe uma liberdade externa; nao existe uma liberdade deconsciencia, mas uma liberdade de expressao. Voce dizer o quequiser, e uma coisa; voce ser capaz de pensar livremente, e outra.Dentro da retorica ainda se resguarda a liberdade de expressao,perdendo a liberdade de consciencia. No caso da programacaoneurolinguıstica, hipnose, propaganda subliminar, etc, o que secorta e a liberdade da propria consciencia. Voce enxerga errado.Parece uma persuasao retorica aumentada, mas e completamentediferente.

Entretanto, nao faz sentido nos estudarmos essas distincoes doHusserl, todo o discurso logico, se no dia-a-dia nos perdemos ouso dessas distincoes. Se voce conhecer bem as propriedades dosQuatro Discursos, voce conhece bem as razoes das suas adesoesou repulsas. Um efeito pratico que este curso devia ter seria este,

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mas isto nao depende de mim. Eu sou posso dar a teoria. O efeitopratico e voce duvidar, nao do que voce le, nao da revista, naose trata de voce desconfiar deles, mas desconfiar de voce mesmo.Voce achar que a imprensa toda e mentirosa nao te liberta da in-fluencia da imprensa, ao contrario, noventa por cento dos artigosja foram escritos na previsao, e na expectativa de serem lidos porpessoas que duvidam da imprensa, e que por isso mesmo ficarao,as vezes, um pouco desorientadas, sem saber se acreditam ou nao,nao sabe o que fazer perante as alternativas. Nao e tendo uma ati-tude de distanciamento em relacao aos orgaos de imprensa,ou aoconteudo do que esta sendo lido, que voce se libertara, mas vocetendo um distanciamento em relacao a sua reacao espontanea. Eatraves dela que eles te pegam. Por exemplo, quando voce entrano mato, para se prevenir contra picada de serpente voce nao poeuma mordaca na boca de cada serpente, mas voce poe uma botana sua perna. Ja pensaram que trabalho enorme seria voce ter quefiscalizar a revista Veja, Time, Isto E, Manchete, etc? Fiscalize so-mente a voce! Se voce estiver livre de voce, da sua propria reacaoretorico- emotiva num primeiro instante, voce estara livre de todoseles ao mesmo tempo, sem precisar pensar mal deles. Nao se tratade voce se defender de cada inimigo em particular, mas voce ze-lar pela sua seguranca em geral. O principal inimigo da liberdadede consciencia nao e externo absolutamente. Nao ha quem possa,desde fora, violar a sua liberdade de consciencia, a nao ser peloemprego da agressao fısica mais extrema. Mesmo assim ha quemresista a essas agressoes fısicas.

Entao, o seu inimigo e voce mesmo, e a sua vontade de aderira alguma coisa que voce gosta, de se sentir participante, e a von-tade de dar palpite, de ter e manifestar opiniao, vontade de exercera maldita da liberdade de expressao, em troca da perda da liber-dade de consciencia. E melhor voce ficar quieto, guardar a tuaopiniao para si, mas estar pensando livremente por dentro, do que

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voce abrir a boca, falar para as multidoes e ser ouvido, sem ter li-berdade de pensamento interno. Voce tem um liberdade aparente,mas perdeu a real.

O ideal da liberdade humana e consubstancial a propriadefinicao do ser humano. Se o ser humano nao e livre, entao ele eapenas um bicho. Um cachorro esta preso ao seu conjunto de re-flexos condicionados, nao porque alguem o condiciona, mas por-que ele e apenas um cachorro. Ou seja, voce so pode escraviza-lodesde fora, tomando como base a escravidao interna dele. O in-divıduo que estivesse fundamentalmente decidido a nao obedecerum tirano, e que julgasse que a sua liberdade vale mais do que avida, ele morre mas nao e escravizado.

Por isso que o proposito deste curso nao e propriamente defen-der contra a influencia, o falatorio da sociedade em torno, mascontra voce mesmo, de certo modo. Todos nos temos uma facefraca, e esta face deseja ser amada, deseja se sentir protegida, de-seja se sentir aceita, ela tem um monte de reivindicacoes afetivas,que no seu proprio nıvel sao legıtimas ate certo ponto. Porem,elas sao legıtimas quando elas buscam o atendimento real e con-creto. Por exemplo, se eu desejo ser amado, eu tenho que procuraruma pessoa que me ame. Para que eu preciso entrar num partidopolıtico? Para aderir a uma corrente de opiniao, para me sentiramado. Isto e um atendimento simbolico. E irreal, na verdade. Eunao vou receber o feedback. Se eu torco por um time, eu lhe ga-ranto que o time nao torce por mim. Eu me sento amado porque eusou um igual, mas eu estou sendo um pateta, porque estou amandosem ser amado.

As reivindicacoes afetivas devem ser atendidas no plano realdelas, que e o plano da interrelacao pessoal. O proprio desejode opinar e um desejo de atrair atencao para voce. Mas se vocequer atencao, por que voce nao busca atencao realmente? vocetem certeza de que quando esta opinando as pessoas estao pres-

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tando atencao? Ou voce e so mais um que esta dando opiniao? Osdesejos afetivos do homem devem ser atendidos da maneira maisdireta, simples e concreta. Desejo de carinho fısico deve ser aten-dido com carinho fısico; desejo de atencao deve ser atendido coma atencao de uma ou duas pessoas concretas, cujo olhar voce possaver. Nao a massa anonima que, de fato, nao presta a atencao emvoce concretamente, mas na imagem que ela fez de voce, que podeser bem diferente de voce. Sua mulher, seu pai, sua mae, seus fi-lhos, estes prestam atencao em voce, e daı voce fica satisfeito, enao quer mais atencao, a nao ser que voce tenha algo real a dizer.Nao e a questao de prestar atencao em voce, mas na coisa que estasendo dita.

E por estes desejos que o sujeito e pego e puxado, como sefosse por um cabestro, conduzido como se fosse o burro atras dacenoura. Tambem e assim que se jogam as pessoas umas contraas outras. Eu me lembro quando li pela primeira vez um livro deAstrologia, de Adolfo Weiss, a quadradura de Saturno com o Sol:pessoa cruel, vingativa e desumana. Entao, eu disse: “Ah! e porisso que eu tenho sofrido desse jeito!...” O que voce quer e umaexplicacao, e a primeira que vem , que lhe pareca convincente,voce aceita. Por exemplo, dentro do tema do racismo, o sujeito quee composto de varias racas, ele tem o direito de aderir a qualqueruma delas livremente, ou ele tem o direito de ficar de fora de todaselas, e exigir um tratamento diferenciado? Por que ele deveriaser carimbado como pertencente a essa ou aquela raca? Quemquer isso sao as duas racas, e nao ele. voce tem todo o direitode permanecer fora e acima do debate racial. Ou, entrar nele sequiser, sabendo que e uma opcao arbitraria. Voce nao pertencea uma raca, mas voce apenas decidiu pertencer a ela, como voceadere a uma nacionalidade.

Se esse proposito pratico-moral de atitude nao e atendido, osoutros nao serao. Nao existe moral geral. Moral de visa a conduta

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do indivıduo. So existe uma moral, que e a do indivıduo para coma sua propria consciencia. O resto nao existe. Nao tem sentidovoce tomar uma posicao quanto ao que voce acha que a sociedadeinteira deve fazer moralmente. A moral nao foi feita para isso. Elafoi feita para orientar a sua conduta. Voce e contra a pornografia?Afaste-se dela. Quanto ao seu filho pequeno, tenha autoridadesobre ele para mante-lo afastado dela. E quanto ao seu vizinho?Sobre ele voce nao tem poder nenhum.

Nada pode ser imoral em si mesmo. Tudo e relativo a quem fez,e por que fez. A pessoa que necessita, de certo modo, de viver umdelırio transsexual para ela reconquistar um pouquinho de sentidovital dentro de uma existencia puramente mecanica e tediosa queela leva, a pessoa tem o direito absoluto a isso. Nao se pode sercontra uma coisa dessas. Nao faz o menor sentido. O show daMadonna, um strip-tease porno, eu sou contra, e nao vou la, nemque me paguem, e acho que as pessoas deveriam ser educadas paraelas nunca precisarem de ir a esses shows. E so isso. Mas, dizerque esses shows sao imorais...

Voce pode ate proibir, por eles serem inconvenientes, pertur-barem a sociedade, mas nao por eles serem imorais. Nao existeimoralidade intrınseca, ate porque essa expressao e quase autocon-traditoria. So e intrinsecamente imoral aquilo que viola a naturezadas coisas, ou a natureza humana. Aquilo que reduz o homem aum bicho e intrinsecamente imoral. Aquilo que tira a sua liber-dade de pensamento, de consciencia, e intrinsecamente imoral. Apornografia se torna imoral a partir do instante onde ela adquiredireitos e status. Eu nao acho imoral um show pornografico, maseu acho horrivelmente imoral quando o sujeito, que e garoto deprograma, por exemplo, da entrevistas como se fosse um medico,um fonoaudiologo, ou filosofo, e todos acham que seja uma pro-fissao respeitavel. Isso se torna imoral porque viola a sua liberdadede julgamento, confunde os dados. Na hora que voce acha que o

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sujeito, ao alugar o corpo para atender a fantasia de alguem, aosquais, no fundo, ele detesta e despreza, tenha sua atividade clas-sificada como uma profissao como outra qualquer, voce apagou anocao de profissao. Isto nao e propriamente uma profissao, masuma outra coisa. Por exemplo, vamos supor que todas as pessoasse dispusessem a fazer o que fazem os garotos de programa nassuas respectivas camas, acabaria a profissao. Ela nao e uma pro-fissao porque ela nao requer nenhuma habilidade e nenhum conhe-cimento. Ela requer apenas uma capacidade orgastica, e as vezesnem isso. Nao tem sentido o sujeito ser pago para ele exercer umafuncao puramente organica. Levar isto a serio, e tornar isto imoral,e inverter a ordem do mundo. A base de todo e qualquer princıpiomoral e a liberdade humana, exercida por um indivıduo. Ou seja,ele tentar julgar livremente as coisas.

Eu tenho que conseguir pensar por cima dos meus medos, dosmeus desejos, dos meus olhos, e eu tenho um direito humano fun-damental, que e o direito a verdade objetiva. Isto e mais importantedo que o direito a expressao. E o tipo de moral que se dirige a cadaum, e voce com voce mesmo. Nao ha quem possa dizer para voce,de fora, para voce o que e moral, o que e imoral. E eu acreditoque exista uma especie de lei moral universal, mas ela so existepara quem a conhece, e o conhecimento dela somente se revelarana efetiva experiencia interior: verdade conhecida, verdade obe-decida. Esta moral se tornara obrigatoria para voce quando voce aenxergar. Antes disso voce e uma crianca.

Nos podemos te impedir de fazer certas coisas, nao porque se-jam imorais, mas sim porque nos incomoda. Neste caso, ja nao eMoral, e Direito, e jurıdico.

Para voces, a partir do momento em que esses conceitos saoadquiridos, comeca a se tornar uma especie de obrigacao progres-siva. Estar consciente disso, e jamais cair dentro dessas armadi-lhas. Claro que durante uns dez ou quinze anos voce podera cair,

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mas a pergunta e: quero esta liberdade interior ou nao? Esta li-berdade interior e a liberdade em relacao ao que os antigos cha-mavam de “as paixoes da alma”: medo, odio, desejo, preconceito,etc. Aos seus preconceitos, e nao aos dos outros. Um preconceitoe um conceito feito antes do conhecimento da coisa. voce nemouve o sujeito falar e voce ja o enquadra e fica contra. E terrıvelvoce viver preso a esse tipo de coisa.

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13 de fevereiro de 1993

Capıtulo IIDISCIPLINAS TEORETICASCOMO FUNDAMENTO DAS NORAMTIVAS13. A discussao em torno ao carater pratico da logica.Uma logica pratica e um imprescindıvel postulado de todas as

ciencias. Kant mesmo adepto, por outro lado, da ideia de umalogica pura, falou de uma logica aplicada.

A questao na verdade discutida em Kant diz respeito a se adefinicao da logica como uma arte toca ao seu carater essencial.O que se discute e se o ponto de vista pratico e o unico em quese funda o direito da logica a ser considerada uma disciplina ci-entıfica.

O essencial na concepcao de Kant nao consiste em negar ocarater pratico da logica, mas em considerar possıvel a logicacomo ciencia plenamente autonoma, nova e puramente teoretica,com carater de disciplina a priori e puramente demonstrativa.

Segundo a forma predominante da teoria contraria (a de Kant), areducao da logica ao seu conteudo teoretico conduz a proposicoespsicologicas e eventualmente gramaticais, isto e, a pequenos seto-res de ciencias distintas e empıricas.

Vamos pegar um silogismo, por exemplo, “todo homem e mor-tal; Socrates e homem; logo, Socrates e mortal”, e voces vao tentar

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averiguar qual e o princıpio do tipo logico, mas sobretudo do tipopsicologico, sobre o qual voce acredita na conclusao.

Seja o silogismo generico: “Todo A e B; todo B e C; logo Ae C”. Nos estamos acostumados a raciocinar assim, logicamente,nao e? O que nos estamos querendo saber e se existe algum fun-damento psicologico daquele resultado; se esse fundamento psi-cologico tem alguma relacao com a estrutura logica do raciocınio.Ou seja, nos estamos querendo ter a crenca nesse silogismo doponto de vista logico e do ponto de vista psicologico. Entao vocetem que perguntar: por que eu acredito nessa conclusao?

O que me impele a crer, e se a coisa que me impele a crer nisso eigual, ou e a mesma coisa que o nexo logico entre o todo e a parte?Mas, o fundamento logico dessa crenca ainda nao foi dado. Porem,e esse fundamento logico, para nos acreditarmos nele? Qual e afrequencia de eventos psicologicos que se passam dentro de voceque te levam a admitir que aquilo que se passam com o todo, devese passar com a parte? Nao quero saber o fundamento, mas qual ea causa disso.

Uma primeira hipotese seria porque voce precisa acreditar, por-que voce nao tem escapatoria. Voce e levado por uma necessidadeexterna. Porem, voce diz que se nao fosse assim voce ficaria louco.Mas o que te impede de ficar louco? Por que voce nao pode ficarlouco? E por que voce e obrigado a reconhecer a necessidade ex-terna? Por que voce nao pode negar? Voce pode efetivamentenegar, ou nao pode? Voce nunca fez nada que estivesse acima datua possibilidade real? Por exemplo, voce nunca comprou algoque voce nao pudesse pagar? Ou nunca tentou pegar um objetopesado, que tua forca nao aguentasse? Voce nunca negou a tuanecessidade externa?

Se a sua crenca numa consequencia logica fosse derivada daconstatacao de uma necessidade externa, essa crenca jamais se-ria necessaria, mas seria contingente. Voce poderia acreditar ou

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nao. O elo da necessidade logica nao poderia surgir da sua mentepela experiencia que voce tem de uma necessidade externa. Emgeral, voce entende a necessidade externa porque voce ja acre-dita na necessidade logica. Um indivıduo e levado a crer na con-sequencia logica pela constatacao de uma necessidade externa;subentende-se de uma necessidade repetida, de uma experienciarepetida. Porem, nada te impede de proclamar como possıvelaquilo que a necessidade externa declara como impossıvel.

A esta objecao voce poderia dizer: eu realmente posso violara necessidade externa, mas nao quero faze-la porque eu queropreservar a minha integridade fısica, a integridade do organismo.Isto significa que eu tenho uma necessidade logica impelido porum senso de autoconservacao. Toda ideia que nos temos sobrequalquer conversa, sempre corresponde as teorias que ja estaoem circulacao. Mas, ainda poderıamos perguntar: para que vocetem que manter a sua integridade? Nao ha pessoas que se auto-destroem?

Entao voce ve que a conservacao da integridade nao e uma ne-cessidade. Isto, em si, nao e uma razao suficiente para voce ad-mitir a consequencia logica. Me parece que devem haver razoesmais fortes. Vamos ver primeiro as razoes de ordem psicologicapara ver se por ela nos chegamos a alguma coisa.

Se voce dissesse que voce acredita na consequencia logica pelaconstatacao de uma necessidade externa, e que por outro lado voceadmite a necessidade externa por um senso de auto-conservacao,veja onde voce chegaria: o senso de auto- conservacao esta pre-sente em umas pessoas e ausente em outras. Isto significa que o re-conhecimento de uma necessidade externa estaria na dependenciade uma contingencia pessoal. Em ultima analise, voce acredita-ria na logica dependendo da contingencia pessoal. Significa quedepende de uma mera casualidade. Por exemplo, uma criancapequena tem um senso de auto-conservacao extremamente defi-

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ciente. As criancas vivem fazendo coisas perigosas. Elas nao temmedo das coisas que deveriam ter. Ao passo que, no caso de umanimal, como disse Sao Tomas de Aquino, “a ovelha que jamaisviu um lobo, a primeira vez que ve, ela ja sabe que ele nao e coisaboa”. Num animal voce admitiria um instinto de auto-conservacaocomo uma coisa que funciona quase automaticamente. Mas, numser humano, nao se trata de um instinto de auto-conservacao, esim da transmissao de um ato cultural, de uma norma de auto-conservacao, de uma especie de dever de auto-conservacao. Istosignifica que voce reprime na crianca nao so o que ela faz contraos outros, mas tambem pelo que ela faz contra si mesma. Paraque a auto-conservacao funcione e preciso que alguem ensineesse negocio. Por exemplo, o mais elementar instinto de auto-conservacao nos impeliria a manter o nosso corpo limpo. Paraa crianca tomar banho, na maior parte dos casos, voce tem queobriga-la a tomar banho. As vezes, temos que forcar a crianca acomer!

Se o fundamento da crenca na consequencia logica residisseno reconhecimento da necessidade externa, ou experiencia repe-tida, e se a validade dessa experiencia, por sua vez, dependesse deuma mera contingencia. Nao pode ser por isso que voce acreditana consequencia logica. Deve ser por outra coisa. Se o propriosenso de auto-conservacao pode ser inculcado no ser humano pelaeducacao, sob a forma de um desejo de auto-conservacao, quemsabe a crenca na consequencia logica tambem nao e inculcada,como uma especie de desejo que voce tem? Seria uma especiede condicionamento, para criar uma especie de senso de dever, deobrigacao. Seria uma outra hipotese.

Entao, a primeira hipotese e de que as categorias logicas surgemde experiencias repetidas. Esta hipotese pode tambem ser refutadada seguinte maneira: se voce nao tem ideia do princıpio logico,como e que voce sabe que duas experiencias iguais, sao iguais?

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Elas deverao se repetir quantas vezes? Ou voce tem o senso daidentidade, previamente a experiencia, ou entao a experiencia re-petida nao lhe parecera repetida.

A segunda hipotese seria a do biologismo — a tese do JeanPiaget. O senso de integridade logica, no fundo, e o mesmo sensode integridade do organismo.

O que esses dois sensos tem algo a ver um com o outro? Masnao que o senso de integridade fısica, de auto- conservacao, possaservir de fundamento logico, ou psicologico, da crenca na logica.Que ele nao e um princıpio logico, e mais do que evidente, porquea propria ideia de auto-conservacao, no momento que voce falaauto, ja supoe a relacao todo-parte, porque eu sou um todo quedeseja conservar a integridade das minhas partes. Nao quero, porexemplo, perder as minhas memorias, os meus dedos, minhas per-nas, etc. Por outro lado, se a auto-conservacao nao pode servir defundamento logico da crenca logica, tambem nao pode ser o seufundamento psicologico, pelo fato de que nesse caso o reconheci-mento de uma necessidade dependeria de uma mera contingencia.

A terceira hipotese seria sociologica. Nao ha propriamente uminstinto de auto-conservacao que sirva de base a crenca na logica,mas existe a transmissao cultural de um senso de obrigacao deauto-conservacao. Um condicionamento que ensina o indivıduo ase defender. e assim esse ensinamento inculca na mente esse sensode auto-conservacao, e atraves dele o indivıduo percebe a necessi-dade externa, e ao admitir isso acaba admitindo a crenca na logica.Para que a heranca cultural pudesse fundamentar, ou ser causa, dosenso de integridade, e este, por sua vez, ser a causa da percepcaoda necessidade externa, e esta ser a causa na crenca da logica, paraque toda essa cadeia fosse valida, e preciso que cada um dos seusmembros anteriores fosse valido. Se o senso de integridade nao eo fundamento na crenca na logica, entao pouco importa de ondevem esse senso. Se ele vem de um instinto, ou da sociedade, em

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qualquer desses casos, ele nao poderia ser, por si mesmo, o funda-mento da crenca na logica. Entao, a teoria sociologica so complicaum pouco mais. Ela so acrescenta um elo causal a mais.

Vamos tentar uma outra hipotese: as estruturas logicas estariamna propria linguagem. Entao, quando voce aprende a falar, voceaprende as estruturas logicas junto. E como voce nao consegue fa-lar sem estrutura logica... O que eu quero saber e, se voce comecoua pensar logicamente porque aprendeu a lıngua, ou se aprendeu alıngua porque tinha um pensamento logico? Se eu aprendi a lin-guagem, me ensinaram a falar, entao as frases tem uma estruturalogica (sujeito, predicado ,verbo, etc), e para poder continuar fa-lando eu tenho que admitir a consequencialidade logica. Entao,o comportamento logico ja existe anteriormente ao aprendizadoda linguagem. Se voce tem capacidade de fazer uma coisa caberdentro da outra, voce tem a nocao de todo e parte. Nocao de ho-meogeneo: em um prato de sopa, a primeira colherada e de sopa,a segunda nao pode ser de suco de laranja. A propria crianca sabedisso. Se ela nao gosta de sopa, e voce da a primeira colherada,ela nao quer mais o resto do prato. E como isto e a propria logica,a teoria linguıstica nao pode ser tambem um fundamento a logica.

Uma outra hipotese: os princıpios logicos entraram na suacabeca na hora que voce aprendeu a significacao. E a experienciada Marie Hotin(?), que era cega, surda e muda, e aprendeu a se co-municar aos 29 anos de idade. Ate la, vivia como um bicho: tinhaque ser alimentada, lavada, etc, e nao tinha nenhuma comunicacaocom ninguem. Ate que um dia, a freira que tomava conta dela,tirou a faca da mao da Marie, e esta ficou muito agitada, comecoua se debater por causa disso. Daı a freira fez um sinal na mao delaesfregando no dorso da mao da menina, e a Marie fez o mesmosinal na mao da freira, e a freira entregou a faca. Entao, toda a vezque ela queria a faca ela fazia o mesmo sinal. Este foi o primeirosigno que ela aprendeu. Foi o primeiro ato psicologico dela que

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se referia a um objeto externo. Apesar dela sentir os objetos, naohavia uma conexao entre a vida interior dela e estes objetos que acercavam. Esta conexao foi estabelecida por este signo.

Mas, voltando a questao, esta hipotese tambem pode ser refu-tada porque ela nao passa de uma nova forma da hipotese anterior— a linguıstica –, porque as significacoes pressupoem uma logica.

Bom, a resposta para essa questao e: humanamente falando,nao ha nenhum motivo para o sujeito acreditar na logica! Pelomenos ate agora nao parece haver motivo para acreditar. Se nao hanenhum motivo para acreditar, a crenca na logica nao e necessaria,mas contingente. Pode acontecer, como pode nao acontecer. Podeacontecer de que 0,0000...000001% da populacao nao acredite nalogica. Mas, a maioria acredita.

Por outro lado, por que essa maioria acredita? E por que Deusquis? Mesmo a hipotese teologica pode ser descartada. Se e umavontade de Deus, entao nao e uma vontade constante e absoluta,porque Ele deixa algumas pessoas nao acreditarem. Ou seja, nemDeus nos tira dessa.

Ha muitas crencas que podem ser explicadas; por exemplo, porque voce acredita que o Sol sai todo dia? Porque, de fato, ele saitodo dia ha muito tempo, e nada indica que ele va mudar este ciclo.Por que voce acredita que se um cachorro vier te morder, o melhore voce dar o fora? Porque o seu desejo de auto-conservacao querser atendido. Essas mesmas causas poderiam fundamentar ou-tras crencas, particulares, mas a crenca na validade dos princıpioslogicos, em geral, elas nao poderiam fundamentar. Por outro lado,todas essas outras crencas, de educacao, auto-conservacao, neces-sidade externa, etc, que poderiam servir de fundamento, tambemdependem da crenca nos princıpios logicos.

Por que o homem acredita, confia, em geral? Essa questaopoderia ser respondida sem a referencia a questao dos princıpioslogicos? Sera que a hierarquia de genero e especie nao e um pouco

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enganosa? A crenca dos princıpios logicos nao e uma especie decrenca; ela e uma crenca diferente de todas as outras, porque elaso serve para produzir mais(?). Nao sei por que o homem cre; sosei que pelos princıpios logicos ele nao ia acreditar nisso, nem dei-xaria de acreditar. O princıpio da negacao e da afirmacao ja refutaos princıpios logicos. Portanto, a pergunta sobre a crenca jamaispoderia ser respondida sem isto aqui.

A classificacao gramatical nos ilude porque nos usamos amesma palavra, por exemplo, crenca no princıpio logico, e crencaem contos de carochinha, crenca que o cheque que voce recebeutem fundos; parece que sao especies de crencas, mas acontece quee apenas a mesma palavra. Crenca no princıpio logico e umacoisa, e crenca em contos da carochinha e outra. Inclusive, por-que a propria logica e um dos motivos de crenca. Voce acreditanuma coisa porque lhe parece logico, nao e? Entao, e como se elafosse uma crenca que serve de unico fundamento a todas as outrascrencas — e impossıvel. Dentre os varios fundamentos da possibi-lidade da crenca, um deles e a crenca na aceitacao dos princıpioslogicos. Mas, se nos perguntamos para que o homem aceita osprincıpios logicos, nos vemos que nao tem explicacao humana, oumesmo divina. Sera que isso ja nao e um resultado satisfatorio?Por que isto nos inquieta?

O caso e que a investigacao sobre a causa da aceitacao dosprincıpios logicos nao leva a parte alguma. Portanto, estainvestigacao e non-sense. A pergunta nao faz sentido. Precisamosrejeitar a questao. Nao e isso que nos chegamos no fim? Nao hacausa. O ser humano acredita, quando quer acreditar. Uns acre-ditam, outros nao acreditam; uns acreditam de vez em quando,outros acreditam sempre; uns acreditam profundamente, outrosacreditam superficialmente — nao e assim? Na media, nos acre-ditamos, e com uma certa regularidade. Entao, nao ha uma causa,mas se voce deixasse de acreditar nisso, voce se sentiria um idiota

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perfeito.Por outro lado, se tudo o que o homem faz tivesse uma causa que

transcende a ele, ele jamais, por si mesmo, seria a causa de nada.Por exemplo, voce tem uma causa, que determina uma outra causa,que determina uma outra causa, etc, e no meio dessa corrente vocetem um ente, que e um elo dessa corrente, e que tambem determinaoutra causa, e assim por diante. Ora, se tudo o que esta para diantedesse ente provem dele e causa dele, e se essas causas fossemconsequencia de uma causa anterior a esse ser, isso e a mesmacoisa que dizer que esse ente nao faz nada, ele e apenas um elologico, um nexo logico entre outras causas.

Entao, esse ente nao e um ser causal, ele nada causa; so e cau-sado. Entao, ele tem menos poder que, por exemplo, uma parede,porque ela tem uma acao que lhe e propria, por exemplo, a acaode resistir, pois ela se mantem no lugar. Mas, esse ser, supondoque ele nao causasse nada, e fosse apenas um elo, ele seria um elologico. Seria preciso que ele fosse totalmente destituıdo de quais-quer tracos, propriedades, e portanto nao e possıvel que tudo o queo homem faz tem uma causa fora dele. Alias, isso nao e possıvelcom relacao a nenhum ser realmente existente. Existir e poder sercausa de alguma coisa.

Voltando a pergunta anterior: quando nos chegamos ao resul-tado de que a crenca nos princıpios logicos nao tem causa, porque todos ficaram perplexos? E aquela piada: um sujeito com-prou cinco burros numa feira. No meio do caminho, de volta paracasa, ele ficou cansado e montou em um dos burros. Quando elechegou em casa,chamou a mulher para ver os burros que ele ha-via comprado. Ainda montado em um dos burros, ele contou cadaum deles e, surpreso, disse: “Eu comprei cinco burros, mas aquiso tem quatro!”. E a mulher disse: “Engracado, eu estou vendoseis!”. A sensacao de vazio ante uma coisa que nao tem causa,voce sente a mesma emocao do sujeito que diz que comprou qua-

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tro burros. Entao, o unico ser que determina que voce acredita emprincıpios logicos e voce mesmo. Nada impede isso.

[ Houve o intervalo da aula e parte dos comentarios que o Olavofez nao foi gravado porque esqueceram o gravador desligado ]

Nesse caso, nos terıamos um elo de necessidade entre o homeme a crenca na consequencia logica. E por isso nos poderıamosobrigar ao homem a crer na consequencia logica. Nesse caso,que diferenca haveria entre a sensacao da persuasao racional e acoercao?

Aı eu estou argumentando, por um lado: primeiro porque naotem causa; em segundo lugar, isto nao e possıvel porque tudo oque acontece com um ser tem uma causa fora dele, e e necessarioque ele seja causa de alguma coisa tambem. Ou seja, nem todos osseres, sob todos os aspectos, podem estar encaixados na lei de umdeterminismo universal, que os abrange completamente. Porque,se acontecesse isso, todos os seres seriam inocuos, e somente ascausas operariam sobre eles. Nao existiriam seres, mas somentecausas.

O primeiro argumento contra o determinismo universal seriaeste: um determinismo tem que determinar seres. As causas temque atuar sobre seres que efetivamente existem. Porem, se essesseres, por si mesmos, se reduzem as causas que atuam sobre eles,entao ele nao existem funcionalmente, eles sao nadas. E um serincapaz de qualquer acao sobre qualquer outro ser, tambem naopode sofrer a acao do nada.

Esta e a segunda linha de argumento. Ou seja, se de um ladonao encontramos nenhuma causa para que o homem creia nosprincıpios logicos, e de outro lado, todo ser tem que ser capazde ser causa de alguma coisa, entao talvez seja o homem mesmo acausa. Talvez seja um ato dele, nao causado por algo externo.

Em favor desta hipotese, ainda restam varios argumentos, dentreos quais destaco o seguinte: se nos soubessemos qual a causa da

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crenca no princıpio logico, nos, produzindo a causa, poderıamosgerar o efeito mediante um elo de necessidade. Dada a causa,oefeito se seguiria imediatamente. Ou seja, a persuasao logica setornaria forcosa. Se assim fosse, que diferenca haveria entre aargumentacao logica e a coercao fısica? No entanto, quando voceadere a uma argumentacao racional, voce adere livremente, por-que voce aceitou os princıpios logicos dos elos de consequencia. Evoce quem aceita. Voce nao e forcado de fora. Tanto que, mesmodiante de uma argumentacao logica, voce pode ficar recalcitrante.As vezes alguem te da uma demonstracao mais completa e voce,mesmo assim, ainda nao quer aquela conclusao. Mesmo enten-dendo a conclusao voce ainda pode nao querer. Por exemplo, ocomprador conpıscuo; ele compra mais do que pode pagar, em-bora a soma do seu extrato bancario demonstre que nao da paraele fazer isso. Ele esta entendendo perfeitamente, no entanto, elenega. Ou seja, toda e qualquer argumentacao racional e negavelpela vontade. Se a argumentacao racional fosse acompanhada deuma especie de forcosidade fısica causal, isso nao aconteceria ja-mais.

Entretanto, isso seria mais absurdo ainda, porque se voce podeforcar o indivıduo, para que voce vai argumentar? Entao, a propriaexistencia da argumentacao racional mostra que a sua aceitacaonao e forcosa realmente. Ela pode ser forcosa, idealmente, no sen-tido de que nao ha uma outra. Mas, mesmo nesse caso, o indivıduopode inventar uma outra, pode supor. alias, o que me obriga a op-tar pelo resultado certo? Por que eu nao posso optar pelo resultadoerrado? Voce pode, e de fato muitas vezes na vida e isso que acon-tece. Dito de outro modo, tudo leva a crer que a aceitacao dosprincıpios logicos, e portanto da consequencia logica, e um ato li-vre do ser humano. E um ato contingente, onde ele pode ou naofazer.

Mas ainda ha uma pergunta, meio maligna: por que que a

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ausencia de causa lhe da a impressao de vazio, se quem esta nomeio desse vazio e voce mesmo? Nao e um pouco o raciocıniodos cinco burros? Ou seja, voce nao esta vendo o que voce naoesta fazendo.

Uma concepcao do mundo que comecasse por abolir darepresentacao do mundo a pessoa daquele que esta construindoessa mesma representacao, seria manifestamente falsa. E comoescrever uma estoria que na sua conclusao negasse que a estoriafoi escrita. E uma especie de curto-circuito.

Por que as pessoas, em geral, se espantam ante a necessidadeimperiosa de reconhecer a existencia do sujeito? Por que que umavisao do mundo lhe pareceria mais real se ela comecasse por abolira sua pessoa?

Existe uma confusao entre dois tipos de veracidade, ou de cre-dibilidade, que e o seguinte: nos procuramos o conhecimento ob-jetivo, e dizemos que ele e objetivo se a todas as pessoas as quaisesse conhecimento for mostrado, o verem da mesma maneira, e ad-mitirem a veracidade desse conhecimento. Portanto, esse conhe-cimento nao depende da minha subjetividade. Ele nao e causadopela minha subjetividade. E a ideia de uma objetividade, comoconhecimento, que nao e causado pela forma do ser singular.

A verdade deve aparecer intersubjetivamente e pode ser com-partilhada por varios sujeitos. Porem, uma coisa e voce dizer queo conhecimento objetivo e aquele que independe do sujeito, nessesentido, e outra coisa e voce dizer que so e conhecimento obje-tivo aquele que nao tem sujeito nenhum. O conhecimento objetivoe aquele que independe deste ou daquele indivıduo em particu-lar, mas nao de todo e qualquer sujeito. Senao, voce oferece ummundo que e como ele seria visto por um sujeito inexistente, e naoapenas como no outro caso, por um sujeito indeterminado. Na ver-dade, nao seria concebıvel de maneira alguma, uma verdade intei-ramente objetiva, sem o sujeito. Voce tem que admitir, ao menos,

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um sujeito potencial. Por exemplo, vamos supor que existe ummundo onde nao ha nenhum ser consciente, de especie alguma,capaz de captar nada. Em primeiro lugar, um mundo assim, ja-mais existiu porque o mundo e uma colecao de seres articuladosentre si, que agem uns sobre os outros, e que, nesse sentido, saosubjetivos. Por exemplo, a chuva que cai sobre o solo esta agindosobre o solo.

Alguma forma de troca, de cambio, de interpretacao, troca deinformacoes, entre sujeitos sempre existiu,porque senao, nao exis-tiria o mundo. Nao e apenas uma colecao de seres, mas umacolecao de acontecimentos. Ora, se existe acontecimento e porqueum ser age sobre o outro, e de uma maneira qualquer, um participado outro. O conhecimento nao e, senao, uma das muitas maneirasde participacao. Portanto, se existe mundo, existe sujeito e objeto.Existem, nesse sentido, um princıpio de veracidade, na medidaonde ha sujeitos e ha objetos — nao necessariamente sujeitos hu-manos conscientes, isso nao importa. Por exemplo, mesmo entreos micro-organismos, eles podem se equivocar nas suas relacoescom os outros. Existe o princıpio de veracidade e erro. Todo equalquer conhecimento do tipo objetivo pode ser objetivo no sen-tido de ser independente de um sujeito determinado, ou de umgrupo determinado de sujeitos, mas nao de ser independente dequalquer sujeito. Nos podemos conceber uma verdade absolutaque e independente de qualquer sujeito, no sentido de que ele eindependente de quaisquer sujeitos individuais.

Quando voce fala em verdade universal absoluta, o sujeito estasempre supondo um sujeito universal absoluto que conhece essaverdade. Mesmo nesse caso, seria um sujeito. Um mundo semsujeito nao seria nem verdadeiro nem falso, porque o objeto emsi mesmo nao e verdadeiro nem falso. Ele e uma potencia de ve-racidade, e uma potencia de falsidade. Todo objeto tem um con-junto de aparencias que ele emite para os outros. Algumas dessas

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aparencias sao informacoes reais, e outras sao informacoes falsas.A possibilidade de ludibriar o outro, isto esta contido em qualquersujeito. Mesmo, por exemplo, no mundo mineral. Uma pedratem uma determinada forma, e esta forma emite informacoes so-bre a pedra. Entao, todos os seres estao continuamente emitindoinformacoes sobre todos os seres, para todos os seres. Entao, umacerta relacao que veio com o objeto, sempre existe, onde quer queexista um mundo. A nao ser que fosse um mundo de objetos seminteracao, mas daı nao e um mundo.

O bicho que come uma folha e porque esta folha se parece comuma outra folha que ele esta habituado a comer, e ele morre enve-nenado. Nao acontece? Sim. Isto e um exemplo de conhecimentoequivocado. Ali existe um sujeito, uma interacao, e uma possibi-lidade de verdade e erro. Vejam, por exemplo, o mimetismo. Osseres se enganam uns aos outros. O jogo da verdade e falsidade,informacao e contra-informacao, e um mecanismo basico da natu-reza.

Entao, a ideia de um mundo totalmente objetivo, sem sujeito, euma ideia auto-contraditoria. So existe objeto em funcao de umsujeito. Objeto tem que ser ob-jecto, aquele que esta jogado nafrente; mas jogado na frente de alguma coisa. Este encontro, estainteracao, esta troca de informacoes, e isto que constitui o mundo.Realmente, nos nao podemos dizer que o mundo e apenas umacolecao de objetos, mas de acontecimentos tambem, porque senao acontece nada ali, ele nao existe. O acontecimento pressupoeum sujeito, causas em operacao, efeitos que se seguem, portanto,interacao. E onde tem interacao, voce tem sujeito e objeto, seja daacao, seja do conhecimento.

Ora, a acao nao pode ser equivocada tambem? A acao nao podevisar um objeto erroneo, como no caso do mimetismo? Ate asplantas podem se equivocar. Uma planta nao pode cometer umerro cognitivo? Ela nao pode receber uma informacao falsa do

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ambiente? O girassol, por exemplo, segue o movimento do Sol,mas se eu colocar uma luz muito forte perto dela, ela se enga-nara e seguira a luz. No reino mineral existem formacoes mineraismorbidas erroneas. Elas sao resultado de informacoes erroneas daTerra. Sao terras defeituosas, mal-formadas. Por que elas forammal-formadas? Porque elas receberam informacoes externas, quesao tambem informacoes. Algo que se mete na formacao internasdelas.

A teoria da informacao em Biologia, e um das coisas mais lindasque foram descobertas no seculo XX. E um dos grandes avancosda Ciencia e a teoria teologica da informacao. Ela nos mostra ouniverso inteiro como composto de seres que estao em constantetroca de informacoes. Portanto, sempre existe um sujeito e umobjeto atuante, seja na esfera da acao propriamente dita, seja naesfera puramente cognitiva, que e uma acao retida(?), que e umapossibilidade de acao que nao se realiza em parte alguma. E umaacao potencial. Isto significa que todos os seres agem de algumamaneira. Um ser que nao tivesse nenhuma possibilidade de agir,nem mesmo passivamente, sobre um outro (um ser que nao tivessepeso, por exemplo), ou seja, um ser que fosse totalmente destituıdoda possibilidade de acao sobre um terceiro, tambem nao poderiareceber a acao do primeiro. E possıvel agir sobre um objeto porqueele e alguma coisa, mas se ele e alguma coisa e porque ele emitealguma informacao e assim ele ja esta agindo. Portanto, todo ser,por mais insignificante que seja, ele e um ser causal.

Vejam a famosa definicao de Vronsk(?), filosofo polones, “Sere ter a potencia de engendrar efeitos”, e portanto sofrer efeitostambem. Isto e uma especie de complemento da Biologia aris-totelica, e alias Aristoteles so nao chegou a essa conclusao porquemorreu antes, porque se pensasse um pouco mais ele ia ter quechegar a isso aı. Isto significa que nenhum ser pode ser totalmenteexplicado pelas causas que atuam sobre ele, porque as causas pres-

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supoem o ser dele. Aquele que nao existe nao pode sofrer a acaode causa alguma. Entao o que existe de estranho que o propriohomem seja a causa de alguma coisa, sem que nada cause, atravesdele, essa alguma coisa? Dito de outro modo, se ate mesmo umfundo de liberdade metafısica voce encontra numa pedra, por quenao deveria encontrar algum tambem no homem? Porque existeessa expectativa de determinismo universal, da parte de pessoasque, no entanto, conscientemente, nao acreditam no determinismouniversal.

Se eu perguntar para voces se acreditam no determinismo uni-versal, na absoluta fatalidade, que tudo esta escrito e pre- deter-minado, nos seus mınimos detalhes, ou seja, existe a objetividadeabsoluta, onde nenhum ser e causa de nada, e todos so sofremimpacto, voces dirao que nao acreditam nisso. Mas, se nao acredi-tam nisso,por que tiveram aquele sentimento de vazio na hora quedescobriram que a crenca na logica nao tem causa? Nao e contra-ditorio? Isto significa que voce nao acredita conscientemente nodeterminismo, mas so aceita como conhecimento objetivo o quefor totalmente determinıstico. Quando nos temos crencas absolu-tamente incompatıveis, ou seja, a mente ainda nao esta formada deuma maneira lımpida, de maneira que ela possa arcar com todasas consequencias de suas crencas, entao, uma especie de determi-nismo implıcito esta presente em todo nossa sociedade. Porque ea imagem que se tem de que se funciona assim.

A Ciencia esta encarregada de nos dizer as leis subjetivas quepresidem o acontecer. Portanto, esta encarregada de nos descre-ver o determinismo. A propria Ciencia efetivamente ja desistiude fazer isso ha muito tempo. a propria Ciencia nao acredita emdeterminismo. Entao, a imagem publica que se tem dela e deuma especie de retrato do determinismo universal, e so acredita-mos numa coisa, encontrando uma explicacao cientıfica, quandovemos que ela e totalmente independente de qualquer arbıtrio ou

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de qualquer liberdade. Embora, por outro lado, a propria Ciencianegue a possibilidade de um determinismo deste tipo. A propriaCiencia toda hora tem que fazer um acordo entre determinismo eacaso, acaso e necessidade, acaso e probabilismo. A ideia de umdeterminismo universal, alem de ser absurda em si mesma, ela etotalmente anti-humana. Ela e contra a liberdade de consciencia,contra a liberdade humana, ou seja, o homem nada cria, nao e umcentro criador, mas apenas a vıtima inerte de tudo o que se passaem torno. Ninguem gosta de pensar nisso, a respeito de si mesmo,nao e?

Se as pessoas nao gostam disso, ao contrario, na hora delas te-rem uma sensacao de vazio ao ser dito que nao ha causa, elas de-veriam ficar contentes. Por que existe uma sensacao de incomodi-dade? Essa sensacao, nao e sem razao; ha um fundamento. Essasensacao de incomodidade e porque na hora que voce percebe quevoce e a causa, voce percebe que a responsabilidade e inteiramentesua, que nao ha uma forca externa, nem Deus, para dizer para voceo que voce deve fazer. Daı essa sensacao de vazio. Esse vazio eum centro onde esta voce mesmo. Voce esta totalmente livre paraacreditar nisso ou naquilo, ou nao acreditar. Apenas voce tem ohabito de crer que voce cre. Nao quer dizer que voce creia sem-pre, mas em geral voce cre, voce acredita que cre.

Isto significa que crenca nos princıpios logicos nao e para nos,uma necessidade externa, e nao e nem sequer uma convenienciapratica quando voce a domina na sua totalidade, e daı voce sabeemprega-la, e daı ela serve. Uma logica na qual voce cre mas naoa domina, aquilo sera um mal. No intuito de acertar, de pensar co-erentemente, voce pensa errado, e e aı que voce se engana. Entao,o que tem isso de pratico? A quase totalidade dos erros humanose feita por causa de uma logica imperfeita. Essa logica imper-feita nao e pratica absolutamente, ela e totalmente impratica. Mas,prefere-se essa logica imperfeita do que logica nenhuma. Dito de

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outro modo, para resumir, saltando um monte de etapas, para ohomem, a logica nao e uma necessidade externa, ela e um valor. eum valor que ele prefere, pelo qual ele opta, e de certo modo, queele ama.

A educacao pode reforcar essa opcao, como pode destruı-la. Osenso de auto-conservacao pode falar em favor dessa opcao, se elaja tiver sido tomada, mas pode tambem falar contra ela. Por exem-plo, num caso de lavagem cerebral, influencia subliminar, e outros.E o proprio senso de auto-conservacao que faz voce admitir o ab-surdo. E para conservar a vida que voce admite o ilogismo. Domesmo modo que uma necessidade externa pode te reforcar essacrenca no absurdo. Nenhum deles determina a crenca. Ou podereforca-la, ou pode atenua-la, uma vez que ela ja existe. E ela jaexiste sem causa. Pior ainda, essa opcao nunca e feita de uma vezpara sempre. Ela e feita e refeita continuamente. Se ela e livre,mesmo as suas consequencias nao sao fatais. Se voce acreditouna integridade logica, nisso ou naquilo, voce pode, em seguida,ser completamente ilogico numa outra coisa. Voce pode quererser logico num monte de coisas, e absurdo numas tantas outras —nada te impede.

Entao, nos nao poderıamos pensar de uma maneira ilogica? Po-derıamos, e pensamos de fato, mas pelo ponto que nos chegamosate aqui, nos entendemos que a crenca nos princıpios logicos epara o homem, um valor, um valor de um discurso coerente. Vocenao e obrigado a manter um discurso coerente. As vezes, um dis-curso coerente pode ir contra os seus interesses, mas as vezes voceopta por esse valor.

Entao, se essa adesao nao tem uma causa que a coloca, e se ela euma ...(?) a um valor, nos poderıamos perguntar que valor e esse,qual o conteudo desse valor? Aquilo que nao tem causa, pode termotivo. Motivo e uma justificacao interna. Mas, uma justificacaointerna nao causa um ato, apenas sublinha o valor desse ato, que

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no entanto pode ser feito ou nao. Por exemplo, quando voce vaicomprar algo, voce pode argumentar pro e contra a compra, mas oteu argumento nao faz voce comprar nem deixar de comprar. Vocedecide livremente comprar ou nao comprar, pesando os argumen-tos, portanto, voce nao esta determinado a comprar.

Entao, poderıamos perguntar: qual e o valor que o homem en-cara nesse ideal de um discurso coerente? Que perspectivas ele lheabre, que a incoerencia nao lhe daria? Porem, veja o que disse oHusserl nesse paragrafo que nos acabamos de ler: ou a logica seraapenas uma tecnica, portanto uma ciencia pratica,ou se for umaciencia teorica, seu conteudo tera de ser psicologico, gramatical,sociologico, etc. Por isso mesmo que eu lhes perguntei se vocesconseguirem encontrar um fundamento psicologico, sociologico,da crenca no princıpio logico. Eu estou preparando voces para adiscussao que ele vai fazer do psicologismo.

O psicologismo e uma tendencia filosofica dominante durantemais de cem anos, e ate hoje e muito influente subliminarmente,segundo a qual a validade dos princıpios logicos advem de causaspsicologicas, gramaticais, sociologicas, etc. Dito de outro modo, alogica seria uma parte da Psicologia, Sociologia, etc. Por exemplo,a escola sociologica, muito influente, fundada por Durkheimer, atehoje acredita que as categorias logicas provem da estrutura so-cial interiorizada. Ou seja, ao assumir que existe uma analogiaentre as estruturas logicas e as estruturas sociais, transforma-seuma analogia numa explicacao causal, em seguida transforma-sea explicacao causal numa fundamentacao logica. Isto esta muitodestorcido.

Todo o conjunto de negacoes a logica pura, Husserl chama depsicologismo, que e aquele que vai remeter a causa e, implici-tamente, a validade dos princıpios logicos a fatores extra-logicos,ou seja, a fatores reais. O que nos dissemos aqui era que nao existenenhuma causa real, mas talvez possa haver uma causa ideal que

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seria um valor. Mas, um valor nao chega a ser uma causa, ele eapenas uma justificacao. Ou seja, a validade dos princıpios logicosnao pode depender de nada real. Independe do real, eles tem queser validos. Mesmo aqueles que distinguem o que e causa e o quee fundamento, mesmo eles acabam misturando as coisas.

Eles nao tem outra saıda: ou eles vao para a logica pura, quee uma ciencia meramente a priori, totalmente ideal, que fala dasrelacoes e verdades possıveis, e que nao tem absolutamente nadaque ver, nao tem nenhum fundamento, causa, na experiencia realhumana, que nao e causada por nada, e apenas um conjunto deesquemas das relacoes e verdades possıveis, encaradas como umsistema ıntegro e coerente, a qual a adesao e feita somente pelolivre arbıtrio humano; ou entao, nos teremos que aderir a algumasformas de psicologismo, que sao todas estas que nos vimos aqui.

Nao e preciso lembrar que o velho Kant, que era o grande adeptoda logica pura, e tambem, de todos os filosofos do Ocidente, oque mais enfatizou a ideia da liberdade humana. Kant era con-tra — ate — voce provar que Deus existe. Ele dizia que a provaobjetiva da existencia de Deus seria a suma blasfemia, porque su-primiria a liberdade humana. A existencia de Deus nao pode sermateria de ciencia no sentido objetivo, porque se pudesse, voceseria obrigado a engolir esse Deus, como voce tem que engoliro real empırico. Entao, Deus se relacionaria com os homens domesmo jeito que se relaciona com as pedras, porque Ele colocala umas leis cosmologicas, e as pedras se movem de acordo comisso. Entao, nao seria um Deus do homem, seria um Deus parao homem. Esse mesmo indivıduo que tanto enfatizou a liberdadehumana, e tambem o mesmo defensor da logica pura.

Entao, pegando a conexao entre essas duas coisas, por tudo oque eu falei hoje, a adesao aos princıpios logicos puros e um atolivre do ser humano, e nada pode obriga-lo. Sendo um ato livre,nunca e um ato definitivo, e uma opcao reiterada. E se e assim, e

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porque existe entao efetivamente a liberdade humana. E se existea liberdade humana, o conteudo das crencas do homem jamaisesta pre-determinado. Pode ser influenciado, ou reforcado pelaexperiencia, mas nao totalmente determinado desde fora.

Entao, a enfase aqui e colocar no sujeito como indivıduo cog-noscente e livre. Porem, ele se defronta com um mundo que naofoi ele quem fez, e desse mundo faz parte o seu proprio corpo, egrande parte de sua psique. Ou seja, a minha liberdade se defrontacom uma infinidade de determinacoes externas e internas. E umaliberdade muito limitada, mas nem por isso mesmo real nos seusproprios termos. O homem e um ser livre, mas que vive na miseriae na sujeicao parcial de suas determinacoes. Essa e a imagem dohomem, que tem Kant, e ao qual nesse aspecto, Husserl adere, eque eu tambem estou aderindo aqui, formalmente. Ou seja, de queo conhecimento no sentido logico, a construcao do mundo do co-nhecimento coerente era uma livre opcao do homem, que ele naoprecisava fazer absolutamente, nem por motivos praticos, e quepode ser ate conveniente em certos momentos, ou inconvenienteem outros.

Sendo assim, um dos sentidos da educacao seria a de reiterarno homem essa escolha contınua pelo discurso coerente, que podeser compartilhado por todos os homens, uma vez que o entenda, eque, admitindo os princıpios logicos, conforme ouviam o restantedo discurso. Essa opcao e o que Eric Weil chama de “o contrarioda violencia”. Entao, o mundo da determinacao externa seria omundo da violencia, e o mundo da livre adesao aos princıpioslogicos e suas consequencias, seria o mundo da Razao.

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17 de marco de 1993(sem correcao do Prof. Olavo de Carvalho)

Capıtulo IIDISCIPLINAS TEORETICASCOMO FUNDAMENTO DAS NORMATIVAS13. A discussao em torno ao carater pratico da logica.Uma logica pratica e um imprescindıvel postulado de todas as

ciencias. Kant mesmo adepto, por outro lado, da ideia de umalogica pura, falou de uma logica aplicada.

A questao na verdade discutida em Kant diz respeito a se adefinicao da logica como uma arte toca ao seu carater essencial.O que se discute e se o ponto de vista pratico e o unico em quese funda o direito da logica a ser considerada uma disciplina ci-entıfica.

O essencial na concepcao de Kant nao consiste em negar ocarater pratico da logica, mas em considerar possıvel a logicacomo ciencia plenamente autonoma, nova e puramente teorica,com carater de disciplina a priori e puramente demonstrativa.

Segundo a forma predominante da teoria contraria (a de Kant), areducao da logica ao seu conteudo teoretico conduz a proposicoespsicologicas e eventualmente gramaticais, isto e, a pequenos seto-res de ciencias distintas e empıricas.

Segundo essa ideia, a logica seria constituıda de uma serie depreceitos, normas e regras de ordem pratica, cujo unico conteudo

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teoretico seriam as leis psicologicas que expressam o funciona-mento do real atraves da mente.

E exatamente o contrario do que pretende o Kant que diz queexiste uma logica que tem uma parte teorica propria. E uma teo-ria logica que nada tem a ver com a descricao ou as teorias psi-cologicas sobre o funcionamento real do pensamento. A logica,segundo essa orientacao do Kant, e que e a do proprio Husserl,trataria das leis ideais do pensamento, e nao das leis reais.

A duvida aqui e: se a logica e uma ciencia teorica propria, ou seela e uma ciencia pratica, cujo unico conteudo teoretico possıvelfosse a psicologia.

[Olavo da um salto para a pagina 14 do texto]A objecao de que se trata de uma restauracao da logica aris-

totelico-escolastico, sobre cujo escasso valor a historia pronunciouseu juızo, nao deve inquietar-nos. Talvez a logica antiga fosse so-mente uma realizacao imperfeita e turva da ideia dessa logica pura.E tambem questionavel se o desprezo pela logica tradicional nao euma injustificada repercussao das emocoes do Renascimento, cu-jos motivos ja nao podem tocar-nos hoje. A luta contra a cienciaescolastica foi, com frequencia, irrazoavel, no fundo; dirigia-seantes de tudo contra a logica. Mas, o fato de que a logica formaltomasse o carater de uma falsa

metodologia nas maos dos escolasticos (sobretudo do perıodode decadencia) so prova que talvez faltasse a estes uma justa com-preensao filosofica da ciencia logica e que por isto a utilizacaopratica da mesma seguia caminhos errados,

O que ele queria dizer com isso? Sera que os escolasticos naoconheciam bem a logica de Aristoteles? O que ele quer dizer com“a justa compreensao filosofica”?

Qual e a diferenca entre voce conhecer a logica e ter uma com-preensao filosofica dessa mesma logica? O que e a compreensaofilosofica de alguma coisa? Qual e a diferenca entre a compre-

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ensao de alguma coisa, e a compreensao filosofica? Voce podefazer o conceito de alguma coisa relacionar-se com tudo o queesta em torno sem ser, propriamente, uma compreensao filosofica.O que caracteriza profundamente a compreensao filosofica? Oconteudo da Ciencia logica pode ser um so, tanto para o sujeitoque a compreende filosoficamente, quanto para o que nao a com-preende. Qual e a diferenca?

O sujeito que nao tem uma compreensao filosofica, nao querdizer que ele nao compreenda. Ele compreende de alguma ma-neira, mas, nao, filosoficamente. nao tem nada a ver com a ori-gem, ou com o conhecimento, porque ele esta falando do modode compreensao. E um modo especıfico de compreensao que nosdenominamos de filosofico.

P.e., voces estao compreendendo a minha aula, ate o momento?Parece que sim, mas nao e uma compreensao filosofica, necessa-riamente. Alias, voces nao podem ter nunca uma compreensaofilosofica de alguma coisa que voce acabou de ouvir pela primeiravez. Esta e a primeira caracterıstica: a compreensao filosofica e re-flexiva. nao e a compreensao imediata. Mas, ainda tem mais umacaracterıstica. Vamos supor uma coisa que voce conheca muitobem, que voce tenha estudado a vida inteira. O que e necessariopara que o conhecimento que voce tem disso aı seja uma com-preensao filosofica? Qual e o metodo filosofico por excelencia?E a dialetica. E o que a dialetica faz? Ela faz a contradicao?E se a coisa, aparentemente, nao tem contradicao em si, interna-mente? compreensao interna, e compreensao logica. Mas, podemhaver outros tipos de contradicoes, tao internas. A compreensaofilosofica compara com o ideal. Esta e a outra caracterıstica.

Os escolasticos tinham uma compreensao filosofica, porqueeles eram filosofos, mas com relacao a logica, diz Husserl queeles nao tiveram. Eles aprofundaram a Ciencia da Logica en-quanto Ciencia, mas ainda falta um ponto fundamental. Segundo

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Aristoteles o conhecimento comeca com o que? Ele comeca como espanto!

Uma compreensao de qualquer coisa se torna filosofica a partirdo momento em que se tem uma compreensao da problematicadaquilo, em face de um determinado ideal. Tudo parece carentede fundamento para uma compreensao filosofica.

O que caracteriza a compreensao filosofica nao e a busca; abusca e a tarefa filosofica. E uma compreensao de que aquele co-nhecimento e insuficiente com relacao aos seus fundamentos e queaquele conhecimento nao e o que ele pretende ser. Ou, ainda, aconsciencia de uma defasagem da pretensao e a realidade, da pre-tensao e os atos. Ter uma consciencia de problematicidade e umaconsciencia de contradicao. Sempre que voce se contente com umdiscurso, ou possuir e utilizar um conhecimento, tem que fazeressa ...(?)... filosofica. (Bryan Rice(?)), disse o seguinte: “ha duasmaneiras simples de evitar todas as complicacoes dialeticas. Umae o procedimento facil: nao pensar. A outra, e uma via prudente:nao confessar, absolutamente. Os filosofos desprezam ambas es-sas maneira e tratam de confessar suas contradicoes e viver atravesdelas e, desse modo, se for possıvel, supera-las.”

E claro que essa nao e a perspectiva de nenhum conheci-mento, nem cientıfico, nem pratico, nem teorico, nem coisa al-guma. Porque, qualquer conhecimento, e um conhecimento pre-determinado. No momento em que voce recorta o campo, voceja nao questiona mais o proprio recorte. Isso e condicao sine quanon, senao voce nao vai conhecer nada.

Portanto, para ser Ciencia significa deixar problemas de lado.Existe um elemento de decisao e de convencionalidade, no recortedo campo, e dos problemas de qualquer conhecimento cientıficoou tecnico.

Sendo assim, e inevitavel que esses conhecimentos apresen-tem contradicoes, ou com a experiencia, ou consigo mesmos, ou

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com um outro conhecimento. Porem, o indivıduo que se dedica aaquela Ciencia em particular, para ele, essas contradicoes nao

interessam. Ele segue em frente ate que nao seja mais possıvel.Ate que ele nao consiga obter mais conhecimento por aquela via.

Porem, no momento do recorte, quantas perguntas voce nao temque abandonar... Voce fica com duas ou tres perguntas. Entao,segue-se a investigacao dessas duas ou tres

perguntas, ate que, mais a frente, nos percebemos que ainvestigacao nao pode mais ir para frente, a nao ser que se re-torne a aquelas perguntas abandonadas. Acontece que isso podeacontecer com um lapso de 100, 200, 300, 1000 ou 2000 anos, edaı, voce ja nao lembra mais qual era a duvida.

O ponto de vista cientıfico e sempre linear, seguir em frente,dentro de uma determinada linha de investigacao, enquanto elalhe parecer profıcua. E claro que a investigacao cientıfica re-quer o abandono da crıtica filosofica por algum tempo, proviso-riamente, ate que as contradicoes aparecam outra vez. Isso acon-tece quando, p.e., partindo de determinadas definicoes, principal-mente cientıficas, que voce colocou no comeco, voce chegue aconclusoes que desmentem, fatalmente, esses mesmos princıpios.

P.e., parta de um conceito fısico, de que materia e uma coisaque ocupa lugar no espaco. Partindo daı, e desenvolvendoinvestigacoes ao longo de seculos, voce chega, no fim, a desco-brir um tipo de coisa que nao e nada alem de materia e que parecenao ocupar lugar nenhum, entao, voce tem um “abacaxi” nas suasmaos.

Porem, a Ciencia so percebe isso no fim, por absoluta impos-sibilidade de prosseguir naquela direcao. Mas, a compreensao fi-losofica consistem em ver a possibilidade dessas contradicoes jano comeco, e na fixacao dos princıpios. Por isso nao e erradaa imagem de que a investigacao cientıfica vai para a frente e ainvestigacao filosofica vai para tras. Ela vai no sentido do fun-

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damento. Ao inves de aumentar o edifıcio, ela aprofunda a suabase. A fuga das contradicoes e uma condicao sine qua non paraa acao pratica. A acao pratica e, ela mesma, a superacao de umacontradicao em particular: a contradicao entre a vontade humana,e as condicoes estabelecidas. Qualquer acao pratica e voce fa-zer alguma coisa que nao existia antes. Mudar uma situacao. Domesmo modo, a investigacao cientıfica e a superacao de determi-nadas contradicoes ja definidas de antemao.

Portanto, o campo de contradicoes que existe, tanto no conhe-cimento cientıfico teoretico, quanto no pratico, e um campo jadelimitado, mais ou menos convencionalmente. Delimitado, oupor efeito de uma exigencia pratica, ou de uma decisao humana.Porem, a consciencia filosofica consiste em buscar o fundamentoabsoluto do conhecimento.

Portanto, nada esta completamente fundamentado, nada esuficientemente fundamentado. A consciencia filosofica e aconsciencia permanente das contradicoes. Do mesmo modo quenos podemos dizer que existe um avanco cientıfico quando onumero de respostas obtidas pelas investigacoes vai sendo aumen-tado, a colecao de verdades adquiridas vai aumentando, nos pode-mos dizer que houve um progresso filosofico quando foi limitado onumero de contradicoes possıveis. Portanto, a Filosofia lida maiscom a possibilidade do conhecimento do que com o proprio co-nhecimento. Tornar o conhecimento possıvel, viavel, e nao propri-amente realizavel. Nesse sentido, nos vemos que os escolasticosnao tinham uma compreensao filosofica da Logica, porque ela lhesparecia um conhecimento que nao tinha problema algum. Alias,essa ideia e a mesma que muitos tem ate hoje.

Eu me lembro quando nos comecamos a ler o Husserl, nessaaula, e algumas pessoas ficaram espantadas de ver que a Cienciada Logica podia estar numa tal bagunca. Mas, ninguem sabe oque,

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com relacao a Logica, cada um fala uma coisa. Entao, isso ecompletamente ilogico e, lamentavelmente, e assim. O proprioKant, que e o inventor da Filosofia Crıtica, o que ele diz logo nocomeco da crıtica em relacao a Logica? Que ela e uma Cienciaque chegou a sua perfeicao, que ela esta num caminho seguro, enao tem mais nada que se mexer ali. Ou seja, passaram- se 100anos entre a comunicacao da crıtica a razao pura, e isso

que Husserl escreve, para voce ver que ...(?)... Onde nao haveriaparecer mais contradicao, onde parecia haver um ponto cientıficodelimitado corretamente, parecendo que sua delimitacao corres-pondia a realidade e, portanto, se houvesse algum progresso, esseseria quantitativo, dentro da mesma linha de investigacao, de re-pente, voce ve que todos os fundamentos parecem estar oscilantes.

Primeiro, voce nao sabe se isso e uma regra de conduta, que dizo que voce deve fazer, ou se e uma teoria que diz o que esta, defato, acontecendo, entao, voce esta perdido, nao e?

Me parece que Husserl esta muito certo quando diz que naose tem uma compreensao filosofica da Logica. Ate que surgis-sem esses debates, ninguem levantou o problema. O problemasurge quando John Stuart Mill lanca a sua Logica, na qual ele dizque, as leis da Logica tem um fundamento psicologico. Ate entao,ninguem havia perguntado qual e o fundamento das leis da Logica.Nem mesmo Aristoteles. Ele apenas insinua que a Logica e umaespecie de Ontologia.

Entao, ninguem percebeu esse problema porque ninguem tinhauma compreensao filosofica daquilo. Dizer que uma coisa nao temfundamento conhecido, nao quer dizer que ela nao funcione. Mui-tas coisas que funcionam, na pratica, voce nao sabe o fundamento.A maquina a vapor e um exemplo disso. Ela funcionava, mas naopelos motivos que seu inventor supunha. P.e., quantos aqui conhe-cem, precisamente, a teoria da eletricidade? Por que a luz acendequando voce aperta o botao? Ou seja, quantos, dos que sabem do

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processo todo, sabem, a cada um dos conceitos que esta usando,qual e a realidade correspondente, e sabe a eficacia real dessesconceitos?

Na hora que voce fala em eletrons, ja complicou tudo. Eletron,e um nome que voce da a um efeito de alguma coisa que vocedesconhece. Para mim, eletron e um conceito como o de UFO. Eum efeito, um fenomeno, que acontece, e que voce, nao sabendo oque e, voce o designa com um nome.

Me parece que todos os conceitos da Fısica Atomica, do pri-meiro ate o ultimo, sao todos assim. A rigor, nem o fısico atomicosabe direito o que esse negocio e.

Entao, a teoria de que a eletricidade e um monte de anaozinhoscirculando dentro de um fio, me parece tao respeitavel quantoqualquer outra que me apresentem.

Se voce espremer a teoria dos eletrons, voce vai ver que os con-ceitos de base, nao correspondem a coisas reais. Sao nomes deefeitos.

Voce supor que exista uma forca que voce chama de eletrici-dade. Essa forca se manifesta sob varias formas: e essa forca quefaz voce tomar um choque eletrico; e essa forca que produz umraio; ela tambem esta presente no seu corpo, etc. Ela tem muitasmanifestacoes, mas voce nao conhece a sua natureza.

Porem, voce sabe em que condicoes ela se manifesta em al-guns canais, e em que condicoes ela se manifesta em outros canais.Entao, voce sabe dirigir, de certo modo, a producao do efeito, masvoce nao sabe o que ela e.

Foi justamente tentando responder o que e essa eletricidade queos cientistas chegaram a teoria atomica. Porem, antes da teoriaatomica, ja nao existiam maquinas movidas a eletricidade?

Entao, voce ja havia chegado a um domınio do fenomeno que,de certo modo, voce nao tinha a menor ideia dele. No momentoem que voce diz que sao atomos, e os eletrons saltam de orbita em

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orbita, e vao colocando um cadeia de efeitos, na verdade, naomelhorou em nada. Isto, porque, eletricidade e o nome de um

conjunto de efeitos que voce supunha ligados a uma causa unica,cuja natureza voce desconhecia. Eletron e exatamente a mesmacoisa.

O que interessa e saber se aquilo corresponde a uma substanciadeterminada, a um ente determinado, ou se e um efeito, ao qualvoce apenas da um nome que o unificasse.

Isto e mais ou menos como a opiniao publica. Ela e um ente,uma coisa? nao. Ela e uma manifestacao de uma infinidade decausas que voce nao consegue, nem de longe, delinear.

Eletrons, atomos, partıculas sub-atomicas, sao conceitos dessetipo. nao e como, p.e., em Fisiologia, o conceito de circulacaodo sangue. voce sabe exatamente o que e sangue. Voce nao eperfeitamente capaz de distinguir sangue, de uma outra coisa?

Em Geometria, p.e., o quadrado e um conceito perfeitamentedelimitado. Ele nao e um nome vago que voce da a umaconstelacao de efeitos.

Entao, nem todos os conceitos cientıficos sao igualmente fun-damentados. Mais ainda, para que as pesquisas prossigam e deemfrutos, eles nao precisam ser fundamentados.

Se voce fosse esperar para ter todos os conceitos fundamenta-dos, nao teria nem iniciado as pesquisas. Entao, todas as Cienciascaminham meio no claro, meio no escuro.

No instante em que voce sabe o suficiente para dar um nomeunificado a uma constelacao de fenomenos, que voce denominaeletricidade, claro que voce subiu um grau no processo abstrativo.Voce ja sabe que a causa que esta por tras do raio, e do que se passano fio, e mais ou menos a mesma coisa. Voce conseguiu unificaros fenomenos num conceito comum, mas, voce nao sabe qual erealmente a natureza desse conceito.

Vamos supor um outro exemplo: Varias pessoas aparecem mor-

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tas nas mesmas circunstancias. Eram todas mocas jovens, e foramdegoladas. Entao, voce descobre que todos aqueles crimes foramde autoria do mesmo assassino, so que voce nao sabe quem e ele.E a mesma coisa.

Na Fısica Mecanica, voce lida com coisas que voce sabe o quesao. Entretanto, nenhuma Ciencia tem jamais os seus conceitosarrumadinhos. Se tivessem, entao, acabou a Ciencia, porque ela sefechou dentro de um esquema explicativo final, e nao precisa maisinvestigar. Se ainda existe investigacao em Fısica, Quımica, etc., ejustamente porque ha muita coisa que nao esta clara.

A opiniao popular imagina que todos os conceitos estao deter-minados pelas Ciencias, e que cada conceito corresponde a umarealidade determinada. Se voce fala em neutrino, um garoto deginasio acredita que o neutrino e uma coisa, e um ente.

Buraco negro, p.e., e um nome que voce da a uma coisa queacontece. nao e o nome de um lugar. Acreditar em neutrino, eacreditar em duende, e mais ou menos a mesma coisa.

Voce acredita que exista algum tipo de forca que faca, p.e., asplantas crescerem? Por que a seiva sobe, contrariando a lei dagravidade? Isto e o efeito de uma forca. Essa forca voce denominade duende. O duende vai la e puxa a seiva para cima. E exatamente

pelo mesmo processo que se inventa o conceito de eletron, e seinventa o conceito de duende.

Toda explicacao inicial e magica. Se voce da um nome aum ente, cuja presenca voce supoe por tras de um conjunto defenomenos, isso aı e, evidentemente, magico. Mas, se nao for as-sim, a Ciencia nao vai para frente. Isso e exatamente como emAlgebra: quando voce nao sabe o que e, voce denomina de “x”, econtinua raciocinando.

Pode ser que esse x nao seja um numero, mas, p.e., umaequacao. Por tras daquele x, existem um monte de outros x quevoce tambem desconhece.

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O duende, nesse sentido, e um sinal algebrico tambem; e umalgo. Ou seja, algo faz a seiva da planta, subir. Partindo doprincıpio de que nao existe efeito sem causa, entao, algo deve estarpuxando, ou empurrando, a seiva.

A unica diferenca entre conceito magico e o conceito cientıfico,e que o conceito magico e feito com a pretensao de ser terminal,e o conceito cientıfico e feito, propositalmente, como um sinalalgebrico para ser corrigido posteriormente.

A Ciencia pode, mais tarde, trocar o conceito de eletron, porum outro conceito melhor. Entretanto, a fantasia nao pode trocar oconceito de duende. Num mundo mitologico, quando voce trocarum conceito, cai tudo.

Acontece que o numero de pessoas interessadas na solucao dosproblemas praticos, ja e muito pequeno. A maior parte prefere queos outros resolvam os problemas praticos.

Entao, ha uma parte dos seres humanos que sabe que existem osproblemas praticos, p.e., nos precisamos comer, e a comida nao sefaz sozinha, entao, eu tenho que trabalhar em alimentos.

Dessa parte, ha uma parte que se interessa tambem, nao ape-nas na solucao pratica, mas tambem, como e que se resolvem osproblemas praticos, em geral. Entao, eles tem o interesse em pro-blemas tecnicos. Entao, eles nao apenas querem saber como elesganham dinheiro, mas, como se ganha dinheiro nessa sociedade.

O indivıduo que esta procurando um emprego, ele nao esta in-teressado no problema economico, em geral. Isto nao e um pro-blema tecnico. E um problema exclusivamente pratico, dele.

Desses que se interessam pelo problema tecnico, ha uma partemenor que se interessa em que esse conhecimento tenha uma es-trutura cientıfica.

E, desses, tem uma parte, menor ainda, que se interessa que essaestrutura cientıfica seja fundamentada. No fundo, se resume a umameia duzia que carrega tudo nas costas.

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A Ciencia tanto pode avancar indefinidamente, de descoberta,em descoberta, quanto pode regredir, indefinidamente, na buscade fundamentos. E esse movimento e uma especie de pulsacao.A historia da Ciencia e uma pulsacao. Ela vai para frente ate quechega a contradicoes insoluveis e, aı, tem que voltar a investigaros fundamentos, novamente.

A ideia que existia ate uns 20 anos atras de que as Cienciasse tornaram independentes da Filosofia, a partir da Renascenca, euma ideia baseada num ciclo historico que representa apenas umadessas pulsacoes.

Quando chegou ao nosso seculo, as Ciencias encontraram...(?)..., entao, elas comecaram a repor as questoes fundamentais,e voltaram para dentro da Filosofia.

[Foi feito o intervalo e a fita pulou uma parte da aula, porque ogravador nao foi ligado]

14. O conceito de uma ciencia normativa. O princıpio que lheda unidade

Comecamos por assentar uma proposicao de que toda disciplinanormativa, e igualmente toda disciplina pratica, repousa sobre umaou varias disciplinas teoreticas, na medida em que suas regras de-vam possuir um conteudo teoretico.

A disciplina normativa, embora esteja subentendida na disci-plina pratica, nao contem a pratica.

P.e., em termos de julgamentos eticos-morais, quantas vezesvoce nao sabe o que e o certo e, no entanto, nao consegue fazerisso? Entao, voce tem a norma, mas nao tem a tecnica.

Consideremos o conceito de ciencia normativa em sua relacaocom o de ciencia teoretica. As leis da primeira expressam o quedeve ser; as da segunda, o que e. Pergunta-se: que se quer dizercom esse deve ser oposto ao puro e simples ser?

“Um guerreiro deve ser valente” significa mais propriamente:so um guerreiro valente e um “bom” guerreiro. “Um homem deve

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amar o proximo” quer dizer que quem nao o faca nao e um ho-mem “bom”. Em todos estes casos fazemos com que a nossavaloracao positiva, a concessao de um predicado de valor positivo,dependa do cumprimento de uma condicao, cujo nao cumprimentotraz consigo o predicado negativo correspondente.

Toda norma implica a ideia de um bem. Em princıpio, qualquernorma contem dentro de si a exclusao da norma contraria. Qual-quer obrigacao de fazer alguma coisa, e a obrigacao de se absterde fazer o contrario.

Os enunciados negativos do dever nao devem interpretar-secomo negacoes dos afirmativos correspondentes. “Um guerreironao deve ser covarde” nao significa que seja falso que um guer-reiro deva ser covarde, mas que um guerreiro covarde e um mauguerreiro.

Isto tem uma sutileza. “E falso que um guerreiro seja um co-varde”, nao e mais uma posicao normativa; isto e uma proposicaoteoretica; isto se refere ao verdadeiro e falso. Portanto, umaproposicao normativa negativa, nao implica a falsidade do seuconteudo. Implica apenas a negacao da norma contraria.

“Um guerreiro deve ser valente” e, “Um guerreiro nao deve sercovarde”, como e que, daı, voce vai deduzir o que e um guerreiro?

E consequencia logico-formal disso que o dever e o nao se ex-cluam; e o mesmo cabe dizer do princıpio de que os juızos sobreum dever nao implicam nenhuma afirmacao sobre um ser corres-pondente.

Ao estar enunciado um dever, desse dever, voce nada pode de-duzir quanto ao ser a que ele se refere.

Devemos incluir aqui alem das proposicoes com “deve” ou “temde”, que dao na mesma tambem outras proposicoes como: “paraque um A seja um bom A, basta (ou nao basta) que seja B”.

Entao, so existem dois tipos de formulas de juızos normativos:1) quando o juızo e construıdo com Deve, Tem de, Must, Soll,

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Il faut, dort; tudo isso sao formas da mesma ideia. Ou seja, anecessidade de que uma determinada condicao seja cumprida.

2) Para que tal coisa seja isto ou aquilo, basta que tal ou qualcondicao seja cumprida. Aqui esta incluıda a ideia de suficiencia.

Enquanto as proposicoes anteriores concerniam a condicoes ne-cessarias, nestas se trata das condicoes suficientes. Outras expres-sarao ao mesmo tempo condicoes necessarias e suficientes.

Com isto esgotamos as formas essenciais das proposicoes nor-mativas. Vemos que toda proposicao normativa supoe certa classede valoracao (apreciacao) num sentido determinado e com relacaoa certa classe de objetos.

Um conjunto, um sistema de proposicoes, implica em, primeiro,uma selecao de uma certa classe de objetos. Dessa classe voce vaiver quais sao os valores que sao pertinentes (bom, mau). Dessesvalores e que voce vai construir as proposicoes, das quais, umasserao na base do necessario, e outras, na base do suficiente. Cadaum deles no sentido do positivo e negativo. Isto aqui e um sistemanormativo.

Cada classe de objetos admite um certo conjunto de valores quesao pertinentes, e ha outros valores que sao totalmente impertinen-tes, que nao tem nada que ver com aquilo.

P.e., vamos supor que se trate de comidas: as comidas pode-riam ter um gosto agradavel, e ter um gosto desagradavel. Sobum outro aspecto, considera-las nao enquanto alimento, mas, en-quanto mercadoria, elas poderiam ser caras ou baratas. A comidaem si, enquanto comida, nao e cara ou barata. Como mercado-ria, sim. O que voce determinaria como caro ou barato? Devehaver um parametro qualquer. Na definicao do valor, voce teriaque estatuir um criterio qualquer, que seria teoretico. Ele mesmonao faz parte do sistema normativo. O que e essencial e que vocetenha uma classe de objetos, um conjunto de valores que definepara o que aquele conjunto sera considerado, bom ou mau, e que

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voce, em seguida, expresse esses valores, positivos ou negativos,sob a forma de proposicoes, que digam quando voce considerarabom ou mau, tal ou qual objeto, no sentido que a palavra bom oumau adquire com relacao aos valores pertinentes a essa classe deobjetos.

Inversamente, se, sobre a base de uma certa valoracao geral, foiestabelecido um par de predicados de valor para a classe corres-pondente, fica estabelecida a possibilidade de pronunciar juızosnormativos.

Claro, se voce define um determinado valor, e com relacao aesse desempenho, um maximo ou um mınimo, um bom ou ummau, entao, a partir daı, voce pode enunciar juızos normativos.

Conceito de juızo normativo: chama-se normativa todaproposicao que, com referencia a uma valoracao geral basica eao conteudo do correspondente par de predicados de valor, de-terminado por essa valoracao, expressas quaisquer condicoes ne-cessarias, suficientes, ou necessarias e suficientes, para a posse deum dos referidos predicados. Uma vez que tenhamos chegado aestabelecer uma distincao entre “bom” e “mau” em determinadosentido e por isto em determinada esfera, interessa- nos natural-mente averiguar quais circunstancias, quais qualidades externas ouinternas garantem ou nao a bondade ou a maldade no mencionadosentido.

Ou seja, em que condicoes um determinado objeto sera consi-derado bom ou mau, naquele sentido. Em que condicoes, p.e.,uma comida e admitida como saborosa, que um procedimento eadmitido como imoral, um quadro e admitido como belo ou feio,etc.

Quando falamos de bom e mau costumamos distinguir tambem,em valoracao comparativa, o melhor e otimo do pior e pessimo.

Portanto, todas essas proposicoes podem ser absolutas ou relati-vas. Elas podem falar do bom e do mau, ou podem falar do melhor

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e do pior.Isto e a estrutura magna de qualquer sistema normativo que

exista no mundo. Desde os 10 Mandamentos, ate o regulamentodo Flamengo, o regulamento das escolas, etc.

Suscitam-se, pois, analogas questoes normativas com relacaoaos predicados relativos de valor que com relacao aos absolutos.

Que questoes? Quais sao as condicoes necessarias e quais saoas condicoes suficientes. Quando consideramos pior, ou quandoconsideramos melhor.

A totalidade destas normas forma evidentemente um grupo cer-rado, definido pela valoracao fundamental. A proposicao norma-tiva, que exige em geral dos objetos da esfera em questao quesatisfacam na maior medida possıvel as notas constitutivas do pre-dicado positivo de valor, ocupa uma posicao preeminente e podedesignar-se como norma fundamental.

Se nos estivessemos falando, p.e., sobre comida, o que signi-fica o sabor agradavel em sentido maximo? Como e que nos po-derıamos conceber o maximo de perfeicao possıvel, no sentidogustativo? Isso seria chamado a norma fundamental.

A norma fundamental seria, simplesmente, a expressao em ter-mos de proposicao, do valor fundamental. Todo e qualquer sis-tema normativo implica uma norma fundamental, mas nao querdizer que essa norma fundamental esteja explıcita.

Este papel e representado, por exemplo, pelo imperativo ca-tegorico na etica de Kant; igualmente pelo princıpio da “maiorfelicidade possıvel para o maior numero” na dos utilitarios (oupelo primeiro mandamento da Bıblia).

O que e imperativo categorico? Kant disse: voce deve agir de talmaneira que qualquer outro ser humano, colocado na sua posicao,naquela situacao determinada, estivesse moralmente obrigado aagir do mesmo modo. Ou seja, uma acao, para o Kant, e boa,quando ela obedece a um princıpio de obrigacao universal. ...(?)...

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chama de a Etica Formal.Ele nao diz, p.e., “bom e voce amar a Deus”, ou “bom e voce

amar o proximo”, nao e um princıpio que indica um valor deter-minado. E apenas um princıpio formal. Ele nao disse qual e oconteudo. Segundo o conteudo do bem aplicado, a acao so e boa,se ela obedecer a esse princıpio da obrigatoriedade universal. Issoe o que ele chama de imperativo categorico.

Todas as Eticas que surgiram, sao ditas Eticas Materiais, porqueelas indicam um bem determinado.

P.e., Aristoteles toma como um bem determinado o cumpri-mento da finalidade da vida humana: o ser humano e um bichoque esta colocado como um animal racional, e o objetivo dele eevoluir no sentido da racionalidade do conhecimento. Portanto, avida tem

uma finalidade espiritual. Bom e o que concorre nesse sentido.Mau e o que se opoe. Ele indicou um valor material, determinado.

Nos poderıamos fazer um novo princıpio etico qualquer, p.e.,suponha uma etica socialista, comunista, onde a finalidade e vocerealizar um processo historico.

O homem e um ser essencialmente historico, e esta aı para fazerhistoria. A Historia consiste na sucessao das formas de dominacaodos meios de producao (comunidade primitiva — feudalismo —capitalismo — socialismo). Entao, bom e o que comporta o pro-cesso historico. Se voce ajuda a fazer a Revolucao, e bom, se naoajuda, e mau.

Entre voce tomar a evolucao do homem no sentido de realizar-se como cognoscente, como racional, ou voce escolher o caminhode definir o bem segundo a maior ou menor contribuicao que umdeterminado ato traga para a Revolucao, essa e a diferenca entredois valores, materiais. Material significa que e um valor que temum ponto determinado.

Kant nao faz nada disso. Se perguntarmos para ele se se deve

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fazer a Revolucao, ou se voce deve evoluir intelectualmente, eledira: “nao sei! Mas, eu sei que uma dessas coisas, ou a outra,so sera certa se qualquer outro ser humano colocado na mesmasituacao tiver a obrigacao de fazer exatamente o mesmo”.

A universalidade da obrigacao e, em si mesma, a norma funda-mental. Se o amor a Deus, p.e., exigir que o sujeito permanecaburro, ele permanecera burro. Se o exigir que ele evolua intelectu-almente, ele assim o fara. Porque o valor e outro.

Se perguntarmos a Kant: devo amar a Deus sobre todas as coi-sas? Ele diria: depende. Mas, depende do que? Depende de sequalquer outro ser humano colocado na mesma situacao, tambemdevesse amar a Deus.

Ou e uma obrigacao que serve para qualquer ser humanonaquela posicao, ou nao e obrigacao. Ou seja, nao existemobrigacoes inerentes a uma individualidade concreta.

So existe obrigacao para o ser humano em geral. Tudo isso sechama Etica Formal. nao diz o que voce deve fazer, mas umacondicao formal que a sua acao deve atender para poder ser boa.

Do mesmo modo, Husserl da um outro exemplo do princıpio daetica utilitaria, da etica de Jeremias Benton(?) que e o da maiorfelicidade possıvel para o maior numero possıvel de pessoas.

Voce deve agir de maneira que, dos seus atos, resulte a maior fe-licidade possıvel para o maior numero de pessoas. E um princıpioobviamente material. E e uma norma fundamental.

Se amar a Deus sobre todas as coisas ajudar para a felicidade domaior numero de pessoas, entao, isso e bom, senao, e mau.

A norma fundamental indica o princıpio (o valor fundamental)com ajuste ao qual deve verificar-se toda normacao, e por isto elanao representa uma proposicao normativa em sentido proprio. Arelacao da norma fundamental com as proposicoes propriamentenormativas e analoga a que existe entre as chamadas definicoes daserie numerica e os teoremas aritmeticos sobre relacoes numericas

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— fundados sempre naquelas. Cabe tambem designar a normafundamental como a “definicao” do conceito do bem correspon-dente, mas isto seria abandonar o conceito logico habitual dedefinicao.

Se nos fossemos conceber um sistema normativo, como e quenos farıamos? Comecarıamos por assentar a norma fundamental?Parece que sim, mas, a norma fundamental e o fundamento logicodo sistema normativo, e nao e a primeira coisa que voce descobre.

A primeira coisa que se deve fazer e escolher qual e a classe deobjetos sobre a qual voce vai legislar. Vamos escolher uma classede objetos bastante complicada, mas que e aquela de maximo inte-resse, que sao os procedimentos e comportamentos humanos. Nosvamos conceber um sistema etico.

nao e uma filosofia etica; nao vamos fundamentar a Etica. Nosnao vamos ver se o nosso sistema e verdadeiro ou falso, fantasticoou razoavel. nao e isso que nos interessa, agora.

Interessa somente duas coisas: ele tem que representar asvaloracoes que voce efetivamente faz; ele tem que ser coerente.Ou seja, ele tem que ser um sistema.

Para tanto, vamos proceder da seguinte maneira: primeiro, nostemos que abarcar os campos dos objetos. Nos temos que saberquais sao os objetos. E o recorte do campo.

A maneira de recortar, para nos, vai ser muito facil. Vamospegar num dicionario, de preferencia, analogico, todos os nomesde procedimentos e atitudes humanas, sobre os quais nos costu-mamos emitir um juızo de valor. Todos os habitos e qualidadeshumanas sobre as quais nos costumamos emitir um juızo de valor.P.e., a perseveranca, a covardia, a generosidade, ou seja, o que secostumava chamar de virtudes e vıcios.

Isso vai levar alguns meses para voces fazerem. Mas, isso vaiser um grande passo para voces entrarem na formacao da mentali-dade filosofica.

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Voces vao tentar acertar os pontos com relacao a Etica. O quevoces pensam mesmo com relacao a esse objeto. Depois de vocedizer o que voce pensa mesmo, daı voce pode fazer a crıtica doque voce mesmo pensa, mas, primeiro tem que dizer o que pensa,tal como pensa. Para delimitar o campo, nao o aumente alem daspalavras que ja estejam no dicionario. Tambem nao precisa sercompleto no sentido exaustivo. Se faltar alguma coisa, voce per-cebera mais tarde. O importante e que, com isso, voce consigaabarcar todos os valores e contra-valores que voce costuma atri-buir ao procedimento humano. P.e., voce nunca acusou alguemde ser covarde, mentiroso, desonesto, indeciso, etc.? Voce emiteconstantemente, juızos de valor, sobre si mesmo, e sobre os outros(na verdade, mais sobre os outros...).

Esse exercıcio vai introduzir clareza no seu juızo, a custa de umpouco de esforco. nao quer dizer que esses juızos serao certos,mas dali em diante voces nao serao o non-sense completo.

Assim:1) demarcar o campo: a classificacao pode ser por ordem al-

fabetica, como esta no dicionario. O campo e constituıdo pelosnomes das qualidades e defeitos correspondentes.

2) achar os contrarios de cada nome. Uma mesma coisa podeter varios contrarios em varios sentidos. Significa que, para cadacontrario, corresponde um sentido da palavra.

3) aı, voces vao comecar a distinguir o que sao os termos, equais sao os conceitos que estao la, implıcitos. Se ao mesmo termoequivale 5 contrarios, esse termo designa 5 conceitos. P.e., covar-dia 1, covardia 2, covardia 3, covardia 4 e covardia 5.

4) depois, voce vai tentar definir exatamente no sentido em quevoce costuma aplicar essas palavras. nao e para ver a definicaono dicionario, porque ele explica apenas o sentido de termos, enos nao estamos nos referindo aos termos e, sim, aos conceitoscorrespondentes, tais como voce os entende. Com isso, voce vai

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chegar a um grupo mınimo, irredutıvel, de conceitos.5) finalmente, voce vai expor esses conceitos sob forma de

proposicoes. p.e., um homem generoso deve fazer tal e tal ...nao interessa muito voce julgar se as suas proposicoes sao ver-

dadeiras ou falsas, o que interessa e que voce consiga exprimir oque voce realmente considera.

E claro que, na maior parte dos casos, vai acontecer aquilo quesempre acontece, que e quando voce pergunta, p.e., o que e gene-rosidade, ao inves de dar uma definicao, voce da um exemplo.

6) depois de tudo isso, voce vai descobrir qual e a norma funda-mental que esta por tras de cada proposicao feita. A norma funda-mental que esta por tras do seu sistema etico.

nao tem outro jeito de voce consertar as suas opinioes, se vocenao souber o que sao essas opinioes.

Mais complicado que tudo isso, seria voce corrigir as suasopinioes, uma a uma. Se voce captar a norma fundamental, aocorrigi-la, voce corrige o resto das suas opinioes. Clareza signi-fica fazer menos juızos arbitrarios, obscuros, totalmente subjeti-vos. Porem, isso aqui vai ter uma consequencia muito grave sobreas suas cabecas: voces vao entender o quanto e serio voce fazerum julgamento sobre um outro ser humano.

Daı, voces podem perguntar: por que determinados procedi-mentos que, em si mesmos, nada tem de errado, me irritam tanto?E pro que eu costumo atribuir esses comportamentos a deficienciasmorais?

P.e., tudo aquilo que nos irrita, mas, automaticamente, emitimosum juızo moral. Isso aı so e valido se voce colocar como normafundamental o seguinte: tudo o que me irrita e mau; tudo o que meagrada, e bom. Essa e etica de um garoto de 3 anos de idade.

Uma vez feito esse exercıcio, ou voce diz adeus a etica do garotode 3 anos, ou voce faz um suicıdio da sua inteligencia para sempre,e parte para o vale-tudo.

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Inicialmente, a delimitacao do campo deve ser exaustiva — omaximo de palavras possıvel. Porem, o sistema que voce vai cons-truir deve ser o contrario, deve ter o mınimo de conceitos possıvel.

Deem preferencia, sobretudo, nao a aqueles conceitos queparecam objetivamente importantes, mas, a aqueles que expressemas opinioes que, habitualmente, voces ja emitem sobre as pessoas.

Com isso, as pessoas que se conhecem mais, as vezes, sao maisaptas a saber, para um outro indivıduo, quais sao as opinioes queele costuma ter. P.e., quando voce abre a sua boca para criticar al-guma pessoa, quais sao os defeitos que com mais frequencia voceassinala, aqueles a que voce e mais sensıvel? O que importa e quevoce se defina com relacao a isso. P.e., se o fenomeno da covardianao te chama a atencao, mexe menos com relacao a voce, entao,ele importa menos para o teu sistema real.

So com isso aqui voce ja vai perceber um monte decontradicoes, e vai ter que se ajustar com relacao a si mesmo. Issoaqui e quase um historico da Psicanalise.

O exercıcio tem que sair com uma definicao das principais vir-tudes, e vıcios, tais como voce as entende. P.e., consideremos aluxuria. Voce se impressiona por uma pessoa ser luxuriosa? Se,nao, esse conceito parece que esta fora do seu sistema moral. Naopiniao corrente, ele seria moralmente neutro. Pelo menos, pareceque sim. Entao, se nao ha opiniao moral sobre isso, nao interessavoce perder tempo nesse topico.

P.e., a prudencia, ou a imprudencia. Prudencia e uma virtudeimportante, de acordo com certos sistemas eticos antigos. En-tretanto, a imprudencia, a pessoa agir de uma maneira que naoe sabia, insensata, voce costuma considerar isso muito grave? Unssim, outros, nao. Em geral, parece que uma conduta insensata estafora de julgamento moral.

Para mim, pessoalmente, isso e muito grave. Eu estou habituadoa ferver de raiva, sempre que uma pessoa diz que fez uma coisa,

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sem perceber. Fazer ja e grave, e nao perceber, e muito mais graveainda. Mas, isto e uma atitude minha. Eu nao considero que aausencia de intencao explıcita seja desculpa para nada. Alias, eexatamente o contrario, porque qualquer coisa que voce faz semintencao, e porque voce faz por habito. Ou seja, voce fez semprecisar pensar que ia fazer. Mas, essa e uma atitude etica que,eu mesmo, pensando, cheguei, e que nao e compartilhada pelamaioria das pessoas. A tendencia natural do meio e dizer que vocefez sem querer!

Entao, quer dizer, o sujeito que rouba por habito e menos cul-pado do que o que roubou uma vez so. Na verdade, e o sem querer,querendo, ou seja, significa que eu nao quero prestar atencao nesseassunto. Eu nao quero prestar atencao no seu pe que esta na frente,eu quero e ir pisando. Isto e uma ma intencao, que se oculta soba fachada de uma ausencia de qualquer intencao. Quando vocee acusado de alguma coisa qual e a sua tendencia imediata? Eexaminar para ver se voce realmente fez aquilo? O reflexo e exa-tamente o contrario: e tirar da reta, mediante uma negativa, ondenos inventamos uma justificacao.

A justificativa automatica se baseia numa norma fundamental,segundo ao qual, eu nao posso errar. Se eu errei, ou e falso, naverdade, nao errei, ou e um erro aparente, que na verdade e umacerto. Sao reflexos que voce ve normalmente, no dia-a- dia.

Quando voce terminar de fazer esse exame, voce vai ver quevoce esta num meio social onde qualquer consciencia moral equase proibida. E, daı, voce vai entender porque nao existe Etica.A exigencia de que se exista uma Etica, e totalmente utopica.

Particularmente, eu acho muito engracado que as pessoas quei-ram que, especificamente, os polıticos deveriam ser mais honestosque o resto da populacao. Normalmente, e o contrario.

Se voce ja esta num meio onde a falta de conceitos eticos e total,como e que os polıticos deveriam ser honestos? Se nao existe o

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habito de voce se julgar, e de se considerar culpado, quando estaculpado, se nao existe o habito de saber que existe culpa, erro,entao, sem duvida, voce nao tem consciencia moral nenhuma.

Hoje em dia, as pessoas estao muito angustiadas e, por isso,elas nao aguentam mais culpas, entao, existe uma especie de ne-cessidade de se livrar de qualquer sentimento de culpa, e essa ne-cessidade e totalmente contraria ao desenvolvimento de qualquerconsciencia moral, porque se nao existe culpa, nao ha moralidadealguma.

Com isso, nos vemos que o problema etico na sociedade bra-sileira e muito mais profundo do que a imprensa propaga. Elesacham que se deve fazer uma campanha de moralidade, por meiaduzia de pessoas na cadeia, etc. Colocar as pessoas na cadeia,o punitivo, ja nao e mais uma Ciencia normativa, e sim, umaCiencia pratica, que decorre de uma norma. Punir os culpados,e uma decorrencia de voce ter ensinado uma determinada norma,essa norma ter sido apreendida e, em seguida, haver uma violacao.Mas, e se a norma jamais for apreendida, e voce comeca a puniros culpados?

O problema da imoralidade da administracao publica, nao e sono Brasil, mas no Terceiro Mundo em geral, ela tem raızes muitoanteriores. Existem massas de indivıduos que nao tem a menorideia do que e ter uma culpa, e perderam isso de vista, ha muitotempo.

Num meio assim, a culpa quando nao e aceita conscientemente,e fica inconsciente, aı, aumenta enormemente. Vira um monstro,porque voce esta culpado de tudo o que aconteceu.

A ideia desse exercıcio e a de que se nos conseguirmos fazer umnucleo de pessoas que estejam muito conscientes de que o julga-mento moral, por um lado, nao e tao terrificante quanto as pessoasimaginam, nao e tao complicado, impossıvel, mas que, por ou-tro lado, e absolutamente impossıvel voce acertar sem uma nocao

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clara de culpa e inocencia, bem e mal.Eu acho que se houverem umas 10 pessoas que tenham essa

nocao esclarecida, isso vai fazer um bem muito grande para a so-ciedade em torno, mesmo sem abrir a boca.

E isso que eu estou convidando voces, pela primeira vez na vida.Vai comecar com a simples exposicao das ideias que voces ja te-nham, sem importar se elas estao todas erradas. O que importae dizer o que voce realmente pensa: “eu considero generoso umhomem que age assim e assado”; “para que seja generoso, bastaque..., ou basta que ...”, “eu considero covarde o sujeito que pro-cede assim e assado”.

Depois, mais tarde, voce vai fazer a crıtica disso. Mas, primeiroexponha essas proposicoes e depois voce encontre a norma funda-mental que esta por tras delas.

A norma fundamental teria que responder a pergunta: o que eum homem bom?

Mas, nao e isso que voce vai responder, agora, nao. Do que voceexpressou, voce vai, retroativamente, entender o que voce sempreconsiderou como um homem bom.

Pode ser que voce descubra que o seu conceito e muito estreito,ou que voce nao tem conceito nenhum, ou que e um conceito mera-mente empırico, ou que e um conceito subjetivo (bom, e o homemque te ajuda; mal, e o homem que te atrapalha), mas algum vocevai ter.

nao e necessario que o trabalho final, que sera apresentado porescrito, expresse integralmente a opiniao de cada um. Cada um,mesmo que a sua opiniao nao esteja ali contida no trabalho, ele jasabe qual e. Voce faz um trabalho para fora, e outro para dentro.O trabalho para dentro e o que interessa.

O grupo serve apenas como referencia para ele poder discutiraquilo. Tentem reduzir a um mınimo possıvel, partindo de umaamostragem grande. Quanto mais rapido for feito esse trabalho,

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melhor para voces, mesmo que ele seja incompleto, deficiente; naotem importancia.

Voce vai ver que existem muito mais vıcios e virtudes do quevoce costuma atribuir as pessoas. Mais ainda, voce vai aprenderqual e o nome exato daquelas que voce costuma atribuir. Muitasnao tem, sequer, nome.

Se na procura de nomes voce passar por, p.e., preguica, vocenao percebe que aquilo e um termo moral, significa que para voce,nao e. Entao, nao considerem.

Procurem so os termos que voces considerem como morais e/ouimorais.

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18 de marco de 1993

[Neste comeco de aula, Olavo faz um esboco do exercıcio]Uma teoria que explica imperfeitamente um fenomeno, voce diz

que ela e injusta ou parcial? Ela e parcial, pois nao comete umainjustica. Existe uma parcialidade puramente intelectual, teorica,mas nao e uma injustica teorica. Portanto, se referem a coisasdiferentes (imparcial e injusto).

Dificilmente voce vai encontrar uma palavra que diga exata-mente o que voce quer dizer, no mesmo sentido que voce exprime.P.e., maleavel, e um sujeito do tipo maria-vai-com-as- outras. Imo-ral, p.e., e generico demais.

Vamos procurar na memoria, palavras que expressam ideiasafins ao conceito de qualidades e defeitos humanos. As conexoesentre essas palavras seriam altamente duvidosas porque as pala-vras iriam ocorrer mais ou menos a esmo. nao ha uma conexaologica entre elas. Ha apenas uma conexao de no uso habitual elassao usadas mais ou menos dentro do mesmo contexto. Sejam per-tinentes ou sejam impertinentes.

O dicionario analogico organiza as palavras mais ou menos as-sim. Todas as palavras que, no uso corrente, sao usadas em con-textos parecidos. nao quer dizer que haja realmente uma conexaoentre elas, ou que esse uso seja proprio mas, simplesmente, eleesta te dando o material bruto da linguagem.

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E uma lista de palavras que so estao ligadas a um mesmo con-ceito, por forca do uso. E uma ligacao meramente acidental. Sevoce procurar uma logica num dicionario analogico, voce nao vaiencontrar.

Analogia e uma gaveta da memoria onde voce coloca coisas quepareceram semelhantes, as vezes, por coincidencia fortuita, masque se continuar a ser usada no mesmo sentido consolida aquelasignificacao.

A lıngua se faz assim. Ela nao e racional. Se ela ja viessecom todas as categorias arrumadas, as palavras classificadas com anatureza dos objetos correspondentes, a lıngua seria, em si mesma,um sistema filosofico.

Se a lıngua ja te desse tudo pronto, voce nao teria nem que pen-sar, e so falar que tudo da certo. Na verdade, existe a Filosofiajustamente onde a linguagem nao e assim.

Tanto que houveram filosofos que acreditavam que a Filosofia,toda, pudesse se resumir a uma analise da linguagem, e a umaespecie de limpeza da linguagem. Coisa que eu nao concordo,mas, nao deixa de ter la a sua razao.

[continuacao dos exemplos]Desobediencia, em si, e defeito? No seu entender, por que o

sujeito desobediente e mau? Desobediencia e uma atitude comrelacao a uma ordem. Entao, se voce nao sabe qual e o conteudodessa ordem, nao da para saber se a obediencia e virtuosa, oumalefica.

A desobediencia em si, nao e uma atitude moral. A obedienciase funda numa atitude moral. A obediencia e uma relacao que seestabelece entre o modo e um determinado comportamento moralque se exige dele.

Entao, nos estamos falando aqui de comportamentos que sejammateriais, que tenham um conteudo proprio. P.e., quando voce dizque o sujeito e negligente, nao importa a que. A negligencia, em si

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mesma, esta subentendida que e ruim. A desobediencia ja dependedo contexto.

Transgressao, p.e., e como desobediencia, e um termo pura-mente formal. Ela tambem nao e, em si mesma, uma atitude moral.

Desrespeito, p.e., e uma nome de uma classe.Irreverencia: nao e possıvel se dizer que um sujeito e irreve-

rente, perante uma coisa, ante a qual nao se espera reverencia, naoe? Os outros diriam que ele e irreverente, mas ele nao se conside-raria.

A irreverencia nao e como a transgressao ou a desobedienciaque sao termos inteiramente formais. A irreverencia tem algumconteudo que implica uma determinada atitude, perante algo quese pretende digno de reverencia.

Esse termo pode ser valorizado positivamente, ou negativa-mente, porem, sempre que for valorizado positivamente, o proprioindivıduo que e irreverente, que invaloriza sobretudo, ele nao con-cordara que ele e irreverente.

P.e., o sujeito que faz uma satira rıgida de alguma instituicaopretensamente respeitavel, os outros lhe dirao que ele e irreve-rente, mas ele dira que rir de uma coisa dessas nao e irreverente.

Quando voce diz que um sujeito e desobediente, ele pode con-cordar com essa qualificacao, quer ele aceite a desobedienciacomo ma, porque aı ele acha que e boa. Mas, p.e., a ingratidao,nao.

Desobediencia e transgressao sao termos puramente formais,que nao implicam numa valoracao, em si mesmas. Mas, a ingra-tidao, nao.

P.e., se voce e acusado de desobediente a uma ordem, voce podedizer que desobedeceu mesmo, porque voce acha a ordem injusta.Portanto, o mesmo termo pode ser usado no sentido positivo ou nonegativo.

Quando alguem te acusa de ingrato, voce pode dizer que nao

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foi ingrato porque voce acha que nao deve nada a alguem. Ouseja, voce vai rejeitar o qualificativo de ingrato. No caso da deso-bediencia voce aceita o termo, mas muda so a valoracao.

Ha muitos termos que sao usados negativamente em geral, masque, em si mesmos, nao implicam a valoracao negativa. Entao, saotermos formais, e a ingratidao nao e um desses.

O que eu estou querendo saber e se a irreverencia e um termoformal, ou nao. Me parece que nao. Um termo formal nao podeser colocado dentro da definicao de virtude e vıcio, porque ele naoe nem virtude, nem vıcio; tanto podem ser positivos ou negativos,dependendo do ponto de vista.

A ingratidao e uma situacao definida. Voce so pode ser ingratocom quem te ajudou. O problema e que na maior parte dos casos,usa-se o termo irreverencia num sentido metaforico. E como seusa no Brasil, o termo polemico. Qualquer pessoa que fale algoque voce nao goste voce diz que e polemico. Polemico, e quandovoce fala uma coisa que pode ser questionada e que pode dar amaior confusao.

Irreverente, propriamente, seria um sujeito que, sabendo quealgo e digno de reverencia, por isso mesmo, ele se levanta contra.Seria como blasfemar.

Se eu nao acredito em Deus, ou que Ele exista, o que quer queeu fale dele nao e blasfemia. Se eu acredito, e estou zangado comele, e o xingo, aı, neste caso, e uma blasfemia. O ateu, p.e., naopode fazer sacrilegio.

Da lista dos termos que voces acham que sejam bons ou ruins,os que sobrarem constituirao valores, positivos e negativos, queterao que ser transformados em normas. Quanto menos sobrar,melhor.

Ingratidao, e o nao reconhecimento devido a um benfeitor. E onao reconhecimento a um benefıcio recebido.

O que caracteriza o ato da ingratidao? Quando nos podemos

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dizer que um sujeito foi ingrato, ou nao? Dito de outro modo,nos termos do Husserl, qual e a condicao necessaria, a condicaosuficiente, ou a condicao necessaria e suficiente, para nos dizermosque um sujeito foi ingrato?

Aqui e que nos comecamos a tratar em termos de normas.Na definicao que nos demos, a devolucao ou a retribuicao nao

fazem parte dessa definicao, mas apenas o reconhecimento. Issoquer dizer que nos podemos baixar uma norma de que todo sujeitoque nao retribui o benefıcio recebido, e ingrato? nao, porque aretribuicao nao faz parte do conceito da ingratidao.

O reconhecimento e uma condicao necessaria, suficiente, ou ne-cessaria e suficiente, para nos dizermos se houve gratidao? Se naoda para saber isso, entao, nos temos que fazer uma sub-norma:houve reconhecimento em tais ou quais casos, e nao houve em taisou quais casos.

Vamos explicitar isso. A gratidao, por definicao, e o reco-nhecimento de um benefıcio recebido. Transformando isso numasentenca normativa, nos dirıamos que houve gratidao sempre quehouve o reconhecimento de um benefıcio recebido.

Sub-norma: quando houve reconhecimento de um benefıcio re-cebido? O que define o reconhecimento, e o nao? Nunca aconte-ceu, na vida, de voces acharem que alguem foi ingrato com voces,ou com alguma outra pessoa? E o que caracterizou essa ingra-tidao? A gratidao ou ingratidao nao esta no benfeitor, esta emquem recebeu o benefıcio, portanto, o que o benfeitor pensa, naointeressa.

O conceito de gratidao pressupoe que houve um benefıcio real,nao compensado com um benefıcio pela devolucao de um outrobenefıcio. Vejam, entao, quantas normas estao por tras disso tudo.

Para colocarmos a ingratidao aı, nos terıamos que colocar a be-neficencia como uma virtude, e se a beneficencia nao for uma vir-tude, como a ingratidao poderia ser um vıcio?

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Normalmente, na vida pratica, nos legislamos, baixamos nor-mas, sobre aspectos de detalhes, sobre casos particulares, sem en-tendermos as normas mais gerais que existem, nas quais isso seassenta.

Um dos objetivos do exercıcio e explicar as normas nas quaisvoces acreditam sem nunca se terem dado conta. Se a bene-ficencia, e a tua generosidade, nao sao uma virtude, entao, a in-gratidao, que e um nao de um benefıcio, nao pode ser um vıcio, demaneira alguma.

Entao, para colocar a palavra ingratidao como vıcio, voce temque por a generosidade como uma virtude. Qual e o contrario degenerosidade? Mesquinhez.

Se voce tivesse definido generosidade e mesquinhez, para de-pois voce condenar a ingratidao, bastaria que voce dissesse queela e uma mesquinhez.

Assim, voce vai organizando os generos e as especies. Se aingratidao e um tipo de mesquinhez, entao, nao precisa ter umanorma explıcita sobre ela; basta dizer que ela e mesquinhez. Sim-plifica.

Assim, qual e a condicao necessaria e suficiente para voce po-der dizer que houve uma ingratidao? Veja nos casos concretos:quando voce atribuiu ingratidao a alguem, foi por que? Qual erao raciocınio que estava subentendido na sua condenacao? Quenorma estava implıcita quando voce fez a condenacao?

A ingratidao de tipo afetiva, e uma especie, e uma particulari-dade. estao compreendendo como na vida diaria nos legislamossobre particularidades, sem perceber e, as vezes, sem admitir anorma implıcita que aquilo se baseia?

Mesmo entre pessoas onde nao haja qualquer tipo de vınculoafetivo, de nenhuma especie, e evidente que pode haver ingratidao.

Entao, o vınculo afetivo nao e necessario para que exista umaingratidao. No entanto, todos lembram do vınculo afetivo. Isso

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mostra que esse caso particular de ingratidao, afetiva, lhes chamoua atencao. nao e que ele aconteca com mais frequencia.

Quando voce faz um sistema de normas morais, e pega somentedetalhes, particulares, entao, e um sistema subjetivamente orien-tado. E totalmente distorcido, onde voce vai julgar os outros deacordo com aquilo que te fere. Mas, e se o sistema subjetivo dooutro e completamente diferente?

Vou lhes dar um exemplo: eu tinha um amigo, que achava quea coisa mais feia que um homem pode fazer e deixar uma mulherdesamparada, quando ela quer transar com ele. Ora, ele era um“cavalheiro”... E, ele agia assim.

Entao, eu lhe perguntei: e se fosse a mulher do proximo? Ele:“Tambem!”. Ele usava o termo “fazer carinho”. Isso quer dizerque ele achava que esse era um procedimento certo.

Ora, ha algo realmente de errado em voce desprezar aquela quete deseja, nao e? Porem, o sujeito era sensıvel a essa maldade.

Vamos supor que ele encontrasse com alguem que pensasse exa-tamente o contrario: que a coisa mais feia do mundo e voce tran-sar com uma mulher so porque ela quer transar contigo. E vamossupor que um desses conhecesse a mulher do outro. O que iriaacontecer? Meu amigo diria: “Mas, eu transei com a sua mulherporque ela queria, e eu nao podia fazer uma maldade dessas, naopodia deixa-la desamparada. nao seria humano...”. Ou seja, naose pode negar que o sujeito percebeu algo que realmente e errado,mas esse algo toca a ele. Entretanto, e se ele faz disso uma normauniversal? De fato, o princıpio que ele cumpria, nao vigora, por-que qualquer julgamento que voce faz, voce sempre pretende queseja universal.

De fato, todo mundo pratica o tal do imperativo categorico.Todo mundo acha que qualquer outro, colocado naquela posicaodele, teria que fazer mais ou menos a mesma coisa, e e por issomesmo que ele faz.

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Em geral, na vida pratica, os nossos preceitos morais sao todosdesse tipo: o particular, ampliado, generalizado ate a universali-dade, como norma.

Porem, esse particular, por sua vez, ele se fundamenta logi-camente em outras normas que voce desconhece. Quando voceaplica uma norma, e quando voce aplica outra?

Se voce pegar varias normas particulares, voce vai ver que todaselas se baseiam em algumas normas mais gerais. E a norma geralque da o criterio de aplicacao das normas particulares.

Entao, vamos supor o princıpio: jamais podemos deixar de fazercarinho pelas mulheres interessadas. Qual e o fundamento disso?Qual e a norma mais geral, da qual, essa e um caso particular?Seria, p.e.: fazer o bem ao proximo.

Porem, se ele fizesse isso somente com as mulheres interes-sadas, ele teria que deixar de cumprir essa mesma norma comrelacao aos maridos das referidas mulheres.

Quando voce sobe desde a norma particular ate o seu funda-mento mais geral, voce ve como voce esta sendo inconsequentequase que o tempo todo. As discussoes morais, as condenacoes,os elogios, geralmente, sao baseadas nesse tipo de aberracao.

Gracas a Deus, as pessoas, em geral, nao tem autoridade sobre avida moral alheia, porque se tivessem, seria um Deus- nos-acuda!E tambem, as opinioes morais das pessoas ja nao sao ouvidas.

Porem, aqueles que pretendem levar uma vida intelectual, quepretendem que sua opiniao tenha uma autoridade, eles nao po-dem continuar assim. Voce tem que ser mais responsavel nas suasopinioes, porque, se voce julga o proximo com um determinadocriterio, voce tem que admitir que esse criterio e valido tambempara voce.

Se voce faz qualquer julgamento com uma determinada normaparticular, voce tem que aceitar tambem a norma geral na qualaquela se fundamenta.

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E voce tambem tem que aceitar que, em funcao dessa normageral, talvez aquela particular que voce tem usado, nao se apliquenaquele caso.

P.e., se voce coloca uma enfase afetiva na ingratidao, voce cer-tamente conseguira, com a maior boa consciencia, ser ingrato comum monte de pessoas as quais voce nao esta afetivamente ligado,e nao vai se sentir um ingrato.

Isso aqui ja e uma crıtica da norma.Na hora que voce vai tentar definir a norma relativa a ingra-

tidao, voce cair num particular, entao, voce tem que remontar auma norma mais geral.

Se voce conseguir fazer um sistema moral que chegue a 10 nor-mas, e verificarmos se atras dessas normas existem outras que asfundamentam, nos ja vamos corrigir um monte de criterios morais.P.e., por que a enfase no afetivo? O afetivo parece mais importante.Mas, o afetivo seu; o afeto do outro, voce nao sente?

Entao voce supoe que a ingratidao e pior se voce e ingrato comalguem que voce gosta. E se voce for ingrato com alguem quegosta de voce, sem que voce goste dele? Voce nao sente a ingra-tidao. E, essa e a definicao mesma da ingratidao. E, duplamenteingrato: voce ingrato por nao gostar de alguem que gosta de voce,e e ingrato por nao reconhecer o benefıcio que ele te fez, e, porultimo, voce e ingrato por nao dizer que isso e ingratidao.

Isto quer dizer que, na vida diaria, o que nos chamamos dejustica e, precisamente, o que e injustica. A ausencia de clarezasobre esses pontos e quase universal. A confusao e total.

Os 10 Mandamentos sao uma formula de normas gerais. Elessao princıpios morais.

Se voce pegar o primeiro mandamento: Amar a Deus sobre to-das as coisas. O que e Deus? Quid est? nao sabemos nem se Eleexiste. Porem, se existisse, Ele deveria ser algo bom. Mas, naoessa ou aquela coisa boa em particular. Entao, voce comeca a ex-

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plicitar essa norma, em normas mais concretas: o Bem universaldeve ser amado acima de todos os bens parciais, ou particulares.

Por outro lado, esse Deus, se existir, deve ser verdadeiro. Alias,se Ele nao existe, Ele nao e nem Deus. Entao, voce deve amar oque e verdadeiro acima do que e falso.

A mais mınima aplicacao de um desses criterios ao julgamentode um ato qualquer ja bastaria para corrigir os criterios desse ato.P.e., se nos dizemos que o Bem universal deve ser preferido a qual-quer bem particular, entao, no caso da gratidao e ingratidao, voceteria que ver o que existe de intrinsecamente bom no ato do seubenfeitor, e no seu. E, tanto um ato, quanto o outro ato, deveriamir no sentido do Bem.

P.e., a preferencia pelo Bem. Voce tem certeza que voce prefereo Bem? Se voce nao prefere o Bem, com que autoridade vocejulga os outros?

Preferir o bem como norma moral, seria a norma fundamentalde qualquer codigo. Isto significa que, em qualquer caso, em qual-quer situacao em particular, por mais peculiar, esquisita, singular,que seja, deve haver um lado, algo, que favoreca o Bem universal.Bastaria voce aplicar isto que voce ja corrige imediatamente. P.e.,quando voce deve ser grato? Sempre que a gratidao for um bem.

Quando que a gratidao e um mal? Em princıpio, jamais. E sevoce for grato a quem nao te fez nenhum benefıcio? Ha algum malnisto? nao. Digamos que seja neutro.

E se voce for ingrato com quem te fez um benefıcio? Aı, isto emau!

E se voce for grato com quem te fez um benefıcio, com maintencao? Em princıpio, se e para aplicar o Primeiro Mandamento,e ser grato sempre, por via das duvidas.

Isto significa que nenhuma ingratidao se justifica jamais sobpretexto algum.

Uma maneira simples de voce construir um codigo moral seria

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voce pressupor os 10 Mandamentos, e interpreta-los ao seu modo,nao teologicamente, mas de acordo com o simples sentido logicoque as frases tem e voce deduzir dali.

Uma outra maneira seria voce pegar as virtudes teologais daIgreja catolica (Fe, Esperanca, Caridade, Fortaleza, Temperanca,Justica, Prudencia), e ver como voce entende cada uma destas, maseste metodo nao seria bom porque eu nao quero que voces facamum sistema perfeito.

Eu quero e que voces percebam as lacunas que existem no sis-tema moral de voces. Estas lacunas sao a de que voces legislamsobre o particular, sem legislar sobre o geral. Isto e o que se chamade casuısmo.

Sem ter um princıpio determinado, voce legisla para um deter-minado caso, voce faz uma lei que se aplica a um caso e isto e umadistorcao tremenda. Se voce for legislar caso por caso, entao, cadapasso e uma norma e nao acaba mais. Isto tambem significa quetudo o que voce faca esta certo.

Geralmente, as normas morais de uso corrente sao todascasuısticas. Entao, nao e possıvel haver nenhuma justica nisso,nunca.

Qualquer sistema moral pressupoe uma estrutura logica de-dutıvel que vai do geral para o particular. Ele pressupoe umaestrutura coerente desde a norma fundamental. O que quer queesteja desligado da norma fundamental nao faz parte do sistema.Se voce legisla casuisticamente como que voce iria remontar desdeestes multiplos casos ate a norma fundamental?

Se nao existe uma norma fundamental, entao nao existe sistemamoral, e se nao existe sistema moral voce nao tem nenhum jeitode dizer se as normas do outro estao certas ou erradas. Entao aca-bou o dialogo e virou a lei do pega-pra-capar, e a lei do cao, domais forte. E e o que acaba vigorando. E mais, nao e qualquer sis-tema moral que e compatıvel com qualquer outro. Alias, o que um

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sistema considera lıcito e bom pode ser o que o outro considerapior.

P.e., o sistema moral socialista de que tudo o que contribui paraa Revolucao, para a libertacao do proletariado, e bom. Eles ado-taram esta norma e imediatamente comecaram a agir de maneiraque pareceram inteiramente aberrantes e criminosos ao restante domundo. P.e., por que manter os tratados internacionais, se rompe-los pode ser melhor para a vitoria do proletariado? Porque os trata-dos foram feitos com base num sistema etico. O sujeito assinava otratado com base num sistema e cumpria outro. Isto e estelionato,nao e?

Do mesmo modo, nas relacoes humanas se voce da um signi-ficado as suas normas e o outro da outro significado eu vejo quena nossa sociedade isto esta ficando cada vez pior, porque se vocenao tem a unidade mınima de um princıpio moral a ser ensinado auma sociedade as pessoas vao acabar inventando algum codigo. Eacabam inventando mesmo.

Eu nao sei de nenhum lugar nesse paıs onde ninguem esteja fa-zendo um unico esforco para esclarecer isto, a nao ser aqui. nao seise isto vai dar algum resultado mas, eu acho bastante possıvel quese houver algumas pessoas que tenham alguma clareza nisso essaclareza possa irradiar um pouco pelo meio. Mais dia, menos dia,voce acaba falando coisas obvias e as pessoas acabam ouvindo.

Entao, voces vejam que no caso da ingratidao nos caımosno casuısmo. nao conseguimos definir a norma da condicaonecessaria e suficiente da ingratidao ainda porque caımos nocasuısmo do afetivo, mesmo sem mencionar que se voce gosta deuma pessoa e ela e ingrata com voce, voce acha que a ingratidao ehorrıvel.

Porem, com relacao a pessoa que voce nao gosta se voce foringrato voce nao sente que foi. Portanto, o vınculo afetivo da gra-tidao complica tudo.

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Mas, a maneira normal e habitual de fazer um sistema nor-mativo nao e assim como nos estamos fazendo. E exatamenteo contrario. Primeiro voce vai colocar a norma fundamental eatraves de uma discussao dialetica das normas existentes voce fixaessa norma fundamental como um princıpio, nem que seja pordeducao.

Entretanto, o que eu estou querendo e achar uma especie de in-teligencia que orienta as acoes de cada um. O mais certo seria vocefazer este exercıcio sozinho. So que isto requer uma concentracaoque, em geral, leva anos para voce adquirir.

As pessoas nao se examinam direito porque para isso elas pre-cisariam de ficar as vezes 2 ou 3 horas seguindo o fio da meadade intencoes implıcitas, e para isso e necessario um esforco. Mon-tar uma situacao dialetica exterior, atraves de um interlocutor, ficamais facil.

[voltando ao texto do Husserl, ele faz um retorno a pagina 17,linha 63]

A totalidade destas normas forma evidentemente um grupo cer-rado, definido pela valoracao fundamental. A proposicao norma-tiva, que exige em geral dos objetos da esfera em questao quesatisfacam na maior medida possıvel as notas constitutivas do pre-dicado positivo de valor, ocupa uma posicao preeminente e podedesignar-se como norma fundamental. Este papel e represen-tado, por exemplo, pelo imperativo categorico na etica de Kant;igualmente pelo princıpio da “maior felicidade possıvel para omaior numero” na dos utilitarios (ou pelo Primeiro Mandamentoda Bıblia).

A norma fundamental indica o princıpio (o valor fundamental)com ajuste ao qual deve verificar-se toda normacao, e por isto elanao representa uma proposicao normativa em sentido proprio. Arelacao da norma fundamental com as proposicoes propriamentenormativas e analoga a que existe entre as chamadas definicoes

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da serie numerica e os teoremas aritmeticos sobre as relacoesnumericas — fundados sempre naquelas. Cabe tambem designar anorma fundamental como a “a definicao” do conceito do bem cor-respondente, mas isto seria abandonar o conceito logico habitualde definicao.

Se nos propomos a finalidade de investigar cientificamente,com referencia a uma “definicao” desse tipo, a totalidade dasproposicoes normativas correspondentes, surgira a ideia de umadisciplina normativa.

A disciplina normativa seria construıda fixando-se uma normafundamental e em seguida com referencia a um valor que nessanorma fundamental esta expressado a tıtulos maximos, voce vaiachar as normas que estabelecem as condicoes necessarias e sufi-cientes para usar nos tipos de atendimento desse requisito.

O que nos estamos fazendo aqui e exatamente o contrario. Nosestamos tentando remontar desde certas valoracoes efetivamentefeitas na pratica ate algumas normas implıcitas.

Se fosse possıvel voce remontar ate uma norma fundamentalimplıcita, entao voce teria esclarecido de fato a totalidade do certopensamento moral real. So que voce nao vai achar essa normafundamental por uma razao muito simples: e porque ela nao existe.

O tipo de julgamento moral que se faz na vida cotidiana geral-mente deriva de um composto acidental de varios sistemas moraisdiferentes, e voce chegaria a varias normas morais contraditorias.Sao sistemas morais superpostos.

Seria muito interessante se fosse possıvel, na pratica, voce pegaruma pessoa, que nao fosse voce mesma, e esclarecer totalmente,norma por norma, implıcita no comportamento dela ate voce che-gar a essas normas fundamentais. Aı voce teria demarcado cienti-ficamente qual e a composicao desse complexo de sistemas moraisque esta na cabeca dessa pessoa.

E possıvel voce fazer essa analise, mas nunca de forma com-

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pleta. Levaria meses para voce examinar isso tudo.Porem, como as pessoas geralmente nao tem essa capacidade

reflexiva de comparar o seu comportamento num momento como de outro momento, as suas intencoes de agora com as suas pa-lavras de ontem, entao a multiplicidade incongruente das normasque fundamentam o seu comportamento acabam lhe escapando.

Isto nao quer dizer que essa nao possa ser responsabilizada porisso. Ela pode e deve. Porem, na hora que voce a responsabiliza,apelando a ela a inclusao dessa ou daquela norma fundamental queela mesma afirma com seus atos, a pessoa simplesmente nao reco-nhece. A pessoa nao reconhece a sua obediencia a essas normasfundamentais.

Quando nos denominamos, classificamos, certos comportamen-tos morais como sendo, p.e., utilitarios, pragmatistas, ou nos refe-rimos a sistemas morais que a pessoa desconhece, ela simples-mente nao sabe do que voce esta falando.

O fato de voce nao saber o nome do sistema moral nao querdizer nada. Voce nao precisa saber o nome de uma corrente deideias para voce estar embarcado nela.

Por esta referencia, ligacao, que voce estabelece entre o com-portamento real, concreto, de detalhes, e esses sistemas, e aı quevoce vai captar o sentido universal daqueles mandamentos.

Em suma, nos estamos aplicando aı o princıpio Kanteano; nosestamos julgando o sujeito com base em que ele acredita mas naoqueira ser categorico porque, de fato, todo mundo acredita impli-citamente. O imperativo categorico e menos do que o imperativo,menos do que uma realidade psicologica fundamental.

Uma coisa estranha foi quando eu livro de Filosofia Polıticado Eric Weil onde nas primeiras sentencas ele diz assim: ”TodaPolıtica e mundial. Qualquer corrente polıtica nunca e so paraaquela situacao ou para aquele local, ela tem sempre a afirmacaode uma proposta polıtica mundial.

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Eric Weil tem razao porque a proposta polıtica e limitada notempo e no espaco; e uma limitacao contingente. O sujeito naoadotaria essa ou aquela polıtica se ele nao achasse que aquilo ebom para a humanidade em geral.

Na pratica, ele talvez nao consiga estender essa polıtica alemde talvez Jacarepagua, mas e uma limitacao acidental. Do mesmomodo, o preceito moral. Qualquer regra moral que esteja implıcitaem qualquer ato, o indivıduo ao agir assim esta afirmando a uni-versalidade daquilo. Caso ele pretenda ter alguma razao...

Tambem existe a possibilidade do sujeito negar a Razao e negara fundamentacao dos seus proprios atos. E o sujeito que acha quenao deve satisfacoes a ninguem, faz as coisas porque quer, e a suavontade e lei. Entao, so tem duas alternativas: ou o imperativocategorico, ou a lei do cao.

Entretanto, adeptos assumidos, explıcitos, da lei do cao saomuito raros. Em geral todo mundo pretende ter razao de algummodo, por mais absurdo que seja o que se faca. Na medida emque voce pretende ter razao, voce esta apelando a uma instanciauniversal.

P.e., no caso citado, se voce sente a ingratidao da pessoa pelaqual voce tinha afeto, mas nao sente a ingratidao que voce mesmofaz por uma pessoa que voce nao tenha afeto, voce esta procla-mando que esse comportamento e justo para qualquer um colo-cado nessa situacao. Porem, o fato e que se esse princıpio fosseadotado universalmente seria, de fato, um Deus-nos-acuda.

Portanto, existem princıpios e normas que so continuam fun-cionando enquanto sao implıcitas e mais ou menos inconscientes,porque se for conscientizado e declarado voce ve que e um absurdona mesma hora.

Portanto, a inconsciencia do fundamento moral do seu ato, asvezes, e um condicao para que esse ato possa ser realizado.

Toda disciplina normativa esta, pois, univocamente caracteri-

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zada por sua norma fundamental. Nas disciplinas teoreticas falta,pelo contrario, esta referencia central de todas as investigacoes auma valoracao fundamental: a unidade de suas investigacoes e acoordenacao de seus conhecimentos estao determinadas exclusiva-mente pelo interesse teoretico, que se dirige a investigacao daquiloque se implica objetivamente (isto e, teoreticamente, por virtudede leis imanentes aos objetos).

Imanentes aos objetos, e nao colocadas por uma vontade hu-mana. Porem, ainda aqui nos poderıamos levantar a seguintequestao: quem diz que o conhecimento deve ser objetivo? Quemdiz que o conhecimento deve ser verdadeiro? Isto tambem e umanorma fundamental.

Por que o conhecimento verdadeiro deveria ser preferıvel a umconhecimento falso? Por que dizer a verdade e melhor do quedizer a mentira? Voces verao que no fundo de toda investigacaoteoretica existe uma opcao normativa, para nao dizer etica, fun-damental, que e pelo princıpio da veracidade o qual nao e nadadiferente do que uma aplicacao do Primeiro Mandamento: Amara Deus sobre todas as coisas. Se Deus e a verdade, entao amar averdade acima de todas as coisas.

A Ciencia mesma baseia nisso de modo que, embora na praticaa estrutura logica dela nao derive, em si mesma, de uma normafundamental o conceito de Ciencia sim, se apoia numa norma fun-damental. A estrutura interna da Ciencia e determinada exclusiva-mente pelos nexos, pelas ligacoes objetivas, imanentes ao proprioobjeto.

O apelo a logica e um dos aspectos fundamentais do apego averdade. A logica e a nao, que e uma das formas fundamentais daverdade. E o que voce disse e o que voce nao disse. Num discursoduplo isto nao pode ser verdade.

Condenar a contradicao em logica e a mesma coisa que acondenacao da mentira na Etica, e a forma fundamental da mentira

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e o discurso duplo simbolizado na serpente que tem lıngua dupla.Porem, voce nao esta realmente obrigado a esta condenacao.

O sujeito, na verdade, e livre e se voce quiser mentir o tempotodo nada te impede. O fato e que voce fica excluıdo da humani-dade de algum modo. Mas, como a exclusao da humanidade, aocontrario da lenda, nao faz o seu nariz crescer, ou adquirir umaaparencia assustadora, diabolica, voce continuara entre os sereshumanos, como se fosse um deles, e isso e que e o pior de tudo.

Se voce pegar o supremo mentiroso, ele nao parece mais men-tiroso do que os outros, alias, em geral, tem uma aparencia inocuae voce so fica sabendo a posteriori; pior ainda, voce fica sabendoque ele falava mentira simplesmente porque ele foi derrotado. Seo mentiroso vencesse, a maior parte das pessoas continuaria acre-ditando.

Isto e uma das coisas mais assustadoras da vida: o fato de quevoce nao e obrigado a aderir a verdade.

Normalmente, as pessoas obedecem a aquilo que lhes foi en-sinado. Na medida em que o que foi ensinado representa algumvalor efetivo, real, o sujeito continua mais ou menos dentro dadecencia. Mas, isso sao habitos. Ninguem faz voce mudar repen-tinamente.

As pessoas que sao educadas dentro de determinados princıpios,ficam muito apegadas a eles. Entretanto, isto tambem e ilusorio.P.e., na programacao neurolinguıstica, e o caso da tentacao bemcolocada no momento exato:”Ninguem esta vendo...

Ninguem vai saber...”. E tremendamente facil. Pode-se puxaro sujeito para baixo atraves de uma sucessao de sugestoes. Hapessoas que sao treinadas para isso: como corromper os outros.

Nunca e de uma maneira que o sujeito pense que esta sendocorrompido. Geralmente, e na base de se isolar um ato da normaque o fundamenta, como se nao fizesse parte de um sistema deencadeamento logico e causal dos atos humanos, porque ninguem

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esta vendo entao parece que nao ha consequencias.Mas, isto e uma ilusao cognoscitiva porque tudo esta ligado,

tudo tem consequencia evidentemente. So nao tem consequenciao que nao e feito. Se e feito, o ato entra no sistema de causa eefeito, quer voce queira ou nao.

A definicao de uma atitude inconsequente e voce fingir que umato nao tem consequencia alguma. Voce nao enxerga, ou nao quersaber das consequencias daquele ato.

Para que voce torne o sujeito um inconsequente basta voce dizerque ninguem sabera das consequencias.

As experiencias de liberdade de decisao, eu tive muito cedo, efoi isso uma das coisas que me pos no caminho da Filosofia. Comoeu nao tinha uma autoridade, tinha que achar um fundamento.

Se voce recebeu uma educacao repressiva, entao voce continuaobedecendo sem pensar. A educacao repressiva nao garante nada,alias, e o contrario, esta todo mundo solto, muito mais livre do quevoce imagina. A sorte e que isso e para o lado bom, e e para o ladomau tambem. O fato de que voce esta habituado ao mau tambemtorna compulsiva e obrigatoria a pratica do mau.

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19 de marco de 1993

[ATENCAO!! A fita nao gravou a parte inicial da aula. Comonao sabia que o gravador estava desligado, copiei apenas algumasfrases soltas. Seria interessante procurar no caderno de alguemque tivesse anotado essa introducao na ıntegra pois ela conteminformacoes importantes. Transcreverei aqui, entre parenteses du-plos, as frases que anotei incluindo um organograma que o Olavodesenhou no quadro].

((Todo ato humano tem um conjunto de causas))((As causas nao precisam ser conhecidas pelo indivıduo))((A traducao psicologica das causas sao os motivos))((O motivo e uma parte e se expressa como um impulso de uma

necessidade))((O motivo subentende uma intencao))CAUSAS — JUıZO — MOTIVO (intencao) — PRETEXTO —

ATO[Comeca aqui a transcricao da fita]Quando voce decide fazer uma coisa e porque voce aprova esta

coisa. Voce aprova em nome de qualquer pretexto. Esse pretexto ecomo voce se explica as razoes do seu ato. E a sua justificacao. ‘Asvezes nao precisa ser uma justificacao expressa, pode ser implıcitamas esta sempre presente.

Se voce chega ao ponto de poder assinalar uma causa para ocomportamento de um sujeito, e porque voce partindo do compor-

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tamento visıvel que e o ato e da intencao manifesta deste ato, vocesupora que esta intencao manifesta corresponde ao pretexto, ouseja, que a pessoa desejou agir exatamente do jeito que agiu. Por-tanto, pelo menos esta parte da explicacao do seu ato ela conhece,e que e o pretexto que transparece no proprio ato. A partir daı vocetem que interpretar, ou seja, e por uma interpretacao e nao por umaevidencia direta que voce chega ao conhecimento da causa.

Essa interpretacao comeca no ato, que e a parte mais superfi-cial, mais visıvel, daı voce vai um grau mais abaixo e encontra umpretexto, daı voce vai julgar a veracidade do

pretexto. E conforme a sua maior ou menor (capacidade(?))voce diz que a intencao era realmente essa ou que havia uma outraintencao, uma segunda intencao.

Existe uma intencao que foi alegada para si mesma, umaintencao evidente, manifesta, mas podera haver uma segundaintencao nao, oculta. Como e que voce pode conhecer a intencaooculta se voce nao entende nem a intencao manifesta, isto e, opretexto?

Entao, como princıpio de moralidade jamais julgue um ato sevoce nao conhece o pretexto dele. A nao ser que o ato seja tao in-trinsecamente mau que nenhum pretexto o justificasse. P.e., quepretexto poderia justificar voce estuprar uma garotinha de doisanos? Por mais elegante que seja o pretexto, nao vai convencer.E um ato, que independente do pretexto e do motivo ele e em si,ruim.

Entao voce sabe o que a pessoa fez (o ato). Quando eu te per-gunto, por que fizeram, voce responde que foi, p.e., por inveja (acausa). Eu pergunto: como e que elas explicaram isso para si mes-mas? Se voce diz que nao sabe, entao como e que voce diz quesabe que foi por inveja? Voce so sabe do ato.

Para voce saber a causa, ou seja, o ato foi causado por invejavoce precisaria saber o pretexto, saber que ele e falso, em funcao

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da situacao daquele pretexto nao precisaria justificar nem obje-tivamente nem subjetivamente, entao voce faria a suposicao daexistencia de uma segunda intencao ou de um segundo motivo.Somente assim voce pode dizer que alguem agiu por inveja.

Quem age por inveja nao tem a intencao explıcita de agir porinveja. A pessoa tem que ter um pretexto mais ou menos elegante.Mesmo para voce agir maquiavelicamente voce tem que ter umpretexto que fundamente o maquiavelismo. O proprio maquiave-lismo nao conduz o pretexto. Por que Maquiavel recomenda agirmaquiavelicamente? Porque ele diz que a natureza da Polıtica eessa. Se voce subiu ao poder com a ajuda de 10 pessoas, por quevoce deve derrubar essas 10 pessoas? Entao, voce tem que ter opretexto que fundamente esse ato maquiavelico.

Portanto, se voce esta sendo assim, voce nao esta sendo mau.Voce esta sendo simplesmente polıtico, porque a natureza dapolıtica e essa. Entao, isto e o pretexto. Voce esta legitimandoo procedimento nao em face de um preceito moral, mas em facede uma constatacao da realidade. A realidade exige que voce ajaassim. Se voce nao agir assim voce esta errado. Entao, e umaalegacao de necessidade. Geralmente as alegacoes, os pretextos,sao de dois tipos: necessidade ou moralidade. So existem pretex-tos deste tipo: agi assim porque precisava, ou, agi assim porqueera o certo. E ainda tem a terceira possibilidade do sujeito dizerque nao agiu assim, que o ato nao foi dele. Ele pode dizer que fezum ato, e voce e quem viu um outro ato.

O pretexto geralmente e um so, mas os motivos sao complexos.A causa em si mesma nao tem significado moral. P.e., o fato devoce sentir o impulso da inveja nao quer dizer que voce va agircomo um invejoso. A causa nao determina.

Toda acao humana so e humana porque ela nao e inteiramentedeterminada por causas, e sim por motivos. O juızo transforma acausa em motivos, ou seja, ele legitima a causa.

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Todos nos temos os mesmos impulsos, p.e., de matar, roubar, detransar com a mulher do proximo, etc., etc., assim como tambemos impulsos generosos.

O inconsciente de todo mundo e mais ou menos igual, entao naoprecisa dizer que tal ou qual impulso, estar presente no subcons-ciente do indivıduo, nao e um julgamento a respeito dele. Nuncae. A motivacao subconsciente nunca e motivo de julgamento por-que ela e igual para todo mundo. E na medida em que atraves dojulgamento do indivıduo as causas se transformam em motivos, eque a coisa comeca a ter uma significacao moral.

P.e., por que voce roubou? Eu roubei porque eu tenho um ins-tinto compulsivo de roubar. Ou seja, e a mesma coisa que di-zer que ele roubou porque ele e um ladrao. Se isto fosse umaexplicacao suficiente o sujeito deveria ser inocentado justamenteporque e ladrao. Entretanto, se o nao roubar, ele deveria ser pu-nido.

P.e., por que voce mentiu? Menti porque eu sou um hipocritaconsumado. Isto nem explica, nem justifica, alias isto e uma tauto-logia do tipo, bebo porque e lıquido, ou, roubei porque sou ladrao.Entao, a causa nao tem um significado moral.

Toda investigacao a respeito da moralidade dos atos se baseianos princıpios de que os seres humanos tem mais ou menos osmesmos impulsos, em dose maior ou menor. Mesmo a quantidadedo impulso nao vai ser o decisivo. nao e o sujeito que tem o maiorimpulso de roubar, que ira roubar. E aquele que admitiu o proce-dimento do roubo.

Sem um juızo que racionalizasse de alguma maneira a causa,esta causa nao poderia se transformar numa conduta, porque todaconduta humana e racional na escolha dos meios. O sujeito pararoubar, assaltar, tem que fazer um plano, um encadeamento de atosperfeitamente racionais.

A causa, o impulso, se nao passar pelo juızo nao pode ser raci-

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onalizado. Se fosse assim, entao so existiriam crimes impensados,momentaneos, repentinos, ou seja, a pessoa em menos de 5 segun-dos, roubou.

Entao, a razao, de alguma maneira tem que aprovar, ou entao elareprime e nao se manifesta. E no juızo que a causa se transformanum motivo, que pode ser claro, simples, complexo, obscuro, uno,ou multiplo.

Finalmente, este motivo e apresentado a propria consciencia soba forma de um pretexto que pode ser uma expressao lımpida ecompleta e exata dos motivos, ou pode ser um disfarce dos motivospara que aparecam um ou dois motivos mas que os piores naoaparecam, ou que mostre um motivo parecido com o verdadeiro,ou que faca uma metasbases exaloguenos.

P.e., por que voce comeu a mulher do seu vizinho? ’E porqueeu amo a humanidade...’

Ora, claro, se voce nao amasse a humanidade, voce nao ama-ria um dos seus membros, que e a mulher do vizinho. Ou seja,e uma transposicao para um outro genero. Isto e muito comum.O indivıduo alega um motivo que seria analogo, mas numa outraesfera. Qualquer crianca costuma fazer isso.

Um ato plenamente consciente e do tipo ’Fi-lo porque qui-lo’.O pretexto expressa exatamente o motivo e o motivo expressa acausa. Esta tudo em linha. O julgamento de um ato assim naoimplica nenhuma ambiguidade.

Se o indivıduo rouba e diz que roubou porque quis roubar, por-que gosta de roubar, entao o julgamento do procedimento dele e ojulgamento apenas do conceito abstrato do ato. Se esse ato e abs-tratamente considerado como mau, entao o indivıduo e culpado, evenal.

Roubar, todo mundo sabe que e mau, porem existe uma seriede motivos, de pretextos, de causas que podem fazer com que oroubo se torne uma coisa menos grave, um ato neutro, ou ate que

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se torne um ato meritorio. Porem, se o pretexto do indivıduo, o seumotivo e a sua causa foi apenas roubar enquanto tal, entao qual ea dificuldade de julgar o procedimento dele? A simples definicaodo ato ja e o julgamento.

Se o sujeito tem um objetor de consciencia, p.e., eu sou Teste-munho de Jeova, e nao quero ir para a guerra porque a religiao meproıbe formalmente de servir o exercito. Ele pode ir para a cadeia,mas ninguem pode condena-lo moralmente, ao contrario, e apenasuma condenacao funcional:“nos vamos coloca-lo na cadeia paranao manchar a reputacao do exercito, mas nao vamos falar mal devoce por causa disso”, ao contrario, o sujeito e respeitado.

Os 10 Mandamentos, p.e., se referem ao indivıduo e nao aoEstado. Voce nao pode dizer que o Estado deve amar a Deus sobretodas as coisas. Como e que o Estado vai amar o proximo como asi mesmo? O Estado tem que amar outro Estado como se fosse elemesmo? Isto e o non-sense.

Claro que o Estado e composto de pessoas, mas da para enten-der que ele e uma unidade, que ele e responsavel pelos seus atosde alguma maneira. Entao, nao tem sentido aplicar os 10 Man-damentos ao Estado. nao se pode julgar o comportamento do Es-tado pelos 10 Mandamentos assim como voce nao poderia julgar ocomportamento de um animal pelos 10 Mandamentos, porque elesse dirigem ao indivıduo humano, a alma humana.

No caso da guerra, o catolico que segue os 10 Mandamentostem o dever de ignorar o mandamento “nao mataras” quando oEstado o convoca para uma guerra.

O pacifismo e uma posicao que nenhuma religiao do mundosustenta porque e um absurdo. O pacifismo seria a destruicao dequalquer comunidade. A comunidade tem o estrito dever de sedefender contra qualquer agressao. Se ela nao fizer isto, estaraotodos lascados. Ela tem o direito de se defender e as vezes o direitode atacar. P.e., o povo que nao tem uma saıda para o mar e precisa

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disto porque estao todos morrendo de fome, ele tem o dever deinvadir o territorio do vizinho e tomar uma saıda para o mar.

Acontece que hoje em dia o sistema moral que os meios decomunicacao estao transmitindo e assim: e um julgamento muitosevero dos Estados e muito brando com os indivıduos. Entao,comecam a exigir que o Estado seja responsavel por isso ou poraquilo, e o indivıduo nao e responsavel por nada. Sendo que pordefinicao o Estado e so titular de direitos e nao de deveres. Porisso que o Estado e soberano. O Estado nao e um ente moral. OEstado e como se fosse uma realidade fısica, economica, portantoo Estado so tem o dever de fazer o que ele puder fazer.

O Estado e como se fosse um orcamento domestico. Voce podedizer que o seu orcamento domestico tem o dever de fazer isso ouaquilo?

Quando voce recebe uma ordem do Estado o autor do ato e ele.Na guerra, quem mata nao e o indivıduo, e sim o Estado. Vocenao e o autor do ato; voce e o instrumento do ato. Que liberdadevoce tem de nao fazer isto? Voce nao tem liberdade de escolhanenhuma. O que voce pode e evocar o objetor de consciencia eposteriormente por causa disso ser fuzilado.

Para que nos impusessemos um dever seria necessario que noscolocassemos o heroısmo como uma obrigacao fundamental.

Voce pode fazer um julgamento isolado: o Cristianismo diz quenao se deve matar, e os sujeitos vao para a guerra matar. Eu achoisso errado.

Isso significa que o julgamento tem por norma fundamental queos 10 Mandamentos deveriam servir para o Estado, o que e im-possıvel. Julgamentos morais isolados sao a expressao de desejos,emocoes momentaneas. nao tem sentido algum.

Normalmente, o nosso julgamento moral, tanto da sociedadequanto dos seres humanos, e constituıdo de reacoes deste tipo.Reacoes soltas, esporadicas, isoladas umas das outras, que na ver-

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dade nao tem sentido moral algum. So pode haver uma posturamoral quando e obediencia a uma norma clara, uma norma obe-decıvel. P.e., voce condenar as pessoas que matam na guerra por-que o Cristianismo diz para nao matar, esta nao e uma norma obe-decıvel. Para que elas nao matassem os seus inimigos na guerraseria preciso que elas desobedecessem os seus superiores e daı ossuperiores iriam desejar fuzila-los. Das duas, uma: ou se deixafuzilar, ou entao tem que matar os seus superiores.

Neste caso, o soldado estaria sendo mais cristao caso ele ma-tasse o seu proprio sargento ao inves de matar os soldados doexercito adversario. Isto e absurdo!

Para nao matar o sargento voce teria que deixar que ele o ma-tasse. Entao, a obrigacao numero 1 do soldado cristao seria sermorto pelo seu proprio sargento. Pareceria ser mais digno do queser morto pelo adversario. Isto tambem e absurdo!

Entao, todo sistema moral tem por tras uma norma fundamen-tal. Entretanto, voce pode fazer milhares de julgamentos fundadosnuma norma fundamental inteiramente absurda e incoerente comoutras normas fundamentais, entao a sua mente vai ser um com-posto de sistemas morais incongruentes.

Sistemas morais incongruentes nao permitem uma discussaomoral seria. O seu proprio procedimento, o seu proprio julga-mento nao pode ser julgado, porque conforme o momento vocesaca deste ou daquele codigo. nao existe dialogo. Ninguem podereclamar do que voce fala ou do que voce faz e isso e a propriaviolencia.

O julgamento moral baseado no sentimento e apenas mais outroque existe. O sentimento e egoısta, por definicao.

No caso da guerra nao faz parte da obrigacao de um Estadoevitar sofrimento por um Estado inimigo. Isto e um requinte demoralidade que a unica nacao que se preocupou com isto foi osEUA.

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Em toda a Historia, se houve uma nacao que refreasse o seuinstinto belicoso por qualquer motivo que fosse, foi os EUA. Prin-cipalmente porque la tudo o que voce faz tem que dar satisfacaopara a opiniao publica — ha os que gostam, os que nao gostam —e o Estado tem que ser refreado de alguma maneira. Os EUA sao ounico Estado em toda a Historia que nao usa todo o seu potencialbelico em toda a sua plenitude.

Eu acho que qualquer sujeito da esquerda mundial, qualquersujeito que disser qualquer coisa contra os EUA, ja nao tem au-toridade, de cara. Nenhum comunista tem o direito de falar nadacontra os EUA.

Voce poderia, em nome de determinados princıpios de eticapolıtica e nao moral, vigente na democracia americana, condenaros EUA. Fora disso, nao. E isso ninguem precisa fazer porque oamericano faz melhor que qualquer outro. nao ha quem fale maismal do seu Estado do que o americano, alias, nos aprendemos comeles.

Voce vai condenar os EUA em nome de que princıpio moral-polıtico? Dos vigentes no Brasil, ou da URSS, ou da China? naopode, nao e? So se pode condenar segundo os princıpios vigentesnos EUA, e claro! Numa sociedade onde voce tem meios, ondevoce e capaz de criticar, de condenar e eventualmente amarrar asmaos do Estado, certamente e a melhor sociedade que ja foi inven-tada. Nas competicoes entre os regimes polıticos, e preciso ser umverdadeiro imbecil para achar que algum outro tipo de regime iriaacabar ganhando.

Quantas pessoas no mundo estavam sequiosas para viverem sobum regime comunista? Eu acho que ninguem. Havia gente que-rendo implantar o comunismo sempre supondo que quando se im-plantasse o regime ele estaria na casta governista. Entretanto,ninguem queria ser um simples cidadao. Entao, nao era precisoser muito esperto para ver que o movimento socialista, comunista,

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ia acabar logo. nao e impressionante que o comunismo tenha aca-bado, mas sim como ele tenha durado tanto.

Se voce quiser desmontar o Estado americano, como fazer isto?Em primeiro lugar, o que e o Estado americano? Ninguem sabe.Qual e o sistema de poder? Ele e indescritıvel. Ele e tao complexoque ninguem domina aquela coisa. Ele nao tem uma estruturadefinida. E como se fosse uma ameba, e voce nao pode desmontaruma ameba. Se voce desmontar um governo, voce nao desmontao Estado. Ele continua funcionando porque o Estado e a propriasociedade.

Ja o sistema de poder na URSS era a KGB. Tirando a KGB, caitudo. E nos EUA? E se tirar a CIA? Vai prejudicar internacional-mente, mas por dentro vai continuar a mesma coisa.

O que a CIA faz la dentro? Alguem pode investigar a vida dealgum americano como a KGB fazia? nao pode. Se voce for tentardescobrir se um sujeito e traficante de toxicos, a imprensa podecair de pau em cima de voce, o xerife pode nao ser eleito por isso,etc., etc.

Entao, para voce matar a nacao americana, so se voce matarcompletamente o espırito do povo, mas isso leva seculos. Comomudar os habitos do povo? Mudando o eleitorado? O que importao eleitorado se 70% da nacao nao vota? A forca da democracia ea propria anarquia.

Na China comunista, p.e., eles estao tentando achar um pretextoelegante para se tornarem capitalistas.

Vejam voces o seguinte: o codigo de interesse do Estado sesobrepoe a uma etica universal abstrata. O primeiro Estado domundo que foi construıdo em cima de uma etica universal abstratafoi os EUA. Era para ter sido a Franca com a Revolucao, masdepois a Revolucao desandou, veio Napoleao, a restauracao, etc.,e aı embaralhou tudo.

Mesmo nos EUA este conceito ainda demorou para ser imple-

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mentado. Na epoca da independencia haviam duas correntes: umaaristocratica que queria o estilo antigo de uma oligarquia domi-nante, e havia quem queria a democracia radical. Ate hoje os EUAainda nao decidiram exatamente o que querem.

Entao, reconhecer que a integridade do corpo e da psique hu-mana e intocavel, nao interessando julgamento que voce faca sobreo outro, isto e um princıpio abstrato. nao e um princıpio natural.nao e natural no homem ele perceber que um outro e igual.

O racismo, p.e., e uma coisa natural profundamente arraigadono homem. Leva milenios para o homem entender que um outrocompletamente diferente de voce tambem e gente como ele. To-dos os povos sao racistas, por definicao. Um filosofo pode tentarexplicar que isto nao e assim, mas geralmente eles vao matar ofilosofo.

O racismo e biologico porque voce tem medo do que e diferente.Se e diferente em princıpio e inimigo. E uma reacao de medo. Ouseja, por via das duvidas...

Isto e para voces terem ideia do caos moral que existe na cabecade cada um. Para consertar este caos tem que ir atraves dessesprocedimentos, tentar construir uma filosofia moral para voce.

Eu nao sei qual vai ser o conteudo dela. Voce vai levar 30anos para fazer e nao sei qual conclusao voce vai chegar, poremse isso nao for baseado numa norma fundamental explıcita e naotiver uma coerencia, entao simplesmente eu nao posso te enqua-drar, voce nao tem codigo, voce nao tem princıpios. Voce nao estacomprometido com nenhuma norma fundamental, e portanto elenao pode ser cobrado. Se as pessoas nao tem princıpios, entaoevidentemente e o caos moral.

Entao, quando lhe baterem a carteira voce nao tem nada quereclamar. Voce vai reclamar em nome do que? Que autoridadevoce tem?

Querer que suba o nıvel moral da sociedade sem que suba o seu

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proprio, isto e totalmente impossıvel. A sociedade nao tem que termoral nenhuma, muito menos o Estado. O Estado e uma realidadefısica do esquema de poder existente.

P.e., vamos supor que voce tenha um homem forte e um homemfraco. Evidentemente o homem forte tem mais poder sobre o fracopor ser forte, e ele manda no fraco. Isto e o Estado.

O Estado e quem tem o poder, e nao quem deveria ter o poder.nao se pode confundir o Estado com o conjunto de leis ou dasinstituicoes, que podem ser totalmente falseadas como e o casobrasileiro.

‘As vezes as leis e as instituicoes expressam a estrutura do po-der, as vezes nao. A lei pode estar na mao de um e o poder na maode outro. Como e que voce poderia impor a uma situacao real depoder tal ou qual obrigacao? nao tem sentido.

Entao, se voces puderem sair destes quadros de debate e olhara situacao um pouco mais de cima, voces vao ver que tudo isto euma demencia. A reforma moral comeca assim.

Se voce nao tiver um certo numero de pessoas que tenha umprincıpio, e consigam julgar a coisa, se voce nao tiver 1, nao ha-verao 2, se nao houverem 2, nao haverao 3, e assim por diante.nao tem outro jeito, tem que ser 1 por 1.

Se as pessoas que tem os meios e a vocacao para estudar isto,nao desenvolvem, entao nao tem jeito.

Voce pode medir as possibilidades do paıs por voce mesmo. Sea cabeca de um estudante de Filosofia esta um caos moral, imagi-nem na cabeca dos outros. Se o estudante de Filosofia nao entendeque o Estado nao e sujeito de obrigacoes morais, quem ira enten-der? O PC Farias?

A obrigacao fundamental de um estudante de Filosofia e ele ten-tar se situar no que e real. Mas, ele e picado do gostinho proprio,da violencia.

A violencia consiste sumariamente em voce impor a sua von-

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tade no outro sem mais nem menos. A abdicacao disto tem queser total e definitiva em todas as esferas de vida. Nunca mais nasua vida voce vai fazer do seu impulso uma norma valida. Nuncamais voce vai achar que so porque voce esta bravo com o sujeitoele nao presta. Ou seja, o seu sentimento vai perder autoridadepara sempre. Se nao fizer isto a inteligencia nao vai avancar. vocetem que dizer assim: “O que eu gosto, ou deixo de gostar, naointeressa. Eu sou apenas mais um e igual a todo mundo. O meusentimento nao vale mais do que o dos outros”. Isto nao e o obvio.

Ou voce chega a uma esfera onde exista uma obrigacao quepode ser cobrada igualmente de todos e voce fala em nome destaobrigacao, ou entao voce vai ter que impor o seu desejo. Entao,nao existe o meio termo. E como disse Jesus Cristo: “Quem naoesta comigo, esta contra Mim”.

E claro que voce pode ter o seu desejo, o seu impulso, os quaispoderao ser satisfeitos todas as vezes que os outros concordaremcom isso, e se nao concordarem voce vai ficar frustrado como todomundo ficaria.

Essa coisa sinuosa que evita as definicoes serias durante a vida euma fuga da realidade, porque e conciliar o inconciliavel. Se o su-jeito adiar isto, a vida nunca comeca. Entao, voce pode fazer o atoinaugural que e desistir de fazer do seu desejo, do seu sentimento,uma autoridade, para sempre. Seja ele qual for.

O seu desejo tem o direito de ser atendido sempre que alguemqueira atende-lo, e fim. Se o outro nao quiser, entao acabou o seudireito. A vida e assim.

Para isto significa voce descer de uma montanha, desinflar umbalao que coloca o EU acima da humanidade, e entender que vocee so mais um, que nao faz diferenca alguma. Esta e a realidade.

O que e isto senao a traducao logica do Mandamento “Amar aoproximo, como a si mesmo”?

Tambem pode ser “Detestar o proximo, como a si mesmo”, nao

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e? Voce tem que julgar o outro com o mesmo padrao que voceusa para julgar a si mesmo, e vice-versa. Se voce nao fizer estatentativa voce nao sobe a esfera da Razao, jamais. Isto e um impe-dimento moral basico.

Se eu sei que nos somos membros de uma mesma especie quenao tem diferenca essencial alguma, que enquanto seres viventes,enquanto animais somos exatamente iguais, temos exatamente osmesmos desejos, exatamente os mesmos impulsos de base comuma pequena diferenca quantitativa que e ridıcula, desprezıvel,entao nao tem sentido voce colocar voce no centro e o outro naperiferia.

Esta e a famosa ilusao do ego que o Budismo diz que voce temque perder. O ego existe, so que ele e so mais um.

E o sujeito que fala isto aqui que eu estou falando? Quando elefala isto ele esta com uma autoridade total. Isto o Estado pode ateimpor as pessoas, e de fato impoe. Um pouquinho de igualdadecivil existe porque os Estados impuseram, porque se largar o serhumano solto ele suprime isto no dia seguinte.

O sujeito vai falar de igualdade civil para os outros, e a diferencacivil para ele.

Quem faz uma opcao pela Razao diz adeus a violencia. Umsujeito santo nao adquire mais direitos que os outros. Voce podeadquirir um merito, mas nao um direito.

P.e., o direito a satisfacao dos seus desejos. Voce ter direito aroupa que voce gosta, ao padrao de vida que voce gosta, a mulherque voce quer, etc., etc., voce acha que alguem tem este direito?Nenhum desejo tem o direito de ser atendido, jamais. O desejo eatendido porque alguem ...(?)...

Esta opcao pela Razao deve se traduzir imediatamente numaefusao de boa vontade para com o mundo.

A boa vontade significa voce colaborar, nao encher o saco, res-peitar, etc., ou seja, o seu desejo cede ao desejo do outro, de boa

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vontade, em nome da paz, da ordem, e daı da tudo certo, senao naotem conserto.

Se nao for assim so resta o Estado tiranico, e voce entra noLeviata do (Hobbes(?)), onde voce precisa de um Estado tiranicoporque os seres humanos sao todos animais. Eles vivem em estadode guerra perpetua, e a guerra so para quando vem o chefao emanda parar.

E como crianca brigando. nao ha jeito de voce fazer uma brigade criancas parar se nao for fazendo uma violencia em cima deambos. Chega entao uma violencia maior que para uma violenciamenor. A rigor, existe tirania no mundo por causa disto.

Entao, parta do princıpio de que os seus julgamentos moraisestao errados. Se estao certos e por sorte, porque a quase totalidadedas vezes voce estara equivocado.

Em primeiro lugar, o ato de julgar, em si ja e errado. Por quevoce tem que ter uma opiniao sobre o comportamento do outro? Oato de julgar nao e um direito seu.

Em geral voce julga porque voce quer manter um simulacro deordem cosmica baseado no princıpio de que voce e certo e o outroe errado. Mas, isto e a propria desordem cosmica! Voce so devejulgar quando voce e obrigado a faze-lo, e dentro dos limites dasua obrigacao. P.e., um pai e obrigado a julgar o procedimentodo filho porque cabe a ele a educacao do filho. Se o filho bate nooutro, ou rouba uma coisa, o pai tem que julgar, ate que o filhoseja maior de idade. Bom, daı, de fato, nao e mais da conta dele.Ele nao precisa mais ter opiniao nenhuma sobre o que o filho estafazendo.

Se voce e o gerente de uma firma voce tem que julgar o pro-cedimento dos empregados na medida em que ele afete a vida daempresa, e so. Quando termina o expediente, acabou a necessi-dade de julgamento.

O julgamento so e lıcito se for obrigatorio. Se voce e juiz voce

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tem que julgar, mas e por obrigacao profissional.Uma pessoa que te lesou, te prejudicou, voce nao tem nada que

julgar. Voce tem o direito de se defender, as vezes ate mesmo comviolencia, mas nao tem o direito de julgar. Mate-o, mas nao pensemal dele...

Entao, em princıpio, jamais julgar. So julgue se for obrigado.Se tiver que julgar, faca-o de forma limitada, julgue o ato e nao apessoa. Voce so pode julgar a pessoa quando ela morrer. Comovoce vai saber se ela e boa ou ma se ela nao terminou o seu dis-curso ainda? Isto so Deus pode fazer, e se Ele quiser...

Isto sao normas universais que quando voce aplicar nunca vaierrar. P.e., um professor pode julgar o que num aluno? Ele podejulgar o avanco dele no aprendizado, e fim. Mas, ele nao podedizer que a pessoa que nao avancou naquilo esta errada ou que ema, senao ele teria que dizer que ser aluno dele e uma obrigacao.Me de uma unica razao para o fato de que voce tem que ficar sa-tisfeito, e o outro tem que ficar insatisfeito. Por que isto? O outroacha justamente o contrario. Entao, so se for decidindo no jogo,no cara-ou-coroa.

O princıpio e o de voce nao lutar pela sua satisfacao. Asatisfacao so e plena quando a coisa e dada de bom grado. P.e.,o dinheiro que voce ganha com muito esforco, em geral voce sofrepara gasta-lo. Ja o dinheiro que e ganho de bom grado voce torracom a maior satisfacao.

Entao, o seu desejo nao e melhor que o meu desejo, assim comoa sua repugnancia, etc., e isto nao pode ser resolvido moralmentemas somente pela superacao do egoısmo. E so um sentimentosuperior que vence esses comportamentos, sem nega- los, semsuprimi-los.

Vamos supor que voce tenha preconceito de raca e ache que ospretos sao inferiores. Admitamos esta hipotese. Porem, se umaraca e superior a outra isto nao quer dizer que cada um dos in-

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divıduos seja superior. E quem diz que voce precisamente estaentre os superiores?

Mesmo admitindo teoricamente um preconceito de raca, ne-nhum sujeito teria o direito de professar aquilo a ferro e fogo. Ea velha pergunta de (Jan Puissinger(?)): voce ja viu algum racistademonstrar que a sua propria raca e inferior? nao tem, nao e?

O Egito, p.e., era preto, e escravizou meio mundo, tocou o chi-cote no lombo de muita gente durante milenios. O que os judeussofreram na mao deles, todo mundo sabe. Depois os judeus sevingaram deles vendendo escravos para os paıses coloniais, e aıa coisa se inverteu. E sempre assim. Entao, o criterio e sempreo seguinte: pega o seu julgamento moral, aplica o imperativo ca-tegorico, e ve o que da. Se o seu criterio disso for uma norma,qual e o significado dos termos que estao expressando a minhaintencao.

Os direitos dos Testemunhos de Jeova, p.e., sao baseados nahipotese de que eles serao minoria, sempre, e de que jamais haveraum Estado na mao deles. Neste sentido, eles se legitimam.

Os Testemunhos de Jeova dizem que existe um numero deter-minado de pessoas que serao salvas, que e de 144.000, e que elesja tem membros demais, nao pretendem se expandir indefinida-mente, e nao pretendem assumir um Estado. Eles sao assumida-mente uma minoria. Eles abdicam voluntariamente de qualquerpoder polıtico. Com isso, eles adquirem um certo direito de secomportarem como minoria de excecao, ou seja, eles nao pregamque todos deveriam agir como eles. E como fazem os judeus. Anorma judaica so se aplica a judeus, e eles vao ser sempre minoria.

Se voce inventar uma religiao universal que manda voce boico-tar o Estado, isto sera uma monstruosidade. Isto e feito no mundoislamico.

Eles tiveram neste seculo um famoso teologo chamado Said(Kutuk(?)), que interpretando o Corao a ferro e fogo dizia que so

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existe uma lei para todos os seres humanos, e esta lei e o Corao.Ou seja, o Estado que nao esteja explicitamente baseado na

lei coranica e um Estado demonıaco e que se coincide de ummuculmano viver num Estado demonıaco o dever primordial delee de destruir este Estado. E bem diferente das Testemunhas deJeova.

Os muculmanos sao 14 da populacao do planeta, espalhados por

quase todos os paıses. Se essa interpretacao fosse levada a serioteriam que cair todos os Estados do mundo.

Said Kutuk acabou morrendo enforcado por um governoislamico. Os fundamentalistas acham isto uma grande injustica.Mas, eu cortaria a cabeca deste sujeito, no ato. Por via das duvidascalaria a boca dele, na hora.

O fundamentalismo baseia-se fundamentalmente numainterpretacao polıtica, literal, da ideia do Estado Islamico.Qualquer Estado que nao seja explicitamente islamico deve serdestruıdo, ipso facto.

Said Kutuk coloca isto como uma obrigacao que incumbe a cadamuculmano em particular. Como um aspecto do (Jihad(?)).

A interpretacao que se faz do Jihad e o seguinte: para o Jihadser decretado e preciso que toda a comunidade concorde. Isto eo que esta no Corao. Jihad significa esforco, mas o pessoal usacomo Guerra Santa. O Jihad e um esforco excepcional em prol domundo islamico que justifica a matanca e o martırio alheio, e de simesmo.

Entao, teoricamente para se decretar a Guerra Santa e precisoque a comunidade inteira aprove. Na verdade, qualquer um de-clara Guerra Santa a qualquer hora.

A interpretacao do Said Kutuk e que onde quer que haja umEstado nao ha um Estado de Guerra Santa perpetua que nao precisaser decretado explicitamente, ou seja, qualquer muculmano queesteja num paıs nao ja esta em estado de guerra

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santa, e tudo o que for permitido num estado de guerra vocedeve fazer: sabotagem, terrorismo, traicao, espionagem, etc, etc.Tudo isto nao so e legıtimo como e obrigatorio. Entao, e um Es-tado fazendo uma perseguicao a um indivıduo que e habitante deum outro Estado. Por que voce tem que condenar a morte umsudito de um outro reino? E o non-sense completo.

Mas, na cabeca de Said Kutuk isto e legıtimo porque para ele soexiste um Estado que e o Estado Islamico Mundial.

Esses indivıduos legislam como se esse Estado Islamico Mun-dial fosse uma realidade hoje em dia. Isto significa que eles temjurisdicao sobre a Casa Branca, p.e. Eles estao evidentemente lou-cos!

Quando nos criticamos estas atitudes e no sentido de que vocefaca o mesmo, senao nao adianta nada. E mais um que esta jo-gando tomate e vai receber tomate em troca.

E fundamental que voce se abstenha de julgar, a nao ser queseja obrigado a isso. O que voce puder resolver na base de voceceder num conflito de dever... Em primeiro lugar, voce nao temobrigacao estrita de ceder, mas se voce nao ceder estao todos las-cados.

Entao, voce tem o dever de colaborar com a ordem publica e emnome dela voce tem que ceder, tem que deixar passar em primeirolugar, tem que desligar o ar-condicionado ou deixa-lo ligado, vocetem que aceitar um monte de incomodidades baseado no princıpiode alguem te atendera, como uma especie de sorteio alguem acabafazendo o que voce quer tambem.

E muito improvavel que um indivıduo venha a ser sempre eleo prejudicado. Voce vai precisar da boa-vontade, ou seja, querercolaborar para que tudo de sempre certo e ninguem te encha osaco.

Como regra geral de conduta isto vem diretamente do princıpioda igualdade. Voce pode dizer que nao gosta de viado, de preto,

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de padre, etc. Acontece que o sujeito e viado, acidentalmente, epreto, acidentalmente, que ele pertence a este ou aquele grupo,acidentalmente, e essencialmente e a mesma especie sua.

Portanto, nao e possıvel que o julgamento que voce faca so-bre o acidente se sobreponha ao julgamento que voce faz sobre aessencia. Ou seja, muito antes do sujeito ser viado, preto, padre,comunista, judeu, etc., etc., ele e gente.

No conjunto da estrutura humana que diferenca substancial fariarealmente o sujeito ser de uma determinada raca ou ter determina-dos habitos sexuais? Isto e irrelevante.

E claro que voce pode julgar aquele detalhe em particular, masaquele detalhe nao pode atingir de maneira alguma o julgamentoque voce faz sobre o conjunto.

Por isso que eu acho que voce pode inclusive nutrir um pre-conceito contra um habito de um sujeito, ou mesmo contra a racadele, e ao mesmo tempo tratar o sujeito de maneira muito respei-tosa, elevada.

Pessoas que tem crencas totalmente diferentes, que jamais pos-sam concordar como, p.e., um sujeito catolico e o outro ateu.Um pode nao concordar com o outro, entao o acordo nao existe.Porem, ser catolico ou ateu e acidental. Ninguem era catolico an-tes de Jesus Cristo. Ou seja, e um julgamento sobre a parte de umprocedimento do sujeito. Uma parte pequena, na verdade.

Uma religiao e uma constelacao de crencas que abrange a tota-lidade dos atos de um indivıduo, mas e um habito sexual? Ele serefere a um setor limitado da vida de um indivıduo e nao faz sen-tido voce rejeitar a pessoa como um todo por causa de um acidentedesses.

Tambem, o mesmo se aplica ao preconceito racial. Uma pessoapode ser racista, mas ela nao e o demonio, ela e gente tambem.Na esfera de relacao entre indivıduos eu acho que isto pode serfacilmente resolvido.

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Claro que voce nao pode esperar dos Estados e dos grupos soci-ais um procedimento moral elevado como voce pode esperar dosindivıduos, e evidente.

O Estado e a sociedade nao tem obrigacoes morais. Esperar queisto seja resolvido na esfera da legislacao, isto e demencia. Cadalei que voce fizesse sobre isto, voce vai criar mais e mais injusticas.nao deve haver leis sobre estas coisas. Quanto mais detalhada e alei, pior ainda.

As pessoas sempre reivindicam que o Estado faca isso ou devefazer aquilo, mas nunca aparece alguem para perguntar: “E se oEstado nao cumprir, quem ira puni-lo?”. Ninguem pergunta isto.

Se voce disser que o Governo — Presidente e Ministros — temque fazer isso ou aquilo, entao voce sabe quem tem que fazer esabe a quem punir.

No caso do menor abandonado, p.e., e o Estado, a sociedade e aFamılia. O Estado nao pode ser punido, a sociedade tambem nao,e a Famılia o menor nao tem! Entao, ele e um menor abandonadomesmo. E o abandono oficial. E um cinismo inumano.

O que realmente me espanta e que entre as pessoas letradas in-teressadas nao apareca um para orientar a sociedade e dizer queisso e inviavel.

E claro que eu nao tenho a esperanca de que nos vamos mudaresta coisa aqui. Eu tenho a esperanca de que voces cumpram asua obrigacao apenas. Eu nunca tive nenhuma ambicao de atuarsobre a sociedade como um todo jamais. Alias, eu acho a vocacaopolıtica um pouco ridıcula. Para quem gosta e bom...

O simples fato de voce na sua conduta colocar esses precei-tos em execucao, voce comeca mudar o mundo todo. Voce criauma esfera de boa-vontade irredutıvel. Isso, um filosofo tem aobrigacao de fazer porque se nao fizer a sua cabeca vai parar defuncionar. Se voce tem a Razao, a Inteligencia, entao voce tratede ser inteligente e racional em primeiro lugar porque, aı, elas te

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explicam o que voce quer saber. A quase totalidade dos impedi-mentos ...(?)... sao impedimentos de ordem moral e psicologica.O dom inato, o QI, isso nao interessa.

Raciocinem no sentido que voces viram no texto do Husserlquando ele diz que a verdade forma um sistema coeso. Voce naopode querer uma verdade e jogar outra fora. Se voce quer uma,voce quer a outra necessariamente. Voce nao pode querer umacoisa sem querer as consequencias dessa coisa.

Vamos supor que voce queira descobrir a verdade sobre um de-terminado aspecto do real. Mas, tem um outro aspecto do lado quevoce nao quer ver. Suponha que exista uma conexao intrınseca en-tre essas duas coisas. Entao, a verdade que voce quer, voce nao vaidescobrir jamais. Por isso que voce tem que abrir os olhos e dizer:“Apareca o que aparecer, eu quero!”.

Ou seja, e ser docil a verdade que apareca a voce, que se mani-festa com toda a sua complexidade. E um questao de voce aceitar.A verdade nao precisa ser perseguida, ela precisa e ser aceita. Naverdade a solucao de quase todos os problemas de ordem filosoficaaparece sozinha, contanto que voce deixe. Mas se voce quer soum pedaco quem disse que o pedaco pode vir sozinho. P.e., vocee contra a matanca dos animais, mas comer um pernil voce come,nao e?

Entao, voce nao quer encarar essa realidade. Voce quer vivernum mundo fictıcio onde o pernil cai do ceu, sem lesar nenhumser vivo. Voce quer um pedaco da cadeia causal, mas voce naoquer o que esta antes, nem o que esta depois, entao isso e umaatitude infantil. Eu acho fundamental essa abertura do coracaopara o real como um todo. Como disse Hegel: ’Sem a coragem doconhecimento voce nao vai descobrir nada”.

A natureza, p.e., e horrıvel. As pessoas nao pensam nisso. Aideia que as pessoas tem hoje em dia e que a natureza e para-disıaca. Realmente, diante das cidades infernais que nos conse-

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guimos criar, a natureza e de fato um paraıso. So que as pessoasesquecem que na Historia humana inteira o horror vinha da na-tureza. Isso e falta de memoria. Ou seja, voce inventou um tipode ser humano, se fechou la dentro e esta com saudade de comoestava la fora. E o caso de imagens onde voce ve uma casa boni-tinha, um ursinho panda brincando com uma criancinha, um leaobrincando com uma vaquinha, etc. Aı eu pergunto: “Quem vaicomer essa gente toda?!”.

E o caos dos versos do William Blake: “Uma mesma lei para otigre e o cavalo seria uma injustica”. Porque eles tem obrigacoesdiferentes.

Entao, o mundo so se conserva de pe pelo fato de que a opiniaoda quase totalidade das pessoas e irrelevante e nao tem o menorpeso na conducao dos negocios publicos.

Num paıs deste tipo foi feito um planejamento racional por meiaduzia de empresas e grupos e eles continuam a fazer o que eles temque fazer independente do que voce acha ou deixe de achar. Alias,voce nao sabe nem quem planejou. Se voce quiser se vingar doculpado, voce nao o acha em parte alguma.

Entao, nos queremos achar, descobrir, nao na duracao destecurso, mas na duracao da sua vida, uma linha de conduta moralque seja realmente boa, e isto vai te dar muito trabalho.

Se voce quer acertar mesmo, fazer o que e certo, entao voce vaiter que pensar, vai ter que comecar a conjugar as suas opinioes, edaı voce entra no problema do Descartes que e a moral provisoria,ou seja, enquanto eu nao chegar a uma conclusao o que que eufaco? Voce faz como os outros mas colocando o seu procedimentoentre parenteses, ou seja, eu nao sei se e bom ou se e mau. Entre-tanto, tao logo voce conheca, verdade conhecida e verdade obede-cida.

O dia que voce chegar a ter a sua primeira norma moral desco-berta por um esforco proprio, aı voce vai saber o que e autonomia

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de julgamento. Eu acho que e uma grande conquista, no sentidoque ela da a voce uma nocao da dignidade humana, de como serlivre.

A liberdade humana consiste somente numa coisa: em voce po-der agir segundo o elo de necessidade logica do pensamento, e naosegundo o elo de necessidade causal externa. Ao inves de voce se-guir um encadeamento causal, voce vai seguir um encadeamentologico.

Na hora que voce descobrir isso, voce descobriu a pista doespırito. Nesse sentido, o homem passa a ser tambem um causadorde efeitos, caso contrario, ele passa a ser um mero elo dentro deuma esfera de encadeamentos causais.

Entao, na hora que voce conhecer o primeiro ato livre, ou seja,eu vou agir assim porque esta e a norma universal, e nao voce agirassim ou assado porque o conjunto acidental de causas que te en-volve, que e diferente das causas que envolve o outro, te impelemnesse ou naquele sentido. Causas internas ou externas.

P.e., voce pode ter, em determinado momento, um impulso devoce agredir ou de voce fugir. Num momento voce pode ter um,e noutro momento voce pode ter o outro. Entretanto, na hora emque voce nem agredir nem fugir porque voce e impelido a issopelo seu impulso, mas voce decidir livremente o que vai fazer emfuncao de uma norma, aı voce esta livre. Voce nao liga mais sevoce tem o impulso de agredir ou de fugir porque voce vai fazer oque for fazer. O impulso comeca a obedecer. Voce cria o impulso,cria o desejo, cria a motivacao. Aı voce sabe o que e liberdade,e tambem responsabilidade, ou seja, tudo o que voce faz e porque“Fı-lo porque qui-lo”. Daı ninguem tem culpa, nem o papai, nem amamae, nem o Maluf, nem o codigo genetico, mas fui eu mesmo.Eu sou o autor dos meus atos. Aı voce nao precisa mais pediropiniao a ninguem. Ninguem mais tem autoridade sobre voce.Acima da sua cabeca so tem Deus, mais ninguem.

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Mas isto tem que ser conquistado. Voce passara a ter autoridadeintegral. O homem foi feito para isso. Isso e uma constante da sa-bedoria universal: cada homem esta como se colocado no topo damontanha cosmica. Ele esta acima do cosmos. E uma especie deligacao direta com o universal. Mas ele so tera essa ligacao diretacom o universal se ele nao estiver escravo do particular. Entao naoe preciso que ninguem me diga o que fazer, Deus me disse.

O mundo da fantasia, pela sua natureza, tem que ser absorvido.nao e uma opcao, e uma absorcao. Se o mundo logico nao estacompleto, se ele nao abarcar toda a sua experiencia, sua visao domundo, sua filosofia, se ela for contraditoria com a experiencia,entao ela esta falha.

Se a sua fantasia disse uma coisa e a sua logica disse outra, entaoa sua logica descobriu a norma universal mas parece que voce naogosta dessa norma universal. Se voce nao gosta entao voce re-almente nao a conhece de maneira completa. E o conhecimentoparcial, puramente hipotetico. Voce nao enxergou a evidencia da-quilo. Se voce quer a evidencia e ela lhe aparece, que objecao asua alma vai ter?

E a estoria dos 7 dias da Criacao: no setimo dia, Deus viu queera bom. Entao, voce aprova o real na sua totalidade, voce ve quee bom. Voce nao quer que ele seja de outro modo. A conscienciacosmica e exatamente isso. E voce ter essa posicao contemplativaque aceita a realidade cosmica na sua totalidade, e faz de novopara ver que e bom.

Uma maneira de voce ficar fora desse conjunto e voce achar quevoce e sempre uma excecao. Voce fica fora da ordem cosmica. Elanao te afeta. O seu caso e sempre diferente.

Ate voce entender que voce nao e uma excecao, que voce eigualzinho aos outros e que existe mesmo uma lei cosmica paratodos, inclusive voce, e que voce aceita, ou nao aceita.

Essa lei cosmica nao pode ser vista por meios intuitivos. Ela

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e uma conquista da Razao. Voce tem uma evidencia que voceconquista no fim.

Como voce vai fazer isto? Voce vai partir do julgamento doseu julgamento, explicitando cada julgamento, explicitando o sig-nificado intelectual de cada termo que voce usa no sentido de quena hora que eu pensei nisso qual era o conteudo real que eu es-tava dando a essa ideia? nao a definicao que voce encontra nodicionario.

Quando voce diz que acha que o sujeito agiu por inveja o quevoce pensou exatamente como esta inveja? Voce imaginou, p.e.,uma especie de conspiracao de racas? Foi isto que voce imaginou?

Entao, voce tem que conhecer o pretexto para saber se o ato foirealmente mau. E se voce nao sabe entao nao interessa saber se oato foi mau, o que interessa e voce se defender dele (o ato), naoe? P.e., se vem um sujeito, armado, te assaltar, interessa a vocesaber se a famılia dele esta passando fome, ou se o sujeito tem umproblema patologico? nao! O que interessa e voce se livrar dele omais rapido possıvel. nao lhe cabe julgar, mas agir.

Muitas vezes o julgamento, sobretudo o negativo, e um substi-tutivo para a acao. Voce nao tem coragem de se defender e depoisfica alimentando um ressentimento errado. Voce nao vai deixarque o sujeito suba em cima de voce, mas isto nao significa quevoce va julga-lo.

Voce se defender e inteiramente lıcito, alias e ate obrigatorio.Eu nao estou pregando uma conduta do tipo do Mahatma Ghandi,de deixar o sujeito te esfolar vivo, porque se voce se deixa esfolar,se voce vira um martir, e difıcil voce na posicao de martir resistira tentacao de fazer um discurso moralista dizendo que o sujeito eum verdadeiro satanas, porque voce vai desencadear um exercitode maus sentimentos contra o sujeito.

E difıcil voce virar um martir sem ter o ressentimento. E a psi-cologia da pseudo-santidade: “Ah! eu so apanho, eu sofro tanto...”

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O coracao dele e odio para tudo quanto e lado! Entao e melhorvoce dar umas tres ou quatro porradas no sujeito, e nao odiarninguem.

Entao, tentem analisar o seu julgamento, em que ele se funda-menta. Todo ato e aprovado pelo indivıduo. So tem dois motivosde aprovacao: ou por necessidade, ou por motivo moral, e daı voceacha o pretexto de cada ato.

Como voce poderia explicar um ato por uma necessidade? Oque poderia tornar esse ato necessario para essa pessoa?

Vejam, eu sou recordista em materia de sofrer traicao, ou saca-nagem de alguem. Mesmo assim, eu nao emito nenhuma opiniaoantes de haver pensado desta forma, para ver se de fato a justi-ficativa apresentada poderia ter algum fundamento. Uma coisa evoce se defender, outra coisa e voce julgar. O melhor e nao julgarporque voce se defende antes que a coisa aconteca.

Se voce conserva um ressentimento significa que a sua acao naofoi suficiente para resguardar a sua integridade. Algo voce perdeuali. Pode ser o respeito por si mesmo, um pouco da felicidade, daharmonia, da paz, mas voce perdeu! Ou seja, a tua resposta naoesteve a altura da tua necessidade, voce necessitara de um algomais.

Num conceito de um indivıduo que diz que precisa se vingar,ora, va la e se vingue logo! ‘As vezes o sujeito nem lembra bemmais o por que, mas tambem nao interessa!

Se voce decide nao devolver a ofensa entao voce tem que per-doar completamente. No entanto, voce ficar se vingando psicolo-gicamente, isto e o maior envenenador de mente que existe. Ouvoce vai la e da uns cascudos na pessoa, ou esquece totalmente.Encara aquilo com espırito esportivo: “Poxa, aquele cara puxou omeu tapete e eu me ferrei!...”.

Perdoar e voce doar de novo, e voce completar na doacao, persignifica completar em torno, ou seja, voce vai amar o ofensor

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mais do que voce amava antes. Se voce nao tiver forca para isso,entao se nao fizer nada voce vai ficar morrendo de raiva e acabadescontando nos outros. Entao voce devolve a ofensa mas sem ojulgamento moral. P.e., o cachorro te da uma mordida; voce faz acondenacao moral do cachorro? nao, voce da uma paulada nele epronto! Ninguem fica com raiva de ninguem.

Na sociedade moderna, hoje dia, o Estado arrogou a si o mo-nopolio da vinganca. Hoje voce nao pode bater numa pessoa masvoce pode entrar com um processo que ira atormentar a pessoa poranos. Eu acho isso uma injustica porque voce poderia resolver oproblema a nıvel pessoal.

Voce pode expor uma pessoa a execracao publica, estragar avida dela, porque quando o Estado entra na estoria, ele nao entrapouco. P.e., se um sujeito te agrediu fisicamente, voce agride elede volta e esquece a confusao. Vamos supor que o sujeito te daum empurrao e te derruba. Daı voce mete um processo no sujeito.Voce tem ideia quanto tempo leva um processo na justica? Quantovoce vai gastar de advogado? Voce sabe o que isso vai representarde impedimento na vida dele? Entao, e melhor voce da um tiro nosujeito do que levantar um processo.

Entao, quanto mais voce tenta legislar e fazer tudo certinho,mais injustica voce faz.

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19 Prelecao XIX

20 de marco de 1993

A distincao entre as Ciencias teoricas, normativas e tecnicas eabsolutamente intransponıvel. Esses tres tipos de Ciencia corres-pondem ao que Husserl chamaria de “esferas objetivamente cer-radas da realidade”; esferas que nao se confundem de maneira al-guma.

Seria muito interessante voces fazerem alguns exercıcios, ado-tar ate como uma pratica, de fazer esta distincao sistematicamentecom relacao a todos os conhecimentos que lhes interessem, parasaber sempre se e teorico, normativo ou tecnico.

Para isso, voce vai partir naturalmente de qualquer julgamentoque voce faca de qualquer coisa e ver, primeiro, quais sao os ele-mentos normativos que tem ali, qual e o sistema normativo queesta subentendido. P.e., voce vai comprar um objeto qualquer,uma garrafa termica, um automovel, uma roupa, e existe uma pre-ferencia. Onde existe uma preferencia, tem uma norma implıcita.Claro que voce pode ter varios tipos de preferencia,

voce pode ter varios motivos diferentes, condicionados a distin-tos sistemas normativos que para voce sao validos. P.e., o criterioda beleza, da utilidade, do preco, etc. nao confundir esses variossistemas, os quais sao independentes entre si. No caso de vocequerer uma roupa que seja bonita, barata e pratica voce esta usandotres criterios. Claro que nos ja temos tanta pratica de fazer isso quenao percebemos quando o raciocınio esta encadeado. Na selecao

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de uma simples roupa que voce vai comprar voce esta jogandocom um aprendizado que levou a sua vida inteira. Voce tem umaideia do caro e do barato de acordo com a extensao do seu bolsoe com o bolso medio, ou seja, voce pode comparar o que e caroou barato para voce com o que uma outra pessoa considere caroou barato. Isso nao e um julgamento intuitivo, isso e uma deducaoimplıcita a qual voce faz muito rapidamente e parece intuitiva.

Alias, essa e uma distincao que as pessoas habitualmente naosabem fazer. Todo julgamento que voce esta habituado a fazer,que voce faz com facilidade, voce o faz rapidamente porque vocepercorre uma cadeia dedutiva com a velocidade de um computadore lhe parece intuitivo porque voce nao se lembra de haver pensado,mas isso e falso.

O intuitivo seria somente aquilo que sem qualquer pratica ante-rior, e nao so sem qualquer necessidade de pensamento mas semqualquer possibilidade de pensamento, voce reconhece a coisa.

P.e., a presenca de uma pessoa; se tem alguem presente ou au-sente isto realmente voce nao precisa pensar. Isto e um dado. naotem nenhum elemento construıdo. Porem, num raciocınio banalcomo esse, se voce vai comprar caro ou barato, voce esta jogandocom dados que voce acumulou durante a vida inteira, com milhoesde comparacoes que voce ja fez. E como se ja tivesse um programaautomatizado, um raciocınio automatizado que pode nos enganarfazendo-se passar por intuicao.

Isso e exatamente o que acontece com os astrologos quando elesinterpretam o mapa. Eles acham que aquilo e intuitivo quando narealidade e um sistema classificatorio que eles dominam.

Em qualquer avaliacao entao, havera um ou varios sistemas nor-mativos em jogo. Voce deve explicitar esses sistemas normativospara eventualmente poder corrigi-los.

Suponhamos que fosse a compra de um carro. Suponhamos queo carro esteja dentro da sua disponibilidade financeira e que voce

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fosse julgar apenas o carro em si mesmo. Caro ou barato dependedo bolso. Nenhum carro pode ser caro ou barato em si mesmo, soem relacao ao comprador.

Que qualidades se poderiam admitir num carro? Claro que essasqualidades estariam em ultimo caso vinculadas a definicao mesmado conceito de caro. Deste conceito voce poderia tirar uma normafundamental no julgamento do carro.

Entao, o que e um automovel? Voce pode nao saber o que e masvoce sabe uma serie de tracos nos quais voce reconhece a presencadele. Entao, voce da esses tracos e a pessoa reconhece o que e, mascom isso voce nao diz o que e.

O que move o automovel? O motor. Que tipo de motor? ‘Aexplosao. Entao, e um veıculo automotor, com um motor a ex-plosao. No futuro poderemos ter outros tipos de propulsao, maspor enquanto vamos considerar o que ha no mercado.

O rendimento desse motor a explosao, p.e., e um fator quevoce leva em conta, nao e? P.e., quanto de combustıvel ele con-some? Veja que esse julgamento do rendimento decorre da propriadefinicao de automovel.

Assim, a propria definicao de automovel sugere uma das nor-mas de julgamento. Por que sugere? Porque a ideia de rendimentoe inerente a ideia de motor. Motor e um engenho que produz de-terminado trabalho.

Entao, vejam o acerto do Husserl quando ele diz que quandovoce coloca uma condicao quando avalia qualquer coisa voce estadizendo que, um A so sera um bom A se ele contiver tambem oB. Esta e a formula, ou seja, um bom motor sera um bom motorse ele tiver um bom rendimento. Se o motor tiver um pessimorendimento ele nao deixa de ser um motor mas ele nao realiza ple-namente a ideia de motor. Realiza imperfeitamente, de maneiraprecaria. E como se nao chegasse a ser ele mesmo. P.e., se vocefizesse um motor que gastasse muito combustıvel e realizasse um

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trabalho com menos rendimento do que um organismo humanoele nao deixaria de ser um motor porque o princıpio do motor es-taria ali, mas a ideia mesma do motor contem uma implicacaoteleologica, uma implicacao de uma finalidade.

Por que alguem faz um motor? Para que ele realize uma tarefamelhor do que nos a realizarıamos, e evidente. Se for para fazera mesma coisa que nos fazemos, com o mesmo rendimento, entaopara que fazer um motor? E como uma maquina de desentortarbanana.

Na ideia de qualquer invento existe um raciocınio teleologico,ou seja, voce inventa algo para um fim. Na hora que voce inventouisso voce concebeu uma norma. A norma e: um invento so seraum bom invento se atender a uma determinada condicao. Se elerealizar a sua tarefa em tais ou quais nıveis de aproveitamento.

Se voce inventa um medicamento para gripe, p.e., e voce ve quetomando esse medicamento voce cura da gripe numa semana esem toma-la voce cura em 7 dias, voce considera isso um medica-mento? Isso nao e um invento, absolutamente. Na hora que vocetem essa norma subentendida no invento voce tem apenas um con-ceito ideal do invento. Essa norma nao traz por si mesma nenhummeio de realizacao pratica daquele invento.

Suponha que voce queira inventar um motor que realize uma ta-refa mecanica, levantar peso, deslocar uma massa no espaco e vocetem ideia do princıpio do motor que e queimar um combustıvelpara realizar um trabalho. Entao, a ideia do motor, ou a ideia dequalquer outro invento supoe uma finalidade. Entretanto, nao ea finalidade em si que define o invento e sim uma certa maneiramais rendosa ou mais pratica de realizar esta finalidade do que asmaneiras ja conhecidas. Ninguem vai fazer um invento para fazeralgo que voce ja faz perfeitamente bem. P.e., voce inventar umamaquina de andar que permita a um homem adulto andar a 5 km/h,ou uma maquina de respirar. Tudo isso voce ja faz. Ninguem faz

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um invento a nao ser com a finalidade de interferir na natureza epermitir que algo se faca ou de maneira mais facil, ou da maneiramais rendosa, etc. Portanto, a ideia dessa finalidade e inerente aideia de invento, de industria, de tecnica, etc. E claro que as vezespodem acontecer desastres quando voce inventa uma maquina quefaz pior do que voce fazia antes, mas isso e um defeito, nao fazparte da definicao.

Ora, onde voce tem uma ideia de uma finalidade voce ja temuma norma que diz que esse invento so sera bom se ele atenderessa finalidade numa determinada quantidade, senao nao adianta.

Entao, essa seria a norma fundamental para o julgamento da-quele invento. Isto se aplica desde a invencao do estilingue ate deum foguete espacial.

Vamos supor um estilingue que tivesse a potencia de atirar umapedra exatamente a distancia que um garoto de 3 anos de idadeatiraria. Ele nao serviria para nada. O estilingue so serve se eleconseguir atirar a pedra mais longe do que nos conseguimos atirarsem o estilingue. Esta e a norma fundamental para o julgamentoligada a propria natureza, finalidade, do invento.

Claro que so pode existir norma onde existir uma finalidade hu-mana. Como e que nos poderıamos julgar normativamente umente da natureza? E difıcil, nao e? Porque eles nao sao feitos parauma finalidade determinada, eles tem uma pluralidade indetermi-nada de finalidades.

P.e., que finalidade tem as formigas? Em ecologia quando vocedefine o papel desempenhado por uma determinada especie dentrodo meio onde ela esta, veja que este papel e enormemente com-plicado. E essa finalidade, ela mesma, as vezes e util, as vezese prejudicial ao meio. Entao, como vai fixar exatamente a finali-dade dela? Qual e a finalidade por que existem os hipopotamos?Voce pode falar de uma finalidade de formigas em relacao a nos,mas nao da formiga em si. A formiga pode ser prejudicial, p.e., ao

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plantador. A sauva comia os cafezais, mas nao existiam os cafe-zais, e foi voce quem os pos ali. A formiga pode ser um auxılio ouum impedimento a acao humana. E esta acao que tem uma finali-dade, e nao a formiga. Entao, voce julga a formiga em relacao auma finalidade tua.

Nos so podemos falar claramente de finalidade no caso da fina-lidade humana. So existe norma onde existe a acao humana, ouum interesse humano, uma finalidade humana.

Claro que metafisicamente voce poderia falar da finalidade docosmos mas, aı, voce esta subentendendo um Deus que tem umaintencao quase antropomorfica, um Deus que pensa como gente.Mas, quer voce acredite ou nao em Deus a palavra finalidade naopode ter o mesmo sentido quando aplicado a um ser humano e aDeus.

Se Deus e eterno qual e a diferenca entre a finalidade, a causa,o meio? nao tem. Na Bıblia esta escrito, Deus falou: “Faca-se luz.E a luz se fez”. nao e como nos que temos que assinalar uma fina-lidade, depois vem a norma, depois os meios, etc., etc. ‘As vezesda certo, as vezes nao, porque tem que ter a acao racional segundoos fins. Entao, nos poderıamos falar de finalidade do cosmos, p.e.,Deus inventou o cosmos com uma finalidade, mas a palavra fina-lidade, aı, esta aplicada metaforicamente. Como nos nao sabemosexatamente o que corresponde a nocao de finalidade na mente deDeus, nos chamamos aquilo de finalidade. Entao, podemos deixareste caso de lado.

Entao, na natureza nao existe claramente uma finalidade paracada ente. Existe uma multiplicidade indefinida e indefinıvel definalidades. No mundo divino, supra-humano, a palavra finalidadeso se aplica metafisicamente, nao e um conceito rigoroso. Entao,o que sobrou? Sobrou o humano.

Entao, so existem disciplinas normativas aplicadas ao mundohumano, que e o mundo das acoes, intencoes e finalidades huma-

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nas, e podemos julgar, p.e., um automovel porque ele e um inventohumano feito para uma determinada finalidade. Se o automovel

brotasse em arvores nos so poderıamos julgar a finalidade delepara determinadas finalidades nossas.

O fato de que voce se alimenta de macas, ou de feijao, nao sig-nifica que as macas e o feijao foram inventados com a finalidadede alimentar voce, ao contrario, voce e quem tem por finalidade sealimentar, e por isso feijao serve e pedra nao serve.

Entao, nao se esta julgando a finalidade inerente a propria coisa,mas voce esta julgando a coisa como um meio ou um impedimentopara uma finalidade sua.

Entao, qualquer invento humano pressupoe uma finalidade eportanto pressupoe uma norma fundamental que julga o inventoalcancado conforme ele atenda em mais ou em menos essa finali-dade.

Se voce nao tem essa ideia muito clara, como e que voce po-deria comecar a construir um invento se voce nao tem a ideia dafinalidade e voce tambem nao tem a ideia da quantidade de rendi-mento esperado? Na hora que voce tem isso muito claro, ou seja,voce escolheu a finalidade e voce tem mais ou menos uma ideia doquanto o invento em questao deva atender a essa finalidade, vocenao tem ainda esclarecido o como fazer isso. Entao voce comecauma serie de experimentos cujo sucesso ou fracasso sera medidojustamente em relacao a finalidade. A finalidade e uma regua, logoe uma norma.

Entao, essa e a diferenca entre uma Ciencia normativa e umaCiencia pratica. Da para entender facilmente que toda e qualquerCiencia pratica, ou tecnica, subentende uma norma.

A tecnica e um conjunto de meios para fazer alguma coisa, mas,que coisa? Se voce vai aplicar uma tecnica ao fazer alguma coisa eporque essa coisa nao esta feita ainda, senao nao precisa de tecnicanenhuma. Se essa coisa ainda vai ser feita, entao voce so tem dela

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um conceito ideal, de uma finalidade. Se voce tem um conceitoideal voce tem ali uma norma. Em funcao dessa norma e que vocejulgara os efeitos obtidos pela aplicacao da tecnica.

Onde houver uma tecnica, ha uma finalidade subentendida euma norma que essa tecnica devera atender.

O fato de, na vida diaria, nos aprendermos o conjunto detecnicas que ja vem com uma finalidade implıcita claro que obs-curece a nossa percepcao disso. Obscurece, mas nao abole.

Nos estamos acostumados a aplicar um monte de tecnicas semnos explicitarmos qual e a finalidade daquilo, mas nao quer dizerque nao tenha finalidade.

P.e., no Congresso de Astrologia em Sao Paulo, querem queeu fale sobre a tecnica de interpretacao do horoscopo. Soque ninguem lembrou de perguntar: Qual e a finalidade dessainterpretacao?

Se eu vou ler o horoscopo para ver se eu vou ganhar na lo-teria daı decorre uma tecnica. Se eu vou ler o horoscopo paradepois fundir as informacoes do horoscopo com informacoes psi-cologicas, psiquiatricas, etc., e com a minha sapiencia infusa, e darum conselho para o sujeito, entao a tecnica e outra, evidentemente,e que nao tem nada a ver com a anterior.

Entao, e obvio que nao existe uma tecnica de interpretacao dohoroscopo, mas havera tantas tecnicas possıveis quantos usos dohoroscopo se concebam.

Qualquer conhecimento tecnico subentende um conhecimentonormativo porque a tecnica e um conjunto de meios. Os meiossao, naturalmente, meios para um fim.

Entao, como e que voce vai saber se mediante a aplicacao datecnica o fim foi atingido ou nao? Tem que haver uma norma queesta implıcita, ou explıcita, e que te diz se a finalidade requeridafoi atendida ou nao.

E obvio que nos so podemos julgar uma tecnica a luz de um co-

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nhecimento normativo. Qualquer acao humana, por mais simplesque seja, subentende uma tecnica.

Portanto, onde existir uma tecnica, ou mais amplamente, ondeexistir uma acao humana existe um sistema normativo por tras.

Entao , voce se habituar a discernir isso aı, a explicitar qual ea finalidade da acao, quais sao os meios tecnicos postos em mo-vimento para consecucao dessa acao, qual e a finalidade suben-tendida, e quais sao as normas de julgamento dessa acao, voce sehabituar a fazer isto, e um exercıcio dos mais elucidativos.

A tecnica e um conjunto de meios que tenham sido aprendidosou inventados, ou seja, voce nao pode dizer que, p.e., a respiracaoe uma tecnica, ou que a digestao e uma tecnica, embora voce possainventar tecnicas para melhorar a respiracao, ou a digestao, oueventualmente, para piora-los. Mas, praticamente todas as acoeshumanas, mesmo as mais simples, dependem de um conhecimentoque foi ensinado, transmitido, ou que voce tenha inventado.

P.e., quando voce aprendeu a andar. E muito difıcil o sujeito queaprende a andar inteiramente sozinho. Geralmente, o pai e a maeajudam um pouco. P.e., para voce comer. Comer parece simples,mas quem diz que e natural se comer de faca e garfo? Quem dizque voce, se largado numa ilha deserta, criado entre os Papua daNova Guine iria voce mesmo conceber a faca e o garfo? Isto euma heranca cultural.

Entao, qualquer acao humana por simples que seja, a nao seraquelas que sejam atos naturais, atos reflexos, incondicionais,como respiracao, digestao, subintendente uma tecnica.

Isto, normalmente nos nao levamos em consideracao. Adistincao que nos fazemos na vida corrente entre o natural e ocultural, e falha. As pessoas comecam a chamar de natural tudoaquilo que seja facil e que nao precisa mais pensar. Mas nao querdizer que ele nunca teve que pensar.

P.e., para voce sentir uma dor voce nao precisa pensar nem

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nunca precisou. A dor nao e comparativa. Isto significa que tan-tas vezes quanto voce tenha dor, em nenhuma delas voce precisarapensar nem recorrer a experiencias passadas.

Existem coisas que voce manifestamente precisa pensar. Pararesolver uma equacao matematica voce precisa pensar. Mas, temoutras vezes que voce nao precisa pensar no momento porque voceja automatizou, mas nao quer dizer que voce nunca precisou pen-sar antes. P.e., andar de bicicleta. Depois que voce aprende vocenao precisa pensar mais, mas para chegar a esse ponto de nao pen-sar voce precisou pensar antes.

Se voce comecar a ver todos os atos que voce faz na vida coti-diana e todas as tecnicas que estao implicadas nestes atos voce vaiver o imenso legado cultural que permita as nocoes mais simplesda vida.

O proprio conceito de cafe-da-manha, sera que desde que o ho-mem existe ele come alguma coisa logo de manha? Sera que ahumanidade desde que ela existe sempre teve comida guardada navespera para comer no dia seguinte? Vejam quantos milenios ti-veram que passar para que o homem lembrasse de guardar comidapara o dia seguinte. P.e., nos vemos que cachorro guarda comidapara o dia seguinte, mas gato nao guarda. Eu imagino que deveter dado um trabalho imenso para o homem chegar a essa con-clusao. Imaginem o primeiro homem que deu essa ideia, quantodiscussao nao deve ter havido. Os outros nao sabiam nem o queera o dia seguinte. Hoje nos falamos isso em tom de brincadeiramas a verdade e que o homem surgiu na face da Terra nao sabendoque devia guardar comida para o dia seguinte, alias essa nocao deguardar algo para o amanha ainda e difıcil em hoje em dia paramuitas pessoas. P.e., voce sabe guardar dinheiro para a semanaseguinte? Sera que todo mundo sabe? Voce sabe que existe nor-mativamente essa necessidade, mas voce nao sabe tecnicamente.Voce sabe a norma que e melhor guardar para o dia seguinte, mas

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como e que faz? Se voce fizer uma pesquisa, perguntar o quese investigou sobre isso, sobre a ideia de fazer provisoes, vocevai ver que foi uma conquista dificılima para a civilizacao. E taodifıcil que nao entrou ainda na cabeca de todos os seres humanos.Aristoteles, p.e., escreveu um livro sobre a economia domestica.A economia domestica e um dado fundamental da Antropologia,mas a economia domestica nao nasceu pronta.

Quanto tempo o homem levou para catalogar, p.e., que o lugarda roupa e no armario, que a faca e o garfo ficam na gaveta dacozinha e nao no banheiro, etc.

Todas essas coisas sao subentendidas na cultura que nos cercae nos habitos que nos adquirimos. Entao, vejam a imensa quanti-dade de saber normativo e tecnico que esta acumulado na cabecado mais burro dos habitantes do planeta, na presente geracao.

Bastaria que na infancia o indivıduo fosse separado dessa cul-tura, p.e., dos 6 meses de idade ate um ano, ele nao aprende maisnada depois. Isto significa que o fluxo de introducao da culturatem que ser ininterrupto. Se interromper ele vira o menino- lobo.

A condicao de homem nao e uma condicao humana. A nossaestrutura biologica apenas predispoe a uma condicao humana. pre-dispoe, mas nao impoe.

Nos temos um organismo apto a desenvolver a linguagem, astecnicas, etc., mas a aptidao nao e uma necessidade, ela nao impoeque voce faca tudo isso realmente. Se voce for temporariamenteprivado dos meios de fazer tudo isso, daı voce nao consegue mais.

Para o homem conectar o ato sexual com a gravidez levou umaenormidade de tempo. Hoje ainda, existem tribos primitivas queainda nao tinham estabelecido essa condicao.

Eu acho que quem se dedica ao desenvolvimento daconsciencia, do conhecimento, deve estar sempre avisado de queessas coisas nao sao naturais, de que existe um esforco humanoacumulado, para voce nunca ter essa ideia de que a sua cabeca

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sozinha vai pensar em alguma coisa. Voce deve sempre saberque voce esta lidando com um legado imenso da civilizacao atehoje. Isso sem mencionar o conhecimento cientıfico, intelectual,erudicao.

O sujeito que inventou de guardar comida para o dia seguintetambem foi um genio. Imaginem a resistencia interna que ele teveque vencer a primeira vez que ele acordou com fome e nao tinhanada para comer; passou por isso varias vezes, daı ele tentava selembrar que tinha que fazer alguma coisa e a coisa lhe escapava, eele esquecia de fazer, daı ele guardou num dia, depois esquecia denovo, como qualquer habito que voce pretende adquirir. Imaginemo trabalho imenso que deve ter dado, e eu estou falando em 24horas, e nao em anos!

Para voce comecar a distinguir as estacoes do ano, criar expec-tativas de que aquele ciclo vai se repetir, isso levou milenios!

Mas, o exemplo da comida e para um prazo de 24, ate 12 horas.Imaginem o sujeito que guardou comida, veio um outro sujeito ea comeu, e quando ele acordou e nao viu a comida ele nao sabiao que havia acontecido. Imaginem o desestımulo para ele! Imagi-nem as varias tentativas e erros que foram necessarias para que ohomem conseguisse acertar isso.

Por outro lado nos podemos ver o quanto o suposto avanco dacivilizacao torna as pessoas burras porque elas nao tem uma visaoreal do mundo onde elas estao. Elas pensam que tudo brota emarvores. Ja esta tudo pronto, e so pegar. Elas veem o mundo comoum cineminha onde o cenario do mundo e esse que elas conheceme que tudo sempre tivesse sido assim, como se nao tivesse que tertido a acao humana.

Quase tudo o que existe tem por base a intermediacao da acaohumana; voce nao contata a natureza direto. Ha muitos mileniosque nao tem um contato com a natureza.

Ha quem diga que o ındio vive integrado na natureza, que tudo e

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uma maravilha. Essas pessoas nunca conversaram com um ındio,porque ele tem terror da natureza. Elas pensam que o ındio andano mato como voce anda no centro da cidade.

Na verdade, o ındio faz o cercado da taba e dali nao sai, porquealem do cercado estao as trevas exteriores e la ele nao vai. Sose for um profissional do ramo com experiencia. Se uma criancaentrar na mata e o panico na aldeia!

Um homem da nossa suposta civilizacao e capaz de deixar suascriancas irem acampar na Floresta da Tijuca, mas o ındio jamaispermitiria uma coisa dessas. Entao, o ındio esta muito descon-fortavel na natureza.

E verdade que a presenca do homem branco torna mais descon-fortavel ainda porque, alem de jacare, cobra, onca, ainda tem ohomem com suas maquinas diabolicas para ele enfrentar. Provade que essa estoria de mato e perigoso mesmo... A presenca dobranco e a presenca de mais uma ameaca na floresta.

Entao, o habito nos torna indiferentes, imunes de certo modoa percepcao de coisas que sao perfeitamente reais, e a principaldelas se chama acumulacao das acoes humanas.

Nos vivemos num mundo inteiramente inventado pelo homeme sempre foi assim. nao e que tenha sido inventado pela coletivi-dade, isto e que e o mais estranho. Sempre houve um indivıduoque inventou pela primeira vez. nao pode haver um invento cole-tivo.

O arco e a flecha, p.e., nao foi uma assembleia que inventou,mas um unico indivıduo. O que acontece e que a geracao se-guinte nao lembra mais quem inventou. Alias, existe um estudoabsolutamente fascinante sobre este aspecto tecnico entre os ma-cacos. Desmond Morris, um antropologo americano escreveu umlivro, “O macaco nu”, onde ele fala sobre este assunto. Tambem oproprio livro do Lawrence, “O comportamento animal humano”.

Da para voce fazer uma analogia longınqua do que pode ter sido,

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numa comunidade primitiva p.e., o papel do inventor, um macacoque inventa alguma coisa.

Ele descobre que existem bananas num lugar onde eles nao ti-nham ido ainda. Isto e um caso verıdico. Inicialmente, o macacoque descobriu banana em outro lugar se desliga da tribo porqueela o rejeita. Daı, se ele consegue de alguma maneira comunicar oinvento, e se todos acreditam, daı ele se torna o chefe da tribo.

Deve ter sido assim com a comunidade humana tambem. O su-jeito que inventou o estoque de alimentos deve, depois, ter viradoum sujeito muito importante. Mas ate ele chegar la, ele nao deveter sido o primeiro, porque o primeiro deve ter sido assassinado,no ato.

As pessoas deviam achar que ele estava roubando alimento. De-pois, aos poucos, na “linguagem retorica” que eles tinham, ele ti-nha que explicar que nao foi essa a intencao, que o negocio eraoutro, enfim, deve ter sido um problemao!

Entao, todos esses inventos sao frutos da acao humana, tinhamuma finalidade, uma norma implıcita, e a norma nao bastava paragerar a tecnica, os meios.

Desde o primeiro invento nos podemos perceber que se naoexiste uma finalidade entao nao pode ter invento algum. Claroque pode ser um invento acidental, como p.e., a penicilina. Adescoberta veio, na verdade, atraves de um erro. O sujeito estavarealizando uma determinada cultura de fungos e ela resultou numerro. Daı descobriram que o fungo tinham tais ou quais virtudes.

Podem acontecer esses tipos de inventos acidentais, mas nosestamos aqui falando de inventos feitos pela iniciativa humana.Mesmo o invento acidental de nada serviria se nao existisse a fina-lidade anteriormente definida.

P.e., a ideia de encontrar algo que curasse a tuberculose, essafinalidade ja existia. Sabia-se que para a cura da tuberculose, asubstancia teria que atender a tais ou quais requisitos. Entao voce

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tinha a finalidade, portanto, a norma. Quando aconteceu o acidentepercebeu-se que ele atendia a aquela finalidade, e a norma. Mas, ese nao existisse a norma?

Entao, voce ve que a distincao entre conhecimento normativoe conhecimento tecnico e uma fatalidade do mundo real. Se naoha norma voce tambem nao vai saber os meios. Os meios podemestar na tua frente mas voce nao sabe para o que eles servem.

Vamos ler um trecho de um livro de Samuel (Remington(?))sobre a medicina, que exemplifica bem tudo o que estamos falandoaqui:

“A unica e elevada missao do medico e de restabelecer a saudedos enfermos, que e o que se chama curar. O ideal mais elevadode uma cura e restabelecer a saude de maneira mais rapida, su-ave e permanente, ou tirar e destruir toda enfermidade pelo cami-nho mais curto, mais seguro e menos prejudicial, baseando-se emprincıpios de facil compreensao”.

Bem, isto e uma norma. Isto significa que quaisquer procedi-mentos que atendam a isto aqui serao tidos como bons. Os quenao atenderem, nao servem. Ele esclarece em seguida:

”Se o medico percebe com clareza o que e preciso curar nas en-fermidades, ou seja, em cada caso patologico individual (conhe-cimento da enfermidade), se percebe claramente o que existe decurativo nos medicamentos, isto e, em cada medicamento em par-ticular (conhecimento do poder medicinal) e se sabe como adaptar,conforme a princıpios perfeitamente definidos, o que ha de cura-tivo nos medicamentos ao que ha de indubitavelmente morbidono paciente de modo que sobrevenha o restabelecimento, se sabetambem adaptar de maneira conveniente o medicamento maisapropriado, segundo o seu modo de agir, ao caso que se apresente,assim como tambem ao modo exato de preparacao, e quantidaderequerida, e o perıodo conveniente para repetir a dose, e se,

finalmente, conhece os obstaculos para o restabelecimento em

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cada caso, e e apto para remove-lo, de modo que o referido resta-belecimento seja permanente, entao, tera compreendido a maneirade curar judiciosa e racionalmente, e sera um verdadeiro medico”.

Entao, voce tem a norma fundamental e o sistema normativo,inteiro. Em seguida, ele vai descendo ate cada caso individual, atecada substancia individual. Entao, para cada substancia tambemhavera um criterio normativo. Ele vai descendo do geral para oparticular, desde a norma fundamental ate as normas mais particu-larizadas, e ate a sua aplicacao, que tambem deve ser normativa.

Mas, como que faz? Dito de outro modo, materialmente, quaissao os meios? Tudo o que ele diz aqui ainda nao tem nada de ho-meopatico. A homeopatia propriamente dita entrara, em seguida,como tecnica para realizar estas normas.

A producao de um exemplo completo, adequado, e sinal de quea coisa foi compreendida. Sera que todos estao em condicao defornecer um exemplo como este, de um sistema normativo qual-quer, que voce use para qualquer coisa?

P.e., qualquer regulamento de qualquer coisa e um sistema nor-mativo. Mas, eu queria um exemplo de um sistema normativoimplıcito em atos banais da vida de uma pessoa. P.e., quando voceescolhe uma empregada domestica.

Entao, uma cultura e um sistema de normas que se ...(?)... comas normas supremas de uma coletividade.

Por que voce consegue distinguir, p.e., a civilizacao e culturaromana, da grega, da medieval, etc.? Porque tem um sistema devalores e normas que se expressam em sımbolos e que sao valorese normas que estao realmente embutidos na vida diaria.

P.e., faz parte da civilizacao medieval a ideia de um Deus oni-potente que observa todos os seus atos e que, como diz a Bıblia,“sonda os (reis(?)) e coracoes”, ou seja, o olho de Deus esta emtoda a parte. Isto significa que nao existe comportamento moral-mente neutro frente a Deus. Nenhum.

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Entao, a consciencia de pecado e um dado da cultura medieval.nao quer dizer que as pessoas fossem boazinhas, ao contrario, tal-vez pecassem muito mais do que hoje. Porem, nos podemos dizerque durante quase 1 milenio nao houve muita possibilidade queum indivıduo agisse sem ter a consciencia de estar pecando.

A consciencia de estar errado pervade a civilizacao medieval.A ideia de que “aqui ninguem presta” e caracterıstica da IdadeMedia, e que para os gregos ou os romanos esta seria uma ideiamuito esquisita. Ela seria tida ate como imoral.

No contexto grego voce pensar mau de si mesmo seria uma baitasacanagem, mas no contexto medieval era quase uma obrigacaorotineira. Entao, p.e., as cancoes populares, os costumes, tudo su-bentende a maldade do ser humano. A consciencia de ser mau,de que aqui todos sao batedores de carteira, isso e um dado dacivilizacao medieval que vem de uma norma fundamental. naoimporta a norma fundamental estar totalmente explıcita, o que im-porta e que ela seja realmente lida. Na pratica, as pessoas agemde acordo com aquilo, e e isso que marca uma cultura e que adiferencia de uma outra.

Entao, vamos dizer que a mesma funcao dessa consciencia depecado da Idade Media, tinha a consciencia civil. Um cidadaoromano, p.e., nao esquecia que ele era romano nem um unico mi-nuto. Todos os atos estavam absolutamente referidos ao Estado,a integridade do Estado e a manutencao da ordem publica. naohaviam atos que fossem neutros em relacao ao Estado Romano.

Hoje em dia talvez voce pudesse dizer que a consciencia dofator economico envolvido pervade todos os atos da vida. Isto euma novidade porque cada ato humano esta referido a Economia.nao ha um ato que seja economicamente neutro.

A consciencia de que cada ato vai afetar o seu estadoeconomico, ou o alheio, isto e uma novidade, e uma caracterısticadesta cultura atual. Por aı nos vemos que a norma fundamental e,

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de fato, o que define.Acontece que, as vezes, a norma fundamental e difıcil de ser

encontrada. Ela esta tao embutida, ou antes, ela e tao obvia quenao aparece, mas aparece depois por comparacao.

Por isso que quando voce passa da esfera dos usos e costumesreais para a esfera da legislacao, do Direito Positivo, voce cometeerros ao tentar expressar essas normas. Voce nao expressa a queesta realmente vigente, mas uma outra, parecida.

Me parece que uma norma fundamental desta sociedade atual eque nao ha ato economicamente neutro, mas no entanto nenhumalei diz isto explicitamente.

Os atos que forem economicamente neutros, ou sao irrelevantes,ou nocivos, e nao deixa de haver ate uma certa nocividade mesmovoce supor que voce proceda, de fato, de uma maneira economi-camente neutra. Como e que o ato vai ser interpretado no meio?Como os outros irao interpretar? Vao, certamente, atribuir certasmotivacoes economicas, positivas ou negativas, e isso vai causaruma confusao enorme.

P.e., o fato de que esteja tao disseminada a ideia de que as pes-soas nao dao valor a aquilo pelo qual nao pagaram. Do meu pontode vista esta e uma ideia das mais loucas que o ser humano po-deria ter inventado. Para dar valor e preciso voce antes pagar; e amesma coisa que dizer que nada tem valor, a nao ser voce mesmo.

Isto tambem pressupoe uma etica do tipo calvinista onde o fatode voce ganhar dinheiro e que prova o seu valor. Onde a possedo dinheiro representa um valor pessoal. Porem, nao qualquerdinheiro, mas apenas pelo qual voce lutou. Se voce herdou, naotem valor porque voce nao pagou nada por aquilo.

Entao, e absolutamente que, no meio calvinista, todos sejampessoas que nascam pobres e terminem ricos. Voce nao pode serherdeiro.

Entao, todo herdeiro passa a ter consciencia de culpa. Das duas,

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uma: ou ele vai ter que recomecar do zero, ou entao o filho temque ter uma atitude purgativa, onde ele torrara todo o dinheirodo pai para ele ficar pobre e daı recomecar. Isto e uma verda-deira demencia! Por que o pai trabalhou tanto se voce teve querecomecar do zero?! Isto e uma loucura, mas esta aı implıcito nosatos da sociedade.

Na medida em que o Brasil se encaixa na economia capitalista,ele vai absorvendo esses valores de uma maneira muito rapida. Oque as outras nacoes levaram seculos para formar, o Brasil em 10anos assimilou esse valor calvinista. Mudar de codigo em 10 anose de enlouquecer!

Isso tudo sem voce contar as contradicoes internas ao propriocodigo e que voce tem que se adaptar a ele rapidamente, e maisainda, voce conserva um pouco dos codigos anteriores, basta issopara voce explicar um pouco a salada que esta aı.

Tudo isso so para enfatizar a imensa importancia que todos co-nhecimentos, toda a esfera das humanidades, perceber, captar eexpressar sistemas normativos e a chave do negocio.

P.e., em Historia voce explicar o que aconteceu, por que em talepoca se fez isso ou aquilo, voce so pode expressar isso em termosde sistema de valores e normas que estavam ali implıcitos que ser-viam, ou de motivo, ou de pretexto. P.e, o que D. Joao VI veiofazer no Brasil? Como e que voce vai explicar esta decisao de re-tirar a sede do governo daqui para colocar la? Qual e a explicacaoreal? Vir para o Brasil porque o Napoleao iria invadir o paıs e acausa, e nao a motivacao.

Por que entre tantas coisas que eles poderiam fazer, eles esco-lheram justamente esta? Este tipo de explicacao historica e dadoassim: aqui tem uma causa e se segue um efeito, logicamente,mecanico, Napoleao vem vindo aı e nos temos que dar o fora.Isso e um absurdo! Como se D. Joao VI fosse um equipamentoeletronico que dada a causa, aperta o botao e pronto! Como se nao

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existissem alternativas.Mas e evidente que haviam alternativas e que houve uma es-

colha. Uma escolha polıtica, evidentemente. D. Joao VI nao foiobrigado a vir para o Brasil, mas ele achou conveniente, pesandotodos os pros e contras.

Em funcao de todo um sistema de normas, qual era a normafundamental da polıtica portuguesa? Fazer guerra quando a In-glaterra quiser. Esta e a norma fundamental. Se voce nao en-tende que ha esta norma implıcita, voce nao entende nada do queacontece. Ao contrario, os acontecimentos parecem ter uma ni-tidez logico-mecanica que so existe na escola. Isto nao e umaexplicacao historica, mas uma mentira historica.

Toda historia que se ensina nos colegios e que vicia as pessoase uma sucessao de causas e efeitos logico-obvias, mecanica. Pa-rece que ali ninguem pensava, agiam como fantoches, onde dadauma causa o efeito se seguia automaticamente. E muito simplorio,ridıculo. Tem que tirar isto da cabeca, apagar.

Cada ato historico humano foi um ato humano, feito nao so porum sujeito mas por muitos. Seria preciso entender os valores enormas de um monte de pessoas para voce achar a realidade finalde atos.

Se estamos acostumados a raciocinar segundo esses esquemas,entao nao teremos nunca uma visao real do que aconteceu.

nao tem nada pior do que dizer que a Historia nao pode estudarso os fatos, mas as causas e os efeitos. Mas, como causa e efeito?!Isto quem estuda e a Fısica! voce tem que estudar as causas, osmotivos, os valores, as intencoes, os pretextos, e os resultados fi-nais.

Entao, causa e efeito virou uma especie de fetiche. Mas, dadasas causas, precisava fazer a Revolucao Francesa? nao tinham essasmesmas causas num outro lugar? Por que nao teve uma revolucaona Espanha, ou em Portugal? Ou seja, surgiram as causas, apertou

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o botao, e apareceu a Revolucao Francesa, a qual se fez por simesma. E a visao de como se fosse um teatrinho.

Este tipo de explicacao voce so usa para os exemplos historicos,mas na sua vida voce usa este tipo de explicacao? As coisas acon-tecem assim? Claro que nao!

Entao, e como se voce dissesse: a explicacao historica e aHistoria do irreal, e o mundo de fantasia. O mundo real e o mundono qual eu vivo. O mundo de D. Joao VI nao era real, Napoleaonao existiu, e so existe voce.

Entao, este tipo de ensino da Historia aprisiona o sujeito numprovincianismo onde ele acredita que so o mundo dele e que e reale o mundo historico e falso.

O ensino da Historia nao e tao ruim assim no mundo. Eu cole-ciono livros de ensino secundario do mundo e tenho uma ideia doque acontece nessa area. P.e., um dos metodos mais correntes nosEUA e voce colocar o aluno no lugar do personagem e fazer comque ele decida. Voce da todos os dados da situacao e pede que eledecida. Se voce nao fizer isso, voce nao visualiza por que D. JoaoVI fez isso, ou D. Pedro II fez aquilo.

Estes esquemas que explicam o comportamento alheio no pas-sado em funcao de causas obvias e mecanicamente fatais, isso aı ea maneira certa, infalıvel, de voce nao entender nada.Tambem, asacoes dos outros sempre nos parecem mecanicas: por que o sujeitofez assim? E voce, rapido: ele fez por isto!

Acontece que estas explicacoes so servem para os outros. Asminhas, nao; sao sempre enormemente complexas e profundas.

Sera que ha alguem aqui que saiba exatamente o que fazer acada momento? Que decida tudo sem problemas. Voces nuncaficam em duvida, apavorados, desnorteados? Eu fico todo dia!Entao, so eu devo ser um imbecil!

Um certo estado de desnorteamento de precisar encontrar exa-tamente esse rumo, essa norma, isto acontece o tempo todo. Ne-

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nhuma acao e totalmente lıquida e certa. Nenhuma acao tem umaintencionalidade logico-mecanica. E nos sabemos disso a respeitode nos, mas com relacao aos outros nos supomos que a mente de-les e muito mais simples e funciona como um motor a explosao.Isto e injusto e e falso. E um violacao do Segundo Mandamento.Nos temos que supor que a cabeca do outro e tao complexa quantoa nossa, e dentro dele existe tanta ambiguidade quanto existe emnos. Com isso voce comeca a se instalar no real, e tambem comecaa perder o medo do ser humano.

E como o psicodrama, onde voce monta a situacao para ver oque voce faz, e daı voce nao sabe o que fazer. P.e., suponha quevoce e a sua mae e entao decida o que fazer. Aı voce comeca a verque a coisa comeca a se encher de ambiguidades.

Este e o unico sistema de compreensao que existe. Formalmentefalando, a compreensao se expressa atraves da explicitacao de umsistema de normas que rege a conduta.

Entao, achar qual e realmente o sistema de normas, de normasque serviram de pretextos, de normas que determinaram um mo-tivo, e nisto que consiste o compreender uma acao alheia, e ate asua mesma, porque voce pode ter agido por motivos que nao serecorda.

O que e uma psicanalise? nao e a descoberta de sistema denormas ja esquecidos que determinaram acoes passadas? Vocevai escavar ate achar a logica embutida numa acao, ou num sen-timento passado. P.e., a heranca culposa. A partir do adventodo capitalismo toda heranca se torna culposa, necessariamente.Se voce pegar o sistema de heranca que havia no mundo pre-capitalista, no mundo feudal, ou nos imperios antigos, era exa-tamente o contrario. A heranca dignificava o sujeito.

Se fosse explicar para Alexandre, O Grande, que o imperio delenao valia nada porque nao era ele que havia conquistado, mas foio pai, isso nao entraria na cabeca dele. Primeiro porque nao ha-

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via ainda essa individualizacao tao grande, porque fazia parte daestrutura de carater o sujeito se entender como um prolongamentodo pai, e nao como um indivıduo que tem que comecar tudo denovo.

Na hora que inventar a tal de etica calvinista, onde voce temque ganhar o seu proprio dinheiro, e so vale aquilo pelo qual vocepagou, entao isto e incompatıvel com o princıpio de heranca, por-tanto isto e uma neurose pessoal, e uma contradicao na sociedade.O que e um conflito de geracoes? E isso aı.

Isto significa que o princıpio de heranca e um princıpio que ocapitalismo conserva de uma sociedade anterior, mas que de certomodo e incompatıvel com ele.

Toda heranca e injusta, em princıpio. Na esfera psicologica oprincıpio de heranca e negado, mas na esfera jurıdica ele e afir-mado. Isto e uma neurose social, e o indivıduo pode sofrer porcausa disto.

Eu acho que voce se livra desses codigos na medida que voceconhece um outro. Se voce nao conhece as alternativas, nao temjeito. Se voce conhecer muitos outros, voce pode fazer determina-das opcoes fundamentais na sua vida que de certo modo te coloquefora desses problemas.

Para mim, nao ha nada que me diga que um bem conquis-tado com muito trabalho vale mais do que um bem adquirido porheranca, ou de presente. Alias, eu tenho ate dificuldade de enten-der por que e preciso se esforcar pelos bens.

Tanta gente que ganha na loteria e um mes depois esta sem nada;ele tinha que liquidar tudo, ter um comportamento purgativo. Quale a base? A base e que isto e imperecıvel, porque nao foi fruto dotrabalho.

Essa etica do trabalho, eu acho isso uma indecencia, falso, eisso e valido para um certo numero de seres humanos. nao podeser valido para todos. Alem do que, e fundamental de que a etica

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calvinista so exista no princıpio da predestinacao, que nega a gracadivina.

O princıpio da graca divina diz o contrario, onde e melhoraquilo que Deus deu de presente do que aquilo que voce lutoupara conquistar.

A confianca na Providencia, p.e., e um traco mais catolico doque protestante. O brasileiro tem uma especie de confianca na Pro-videncia, confianca na sorte, mas, ao mesmo tempo, esta sendo,nas ultimas duas decadas imbuıdo de um princıpio calvinista. Istovai dar confusao.

Ele esta imbuıdo de um princıpio calvinista e, ao mesmo tempo,esta fazendo macumba para Iemanja fazer tal ou qual coisa. Vejamso que salada que e isto!...

A cabeca do Collor, p.e., que so de pensar o conteudo dela, eufico desesperado. Aquilo e um amalgama que nao da para psicana-lisar. E preciso fazer uma verdadeira arqueologia das camadas decivilizacao que estao ali misturadas. Tem um pouco de codigo si-ciliano de famılia, um pouco de codigo maconico, macumba, etc.E ele expressa essa mistura toda.

Entao, se qualquer acao subentende uma finalidade, portantouma norma, e esta norma nao traz ainda os conhecimentos dosmeios, como seria o conhecimento dos meios? Como voce pode-ria obter o conhecimento dos meios se nao supondo nesses meiosum poder causal que, uma vez posto em acao, vai desencadear exa-tamente aquele efeito, segundo a norma? Isto e um conhecimentoteoretico.

Entao, da finalidade sai a norma; tanto a norma fundamental,quanto o sistema normativo inteiro (implıcito ou explıcito).

Para realizar a finalidade nos precisamos de um meio que sosera meio se ele tiver o poder de causar exatamente aquela fina-lidade objetivada. Entao, o meio e uma causa. Esta causa e imi-nentemente uma propriedade de certos objetos. Ora, o que e o

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conhecimento de causa e propriedade? O conhecimento diz res-peito ao quid est; dito de outro modo, o que e uma tecnica? E umajuste de um conhecimento teorico a uma determinada finalidadenormativa. Com isso nos vemos que o conhecimento tecnico naoe propriamente um conhecimento. Ele nao tem um objeto proprio.

O conhecimento tecnico e o conhecimento teoretico que vocetem a respeito de tais ou quais objetos que tem determinadas pro-priedades, e e o ajuste destas propriedades destes objetos a umafinalidade pre-determinada.

Entao, nos poderıamos definir a tecnica como o ajuste entre ateoria e a norma. Dito de outro modo, e o ajuste entre o que vocesabe o que e, e o que voce acha que deve ser. A transicao entre oser real, a situacao dada, e o dever ser, e a tecnica.

Entao, a tecnica nao e um novo conhecimento, mas uma relacaoque voce estabelece entre duas orbitas de conhecimento.

Por outro lado, na propria formacao da norma, esta implıcito umconhecimento teoretico na base de que, se voce nao tem a menorideia do que uma coisa e, como e que voce poderia ter uma ideiado que ela deveria ser?!

P.e., voce pode transformar uma vaca num bife. Mas, como vocepoderia fazer isso se voce nao soubesse que a vaca e comestıvel?

Entao, o conhecimento teoretico e o fundamental, ele esta sub-indicado em tudo, ele esta sempre presente num conhecimentonormativo, num conhecimento tecnico, e nele mesmo.

A rigor, nos podemos dizer que so existe um tipo de conheci-mento que e o teoretico. O normativo resulta de uma decisao livre,humana. O normativo e um ato de vontade, e o tecnico e um ajusteentre o normativo e a sua vontade.

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14 de abril de 1993

[ Olavo retorna ao texto do Husserl. ]Capıtulo IIIO PSICOLOGISMO, SEUS ARGUMENTOS E SUA

POSICAOFACE AOS CONTRA-ARGUMENTOS ATUAIS17. A questao de se os fundamentos teoreticos essenciais da

logica residem na psicologia.Que Ciencias teoreticas fornecem os fundamentos essenciais a

teoria da Ciencia? E exato que as verdades teoreticas da logicatradicional e moderna tem seu lugar teoretico dentro das Cienciasja estabelecidas?

Neste paragrafo ele resume a tese psicologista. Onde que estapretendendo chegar Husserl com tudo isso? Vamos voltar umpouco atras e lembrar que no comeco ele colocou um panoramada situacao da Ciencia logica, dizendo que haviam 3 correntesbasicas, uma corrente psicologista, uma corrente formalista, e umacorrente metafısica. Disse tambem que depois de 2000 anos alogica era uma Ciencia que nao tinha muita clareza sobre a suapropria natureza.

Ora, se e assim que a logica havia se desenvolvido a partir deAristoteles exclusivamente no sentido da tecnologia, seria a tec-nologia do discurso coerente, e essa tecnologia de fato esta bas-tante desenvolvida desde Aristoteles. A Logica Formal e quase

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que suficiente para assegurar a coerencia do discurso, mas a logicatal como entendia Aristoteles nao devia ser apenas isto, nao seesquecam que ele tinha um projeto de 2 logicas, uma Logicachamada Formal, para assegurar a coerencia do discurso, e umaLogica Material que seria Teoria do Conhecimento, a Teoria daCiencia.

Esta Teoria da Ciencia, tal como Aristoteles a desenvolveu, tem,segundo Husserl, uma grave deficiencia, que e a de que ela enfocaapenas as categorias de objetos e os tipos de relacoes que podemhaver entre esses objetos.

Porem, ela nao enfoca esse mesmo assunto desde o pontode vista do sujeito. Por que ela deveria fazer? Porque afundamentacao do conhecimento cientıfico deveria oferecer umaresposta suficiente as objecoes da escola cetica, isto e, da negacaoda possibilidade do conhecimento.

Ora, toda negacao da possibilidade do conhecimento, toda equalquer, ela sempre se baseia naquela sentenca de Protagoras,“O homem e a medida de todas as coisas”.

O que quer dizer esta sentenca? Quer dizer o seguinte: tudo oque voce conhece, absolutamente tudo o que voce conhece, quevoce pense, ve, sente, enxerga, etc, etc, e algo que voce enxer-gou, voce sentiu, ou seja, e uma vivencia psicologica sua, e umarepresentacao.

P.e., voce esta vendo este muro aqui? Mas voce esta vendo estemuro porque voce tem olhos! Entao, se nao houvesse nenhumaalteracao nos seus olhos, voce nao veria muro algum. Entao, soexiste conhecimento no sujeito.

Ora, se tudo o que voce conhece e uma representacao quevoce faz, se o que voce conhece e algo que se passa dentro devoce, como que voce poderia comparar a representacao de umacoisa com a coisa mesmo? voce so poderia representar numarepresentacao da coisa em uma outra representacao da coisa.

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Se voce so compara representacoes com representacoes, ora,nesse sentido, voce falar qualquer coisa a respeito do objeto talcomo e em si mesmo e um segundo non-sense. Voce nada sabedo objeto como e em si mesmo. Este e o problema colocado peloceticismo filosofico.

Ora, a este problema o que responde Aristoteles? Nada! Ele naofalou nada. Toda a Logica de Aristoteles nao diz nada a respeitodisto, ela diz respeito apenas a coerencia do discurso.

Quer dizer, o problema central da Teoria do Conhecimento, quee uma possibilidade do conhecimento verdadeiro e portanto o pro-blema da objecao cetica, simplesmente e passado por alto.

Entao, e por isso mesmo que Husserl diz que as Ciencias quenascem da Logica de Aristoteles, que sao praticamente todas asCiencias que existem ate hoje, Biologia, Psicologia, Historia Na-tural, Polıtica, etc, todas essas Ciencias, ele chama de Cienciasdogmaticas, que sao Ciencias que partem da afirmacao de ummundo real, partem da afirmacao de que nossas representacoesmais ou menos correspondem ao mundo real, sem fazer previ-amente um exame da objecao cetica e sem oferecer a ela umaresposta que ofereca, para fundar o conhecimento, um ponto departida de absoluta seguranca. De modo que e isto que explicaHusserl, a sobrevivencia da objecao cetica ao longo do tempo.

Tambem que ela retorna de tempos em tempos, quando vocecorta a cabeca dela, ela volta, voce corta e ela volta, voce corta eela volta, entao, por que isto acontece?

Isto acontece porque de fato esta objecao nunca foi respondida,porque ela parece maluca, nao e? Ela evidentemente e um jogo depalavras, voce sabe que existe algo de falso nessa expressao. Nostodos sabemos que de fato o conhecimento funciona, nao so nossabemos disso como nos vivemos com base nesse pressuposto.

Voce nao acredita que existe um mundo exterior? Todo mundoacredita que existe um mundo exterior e que voce o conhece, e usa

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o sentimento dele para poder viver dentro dele. Todo mundo vivecom base nisso e nao poderia viver com base na crenca cetica umunico minuto.

Entao e como se a crenca cetica fosse uma armadilha, um jogode palavras, do qual voce nao sabe sair. Voce nao tem respostapara a objecao cetica, no entanto, voce continua vivendo como seessa objecao nao existisse, ad hoc, voce da uma resposta na esferapratica, voce prova o movimento, andando, mas voce nao tem ofundamento teorico do conhecimento.

Isso e a mesma coisa que dizer que nao existe o conhecimentoteorico, so existe o conhecimento pratico, e que todas as Ciencias,no fim das contas, so terao fundamento pratico.

Daı e que vai surgir, 2000 anos depois, a ideia do pragma-tismo, que A prova da verdade da Ciencia nao esta na esfera daverdade propriamente dita mas na sua praticidade, que a Cienciase demonstra verdadeira quando ela consegue produzir certastransformacoes e fim de papo!

Mas isso aı e sair do Leao e chegar ate o (cao(?)), quer dizer, aCiencia surge da pretensao de um conhecimento objetivo e, passa-dos 2000 anos, elas reconhecem que elas nao sao nada mais do queuma especie de convencionalismo que funciona. Era assim que acoisa estava mais ou menos no tempo de Husserl, e para quem naoestudou Husserl profundamente, esta assim ate hoje.

Ou seja, a confianca que as pessoas tem na Ciencia na esferapratica, a essa confianca nao corresponde uma correspondente fir-meza teorica. Entao voce vai ver que no fundo a crenca que vocetem na Ciencia e uma crenca do tipo dogmatica, “E sim porquesim!”

E sim porque funciona, mas esse funcionar tambem pode seruma mera impressao de que funciona mesmo porque sao apenasrepresentacoes suas. Entao, nesse sentido, nao existiria propria-mente nenhum conhecimento teorico, so existem ideias.

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A tecnica lhe fazer uma serie de coisas, mas de fato nao te dao oconhecimento de nada. O resultado final disto e que a Ciencia aca-bara sendo reduzida apenas a uma simples tecnica, como Ciencianormativo- tecnica, ela baixa normas, estabelece convencoes, e fazas coisas funcionarem de algum modo, mas voce nao tem propria-mente conhecimento de nada.

O nosso mundo atual, a sociedade atual, o funcionamento detudo, depende da Ciencia evidentemente. Toda tecnologia de-pende da Ciencia, e nos dependemos da tecnologia 24 horas pordia.

Entao, nos colocamos toda a nossa confianca na eficacia de umatecnologia que se funda numa Ciencia cujos fundamentos nos des-conhecemos completamente e que de fato ela nao os tem.

Isso aı e um contraste muito grande entre a confianca cada vezmaior que nos conferimos a Ciencia e a consciencia que nos temosde que ela nao tem fundamento, e de que ela e so apenas umatecnologia. Tudo isso vem do fato de que a objecao cetica jamaisfoi enfrentada seriamente.

Diz Husserl que a primeira tentativa de enfrentar isso foi feitapor Descartes, com a ideia do cogito. Descartes foi o primeiroque tentou encontrar o ponto arquimedico, o ponto firme do qualpudesse sustentar a construcao do mundo do conhecimento.

A segunda tentativa teria sido feita por Kant, o qual na ver-dade acaba por fim dando razao ao adversario, porque Kant foidizer que so existe um conhecimento mais ou menos na esferado fenomeno, ou na esfera do puro formalismo, ou nos conhece-mos puras relacoes logicas, que nao existem na verdade, ou nosconhecemos a ideia de fenomeno, mas nunca a objetividade pro-priamente dirigida a coisa em si.

Ora, a objecao cetica, diz Husserl, consiste em ultima analiseem dizer que tudo aquilo que voce conhece lhe aparece de certamaneira, p.e., voce tem percepcoes sensıveis, porem as percepcoes

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sensıveis nunca sao iguais, Voce supor as pessoas que voce estaacostumado a ver, mas, cada vez que voce as ve estavam num lugardiferente. Entao, estavam vestidas e aparentemente nao estavamfazendo as mesmas coisas. Se voce somar tudo o que voce viunelas, voce nao compoe elas. Soma todas as visoes que tem deuma pessoa, nao basta para formar uma pessoa inteira. Entao vocesupoe que esses seres tem uma unidade e que essa unidade estapor tras de todas as percepcoes que voce teve delas. Essa unidadee que seria a realidade mesma.

Ora, a realidade e precisamente tudo o que voce nao conhece, eo que voce conhece e precisamente o que nao e realidade. Este e oponto da objecao cetica.

As coisas so nos sao conhecidas a medida que nos aparece, maso que nos aparece nao sao as coisas, sao apenas aspectos das coi-sas.

Para nos so o que aparece e o que nao conhecemos, agora, vejaque nos sempre supomos por tras dos varios aspectos dos variosaparecimentos, das varias manifestacoes, supomos uma unidademas nao a conhecemos. Essa unidade e que e a tal da “coisa emsi”.

Quer dizer, 2000 anos de Filosofia nao bastaram para resolveresse problema. Mas nao e que nao bastaram, na verdade eles tenta-ram resolver, talvez baseado na ideia de que nao dava tempo, p.e.,Aristoteles estava tao ocupado em desenvolver as Ciencias que naoparou para pensar no problema do fundamento das Ciencias.

[ Ze: nao existe a “coisa em si”, ou nao e possıvel conhecer a“coisa em si”? ]

Ou uma coisa, ou outra. Ou o objeto propriamente falando nemsequer existe, e o mundo e apenas uma sucessao de aparencias semnenhuma consistencia em si, ou entao se essa objetividade existeela nao nos e cognoscıvel e nos so conhecemos apenas aparencias.Entao e por isso mesmo que o homem e que deturpa as coisas,

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voce e que da a medida do que existe para voce.Esta impressao de subjetivismo total e tambem uma impressao

universal, nao ha quem nao tenha tido esta impressao alguma vezna vida. Tanto que nos mesmos podemos, na vida diaria, osci-lar entre uma posicao dogmatica e uma posicao cetica, p.e., nosconfiamos na Ciencia, na tecnologia, etc, etc, mas num outro mo-mento voce pode dizer que cada um tem a sua verdade, sem vocenotar que entre a confianca que voce concede as Ciencias e osubjetivismo ao que voce adere em outro momento, existe umacontradicao total.

[ Stella: quando ele questiona a “coisa em si”, ele questionaque exista uma unidade por tras de uma representacao ou que naoexista nada por tras da representacao? ]

Eu estou falando que tem as duas possibilidades.[ Stella: porque pelo menos em comunicacao voce nao pode re-

presentar algo, tem que ter um representando, tem que ter o objetosobre o qual voce cria a representacao. ]

Ta bom, e o que voce supoe, mas esse objeto voce conheceporque voce fez uma construcao mental, ele nunca apareceu na tuafrente. A unidade do objeto jamais aparece, so aparecem pedacos.

Nos sabemos que a objecao cetica e falsa, nos sabemos prin-cipalmente porque nos nao podemos viver com base nela. Ela eabsurda porque se voce aderisse completamente a ela voce naopoderia viver um unico minuto. Mas voce nao tem uma respostano campo teorico, voce tem uma resposta pratica que e, “Ah, deixaas perguntas pra la e vamos tocar as Ciencias pra frente!”, comofez Aristoteles.

Eu digo, mas uma resposta pratica nao e uma resposta, e mudarde assunto. Se o sujeito te fez uma objecao teorica e voce praticauma outra coisa, isso nao e responder, isso e sumariamente mudarde assunto.

Porque a Filosofia mudou de assunto ao longo de 2000 anos a

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objecao cetica continua aı e parece que ela e tao eterna quanto apropria Filosofia e quanto a propria Ciencia, e o fundo de duvidapermanece.

Isto quer dizer que todo o mundo do conhecimento que foi cons-truıdo por 2000 anos ainda tem esse ponto preso, ele tem umaespecie de pecado original, esta marca, esta cicatriz que nao foiapagada ate hoje.

Entao, o velho problema do fundamento absoluto do conheci-mento teve que ser recolocado, e na verdade so quem recolocoumesmo foi o proprio Husserl. Mesmo Descartes, ele se detemmuito pouco nesse assunto, as verdadeiras experiencias de Des-cartes eram pelas Ciencias fısicas. Ele faz aquele mergulho, numexame introspectivo, para encontrar o fundamento absoluto e emseguida trata de fazer outra coisa, exatamente como Aristoteles.

Descartes passou a vida estudando a Fisiologia, a Fısica, Otica,etc, que era o que verdadeiramente o interessava. Entao, o pro-blema do fundamento do conhecimento que ele trata no livro“Meditacoes Metafısicas” e uma introducao ao saber, e so umaintroducao.

E claro que ele lanca um dos fundamentos importantes, mas elenao leva esse problema ate o fim. Na hora que ele encontra a teoriado cogito — cogito ergo sum — ele se da por satisfeito e vai cuidarde outra coisa.

Mas o cogito ergo sum se e um princıpio a resposta, ele nao euma resposta extensiva. Tanto e insuficiente que nos poderıamosperguntar, “Do Eu que voce descobriu com certeza absoluta — oEu existe absolutamente sem duvida — como e que voce faz paradeste Eu, fundamentar o mundo?”

Se o Eu e fundamento, e seguro, entao certamente voce podeter conhecimento do Eu, mas em que o conhecimento do Eu fun-damenta as coisas? Como e que faz Descartes? Ele apela paraDeus!

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Deus tem o conhecimento de mim e dentro de mim eu vejo queeu tenho o conhecimento do mundo. Para ele supor que tudo issoe (por engano(?)) ele precisaria supor que existe um Deus mauque esta jogando imagens na minha cara, nao sou eu que estouproduzindo essas imagens, alguem esta produzindo, eu vejo p.e.que a representacao sensıvel e factıvel, nao fui eu que produziu,ela veio a mim. Entao e alguem que esta pondo, entao so se forum genio mau, um ser maligno. Ora, a teoria do genio maligno eabsurda, moralmente absurda, entao eu rejeito!

Entao, isso aı nao e uma resposta, e uma apelacao. Uma coisa evoce encontrar o fundamento absoluto, outra coisa e voce encon-trar apenas uma justificacao suficiente. Justificacao suficiente jaexiste desde o tempo de Aristoteles.

A justificacao suficiente e, “Ah!, eu nao vou perder tempo comuma objecao idiota que me paralisaria! Vamos fazer a Ciencia enao vamos nos preocupar com esses impecilhos de ceticos, que saouns chatos de galocha! Vamos deixar essa masturbacao mental evamos cuidar do que interessa!”

E uma justificacao suficiente no seu proprio plano, porem e umaresposta na esfera pratica, e nao um fundamento teorico, muitomenos um fundamento teorico absoluto e inabalavel!

Entao, seria preciso encontrar o fundamento absoluto que ta-passe a boca dos ceticos definitivamente, que tornasse ilegıtima te-oricamente a pergunta, porque senao as Ciencias continuam cres-cendo mas sempre com esse cancer.

O enfrentamento da questao cetica e uma raridade na Historia,ninguem enfrentou isso cara-a-cara. O primeiro que enfrentou eHusserl, e os outros nao enfrentaram porque, ou achavam que naovalia a pena, como Aristoteles que, baseado no senso comum, nasanidade, achava que se fosse perder tempo com isso nao ia sairdali, ia passar a vida inteira, ou como Hegel, que dizia que voce fi-car tratando desse assunto e como voce ficar diante de uma piscina

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raciocinando uma possibilidade de nadar — se e possıvel, se naoe possıvel — o melhor que voce tem que fazer e entrar na agua ever se da.

Hegel tinha um horror dessa discussao da possibilidade do co-nhecimento, e Kant falava que era uma questao crıtica. Hegel,“Que questao crıtica uma pinoia! Vamos tratar do que interessa...”, quer dizer, de fato precisa de pessoas mais sas porque aobjecao cetica e coisa de louco e tratar dela tambem e coisa delouco. Quanto eu deveria conceder as objecoes de um maluco?Eu digo, nenhum, a nao ser que as objecoes comecem realmente aatrapalhar.

[ Stella: de fato, o ceticismo entranhou, proliferou ...]Proliferou, entranhou, e hoje ele esta corroendo a Ciencia desde

dentro.[ Stella: o Husserl nao e doido ...]Nao, ele nao esta fazendo isso por doideira! Ninguem quis per-

der tempo com esta questao porque nao precisava, mas agora pre-cisa. Dava para tocar o bonde do jeito que estava.

[ Stella: esse psicologismo nao e um tipo de ceticismo? ]Esse e que e o ponto, o psicologismo nao se apresenta como um

ceticismo, mas ele conduz necessariamente ao ceticismo, comoconsequencia.

O proprio desenvolvimento das Ciencias acaba por fornecer ba-ses para o ceticismo. Entao a Ciencia se come pelo rabo! E epor isso que a objecao cetica agora precisa ser levada a serio, querdizer, antes era problema de maluco, agora nao e mais.

Entao, voce passou por cima da objecao cetica, esqueceu, va-mos esquecer essa porcaria e vamos desenvolver a Ciencia. Acon-tece que chega la para diante o desenvolvimento da Ciencia acaba,ele mesmo, reforcando a objecao cetica.

[ Fatima: eu nao entendi por que o psicologismo conduz aoceticismo. ]

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Se o fundamento do conhecimento que a Logica, a qual funda-menta as Ciencias, tem um fundamento psicologico, entao e umfundamento empırico, que advem da experiencia. Mas qual e ofundamento da validade da experiencia? Se o fundamento da va-lidade da experiencia advem da propria experiencia entao nao temfundamento algum.

P.e., como e que eu sei que a experiencia da conhecimento?Que o conhecimento da experiencia e valido? E por experiencia.Para dizer isto seria preciso que o conhecimento por experienciaja tivesse validade antes.

Entao a experiencia nao pode ser o fundamento da validade daexperiencia, tem que ser um outro fundamento, mas que funda-mento e esse? E logico. Mas qual e o fundamento logico? E a psi-cologia. Ora, o psicologismo e uma Ciencia de experiencia, entaofecha o cırculo e volta sempre ao mesmo ponto, a experiencia e abase da sua crenca na validade do conhecimento de experiencia.

Se e assim, voltamos a objecao cetica que diz que tudo o quevoce conhece, voce conhece por experiencia. Ora, a experiencia esua, a experiencia e o que se passa dentro de voce, portanto voceso conhece o que esta na sua cabeca mesmo!

O conhecimento vem da experiencia, e a experiencia se passano Eu, entao se se passa no Eu, ela e sempre subjetiva.

[ Troca de fitas. Uma parte dos comentarios se perdeu. ]Entao, nos precisamos validar a experiencia, entao nos tentamos

validar por um outro lado, pela logica, mas qual e o fundamentoda logica? E a propria experiencia, daı voltamos aqui ao subjetivo.

Ou a logica tem um fundamento absoluto que vale independen-temente da experiencia, e previo a experiencia, ou voce nao sai dosubjetivismo jamais.

Agora, se voce disser assim, “Ah!, mas a Logica e uma CienciaNormativa, e uma tecnica.” Eu digo, mas essa tecnica se funda-menta em quais conhecimentos teoricos? “Ah!, sao conhecimen-

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tos teoricos a respeito do pensar humano”. Entao sao fundamentospsicologicos e a psicologia obtem os conhecimentos de onde? Daexperiencia. Entao voltou, nao tem jeito!

Quer dizer, o proprio desenvolvimento da Ciencia acabou recri-ando dentro da ambito cientıfico a objecao cetica que tinha sidodeixada de lado de fora! A Ciencia voltou as costas aos ceticos efoi tratar de obter conhecimentos. Seria assim como Hegel, “Eunao vou mais me perguntar pela possibilidade de nadar, eu vouentrar dentro d’agua”, e aı continuou nadando.

Entao, praticamente todas as Ciencias, na hora que elascomecaram a se desenvolver no seculo XIX, todas elas fundamen-taram isto aqui, o psicologismo.

Enquanto a Ciencia esta no ambito da natureza esta tudo bem,porque voce nao se preocupava pelo fundamento do conheci-mento, mas voce se preocupava em produzir conhecimento, de-senvolver a Fısica, Biologia, etc, etc. Mas na hora que voce sevoltou para o mundo das Ciencias Humanas, aı o negocio pioroude novo.

Quer dizer, as Ciencias Humanas sao profundamente ceticas, ena medida em que sao ceticas, elas sao uma negacao de si mesmas,porque elas afirmam um conhecimento que se funda na hipotese daimpossibilidade do conhecimento..

Claro que existe a refutacao logica do ceticismo, mas arefutacao logica e uma coisa, fundamentar a possibilidade do co-nhecimento e outra.

Quando o cetico diz para voce, “O conhecimento e impossıvel”,voce pode responder para ele, “Mas este conhecimento tambem eimpossıvel!”. Se voce sabe que todo conhecimento e impossıvel,entao voce sabe alguma coisa!

Entao, da para compreender que o ceticismo e auto-contraditorio, mas refutar o ceticismo logicamente e uma coisa,porem o que importa nao e a resposta negativa, nao e so a refutacao

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do ceticismo, e a fundamentacao absoluta do conhecimento, daobjetividade do conhecimento.

O maximo que voce pode dizer e, “Olha, entre o ceticismo eo dogmatismo houve um empate.” Voce nao consegue derrubar ooutro, e o outro tambem nao consegue derrubar o um.

Eu digo, mas e claro que o empate nao basta! O cetico vem erefuta o que voce esta fazendo e prova que aquilo nao tem funda-mento absoluto, e voce prova para ele que a objecao dele tambemnao tem fundamento. Entao fica o debate exclusivamente na esferados argumentos logicos, quer dizer, nao ha argumentos logicossuficientes para um lado e nao ha argumentos logicos suficientespara o outro, eu digo, e daı? Isso nao resolve o problema absolu-tamente.

O que resolveria o problema absolutamente seria voce encon-trar um fundamento efetivo e inabalavel da objetividade do co-nhecendo de modo que a objecao cetica nao apenas pudesse serrefutada logicamente mas que ela fosse invalidada absolutamente.

Uma coisa e voce dizer que o sujeito nao tem argumentos, ouque a tese dele leva a resultados contraditorios, outra coisa e vocedizer que a tese dele e absolutamente impossıvel sob qualquer as-pecto. Mais ainda, nao se trata tanto de refutar o contrario, masprovar uma coisa, e voce refutar o seu contrario, a diferenca emuito grande.

Entao, tudo o que nos conhecemos, nos conhecemos por umaevidencia. Se voce nao tem evidencia voce pode obter uma prova,porem a prova pode ser contestada, p.e., de uma mesma evidenciapodem haver varias provas, dessas provas cada uma esta sujeita aquantas objecoes? Um numero indefinido.

Cada prova pode ser objeto de muitas objecoes e essas objecoespor sua vez seriam objeto de refutacoes. Agora, derrubada umaobjecao, pode surgir outra, e outra, e outra, e isso nao acabamais. Mas, se existir uma evidencia inicial inegavel, entao qual-

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quer objecao ja e repelida.Lembram que eu ja lhes disse que evidencia e um conhecimento

que so pode ser refutado por uma sentenca de duplo sentido? Por-tanto, no ato de emitir a sentenca, a objecao ja esta refutada. Naoe que ela e refutada, ela e impossıvel, voce nao pode formular.Uma evidencia e um juızo para o qual nao existe negacao unıvoca.E a mesma coisa que dizer, nao e possıvel negar. Nao e que naose pode provar a negacao, nao se pode formular a negacao. Ela einformulavel, a negacao e indizıvel.

Entao, se eu encontrar uma prova evidente, uma demonstracaoevidente, do fundamento absoluto do conhecimento, a objecaocetica, daı para diante, estaria inviabilizada definitivamente.

Por enquanto nos temos apenas a refutacao de argumentosceticos, mas podem surgir novos argumentos ceticos sob novasformas. Voce derruba uma objecao e aparece outra, e outra, e ou-tra, indefinidamente. O proprio psicologismo e uma versao novado ceticismo, nao e?

No nosso seculo, quando surgem, p.e., as teorias todas do es-truturalismo, do funcionalismo, etc, etc, tudo isso aı e uma novaforma de ceticismo, e para refutar cada um deles vai resultar emmais trabalho, mais trabalho, mais trabalho, entao seria muito maiscerto se refutasse a coisa na base, e nao precisasse mais disso.

Entao, a proposta do Husserl vai ser encontrar esse fundamentoabsoluto do conhecimento.

Ora, ele acredita que o fundamento esta la mesmo aonde se di-rige a objecao cetica.

Ele diz que se a objecao cetica consiste em dizer que todo co-nhecimento e algo que se da no sujeito, algo que ocorre no sujeito,ou seja, na consciencia, entao e na consciencia mesma que deveestar o proprio fundamento, porque neste ponto a objecao ceticatem a sua parte de veracidade.

E evidente que tudo o que e conhecido, e conhecido por um su-

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jeito, ate aı ninguem pode negar que eles tenham razao. Apenascom base nesta observacao eles diziam que se tudo e conhecidopor um sujeito, nada e conhecido para alem do sujeito, que o su-jeito so se conhece a si mesmo, e portanto o conhecimento naotem objeto. Portanto, entre o conhecimento falso e o conhecendoverdadeiro nao vai existir diferenca alguma.

Porem, o ponto de partida da objecao e verdadeiro, o conheci-mento esta no sujeito mesmo, porque tudo o que eu conheco e umaaparencia, e algo que aparece a mim.

Entao, a pergunta fundamental da Fenomenologia e como sefosse a Ciencia do aparecer, fenomeno e a coisa aparecida. Seraque no modo de aparecer ante a consciencia ja nao existem ostracos distintos do verdadeiro e falso?

Como que as coisas me aparecem? Uma fantasia aparecedo mesmo jeito que uma percepcao sensıvel? A percepcaosensıvel aparece do mesmo jeito que uma construcao logica? Umaevidencia aparece do mesmo jeito que uma probabilidade? Comoe o modo de aparecimento? O que eu percebo exatamente quandoeu percebo isto aqui? Quando eu percebo uma coisa como ver-dadeira, esta percepcao da coisa como verdadeira nao e essencial-mente distinta da percepcao de mera probabilidade? E ali que temque ser (procurado(?)) o objeto.

Longe de tentar tirar a questao de dentro da consciencia e apelara uma suposta “coisa em si”, que esta fora da consciencia, Hus-serl acha que e na propria consciencia que se tem que encontrar ofundamento da objetividade. Porque toda tentativa de voce dizerque o conhecimento objetivo e aquele que tem um objeto fora daconsciencia vai esbarrar sempre na mesma objecao.

Entao, deve existir uma consciencia de veracidade que e es-pecificamente distinta de outras formas de consciencia. Estaconsciencia de veracidade e o que ele chamava de evidencia.

Quando voce compara uma percepcao sua com o objeto da

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percepcao, voce somente esta comparando uma percepcao comoutra percepcao, fecha a questao toda dentro do cırculo daconsciencia.

Entao, eu tenho aqui uma imagem de uma vaca; como e que euvou saber se a imagem de vaca corresponde a vaca? Comparandocom a vaca. Mas esta vaca com a qual voce esta comparando euma imagem de outra imagem! Entao parece que nao sai disso.

Quando chega no Kant, ele diz que de fato a “coisa em si” eincognoscıvel, nos so conhecemos fenomenos. Ora, se nos co-nhecemos apenas os fenomenos, e fora dos fenomenos nos so co-nhecemos formas a priori, que sao formas internas nossas, que ea forma da nossa logica, essas formas nao tem materia, elas naose referem a nada. Entao nos conhecemos esquemas mentais nos-sos e conhecemos aparencias dos fenomenos. Entao parece que omundo virou uma fantasmagoria.

A resposta do Husserl e o seguinte, “Olha, a objetividade estadentro da propria consciencia. Se ela existe em algum lugar, temque estar la mesmo.” E uma das primeiras verificacoes dele e oseguinte: e que toda consciencia e sempre consciencia de algumacoisa, nao existe consciencia relativa. Ter consciencia e ter umaintencao dirigida a algo. Nao interessa se esse algo esta fora ouse esta dentro, mas tem um algo que nao e a propria consciencia.A consciencia e uma intencao, mas ela so se torna consciente nahora que tem um algo, se nao tem nada, a consciencia ...(?)...

Entao, nesta maneira de voce ver consciencia e que deve estar adiferenca fundamental entre o verdadeiro e o falso. Ora, para isto enecessario desenvolver uma parte da logica que nao foi desenvol-vida por Aristoteles, e esta parte da logica e que nos chamarıamosde Fenomenologia, que e a Ciencia das modalidades de apareci-mento das coisas ao sujeito.

Entao ele diz, p.e., se existem as categorias logicas, tipos de ob-jetos, se existem tipos de relacoes entre objetos, do mesmo modo

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deveriam existir tipos de aparecimentos, tipos de consciencia.Agora, isto nao da para ser estudado psicologicamente, parece

um assunto psicologico mas nao e psicologico, nao e? Da paraentender a distincao entre isso e a psicologia?

Entre os diversos tipos de consciencia, eu posso estudar istopsicologicamente? Bom, qualquer estudo psicologico eu ja pres-suponho a propria consciencia. Entao, o fundamento do conheci-mento nao vai ser obtido por nenhuma ciencia em particular por-que todas elas ja pressupoem uma consciencia. O fundamento sopode ser encontrado numa especie de consciencia imediata que aconsciencia tem de si mesma.

Porem, que consciencia imediata existe de si mesma, se todaconsciencia e consciencia de algo? Como e que voce pode terconsciencia da consciencia? Voce so pode ter consciencia de queteve consciencia de algo. voce nunca vai poder pegar a conscienciapor objeto, voce nunca vai poder ter consciencia da conscienciado mesmo jeito que voce tem consciencia de objeto. E no entantovoce tem consciencia de que tem consciencia.

Bom, aı ja tem uma dupla modalidade de aparecimento: a ma-neira de a consciencia aparecer ante si mesma nao e a mesma ma-neira pela qual um objeto qualquer aparece na minha frente.

[ Stella: e uma consciencia reflexiva, nao e? ]Nao e somente reflexiva, e algo mais. Para voce captar a ideia de

consciencia da consciencia, em primeiro instante voce tem que teruma consciencia de ordem reflexiva, quer dizer, e aquele negocio,eu sei e sei que sei. Se eu nao sei que sei, nao sei absolutamentenada.

Ate aı e somente uma reflexao, porem voce imagine que vocecaptasse todas as modalidades de consciencia que voce tem, ou to-das as modalidades de consciencia possıveis, do mesmo modo queem logica voce pega todas as modalidades de objetos possıveis.

Entao, voce tem as categorias, o que quer que voce capte e, ou

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substancia, ou qualidade, ou quantidade, etc, etc, isto pelo lado doobjeto.

Imagine que voce pegasse as categorias subjetivas, modalidadesde aparecimento, e que voce conseguisse cercar todas; desde deque ponto de vista voce poderia captar todas estas? Onde estariavoce? Isto se chama Consciencia Transcendental.

Consciencia Transcendental e a consciencia que abarca todas asmodalidades de consciencia.

Entao ele diz que a vantagem que nos da a objecao cetica e queela nos obriga a captar o ponto de vista transcendental. O ponto devista transcendental coloca entre parenteses toda a universalidadedos objetos conhecidos, e toda a universalidade das operacoes deconsciencia, ela coloca entre parenteses e olha tudo isso.

Ora, prestem bem atencao, se nao existisse Consciencia Trans-cendental a objecao cetica seria impossıvel. A objecao cetica naose refere a tudo o que voce conhece? E a todas as modalidades doconhecer?

Se ela pode ser formulada quer dizer que a consciencia pode secolocar acima e fora de todos os seus objetos e de todas as suasoperacoes.

Isto aqui e medular; se eu posso colocar em duvida a totalidadedos objetos conhecidos e a totalidade dos modos de conhecimentoe porque eu posso me colocar fora e acima do mundo dos objetos edo mundo da propria consciencia, abarca-lo como um todo a partirde cada, e o que e isso? Isto chama-se Consciencia Transcenden-tal. Isto e a coisa mais importante do mundo!

[ Olavo faz um desenho esquematico no quadro, e vaiexplicando-o. ]

Olha, aqui voce tem o objeto, e aqui voce tem a consciencia;em seguida voce tem uma consciencia reflexiva, que abarca aconsciencia e o objeto.

Daı voce percebe que voce tem varios objetos, e que voce tem

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varias maneiras de consciencia, e em seguida, voce percebe quevoce tem varias maneiras de consciencia reflexiva; voce pegao repertorio delas e coloca tudo em duvida, porque voce temConsciencia Transcendental.

A possibilidade da objecao cetica fundamenta-se na existenciada Consciencia Transcendental.

Agora, como e que o cetico vai fazer a sua objecao? Faca a suaobjecao sem a Consciencia Transcendental! Faca!?

(Desenho esquematico feito pelo Olavo)

+----------------------------+| CONSCIENCIA TRANSCENDENTAL |+----------------------------+

|| +---- YANG|

+----------------------------------------------------------+| +--------+ +-------------+ +-----------------------+ || | OBJETO | | CONSCIENCIA | | CONSCIENCIA REFLEXIVA | || +--------+ +-------------+ +-----------------------+ || | | | || +-----+ +--------+ +----------------+ || | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. | || +-----+ +--------+ +----------------+ || | | | || +-----+ +--------+ +----------------+ || | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. | || +-----+ +--------+ +----------------+ || | | | || +-----+ +--------+ +----------------+ || | Obj.| | Consc. | | Consc. Reflex. | || +-----+ +--------+ +----------------+ |

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+-----------------------------------------------------------++--- YIN

Ou o cetico diz que a objecao dele abarca todo o conhecimentopossıvel e portanto ela e valida em si, ou ele diz que ela so abarcauma parte e portanto ela nao e valida.

Se ele diz que ela abarca todo o conhecimento possıvel e todasas modalidades de consciencia, entao e porque tem ConscienciaTranscendental.

A objecao cetica, para ela ser possıvel, isto subentende que epossıvel voce colocar todos os objetos de conhecimento, todas asmodalidades de consciencia, todas as modalidades de conscienciareflexiva, tudo em duvida.

Voce esta fazendo um juızo a respeito da totalidade dos objetos,da totalidade dos modos de consciencia, e da totalidade dos modosde consciencia reflexiva. Isso aı e a Consciencia Transcendental!

Agora, se o sujeito disser, “Nao existe Consciencia Transcen-dental nenhuma!”, eu digo, bom, entao nao pode abarcar a totali-dade e entao a sua objecao nao abarca todos os modos possıveis.Se nao abarca, ela nao e valida para sempre!

Agora, consciencia reflexiva pode ser consciencia subjetiva,mas a Consciencia Transcendental nao pode, porque ela se refere atodas as modalidades de objetos possıveis, a todas as modalidadesde consciencia possıveis, e a todas as modalidades de conscienciareflexıveis possıveis; ela nao e individual. Ela transcende o proprioindivıduo.

Ou seja, se eu sou capaz de uma Consciencia Transcendental,eu sou capaz de uma universalidade, que transcende da propriaconsciencia individual.

Eis-me aı fora da prisao da consciencia subjetiva!Se voce fechou todos os objetos possıveis dos sistemas e ca-

tegorias, fechou todas as formas de consciencia possıveis, e de

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consciencia reflexivas, entao nao sobrou mais nada!Ou seja, voce questionou tudo em todas as coisas, esta tudo

entre parenteses. Se voce fez isso e porque voce pode! Se vocepode quer dizer que a sua consciencia abarca a universalidade dopossıvel, abarca e ainda fica por cima! E se ela abarca e ainda ficaacima, como e que ela esta presa dentro de uma prisao subjetiva?Isto independe da sua subjetividade!

Em suma, a objecao cetica e o proprio fundamento do conheci-mento objetivo! Isto e a prova.

Dito de outro modo, a objecao cetica se surpreende a si mesmacomo uma negacao de evidencia porque a possibilidade da suaemissao repousa na falsidade do seu conteudo.

A objecao cetica so pode ser formulada como falsa, porque paraformula-la e necessaria a Consciencia Transcendental, que a des-mente e ao seu conteudo. Afirma a possibilidade mas desmentea realidade, desmente a veracidade, ou seja, posso ter a objecaocetica porque sei que ela e falsa. Se eu nao soubesse que ela efalsa eu nao poderia formula-la.

Entao, o cetico apela para Deus mas ele fica fora disso porquenos estamos aqui na esfera do subjetivo humano, e la em cima temDeus que garante.

Daı Husserl diz,“ Que Deus que nada, isso aı e o EU transcen-dental”, porque e a universalidade da consciencia humana, nao euma questao subjetiva mais. Isto nao e Deus ainda, mas isto e omodo; isto e Cristo, nao e Deus.

Quer dizer, Descartes apelou direto para Deus, eu digo, bom,nao deixa de estar certo, mas isso aı e muito pouco para ser Deusainda, tem uma etapa intermediaria aı, nao e?

Isto se chama o EU transcendental, e a Consciencia Transcen-dental, que e a consciencia universal, que e uma so em todas. vocesubiu la, ja esta no plano do universal e nao desce mais, mas istoe o Cristo propriamente dito, isto e o Logos. Voce pode formular

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a objecao cetica porque voce tem o tipo de consciencia que se su-perpoe a todos os objetos, a todas as modalidades de consciencia ea todas as modalidades de consciencia reflexiva, desde o ponto devista da universalidade total! E so por isso que voce pode formu-lar esta objecao, senao voce estaria preso dentro do conhecimentoque tem! E voce nao esta!

P.e., se eu posso duvidar de tudo aquilo que enxergo e porqueexiste algo em mim que transcende o que enxergo. Eu me colocofora e acima, e julgo.

Mas eu nao me coloco so fora do que eu enxergo, eu me colocoacima do que eu escuto, do que eu sinto, do que eu penso, doque eu imagino, do que eu raciocino, me coloco fora da propriaevidencia, fecho aquilo tudo e me coloco fora, e coloco tudo entreparenteses.

Entao, existe algo no homem que nao e humano mais. Naodepende da sua individualidade. Este e o universal que esta emvoce e do qual voce nao pode escapar.

Isto quer dizer que e a propria possibilidade de duvidar da tota-lidade do conhecimento que prova a universalidade da conscienciahumana. Portanto, quando a consciencia humana fala, e comconsciencia total!

Quem sabe disto aqui, se voce sabe conscientizar este negocio,voce nunca mais vai ser o mesmo. Agora, chegou o Cristo e disseassim, “Vos sois Deus.”, entao tome cuidado com essa coisa ...

Voce nao pode negar que voce sabe, portanto toda vez quecomecar a duvida sobre isto ou sobre aquilo, voce sabe que vocepode levar a duvida ate o fim, e voce sabe que voce pode somaresta duvida numa infinidade de outras duvidas. Voce sabe que asua duvida pode abarcar a totalidade dos objetos possıveis, dasformas de consciencia possıveis e das formas de consciencia re-flexiva possıveis, e pode abarcar o mundo todo do conhecimentoe do conhecido; voce sabe que voce pode fazer isto e so nao faz

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porque tem preguica. E voce sabe que voce pode fazer isto porquevoce tem a tal de Consciencia Transcendental, que transcende naoso a esfera dos conhecimentos mas do conhecimento humano emgeral, toda essa cultura, toda essa Ciencia, toda a Historia, tudo oque aconteceu, toda a esfera da existencia. Agora, voce sabe quetem algo em voce que esta fora da existencia ...

Se voce comeca a ter duvidas e voce se apega a crencas paraescapar da duvida, entao voce e apenas um dogmatico que estadiscutindo com o cetico, quer dizer, voce ainda esta dentro da es-fera das duvidas individuais humanas.

Se voce levar a duvida ate o fim voce vai ter que chegar, olha,duvidei tudo, neguei tudo, sobrou o que? Duvidei ate o fim, jabotei o Deus de Descartes entre parenteses tambem, nos podemosfazer a suspeita de que Deus e um genio mau, ate isso voce colocaem duvida, voce coloca o universo inteiro e mais o que esta parafora do universo, o infinito, o proprio Deus, voce colocou tudo; eudigo, bom, tudo isso para que?

Para que voce tenha a Consciencia Transcendental. Agora, vocenao se lembra dela, se voce (nao invade ali(?)) voce nao poderiafazer a duvida nela.

Isto aqui e para voces entenderem que tipo de coisa e o homem.O ser humano de fato e um prodıgio, e uma coisa inexplicavel.Deus fez um negocio ...(?)... totalmente sub-utilizado.

Quem perceber isto aqui vai falar, “Mas o homem e isso aı?!”,essa horda de pessoas achando que da mesmo para elas viveremuma vida centrada nos seus interesses pessoais; a vida nao da.Voce nao pode se identificar com a sua pessoa, nao da para vocese identificar com ela.

Agora, pare para pensar o seguinte: se voce tem isto aqui, eno entanto voce vira as costa para isto e vai tratar apenas da suavida pessoal, eu digo, uai!, voce virou as costas para aquilo que tesustenta!

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A partir daı a sua Consciencia Transcendental opera contravoce, e isto e a mesma coisa que dizer que voce esta apostandonuma coisa que e mais forte do que o universo inteiro, apostandocontra, e voce ja perdeu, faca o que voce quiser voce esta con-denado a esse (mundo(?)), de maneira que a concentracao do in-divıduo na esfera da sua vida pessoal, sem esse tipo de interesseaqui, e o mesmo que se chama de pecado contra o Espırito Santo,e o unico pecado que nao e perdoado nesse mundo ...(?)...

Na hora que o sujeito entrou nisto ele colocou tudo contra ele,e pior do que bandido, estuprador, pior do que tudo! Ele se colo-cou realmente fora do universal, entao se voce se coloca fora douniversal, nao tem lugar para voce. Voce esta operando contra omaquinario universal inteiro. O seu sofrimento a partir daı e justo,merecido, e ate brando. E este aqui e o grande pecado humano, arecusa da universalidade. Na verdade e o unico.

Existe uma diferenca entre o ignorante que nunca ouviu falar, eque acredita que de fato o mundo das suas percepcoes, sentimen-tos, etc, o limita completamente e que e ali mesmo que ele temque cuidar e e so aquilo que existe, e o outro que tendo ouvido fa-lar nao quer saber, “Ah!, esta grande demais para mim.” Eu digo,bom, voce recusou a oferta divina, e daı voce esta lascado mesmo,daı voce nao tem mais saıda.

E isto que Cristo se refere a aqueles que “Tendo conhecido, oCristo nao recusara.”

Se voce entender que voce tem a Consciencia Transcendental,intelectualmente falando, voce e maior do que o mundo inteiro, e epor isso mesmo que nenhum conhecimento lhe parece suficiente-mente fundamentado. Eu digo, mas nao e fundamentado, o unicoque e fundamentado e a Consciencia Transcendental.

A totalidade da Ciencia, da cultura, tudo isso e fichinha para ohomem. E claro que nao existe propriamente dito uma conscienciada Consciencia Transcendental, a Consciencia Transcendental da

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Consciencia Transcendental, isto seria um absurdo, porque aConsciencia Transcendental faz uma unica operacao, que consisteem colocar tudo entre parenteses, ela nao tem outro conteudo a naoser o todo questionavel. Ela so pode ter, na verdade, conscienciadela mesma.

A partir daı, se a Consciencia Transcendental e rejeitada, elase transforma numa sombra, mas e uma sombra do tamanho domundo, maior do que o mundo talvez, isto aı e o diabo propria-mente dito.

Entao, esse conhecimento de elevada responsabilidade, e aı quevoce percebe ate onde chega a potencia intelectual humana, emonstruosa, descomunal mesmo, a qual contrasta com a fragili-dade da substancia individual.

Por um lado voce tem essa possibilidade de subir a uma di-mensao na qual voce coloca tudo entre parenteses, e que e maiordo que o mundo; de outro lado, voce tem uma memoria fragil,sensacoes enganosas, sentimentos desencontrados, etc, mas o ho-mem e exatamente essa dualidade. Essa dualidade nao tem umasaıda, e la em cima mesmo, para baixo nao tem, aqui nao tem!

[ Gloria: eu acho que a Consciencia Transcendental nao temuma permanencia, ela lhe escapa ... ]

Nao, voce e que escapa a ela. O que quer que voce fale que naoleve em conta a Consciencia Transcendental, babau! “Ah!, mas eume esqueci, eu nao me coloquei no ponto de vista da ConscienciaTranscendental.”, entao e falso, nao importa o que voce disse. Oque quer que voce fale, pense, etc, etc, sem levar em conta quea suprema realidade chama-se consciencia e que voce sabe disto,voce ja entrou no falso, voce esqueceu quem voce e. Se voce es-queceu quem voce e, entao, todo saber, todo conhecimento quevoce tem vai perder o fundamento na mesma hora.

A Consciencia Transcendental voce nao pode se livrar dela,voce pode apenas esquece-la, mas esquece-la e esquecer tudo. P.e.,

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se voce se dedica a expandir os seus conhecimentos, ou a con-quistar poderes, ganhar dinheiro, eu digo, mas que raio de podervoce tem? Se voce nao sabe nem sequer quem voce e?! Quem eque esta agindo? voce esta fazendo tudo dentro de um piloto au-tomatico, voce nao tem poder algum, somente desde este ponto devista (Consciencia Transcendental) voce pode ter poder.

Entao, o conhecimento e divino, e se voce esta ali, bom, entaoeu estou admitindo que sou Deus porque eu sou Deus. Nos mo-mentos onde eu nao me coloco na posicao divina, eu me tornei im-potente, e de fato o homem so pode viver nesta alternancia entreum conhecimento divino, um poder divino, e a total impotencia!

No momento em que voce esta considerado numa total im-potencia, voce esta no YIN — do I Ching —, este e o YANG eo YIN (ver no desenho esquematico que o Olavo fez no quadro).

Perder a Consciencia Transcendental e como se voce fosse umbichinho que nao decide nada, nao sabe porra nenhuma, nao res-ponde nem mesmo pelo que faz, e que depende de certo modo deuma ajuda divina. Num outro momento, quando voce se colocouaqui em cima, voce e a ajuda divina que desce para o mundo. Sotem essas duas maos que fazia Cristo na Santa Ceia, uma mao paracima e outra para baixo, uma recebe e a outra da.

O I Ching nao diz que o (homem-eternidade(?)) sera eterno?Quando ele da no YIN, na parte fraca, ele e apenas o indivıduohumano, fragil, burro, cetico, entao ele tem que pedir pelo amorde Deus. No instante que ele tem a clareza do espırito, a clarezada totalidade, da Consciencia Transcendental, entao, ao contrario,ele da. Na mao esquerda e na mao direita; uma e passiva e a outrae ativa.

Isto quer dizer que, ou se coloca dentro deste plano, ou fiquequietinho no seu canto ...

Voce nao sabe em que voce sabe 24 horas por dia, alias, sao sopoucos minutos, porque a maior parte voce esta dormindo mesmo.

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Entao, na hora em que voce esta dormindo voce esta um poucodescuidando da sua vida pessoal, mas voce sabe que voce estacuidando da sua vida de maneira impotente. ‘As vezes voce sabeque voce precisa de um socorro divino, senao nao vai dar nadacerto, voce sabe que voce nao tem poder nenhum, voce nao estaenxergando nada!

Entao, vejam, esta subida, isto aqui e a subida do Monte Sinai.Claro que quanto mais tempo der para voce ficar la, ou quandovoce desce, Moises desce do monte Sinai para que? Para retornara vida dele aqui do mesmo jeito? Nao, ele desce para mandar,“Agora faz assim”, agora que tem o poder aqui, como no I Ching,agora que o homem esta com o bastao, voce sai dando porrada,quer dizer, voce manda, e em primeiro lugar voce manda em voce;voce sabe o que quer fazer, faz o que quer, e entao agora nos temosque entrar para o passivo.

Do passivo voce nao se coloca do ponto de vista transcendental,mas se coloca num ponto de vista reflexivo que vai ter que receberdo mundo da cultura, da religiao, da moral, da Filosofia, etc, osensinamentos que voce precisa para voce poder se virar na vida.E mais, quando voce se coloca do ponto de vista transcendentala cultura inteira esta colocada entre parenteses, ninguem pode teajudar, nao precisa de ajuda.

Esta permanente subida e descida, isto aı e a vida humana. Ecomo o Apocalipse, “Eu vejo o ceu aberto e os anjos subindo edescendo.” Com isto e bom voces saberem que a Fenomenologiae uma escola iniciatica, embora nao pareca. Sob o aspecto dotecnicismo tecnico- matematico e uma escola iniciatica.

Entao, quer dizer, faca voce o que quiser, voce esta fazendopor concessao da Consciencia Transcendental. E de la que saia forca para voce fazer qualquer coisa, e apenas uma concessaotemporaria. Quando voce esta recebendo conhecimento, voce estavendo a sua Consciencia Transcendental como se fosse desde fora,

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sabendo por espelhismo, voce nao esta centrado nela, voce estacolocado embaixo e esta recebendo.

[ Olavo desenha um esquema no quadro e faz comentarios sobreele. ]

+----------------------------+| CONSCIENCIA TRANSCENDENTAL |+----------------------------+

|+--------+| FORMAS |+--------+

|+-----------------------+| CONSCIENCIA REFLEXIVA |+-----------------------+| | |

|+--------+ | +--------+| OBJETO --|-- SUJEITO |+--------+ | +--------+

||

+----------------+| Objecao Cetica |+----------------+

Entao, temos o OBJETO e o SUJEITO; existe a CONSCIEN-CIA REFLEXIVA; da consciencia reflexiva pode surgir a ObjecaoCetica; e a reflexao sobre a relacao Sujeito — Objeto que produza objecao cetica.

Porem, se voce nao se contenta com a objecao cetica e con-tinua, voce chega a ideia das FORMAS de objeto, das formas

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de consciencia possıveis paralelamente as formas de objeto, for-mando entao o conjunto das possibilidades cognitivas humanas.

Daı voce pode voltar para a objecao cetica e colocar tudo emduvida, tudo entre parenteses, mas na hora que voce fez isso vocealcancou justamente por aı a Consciencia Transcendental.

Porem, a Consciencia Transcendental so e alcancada na horaque houve o domınio das formas totais do conhecimento, que pres-supoe uma especie de universalidade do seu conhecimento..

E claro que nao podemos subir a uma Consciencia Transcen-dental desde a simples consciencia do objeto, que e a conscienciaingenua de todos os dias, desde uma simples consciencia reflexivafilosofica, comum, e nem mesmo desde a simples objecao cetica.

A partir da hora que o indivıduo tomou consciencia que existeConsciencia Transcendental, o esforco dele deve ser de completar,a todo instante e com a maior brevidade possıvel, a universalidadedo seu conhecimento, conhecer tudo, dominar o mundo da culturana sua inteireza, para poder coloca-lo entre parenteses e reencon-trar a Consciencia Transcendental.

E claro que se voce chega aı, a objecao cetica nada mais podeporque voce a inibe, mas admitiu a possibilidade dela. Mas e pre-ciso que essa possibilidade advenha da propria falsidade, ela so epossıvel porque ela e falsa, e so e possıvel enquanto falsa.

Se a Consciencia Transcendental pode tudo em duvida, nao so omundo conhecido mas o mundo possıvel, e porque ela transcendetudo isso, porque ela tem a universalidade e por isso ela imperasobre o objetivo-subjetivo. E ela sabe o que e o objetivo-subjetivo.Pelo menos ela sabe que pode converter um no outro e o outro noum. De certo modo ela fica a seu lado entre o mundo objetivo e omundo subjetivo.

A ...(?)... busca as formas, o que deve ...(?)... a universalidadedo conhecimento e do conhecıvel, a universalidade do conhecidoda universalidade do conhecimento, a universalidade organizada,

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a totalidade organizada, ou seja, cultura.Adquire quando a cultura em seguida e colocada entre

parenteses. Quer dizer, o ponto de vista da Consciencia Trans-cendental e uma especie de um arbitro universal, e o unico pontode vista desde o qual as questoes podem ser resolvidas, abaixodisto todas as questoes sao debatidas.

Quando voce alcanca o plano de conhecer o domınio do fun-damento absoluto, voce sabe que esse fundamento e a propriaConsciencia Transcendental. voce jamais procurara um funda-mento do conhecimento fora do sujeito, porque ele nao esta fora,esta acima do sujeito, ele nao esta nessa relacao horizontal entre osujeito e o objeto, ele esta para cima.

Nesse sentido Descartes tinha razao, o arbitro entre o sujeito eo objeto e Deus, mas continua um Deus ...(?)..., nao e o Deus-Pai,mas e o Deus-Filho, e uma maneira de dizer essa coisa, porque eo Deus-humano.

Mas Deus-humano e o que ele chama de o homem universal,que e o homem indivıduo humano enquanto detentor da totalidadeda possibilidade da especie humana, e nao enquanto detentor ape-nas de suas possibilidades pessoais, quer dizer, nao e enquantoOlavo, enquanto Alexandre, enquanto Denise, enquanto Lucia,mas enquanto gente.

Nesse sentido, a sentenca de Protagoras, interpretada numaclave superior, e verdadeira, “O homem e a medida de todas ascoisas”, mas nao o homem enquanto indivıduo singular, porque aıvoce cai na objecao cetica, mas o homem enquanto homem uni-versal, que e de fato a medida do universo, daı aqueles famosossımbolos do pentagrama, aquele desenho de Leonardo da Vinci,como o homem medida de todas as coisas, quer dizer, este homemque nos estamos vendo e o homem grande e nao o pequeno, ohomem universal e nao o individual.

O individual e apenas um objeto na verdade, ele e um objeto e e

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sujeito ao mesmo tempo, ele esta sempre dividido entre a sua ob-jetividade e a sua subjetividade, entre aquilo que ele e e aquilo queele sabe, sendo que voce e um monte de coisas que voce mesmonao sabe.

Voce escapa disto aqui subindo para a consciencia reflexiva, atotalidade das formas da consciencia reflexiva e a totalidade dacultura.

[ Joao: existe ainda algum cetico? ]Tem um monte! Existe uma forma pos-Husserliana de ceti-

cismo que e uma especie de ceticismo de desespero total, que euma recusa ativa de um sujeito que escreveu um livro, “A Tiraniado Logos”, que esta muito em moda na Franca... porque isto aqui(livro do Husserl) e a cruz mesmo.

Se voce nao gosta disto, bom, entao voce tem que lutar contraa tirania do Logos, entao nao tem consciencia reflexiva, entao naotem universalidade, nao conhece coisıssima nenhuma, nem mesmoa objecao cetica voce pode fazer.

Entao, so o que lhe resta e voce arrancar o seu proprio cerebro,pegar os miolos de dentro do cranio e passa-lo numa maquina demoer carne e dar para o gato comer; se o gato ainda quiser comeruma porcaria dessas ... Voce caiu para o infra- animal, e diabolicomesmo, esta abaixo de gente, um bicho superaria.

O que voce acha de um sujeito que faz uma maquina desuicıdio? Tem a maquina e o manual do suicida!

Veja, se a inteligencia nao pode mais ter universalidade, naopode sequer fazer a objecao cetica, mas no entanto voce nao gos-tou do Logos, rejeitou completamente, nao sobrou nada, nem ce-ticismo mais, voce nao pode nem falar contra, entao so me restafalar o non-sense.

Mas se refere o jus sperneandi, o direito de espernear, voce podeficar louco, pode meter uma bala na cabeca, pode fazer o que vocequiser, mas eu acho mesmo que a Consciencia Transcendental e

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o Juızo Final, na hora que voce chegou ali daı nao tem mais paraonde ir.

Quer dizer que esse e o ponto final que as vezes separa real-mente o carneiro dos bodes. Agora, se voce tentou atender essesbodes, eu digo, voce nao vai poder sequer se disfarcar travestidode um disfarce de filosofo cetico porque nem isso voce pode sermais. Nao da nem para voce falar contra, e horrıvel, nao e?

Se o sujeito esta imbuıdo de ma-vontade, eu digo, vai ser muitodifıcil voce encontrar um setor onde voce possa expandir a sua ma-vontade, nao tem lugar nem para ela.

E por isso que na filosofia francesa o impacto da Fenomenologiafoi tal que pegou la uns caras e esmigalhou com o cerebro deles,acabou.

O indivıduo que esta imbuıdo de uma ma-vontade contra o ho-mem, contra o conhecimento humano, e no entanto ele pode terinteresse em Filosofia, entao ele vai, vai, vai, estuda bastante, ateque ele chega ao Husserl e ve que da para dominar essa coisa. Sena hora que voce domina voce nao gosta, entao so lhe resta ficardoidinho.

Eu acho mesmo que a Fenomenologia e uma mensagem divina,e um poder divino isso aı. Quem entra por ali nao sai mais, nao saiporque este e o caminho para cima, para cima e para o todo. Parafora do todo nao tem nada.

Entao, isso nao e uma coisa que voce possa explicar facilmentea um recem-chegado, precisa de uma serie de condicoes, de umacaminhada toda para voce poder chegar ao ponto de dizer tudo oque eu disse hoje.

Entao, primeiro assegurar que o indivıduo tem a boa-vontade doconhecimento, se tiver ma-vontade nao tem jeito, nenhum canal,nenhuma saıda por onde ele possa ainda terminar. E uma especiede Juızo Final mesmo.

Se o sujeito diz, “Mas a verdade nao existe!”, mas isso aı e a

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objecao cetica. Conforme voce faz a objecao cetica voce ja secolocou acima da totalidade do conhecido e do conhecıvel, e issoaı e exatamente a Consciencia Transcendental, voce se colocoufora e acima, agora voce e o juiz!

E isso mesmo, e o que nos estamos dizendo, o homem e de fatoa medida de todas as coisas, nao o indivıduo humano porque elenao pode fazer essa objecao. O indivıduo humano vive dentro dapaz da objecao cetica.

Presta bem atencao que no plano da vida empırica, da vidapratica, nao ha objecao cetica; se houver o sujeito e internado namesma hora.

P.e., voce faz a objecao cetica de que voce esta aqui nesse mo-mento, e acredita nela. Eu digo, bom, evidentemente as pessoasnao conseguiriam mais se comunicar com voce e daı so lhe resta alobotomia mesmo.

Entao, no plano da vida pratica, do indivıduo empırico, nao haobjecao cetica, ninguem faz. So existe no plano da vida teorica.Se voce subiu ao plano da vida teorica e conseguiu formular aobjecao cetica, ou voce vai formula-la de brincadeira e so paraalguns setores determinados, ou voce vai formula-la a serio e paratudo.

Se voce formula-la a serio e para tudo, ja esta resolvido o pro-blema. A sua consciencia se colocou fora e acima, portanto elanao e consciencia individual mais, e Consciencia Transcendental,e se ela e Consciencia Transcendental e consciencia do legisladorcosmico.

Se nao ha objecao cetica nao chega a Consciencia Transcenden-tal jamais, voce chegara (perseguido(?)) por um capeta do (tama-nho de um boi(?)), alias e para isso que existe mesmo o capeta,que fez a objecao cetica para te expulsar para algum lugar ondevoce come, onde voce engole.

E como essas estorias de fada onde tem um monstro que vem

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para lutar com o prıncipe, o prıncipe vai ser destruıdo e na verdadee o proprio monstro que vai ajudar.

Nao tem no filme, “Estoria sem Fim”? E gracas a perseguicaodo monstro quando ele vai para num lugar ...(?)... e ele encontra asaıda daquilo.

Agora, se chegar la na hora e disser, “eu nao quero”, entao agoravoce e o monstro, e o monstro nao tem lugar para ele, nao temdescanso, dia e noite, e uma coisa medonha.

[ Stella: mas, p.e., dentro da religiao em geral as pessoas saodogmaticas ... ]

Mas a religiao e brincadeira, voce nao sabe? A religiao e um(montao(?)) de estorinhas de fada que, ja que voce nao vai en-tender, entao voce imita e faz aquela estorinha de fada igualzinho,supondo-se que algum dia voce entenda.

A religiao faz parte, vamos dizer, do folclore. Folclore sao esto-rinhas que, para que nao fossem perdidas, sao transmitidas a umamassa de ignorantes que repetissem servilmente, e uma especie dememoria, a religiao popular e memoria de certos simbolismos, eso.

“Ah!, mas por que as pessoas estao indo, fazendo ritos, etc...”,mas para o povo nao esquecer, estao cumprindo um papel muitoimportante, para um dia chegar alguem que entenda; eles nao estaoentendendo, nem precisa entender, nem querem entender. Elesestao num completo YIN, os indivıduos estao inocentes, presteatencao! Eles nao enchem o saco e fazem o que lhes mandam,entao ta otimo!

E uma vida animal, mas e um animalzinho inocente, quenao amola. Entao, o homem so tem duas saıdas disso, a to-tal obediencia, ou a Consciencia Transcendental. Tudo o mais eenchecao de saco!

O Corao diz que o diabo e perseguido pela direita, pela es-querda, pela frente, e por tras, nao diz nem por cima e nem por

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baixo.Por cima nao porque voce conta com a Consciencia Transcen-

dental; por baixo nao porque daı voce entrou na obediencia hu-milde, isso aı o cara ja e ignorante mesmo, e o nescio. Voce naoquestiona nada, voce acredita, voce tem a fe ingenua e voce obe-dece e faz o que lhe mandam.

Voce nunca questiona coisa nenhuma, nao consegue juntar duasideias para poder questionar, voce nao percebe nem que existe ob-jeto, nem que existe sujeito, voce esta na simples obediencia ro-tineira, secular, mas isso e somente por total ignorancia; e vocecomecou a aprender certas coisas, ja comecou a ter duvidas, voceja saiu disso. Entao, agora voce nao mais pode ter ...(?)..., ou paracima, ou voce vai para baixo meio manco.

Entao, a proposta para a via intelectual, a via de estudos, e istoaqui. E a atribuicao da totalidade essencial das formas, a qual elepodendo exprimi-la permanecera insatisfatoria, eu digo, voce vaiter um algo mais, mas esse algo mais so voce mesmo pode dar, acultura nao pode te dar.

Na verdade, a sua subida e descida, entre consciencia reflexivae objecao cetica, ela passara a ser entre as formas e a ConscienciaTranscendental. voce saiu do mundo da duvida, voce esta entreconhecimento e consciencia.

Quando eu falei subida e descida inicialmente era entreconsciencia reflexiva e objecao cetica. Voce esta preso nessa cruz,sujeito-objeto, consciencia reflexiva-objecao cetica.

Entao, tem hora onde voce vivencia os seus proprios estados,experiencia sensıvel, etc; tem hora que voce esta absorvido nomundo das formas; tem hora onde voce tem a consciencia refle-xiva, p.e., quando voce vem a esta aula e absorve o que foi repro-duzido, etc, etc; e tem hora que voce cai na objecao cetica, vocecai no negativismo total. A vida e isto aqui, e este sobe-e-desce.

Uma vez que voce captou isto aqui, Consciencia Transcenden-

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tal, voce nao vai ficar la evidentemente, voce vai descer para omundo das formas, que e o conhecimento humano.

Entao, a subida e descida nao desce mais ate a objecao cetica,a objecao cetica ja esta engolida, voce chutou ela para cima, elavirou Consciencia Transcendental.

Entao, a sua subida e descida e entre o mundo da cultura humanae o mundo evidente do genio. voce continua tendo um sobe-e-desce mas e numa outra escala. Neste mundo aqui, acabou, voceja nao tem mais.

[ Alexandre: quando o sujeito chega a esse patamar daConsciencia Transcendental e aı que ele se torna o causador deefeitos na vida.. ]

Se quiser. E aı que o sujeito escolhe se ele vai ser um sabio, ouse se retira do mundo. Ou se ele vai para o mundo para ser o trans-formador do mundo. Isto aqui voce tem o resto da sua vida paravoce se decidir. ...(?)... esperou 50 anos para resolver o assunto,nao tem nenhuma urgencia nisso, voce pode passar muitos anoscom esta duvida.

E o problema Hamletiano, o que e mais brusco? voce se referirna sua certeza ıntima como voce enfrenta o erro inicial. Hamlet epermanentemente ...(?)... e esta na fase da indecisao, nao encon-trou a sua vocacao final ainda. Hamlet nao esta errado, ele estano certo nas duas hipoteses, o prototipo do homem bom, correto,indivisıvel porque entende tudo.

Claro que nos podemos interpretar num sentido aqui para baixo,dizendo que Hamlet e um indeciso. Mas, eu digo, indeciso noplano da acao, preste bem atencao! No plano da pratica ele eramuito indeciso, ele esta e quanto ao (uno global(?)) das coisas,portanto nao se trata de um problema de indecisao psicologica, esim de decisao espiritual.

Entao, isto quer dizer que se tomar uma consciencia desse tipode proposta o teu esforco tem que ser daqui para ca, subir da

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consciencia reflexiva ao mundo das formas, abarcar o mundo doconhecimento possıvel, mas abarcar sinteticamente, nao extensi-vamente. O sentido do estudo, do esforco e este, em obter a totali-dade das formas.

[ Alexandre: a Consciencia Transcendental, ela se faz quandovoce absorve uma forma dessas, nao e? ]

Nao. E na primeira vez que voce da uma fechada em tudo ecoloca em duvida. E quando a duvida cetica, pela primeira vez,abarca a totalidade das formas conhecidas, ou seja, voce chegou ater o conjunto suficientemente estruturado, um conhecimento quepermite voce entender o problema das formas da consciencia, umaauto-consciencia reflexiva extensa, organizadinha, e voce colocaainda a duvida nisso tudo. Aı voce chega a Consciencia Transcen-dental. Tem que ter o conhecimento para ter a duvida.

Entao, isto aqui e um vedanta ja aprimorado por conhecimentosde logica, matematica, etc, etc, modernos; e o vedanta moderno.

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17 de abril de 1993

[ Olavo pediu para o Alexandre fazer um breve resumo da aulaanterior e, depois, Olavo fez um breve comentario sobre a formade se colocar uma explicacao, antes de continuar o assunto da aula.]

Quando o sujeito for explicar qualquer coisa para qualquer pes-soa, o primeiro negocio e voce montar um cenario onde apareca oconflito. Voce precisa dramatizar a questao.

Primeiro, qual e o problema? E quem contra quem? Senao aspessoas te escutam e nao entendem nada. Se voce da a relacaochapada voce nao entende. E contra os princıpios da mente hu-mana.

Qualquer relato que nao tenha o elemento duvida, o elementodialetico, o elemento conflito, a mente humana nao capta de quese trata.

O ser humano e conflitivo por natureza, onde nao tem conflito agente nao entende, e geralmente quando eu peco para o aluno re-sumir a aula, ou expor qualquer coisa, as pessoas procuram exporde uma maneira chapada: tem isso, depois isso, depois isso, de-pois isso, daı o resultado e que eu entendo que o indivıduo captoua estrutura do que eu falei, mas quem ouvir nao vai entender abso-lutamente nada. E outra linguagem, totalmente ambıgua e ...(?)...

A questao que esta em jogo aı e o seguinte, ele menciona nessecapıtulo III que nos comecamos a estudar ontem, ele vai discutir o

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psicologismo.O psicologismo e a teoria de que o fundamento teorico da logica

e de ordem psicologica, ou seja, a logica e uma Ciencia, ou arte,uma tecnica portanto, do pensamento coerente.

Esta tecnica se basearia nas leis naturais do pensamento. Entao,a forma do pensamento correto, do pensamento coerente, seriauma dentre todas as formas do pensamento natural.

O pensamento, quer correto, quer incorreto, ele se da atravesde juızos, conceitos, proposicoes, etc, etc, os quais sao fenomenospsicologicos. Ora, quem e que trata dos fenomenos psicologicos?E a psicologia.

Entao, o fundamento teoretico da logica seria, em ultimaanalise, a psicologia, que estuda as leis do pensamento. Isso ea teoria psicologista.

Daı, eu fiz um parenteses e decidi retornar, falar uma coisa naqual Husserl nao toca neste livro inteiro, que e o problema daduvida cetica, porque ele deixara claro, nao so neste capıtulo comoao longo de todo o livro, que o psicologismo e uma forma de ceti-cismo. Isso aı eu estou adiantando o que ele vai falar mais tarde.

Com relacao ao ceticismo mesmo ele nada fala no livro, so men-ciona que o psicologismo e uma forma de ceticismo.

E uma forma de ceticismo porque a psicologia e uma Ciencia deexperiencia, e uma Ciencia dos fatos, ela observa, e por inducaovai tentando tirar dali as leis do pensamento.

Como Ciencia experimental ela se baseia no pressuposto de quea experiencia e uma fonte de conhecimento, e de que a inducao eum processo valido.

Ora, a validade da experiencia e a validade da inducao sao leislogicas, nao sao? De onde a logica tirou essas leis? Caso o fun-damento da logica seja psicologico, a logica so pode ter usado omesmo procedimento que a psicologia usaria, p.e., o procedimentoexperimental.

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Entao, quer dizer que foi da experiencia que a logica concluiuque a experiencia da o conhecimento, e foi fazendo inducao queela descobriu que a inducao vale. A ideia e uma impossibilidademanifesta, nao e?

Se voce consegue tirar conhecimento da experiencia e porquevoce sabe que a experiencia da conhecimento. Voce nao pode-ria aprender isso pela propria experiencia. Na pratica voce pode,mas voce nao pode fundamentar isto aqui com base na propria ex-periencia. a experiencia nao pode ser o fundamento cognitivo dovalor da propria experiencia.

Resultado: se fossemos pela linha psicologista, o conhecimentonao teria fundamento algum, nos ıamos cair na duvida cetica.

Ou seja, por um lado nos terıamos uma Ciencia experimental,que poderia ser inclusive uma Ciencia muito desenvolvida, mas deoutro lado nos terıamos uma duvida a respeito dos fundamentosdesta Ciencia, e de fato, e o que acontece na pratica, porque opsicologismo e uma atitude que esta muito embutida na cabeca detodo mundo.

Muitas ideias que foram desenvolvidas no seculo XIX foraminjetadas na opiniao e estao aı ate hoje. As pessoas pensam que enatural pensar assim. Embora no seculo XIX fossem ideias novas,hoje elas sao ideias velhas, sao tradicionais, e as pessoas acredi-tam nisso como antigamente se acreditava no Evangelho ou coisaassim.

Entao, esse fundo de duvida cetica esta implicado na propriacultura contemporanea, e um dos fundamentos dele e o propriopsicologismo, seria uma das forcas que dao consistencia e durabi-lidade a duvida cetica.

Entao, ja que o Husserl esta procurando nisso, eu decidi retornara uma coisa que ele fala num outro livro, que ele mesmo nao tinhadescoberto ainda no tempo desta obra aqui, ja que ele iria concluirmais tarde, e que diz respeito a funcao da duvida cetica.

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Ele pergunta por que a duvida cetica durou tanto tempo. Umaideia que e totalmente estupida nao poderia ter durado 2000 anos.Seria uma especie de doenca. Entao, se durou 2000 anos algumautilidade deve ter. Qual e a utilidade?

Husserl constata que essa duvida cetica jamais foi respondidaseriamente. Por que? Porque ela e uma duvida paralisante, e umaduvida que, se levada a serio no campo da pratica, resultaria naparalisia geral do conhecimento, na paralisia geral das Ciencias,e como os filosofos tiveram sempre interessados em desenvolveras Ciencias, os varios conhecimentos, nao esperaram ate que aduvida cetica estivesse resolvida.

Dito de outro modo, para falar como Hegel, eles nao ficaram abeira da piscina tentando provar teoricamente a possibilidade denadar, eles entraram na agua e comecaram a nadar.

Isso quer dizer que eles reagiram de acordo com o (sao(?)) en-tendimento humano, de acordo com o entendimento comum.

Nos sabemos pela pratica que o conhecimento existe, sabemosque o conhecimento e possıvel de algum modo, tanto que acredi-tamos ter algum conhecimento.

Ora, mas a fe na eficacia do conhecimento nao e a mesma coisaque uma certeza teoretica do fundamento absoluto desse conheci-mento.

Entao, a Ciencia foi se desenvolvendo com fundamentos porassim se dizer, pragmaticos, p.e., Aristoteles parte de um pressu-posto de que a observacao ensina alguma coisa e comeca a ob-servar, coletar dados e anotar o que vai encontrando, e assim elefunda a Biologia, a Psicologia, a Historia, etc, etc.

Essas Ciencias que surgem a partir da logica de Aristoteles,e que sao quase todas as Ciencias que nos temos hoje, Husserlchama de Ciencias Dogmaticas, no sentido kanteano da palavradogmatico.

Dogmatico e um saber que nao se questiona criticamente sobre

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o seu proprio fundamento, mas que afirma esse fundamento e tocaem frente, esteja ele certo ou errado nesta conviccao.

Entao, tem o conhecimento cujo ultimo fundamento epragmatico, voce nao sabe qual e o fundamento do conhecimento,voce sabe apenas que esta funcionando. Isso aı praticamenteabarca todo o desenvolvimento cientıfico da humanidade desdeAristoteles ate Husserl; todo mundo agiu assim, ninguem fez oenfrentamento profundo e serio da duvida cetica.

Nao fizeram, em parte porque achavam que ela era louca, queera um jogo de palavras, e em parte porque achavam que bastavarefutar a duvida cetica nos seus proprios termos, isto e, refutaramlogicamente, na base de que se um sujeito diz que nada e possıvelconhecer nos podemos responder que ele nao conhece entao nemsequer isso mesmo que ele acaba de dizer, e com isso nos tapamosa boca dele.

Isso e uma refutacao logica da objecao cetica mas, ora, entreuma refutacao logica e a descoberta de um fundamento absolutodo conhecimento do conhecimento existe uma distancia abissal.

Voce sabe refutar o adversario, mas voce nao sabe oferecer umfundamento absoluto da sua propria condicao, entao, resultado:deu empate.

Se deu empate a objecao cetica continua. Quer dizer, ele e refu-tado logicamente mas ele sempre podera apelar para o subterfugioe dizer que o que foi refutado foi apenas a forma da sua objecao,mas que nao e impossıvel amanha ou depois encontrar uma provade que o conhecimento e invalido.

Quer dizer, a duvida cetica aparece como um truque verbal e asua refutacao aparece como um outro truque verbal, um truquelogico. Mas esse truque logico foi suficiente para apaziguar aconsciencia dos cientistas e para todo mundo achar que a partirdaı podia comecar raciocinando pragmaticamente e desenvolver aCiencia sem se preocupar com o que o cetico diria ou deixaria de

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dizer.Porem, isso aı e uma coisa que Husserl nao diz mas que

eu tambem estou acrescentando, havia uma especie de maconsciencia no fundo das Ciencias de que o fundamento dasCiencias entao era meramente pragmatico.

Quando chegou no seculo XIX surge entao o pragmatismo as-sumido, mais ou menos no mesmo tempo em que se desenvolveua doutrina psicologista, vai surgindo essa filosofia pragmatica, e opragmatismo e uma teoria segundo a qual o fundamento do conhe-cimento cientıfico e a mera pratica, e o proveito pratico, a provapratica, entao o conhecimento que se revela util e capaz de produ-zir determinados efeitos e tido como conhecimento verdadeiro, eisso basta para os fins da Ciencia.

Charles Pierce, que hoje e um filosofo que esta muito em moda,e que e o pai do pragmatismo, ele diz que o sentido de um conceitoesta unicamente nas consequencias praticas que dele decorram.Porque um conceito, como ele diz, e um plano de acao, se vocepensa que um quadrado tem 4 lados isso nao quer dizer nada maissenao que quando voce desenhar um quadrado voce o fara com 4lados.

De fato, todo conceito tem esse lado pragmatico, quer dizer,para fins de estudo e de avanco das pesquisas basta voce saber quequando voce vai fazer um quadrado ele tem que ter 4 lados.

Agora, se voce perguntar, “Mas o quadrado em si tem 4 lados?”,essa pergunta para a esfera da Ciencia nao tem sentido. Isso querdizer que a Ciencia foi abandonando, primeira implicitamente, de-pois explicitamente, a questao dos seus proprios fundamentos, atechegar ao ponto de que, com o pragmatismo, a questao dos funda-mentos e abandonada explicitamente.

O pragmatismo ja declarara que os fundamentos ontologicos doconhecimento e uma questao que nao tem sentido, que o que inte-ressa e fazer Ciencia e para isso nos nos orientamos pelo sentido

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pratico dos conceitos, e fim de papo, isso e o que basta!Quer dizer que o pragmatismo de certo modo leva as ultimas

consequencias e transforma numa posicao teoretica aquilo que foiuma omissao de Aristoteles. Quer dizer que a Ciencia aristotelica epragmatica tambem nesse sentido, so que pragmatica por omissao,e um pragmatismo enrustido.

Entao, do pragmatismo enrustido de Aristoteles, ate o pragma-tismo assumido de Pierce, isso e a longa historia de um abandonoda questao dos fundamentos da Ciencia.

Se Aristoteles abandona a questao dos fundamentos absolu-tos do conhecimento e comeca a desenvolver a Ciencia porobservacao, inducao, etc, etc, ele esta procedendo pragmatica-mente. Ele nao questiona a questao dos fundamentos mas eleage como se aquilo ja estivesse totalmente fundamentado, entaopor isso que eu digo que Aristoteles, neste sentido, era pragma-tista enrustido, e todo mundo foi pragmatista enrustido ao longoda Historia.

[ Stella: mas a gente nem pode dizer uma coisa dessas porquese os manuscritos estavam partidos ... ]

Voce pode dizer porque nao e possıvel que no restante tivessealgo totalmente contraditorio com aquela parte que voce conhece,nada deixaria prever. O problema no aristotelismo e usar muitaimaginacao para achar que esse problema da duvida cetica, o en-frentamento da duvida cetica, foi uma coisa que ele raciocinouseriamente.

Todas as mencoes que ele faz a isso sao mencoes interpretativase ele, como todo filosofo do mundo ate Rene Descartes, se da porsatisfeito com a refutacao logica da duvida cetica.

Entao, e mais ou menos na seguinte base: a duvida cetica eum esquema logico que pretende provar a impossibilidade do co-nhecimento, mas enquanto esquema logico ela e falha, ela e auto-contraditoria. Entao, nem podemos provar o fundamento do co-

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nhecimento, nem o cetico pode provar a validade da duvida cetica.Ora, entao como pelo senso comum e mais comodo, e mais

saudavel voce acreditar na possibilidade do conhecimento do quena duvida cetica, e se logicamente estao mais ou menos empa-tados, entao tudo inclina voce a acreditar na possibilidade dasCiencias, e e assim que o senso comum raciocina, e e assimque todo mundo raciocina, e e assim que se desenvolveram asCiencias, e se fossemos esperar para resolver a duvida cetica pro-vavelmente estarıamos la ate hoje.

Entao, todo mundo procedeu na base do “provavel movimentoandante”. ou de provar a natacao, nadando, como dizia Hegel.quer dizer, ao inves de voce discutir se e possıvel flutuar na aguaou nao voce, catapimba!, pula dentro d‘agua e vai!

Entao isso e uma prova de experiencia, e nao um fundamentoabsoluto, porque na Ciencia nos poderıamos dizer, bom, desta vezvoce boiou, de fato voce tem boiado ate hoje, mas nao garante queamanha ou depois voce continuara boiando.

Entao, essa Ciencia funciona mas nao ha um fundamento abso-luto que prove que ela deva funcionar. Entao esse fundamentonao tem validade teorica, e um fundamento pratico, portantopragmatico.

Entao quer dizer que Aristoteles foi um pragmatista enrustidoe todo mundo foi um pragmatista enrustido porque o ser humanoe um pragmatista enrustido. Na vida pratica voce espera para tercerteza absoluta das coisas? Nunca voce espera! Voce vai tocandoo bonde.

Entao, o que aconteceu foi que assim se desenvolveram asCiencias, porem, a partir de um certo momento o proprio desenvol-vimento das Ciencias pareceu comecar a dar fundamento a duvidacetica.

P.e., no psicologismo, quando se desenvolve a psicologia mo-derna e os teoricos da logica acreditam encontrar na psicologia os

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fundamentos da logica. O que eles fazem? Eles tiram qualquerfundamento de qualquer Ciencia. Isso ja nao e mais pragmatismo.

E diferente voce proceder como se nao fosse necessario ter umfundamento absoluto para as Ciencias funcionarem, e de outrolado, voce negar a existencia de fundamentos. Quer dizer, como psicologismo, que e um fruto do desenvolvimento da Ciencia,nos chegamos a um ceticismo e nao a um pragmatismo.

[ Stella: e isso que o Husserl chama de “a crise das Ciencias”quando elas nao questionam ... ]

Nao, a crise das Ciencias nao e quando elas nao mais ques-tionam, porque eles nunca questionaram. A crise das Ciencias equando elas ficam realmente sem fundamento, elas se tornam auto-contraditorias, se tornam absurdas, porque eles mesmos provam asua falta de fundamento, como p.e. no psicologismo.

Voce, partindo do psicologismo, ou voce levando o pragma-tismo as ultimas consequencias voce chega a prova de que aCiencia e um contra-senso total e que tudo ali e convencao, e comose fosse uma vasta fantasia.

Isso nao e a mesma coisa que um mero pragmatismopragmatico; se o pragmatismo e elevado a condicao de teoria devalidade universal ele ja e um princıpio.

Uma coisa e voce dizer, p.e., como Pierce, que o sentido dosconceitos e o uso pratico que a gente tira dele, e outra coisa e vocedizer que um conceito nao tem nenhum outro sentido alem dosusos praticos que voce faz dele.

P.e., o conceito de quadrado e aquilo que permite que voce de-senhe um quadrado corretamente, nao e suficiente esta definicaopara o uso que voce faz deste conceito no futuro? E claro!

Entao, nesse sentido o conceito e de fato um plano de acao, querdizer, toda vez que a acao tiver adequada a esse tipo de propositovoce diz que este conceito esta correto.

P.e., tem o conceito de cavalo, e a diferenca de cavalo e gato;

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entao, se voce nao monta o gato, mas monta o cavalo, entao o seuconceito esta certo! Quer dizer que a prova do conceito e acaopratica que se desenvolve com base nele; se esta acao funciona,faz sentido, entao o conceito faz sentido.

Porem, acontece que esse pessoal vai mais longe e diz o se-guinte: o conceito nao tem sentido algum alem do uso pratico, eudigo, opa!, aı complicou!

Quer dizer que tudo o que eu sei entre a diferenca entre cavaloe gato e que eu nao devo montar no gato. E nao interessa saber seesta diferenca e objetiva, se esta no cavalo ou esta no gato, ou see apenas uma convencao util que eu determinei. Entao aı voce cainovamente no non-sense.

Entao, a partir do psicologismo e do pragmatismo teorico, nao opragmatismo pragmatico, voce vai chegar numa serie de situacoesque representam uma negacao da possibilidade da Ciencia e janao apenas a um desinteresse pelo problema do fundamento. Aıe a negacao dos fundamentos mesmo. As proprias descobertascientıficas vao produzindo efeitos que negam a possibilidade damesma Ciencia.

[ Stella: eles nao se dao conta?... ]Claro que se dao conta! Isso aı e que nem aquele juiz de Cam-

pinas, que eu vi uma vez interrogando uma testemunha e disse,“Eu sei que a senhora esta mentindo, mas, Ah! eu nao sou pagopara isso, fica assim mesmo, diz aı o que a senhora acha e eu anotoaqui.”

E assim que o cientista leva as coisas, “Eu sei que isso ta malarrumado, mas, Ah!, que se dane! Isso nao e problema meu!”;ele da uma solucao pragmatica. So que com isso o nego continuafazendo pesquisa e tirando conclusao sem ter fundamento algum.

Isso aı se transfere para a propria logica; eu acho que a logicanunca esteve tao desenvolvida quanto hoje. Depois que inventa-ram a tal da logica matematica, voce faz la uma sequencia dedutiva

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com todos os [passos, tudo certinho, sem nenhum erro, voce raci-ocina perfeitamente, de fato como um computador, so que vocenao sabe se isso tem nenhum fundamento. Se nao tem nenhumfundamento, que diferenca faz raciocinar logicamente, ou nao?

Vejam o que que aconteceu que muitos homens de Cienciacomecaram a ter interesse por negocios magicos! Eles, “Ah!, va-mos experimentar de outro modo ...”, p.e., o livro do Paul Feyra-bend, que se chama “Contra o Metodo”; e um livro cetico, e quee um dos livros mais famosos em Metodologia que tem aparecido,e ele diz, “Olha, o metodo cientıfico e tao bom quanto qualqueroutro, e tudo mais ou menos uma questao de convencao. A gentepode usar um raciocınio magico- analogico, magico- simbolico,pode usar o cientıfico, o que funcionar ta bom!”

Agora, o problema e o seguinte: qual e o criterio desse “funci-onar”? Como e que voce sabe se funcionou? E tudo o que essesujeito fala contra o metodo cientıfico e tudo serio.

Agora, quando voce pergunta, o que voce propoe no lugar?Bom, aı o cara e mais louco que os adversarios dele. Entao oscaras da metodologia sao simplesmente terroristas, eles queremestourar tudo logo de vez.

[ Joao: e ele e o que? ]De formacao ele e um matematico, astronomo, coisa assim.

E ele, p.e., mostra a importancia do argumento retorico dentroda Ciencia. Ele diz, “Ah!, se funcionar ...”, usa um argumentoretorico.

Ele esta muito na moda entre os caras que sao contra o raciona-lismo universitario. Ele nao aceita nada e aceita tudo, vale tudo.

Claro que isto e bom do ponto de vista de voce quebrar o exclu-sivismo dos caras que idolatram o metodo cientıfico, o metodo deClaude Bernard, e acham que so existe aquilo la.

Essa tradicao que vai de Bacon ate Claude Bernard tambem euma loucura porque ela acredita que tudo aquilo que voce nao pu-

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der provar por aquele metodo, nao existe, o que botaria eles numasituacao difıcil porque pelo metodo cientıfico nao se pode provarnem que eles existem.

Voce nao pode, pelo metodo cientıfico, provar que voce existe,nao tem nenhum jeito, porque voce e um caso singular, e voce naoadmitir a validade da intuicao no equilıbrio individual, entao vocenao pode provar nem mesmo que voce existe, entao para que vaiservir a estatıstica, a inducao, etc, etc? Como e que voce podefazer inducao se nao tem fato? Como e que voce pode conhecer ofato se nao for pela intuicao?

Entao, existe todo um cientificismo exclusivista que e tao ...(?)...que nao vale a pena discutir, porem, as objecoes que se levantamcontra ele as vezes sao mais desastrosas ainda porque o sujeitodestroi aquele pouquinho que tem ali no metodo cientıfico e elenao tem nada para por no lugar.

O Bernard e um defensor da Astrologia, ele acha que a Astro-logia vale. As crıticas que ele faz as rejeicoes da Astrologia saomuito pertinentes porque ele mostra que tudo o que os cientistastem oposto a Astrologia e tudo logicamente invalido e que na ver-dade qualquer restricao que a Ciencia coloque a qualquer tipo deconhecimento, todas essas restricoes sao invalidas.

De fato sao invalidas, bom, mas entao, agora, como e que agente faz? Ele nao sabe, e como a gente tambem nao sabe entao,por enquanto, a gente vai usando um pouco de tudo! O que e issoaı? E uma solucao pragmatica.

Pragmatica e quando voce nao tem a solucao teorica voce dauma solucao pratica! P.e., quando voce “cola” numa prova, o quee isso? E uma solucao pragmatica; voce nao sabe mas voce copiao que o outro escreveu, voce nao sabe o por que, voce nao tem ofundamento, voce nao sabe fazer aquele raciocınio, mas funcionacomo se fosse verdade. Isto e pragmatismo!

Isto quer dizer que com o psicologismo, pragmatismo, etc, etc,

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sem falar de todas essas ideias mais modernas tipo, Tao da Fısica,etc, que no tempo do Husserl nao tinham ainda, mas cujo adventoele ja previa, com tudo isso aı voce ve que a Ciencia nao tem maisvalidade do que a profecia do Chico Xavier, nao tem mesmo.

Nao ha nenhum meio de voce oferecer um fundamento pelo qualvoce afirma a maior validade teoretica de um desses conhecimen-tos em relacao ao outro, entao e tudo uma questao de pratica!

Ora, a pratica depende do que a maioria das pessoas fazem, querdizer que se a maioria das pessoas acreditar em Ciencia, otimo, sea maioria das pessoas acreditar no Chico Xavier, quem sobrevivee o Chico Xavier.

Entao voce cai no relativismo total, e o relativismo e o ceticismopropriamente dito. Se tudo e igual, tudo vale a mesma porcaria,isto e, nada! E o cambalatio, e o vale-tudo.

Se todo conhecimento se equivale entao nao existe mais umadiferenca de fundamento entre os conhecimentos mais validos oumenos validos, nao tem jeito de voce estabelecer, entao vale tudo.

Ora, como a sociedade, p.e., americana esta acostumada a acre-ditar na Ciencia entao a Ciencia tem prestıgio, mas se amanha amaioria mudar e decidir acreditar em algo do tipo Chico Xavier,uai!, nao existe modo de voce opor uma barreira.

P.e., por que esse negocio de bruxaria, feiticaria, esta tudo en-trando nas universidades? Porque elas sabem que elas nao temautoridade cientıfica suficiente para barrar essas coisas! Claro quetem uns sujeitos de estilo antigo que nao gostam disso, mas essestambem nao podem oferecer senao um argumento de gosto.

Isto e que e a crise das Ciencias, isso aı significa que a ideia deCiencia acabou! E o que quer que sirva para produzir um efeito,vale!

E claro que na prova pragmatica os cientistas-feiticeiros vaoacabar perdendo, e no fundo a esperanca do pragmatista e, “Deixaeles falarem o que quiserem, deixa eles lecionarem bruxaria aqui

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dentro que no fim o que vai funcionar e a nossa Ciencia, e nao amagia deles. Eles se desmoralizarao a si mesmos.”; eu digo, masisso aı e fazer de novo o que Aristoteles fez com a objecao cetica!E desmoraliza-la, e nao oferecer um fundamento absoluto.

Entao, a duvida cetica continua a existir atraves dos tempos eperiodicamente ela se fortalece, adquire uma autoridade fora docomum. Entao, diz o Husserl que o unico sujeito antes dele quese preocupou com o problema dos fundamentos absolutos do co-nhecimento foi Descartes, que quando poe a estoria da duvidametodica, ele em primeiro lugar admitiu que todos os conheci-mentos sao duvidosos, todos, todos, todos, ou seja, ele aceitou aparcela de veracidade da duvida cetica, e nao fugiu dela, nao arecusou na porta.

Aristoteles recusou na porta, ele diz, “Nao, essa objecao e ab-surda, ela e auto-contraditoria logicamente!”, e tendo rejeitadoa duvida na porta ele se recusa a examinar se os conhecimen-tos que ele possui sao fundamentados ou nao. Nao totalmente,e claro, porque alguma questao do fundamento do conhecimentoele aborda, mas ele nao vai ate a raiz do problema.

Ora, o que faz Descartes? Ele admite a duvida cetica sobre to-dos os conhecimentos, mas ele chega num ponto onde ele percebeque nao e possıvel prosseguir a duvida porque na hora que vocetem a duvida voce nao tem duvida de que tem duvida.

Isto quer dizer que existe por baixo de toda negacao cetica aafirmacao de um sujeito que nega, portanto o sujeito cognoscentee inquestionavel. Entao esta foi a descoberta de Descartes, poremparou por aı.

Se voce perguntar, uma vez que voce provou que o sujeito existecomo e que voce faz para daı provar que o mundo existe, e que oconhecimento que voce tem do mundo e objetivo? Aı Descartesapela para Deus, ele diz, “O sujeito existe certamente; esta pro-vado.”

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Mas esse mesmo sujeito tem a ideia de um Deus, e para ele su-por que todos os conhecimentos que ele tem, percepcoes sensıveis,memorias, etc, estejam todos errados, isso so seria possıvel se umgenio maligno, se um Deus malvado, tivesse colocado todas es-sas impressoes, percepcoes, nele para engana-lo, e essa hipotese eabsurda, entao eu rejeito.

Entao, o sujeito em ultima analise volta para o mesmo negocioaristotelico que e a prova do absurdo da tese contraria, e nao aprova positiva da sua propria tese!

Quer dizer que volta a rejeicao liminar, Aristoteles rejeitava pre-liminarmente, e Descartes rejeita liminarmente; preliminarmente eantes de chegar na porta. Descartes rejeita na porta, e rejeita por-que para aceitar esse cosmos nos precisarıamos acreditar no geniomau, no genio maligno. E a hipotese do genio maligno e assusta-dora e moralmente absurda, inaceitavel. Entao, Descartes ataca aquestao mas um pouco foge dela tambem.

Husserl entao, preocupado com a crise das Ciencias, isto e, coma penetracao do absurdo dentro da esfera da propria Ciencia, ecom a sobrevivencia e o fortalecimento da duvida cetica, diz quetem que dar um basta final, ou seja, nao basta refutar logicamenteo ceticismo porque se voce refuta uma forma de ceticismo, podesurgir outra, e outra, e outra, e nos vamos ter que ficar o tempo todofazendo truques logicos para refutar os truques logicos ceticos.

Entao, ele diz, e essa e a grande descoberta, que a propriaobjecao cetica fornece esta prova. Entao, ele, fundando acontribuicao de Descartes a parte de validade que existe na duvidacetica, e admitindo esta duvida como uma duvida filosoficamentevalida, ele chega a conclusao do seguinte, que se a conscienciacosmica negar a totalidade dos seus conteudos e porque ela trans-cende esses mesmos conteudos.

Ora, e ...(?)... a ideia de objetivo e subjetivo, e um conteudoda consciencia, p.e., o cetico diz, “Todos os seus conhecimentos

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sao invalidos porque eles sao subjetivos e nao alcancam o mundoobjetivo”, mas, eu digo, quem foi que delimitou o objetivo e osubjetivo? Foi a propria consciencia.

Quer dizer, a consciencia transcende a totalidade dos objetos co-nhecidos, a totalidade das formas de consciencia, p.e., sensacoes,memoria, pensamento, sentimento, etc, etc, e ela transcende o con-junto das formas reflexivas da propria consciencia.

Quer dizer que eu posso colocar em duvida, entre parenteses, eposso negar ou afirmar tudo o que eu sei a respeito de tudo, todasas formas que eu tenho de saber, o que quer que seja, e todas asformas que eu tenho de refletir sobre o que eu sei.

Ora, isso aı abrange, de longe, a distincao entre subjetivo e ob-jetivo, ate mesmo entre verdadeiro e falso. A consciencia estabe-lece o que e verdadeiro e falso a partir de um dado absolutamenteverdadeiro que ela tem, que e ela mesma. De modo que, para oconhecimento ser objetivo ele nao precisa transcender a esfera daconsciencia, porque a esfera da consciencia transcende o objetivoe o subjetivo. E isso que ele chama de Consciencia Transcenden-tal.

Entao, esse ponto Descartes nao tinha chegado, e isso aı nao euma refutacao logica da objecao cetica, e uma absorcao da objecaocetica dentro do campo da Consciencia Transcendental.

Ora, talvez seja interessante saber que essa tese da ConscienciaTranscendental ja tinha sido enunciada antes de Husserl por Tolu-biovsky, filosofo russo, muito antes. Mas Tolubiovsky fala a coisacomo um velho crente e nao fundamenta a coisa, mas a ideia cen-tral tinha sido dada por Tolubiovsky na hora em que ele diz queo que caracteriza o homem nao e a faculdade de pensar, nem se-quer de conhecer, e a capacidade de julgar e poder dizer sim ounao a totalidade dos seus conhecimentos. Ou seja, a ideia de umverdadeiro e falso absoluto.

Nao e a capacidade de pensar, a capacidade de conhecer, nao e

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a fala, mas e essa capacidade transcendental, ou seja, a capacidadede abarcar tudo aquilo que ela conhece e de julgar isso na suatotalidade! Dito em ultima analise, e a capacidade para a duvidacetica!

Isto e coerente com a definicao que Aristoteles da para a inte-ligencia. Isto e coerente com tudo o que a Filosofia disse ao longodos tempos. Mas isso aı e uma coisa que todo mundo sempresoube e se Aristoteles sabia disso por que ele nao ofereceu issocomo resposta a duvida cetica?

Porque ele nao tinha percebido a conexao entre uma questao eoutra. Quer dizer, tava na cara de Aristoteles, nao e? A definicaoque ele da da inteligencia seria suficiente para responder a duvidacetica, claro!

Entao, por que ele nao respondeu? Porque ele ofereceu outraresposta. Por que ele respondeu simplesmente no plano logico?Porque ele nao deu importancia a aquela objecao. Porque eleachou que o importante da inteligencia e a capacidade para o co-nhecimento positivo! Ele nao se preocupou com o negativo. Por-tanto esta e uma descoberta nova sim! E e feita nessas 3 etapas,Descartes-Tolubiovsky-Husserl.

Quer dizer que a grande capacidade humana, no fundo, e a ca-pacidade para a duvida cetica. Agora essa capacidade so existe namedida em que essa duvida e falsa.

Dito de outro modo, e a capacidade para o falso, que o animalnao tem. O homem tem capacidade para a duvida cetica na medidaem que essa duvida e falsa.

Hegel, p.e., disse que o que define o homem e a negatividade.Mas se Hegel sabia disso por que ele nao virou a negatividadecontra a duvida cetica? Por que ele nao respondeu assim a duvidacetica? Por que ele disse, “Nao vou perder tempo com essas bo-bagem?” Porque ele nao percebeu a relacao que tinha, ninguempercebeu! Ninguem percebeu o valor da duvida cetica.

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Entao, a suprema capacidade humana e a capacidade para ofalso, mas essa capacidade so pode existir se o falso for falso, ese voce sabe que o falso e falso.

Dito de outro modo, e o que ja esta na Bıblia, “Um homem podedizer nao ao proprio Deus”. Quer dizer, e uma descoberta nova eesta inteiramente dentro da linha da tradicao.

Depois que voce descobre voce percebe tambem que aquilo ecoerente com tudo o mais, e se e coerente com tudo o mais porque que os caras nao perceberam antes? Porque estavam ligadosem outra coisa. A coisa pode estar na sua cara, voce mesmo da apremissa maior e a premissa menor, e voce nao tira consequencias!Isso aı acontece o tempo todo.

E valido voce questionar o conhecimento, claro que e! E validovoce questionar tudo. So que voce so pode fazer isso unicamenteporque voce sabe que isso e falso! Voce nao pode conceber onada? Voce pode, justamente por que o nada nao e nada.

Entao, essa Consciencia Transcendental e ela a instanciainegavel, voce nao pode nega-la de jeito nenhum, a duvida ceticanao pode alcanca-la. Ao contrario, a duvida cetica a afirma. Todavez que voce expressar a duvida cetica voce esta afirmando aConsciencia Transcendental na mesma hora.

Portanto, ela em si mesma nao pode ser abarcada, ora, mas aConsciencia Transcendental nao e apenas o Eu subjetivo, comodiz Descartes, e algo mais, e um legislador, porque ela e que limi-tou o objetivo, o subjetivo, o verdadeiro, o falso, etc, etc; tudo oque a consciencia atribui como veracidade, ou como falsidade, elaatribui buscado na sua propria veracidade, ou na falsidade da suapropria auto-negacao.

Quando eu digo que um conhecimento e objetivo eu digo quenao fui eu quem criou esse objeto, e eu sei que nao foi eu quemcriou porque eu tenho Consciencia Transcendental, eu sei o queeu fiz e o que eu nao fiz. Eu sei que eu nao poderia nem oferecer

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aquele objeto, naquelas condicoes. Isto aqui e o fundamento daFenomenologia, ela comeca a partir daqui.

A Fenomenologia mostrara a partir daı as modalidades deconsciencia, modalidades de fenomeno, modalidades de apareci-mento dos objetos perante voce. E a distincao dessa modalidade esuficiente para voce saber o que e objetivo e o que e subjetivo.

P.e., qualquer objeto do mundo fısico jamais aparece por todosos lados ao mesmo tempo. Porem, cada lado que voce percebesempre pressupoe uma infinidade de outros, que podem continuarsendo percebidos sucessivamente de modo indefinido.

Isso aı nao se aplica absolutamente a objetos imaginarios. Ima-ginariamente voce pode conceber uma mesa que tem um lado so,ou seja, os objetos imaginarios tem uma propriedade a mais queos objetos sensıveis nao tem.

Voce pode conceber uma superfıcie pintada, p.e., uma superfıciebranca, nao e? Agora, conceba uma superfıcie pintada, inexis-tente, que tenha so a cor. Como e que a cor tem extensao? Vocetem mentalmente o conceito de cor, independente da extensao, naoe? Mas voce sabe que isso aı foi voce que inventou, nao sabe? Masvoce sabe que o inventou como impossıvel.

Na hora que voce pensa “cor sem extensao”, voce inventou issosem nenhuma pretensao de que isso existisse, alias, voce inventouja declarando para voce mesmo que isso nao existe!

Na hora que voce falar “cor sem extensao” e a mesma coisaque voce falar que o conhecimento e impossıvel. E valido, mase falso, quer dizer, a cor sem extensao evidentemente, ou e umtruque mental, um puro esquema mental, ou e uma falsidade. Evoce o inventou como tal. Isto quer dizer que faz parte da estruturada consciencia uma consciencia absoluta de verdadeiro e falso, doqual voce nao pode escapar um unico momento.

[ Troca de fitas. Uma parte dos comentarios se perdeu. ]A Consciencia Transcendental nao e dialetica mais; dentro dela

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nao existe dialetica. A objecao cetica, na hora que voce a percebeucomo falsa, voce percebeu que ela e apenas um produto da sualiberdade, entao nao tem mais dialetica.

[ Stella: mas voce precisou da dialetica para chegar la ... ]Claro, mas a exigencia da dialetica e de ordem pratica, e nao

teorica. Nao precisa de dialetica porque ele pensa por negacao,habitualmente. Mas voce pensa por negacao apenas naquilo quevoce nao sabe, para voce descobrir e simplesmente por negacao,mas como e que voce descobriu? Porque foi que voce descobriuos fundamentos da Geometria voce consegue por logica apenas.Acabou a dialetica, nao tem dialetica mais alguma.

Entao, na esfera da Consciencia Transcendental nao existedialetica. A dialetica supoe que voce conceda direitos iguais,porem, se voce ja descobriu que tudo e falso e foi voce mesmoque inventou, entao acabou a dialetica, daı para diante e somentelogica, alias, nao e nem logica, aı e somente intuicao imediata.

A Consciencia Transcendental sabe tudo de certa maneira por-que por um lado ela so conhece a si mesma, por outro lado ela sabeque todos os conceitos, todas as percepcoes, todos os esquemas deverdadeiro e falso, sao colocados por ela mesma, que ela trans-cende qualquer realidade e qualquer experiencia, e que ela nao seidentifica com o subjetivo, presta bem atencao, porque facilmentevoce poderia dizer, “Mas isso e uma forma de idealismo subjetivo,e que a unica realidade e a consciencia, nao existe mundo, naoexiste objeto, nao existe nada, nada, nada...”

Bom, a Consciencia Transcendental nao e subjetiva, ela colocao subjetivo no objetivo, e a distincao dela do subjetivo e objetivoe a consciencia que ela tem de um ato criado por ela e um dadorecebido.

Dito de outro modo, um objeto imaginario e acompanhado daconsciencia de que ele foi imaginado. No fundo, isso e igualzinhoao senso comum. Quando o nego ta fazendo um raciocınio que

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escapa da realidade, voce diz, “Isso aı foi voce quem inventou!Voce esta inventando!”, nao e assim?

Entao, para voce saber se o negocio e objetivo ou subjetivo eso perguntar quem foi que inventou. Quer dizer que a nocao deobjetivo e a nocao de um dado.

Dito de outro modo, e a diferenca ente o dado e o construıdo, odado e o colocado. Onde esta esta distincao? No dentro e no fora?Nao, as duas estao dentro da Consciencia Transcendental. Entao,e claro que a esfera da consciencia abarca infinitamente o mundodos objetos e voce nao pode definir como objetivo aquilo que estafora da consciencia; objetivo e o traco, e uma caracterıstica dealguns dados da propria consciencia.

[ Stella: eu nao estou vendo a relacao entre conhecedor e co-nhecido? ]

Nao e bem isso, aı escapamos da relacao entre conhecedor econhecido. Escapa completamente. Aı mudou tudo. Nao existenada fora da Consciencia Transcendental. O sujeito empırico, naverdade ele nao conhece nada.

Se voce chegou na esfera da Consciencia Transcendental, naoexiste mais esse tipo de diferenca entre o sujeito e o objeto quevoce esta acostumado a ver no dia-a-dia. o objeto passa a ser umdado de consciencia, voce nao tem que sair da consciencia paraexaminar, nao existe este encontro, voce tem que perguntar ondeque esta isso aı dentro da consciencia. Onde, por que lado eleaparece?

Objetividade e uma modalidade de aparecimento ante aconsciencia. Agora, voce so vai se perguntar por um objeto seele aparece a consciencia; se ele nao apareceu voce nao perguntanada.

Se ele apareceu a consciencia ele ja e conhecido, somente o quefalta e perguntar por onde ele apareceu, mas isso nao e perguntarmais sobre o objeto e sim perguntar sobre a propria consciencia.

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Portanto, a nocao do conhecimento como uma relacao sujeito-objeto tem que ser abandonada nesta esfera.

Entao, nao se trata mais de uma relacao sujeito-objeto num in-divıduo colocado ante um objeto, mas de um sujeito empırico co-locado dentro de um sujeito transcendental.

O conhecimento nao e mais o encontro com o objeto, mas eum recuo desde o nosso sujeito empırico, que e o sujeito de todosos dias, ate a esfera da Consciencia Transcendental, onde estaodados todos os objetos. Dito de outro modo, todo conhecimento eum auto-conhecimento da Consciencia Transcendental. Somentea Consciencia Transcendental conhece, e ela conhece conhecendoo todo.

Entao voce tem a esfera do realismo ingenuo onde existe o ob-jeto; voce tem depois a esfera da duvida cetica onde so o queexiste e o sujeito preso dentro de si mesmo e incapaz de conhe-cimento; voce tem a esfera do sujeito reflexivo, e o cartesianismo,etc; e voce tem a sua Consciencia Transcendental que na verdadenao e um prolongamento desse sujeito reflexivo mas e uma coisaque abarca isso tudo e que nos podemos referir isto aqui ao queeu chamo uma tripla intuicao. Tripla intuicao tem um sujeito,tem objeto, e tem uma relacao, mas tudo isso esta abarcado pelaConsciencia Transcendental.

Entao voce pode (conceber o nada(?)) por Consciencia Trans-cendental, ou meio luminoso, ou a unidade da tripla intuicao, e amaneira de expor em linguagem logica, da percepcao, e simples-mente as duas ideias.

Na hora que voce percebe a luz, a luz onde esta? A luz estano objeto? Claro, ela e um objeto, esta pertinente. “Ah!, masao mesmo tempo e uma percepcao sua. Ela esta no sujeito.”, aomesmo tempo ela e uma relacao entre sujeito e objeto.

Mas ela e so isso? Nao, ela e a propria condicao de possibilidadeda relacao, ela monta o cenario dentro do qual se da essa relacao.

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Entao, no fim so existe ela!Entao, como dizia Goethe, “O olho percebe a luz porque ele e

da mesma natureza da luz”. E claro que a partir daı nao se podemais definir o conhecimento como uma relacao sujeito-objeto. Arelacao sujeito-objeto so vale no plano empırico, mas a finalidadedo processo cognitivo e ultrapassar o plano empırico, e na horaque voce ultrapassa voce ve que a “relacao” so existia no planoempırico, o qual e provisorio e e mais metaforico do que real. Narealidade ninguem jamais encontrou um objeto fora de si mesmo.

Se eu conheco um objeto e porque, ou ele foi dado a minhapercepcao, ou esta na minha imaginacao, ou foi pensado por mim,entao so pode estar sempre em mim!

Esta seria a duvida cetica, tudo o que voce conhece esta dentrode voce mesmo, entao e subjetivo. Errado. Esta dentro de mimmesmo, porem nao esta como subjetivo, esta dado como objetivo.

Se para um conhecimento ser objetivo ele precisasse transcen-der a consciencia seria a mesma coisa que dizer que ele so poderiaser objetivo se ele fosse inconsciente.

Entao nos temos conhecimentos conscientes porem puramentesubjetivos e invalidos, e temos conhecimentos validos e objetivosporem todos inconscientes. Veja se isto aqui nao esta na raiz daidolatria do inconsciente? Como se o inconsciente fosse profun-damente sabio, como pretende Jung.

Ora, o que e esse inconsciente? E uma sombra da ConscienciaTranscendental. Voce nao tendo que elevar a nocao de ConscienciaTranscendental, mas voce sabendo que existe algo que esta para lado objetivo e do subjetivo, voce chama de inconsciente.

Hartman ja chamava de inconsciente. e um super...(?)..., masonde esta esse super...(?)...? E voce mesmo seu idiota! E a estoriados burros, claro! O sujeito comprou 5 burros, mas ele so ve 4!Eu digo, ue, eu estou vendo 6!

Quer dizer que a nocao de um conhecimento objetivo nao foi

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posto pelo sujeito empırico, e uma nocao que vem de dentro dapropria consciencia, a qual abarca sujeito-objeto.

Voce nao poderia conhecer um unico se voce nao conhecesse omeio luminoso dentro do qual existe o sujeito empırico e o objetoempırico. Voce nao poderia ter, p.e., a nocao do que e experiencia.

Quer dizer, a Consciencia Transcendental e a condicao de pos-sibilidade de tudo isso, e ela esta subentendida na primeira palavraque uma crianca fala, na primeira percepcao que um recem- nas-cido tem, ele ja tem Consciencia Transcendental, e evidente. Porque?

Porque ela nao existe nele empiricamente, ela existe essencial-mente. Ela nao se desenvolve, nem deixa de se desenvolver, ela ea propria estrutura do ser humano. Se ele e gente e nessa estruturaque esta a Consciencia Transcendental. Ela e a propria condicaohumana. Portanto, so quem conhece o universal no homem, e ohomem universal, o sujeito empırico nao conhece nada, so quemconhece e a Consciencia Transcendental.

Entao voce ve que isso esta concorde com Sao Tomas deAquino, com Aristoteles, com o vedanta, com o budismo, con-corde com tudo, e ao mesmo tempo ate aqui quase ninguem tinhapercebido.

Veja, no vedanta a duvida cetica esta, de certo modo, incor-porada. O vedanta trabalha a duvida cetica, porem nao esta co-locado em termos de uma definicao rigorosa, esta colocado comuma nomenclatura um pouco mitologica. Se tivesse colocado nes-tes termos, eu digo, bom, entao todo mundo entendia o vedantana primeira. Se tem tanta duvida e porque la tem esse resıduo mi-tologico e esse conhecimento esta la, apertado, comprimido, estatudo la.

Como tambem esta na definicao de inteligencia do Aristoteles,claro que esta, mas quando Aristoteles diz, “A inteligencia e maisverdadeira do que a Ciencia.”, o que ele esta dizendo? Isto aqui.

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Entao, por que os caras nunca quiseram enfrentar isto? Porque aduvida cetica e uma coisa pentelha, e uma coisa doente. A duvidacetica esta colocada aı com a mesma funcao que esta colocado ocapeta. Ela vai te perseguir para que voce peca socorro a Deus!

18. A demonstracao da tese psicologista.Defina-se a arte logica como se queira, sempre encontraremos

atividades ou produtos psıquicos como seu objeto de regulacaopratica. E, assim como em geral a elaboracao tecnica de umamateria supoe o conhecimento de suas propriedades, assim ocor-rera tambem com uma materia psicologica.

De que se fala continuamente na logica? Dos conceitos, juızos,deducoes, inducoes, definicoes, classificacoes, etc. — - tudo psi-cologia, se bem que selecionada e ordenada desde os pontos devista normativos e praticos.

E ou nao e verdade que se nos definirmos a logica como umatecnica do pensamento coerente os atos que serao dirigidos poressa tecnica sao atos psicologicos, atos psıquicos?

E ou nao e verdade que os atos, todos, que serao dirigidos poressa tecnica sao atos psıquicos? Sao atos psıquicos ou nao sao atospsıquicos? Voce fazer um conceito, fazer um juızo, desencadearproposicoes, voce pensar, pensar e psıquico ou nao e psıquico? Epsıquico, entao ate aı nao temos o que objetar.

19. Os argumentos habituais do partido contrario, e sua solucaopor parte dos psicologistas.

A parte contraria cre poder fundar a rigorosa distincao de am-bas as disciplinas no carater normativo da logica. A psicologia— diz-se — considera o pensamento tal como ele e; a logica, talcomo deve ser. Assim, lemos nas licoes de logica de Kant: ”Al-guns logicos antepoem a logica princıpios psicologicos. Mas e taoabsurdo como deduzir a moral desde a vida. Se tomassemos osprincıpios a psicologia, so verıamos como acontece o pensamento,sob condicoes subjetivas; isto so nos conduziria a leis meramente

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contingentes. Pois bem, a logica nao se pergunta por regras con-tingentes, mas necessarias; nao se pergunta como pensamos, mascomo devemos pensar — o que encontramos em nos, prescindindode toda psicologia.

Em muitos tratados de logica voce nao vai encontrar estadistincao entre o ponto de vista logico e o ponto de vista psi-cologico. E uma distincao que, vamos dizer, para fins praticosela basta.

Se disser, a diferenca entre o ponto de vista logico e o ponto devista psicologico e que o ponto de vista psicologico estuda o pen-samento como ele efetivamente se da no sujeito concreto, ao passoque a logica procura um pensamento correto, porem, isso aı der-ruba o argumento psicologista? Nao fundamenta de fato, porquede fato nos podemos pensar de maneira incoerente ou de maneiracoerente, mas nos dois casos e pensamento; continua sendo psi-cologico.

[ Alexandre: nos podemos caracterizar o pensamento idealcomo que engloba todas essas possibilidades e abarcando aquestao do psicologismo? ]

Claro, e a tese da logica pura. Quer dizer que se nao existe umaCiencia do pensamento ideal que abarque inclusive os princıpiosda psicologia, entao a propria psicologia nao tem fundamento, enenhuma Ciencia ...(?)..., este e o ponto final da estoria, que abar-que o psicologismo.

De qualquer maneira nos vamos seguir por partes. Eu ja anun-ciei com antecipacao aonde nos vamos chegar, mas vamos vercomo e que ele chega.

A logica deve ensinar-nos o reto uso do entendimento, isto e, ouso concordante consigo mesmo.”Herbert toma posicao analoga.

P.e., o uso concordante consigo mesmo; ora, o psicologista podeobjetar, “Se a logica estuda o uso do pensamento que e concor-dante do proprio pensamento isso significa que ela ensinara o uso

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natural do pensamento. Sempre que o pensamento seguir o seucurso natural ele estara sendo implicitamente correto.” Nos naopoderıamos pensar assim? Daı estarıamos indo a favor do psico-logismo ate esse momento, so que mais adiante nos vamos ver seo pensamento correto corresponde ao pensamento natural.

Os logicos psicologistas respondem: o uso necessario do enten-dimento e uso do entendimento. O pensamento tal como deve sere apenas um caso especial do pensamento tal como e.

Claro, porque significa que dentre muitas formas de pensamentotem algumas que ele chama de correto, mas elas sao pensamentotambem. Por enquanto nos nao saımos de dentro da esfera dopsicologismo.

Nao ha nenhuma coisa que possamos pensar ou que possa serobjeto do nosso conhecimento, tal como ela e, prescindindo daforma em que havemos de pensa-la; quem compara seu pensa-mento sobre as coisas com as coisas mesmas, so consegue, de fato,medir seu pensamento contingente, influenciado pelo habito, pelatradicao, pelas inclinacoes e aversoes, com a regua daquele pensa-mento que, livre de tais influencias, nao obedece a outra voz senaoa de suas proprias leis.

Entao, voltamos aı a ideia do pensamento logico, do pensa-mento correto como sendo o pensamento natural. Existiria o pen-samento natural, que e o pensamento correto, e existe um outropensamento que e influenciado pelo preconceito, pelo habito, pe-las influencias externas, etc, etc, e que se desviaria do curso natu-ral. Essa seria a tese psicologista.

Entao, neste sentido, o estudo do pensamento correto seria o es-tudo de uma e de outras formas de pensamento possıveis. Nestesentido seria um capıtulo importante da logica, segundo os psico-logistas, descobrir de onde veio o erro.

P.e., na logica de Bacon — Bacon seria um psicologista avant-la- lettre, quer dizer, nao havia essa discussao do psicologismo,

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mas ele ja era um psicologista — ele dedica muito espaco a dis-cussao dos preconceitos, que ele chama de “ıdolo”.

Entao, ele fala dos ıdolos do foro, ıdolos do teatro, ıdolos da(raca(?)) publica, que sao ideias prontas que voce recebe desdefora. Do mesmo modo, na logica de Pierce, uma boa parte, muitaatencao e dada ao problema de como se produzem os erros pelaforca do habito, do preconceito, do temor, etc, etc.

Entao, quer dizer que os estudos das causas psicologicas, so-ciologicas, historicas, etc, etc, do erro, comecam a fazer parte dalogica.

Se existe um pensamento natural, que e o pensamento concor-dante consigo mesmo, e um pensamento nao-natural, que e umpensamento patologico, que e influenciado por outras coisas quenao sao ele mesmo, entao e evidente que o estudo do erro deve serempreendido desde o ponto de vista psicologico e isto faria parteda Ciencia da logica.

A linha de objecao que Husserl vai seguir mais tarde e que apsicologia so pode estudar os atos do pensamento, portanto elapode estudar o modo pelo qual se produz o erro.

Porem, qual e o conteudo desse pensamento natural? Como eque nos podemos saber o que e um pensamento natural nao apenasna sua naturalidade, isto e, dizer que pensamento natural e aquiloque e concordante com as suas proprias regras, mas em que con-siste precisamente esse pensamento natural?

Para saber que um pensamento e natural e o outro e artificialeu ja preciso ter definido a norma do pensamento correto. Parapoder estabelecer a distincao entre o natural e o nao-natural eu japrecisaria saber o que e o pensamento correto.

E como eu poderia saber a lei do pensamento correto estudandoapenas os pensamentos que existem? Dentre os muitos pensamen-tos que voce pensa, voce sabe que uns sao naturais e outros naosao, mas qual e a definicao? E como encontra-la pelo estudo do

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pensamento efetivamente pensado?Dito de outro modo, o erro no pensamento e tao natural quanto

a verdade. Claro que voce pode, metaforicamente, proceder comoo pessoal do movimento ecologico, holıstico, etc, e dizer que adoenca nao e natural, o que e natural e a saude.

Mas essa natureza e definida nao como a natureza efetivamenteexistente, e sim como uma natureza ideal. Quer dizer que, ideal-mente o homem natural nao tem doenca, mas o homem que nosconhecemos na natureza, tem doenca!

Entao, a natureza da qual esta excluıdo o erro e a doenca nao e anatureza que nos conhecemos na experiencia, e uma outra naturezaque foi inventada, e que nao pode ser conhecida por experiencia.

Entao, do mesmo modo que a saude e a doenca sao ambosfenomenos naturais, o acerto e o erro tambem sao fenomenos na-turais do pensamento.

Quando o sujeito fica doente e atraves de leis naturais, ele naoviola as leis naturais, obviamente. Se se violasse as leis naturais,entao a doenca nao poderia ser compreendida de maneira alguma.Se voce nao pode compreender a doenca a partir da Quımica, Fi-siologia, Biologia, entao nao da nem para saber se o sujeito estadoente.

[Troca de fitas. Uma parte dos comentarios se perdeu. ]Quer dizer, em todos os casos voce esta apelando a um modelo

ideal, e voce vai dizer que e natural. Isso e o mesmo erro que opessoal do movimento alternativo comete quando diz que o ho-mem fica doente por causas anaturais, inaturais, ou anti- naturais,e que a doenca nao e natural.

Voce esta supondo uma natureza ideal, mas essa natureza idealnao se encontra na natureza, encontra-se so na sua mente, voce eque inventa.

E o duplo sentido da palavra natureza, e a natureza no sentido domundo natural que esta a nossa volta, o mundo da natureza fısica,

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e a natureza como essencia. Quando eles dizem que o homem naofica doente por natureza e a mesma coisa que dizer que o homemnao e essencialmente doente.

Quando voce fala, p.e., a natureza desta coisa; a natureza doprocesso cognitivo, e a essencia do processo cognitivo; a naturezado homem, e a essencia do homem; e por outro lado, quando vocefala, os animais da natureza, voce nao esta falando dos animais daessencia, voce esta falando dos animais do mundo fısico.

Quando o indivıduo diz que nao existe doenca natural, ele estajogando com o duplo sentido da palavra, ele quer dizer que naoexiste doenca essencial, a doenca e acidental.

Porem, a natureza fısica que nos rodeia e cheia de acidentes. Sevoce suprimir a acidentalidade da natureza e sobrar so a essenciada natureza, ela nao vai se parecer nada deste mundo fısico, ela eum conjunto de formas abstratas.

Esta essencia da natureza evidentemente nao e conhecida pormeios da experiencia da natureza, porque a experiencia se da nomeio da acidentalidade, mas se da por uma distincao que voceopera.

Do mesmo modo, entre o pensamento certo e o pensamento er-rado, ambos sao naturais porque ambos acontecem de fato na ex-periencia. E como e que voce sabe que um esta certo e o outro estaerrado? O psicologismo so podera responder, “Por experiencia.”

Mas a experiencia te da justamente misturado o erro e o acerto,e vai dar sempre, entao aı caımos num cırculo vicioso, na impossi-bilidade de definir o que e o pensamento correto a partir do pensa-mento que a gente vai definir, mesmo porque nos so conseguimospensar de fato na medida em que queremos fazer um pensamentocerto.

Quer dizer, quando voce vai resolver um problema de ma-tematica voce quer ou nao quer encontrar um resultado verda-deiro? Quer, mas voce nao o encontrou ainda, entao voce ja esta

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pensando, o seu pensamento natural, quer dizer, o pensamento efe-tivamente pensado ja e feito em vista de um ideal que nao aconte-ceu ainda porque nao e objeto de experiencia.

Isso aı seria voce definir o Norte-Sul-Leste-Oeste a partir doscaminhos efetivamente percorridos pelo homem, voce demarcartodas as direcoes por onde o sujeito andou e daı, bem, encontra aı oNorte-Sul-Leste-Oeste. Isto escapa do problema completamente.Quer dizer, o naturalismo psicologico, o psicologismo logico, elee uma impossibilidade pura e simples.

Portanto, das duas, uma, ou existem leis ideais do pensamentoque sao totalmente independentes do acontecer psicologico, ouentao nao da sequer para a gente entender as leis do acontecerpsicologico.

P.e., por que e tao importante vencer esse psicologismo? Porqueo psicologismo e uma forma larvada de ceticismo, e uma formalarvada de relativismo o qual, em ultima analise, e ceticismo.

Mesmo que o defensor da teoria psicologista nao seja pessoal-mente cetico, e apenas porque ele nao percebeu que a conclusaologica do pensamento dele e o ceticismo.

P.e., se nos aderirmos a tese da escola fundada por Emille De-ocart, que depois foi seguida por Marcel Mauss, um autor queesteve muito na moda na nossa historia de Ciencias Sociais, e quevai dizer que o pensamento logico e uma copia feita a partir dasinstituicoes sociais, quer dizer, e uma projecao das instituicoes so-ciais, e isto teria que pressupor que o sujeito e capaz de imitaras instituicoes sociais perfeitamente coerente sem ter logica ne-nhuma.

Primeiro voce constroi uma ordem social, daı, baseado nela,voce desenvolve essa tecnologia da logica, etc, etc, mas comoque voce desenvolveu essa tecnologia atraves das instituicoes semlogica nenhuma? E a loucura total!

[ Alexandre: e essa a teoria que orienta os antropologos? ]

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Muitos antropologos; e uma teoria muito importante entre osantropologos.

[ Stella: mas nao e um pensamento “esquizo” porque o sujeitocorta metade da historia, nao e? ]

Totalmente “esquizo”, mas baseado na ideia de voce remeteros acontecimentos da esfera ideal a acontecimentos da esfera real,explicar o ideal pelo real, sempre.

E um medao que da de voce ter que subir a Consciencia Trans-cendental. Voce quer encontrar os fundamentos materiais, e claro.O que e o materialismo historico senao uma tentativa de fazer isso,dizer, “Ah!, temos que encontrar uma explicacao aqui em baixoporque la em cima eu nao aguento!”

Entao voce tem que explicar o abrangente, a forma , pelos ele-mentos. Quando voce vai explicar o ideal pelo real voce vai terque desdobrar em elementos, porque o fato e o seguinte, a formado conjunto voce sempre conhece idealmente, e o real voce so co-nhece por pedacos e por elementos.

P.e., uma pessoa que eu conheco, eu vi varios atos dela, eununca vi a pessoa inteira. A unidade da pessoa eu so posso con-ceber como uma totalidade ideal que esta para alem da minha ex-periencia. No mınimo, no mınimo, mesmo que eu conhecesse tudoeu so conheceria por fora, eu nao estou dentro da cabeca dela.

Entao, ou eu conheco essa forma ideal, parte que e a priori,e a partir dela eu monto numa totalidade todas as partes da ex-periencia, ou entao, partindo dos elementos eu nao posso construiressa totalidade jamais.

P.e., como e que eu sei que um pessoa e uma e nao e duas?Como e que eu sei que cada vez que entra a Heloısa aqui, e amesma Heloısa? Tomando os varios pedacos de Heloısa eu naopoderia chegar numa.

Entao, supoe-se uma unidade ideal; uai!, daı voce acaba vendoo seguinte, que a unidade do mundo real nao e conhecida por ex-

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periencia. Como e que voce sabe que existe o mundo? Comoe que voce sabe que cada dia que voce acorda voce nao esta numoutro mundo completamente diferente? Como e que voce sabe queexiste a propria unidade da sua pessoa? Nada disso pode ser co-nhecido por experiencia, nem muito menos juntando por inducao.

Entao, de onde voce tirou isso? Ou voce vai ter que dizer que euma forma a priori, como fazia o Kant, e dizia que e assim porquee assim, que tem a forma a priori porque tem a forma a priori, e emultima analise todo o mundo do conhecimento vai estar baseadonum misterioso “a priorismo”, quer dizer, eu nasci com a ideia deque cada coisa e aquela coisa, eu nao sei por que me botaram issona cabeca e eu nao consigo escapar dessa porcaria — essa e umahipotese.

A outra hipotese e o seguinte, abandona as formas a priori e ficaso com os elementos de experiencia, daı voce fragmenta o mundonum caos incompreensıvel.

A terceira hipotese e a Consciencia Transcendental; so tem esta.Eu percebo a unidade da Consciencia Transcendental como uma

necessidade absoluta. Nao e que aquilo me foi posto desde fora, eupercebo! E eu percebo por uma intuicao evidente! Na ConscienciaTranscendental ja esta dado a unidade do mundo.

[ Stella: mas o “a priorismo” kanteano no mınimo ja esta naconsciencia reflexiva, nao e? ]

Claro, ele esta nas formas de consciencia reflexiva, mas o queele chama de transcendental nao e muito transcendental, nao. Kantapenas indica na direcao da Consciencia Transcendental.

Ele chama de transcendental uma atitude na qual nao e o sim-plesmente o reflexivo, o transcendental e aquilo que foi o ato deconhecimento como seu sujeito, como seu objeto. Entao, abran-gendo nao este ou aquele ato, e sim a totalidade do ato.

Mas isto para Kant e como se fosse um ideal, ele nao diz pro-priamente o que e essa Consciencia Transcendental, ele so diz,

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“Talvez la para cima, e que la tem umas formas a priori”, mas es-sas formas a priori nao sao conhecidas por uma evidencia direta,elas sao deduzidas retrospectivamente.

No Kant fica quase um ...(?)..., assim como um imperativo ca-tegorico, isto e, eu tenho que agir de acordo com uma regra univer-salmente valida; mas voces poderiam perguntar, “Por que?” Daıresponde o Kant, “Porque ela e um imperativo categorico”. Porque e um imperativo categorico? Porque ele ordena imperativa-mente categoricamente ...

Entao, caımos no mesmo Descartes, e um ato de fe, porque antesdas formas a priori do entendimento voce tem as formas a priorida sensibilidade, e por que sao essas e nao outras?

[ Stella: ele pode nao fundamentar, mas ele prova a existenciadessas normas. ]

Ele prova, mas ele faz uma deducao. De fato ele oferece umaprova de que elas existem, mas ele nao discute por que isso e assimou outra coisa. De fato, nao tem nenhum motivo.

Se essas provas estao apenas em nos, subjetivamente, e nao saodeterminadas por nada alem de nos enquanto sujeito, elas sao umaputa arbitrariedade.

[ Stella: mas voce nao arbitra a forma de seu corpo... ]A forma de seu corpo e um dado externo. A forma nao se de-

fine no espaco e tempo? Entao, quem e que da essa forma ao nossoproprio corpo? Sao as formas a priori. As formas a priori deter-minam as formas sobre a qual nos conhecemos o nosso propriocorpo, e qual e a forma que o corpo tem efetivamente? Nao pode-mos saber porque isto e uma coisa em si.

Nao tem meios de voce confundir consciencia reflexiva, tendoformas a priori quanto queira, com Consciencia Transcendental.‘A Consciencia Transcendental so se chega pela negacao absolutade todo conhecimento; so se chega realmente pelo caminho docorte cartesiano levado muito alem do que Descartes levou.

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Descartes chega ate o ego cogito e se contenta com a ideia deque ele existe. Portanto, a duvida para ele, preste bem atencao,quando ele diz, “Eu nao posso duvidar de que duvido”, ele ime-diatamente diz, “A duvida e um pensamento, portanto enquantoestou pensando que existo, eu sei que existo”; preste bem atencao,ele se interessa pela duvida na medida em que a duvida e um pen-samento, e nao na medida em que e uma duvida.

O que Descartes descobre e essa propriedade humana de terconsciencia do seu proprio pensamento, ele tem consciencia ime-diata e absoluta do seu proprio pensamento, e nao na capacidadede duvidar desse pensamento.

Ele pega a duvida como uma especie de um genero, o generoPensa-mento, o conteudo do que ele aqui em cima e um negociochamado Pensa-mento.

Ora, o interessante aqui nao e que haja um pensamento mas quehaja duvida mesmo! E como se Descartes tivesse empregado aduvida apenas para provar que pensa.

Mas, o proprio da Consciencia Transcendental nao e apenas terconsciencia do fundamento absoluto da sua propria existencia, naoe somente isso, mas tambem a propria capacidade de duvidar.

Descartes usa a duvida para chegar ate o ego, esse ego trans-cendental. Qual e o conteudo do ego transcendental, segundo ele?Pensa-mento.

Agora, Husserl faz a mesma caminhada e chega la no ego trans-cendental e diz, qual e o conteudo do ego transcendental? Emprimeiro lugar, a propria duvida, a negacao universal, e nao opensamento em geral. E a propria duvida, a propria negacao eo conhecimento fundamental dessa Consciencia Transcendental, eela e transcendental justa-mente por causa disso, porque nega oconteudo.

[ Guilherme faz uma pergunta inaudıvel. ]No sentido cartesiano e isso; no sentido de Husserl nao e bem

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isso.No sentido cartesiano a duvida e um limite, voce nao pode pas-

sar para tras dela, e a duvida e uma forma de pensamento, entaoeu nao posso duvidar de que penso na hora que penso, portantoeu tenho um conhecimento firme, absoluto e inabalavel de que eumesmo existo.

Se eu mesmo existo, eu posso, com base no fundamento da mi-nha propria existencia, fundamentar a existencia das outras coisas.Este e o projeto cartesiano, fundar a certeza de todas as Ciencias apartir da certeza da existencia do ego.

Mas o Husserl e um pouco diferente. Ele nao usa a certeza doego como fundamento logico para, com base nela, dedutivamentefundar as outras Ciencias, nao e nada disso. Ele vai encontrar asoutras Ciencias dentro da consciencia mesmo.

Descartes chega no miolo do ego e logo larga ele para tras paravoltar para o mundo dos objetos.

Husserl diz, “Nao, esta tudo aqui, e aqui mesmo. Voce nao vaiusar esse ego so como premissa para fundamentar o conhecimentoexterno objetivo”, porque Descartes precisa na verdade de duaspremissas, uma e o ego, e a outra e Deus.

Entao, se o ego existe dentro disso, entao existe o mundo queDeus mostra ao ego. Neste sentido o ego e o comeco de uma ca-deia dedutiva que vai ser a cadeia dedutiva de todas as Ciencias,que tem na existencia do ego e na existencia de Deus as suas pre-missas fundamentais.

Agora, o que Husserl vai fazer nao e comecar aqui umadeducao, ele nao vai fazer deducao nenhuma, porque a deducaolevaria para fora da consciencia, para o mundo dos objetos.

O que Husserl vai fazer e uma descricao do que esta dentro daConsciencia Transcendental, nao tem deducao, a Fenomenologianada deduz, a Fenomenologia e uma Ciencia puramente descritiva.

Toda Ciencia dedutiva nao interessa mais a Husserl, ele se de-

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sinteressou da Ciencia dedutiva com 18 anos de idade. eu achoque ele compreendeu toda a Matematica e falou, “Nao quero maisdeducao, tchau!”

Porque a deducao parte de uma realidade para chegar numapossibilidade, parte das coisas dadas para chegar nas conclusoes,“Nao e isso que eu quero, as conclusoes sao meramente hi-poteticas, sao meramente objetos de prova. Eu quero as coisasmesmas! Eu nao quero demonstracao, eu quero mostracao!”

Entao, quando chegou no miolo do ego, que e a ConscienciaTranscendental, ele vai dizer, “Ah!, bom, eu que descobri aConsciencia Transcendental, fundamento aqui o conhecimento, esaio em busca do conhecimento; nao, porque o conhecimento estaaqui mesmo!”

E por isso que eu dizia que ele levou a serio a descoberta carte-siana mais do que o proprio Descartes, porque Descartes tao logodescobre o ego, ele volta para os objetos.

Na verdade, o ego foi apenas um instrumento que ele usou paraprovar a existencia do mundo objetivo e a prosperidade da Cienciaobjetiva fora da estrutura do ego, tanto que a ponte do ego domundo e o que? Deus; o qual nao esta dentro do ego, esta acimadele.

Quer dizer que descartes ve o ego como alguem que sente,pensa, ve imagens, etc, etc, e Deus como um emissor dessas ima-gens do pensa-mento. E ele diz, “Deus nao mente, portanto tudoisto que eu estou vendo e verdade. Se eu tenho a veracidade doego, eu tenho a veracidade dos seus conteudos, logo eu nao pre-ciso mais me preocupar com o ego, eu posso voltar para fora paraestudar Fısica, Botanica, etc, etc.”

Entao ele desenvolve a Ciencia da consciencia, ele descobre apista da Consciencia Transcendental, porem tendo descoberto apista ele volta para as Ciencias do objeto, nao vai desenvolver asCiencias transcendentais, que seriam as Ciencias das modalidades

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de aparecimento dos objetos dentro da propria consciencia, e istoe propriamente a Fenomenologia, e a Ciencia do aparecer.

O externo nao existe mais, o externo e apenas uma divisao esta-belecida dentro da propria Consciencia Transcendental. Apenas aConsciencia Transcendental estabelece que certos objetos sao ex-ternos ao corpo, o externo da o sujeito empırico, nunca o externousa ela. O mundo empırico fica fora do sujeito empırico.

Portanto para o sujeito empırico existe o externo, mas essadistincao entre o interno e o externo, sujeito e objeto, foi dadaaqui na Consciencia Transcendental. Portanto ela nao precisa sairde si para encontrar um objeto fora dela, um objeto fora dela naoexiste, porque ela ja colocou entre parenteses o mundo, o real todo,ate o possıvel, ela e soberana em relacao a tudo isso, ela esta forae acima de tudo isso, ela e de certo modo um mediador entre overdadeiro e o falso.

Se voce disser, para fora do real existe aqui a ConscienciaTranscendental e depois disso so existe a falsidade, ou seja , aConsciencia Transcendental e colocada nos confins da falsidade, ena verdade esta na fronteira, porque o principal dom dela e o domde falsidade, e o dom da dıvida e o dom da falsidade, e o dom donegativo.

Se ela colocar o falso como verdadeiro o que aconteceu? Elaperdeu a sua principal capacidade que e de conceber o falso. Elase aprisionou de certa forma dentro de uma falsidade tomada comoverdadeira.

Entao, o dom da falsidade, o dom da mentira, o dom do nega-tivo, so vale enquanto o negativo for negativo, o falso for falso,e a mentira for mentira. Se a mentira for tomada como verdadeacabou o dom do falso, perdeu a sua liberdade.

Ou seja, e como se um homem tivesse o momento de liberdadede optar entre o verdadeiro e o falso, mas ele so conserva essaliberdade se ele optar pelo verdadeiro. Optar pelo falso e optar

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pelo fim da mesma liberdade de opcao.Este e o motivo pelo qual seria auto-contraditorio para a

condicao humana voce alcancar a certeza universal de tudo. Vocenao pode ter certeza universal de tudo porque isto seria o fim dofalso.

Isto e a mesma coisa que dizer que o homem nao e um ser inte-gralmente verdadeiro; existe um resıduo de falsidade nele o qual odefine como homem precisamente, e nao como Deus. E o maximoque ele pode se aproximar da verdade absoluta e a consciencia deque a falsidade e uma simples opcao, senao seria um Deus, porqueDeus nao tem a opcao do falso.

Se voce disser que o homem pode fazer uma coisa que o proprioDeus nao pode, e verdade. E como se Ele dissesse, “Eu nao possomentir, entao vai voce e mente la no meu lugar ...”

Mas o capeta tambem nao pode dizer a verdade, a nao ser emfuncao de uma falsidade. O capeta nao tem liberdade alguma, naotem liberdade nenhuma, nenhuma, nenhuma, e uma necessidadeabsoluta.

Quer dizer que a Consciencia Transcendental nao vai servircomo fundamento da Ciencia no sentido dedutivo, como premissa,como fez Descartes. Ela nao e so o fundamento e a premissa, elae a sede do conhecimento verdadeiro, e la mesmo que esta. Esta ea primeira diferenca entre Descartes e Husserl.

Segunda diferenca: Husserl nao prossegue dedutivamente, masdescritivamente; ele nao usa a consciencia como premissa pararaciocinar a partir dela, mas ele quer saber o que esta dentro daconsciencia. O que quer que se apresente a Consciencia Transcen-dental e automaticamente verdadeiro.

E em terceiro lugar, ele coloca como propriedade fundamen-tal da Consciencia Transcendental, nao a certeza de sua propriaexistencia, como Descartes, e sim a possibilidade de negar tudo omais.

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Apenas a certeza da propria existencia nao bastaria para que elatranscendesse o mundo de certo modo, apenas ele daria o pontode apoio, o ponto arquimedico. Mas o ponto arquimedico, decerto modo, esta apoiado em alguma coisa, ao passo que essaConsciencia Transcendental nao esta apoiada em nada.

De certo modo o mundo esta dentro dela, por isso mesmo elanao pode servir para uma consciencia individual. O individual soexiste no plano do sujeito empırico. Entao nos podemos dizer,“mas essa e a consciencia humana universal”.

Nao existe mais 4 discursos aı, nao existe discurso aı. Isto eintuicao intelectual pura, nao tem discurso nenhum, e portantomuito menos tem 4. Aı voce tem a verdade mesma, nao saosimplesmente modalidades de presenca. E a quinta funcao queo Crocce diz que nao existe.

[ Troca de fitas. Uma parte dos comentarios se perdeu. ]Entao, sao quatro funcoes, e ele disse ...(?)... do espırito que nao

existe a nao ser nessas quatro. Nao existe uma quinta instancia quevoce pode chamar de espırito. Husserl no entanto, diz que de fatoisto aqui e a unica coisa que existe.

Entao, isto aqui representara uma passagem de nıvel de umconhecimento propedeutico, que seria a teoria dos 4 discursos,o trivium, o quadrivium, a estetica, etc, etc, para a Filosofiapropriamente dita; e daqui que ela comeca. Ciencia Filosofica,na definicao de Husserl, e a Ciencia de fundamentos absolutos,Ciencia de certeza absoluta, aı nao tem dialetica, nao tem discurso.Tem na aparencia, no modus exponendi, no modo de voce falar,engana a quem esta fora.

Entao, toda essa imensa preparacao atraves dos 4 discursos, le-vando ao domınio da logica, da poetica, retorica, dialetica, etc,etc, tudo isso e um organum, e um instrumento, e uma pro-pedeutica. Ate no comeco eu chamava a teoria dos 4 discursosde Propedeutica Geral.

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Entao, tudo isso e a propedeutica, e onde comeca a Filosofia?Ela comeca a partir daqui. Veja, a finalidade dela nao e a des-coberta da Consciencia Transcendental, mas e a descoberta dosconteudos das Ciencias transcendentais, aı sim, aı e o mundo doconhecimento em toda a sua infinita riqueza. Realmente e umapassagem de nıvel, nao o fim, mas e o comeco, a fundacao.

[ Stella: e onde que vive a logica? Na Consciencia Transcen-dental? ]

A logica e uma doacao da Consciencia Transcendental. a logicae uma palida imagem da unidade da Consciencia Transcendental,a qual e a unidade do real como um todo. Daı nao tem mais nemlogica, aı e so descritivo, e tudo intuitivo daı para diante, isso etudo intuitivo, e tudo imediato, certo e evidente.

Entao, quer dizer que a conquista da intuicao intelectual e ocomeco da Filosofia, daı e que comeca, a Filosofia vai de intuicaoem intuicao, aı nao acaba mais, e um mundo infinito da riqueza.

E como se voce dissesse, e uma reconquista do estado adamico;nesse sentido, toda a estrutura do ...(?)... e como se fosse umainiciacao dos pequenos misterios, e daqui para diante comecam osgrandes misterios. Entao, aı nao ha mais busca do conhecimento,isto e o que se chama “o estado contemplativo”, e o estado deevidencia.

Entao, a unica forma real que eu conheco da ascese espiritualque eleva a vida ate essa restauracao do estado adamico, a unicaque eu conheco e essa, e a unica que eu sei que funciona, o resto esimbolico, o resto representa mas nao faz.

Se voce decifrar o sımbolo, etc, mas se falar, “qual e o sentidodo sımbolo?”, o sentido do sımbolo e isto aqui, porque isto aquinao se trata de uma alusao mitologica, sao operacoes reais! Sevoce disser, “E a conquista do estado de evidencia? E um estadofalso, voce nao pensa mais”. Voce nao precisa pensar para terevidencia uma atras da outra, porque o pensamento absoluto da

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logica e uma doacao da Consciencia Transcendental, que pode aqualquer momento ir para baixo ou para cima. E o sobe-e-desce.

Isto aqui e a Filosofia no seu intuito original, e o comeco real-mente do estudo filosofico comeca aı.

Entao, nos podemos a partir deste momento nos colocar aquestao da essencia de alguma coisa e ver como essa essencia semanifesta para nos, como que ela aparece, e qual e a forma que elamostra, e voce vai fazer a descricao dessa essencia.

Quando o proprio Husserl faz, p.e., eu estudo a Fenomenologiada consciencia de tempo, ele vai explicar como a consciencia detempo aparece para voce. Nao e mais uma investigacao, e umadescricao, o conhecimento ja esta la, ele apenas vai descrever, vaitranspor numa linguagem conceptual os conteudos que estao ma-nifestos a consciencia.

Quando Max Scheller faz a Fenomenologia da simpatia; o queacontece quando existe uma simpatia entre duas pessoas? Ou umaempatia, como preferem dizer outros; o que e isso?

Voce pode fazer a Fenomenologia de qualquer coisa, ate decoisa insignificante, portanto qualquer conteudo de conscienciapode ser descrito fenomenologicamente.

E claro que o estudo fenomenologico nao esgota o objeto, es-gota apenas a sua essencia. Porem, conhecida uma essencia nadaimpede que haja outras infinitas formas de manifestacao existen-cial.

Quer dizer que o estudo das essencias e o estudo do sentidooriginario de algo que esta presente a consciencia, mas nao e tudoo que esta acontecendo fisicamente.

Quer dizer, isto aqui e, depois de muitos seculos, a restauracaodaquela famosa subida platonica ao mundo das essencias. E oestudo do sentido originario de cada presenca ante a conscienciano seguinte sentido, p.e., voce pode construir um triangulo, euposso te dar uma explicacao geometrica de como se constroi um

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triangulo, mas o fato e que voce sabe o que e triangulo antes desaber construı-lo geometricamente, voce so pode aprender a cons-truı-lo geometricamente se voce souber o que e triangulo.

Entao existe uma diferenca entre a definicao geometrica detriangulo e a exposicao da sua essencia originaria, a qual funda-menta a consciencia geometrica.

Entao, voce pode, p.e., expor o conceito biologico de ser vivo,mas esse conceito biologico e apenas um esquema que lhe per-mite distinguir, porem, esse conceito biologico se fundamenta porexperiencia originaria do ser vivo, que e o sentido do ser vivo.

Entao, uma coisa e voce oferecer a definicao biologica do servivo, e outra coisa e voce oferecer a essencia fenomenologica.

Isto significa que todos os conhecimentos de quaisquer Cienciassubentendem uma infinidade de essencias fenomenologicas queestao ali de modo mais ou menos inconscientes. Embaixo do co-nhecimento cientıfico existe um fundamento fenomenologico quee, vamos dizer, o mundo verdadeiro e que ele (Husserl) chama o“mundo da vida”, o Lebenswelt, que e onde as coisas realmenteaparecem.

A Ciencia transcendental nao tem nada a ver com nenhumadas outras Ciencias que existem, nao tem nada que ver nem comlogica; a logica e apenas uma extensao dessa propria Fenome-nologia, porque como e que voce faz logica? Voce faz pelaclassificacao dos tipos de objetos possıveis. Onde que lhe aparecea possibilidade dos objetos? Na propria Consciencia Transcenden-tal. Onde que lhe aparecem as possibilidades de proposicoes, dejuızos e de enlaces verdadeiros e falsos entre juızos? Na propriaconsciencia.

Entao, por isso que a Fenomenologia e o mundo real, e o unicoque tem algo ...(?)..., o resto sao todos mundos parcialmente in-ventados para servir a esta ou aquela Ciencia.

P.e., o homem biologico e um recorte que voce faz dentro de

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uma unidade de sentido que chama homem e voce sabe perfei-tamente o que e. E o homem no sentido antropologico? Nao, eo homem no sentido fenomenologico, e o homem no sentido emque eu sei que voce e homem e que esta parede nao e. E um saberprevio a qualquer outro saber. Tudo o que voce sabe se fundamentanisso. Na verdade, toda nossa relacao real com o mundo da vidase fundamenta nisso, e como se fosse uma vasta fenomenologiainconsciente.

Quando voce desenvolve um estudo cientıfico sobre isto ouaquilo voce confunde, porque voce comeca a duvidar do sensocomum, que explica as ideias habituais, e junto com elas voce co-loca em duvida tambem o sentido originario que aquilo tinha paraa consciencia, e aı o saber cientıfico vira uma ignorancia, e esta ea raiz da crise das Ciencias.

P.e., eu parto de uma vivencia ordinaria que diz que existe umser chamado homem e que esse ser e fundamentalmente igual amim. eu nunca questionei isso aı, isso e um dado da propriaConsciencia Transcendental, a identidade do genero humano e umdado da Consciencia Transcendental; voce so questiona isso muitomais tarde, e questiona quando surgem confusao e erro.

P.e., te aparece um tipo de homem esquisito — a primeira vezque o preto viu o branco e o branco viu o preto — voce ficaem duvida, mas e uma duvida que vem de uma determinada ex-periencia mental. Se a partir dessa duvida voce coloca em questaoas suas ideias habituais sobre a natureza humana mas junto comelas voce questiona as vivencias originarias de humanidade naqual se baseia todas essas diferencas, aı voce nao sabe mais o quee homem e jamais sabera.

A Ciencia tem o direito de questionar o senso comum, querdizer, o habito de pensar, mas na hora onde ela questiona asvivencias originarias da consciencia, ela questiona o propriaconsciencia, entao daı ela vira uma cegueira, daı ela nao entende

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mais nada. Daı quanto mais voce estuda, mais burro fica. Vocecria um artificialismo cientıfico que quanto mais investiga, maisleva so a contra-senso, a contra-senso, a contra-senso, porque istoseria a negacao da propria Consciencia Transcendental, a qual e(invencıvel(?)), a qual nao acontece de fato, so acontece hipoteti-camente.

Quando nos vemos que a Consciencia Transcendental nega a to-talidade dos conhecimentos, ela nao nega hipoteticamente nao, elanega de fato. Presta bem atencao, a duvida universal que ela apre-senta ela e realizada de fato, e nesse sentido e que e uma praticaascetica.

Descartes explica muitas vezes, isto que ele fez nao foi brin-cadeira e nem uma suposicao, mas uma experiencia efetivamentevivida. E isto e que e importante.

Entao voce levar a consciencia, de recuo em recuo, de questio-namento em questionamento, ate a negacao de tudo, colocar tudoentre parenteses, como diz Husserl, e uma coisa que deve ser feitaefetivamente, e somente aı e que aparece a Consciencia Transcen-dental em toda a sua ilimitada liberdade, mas em toda a sua inca-pacidade de se negar a si mesma, porque qualquer negacao que elafaca e mais uma prova dela mesma. Quanto mais ela negar, maisela afirma.

E como dizia Sao Paulo Apostolo de Deus, “Quanto mais o blas-femo, mais o louvo”; quanto mais duvida, mais certeza vai ter daConsciencia Transcendental, entao aı ela se encontrou, e nao podese perder mais, em hipotese alguma.

E claro que toda suposta negacao da Consciencia Transcenden-tal, que e o fundamento da objetividade do conhecimento, ela naose realiza efetivamente, e uma duvida fingida, como p.e. essaduvida psicologista.

O psicologista esta colocando em duvida a possibilidade do co-nhecimento, mas no fundo esta afirmando o conhecimento. Ele e

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o cetico que se ignora, ele nao assume o ceticismo, porque se eleassumir ele acabaria por (se deter(?)) na mesma hora.

Entao, so ceticismo parcial e que e ruim, o total resolve o pro-blema. Sempre que voce vai levar a duvida cetica ate o fim vocechegou a Consciencia Transcendental, a nao ser que voce sejamuito burro.

O indivıduo capaz de fazer a negacao total de tudo, ele chegandoa culminacao de um processo vedantismo, porque na hora que elenega o infinito, ele afirma o infinito. Ele afirmou a sua propriainfinitude.

Entao, o que existe de destrutivo? Nada, e exatamente ocontrario, isso e um fundamento do fundamento. Portanto, aduvida cetica so e maligna quando o bicho e ...(?)...

Enquanto voce acredita que ha uma possibilidade dela ser ver-dadeira voce tem medo dela, mas na hora que voce a aceitou in-teiramente, e ver que ela somente existe enquanto falsidade, en-quanto possibilidade do falso, e que voce nao pode abdicar destapossibilidade, aı voce esta na Consciencia Transcendental. Entao,a conquista da Consciencia Transcendental e a finalidade da pro-pedeutica.

[ Marcelo: isto e uma iluminacao? ]Mas e claro que isto e uma iluminacao! Nao pode ser mais

luminoso do que isto, nao da! Nao ha Light que chegue para istoaqui ...

Entao, o objetivo de todo este estudo aqui e ver aqui na fase...(?)... atraves das formas da cultura, as formas do saber efetiva-mente ...(?)...

Eu conquisto tudo isto e coloco em duvida, isto e, relativiza a...(?)... Na hora que voce relativiza voce ve ...(?)... a ConscienciaTranscendental que esta fundamentando e ao mesmo tempo limi-tando.

Entao, saber que este processo, que nesta aula foi conhecido

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apenas como esquema possıvel, se transforma na realidade davida, esta e a educacao filosofica, e a propedeutica filosofica. See um persuadir, bom, entao aı comeca o conhecimento filosofico enao a educacao filosofica.

Essas Ciencias filosoficas que sao as Ciencias de fundamentoabsoluto; o que e Ciencia sem esse fundamento absoluto? E aFenomenologia das varias especies do ser, dos varios ambitos doser, das varias formas de aparecimento, p.e., o conhecimento doque que e o homem, o que que e o sentimento do homem, o queque e o mundo da natureza, o que que e o mundo historico, o queque e tudo o que lhe aparece na frente!

[ Alexandre: seria a definicao exata da ontologia regional? ]E a ontologia geral e regional. Mas note bem que ela nao e

uma ontologia formal no sentido em que a logica e uma ontologiaformal, e uma ontologia material mesmo.

Enquanto voce esta falando de objetos possıveis, voce estafalando de logica, mas aqui voce nao esta falando de coisaspossıveis, voce esta falando de uma outra esfera.

Claro que isto aqui vai ter que esperar mais um pouco, nao e? Eum projeto, a educacao filosofica deve levar a isto se nao houverpercalcos no caminho. Se o nego disser, “Nao, mas eu sou apenasum bichinho, eu quero a minha mae!”, pode acontecer, mas istoquando acontece e muito grave, presta atencao, oucam o que lhesdigo: o sujeito que ouviu este apelo e nao atendeu, ele esta lascado... Ele cortou a cabeca, ele nunca mais vai entender nada, nada,nada, por isso que a gente espera um pouco para falar isto aqui, temque esperar um pouco porque senao seria um verdadeiro estupromental.

Voce chegar na primeira e dizer, “Olha, isto aqui e uma coisaque voce nao pode dizer nao”; nao, espera, aı o nego vem umavez, vem outra, fica aı dois anos, se ele quiser muito bem, ele quis,porque senao, primeiro o sujeito pode pensar que eu estou doido!

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Entao, isto aqui nao se propoe evidentemente a qualquer serhumano que nao tenha recebido a devida preparacao para entendermais ou menos do que se trata.

O apelo da Consciencia Transcendental nao pode ser rejeitadoporque senao e a danacao da inteligencia mesmo, senao ela acabade vez, e se voce rejeita isso aı entao adeus identidade pessoal,adeus tudo. Da um “snap” aı e voce vira 15 pessoas diferen-tes; claro que voce vai ser o ultimo a saber, mas as pessoas queestao em volta notarao alguma diferenca. Claro, os loucos sao osultimos a saber que estao loucos.

Quer dizer, o homem nao tem outra saıda, esse e o caminho dahumanidade, e de fato a humanidade segue este caminho. Todomundo segue, querendo ou nao, porque na pratica todo mundoacredita na unidade do mundo, na unidade de sentido do mundo,na unidade dos seres com que convive.

Voce nao acredita que cada pessoa e uma pessoa? Voce naoacredita que a sua mae e a sua mae, seu pai e seu pai, sua avoe sua avo, que eu sou eu? Na pratica todo mundo acredita nistoaqui, apenas o filosofo e um sujeito que vai estar consciente que ofundamento disto aqui e isto que ele chama de Consciencia Trans-cendental. E so esta a diferenca.

Entao, e como se o filosofo fosse um pouco mais velho, viveu acoisa suficiente para poder refletir sobre ela e tomar consciencia.Agora, se depois de tomar consciencia, ele rejeita, ele esta rejei-tando nao somente esta consciencia, ele esta rejeitando tudo o queele fez antes, ele esta rejeitando tudo na sua vida, esta jogandotudo pela janela.

Na hora que voce descobre o fundamento de tudo que voce fez,que voce acreditou, etc, etc, e aı voce nao quer mais, entao vocenao quer o fundamento, voce nao quer aquilo que esta construıdoem cima dele.

Esta rejeicao e rara, mas acontece de vez em quando. Alguns

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desses filosofos franceses da atualidade sao todos assim, eles, “eurecebo aqui e daı nao (tiro(?)) mais; nao e possıvel que as coisassejam reais, verdadeiras; esse negocio de verdade e muito grande”.

Cada um tem a Consciencia Transcendental que precisa. Vocevai para o mundo do possıvel e daı voce volta para o mundo dascoisas, o mundo empırico. So quando o mundo empırico vira umaconfusao total, que nem virou do seculo passado para ca, e quevoce precisa de fato retornar ate a Consciencia Transcendental edizer, “Ah!, agora nos precisamos construir tudo de novo!”

A crise radical do conhecimento, a crise radical da identidadedo homem, a crise radical de todo o conhecimento, e so agora queaconteceu, isso nunca aconteceu em toda a Historia. Um mundoonde esta todo mundo apavorado, ninguem mais tem certeza decoisa nenhuma, ta todo mundo doidinho, isto e de fato uma novi-dade na Historia.

Entao, conforme o mal e que se da o remedio. E este remedio emuito forte para uma outra epoca. Entao isto aqui e como se fosseuma revelacao divina, e uma via iniciatica que se abre, “Vocesperderam aqui o fio da meada, perderam o contato, perderam aligacao la em cima, entao vamos abrir aqui um outra ligacao antesque voces fiquem todos doidos”.

Esta possibilidade de fato se abriu, — nao por coincidencia —,a obra de Husserl comeca em 1910 e esta sendo publicada ate hoje.Tem muito livro que nao saiu ainda.

Quer dizer que isto so sera plenamente absorvido na esfera dacultura ao longo de 3, ou 4, 5 seculos. E um remedio para umacivilizacao, e nao para um indivıduo, portanto nao tem pressa. E euma coisa que e feita, so que vai mudar a Historia do mundo.

Entao, isto aqui podera dar a um certo numero de pessoas, umaespecie de visao universal translucida, transparente, e se houverum numero suficiente de pessoas assim, a humanidade nao se per-dera de tudo porque, em ultima analise, aqueles caras seguram.

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Quanto mais louco fica, tem uma meia duzia que sabe mais oque esta se passando e que na hora H voce tem que dar o remedio.Nao precisa ser muita gente.

A Fenomenologia e uma especie de reordenacao do cosmos cul-tural, e nao precisa ter um grande numero de pessoas empenhadasnisto, mas precisa ter algumas em cada seculo para a coisa naodesandar completamente.

A acao disto aqui ja se fez sentir beneficamente em muitas es-feras da vida, em muitas, muitas, muitas. P.e., vejam a propriatranquilidade com que os homens encaram hoje instituicoes dife-rentes, culturas diferentes, religioes diferentes, e um certo senso deunidade que permite que voce veja tudo isso sem voce ficar apavo-rado com a multiplicidade. A propria convivencia com o falso; sevoce chegou ate aqui, voce tem familiaridade com o falso, senaonao ia mais para frente.

Este aspecto ...(?)..., absurdo, do mundo contemporaneo, ele ad-quire uma nova ordem com isto aqui. Tendo a possibilidade deuma nova ordem voce nao fica mais apavorado, voce perde o sen-tido de revolta com o absurdo historico que nos vivemos e ao invesde ficar revoltado voce, bom, eu acho que da para fazer algumacoisa, da para ir consertando um pouquinho.

A autoridade da influencia da Fenomenologia no seculo XX etao grande que ele esta ...(?)..., todo mundo passou por isto aqui.Porem, eu acho que essa influencia ainda e parcial no sentido deque ela nao acabou de dizer ainda tudo o que tinha de dizer.

P.e., esta coisa que eu falei da duvida cetica e um texto que sosaiu em 1978, quer dizer, e como se voce dissesse, ate 1978 eunao sabia nem para que que Husserl estava falando tudo aquilo.O plano so foi explicado em 1978, depois eu comprei um livroque saiu em 1987, chamado “A Terra nao se move”, que e umconjunto de anotacoes que ele fez ...[ Troca de fitas. Uma partedos comentarios se perdeu. ]

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Entao, num mundo que as Ciencias pretendem mostrar para aspessoas que todo mundo vive num mundo falso, que o mundo ver-dadeiro e um mundo que so teria atomos, partıculas sub-atomicas,buraco negro, e so pode ser conhecido matematicamente, isto e ummundo horroroso!

Daı Husserl vai dizer que tudo isso aı que voces falaram de bu-raco negro, etc, etc, se fundamenta na Consciencia Transcenden-tal, a qual, por sua vez, contem o sentido originario das coisasque voces dizem, o qual e exatamente igual ao de qualquer joao-ninguem, porque se voce tirar de baixo a mentalidade do joao-ninguem, cai a Ciencia junto.

Portanto, a Ciencia nao pode contestar a consciencia humana.E como se dissesse, a inteligencia e mais verdadeira que aCiencia. Voce ve que a inteligencia do homem da padaria aı, ou aConsciencia Transcendental dele, e mais verdadeira do que todasa Ciencia fısica do seculo XX. Ja e melhor, nao e?

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21 de maio de 1993

19. Os argumentos habituais do partido contrario, e sua solucaopor parte dos psicologistas.

A parte contraria cre poder fundar a rigorosa distincao de am-bas as disciplinas no carater normativo da logica. A Psicologia —diz-se — considera o pensamento tal como e; a logica, tal comodeve ser. Assim, lemos nas licoes de logica de Kant: “Algunslogicos antepoem a logica princıpios psicologicos. Mas e tao ab-surdo como deduzir a moral desde a vida.

O que Kant quis dizer que seria absurdo deduzir a moral desde avida? Se voce, vendo a vida como ela realmente e, como ela funci-ona, conseguiria deduzir daı princıpios morais? O que voce acha?Que nao e possıvel nos ja sabemos, mas por que? Da observacaode que um fato nao e assim, nos podemos deduzir alguma normacom relacao a ele? Do fato, pode-se deduzir a norma (segundoKant), e por que nao? Do fato de que habitualmente as pessoasnao matam as suas maes, pode-se deduzir que nao se deve matar amae? Por que existe essa incomensurabilidade do fato e do valor,segundo Kant? O valor deveria imperar necessariamente sobre to-dos os casos. As situacoes, de fato, sao contingentes — podem ounao acontecer. Sera que e isto? Exemplo de um fato que ja im-plica um valor: quantos pes voce tem? Dois. Este fato impoe quevoce nao deva cortar nenhum deles. Como e que voce vai dizer seum sujeito tem saude ou nao se voce nao definir a saude como um

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valor? A saude e um valor ou e um fato? E um fato e e um valor.A existencia e um fato ou e um valor? Os dois ao mesmo tempo.

De qualquer modo, Kant raciocina aqui com base na ideia deque juızo de realidade e uma coisa e juızo de valor e outra. Porexemplo, por que voce aceita que 2 + 2 = 4, e por que voce naoaceita que 2+2 = 5? Sera que um desses resultados nao e melhordo que o outro? Voce poderia conceber o resultado verdadeiroe o resultado falso, independentemente do valor verdadeiro? Sevoce retira a ideia de que o verdadeiro e preferıvel ao falso, o quesignifica o verdadeiro? Nao significa absolutamente nada. Entao,real e um valor.

Tudo o que ele fala aqui ele parte do princıpio de que juızo devalor e uma coisa e juızo de realidade e outra. Por isso ele diz quenao se pode deduzir a moral desde a vida. Por isso nao se poderia,da Psicologia, deduzir uma logica, porque a Psicologia lida comfatos e a Logica lida com valores, com normas. Norma significavalor. Esse e o raciocınio dele.

Se tomassemos os princıpios a Psicologia, so verıamos comoacontece o pensamento, sob condicoes subjetivas; isto so nos con-duziria a leis meramente contingentes. Pois bem, a logica nao sepergunta por regras contingentes, mas necessarias; nao se perguntacomo pensamos, mas como devemos pensar — o que encontramosem nos, prescindindo de toda Psicologia. A logica deve ensinar-nos o reto uso do entendimento, isto e, o uso concordante consigomesmo. Herbert toma posicao analoga.

A partir do estudo do pensamento tal como ele ocorre nascondicoes reais, nos virıamos a saber, segundo Kant, quais saoas leis de outros pensamentos coerentes.

Os logicos psicologistas respondem: o uso necessario do enten-dimento e uso do entendimento. O pensamento tal como deve sere apenas um caso especial do pensamento tal como e.

O pensamento correto esta para o pensamento em geral, assim

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como a especie esta para o genero.Nao ha nenhuma coisa que possamos pensar ou que possa ser

objeto do nosso conhecimento, tal como ela e, prescindindo daforma em que havemos de pensa-la; quem compara seu pensa-mento sobre as coisas com as coisas mesmas, so consegue, de fato,medir seu pensamento contingente, influenciado pelo habito, pelatradicao, pelas inclinacoes e aversoes, com a regua daquele pensa-mento que, livre de tais influencias, nao obedece a outra voz senaoa de suas proprias leis.

Entao, ha o pensamento que obedece as tensoes organicas, asdeterminacoes da psique, etc, e ha o pensamento que obedece so-mente as exigencias de sua propria coerencia.

Quando voce esta comparando um pensamento com a coisa,com a realidade, voce esta comparando o pensamento fisiologicocom o pensamento logico. Voce esta comparando pensamentocom pensamento.

Tanto a logica quanto a psicologia investigam as leis dasoperacoes do pensamento; mas “lei” significa para ambas algo to-talmente distinto. O problema da psicologia e investigar as leis daconexao real dos processos de consciencia entre si. Lei significaaqui uma formula sintetica do enlace necessario e sem excecao nacoexistencia e na sucessao. A conexao e causal. Mas a missao dalogica e de ındole totalmente distinta. A logica nao pergunta pelasorigens e consequencias causais das operacoes intelectuais, massim pela verdade de seu conteudo.

Entao, por que em determinado momento voce pensou tal ouqual coisa? Porque a direcao que vai tomando o seu pensamento edeterminada por mudancas que se dao na sua psique: por algumaassociacao de ideias, por alguma percepcao que voce teve de fora,por sua abstracao, etc.

A conexao psicologica entre um pensamento e outro e dadapor uma causa que intervem e muda o curso do seu pensamento.

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Porem, quando nos falamos em conexao logica, nao e a isso quenos estamos nos referindo. Quando um pensamento contem umoutro como consequencia logica, a conexao entre o primeiro e osegundo pensamento nao e determinada por nenhuma causa quetenha intervido na cabeca do sujeito pensante. E o caso do si-logismo. Tanto que o curso dos seus pensamentos pode se des-viar da conclusao do silogismo, levado por alguma causa. Numcaso existe uma causa real que determina que depois de um pen-samento apareca outro, e noutro caso temos apenas um pensa-mento que esta contido no outro como uma parte esta contidanum todo. Como e o caso do silogismo. Nao se trata de umasucessao temporal. Nao e que, primeiro, todo homem e mortal,depois Socrates e homem, depois Socrates e mortal. Tudo isso esimultaneo. Porem, elas nao sao pensadas simultaneamente, maspensadas em sucessao. E a sucessao pode ser alterada por umacausa psicologica qualquer, por exemplo, a distracao.

E assim que se faz uma discussao dialetica. E assim que voceacaba achando alguma verdade, se houver alguma para ser achada.E interessante notar que Husserl comecou como psicologista.

Uma consequencia logica esta contida no seu antecedente, naono sentido temporal. Nao e que todo homem e mortal, em se-guida Socrates se transforma em homem, e em seguida Socratesse transforma em mortal. Elas estao contidas umas nas outras poruma relacao de implicacao, como um conjunto maior contem oconjunto menor. Isto e implicacao logica. Entretanto, o curso realdo pensamento nao e assim. Um pensamento se segue ao outroem funcao de alguma causa e nao por uma implicacao, nao por es-tar contida na outra, mas por acao de alguma causa que intervemno curso do pensamento e muda o seu curso no sentido temporal.Primeiro voce pensa uma coisa, e depois voce pensa outra.

Os juızos justos e os falsos, os inteligıveis e os cegos vao evem segundo as leis naturais. Mas estas conexoes naturais nao in-

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teressam ao logico; este busca as conexoes ideais, as quais nemsempre se realizam, senao excepcionalmente. Seu objetivo nao euma Fısica, mas uma etica do pensamento. com razao sublinhaSigwart que na consideracao psicologica do pensamento nao de-sempenha “a antıtese do verdadeiro e do falso nenhum papel ...,como tampouco e psicologica a antıtese do bom e do mau nasacoes humanas”.

Com semelhantes meias tintas — responderiam os psicologis-tas — nao podemos nos dar por contentes. Como poderia buscaras conexoes ideais sem estudar as naturais? “A questao do quese deve fazer e redutıvel sempre a questao do que se tem que fa-zer para alcancar um objetivo determinado.” A logica se comportacom relacao a psicologia como a parte com o todo. Seu objetivoprincipal e, antes de tudo, assentar proposicoes desta forma: assimprecisamente e nao de outro modo tem de conformar-se, ordenar-se e conectar-se as operacoes intelectuais para que os juızos re-sultantes apresentem o carater da evidencia, do conhecimento nosentido estrito da palavra.

Entre muitas outras possibilidades de que o curso do pensa-mento siga essa ou aquela ordem de sucessao existe uma que e oencadeamento necessario para que se chegue a um resultado certo.Ou seja, voltamos ao caso anterior, o pensamento certo e apenasmais um caso do pensamento em geral.

(ver no texto do Husserl a continuacao)um resultado causal de certos antecedentes.O argumento seguinte tambem nao e suficiente para enfraquecer

o partido psicologista. A logica nao pode apoiar-se sobre a psi-cologia, como tampouco sobre nenhuma outra ciencia, pois todaciencia so existe como tal pela sua harmonia com as regras dalogica e supoe precisamente a validez destas regras.

Por que a psicologia e uma ciencia? Nao e porque ela obedecea certas regras logicas? Entao, como e que essas regras logicas

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poderiam se apoiar nos proprios resultados da psicologia? Formaum cırculo vicioso.

A parte contraria respondera: esta argumentacao nao pode sercorreta, pelo simples fato de que teria como consequencia a impos-sibilidade da logica pura. Dizer que a logica pura enquanto cienciaprecisa proceder logicamente e o mesmo que girar em cırculo.

A propria Logica poderia ser fundamento de si mesma?Mas vejamos mais detidamente em que consistiria esse cırculo.

Se uma ciencia supoe a validez de certas regras, isto pode signi-ficar que estas regras sao premissas de suas demonstracoes; maspode significar tambem que sao regras conforme as quais a cienciatem de proceder para ser ciencia. O argumento confunde ambas ascoisas: para ele e o mesmo inferir segundo as leis logicas e inferirdas leis logicas. Mas o cırculo so existiria se se inferisse das leislogicas.

Ou seja, as leis logicas num caso sao como premissas, e noutrocaso somente como regra de operacao, que partindo de alguma ou-tra premissa demonstra sua propria validez. Isso e possıvel. Ten-tem voces mesmos supor qual o caminho para chegar ao desenlacedessa coisa. Nos paramos num ponto onde parece que os dois ar-gumentos sao equilibrados.

A partir daqui se voce quiser fundamentar a logica pura, voceprocederia como? Isso ja esta insinuado no ultimo paragrafo. Nosvimos ontem que existe uma forma de pensamento que e mais oumenos espontanea ao ser humano, e que buscava uma especie deequilıbrio interno, e que tao logo ele encontra, ficava satisfeito. Euma especie de impulso logico que o ser humano tem.

Porem, por que isto aqui falhava? Por que quando voce lancauma pergunta o cerebro ja responde com uma combinacao de pa-lavras que de certo modo acalma voce, e evita a pergunta? Por quenos fugimos da contradicao? E uma necessidade de equilıbrio in-terno, nao e? Ou seja, voce quer montar um esquema de palavras

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que feche o esquema para voce nao ter que pensar mais naquilo,para voce tirar o desconforto da contradicao. Mas, vamos suporque estamos analisando o comportamento humano: e se esse com-portamento e contraditorio? O que voce fez? Na hora que voceachou a resposta, e onde voce foi parar mais longe do problema,nao e?

Entao, o primeiro procedimento para nos evitarmos isso e se ad-mitir a hipotese de que o problema nao tenha solucao. Ou seja, ematar essa ideia de que tudo tem solucao. Pode ser que Deus saibaa solucao, mas eu nao sei. Nao se trata de matar a hipotese deque haja uma solucao, mas matar a hipotese de que todo problematenha uma solucao de facil alcance. Isto aqui e um dos preconcei-tos mais anti-filosoficos que existe, o de que tudo tem que ter umasolucao, e pior ainda, eu sei sempre a solucao, e nao ha problemaque formulado para mim eu nao consiga soltar uma resposta. En-quanto voces tiverem esse impulso, voces nao vao conseguir co-locar filosoficamente um problema. E esse impulso e muito arrai-gado. Por que? Porque aı o impulso parte do equilıbrio biologico.E para alcancar a esfera do pensamento filosofico esse equilıbriotem que ser rompido, para voce alcancar um outro equilıbrio de-pois. Este tipo de equilıbrio que nos alcancamos atraves destasrespostas e um equilıbrio pragmatico, que e o equilıbrio da vidapratica. Acontece que esse equilıbrio da vida pratica nao vale paraa vida teorica. Ou seja, como e que nos resolvemos os proble-mas na vida pratica? Resolvemos emitindo(?) quase todos osproblemas. Todo mundo sabe que se voce for se preocupar comtudo voce fica doido. Mas acontece que isso so vigora para a vidapratica; para a vida teorica, cientıfica, isso nao vale. Ou seja, osfins que voce busca na vida pratica nao sao adaptaveis para a vidada inteligencia. Enquanto a sua inteligencia estiver regrada pelosfins do seu equilıbrio psico-fısico ela nao esta apta a captar o ob-jeto tal como ele e em si mesmo. Se o seu pensamento funciona

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apenas como um orgao da sua psique, ele funciona como membroda sua homeostase e qualquer desequilıbrio ele procura restaurar oequilıbrio imediatamente. Enquanto voce estiver pensando assim,o seu unico objeto de pensamento sera voce mesmo. So rompendoessa unidade do sujeito e que entra o objeto. Esse e um grandesalto que se precisa dar, e esse salto nao se faz sem crise.

Entao, vejam que na nossa vida pratica nosso pensamento nao sedirige a captar a verdade sobre objeto nenhum, mas ao contrario,ele se dirige a evitar o objeto, evitar o estranho, evitar o outro.Ele se dirige como um princıpio para manter a homogeneidade daminha psique. E e claro que na vida pratica voce tem que conti-nuar assim, senao voce fica esquizofrenico. Porem, quando nosentramos numa faixa de um pensamento filosofico, cientıfico, aınao e lıcito mais voce implantar nessa outra faixa os criterios doseu interesse pessoal, organico, por mais legıtimo que ele seja nasua propria esfera. Isso seria a mesma coisa que dizer, “eu levan-tei tal teoria porque ela me faz bem”. Claro que na vida pratica,nao dando tempo para voce resolver objetivamente os problemas,entao voce orienta o conjunto de pensamentos da maneira que lhefaca bem. Pode ser que no proximo ano e meio voce nao con-siga resolver nenhum dos problemas que atualmente voce tem,mas convem que voce pense assim? Nao. Na verdade voce naosabe se vai poder resolver os problemas. Ou seja, nao sabendo see possıvel a derrota ou a vitoria, convem que voce esteja convictoda vitoria, porque nao ha possibilidade de resolucao.

Mas, suponhamos que nos fizessemos uma resolucao teoricamesmo. Neste caso, a derrota e a vitoria teriam que ser conside-radas como hipoteses igualmente defensaveis, e voce ficaria divi-dido ate que a realidade nos dissesse, e nao a sua homogeneidadeinterna. Isso significa que a conquista do pensamento objetivo eum sacrifıcio da alma. Voce vai chegar a vitoria, mas e evidenteque essa vitoria vai lhe custar o seu desequilıbrio naquele ponto.

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Nao quer dizer que no restante da sua vida pratica voce deva se de-sequilibrar. Voce so caira nisso aı se voce cair na burrada de vocelevantar todas as questoes filosoficas ao mesmo tempo. Neste casotoda a sua vida pratica vai ficar afetada. Voce vai ficar catatonico.Nao e isso que estamos recomendando. Eu so estou dizendo quenao existe nenhuma possibilidade de pensamento objetivo no mo-mento que o indivıduo evita este sacrifıcio.

Portanto, voce pode ver que quaisquer discussoes em geral saoapenas auto-expressoes de pessoas que estao discutindo para man-ter a sua homogeneidade. E como uma luta de organismos onde osobjetos, as ideias que se discutem estao ali apenas como pretextos.Trata-se de uma vitoria de uma psique sobre uma outra psique, enao de uma tese sobre outra tese. E uma luta psicologica, como asque nos vemos nos congressos, nos debates de TV, nas discussoesde botequim, discussao de marido e mulher, onde uma psique vaisair inteira e a outra vai sair despedacada, ou as duas vao ter queentrar num acordo. Mas, e o objeto em discussao? Ele nem mesmocomparece na discussao. Isto porque a condicao preliminar paracumprir a objetividade nao foi cumprida. E essa condicao e umsacrifıcio do ego.

Em termos astrologicos, na vida pratica, nos somos conduzi-dos marcianamente, reativamente, no sentido de defender a nossaintegridade contra a invasao do objeto, contra a invasao do dado.Nos rejeitamos o dado. Nos so o aceitamos quando ele se colocana nossa frente de uma maneira intransponıvel. Quando ele e ummuro intransponıvel voce aceita o fato consumado.

Normalmente nos nao queremos pensar naquilo que a situacaonos impoe, mas nos queremos pensar naquilo que o nosso or-ganismo exige. A vida pratica consiste em perseverar nesse es-tado de homogeneidade e fazer com que o mundo circundante ad-quira uma forma harmonica com o nosso desejo e com a nossainclinacao. Por exemplo, ha uma cena de um romance de Thomas

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Mann, onde ele entra no quarto do filho dele e o quarto esta numatal bagunca que ele ve ali a propria confusao europeia. Ele po-deria passar dias descrevendo a bagunca que ele nao iria ajeita-la.Na vida pratica isso seria uma demencia. O que voce faz na vidapratica? Voce, instantaneamente, impoe ao meio um equilıbriosimilar ao teu equilıbrio interno. Voce molda de acordo com asua conveniencia. Voce nao pergunta o que ele e. Quanto me-nos tempo voce pensar naquilo melhor para voce. Porem, na vidateorica nao e possıvel isso porque ela trata de assuntos que estaoacima da intervencao dos indivıduos. Assuntos onde a nossa von-tade nao tem arbıtrio e a unica coisa a ser feita e olhar e dizer ascoisas como elas sao. Por exemplo, se um astronomo quiser medira posicao de uma estrela, ele nao vai deslocar a estrela daqui parala, ele nao pode empurra-la. Portanto, so lhe resta medir com exa-tidao e dizer que ela esta onde esta, e nao onde voce desejaria queela estivesse — - “Assim e”. Portanto, o espırito da objetividadese desenvolve quando nos estudamos aquelas coisas nas quais nosnao podemos impedir de maneira alguma. Por isso mesmo quePlatao dizia que a Astronomia era o estudo por excelencia para odesenvolvimento da inteligencia teoretica, porque voce nao podemexer nas estrelas.

Suponhamos que todo pensamento logico estivesse submetidoas leis psicologicas. E que fosse possıvel das leis que regem esseorganismo humano voce tirar daı as leis que devem reger este ouaquele objeto de conhecimento. Isto seria dizer que da psicologiahumana voce deduz o mundo. E esta a verdadeira impossibilidadeda tese psicologista. Ou seja, se nao existe na Logica um elementoqualquer que seja totalmente independente do sujeito cognoscente,entao nao havera Logica alguma. Nao haveria esta passagem paraa objetividade. Nao haveria este salto para a objetividade. O objetonao teria poder algum. Isto tambem nao quer dizer que o fato dosfundamentos da Logica estarem colocados fora do funcionamento

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psıquico humano eles estejam colocados fora da consciencia hu-mana. Nao significa que a consciencia tenha que transcender osseus proprios limites, porque a consciencia teria que atingir algoque esta fora da consciencia e isto tambem seria algo contraditorio.Se a verdade esta fora da consciencia, entao so e verdade o que eunao sei. Isto significa que na propria consciencia humana tem queestar presente o proprio fundamento do conhecimento. Porem, detal maneira que essa consciencia nao possa se mover livrementepara onde ela quer, de acordo com as leis do equilıbrio organicodo sujeito. Tem que haver algo que de dentro da consciencia lheimpoe algo que ela nao possa negar.

O importante e enfatizar essa ideia da ruptura. Como e que nospodemos operar essa ruptura de modo que nao seja lesivo a psico-logia do indivıduo? O simples fato de voce refrear as palavras quelhe ocorrem livremente nao adianta nada. Voce refreia umas, masaparecem outras. E elas vao continuar aparecendo de qualquer ma-neira. Nos so vamos ter que fazer uma especie de distincao entre opensar e o saber. Nos vamos ter que continuar pensando, mas semacrescentar crenca. Ou seja, o pensamento vai ter que ficar maisleve. Na verdade, ate um pouco mais ludico. Nao valida-lo ne-cessariamente. Deixe-o passar. Voce nao tem que estacionar nelecomo resposta.

Uma outra sugestao e a seguinte: se voce foi capaz de inventaruma resposta, invente outra. Porque a resposta aparece tao natu-ralmente que se voce inventou uma, voce pode inventar duas. Equando voce inventa outra voce ve que uma contradiz a outra. Naverdade, nao e para voce parar esse fluxo do pensamento, mas ateacelera-lo. Na mesmo medida em que voce ja nao leva a serio o seuproprio pensamento, ja que lhe ocorreu uma resposta com tanta fa-cilidade, entao invente outra ja que voce e tao inventivo. Daı voceinventa quinze, e aı voce diz que nao acredita em nenhuma delas.

A segunda providencia e entender o seguinte: se aquilo que e

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objetivo, e o que e real e aquilo que nao e constituıdo por mim, eaquilo sobre o qual eu nao tenho poder — por exemplo, 2+2 = 4.A maneira de voce se aproximar da ideia de objetividade e, aoinves de voce montar os seus pensamentos como solucoes, vocemonta-los como problemas insoluveis. Voce esta mais proximoda realidade quando voce formula uma contradicao insoluvel doque quando voce da a luz a uma dessas solucoes miraculosas. Porexemplo, eu conheco melhor uma pessoa quando eu vejo nela doisaspectos que eu nao consigo unificar de maneira alguma, do quequando eu a explico com uma frase sumaria. Se eu digo que a Ritae assim ou assado, o que eu fiz? Eu nem falei sobre a Rita. Eu ape-nas amansei o meu movimento interior, acalmei. E se eu montar aRita como uma contradicao e como um problema? Aı o persona-gem comecou a adquirir vida. Nao e isso que faz um romancista?Algum romancista reduz o seu personagem em algo “chapado”?Se o personagem agisse de maneira totalmente coerente, o ro-mance acabaria nas primeiras paginas. Agindo assim voce foge doproblema. Voce nao chega sequer a formula-lo. Se voce comecar adescrever uma pessoa, nao em termos desses tracos sumarios, masem termos das questoes, dos problemas e das contradicoes, voceacaba articulando um certo numero de contradicoes.

Vamos supor que voce montou umas dez contradicoes. Daı voceacaba vendo relacoes entre essas contradicoes e que algumas se re-petem. Daı voce tira as que se repetem e vai soltar um nucleo. Daıvoce conheceu a pessoa. Voce formulou o problema. Voce naotinha a solucao, mas voce esta mais proximo da realidade. Montara contradicao e a maneira de voce dar ao objeto uma consistenciaque nao depende da sua mente. voce monta de tal maneira quea sua propria mente fica impotente dentro daquilo. E essa faltade autonomia da mente perante o objeto que garante a objetivi-dade dele. Vamos supor que todos aqui na classe comecassem ase comportar exatamente do jeito que eu imagino: eu imagino que

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o Marcelo sai voando, e na mesma hora ele sai voando. Como eque voces iam distinguir se voces sao personagens de sonho ou sesao personagens reais, se voces me obedecessem integralmente?E justamente porque voces nao me obedecem, justamente porquevoces fazem outra coisa que eu nao estava esperando, que eu seique existe. Existir e resistir. Assim como 2 + 2 = 4. O teoremade Pitagoras nao faz do jeito que eu quero. Ele faz do jeito que elequer. Por isso que eu sei que ele existe. Se ele fizesse exatamentedo jeito que eu quero, entao eu estou inventando.

Portanto, a vida teoretica comeca quando voce inverte essa ma-neira de pensar, comeca quando voce perde a onipotencia peranteo objeto. So se pode filosofar quando o problema nao e imediato,quando voce aprende a montar o que voce sabe a respeito do ob-jeto sob a forma de contradicoes, e nao de explicacoes. E claroque voce nao vai comecar a fazer isto a respeito de tudo, porquesenao a sua vida pratica vai parar. Quando nos comecamos estecurso, nos sempre falamos sobre a vida civil. Se voce transpor-tar essas coisas para a esfera do conubis et commercio, vai parartudo. Se voce precisa de uma solucao imediata, voce nao vai colo-car teoricamente o problema, e voce nem vai exigir que a sua acaoseja fundada numa verdade universal. Nao da tempo. Primeirovoce vai resolver, depois voce vai ver se essa solucao foi univer-salmente valida ou nao. Entao, na esfera da vida pratica isso naovale. So valeria se voce fosse Deus, porque Deus teria tempo decolocar teoricamente todas as perguntas, ter todas as respostas eagir. Mas para nos nao da. Para chegar a uma conclusao comrelacao a uma unica questao voce pode levar, as vezes, um ano.E claro que voce nao pode deixar tudo entre parenteses ate voceresolver as questoes filosoficas fundamentais, daı o famoso pro-blema da moral provisoria que falava Descartes. Toda e qualquermeditacao filosofica sempre tem que se apoiar numa especie demoral provisoria. Os costumes que voce vai seguir de acordo com

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o uso costumeiro do meio em que voce esta, ate que tenha obtidouma solucao melhor. Voce obedece a sociedade, mas voce nao va-lida intelectualmente as leis e costumes. Voce segue ate segundaordem. A hora que voce tiver certeza de que aquele costume estaerrado voce para. Como na maior parte dos casos nos nao vamoster certeza alguma, entao na maior parte dos casos nos vamos con-tinuar dancando conforme a musica, fazendo o que nos mandamfazer porque nos nao saberıamos as alternativas. Porem, e claroque isto se torna extremamente difıcil numa epoca onde todas asnormas e princıpios sao questionados. Nao tem moral provisoriaque aguente! Entao, o que acontece com a inteligencia? Vai paraas cucuias. Voce nao pode se apoiar numa rotina para pensar. Vocee obrigado a pensar sobre os problemas da vida pratica o tempotodo. Se voce nao sabe, voce emburrece, voce nao vai resolvernenhum problema da vida pratica e muito menos na vida teorica.Entao, os movimentos de contestacao, etc, etc, as vezes atingemos objetivos proclamados, as vezes nao atingem, porem este ob-jetivo aqui atinge sempre. Se nao ha consenso nenhum a respeitode valores, nem uso de criterios nenhum na vida pratica, tudo setornou problematico. Voce nao sabe mais o que e certo e o que eerrado, e tudo da discussao. Agora, se voce comeca a discutir so-bre tudo, a vida pratica para, e os problemas mais simples acabamficando insoluveis. Entao, as vezes os movimentos de contestacaosao inimigos da injustica, porem eles sempre sao inimigos da in-teligencia — sempre. As vezes voce problematiza as coisas queo melhor seria nao pensar, e melhor deixar a vida pratica correrdo jeito que ela e, para so interferir onde voce tem certeza de umasolucao melhor. Porem, quanto mais problemas praticos voce le-vantar, menos voce vai resolver, e menos voce vai descobrir coma esfera do pensamento teorico.

[ intervalo ]Entao, esta questao do psicologismo, esta questao teorica, esta

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profundamente ligada a esta questao pratica que nos estamos dis-cutindo aqui. Uma coisa e voce discutir a possibilidade do co-nhecimento cientıfico, objetivo, em geral, e abstratamente falando.Outra coisa e voce discutir a mesma questao com relacao a um in-divıduo concreto e a voce mesmo em particular.

A fundamentacao da possibilidade teorica do conhecimento naofundamenta de maneira alguma a sua possibilidade de conheci-mento. A questao filosofica, se o conhecimento e possıvel ou see impossıvel, na verdade ela e secundaria em relacao a essa outraquestao pessoal de ordem pratica. Nao interessa saber se o ho-mem em geral e capaz de conhecer, mas que eu mesmo sou capazde conhecer e que condicoes eu deveria desenvolver para este fim,ou seja, caso o homem seja capaz de um conhecimento objetivo,e necessario que essa questao seja colocada em condicoes, porassim dizer, otimas. Quais sao as melhores condicoes possıveisnas quais nos poderemos discutir a possibilidade do conhecimentonas quais faria sentido nos discutirmos a possibilidade do conhe-cimento. Vejam que quando Kant coloca a famosa questao crıticaque se o conhecimento e viavel ou nao, ele nao esta se referindo,por exemplo, a um sujeito que esta internado num hospital, com42 graus de febre. Ele esta perguntando se o homem sao, norma,tendo toda a cultura a disposicao, se aı ele e capaz de conhecer.Mesmo aı ele ainda pode ficar em duvida, nao e?

Portanto, eu acho que faz parte do currıculo da propria Filo-sofia voce desenvolver condicoes pessoais otimas para o conhe-cimento. Estas condicoes pessoais nao se referem a habitacao,saude, vestuario, etc, etc, porque ja esta mais do que provadoque isso aı e indiferente, tanto o sujeito bem alimentado quantoo mal alimentado podem conhecer bem, portanto nao se trata decondicoes materiais, mas de algumas condicoes internas que e ne-cessario cumprir. E uma delas e esta: se voce nao der este saltocom direcao ao conhecimento objetivo, entao o conhecimento se

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nao for impossıvel, sera pelo menos muito difıcil.A questao da possibilidade do conhecimento pressupoe que haja

uma seria intencao de conhecer, e por estas observacoes que nosfizemos hoje eu acho que e facil voces perceberem que na maiorparte dos casos nos nao queremos conhecer absolutamente. A ob-jetividade nao significa voce colocar a emocao entre parenteses.Nao e esse o problema. Ela nao tem nada a ver. Ela e outro de-partamento. O problema e saber qual emocao. O que eu estoufalando e um problema interno da inteligencia, e ele nao tem nadamuito que ver com a emocao nao. E a propria inteligencia quebusca o seu estado de equilıbrio. O proprio impulso logico do serhumano e um obstaculo ao conhecimento, porque esse impulsologico tem que ver com a ideia de autoconservacao, de integridadedo organismo. Entao, este mesmo impulso que nos faz buscar oconhecimento, e este mesmo que impede voce de obter o conheci-mento. Voce se satisfaz com aquilo que restaure com o sentimentode homogeneidade, restaura a sua tranquilidade.

Sao Tomas de Aquino dizia, “A certeza e o repouso da inte-ligencia”, porem, prestem bem atencao, nem tudo que e repousoda inteligencia e uma verdade certa. A certeza e apenas um sen-timento, e a sensacao interna de certeza. Mesmo quando voceencontra isto nao quer dizer que voce esteja na verdade. Talvezpara voce encontrar a verdade voce tenha que romper este estadointerno. A garantia unica que existe da objetividade e de que oobjeto seja de fato o objeto e nao uma invencao tua. Portanto, noobjeto interessa precisamente aquilo que nele resiste a nos, aquiloque nos nao poderıamos inventar e moldar de jeito nenhum, por-tanto, os aspectos mais dificultosos do objeto sao os mais interes-santes, e nao os mais faceis.

Vamos supor que se trata de conhecer um ser humano; aquiloque eu nao compreendo nele e justamente a parte mais interessanteporque garante que ele nao foi inventado por mim, senao eu com-

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preenderia tudo. Aquilo que eu compreendo facilmente, me dis-pensa de continuar pensando no assunto, e se eu nao continuo pen-sando, jamais saberei se aquilo e da maneira que eu concebi ou seele e de alguma outra maneira que me escapa. Vejam que quandocomecamos a estudar, as ideias nos ocorrem facilmente, mas issonao significa absolutamente nada, tanto pode ajudar quanto podeatrapalhar. Tambem, esse problema da emocao, voce colocar outirar a emocao, a emocao e alheia, esse e um problema interno dainteligencia. E a inteligencia mesma que tende a homogeneidade,e ela mesma que tem de romper a homogeneidade para permitiro ingresso do novo objeto. Com emocao ou sem emocao vai darna mesma. E quase um problema fısico, quase que fisiologico,e nao emocional, porque este estado de homeostase e um quadrofisiologico.

Entao, basta tomar consciencia disso: na maior parte dos casoseu nao estou querendo saber da verdade de maneira alguma por-que nao da tempo. E nao estou errado de prosseguir assim porquenao da tempo mesmo. voce vai ter que selecionar quais sao osproblemas que voce vai ter que pensar, e quais que voce vai agirsegundo o costume, e e aı que a coisa complica porque nao hamais costume. Entao todas as condutas, as situacoes, estao proble-matizadas. No dia-a-dia cada ser humano aparece com cinquentadilemas morais que fariam arrepiar o proprio Aristoteles. Vocepega os problemas que voce levanta diariamente, de convivenciacom o seu marido, de educacao do seu filho, do que voce vai fazercom a vida, etc, etc, e em cada um voce coloca um monte de per-plexidades morais que para resolver uma delas levaria uma vida.Resultado: a sua cabeca vai ficar assoberbada, voce vai pensar,pensar, e nao vai resolver nada, e nao tera colocado seriamente umunico problema.

As epocas de muita efervescencia social, polıtica, etc, nao saoepocas de grande profundidade filosofica. E, se esta aceleracao

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dos acontecimentos permite uma folguinha. E e porque sempreha pessoas que mesmo dentro da maior confusao, conseguem des-prezar, nao fazem questao de acertar nisso ou naquilo, porque estatodo mundo errando, entao elas erram junto. E tambem nao estaofazendo questao de ter razao na maior parte dos casos. Nao da parasaber se voce esta com a razao ou nao na maior parte dos casos.

Vejam, quanto mais problemas praticos voce pensar, mais vocecai na multiplicidade, entao, voce pensar realmente nos seus pro-blemas praticos, eles sao tantos hoje em dia que voce vai se afo-gar. Porem voce pode concentrar a atencao em determinados pro-blemas que sejam essenciais para a sociedade em que voce vive.E aı talvez voce possa resolver alguma coisa, contanto que voceva empurrando com a barriga os problemas praticos, caso vocenao tenha conseguido encosta-los de alguma maneira. Por istoque o certo com relacao a toda esfera da vida civil e voce encon-trar uma estabilidade psicologica com relacao a ...(?) o mais cedopossıvel. Esta estabilidade nao significa uma situacao estavel, por-que se voce procura uma situacao externa estavel, cada vez que elaficar instavel voce vai ter que pensar nela de novo, daı voce vai fi-car pensando nisto o resto da vida. Na sociedade atual so tem doisjeitos de voce ter estabilidade: primeiro, voce precisa ser tao ricoque voce nao precise pensar nisto. O segundo e voce consentirem nao pensar nisto mesmo que voce fique pobre. So tem essesdois jeitos; qualquer outro e dispersao. Quer dizer, e voce ter ummınimo de atencao e sempre empurrar com a barriga — sempre,sempre, sempre.

Existe um terceiro: e voce virar um genio pratico; o sujeitoser um genio e aparecem solucoes miraculosas na cabeca dele.Mas ele e muito raro, porque justamente esse nao tem problemaspraticos, tem solucoes praticas. Eu, para dizer a verdade, nuncavi nem um. Eu vi um sujeito que era um genio deste tipo. Eraum cara que com 15 anos de idade havia montado uma fabrica, e

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sustentava a famılia. Ele comecou a montar uma fabriquinha depastas para grafica com 13 anos de idade. Com 15 anos ele era umcapitalista, resolvia todos os problemas. Lamentavelmente essesujeito morreu num acidente automobilıstico. Esse cara nao tinhaproblemas, ao contrario, aquilo o divertia imensamente, era umaprova do poder dele, ele nao problematizava.

Mas, em geral, se os problemas praticos todos se oferecem sob aforma de problemas voce ja esta liquidado; preste atencao, quandoproblematizou, montou como um enigma e como uma impossibi-lidade, ja esta lascado. Montou como contradicao, dancou.

Oucam este conselho: quando surge uma contradicao na suavida pratica, desvie a atencao. A vida pratica e a estoria que funci-ona enquanto voce e um sujeito ativo. No entanto, a sua coerenciainterna consegue se expandir para fora sem ...(?). A hora que avida pratica se apresenta a voce como contradicao e porque voceja esta paralisado. Entao, o negocio e virar as costas e ir para ooutro lado, ou seja, voce so tratar dos problemas que sao faceis.Se nao da para responder, voce fuja. E mais forte do que voce.Um exemplo: quando voce perde mais dinheiro do que voce podeganhar pelos proximos dez anos. Se voce pensar nisto mais do queum minuto e porque voce e muito burro. Voce ja sabe quanto voceperde, voce ja sabe quanto voce vai ganhar, ja sabe que voce naosabe como ganhar mais dinheiro, entao, entrega para Deus..., masisto e o obvio!

Vejam, o que deve se apresentar a voces sob a forma de aporias,sao problemas da esfera teorica. Aporias praticas sao inventadaspelo demonio, e qualquer aporia as vezes ja e uma vida para voceresolver. Entao, quando um problema pratico se apresenta a vocesob a forma de uma aporia e porque voce ja foi derrotado.

Justamente a caracterıstica fundamental da vida pratica, dapraxis, e esta coisa inelutavel, nela o que foi nao volta mais.Aquilo que esta acontecido, nao desacontece. Mas no mundo

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teorico, sim, porque o mundo teorico ja e o mundo das possibi-lidades permanentes. Entao, do mesmo modo que nos transpo-mos criterios da vida pratica para a vida teorica indevidamente,nos tambem fazemos o contrario, no sentido de que se aparecemproblemas praticos insoluveis e porque os problemas foram mon-tados sob a forma de uma aporıstica, ou seja, uma contradicaoinvencıvel. Quando isto acontece, isto sim, na vida pratica querdizer derrota. Quando voce nao tem para onde ir, nao va paralugar nenhum. Esta e a verdade. Ah! e se encontrar a solucaoteorica? Quando encontrar a solucao teorica sera tarde demais,entao voce ja perdeu. E se ja perdeu nao adianta pensar. Os pro-blemas praticos so valem a pena pensar naqueles que sao faceis,naqueles que o seu talento te ajuda a resolver, naqueles que voceja tem ...(?) para fazer. Se voce nao tem, ou voce pede para ou-tra pessoa, ou voce se da por derrotado. As pessoas as vezes naoentendem que a vida pratica e contingencia, e variabilidade, e in-finidade de situacoes possıveis, voce nunca esta preparado para avida. So um perfeito imbecil e que deve estar preparado...

A suprema licao da experiencia da vida e esta: fuja! Apareceuo problema, fuja! E so voce raciocinar o que quer dizer a palavrapratica: pratica vem do grego praxis, ou seja, praxe, o que e cos-tumeiro; nos sabemos resolver os problemas que sao costumeiros,rotineiros, que ja foram resolvidos mil vezes. Quando aparece umproblema radicalmente novo, ou a solucao te aparece rapido, ouquando ela aparecer sera tarde. Entao a pratica e o domınio ondevoce mostra o seu poder quando voce nao tem. Quando nao tem,nao tem! Ha um monte de problemas que nos sabemos resolver,nao e? Entao, aı e o que voce chama de problema, e aı voce faz,voce age, constroi, cria. Bastou aparecer um problema para voceja saber que nao vai ter solucao. Claro, quando o problema forequacionado, tudo bem; mas quando voce ve, tenta uma vez, tentaduas, etc, etc, e fechou, e porque fechou, e porque voce se chocou

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com a necessidade exterior, com o fato. O fato e aquilo que estafeito, aquilo que nao volta atras. Voce ja perdeu.

Agora, por que as pessoas nao fazem isto? Por que as aporiaspraticas tem um poder hipnotico? Na hora que voce para hipnoti-zado por um problema, aı voce esta mais do que derrotado, aı voceesta acabado mesmo, voce esta invadido por uma obsessao. Entao,a pessoa so fala naquele problema, so pensa naquele problema, ese ela esta assim isto e sinal de que ela nao vai resolver. Tem queesquecer, va dormir! So tem dois jeitos de voce nao se preocuparmais com um problema, e voce ganhar ou perder. Se voce ganhou,acabou o problema, e se voce perdeu, tambem acabou, voce ja estaderrotado, a luta ja acabou. Entao, e nao forcar demais porque issoaı consome a sua inteligencia. Isto faz parte da propria naturezada pratica.

Uma boa distincao entre a esfera da teoria e a esfera da pratica,eu acho que e uma condicao para voce poder raciocinar direito...(?). O numero de pessoas que voce ve teorizando os problemaspraticos, o dia inteiro, nao te da sossego, nao e? Por exemplo, voceja viu pessoas descreverem doencas que elas tem, nos detalhes?Doenca e assim, ou voce cura, ou voce esquece, nao e? Agora,pensar sobre doenca, isso e o fim da picada! Esse problema dostress e exatamente isto, e voce ficar forcando alguma coisa quenao vai dar. Isto e o problema do querer e do poder. Se voce naopode realmente nada, entao... Leonardo da Vinci dizia, “Quemnao pode o que quer, que queira o que pode”. Ha pessoas que temuma vida muito complicada. Eu mesmo sou uma delas. Eu tenhoum milhao de problemas para resolver, mas meu Deus do ceu, seeu for tentar realmente resolver os problemas ...(?). Agora, ha coi-sas que voce tem a obrigacao de pensar. Sao aquelas coisas nasquais resultara efetivamente um benefıcio para voce, para a suafamılia, para os seus amigos, para o mundo em geral, essas sim,e nao aquelas que te atormentam. Quem disse que o teu tormento

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e util? As vezes acontece de voce estar atormentado por um pro-blema e a solucao dele ser muito util, mas em geral nao e assim.Voce se atormenta muito por uma coisa cuja solucao beneficiariaum numero muito pequeno de pessoas ou ate um aspecto muitopequeno de voce mesmo. Entao e uma questao de voce ter res-peito pelo pensamento e saber que voce tem uma energia psıquicainesgotavel e tem que aplicar muito bem aquilo.

praxis e pratica. Aquilo que voce tem pratica voce sabe fazer,aquilo que voce nao tem, voce nao sabe. Pior ainda, o ensinopratico e um dos mais difıceis de transmitir porque precisa demuito tempo, precisa praticar. Entao, quando surgem os proble-mas voce nao tem a menor pratica, entao voce nao tem solucaopratica. Pode ser que voce encontre a solucao teorica, so que vocenao precisa mais, a nao ser que voce tenha a felicidade de encon-trar uma pessoa que saiba a solucao daquilo, daı ela resolve paravoce. Mas isto geralmente nao acontece. Eu estou falando istoporque todo brasileiro tem muito complexo em solucionar os pro-blemas praticos. Mas, nao e para ter complexo nenhum, a culpanao e nossa, sao os outros que criaram os problemas para nos, naofomos nos.

Quanta gente que voce ve que tem um baita complexo de culpaporque nao tem dinheiro para comprar nao-sei-o-que que o filhoquer. O culpado e quem meteu na cabeca do filho que ele precisater aquilo! Isso e uma sacanagem, voce e uma vıtima, voce naopode se sentir culpado. O cara toda hora inventa mais um ...(?),cada vez mais caro, e as criancas sentem aquilo como uma ne-cessidade, mas o que que e isso!!... Se voce educar direitinho ascriancas elas nao vao nem ficar precisando daquilo.

Entao, aparece no seu consultorio medico um problema simples,que voce ja viu mil vezes, voce usa o seu saber pratico que resolve.Agora, vamos supor que surge um caso inedito, uma doenca nova.Ia dar tempo de voce pesquisar a solucao daquilo? voce ia pesqui-

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sar a solucao, encontrar uma solucao teorica, apostar, para depoiscurar o cara? Quando voce fizer isto o cara ja esta morto!

A pratica e a teoria sao mundos quase incomunicaveis. A teoriae o saber teorico sao muito uteis para a humanidade. Voce ajudaa comunidade, ajuda a voce, ajuda a todo mundo, voce nao temque ter o saber pratico. Quando voce tem, voce usa, quando naotem, voce perdeu. Eu encontrei muito poucas pessoas que tinhamuma sabedoria pratica vasta. Dr. Muller(?) era uma delas; era umsolucionador de problemas praticos; era incrıvel a quantidade deconhecimentos praticos que o homem tinha, mas ele tinha vividovinte vidas numa so. Entao, quase toda situacao que voce apresen-tava para ele, ele ja conhecia porque ele ja tinha visto. Se era umnegocio novo, ele nao se metia, ele falava, “Nao sei, isso aı eu naosei, eu nao posso te ajudar...”

Agora, por que o sujeito nao pode aceitar a derrota jamais? Porque ele tem que sair vencedor em tudo? Aı, e aquele problema doFernando Pessoa, “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, soeu!” So eu apanho, so eu perco, so eu sou um idiota perfeito, osoutros estao sempre certos...

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22 de maio de 1993

[ Olavo faz uma breve repeticao da aula anterior ]A tendencia de permanecer num estado de equilıbrio mostra

um predomınio da assimilacao. Assimilacao quer dizer, tornarsimilar, ou seja, dos dados apreendidos eu conservo aqui o quee similar ao que eu ja tenho. Prestem bem atencao, eu ja te-nho certas estruturas, certos esquemas montados, e do dado queeu conservo somente aquilo que e coerente com o dos esquemas,entao isto se chama assimilacao. Voce conserva o similar e des-preza o diferente. Voce conserva o homogeneo e despreza o he-terogeneo. Entao, nesse caso, pode haver uma assimilacao sem aacomodacao, isto e, sem a geracao de novos esquemas que permi-tam, nao a adaptacao do objeto a voce, mas a adaptacao de voceao objeto.

Ora, a assimilacao sem a acomodacao e o que nos chamamossımbolos. Quando voce produz um sımbolo, ele e suficiente paraque voce, partindo de um dado, se refira a outro. Mas aconteceque desse outro voce so sabe aquilo que e similar ao sımbolo, vocenao leva em conta a diferenca. Acomodacao seria voce fazer umnovo esquema que voce ainda nao tem para voce dar conta de umheterogeneo.

Enquanto nos estamos falando de assimilacao, nos estamos fa-zendo generalizacoes de esquemas que nos ja temos, ou seja, asregras e os esquemas que voce ja tem sao suficientes para ir abar-

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cando todos os novos dados. So na hora que a generalizacao falhae que voce tem que fazer uma acomodacao. Voce tem que geraruma nova lei, um novo princıpio. Por exemplo, nessas cadeias deanalogia que voce faz em Astrologia, quando voce associa o ouroao Leao, o Leao ao Sol, e assim por diante, o que voce esta vendoentre esses varios seres? Somente o similar. A diferenca nao im-porta, ou seja, voce tendo um desses dados e suficiente para quevoce por mera generalizacao atribua esquemas e ele comporta ooutro tambem. No mesmo esquema que cabe o outro, cabe o Leao.Agora, qual e a diferenca entre o ouro e o Leao? Nao e partindodas mesmas qualidades que tornam o ouro, leonino, ou tornam oLeao, aureo, que voce vai perceber a diferenca entre eles.

Entao, o pensamento simbolico e a primeira e mais elementarexpressao da razao. Por isso que o sujeito que diz que o pensa-mento simbolico nao ...(?) o pensamento racional do outro, sim-plesmente nao sabe o que fala, porque o pensamento simbolico ea propria razao na sua primeira e mais elementar operacao que eessa de assimilacao.

Na verdade, o que te obriga a uma acomodacao e a faculdadecontraria, intuitiva, que te chama para um dado diferente e teobriga a gerar novos esquemas e a perceber diferencas entre es-ses dados e os anteriores. E claro que a razao seja a faculdade deestabilizacao do conhecimento, e a intuicao seja a faculdade da suaampliacao. Note bem, se voce deixar a razao funcionando por siela so faz assimilacao. Como ela e uma faculdade de estabilizacao,estabilizou, ela para. E somente a entrada de novos dados incom-patıveis que forca o processo de acomodacao. Quer dizer, se dei-xasse, estava todo mundo pensando simbolicamente ate hoje. E se-ria racional. O simbolismo e uma forma de generalizacao. Quandovoce agrupa varios seres sob o mesmo sımbolo, o que voce fez?Voce generalizou. O que e isso? E a razao. Os esquemas deacomodacao e assimilacao sao de Piaget, so que esta explicacao

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que eu estou dando e outra coisa. A ideia de que a razao funcionapor um processo de equilıbrio organico e dele. O que nao querdizer que o equilıbrio organico basta para explicar a razao, masela seria uma forma, a razao e uma especie de equilıbrio organico.A propria ideia do pensamento simbolico ja e a propria razao emoperacao, e se deixar que a razao funcione exclusivamente pela suapropria dinamica ela vai parar por aı mesmo. Se isso aı basta paraestabilizar o organismo, para ela esta bem, esta feito o servico.

Mas acontece que voce cresce, voce percebe, voce toma notade outros fatos, e voce sente a necessidade de criar novos esque-mas, entao voce obriga a razao a funcionar da mesma maneira, afuncionar e a gerar novos esquemas e e isso aı que voce chama deacomodacao. Os termos assimilacao e acomodacao sao um poucoenganosos porque da a impressao que assimilacao e acomodacao.O mais certo seria dizer, assimilacao e adaptacao. A assimilacao ea acomodacao dos dados aos velhos esquemas, entao seria melhorchama-lo de adaptacao. Adaptacao seria a faculdade de gerar no-vos esquemas, baseados nos dados, e nao nos esquemas anteriores.

Isto quer dizer que normalmente todos os nossos pensamen-tos so tem valor simbolico. Os nossos pensamentos do dia-a-dia so tem valor simbolico. Nos nos orientamos no dia-a-diacom base no pensamento simbolico, que mostra apenas a nossacoerencia interna e nada diz sobre os dados em si mesmos. En-quanto voce esta agindo segundo as suas vias costumeiras e evi-dente que nao existe acomodacao no sentido piagetiano, isto e ape-nas assimilacao. Voce esta usando os mesmos esquemas, isso aı tebasta.

Entao, ate aı nos so podemos dizer que o seu pensamento temum valor simbolico. Na hora que voce produz um sımbolo dasituacao, isso aı te acalma. Claro, se voce nao tem nem sımbolo,entao o dado fica heterogeneo, o dado e estranho as estruturas jamontadas da psique. Ela produz o sımbolo do jeito que voce as-

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similou, entao ele se parece semelhante a outros dados anteriores.Agora, que validade tem isso? E uma validade simbolica apenas.Voce encontrou um meio de simbolizar o fato, isto e, de encaixa-lodentro dos esquemas simbolicos ja existentes. Vejam que isso aısossega a alma. Se o sujeito ja sabe o nome da coisa ele pensa queja sabe o que e — por que? Porque ele assimilou, porque aquiloexiste dentro do vocabulario dele e portanto nao e coisa nova. Porexemplo, o UFO voce nao sabe o que e, mas voce ja tem o nome,entao e UFO, e pronto! Entao, justo na hora que voce tem aquelatranquilidade de que voce sabe o que se passa, eu digo, bom, aı eque voce esta mais ignorante. Se voce nao tem esquema nenhum,nao tem nome para a coisa, voce fica aterrorizado; produzindosımbolos, ja integrou a um esquema anterior, o fato lhe parece se-melhante a outros anteriores e voce fica sossegado. Entao, o nomeja e um sımbolo.

Quando voce diz “homens primitivos”, isto e um esquema.Quem diz que o ındio e primitivo? Por que o ındio nao poderiaser um povo muito antigo e decadente? E exatamente o contrariodo primitivo. Voce sabe? E claro que nao sabe. Entao basta dizerque sao homens primitivos que esta tudo explicado, entao sosse-gou. O que voce fez foi uma analogia, “no tempo do meu bisavopodia ser que nos andassemos assim, todos pelados”, entao vocefez uma analogia de proporcao. “Entre esse ındio na sua fase e euna minha fase”, voce fez uma analogia de proporcao. Isto te sos-sega, acalma, e te da a impressao que voce sabe, mas e justamenteaı que voce esta mais ignorante, porque voce so sabe do fato aquiloque voce ja sabia a respeito de fatos anteriores, e voce nao tem amenor condicao de verificar se isto e assim mesmo.

Prestem bem atencao, a impressao de comodidade, de estabili-dade da mente, que te da o sentimento habitual de certeza, este eo mais enganoso que ha. A calma impede a procura da verdade.E como se voce negasse a novidade das diferencas de um fato,

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voce nega o heterogeneo. Apaga o que tem de heterogeneo e con-serva so o homogeneo, ou seja, voce viu no fato uma imagem devoce mesmo. Voce esta em pleno solepcismo, voce so fala de vocemesmo. Acreditando que fala do fato, esta falando de voce, e issomesmo e que e o idiota. Idios quer dizer eu mesmo. O sujeitoso conhece ele mesmo. O que e um idiota? E um sujeito incapazde transcender o cırculo da assimilacao, o cırculo da homogenei-dade. Quer dizer que o idiota jamais ficara perturbado diante deum fato novo porque ele nao vai nem perceber que aconteceu umfato novo. Para o idiota tudo o que ele ve e uma auto-imagemdele mesmo, isto e, daquilo que ele ja sabe dele mesmo, ou seja, eum sujeito que nao percebe coisas novas nem sequer em si mesmoporque senao ele teria que perceber o outro nele.

Quanto mais a firmeza, a tranquilidade, mais ou menos impen-sada com que o sujeito fala de um assunto, mais voce pode ter cer-teza de que ele ignora o negocio completamente. Quando surge adiscussao, ela e uma especie de defesa da homogeneidade. O su-jeito discute porque nao quer ficar num estado de inseguranca, elediscute com o outro porque ele nao quer discutir consigo mesmo.Ele persevera na sua posicao. Entao, cada um fala a sua opiniao,expressa a sua opiniao, e nao admite a entrada da outra opiniao.Ele nao cogita da outra opiniao como uma possibilidade real, ouseja, “Eu nao admito pensar como voce nem por um minuto”,entao se eu nao admito, a sua opiniao de fato nao entrou e euperseverei na minha dentro do cırculo da minha homogeneidade.Por outro lado, se eu admitir a sua opiniao como uma possibili-dade, eu vou ter que pensar como voce pelo menos durante algumtempo, e pode ser que eu fazendo isto, entre no meu circuito al-guma ideia que me e totalmente estranha, e eu vou ficar inseguronaturalmente, entao eu vou ter que gerar um novo esquema e vouter uma trabalheira enorme. Pode ser ate que essa trabalheira voltea restaurar a minha opiniao anterior, porem ja aumentada. Por

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exemplo, eu posso perseverar na minha opiniao, mas ha que terassimilado, por assim dizer, a do outro.

Voce pode, a partir daı, observar as discussoes de botequim, osdebates de televisao, e voce ve que geralmente as opinioes saoimpermeaveis umas as outras. O fato do sujeito ser educado naotem nada que ver com isso. Existe uma maneira grosseira e umamaneira polida de voce se tornar impermeavel, mas em geral naoexiste nenhum intercambio de ideias, e portanto nao e uma dis-cussao que verse sobre os objetos, mas ela versa exclusivamentesobre as pessoas. Entao, nao e errado dizer que e uma discussaode idiotas, onde nao pode sair nada. Quando um fala o outro naoouve. Nao existe uma unidade logica nessa discussao, existe ape-nas uma unidade espacial, ou seja, as pessoas estao nos mesmoslugares. E assim, mas com rarıssimas excecoes!

Ouvir ou nao ouvir e uma questao de educacao, mas mesmosupondo que ouca com a maior atencao, o problema nao e esse,voce teria que pensar a opiniao do outro. Agora, se voce ja refutaa opiniao, aı dancou... Mas e claro que o contexto corrente da dis-cussao e exatamente isto, quer dizer, voce supoe que de varias pes-soas falando, cada uma colocando a sua posicao, vai ser possıvelalguem tirar uma media. Voce supoe que existe um arbitro capazde dialetizar tudo, capaz de assimilar todas as opinioes e de criaruma terceira que faca a sıntese, mas o fato e que isso aı nao existe,porque a coisa e colocada de tal maneira que as pessoas possamaderir a uma corrente ou a outra corrente. Entao nao existe de fatoa dialetica.

Discussao dialetica e pensar junto. Pensar junto e usar o cerebrodo outro como se fosse o seu mesmo, quer dizer, voce encarregao outro de fazer o antagonismo. Ao inves de voce ter que falaro sim e o nao, voce fala o sim e o outro fala o nao, so para tepoupar trabalho. Isto e que seria uma discussao dialetica. Istoquer dizer que a parte negativa esta dentro do conjunto do seu

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pensamento. No fim, quando voce chegar a uma conclusao, ounao chegar a conclusao alguma, voce tem certeza que abarcou asvarias possibilidades e por isso mesmo que voce esta dentro doque se chama probabilidade razoavel. Porem, se ficarmos cada umso na auto-expressao, nos estamos dentro da esfera do verossımil,ou seja, aquilo me parece verdadeiro. Essa sensacao de estabili-dade e de concordancia consigo mesmo, e isso que faz voce tera verossimilhanca. A verossimilhanca lhe basta, ela convence avoce. A verossimilhanca e uma impressao de veracidade, e umsentimento de veracidade, e e justamente isso aı que voce sentequando diz que concorda ou discorda.

Quando voce fala probabilidade razoavel, daı voce ja passoupara um outro plano, que e um plano de obrigatoriedade, isto e,qualquer pessoa que examine essa mesma questao, com esses da-dos e com esses varios aspectos, tera que chegar a mesma pro-babilidade, como se fosse um calculo matematico, entao tem umvalor normativo. Nao e que isso me parece verdadeiro, e queisso tem realmente uma probabilidade razoavel maior do que aserie contraria, e que assim se demonstrara a qualquer pessoa queexamine a coisa levando em conta esses mesmos dados, portantoja nao e mais uma opiniao. E o que nos chamarıamos de umaopiniao fundamentada. Porem, para chegar a isto e absolutamentenecessario que voce admita as varias possibilidades opostas comoigualmente razoaveis. Partindo do princıpio de que todas podemser, nos vamos somar — ou diminuir — para ver o que da no fim.Esse conjunto de operacoes que compara, que estabelece as variascontraposicoes de opinioes e de argumentos, e que vai ver nao so aconsistencia de cada um, mas as consequencias possıveis dele —comparar as consequencias de um com as consequencias de outro,comparar os fundamentos de um com os fundamentos de outros— e isso aı que e dialetica.

Claro que e impossıvel fazer isso se voce nao tem paciencia

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com uma das opinioes. Se uma das opinioes te choca, se ela te edesagradavel, entao e evidente que voce nao vai conceder a ela amesma atencao que voce concedeu a outra, entao o resultado docalculo esta impossibilitado. Quando voce faz ginastica, o movi-mento da ginastica nao tem uma contradicao? Voce nao forca ummusculo contra o outro, um musculo contra a gravidade, voce naofaz isto? E se voce nao forcar? Entao nao tem ginastica nenhuma,voce ficou na posicao de estabilidade. Quando voce faz ginastica,voce so vai reencontrar a posicao comoda no fim, acrescido deum bem-estar maior, mas isso depois de um esforco. De qualquermodo, nos podemos dizer que a dialetica e uma ginastica da menteque permite uma ...(?)(troca de fitas)

Aqui Husserl esta concedendo as duas hipoteses igual peso, atechegar a uma arbitragem final que eu acredito que ele va chegaraqui, e vai passar a uma questao por uma impossibilidade, quer di-zer, a tese psicologista vai se defrontar com uma impossibilidadede prosseguir adiante. De fato, a dialetica vai se parecer com umcalculo, vai se parecer com um jogo de xadrez, com uma progres-siva eliminacao de possibilidades.

E muitıssimo raro voce ver alguem hoje em dia fazendo istoaqui a respeito de qualquer questao. Se voce quer saber, eu nuncavi. Ja vi milhoes de discussoes sobre milhoes de assuntos, e eununca vi ninguem fazer isto aqui: pegar um lado, pegar o outro,somar, com uma certa higiene...

[ Olavo retorna ao texto do Husserl propondo um retorno ao20 ]20. Um vazio na demonstracao da tese psicologista.Com estas e outras semelhantes argumentacoes, os anti-

psicologistas aparecem inegavelmente em situacao desvantajosa.Ha, contudo uma coisa que deveria excitar a admiracao filosofica:o fato de que tenha existido e continue existindo uma discussao.Se tudo fosse realmente plano e claro como asseguram os psicolo-

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gistas, esta situacao nao seria muito compreensıvel. A verdade naoestara uma vez mais sendo cortada ao meio? Nao tera encontrado,cada uma das partes, um bom fragmento de verdade, mostrando-seincapaz para delimita-lo com rigor conceptual?

Se cada uma tivesse uma visao clara exatamente do que e ...(?)encontrou, seria facil voce perceber uma relacao entre uma e outra.Se nao esta dando para fazer e porque nenhuma das duas sabe oque esta falando.

Tomemos a questao anteriormente colocada sobre os fundamen-tos teoreticos essenciais da logica normativa. Estaria realmenteresolvida pela argumentacao dos psicologistas? Quanto a isto, as-sinalamos em seguida um ponto debil. O argumento demonstrasomente que a psicologia e co-participante na fundacao da logica.Mas isto nao significa que ela seja o fundamento essencial. Ficaaberta a possibilidade de que outra ciencia tambem contribua afundacao. Aqui pode ser o lugar daquela “logica pura”, que deveter uma existencia independente de toda psicologia.

A proposito disto aqui, vejam o que nos falamos ontem sobrefato e norma. Primeiro nos vimos a negacao kanteana de que existeuma passagem do fato a norma. Eu digo que essa negacao nao temcabimento porque existem fatos que por si mesmos demandam anorma. Nos demos o exemplo do fato de voce ter dois pes, e estefato requer uma norma de que voce nao deve se privar de nenhumdeles; do fato de que voce tem uma cabeca, se requer a norma deque voce nao deva corta-la; do fato de que voce tenha dois olhos,voce deve deduzir a norma de que voce nao deve furar nenhum dosdois, e assim por diante.

Portanto, existe uma passagem do fato a norma, mas existe umoutro lado: o fato pode exigir a norma, mas ele pode fundamentara norma por si mesmo? Nos podemos entender que existem fatosque exigem a norma e que nao podem sequer serem concebidoscomo fatos independente da norma. Isto quer dizer que o real tem

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por si mesmo um conteudo normativo, ate aı tudo bem, o velhoKant estava errado. Porem, o fato pode ser, por si, o fundamentoda norma?

Segundo Kant, fato e norma nao se interpenetram, mas nos aquidizemos que existem fatos que nao podem sequer ser concebidoscomo fatos se voce nao atribuir um valor a eles, portanto tem umanorma implıcita, mas isto nao quer dizer que o fato seja ele mesmoo fundamento da norma. Por exemplo, se um homem furasse osproprios olhos, poderia ser fundamentado se voce conseguir de-monstrar o valor da cegueira. Entao, do fato de voce ter olhos sededuz que aquilo que existe deve perseverar na existencia, por-tanto os olhos devem continuar a enxergar — pronto! Agora, quea visao seja preferıvel a cegueira, isto e uma norma que nao sededuz da pura e simples existencia de olhos, porque voce preci-saria levar em conta tambem a existencia da cegueira, a qual naoesta mencionada na existencia de olhos. Entao, a norma tem umarelacao entre a visao e a cegueira e nao uma mera decorrencia davisao em si mesmo.

Ora, uma relacao entre uma coisa e outra nao pode ser deduzidana mera existencia de uma so delas. Por exemplo, quando vocediz que e preferıvel fazer o bem ao mal, isso aı nao decorre damera existencia de bens, mas da possibilidade de um bem e de ummal. Entao e uma comparacao; essa norma e comparativa. Comovoce nao pode fazer uma comparacao entre duas coisas onde voceso tem uma, entao a existencia de uma nao pode, por si mesma,fundar uma norma de referencia. Portanto, o fato pode requereruma norma, quer dizer, com base no fato voce pode entender quedeve existir uma norma, mas ele por si nao fundamenta a norma.

Toda norma estabelece uma relacao, toda e qualquer norma.Qual e a formula logica de uma norma? “Para que A seja umbom B e necessario C”, ou, “para que A seja um bom B bastaque...”, so tem estas duas formulas, entao voce tem que ter A e B.

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Entao, da mera existencia de A nos nao poderıamos estabelecer seela e um B, ou um C, ou um D.

Ora, o que ele esta dizendo aqui, ele quer dizer que os fatos psi-cologicos observados demandam uma existencia de uma logica,mas nao quer dizer que a fundamentem. Entao, quando um psi-cologista diz que o pensamento logico e apenas um caso em es-pecial do pensamento que existe, ele esta dizendo o seguinte: seexiste o pensamento, entao deve existir dentro das possibilidadesdo pensamento, entao deve existir dentro das possibilidades dopensamento, um que seja o pensamento certo, ou o pensamentologico. Claro, isto e requerido pela propria existencia do pen-samento. Pelo fato de que existe o pensamento, devemos poderadmitir que existe como possibilidade um pensamento logico, ouseja, dito de outro modo, da existencia do pensamento nos nao po-demos excluir a existencia de um pensamento logico. Entao, eisaı um fato que requer uma norma. Mas, requerer e uma coisa, efundamentar e outra muito diferente.

Capıtulo 4CONSEQUENCIAS EMPIRISTAS DO PSICOLOGISMO21. Notificacao de duas consequencias empiristas da posicao

psicologista e sua refutacao.Situemo-nos, por um momento, no terreno da logica psicolo-

gista, admitindo que os fundamentos teoreticos essenciais dos pre-ceitos da logica residem na psicologia. Qualquer que seja o modoque se defina esta disciplina, ha unanimidade em torno do con-ceito de que a psicologia carece, ate aqui, de leis autenticas e,portanto, exatas, e que as proposicoes sao somente generalizacoesda experiencia, enunciados de aproximadas regularidades na coe-xistencia ou nas sucessoes dos fatos.

Bastaria isto aqui para parar a tese psicologista, porque de umlado a Psicologia e uma ciencia, portanto ela tem um fundamentologico; de outro lado ela nao conseguiu ainda criar nenhuma lei

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psicologica exata. Isto quer dizer que ela nao tem o fundamentoda sua propria cientificidade.

Se a Logica tem um fundamento psicologico, e ao mesmotempo a Psicologia e uma ciencia, entao e absolutamente ne-cessario que a Psicologia, para ser ciencia, ja possua esse funda-mento. E que fundamentos sao esses? Na leis psicologicas. Comonao existem ainda as leis psicologicas, entao aı caımos numa im-possibilidade. Se ela e uma ciencia nao e o seu proprio funda-mento, e se ela e seu proprio fundamento, ela nao e ciencia. Dosfatos psicologicos deverıamos poder deduzir leis que fundassemretroativamente a propria Psicologia, entao essa hipotese e umpouco esquisita mas ainda assim poderıamos admiti- la... Porem,o fato e que essas leis nao foram induzidas ainda, e a Psicologiaja se oferece como ciencia. Entao, ela afirma sua propria cientifi-cidade com base em leis que ela nao encontrou ainda mas que elavai encontrar no futuro!?!... Aqui nos chegamos de fato a impos-sibilidade absoluta.

Quer dizer que todo argumento psicologista pressupoe que aPsicologia ja existe, ja encontrou os fundamentos da Logica e porisso mesmo ela pode afirmar que ela mesma e ciencia, mas o fatoe que ela nao encontrou ainda. Se o fundamento da Logica e psi-cologico, quer dizer, reside em leis que foram tiradas por inducaoda observacao dos fatos psicologicos, e se por outro lado a Psico-logia ja e uma ciencia, isso significa que a Psicologia ja observouesses fatos, ja induziu deles as leis, e ja fundamentou a sua propriacientificidade, mas o fato e que a Psicologia nao encontrou ne-nhuma lei exata ainda a respeito do fundamento da mente. Se elanao encontrou ainda, entao nao pode ser ciencia ainda. Entao,como e que ela proclama a sua cientificidade com base nas leisque ela pretende encontrar no futuro? Bom, aı o negocio fedeu,nao e? Aqui o psicologismo como tese filosofica foi refutado deuma vez para sempre. Nunca mais ninguem insistiu nessa tese, o

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que nao quer dizer que nao tenham continuado a pratica-la...De fato, a discussao sobre o psicologismo como teoria morreu,

porem como pratica ele nao morreu nao. Ele continua a ser prati-cado sem ser discutido e sem tentar provar a sua propria validade.E isso aı e uma sacanagem!

Entao, esse tema sai da discussao filosofica, ou seja, que ofundamento da Logica e psicologico ninguem mais tentou fun-damentar contra a hipotese da Logica pura. A discussao Logicapura/Logica psicologica nunca mais aconteceu, apagou.

Porem, de certo modo, o tiro saiu pela culatra porque uma vezmorta a discussao, o psicologismo continua a ser praticado, ape-nas sem tentar um confronto com a ideia da Logica pura. Cada umfoi para a sua casa, e cada um continua praticando o que achavasem tentar confrontar com a tese do outro. Entao, por exemplo,em toda a Sociologia, em toda a Antropologia contemporanea, vi-gora a Psicologia, so que sem discussao com a hipotese da Logicapura. E tambem na cabeca de todo mundo a opiniao e generali-zada. Com esse psicologismo praticado sem confronto, ele podeate passar como uma verdade absoluta, porque nao tem contrario.Foi adotado aı no que o Lidell Hart chamaria de “acao indireta”,ou seja, ao inves de confrontar com a hipotese da Logica pura,nos vamos aqui praticando o psicologismo como quem nao quernada... comendo pelas beiradas...

Entao, basta isto aqui para voces entenderem que quase todaciencia social do seculo XX, todinha ela somada nao vale absolu-tamente nada, ela nao e ciencia de maneira alguma: Sociologia eempulhacao, Psicologia e empulhacao, Economia e empulhacao,tudo, tudo, tudo... nao sobra quase nada porque quase tudo estabaseado em conceitos impossıveis. Por que nenhum sociologoconsegue oferecer sequer uma definicao de Sociologia? Por quenenhum psicologo consegue oferecer uma definicao de Psicolo-gia? E assim por diante, nenhum antropologo oferece a definicao

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de Antropologia, nem mesmo isso, e no entanto continuam prati-cando...

O pessoal da ciencia exata tem toda a razao de ver essas coi-sas como pseudo-ciencias. O pessoal da Fısica, da Matematica,tem toda razao de torcer o nariz diante disso, porque e sacanagemmesmo. Nao e uma necessidade, ou seja, nao e preciso que es-sas areas sejam pseudo-ciencias, mas que de fato elas sao, sao!Por que? Porque elas se baseiam numa hipotese que ja de an-temao se demonstra inviavel. Por exemplo, essa escola desse Mar-cel Mauss, que e um antropologo de maior influencia no Brasil, eele vai tentar mostrar de como que as categorias da Logica saemde uma transposicao das instituicoes sociais. Ele e louco! Com-pletamente doido! Nao ha necessidade de discutir esta hipotese.Nao ha o que ele queria dizer que existe uma analogia entre as ca-tegorias da Logica que vao sendo descobertas, alias, esta analogiaexiste necessariamente, porem voce dizer que uma coisa funda-menta a outra, cest le fin de la piquee... E todo mundo acreditanisso. E isso se nao partir para a interpretacao psicanalıstica quediz que as categorias da Logica estao no superego, que foi o papaique impos a voce, que isso e uma tirania... Quanta gente ja disseque as categorias da Logica saem da gramatica. Mesmo histori-camente a primeira formulacao de gramatica grega e posterior; agramatica grega comeca a se formar no seculo I A.C., ou seja, doisseculos depois de Aristoteles! Vejam, inclusive a gramatica nao euma coisa necessaria. Voce pode ter uma lıngua com regras gra-maticais mais ou menos implıcitas durante seculos. a gramaticahebraica surge no seculo IX da nossa era. Nao havia gramatica he-braica, no entanto os indivıduos ja falavam hebraico. Agora, vocedizer que sai da gramatica e uma coisa, dizer que sai da linguageme outra. Tambem voce poderia dizer que sai da linguagem, masmesmo isso e errado.

Entao, a ultima novidade seria voce dizer que a lei da identidade

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sai da ideia de significacao. Como e que voce vai fazer o primeirosigno se voce nao tem a identidade? A ideia de princıpios logicosideais e uma ideia que para muitos caras das ciencias humanas erepugnante, eles nao gostam, eles odeiam. Eles querem provar quea vida social e tudo, e que tudo surge no curso da multidao(?), nocurso da conubis et commercio.

Outro dia eu estava lendo Piaget, e ele disse que o princıpio deidentidade nao pode ser universal por causa da seguinte coisa: sevoce pega sete bolinhas, mostra para um garoto de cinco anos epergunta quantas tem, ele diz que sao sete. Daı voce dispoe asbolinhas com um espacejamento maior e pergunta quantas sao, eele diz que sao nove. Entao, diz Piaget, “E o mesmo princıpio deidentidade, ou e outro princıpio? Entao deve ser universal, porqueele surgira do aprendizado”. Isto aqui e uma asneira atroz! Ele dizque o garoto nao reconhece a identidade. O garoto nao conhecee a distincao entre quantidade contınua e quantidade discreta, se-parado, descontınuo. Mas, eu pergunto, o que isso tem que vercom o princıpio de identidade? Isso tem que ver com a forma daquantidade. Ele descobriu que existe uma relacao entre as ...(?) eo desenvolvimento biologico, porem daı ele confunde causa comfundamento, como todo psicologista. Ele ...(?) porque voce vaidescobrindo certas coisas no curso da evolucao psicologica, e quevoce vai ter um fundamento da coisa.

Entao ele nao sabe o que e Logica, porque no caso aqui o queaconteceu? O garoto confundiu a quantidade discreta com a quan-tidade contınua, ou seja, ele nao consegue conceber as bolinhasapenas como um conjunto matematico, concebe as bolinhas comouma figura concreta no espaco, e nao distingue entre a figura con-creta e o conjunto matematico abstrato. E somente isso, porem elesabe que e o mesmo. O proprio Piaget se trai quando ele diz que ogaroto ve o conjunto como se fosse um elastico; sim, o elastico seesticou, ele nao e outro. Entao, e o mesmo conjunto que cresceu,

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magicamente. Porem, se o garoto nao tivesse a identidade, comoe que ele poderia falar desta soma, deste aumento ou diminuicao?Aumento e diminuicao e uma coisa que so pode acontecer a aquiloque e identico. Se aqui eu pego um conjunto de sete e la eu pegoum conjunto de nove, nao e este conjunto que cresceu, e outro con-junto apenas. Por que isso? E o odio do princıpio de identidade,ele nao quer...

A ideia de que esses princıpios, uma vez descobertos, eles va-liam de uma vez para sempre, e uma ideia que parece muito re-pugnante a certas pessoas que querem provar que a dois mil anosatras as pessoas so podiam pensar de maneira tosca, e de que enecessario que a evolucao da Ciencia recoloque outros fundamen-tos completamente diferentes. a propria Ciencia moderna, no diaque ela faz uma pequena descoberta, ela se permite contestar oproprio fundamento que permite a sua existencia. Agora, por quequerem fazer isto? Por um motivo muito simples, e o problema daautoridade da comunidade cientıfica.

Vejam, Aristoteles esta morto, Platao esta morto, Plotino estamorto, e nao podem se defender e nao tem interesse ...(?), masesta camada cientıfica tem o interesse. Quer dizer, voce se colocafora da fiscalizacao da Historia, e voce e o fiscal da Historia. Euma verdade que se coloca acima de todos os interesses. Isto ecorporativismo, interesse de classe.

[ Troca de fitas — uma parte dos comentarios se perdeu ]Tambem, se voce rompe com todo esse clima de tradicao, o que

lhe resta senao perguntar a presente geracao de cientistas qual e averdade?

Isto quer dizer que toda e qualquer atividade especulativo-cientıfica que se coloque fora dos quadros admitidos por uma certafatia de academicos e toda tomada como ilegıtima, imediatamente.Entao, no fundo, e so interesse de classe. E em nome desse inte-resse de classe comecam a aparecer as coisas do Georg Cantor, do

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Piaget, e mais uma serie de outras absurdidades desse tipo.Por outro lado, como essas coisas sao faladas para pessoas cujos

mestres sao esses mesmos, ninguem sai desse circuito, ninguemexamina essa coisa de fora. Quer dizer, essa bobajada toda temum poder..., esse Marcel Maus, no Brasil, falou, e a mesma coisaque o Papa ter falado...

Voce imagina a Sociologia como uma ciencia incapaz de definiro seu proprio objeto? E ela agora passa a ser o fundamento daLogica?! As pessoas esquecem que ser o fundamento da Logicaseria o mesmo que ser o fundamento da Matematica, porque haidentidade perfeita entre a Aritmetica elementar e a Logica. Entao,e so voce trocar a palavra Logica pela palavra Matematica quevoce ve o absurdo que esses caras estao falando. Quer dizer queo fundamento da Matematica deve ser encontrado na Sociologia,a qual e incapaz de formar uma unica lei! Quer dizer que se 2 +2 sao 4 isso dependera de uma verificacao sociologica?! Comoo sociologo nao estuda Matematica, e esta pouco interessado nosfundamentos da Matematica, ele pode dizer essas coisas com amaior cara-de-pau.

Tao logo assumimos a tarefa de formular de um modo adequadoseu sentido empiricamente legıtimo, as chamadas leis psicologicasperdem o carater de leis. Desta suposicao resultam consequenciasmuito graves para os logicos psicologistas:

1) Sobre bases teoreticas vagas so podem fundar-se regras va-gas. Se as leis psicologicas carecem de exatidao, o mesmo devesuceder aos preceitos da logica. Mas justamente as chamadas leislogicas em sentido estrito — os “princıpios” logicos, as leis da si-logıstica, as leis das muitas formas de raciocınio, etc –, sao de umaexatidao absoluta.

A inesgotavel multidao das leis matematicas puras, tambem en-tra na esfera das leis logicas exatas.

2) Nenhuma lei natural e cognoscıvel a priori — pelo simples

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fato de que sao deduzidas da experiencia –, nem demonstravel comevidencia intelectiva. O unico caminho para demonstrar e justifi-car uma lei semelhante e a inducao. Mas a inducao nao demonstraa validez da lei. Ela demonstra somente a probabilidade mais oumenos alta desta validez.

Portanto, se for por este raciocınio, 2 + 2 tem uma elevada pos-sibilidade de dar 4. Se voce comecar a raciocinar como MarcelMauss, voce chega a isso aı, onde que segundo tudo o que os es-tudos sociologicos vem indicando ate aqui, 2 + 2 muito prova-velmente dara 4. Agora, o que significa uma probabilidade nao-quantificavel e o que significaria o quantificavel sem a exatidao dateoria matematica, eu tambem nao sei. Se voce nao pode quanti-ficar a possibilidade, o que ela significa? Nada. Nao por uma im-possibilidade pratica, mas porque a probabilidade nao poderia porsua vez ser quantificada segundo uma quantificacao meramenteprovavel, onde 2 significa mais ou menos 2.

Entao, chega uma hora que voce tem que chegar na exatidao.Com base numa matematica exata voce faz uma quantificacao daprobabilidade. A probabilidade se sustenta na propria Matematica,ao qual e pressuposta como medida da probabilidade. Entao, o quesignificaria uma inducao que nao se fundamentasse na exatidao daMatematica? Ate para voce dizer que uma determinada probabi-lidade e imprecisa, por exemplo, aqui temos uma probabilidadeentre 32,5% e 93,5%, ate para voce poder dizer isto e preciso que32,5 seja 32,5 e 93,5 seja 93,5!

Por conseguinte, tambem as leis psicologicas deveriam ter, semexcecao, o traco de meras probabilidades. Nada parece mais pa-tente, por outro lado, que o fato de que as leis “logicas puras” saotodas validas a priori.

Mas talvez nossas leis logicas sejam somente “aproximacoes”das leis do pensamento verdadeiramente validas, ainda que ine-xequıveis para nos. Em se tratando de leis naturais, considerando-

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se seriamente e com razao tais possibilidades, ainda que a leida gravidade seja considerada hoje como uma lei absolutamentevalida. Sabemos a priori que ha infinitas leis que podem e devemdar o mesmo resultado que a lei da gravitacao de Newton, reco-mendada tao- somente por sua particular simplicidade;

Voce pega determinados dados, faz determinados calculos echega a uma descricao aproximativa suficiente. Quer dizer, aolado dessas leis poderiam haver uma infinidade de outras que daotambem o resultado suficiente. Entao, dentro do resultado sufi-ciente voce escolhe o que lhe pareca o mais viavel no sentidopratico, e isso e o maximo que uma ciencia de inducao pode che-gar. Ha uma descricao suficiente de um esquema, o conjunto defatos, que poderia ser montado e explicado de outras maneirastambem.

sabemos que ja a simples busca de uma unica lei verdadeira se-ria insensata, dada a inexatidao das observacoes. Esta e a situacaonas ciencias exatas de fatos. Mas de modo nenhum na logica.O que naquelas e uma possibilidade justificada, nesta se convertenum absurdo patente. Temos, com efeito, inteleccao nao da meraprobabilidade das leis logicas, mas de sua veracidade.

Veracidade na qual se assenta a probabilidade e sem a qual vocenao poderia pegar probabilidade alguma.

Por conseguinte, as expressoes como “esferas de inexatidao”,“meras aproximacoes”, e outras semelhantes, perdem aqui seupossıvel sentido. Mas aquilo que a fundamentacao psicologicatem como consequencia e absurdo, ela mesma e absurda.

Contra a verdade mesma que apreendemos com inteleccao, naopode prevalecer a mais poderosa argumentacao psicologista: aprobabilidade nao pode lutar contra a verdade, nem a presuncaocontra a inteleccao.

Mesmo porque, a probabilidade tambem pode ser verdadeira oufalsa, e se ha possibilidade de um calculo falso de probabilidade

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e porque existe a probabilidade do calculo verdadeiro. Entao, anocao de probabilidade se fundamenta na nocao de veracidade, porexemplo, eu nao poderia retroativamente fundamenta-la, e mesmoque pudesse nos terıamos uma pequeno problema: as chamadasleis probabilısticas da Psicologia, se encarregadas de fundamentara Logica, nao foram descobertas ainda, e no entanto e nessas leisque se fundamenta a cientificidade da propria Psicologia encarre-gada de fundamentar a Logica — - isto e alucinante! Entao, aıacabou, dancou! Nao tem nenhuma possibilidade porque aı vocechegou, vamos dizer, numa luta da veracidade contra a probabi-lidade. O que nao quer dizer que a questao esteja inteiramenteresolvida, ainda faltam alguns pequenos detalhes que ele vera paradiante.

[ intervalo da aula ]Na medida em que ele foi remontando desde a questao imediata,

que e a questao que se a Logica tem um fundamento psicologico,ele foi convertendo esta questao ate que ela chegasse num domınioonde e possıvel voce obter uma evidencia imediata, ou seja, eletransfere a discussao ao plano dos proprios princıpios logicos.

Entao, na hora onde voce vai confrontar uma evidencia primariacom a simples probabilidade,a evidencia primaria ganha eviden-temente, e e assim mesmo que voce vai chegar a arbitragemde quaisquer questoes. E preciso remontar desde a questao talcomo esta ate os seus princıpios logicos correspondentes, querdizer, o que que esta em questao, logicamente falando. Prestembem atencao, qualquer questao tem solucao quando voce podetransferi-la para o mundo dos princıpios logicos mesmos. Somenteaı que tem solucao.

Voce pode fazer com qualquer questao, para isso voce tem quesaber quais sao os princıpios que estao pressupostos na formulacaodo problema, e isso mesmo e que e o difıcil. Na hora que voce per-cebe quais sao os princıpios que estao em jogo a solucao pratica-

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mente e imediata. E como numa equacao. O que e uma equacao?Voce vai reduzir uma formula complexa a uma identidade simples.Remontar o complexo ate o princıpio. Por exemplo, vamos pegara questao do “telefone do alem”, as pessoas que gravam as vozesdos mortos.

Entao vamos supor o seguinte, o problema nao esta no fato, e umdado sensıvel, voce liga o gravador e aparece la uma voz. Agora,o que e essa voz? Qual e a possibilidade que tem de ser a voz deuma pessoa morta? Que princıpios nos precisarıamos admitir paraque ali possa ter a voz de um morto, para voce poder resolver essasituacao, para voce poder dizer que isso e a voz de uma morto, ouisso e a voz de alguma outra coisa?

Essas questoes sao as mais difıceis de voce colocar logicamente,e por isso mesmo que as pessoas gostam de produzir esse tipo defenomeno porque vai criar uma serie de impossibilidades dentroda ... (Olavo nao terminou a frase)(?)

[ Aluno: voce nao poderia inverter a pergunta? Como e quevoce sabe que e a voz de um morto? Prove! ]

Nao, isso aı e um truque logico, e erıstica. Erıstica e voce fazerum truque logico do qual o outro nao pode sair. Claro que numdebate de TV voce apela para a erıstica, tapa a boca do sujeito epronto, mas este nao e o problema, nao e isto que nos estamosquerendo aqui. A erıstica tambem e uma maneira de voce sim-plesmente perseverar na sua comodidade, ou seja, voce nao querpensar no problema.

Vejam, eu estou tentando passar para voces o que e a ideia deuma investigacao dialetica autentica, mas isto e muito raro. Nos,na condicao deste curso, dificilmente teremos a oportunidade dedesenvolver essa pratica, mas pelo menos a imagem do que e,isto eu quero transmitir. Mesmo essa imagem e difıcil de trans-mitir porque, por exemplo, a simples argumentacao, a facilidadede argumentacao, a facilidade de tapar a boca do outro, isto passa

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como se fosse uma investigacao dialetica e nao e. Isto e erıstica,que e uma pseudo-dialetica, que visa apenas a uma finalidade dedizer um absurdo, contanto que o absurdo seja irrespondıvel nomomento.

Isto quer dizer que faz parte desta sociedade, nas conviccoes queestao profundamente arraigadas nesta sociedade, a ideia de que opensamento so serve para discurso, porque nunca viram o pensa-mento usado a nao ser para discurso. Entao, voce chega a umaperfeita resolucao cientıfica de um problema, isso nao parece aopublico ter mais validade do que uma argumentacao erıstica qual-quer, o sujeito nao distingue, nao capta a diferenca. O fato de serirrespondıvel so tem valor erıstico. O problema nao e voce che-gar no irrespondıvel, e voce chegar no absolutamente impensavel.Agora, voce tampar a boca do seu adversario no momento naoquer dizer nada, so quer dizer que houve um adversario mais in-teligente. E claro que a demonstracao dialetica tambem tem valorerıstico, mas a argumentacao erıstica nao tem valor dialetico.

Nos temos que supor, primeiro, que a discussao nao e com ou-tra pessoa, mas com voce mesmo. Se for com outra pessoa, e comoutra pessoa que voce nao esta a fim de vencer. A dialetica e entrepessoas que estao a fim de discutir a verdade, e que usam o pensa-mento como um instrumento para chegar la. Isto quer dizer paravoce investigar qualquer coisa a partir daı, contanto que voce qui-sesse realmente, entao por que nos nao podemos admitir que sejarealmente a voz de um morto? Pode, por que nao? Entao vamosadmitir essa hipotese e vamos ver que pressupostos ela deveria tere ver se isso aı existe uma possibilidade ou se a coisa e impossıvelem si mesma.

Eu acho que uma primeira coisa que voce deveria levar emconsideracao e que essa voz e uma expressao individualizada,voce esta pressupondo que a voz e uma expressao individuali-zada. Nos terıamos que perguntar em seguida se e possıvel uma

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expressao individualizada parcial. Prestem bem atencao, um in-divıduo humano que esta vivo neste planeta atua simultaneamentenum montao de esferas, ele tem uma vida subjetiva, tem uma vidasocial, tem uma vida emocional, vida biologica, e tudo isso aıentrelacado e inseparavel. Voce nao pode existir abstratamente,por exemplo, a minha identidade social nao pode atuar indepen-dentemente do substrato fısico. O substrato fısico nao existe umunico minuto sem ser socialmente, entao a partir da hora que vocenasce voce e filho de alguem, e irmao de alguem, e neto de alguem,voce tem uma identidade e tudo isso e inseparavel, e e justamenteessa inseparabilidade que marca a sua individualidade.

Ora, se o morto pode falar com uma voz individualizada no gra-vador significa que ele tem uma individualidade distinta, e essaindividualidade nao pode ser abstrata, ela deve ser concreta. Issoquer dizer que ele deve atuar numa infinidade de outras esfe-ras tambem. A situacao de morto ou de vivo seria apenas umadiferenca que nos terıamos que admitir de forma de corporalidade,e alias e a teoria que esta sendo defendida, as pessoas que dizemque isso e voz de morto voce ve que o cara passou para uma outraforma de corporalidade. Nao precisa discutir fisicamente a coisa.

Qualquer forma de corporalidade que seja nos temos que admi-tir, mesmo que seja uma corporalidade sutil, que se o indivıduoconserva a sua individualidade, ela e concreta e nao abstrata, ouseja, as suas varias expressoes nao sao separaveis. Eu nao possoatuar com a minha voz independentemente, por exemplo, da mi-nha presenca social, se eu falo eu falo desde um determinado pa-pel social. Ora, se existe uma outra forma de corporalidade deveexistir uma outra forma de temporalidade, uma outra forma de es-pacialidade, uma outra forma de historicidade, uma outra formade socialidade, etc, etc, e voce tem que supor tudo isso.

Portanto, voce deve supor o seguinte: se um morto fala e porqueele existe com uma outra forma de corporalidade numa outra es-

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fera onde existem todos modos. Se um morto pode falar com umavoz individualizada voce tem que supor que existem todas as ou-tras dimensoes intrınsecas na individualidade. Ora, isso nao seriapossıvel exceto num mundo de individualidades distintas. Entaonos devemos supor que o mundo dos mortos e um mundo que temuma outra forma de corporalidade no qual todos conservam as suasindividualidades.

De outro lado, ele falar e uma acao que transcorre no tempo, agravacao dura um tempo x, ou seja, ele falou durante o tempo quetranscorreu a gravacao. Isto significa que ele e capaz de atuar exa-tamente dentro da mesma faixa de temporalidade que nos, nao eassim? Entao, nos temos que supor que existe um outro mundo in-corporal, com uma outra forma de corporalidade, onde e possıvelatuar dentro da nossa faixa de corporalidade, onde voce falandoquinze minutos no gravador, aparecem quinze minutos de fita, por-que senao voce teria que supor nao uma capacidade a mais domorto, mas uma capacidade a mais do gravador, que e a de gra-var um minuto e aparecer quinze; so que isso contradiz nao as leisda Fısica do outro mundo, mas as leis da Fısica deste mundo quee o do proprio gravador. entao, aı ja nao seria uma capacidadedo morto e sim uma capacidade do gravador, e aı e absurdo! Seum minuto de gravacao e quinze minutos de audicao, isso ja naoe uma capacidade do morto, e do proprio gravador. Nada impedeque o gravador, ficando como esta, e tendo apenas o programa quetem, um outro ser de uma outra esfera o influencie. Mas para queo gravador seja influenciado, para que ele possa ser objeto destaacao, ele sofre esta acao dentro da estrutura e do modo de ser quee dele. Ele nao desenvolve uma outra capacidade, e o morto quetem a capacidade de gravar nele. Porem, para que um gravador,tendo gravado um minuto, tocasse quinze, aı se trata de uma ca-pacidade do proprio gravador — por que? Porque depois que omorto gravou, o gravador continua tocando...

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Entao voce teria que supor uma capacidade extraordinaria naoda parte do falecido, mas da parte do gravador, entao isso aı nospodemos excluir. Portanto, e absolutamente necessario que se ogravador tocou quinze minutos, o falecido tenha falado durantequinze minutos.

O fato e evidente que acontece, mas nos nao estamos discutindoo fato; eu quero saber o que e esse fato, e se essa hipotese de que eum morto que esta falando, se ela e viavel. Nos alegarmos as leisda Fısica, nao chega, porque nos estamos supondo que ele vivenuma outra forma de corporalidade que nao obedece a estas leisaqui.

Esses casos que voces estao falando sao experiencias mais res-tritivas, teriam menos valor probatorio que esses casos alega-dos pelos analistas. Entao nos estamos averiguando a pior dashipoteses, vamos dizer que o fato esteja amplamente comprovado,tudo certinho, mesmo assim nos terıamos que supor tudo isso, queexiste uma outra forma de vida que num outro tipo de corpora-lidade tem a mesma temporalidade. Se fosse um cruzamento deformas de temporalidades nao obedeceria a desta fita, aı acontece-ria a outra hipotese de voce gravar um minuto e aparecer quinzeminutos. Daı, esta acao nao estaria limitada a estes parametrosde temporalidade que voce tem aqui. Por exemplo, voce pode su-por que Deus fala um segundo e a voz Dele ressoa por milenios,porque aı Ele nao tem satisfacoes a dar ao nosso esquema de tem-poralidade, mas Deus nao fala atraves de gravadores. Este e que eo ponto, o intermediario e o gravador, ele esta rigidamente enca-deado a esta temporalidade, se ele grava quinze minutos, ele tocaquinze minutos.

Entao estamos supondo que e a mesma relacao de velocidadeque o tempo do gravador e o mesmo aqui e la, mas o que e estetempo? E uma velocidade, que e uma relacao entre espaco etempo. Ora, que outra forma de corporalidade e essa onde existe a

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mesma relacao entre tempo e espaco que existe aqui?Entao chegamos a um dificuldade: para que o morto falasse e

necessario que ele exista em um outro mundo onde se conservatoda a individualidade concreta de cada um, com todo o tecidode relacoes que ela implica com outras individualidades e aindaseria necessario que existisse uma relacao espaco-tempo, poremse ele fala e grava com a mesma velocidade... Se o gravador rodauma hora, o falecido fala uma hora; se ele rodou quinze minutos,o falecido fala quinze minutos; ou seja, o tempo de gravacao e omesmo tempo de audicao, porque senao nao faria diferenca voceligar o gravador ou nao. Gravador desligado tambem gravaria.

Vejam todo o encadeamento de exigencias: e necessario que otempo de audicao seja igual ao tempo de gravacao, porque senaonao faria diferenca ligar o gravador ou deixa-lo desligado. Se e ne-cessario ligar o gravador e que ele gire, ele gira na velocidade queele tem, e ele toca na velocidade que ele tem. Ora, essa velocidadee uma relacao espaco-tempo; de outro lado, nos vimos que paraum morto falar numa individualidade concreta num mundo con-creto onde existem as outras individualidades, porque senao naoseria um morto, quem fala seria a voz de um morto sem o morto.O morto nao existe sozinho, ele existe num mundo de mortos ondeexiste um conjunto de relacoes entre individualidades concretas, eonde existe um determinado espaco-tempo.

Porem, nos vimos que o morto atua dentro do nosso espaco-tempo, aı voce tem uma contradicao da braba, porque entao sig-nifica que a relacao cronotopica — espaco-tempo — do mundodo morto parece ser a mesma daqui, entao nao e outro mundo, eeste daqui! Nos nao acabamos de dizer que um morto consistenuma outra forma de corporalidade que nao esta? E se voce disserque ele existe com esta, entao ele esta submetido as mesmas leisfısicas, etc, etc, e daı bastava o argumento, “morto nao tem gar-ganta, entao, morto nao fala!” Se o morto existe nesta forma de

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espaco e tempo aqui, entao vigoram as leis fısicas conhecidas, semgarganta nao da para falar. Eu rejeitei este argumento porque osadeptos das vozes dos mortos proclamam que o morto existe numaoutra faixa de corporalidade na qual nao vigoram essas leis fısicas.Porem, se nao vigoram essas leis, como e que ele atua dentro danossa espacialidade e dentro da mesma relacao espaco-tempo? Omesmo tempo em que ele entra em sintonia, ele esta rigorosamenteencadeado a essas leis — e ilogico! Isso aı desmente os propriosprincıpios colocados pelo adepto da coisa que diz que e uma ou-tra temporalidade. Pode haver uma dimensao que abarca a outrasim, e voce teria uma outra temporalidade mais ampla na qual estacontida esta, tudo bem, so que no instante em que voce age nesta,voce esta submetido a esta.

Prestem bem atencao, e assim como, por exemplo, o homemexiste dentro de uma esfera que chama Cultura, que abarca a na-tureza terrestre, mas quando voce esta agindo fisicamente voceesta naquele momento submetido as leis da Fısica, ou seja, nao epossıvel uma acao dentro de uma determinada esfera que perma-nece totalmente a margem das leis dessa propria esfera. Eu supusa interpenetracao, e exatamente isso que eu estou falando, existeesta interpenetracao, entao isso quer dizer que no instante queaquele morto fala, durante aqueles quinze minutos de gravacao,ele esta submetido as leis daqui, entao cade esse morto? Voce naopode atuar numa determinada esfera permanecendo totalmentefora dela. Ele nao poderia atuar completamente como um in-divıduo sem ter as demais caracterısticas fısicas que se concretamnum indivıduo. Um indivıduo nao pode ter uma voz separada detodo o resto.

Entao, partimos da ideia de que o morto e individualizado, ouseja, eu aceitei as premissas do adepto da teoria de que um mortoexiste numa outra forma de corporalidade, nao submetida as leis daFısica terrestre, e que esta subentendida aı a hipotese de que uma

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dimensao abarca a outra. Porem, nos vemos que para que o mortopudesse atuar individualizadamente, ele precisaria existir como in-dividualidade concreta — nao existe individualidade abstrata. Masvoce pode dizer que o princıpio logico aqui nao importa, entao, senao existe princıpio logico a diferenca entre morto e nao-morto eimpossıvel de distinguir, a diferenca de um indivıduo para o outroe impossıvel distinguir, entao tanto faz voce dizer isso ou aquilo,tanto faz quem falou, como ter falado ou nao falado. Isto significaque a ideia de que o morto falou subentende os princıpios logicos.Nao e possıvel voce afirmar que o morto gravou com uma vozsem voce, no mesmo instante, afirmar a validade dos princıpioslogicos.

Agora, o que voce questionou e que os princıpios da Fısica ter-restre tenham, vamos dizer, poder sobre esse morto. Entao ele vivenuma outra esfera de corporalidade na qual a Fısica terrestre naoage, apenas ele e quem age dentro da nossa esfera sem que esta ajanele. Mas aı e que esta o problema!

[ Aluno: se nao e a voz do morto, e a voz do que? ]Mas e aı que termina a minha argumentacao; e a voz de alguma

outra coisa. Por que voces querem uma solucao? Para acomodar.Mas, nos temos que ir por partes. Ate aqui nos so podemos dizerque e a voz de alguma outra coisa, mas do falecido nao e.

Vamos fazer uma outra hipotese: que fosse a voz atuando sepa-radamente, sem individualidade. Eu digo que isso e muito factıvel!Isso e mais possıvel do que voce dizer que e o fulano de tal quemesta falando. Esta e a hipotese que se chama “o resıduo psıquico”,que nao tem nada que ver com o indivıduo mas como se fosseum pedaco dele que sobrou, assim como pode sobrar o cheiro dofalecido.

A hipotese de ser um resıduo psıquico e mais viavel porque oproprio fenomeno da incorporacao ja sugere que nao e uma indi-vidualidade inteira, mas que e uma parte da individualidade que

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toma uma parte da outra. Ou seja, e uma individualidade que naotem o seu proprio corpo. Se ela nao tem o proprio corpo, entaoela nao pode ter as outras coisas todas que decorrem da posse docorpo.

Aı surge um pequeno problema: como e que um indivıduo semcorpo poderia agir sobre outro corpo? Por exemplo, me lembro aprimeira vez que eu vi uma coisa dessas, de uma mulher que incor-porou um caboclo e o caboclo veio falar comigo. Eu insistia emchamar o preto velho de senhora e ele ficava ofendidıssimo... Ve-jam, o falecido pode ate usar um corpo de uma pessoa de um outrosexo. Isso quer dizer que o sexo e indiferente. Mas se e indiferente,por que te ofende se eu o chamar de senhora? Ou seja, ele e indi-ferente mas ele sabe o que diz, e ele ainda tem as mesmas susceti-bilidades terrestres. Entao, voce nao esta falando com uma pessoainteira, pode ser um pedaco de fato... a hipotese de um pedacoe mais viavel, nao quer dizer que tenha provado, mas existe umapossibilidade logica porque a outra e impossıvel. Existe a possi-bilidade da comunicacao a distancia, mas nao pode existir a pos-sibilidade de comunicacao acustica na ausencia do corpo. Entao,os mortos se trairiam na hora que eles falassem com o gravador.Quando eles estivessem falando so para nos voce poderia admitirum canal psıquico, mas na hora que eles falam com o gravadornao, o gravador nao e medium!...

Entao, nos temos que pegar a questao, a proposta, a tese, e verem que pressupostos logicos ela se fundamenta — nao pressupos-tos cientıficos. Qualquer pressuposto cientıfico pode ser posto emduvida a qualquer momento; qualquer lei fısica e provisoria, masprincıpio logico, nao.

Agora, essas questoes sao bravıssimas, nao e? Por exemplo,quando voce fala em regressao de memorias, regredir a sua vidaem vidas passadas; voce esta pressupondo que um indivıduo temuma individualidade que se prolonga para tras de si mesmo, e voce

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esta supondo que esse indivıduo que voce e agora pode consci-entizar o que se passou a mil anos atras, vivenciando as mes-mas experiencias com o nıvel de consciencia que ele tem agorapara informacao posterior. Mas, se isto e possıvel, por que naoe possıvel a projecao da memoria para adiante? Nao ha nenhummotivo. Se a individualidade nao esta presa ao espaco temporalno qual ela vive agora, entao ela nao esta presa nem para adi-ante, nem para tras. Quer dizer que se a minha consciencia deagora pode reviver fisicamente experiencias que eu tive antes deter corpo, experiencias que eu tive entre duas encarnacoes, sig-nifica que essa consciencia esta completamente acima de todo oquadro espaco-temporal de agora, e se ela esta acima do quadroespaco-temporal para tras nao ha nenhum motivo para que nao es-teja para frente. E absurdo! Entao, se terei vidas futuras eu possover o dia de amanha. Se nao existe nenhum limite temporal aconsciencia, prestem bem atencao, e uma ausencia de limite naoapenas no sentido logico mas no sentido fısico, quer dizer que oposso experimentar fisicamente experiencias que nao aconteceramainda. Eu digo, qual e a diferenca delas acontecerem e nao aconte-cerem? Entao, amanha eu vou dar uma martelada no dedo, mas euja posso ter a experiencia agora. Eu posso ter a experiencia visıvelsem a experiencia tatil, nao tenho dor. Mas por que nao pode ser ocontrario? Ter a dor, sem a experiencia visıvel — me de uma unicarazao. Nao tem sentido algum. Portanto, tudo aquilo que voce estarevivendo como vidas passadas sao apenas vidas possıveis, vidasque eu poderia ter vivido, coisas que poderiam ter me acontecido.

Veja, se eu saio deste fio espaco-tempo que me prende, entaonao existe diferenca entre o atual e o possıvel, prestem bematencao. Por exemplo, voce pode cair da escada daqui a pouco,nao e? E perfeitamente possıvel. Qual e a diferenca entre isso serpossıvel e isso ser real? Esta diferenca nao e espaco-temporal?Quer dizer que dentro das condicoes espaco-temporal dali e que a

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sua queda foi desencadeada. Por isso mesmo e que voce diz queela nao e apenas uma possibilidade mas que ela se efetivou. Seefetivou onde? No espaco-tempo. Se eu suprimo o espaco-temponao existe realidade, da para entender? So existe possibilidadeabstrata. Entao eu vejo todas as minhas vidas, mas essas vidasnao foram vividas, elas sao apenas vidas possıveis, naturalmentecompatıveis, analogas e harmonicas para a minha personalidade.Entao e ficcao. Claro que e uma ficcao que contem muito ensi-namento sobre voce porque voce ve tudo o que poderia ter sido.Vamos supor que voce conseguisse abarcar um bom continente dassuas vidas possıveis, voce compreenderia o esquema das suas pos-sibilidades, mas dizer que voce realmente viveu, ah!, isso e o fimda picada! O que quer dizer esse “realmente”?

Aparece alguma coisa, aparece o mundo da analogia, o mundodos esquemas de vidas que seriam compatıveis com voce, que ape-nas voce os esta completando com imagens. Porem, se voce trans-cender os limites do espaco-tempo da consciencia, entao nao temsentido em voce falar de realidade, porque a realidade e o espaco-tempo. De modo que a diferenca entre uma coisa ter acontecido enao ter acontecido, e ela ser apenas possıvel, e que ela ser apenaspossıvel nao inclui a referencia espaco-tempo. Se existir o espaco-tempo ela acontece ou nao acontece. Por exemplo, pode baixar umelefante celeste aqui e agora? Pode. Vamos aguardar o tempo. Elebaixou? Nao. Entao nos sabemos que e uma possibilidade, apenasuma possibilidade abstrata. Se ele tivesse baixado nao seria maisuma possibilidade porque ele entrou no espaco-tempo. Entao, sevoce ao mesmo tempo suspender o espaco-tempo e contar vidasreais, eu digo, aı ja nao da!

Outra coisa: hoje nos sabemos que a memoria humana, aimaginacao humana nao e capaz de distinguir entre o efetivo e opossıvel. A propria hipnose demonstra isso. Quando o sujeito diz,olha, fiz hipnose e voce regrediu. Bom, se eu faco hipnose e digo

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que o seu braco esta queimado, ele aparece queimado. Encosto odedo e digo que encostei o cigarro e voce fica queimado como seeu tivesse encostado o cigarro. Isto quer dizer que a sua memoriae imaginacao, que continuam alertas durante a hipnose, nao distin-guem entre o efetivo e o possıvel. Mas elas nao distinguem entreo efetivo e o possıvel no presente, muito menos no passado. Por-tanto, se voce nao distingue agora entre o que aconteceu e o queapenas foi narrado, no passado tambem nao.

Ora, qualquer hipnose do tipo que faz regressao de memoria jaesta mentindo neste ato, ou ele nao sabe o que e hipnose. Se aregressao e sob hipnose, entao nao ha distincao entre o real e opossıvel no presente. Qualquer hipnologo sabe disso aı. Quandoele se refere ao passado ele estaria se referindo a realidade e naoapenas ao meramente possıvel. O hipnologo tem obrigacao de sa-ber disso. Por exemplo, eu fecho os olhos e vejo que estou numaviao e o aviao esta caindo, isto em 1943, na Segunda Guerra Mun-dial. Eu estava la lutando na guerra e o aviao caiu. Se eu vejo issonitidamente na regressao hipnotica, isso pode significar ou que euvivi realmente isso, ou que eu tive alguma sensacao que se ex-prime perfeitamente bem com essa imagem da queda do aviao,por exemplo, eu posso ter caıdo da cama em 1948. E essa e a fa-mosa descoberta do Dr. William Sargent(?), que e um hipnologo,e a recordacao de um evento traumatico que provoca a descarga,a catarse e a ab-reacao(?) que nem sempre e a recordacao de umevento acontecido mas ele e apenas um analogo. As vezes, sol-dados da infantaria que tinham recordado estarem caindo de umaviao, e ele dizia, “Nao, voce nao caiu do aviao! Foi uma bombaque explodiu do seu lado! Voce nao caiu de aviao nenhum, voce ja-mais esteve la, voce e soldado de infantaria!...”; pode ser do aviaocaindo em cima dele, isto e outra coisa.

Entao, acontecia isto, aviador que sonhava que o navio es-tava afundando, ou seja, e um analogo que expressa uma emocao

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real, e nao o acontecimento real. Mesmo porque, se fosse umarecordacao real, ela teria que obedecer a mesma espaco- tempo-ralidade do acontecimento, ou seja, para voce recordar um acon-tecimento que durou meia hora voce teria que recordar durantemeia hora. Claro que isso nao existe porque a memoria sintetiza.Se ela sintetiza, ela abstrai, e na hora que ela abstrai a imagemnao e exatamente o que foi; quer dizer que a imaginacao que voceguarda nunca corresponde exatamente ao complexo de sensacoesque voce teve mas apenas a um resumo dos pontos que lhe pa-recem significativos porque sintonizam com todo o resto. Ora, sevoce pode aumentar ou diminuir recordacoes, tambem pode mudare produzir um analogo; por exemplo, um cachorro que te mordeuquando voce era pequeno e voce recorda nitidamente de um touroquerendo te chifrar.

Voce nao conversa(?) a memoria literal de nada do que te acon-teceu, a memoria trabalha, e ativa, ela nao e um registro passivo,ou seja, primeiro ela seleciona, separa, e eu digo, ora, se voce serecorda dos eventos traumaticos, por que voce nao se recorda doseventos inocuos? Dias e dias e nao aconteceu porra nenhuma! Istoquer dizer que uma parte das suas recordacoes vai ser mais ou me-nos o que de fato se passou, e a outra parte que parece igualmenteverossımil nao aconteceu mas poderia ter acontecido tambem eassim essas duas partes sao indiscernıveis desde dentro. Quer di-zer que analisando aquelas imagens voce nao saberia quais saoverdadeiras ou falsas, voce teria que referir a um outro tipo de re-gistro. Esse e o famoso episodio do Jean Piaget, que lembravaque ele, quando pequenininho, saindo com a empregada, eles se-rem assaltados, e ele via o ladrao pegando o revolver, a empregadagritando, ele via tudo isso e daı, quando adulto, ele encontrou essamulher que tinha sido a empregada, e ele perguntou, “Voce se lem-bra daquela vez que nos fomos passear e fomos assaltados?”, e elacomecou a rir, “Nos nao fomos assaltados! Eu fui e encontrar com

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o meu namorado e chegando em casa eu inventei essa estoria paracontar para a sua mae!” Entao, aquilo que era uma recordacaoauditiva se transformou numa recordacao vivida, sem nenhumadiferenca de uma recordacao real. Analisando a recordacao dele,se ele descrevesse a cena do ladrao, etc, etc, voce nao saberia seela e verdadeira ou nao, voce ...(?) um outro registro, porque elae igualmente verossımil, a real e igualzinha a imaginada, porquepara a imaginacao so existe imagem. O conceito de real surge deuma avaliacao crıtica que voce faz posteriormente.

Ora, voce nao pode ter recordacoes que sejam reais e ao mesmotempo que falseiem a situacao? Isso nao acontece? Por exem-plo, quando voce tem uma determinada emocao e voce interpretaa situacao em funcao da emocao. Quando voce encontra uma pes-soa que e muito sua amiga, etc, e o sujeito esta muito preocupadoe ele faz pensar em voce. Voce pensa que ele tem algo contravoce e voce sente isso. A recordacao sera real e a interpretacao ecompletamente falsa. Portanto, o que voce sente do que voce venao indica nada, nada, nada, a respeito do que aconteceu, porquea veracidade ou falsidade nao esta no nıvel da imagem ou do sen-timento. O juızo sobre a realidade, sobre veracidade ou falsidadenao pode ser feito so com base na imagem. Isto e muito simples,por exemplo, se eu te mostro aqui um desenho de uma pessoa, essedesenho esta verdadeiro ou falso? O que voce vai me responder?Eu digo, “Eu nao sei, eu nunca vi essa pessoa...”, nao e? Entao,voce precisaria comparar um registro com um outro registro parapoder fazer a crıtica.

Uma imagem ou um complexo de imagens, coerentes, analisadoem si mesmo nao e nem verdadeiro nem falso, e obvio! Agora, porexemplo, se um soldado de infantaria sonha que ele esta caindo deuma aviao, que o aviao dele foi bombardeado e ele recorda isso,bom, como e que eu vou saber se e verdadeiro ou falso se eu naotenho o registro, a folha de registro dele que diz la que ele e de

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infantaria? Eu, comparando um registro com um outro, digo, ora,se isso conservou da memoria dele, pode ter sido conservado namemoria do Exercito tambem de algum modo. Entao eu vou la noarquivo, que e a memoria do Exercito, e vejo que esse soldado eda infantaria e jamais esteve num aviao, e aı eu digo que e falsa,mas a propria imagem e fechada em si mesma, nao tem por ondevoce pegar a imagem e dizer que ela e verdadeira ou falsa, porquetoda imagem e imagem de alguma coisa.

Aqui, como na dialetica, e o confronto que te da a veracidadeou falsidade, e o confronto dos varios registros, e a referencia dosregistros aos princıpios logicos. A nocao que nos temos de veraci-dade esta intimamente ligada a nocao de coerencia no mundo, queforma um mundo so. Nos vivemos todos dentro do mesmo mundo.A propria unidade do ser e o que fundamenta a propria nocao deverdade. Se eu estou aqui falando dentro de um determinado uni-verso, e voce esta num outro onde vigoram outras leis, bom, entaonunca vai dar para voce verificar se o que eu falei e verdadeiro oufalso.

Isto quer dizer que a nocao de veracidade ...(?) coesao do realsao todos a mesma nocao. Entao e confrontado um registro comum outro registro e vendo a coesao ou falta de coesao deles e quevoce pode ter uma nocao mais aproximada ou menos aproximadae dizer se ela e verdadeira ou falsa. Por exemplo, experimenteconferir as suas recordacoes de infancia com as recordacoes deoutras pessoas que estavam ali presentes; voce vai ver que e di-ferente com que outras pessoas observam, ou seja, coisas que lhepareceram enormemente grandes, para outras sao enormementepequenas. Voce ja experimentou visitar a casa onde voce morouna sua infancia e voce ve como ela encolheu? Eu me lembro de tercaıdo de um cavalo quando eu era crianca, e o cavalo — olha! —nao acabava mais. Devia ser um pangare ridıculo, mas visto daquide baixo ele era muito grande. Agora, qual dessas duas imagens

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era verdadeira? Somente a comparacao das duas e que vai ressal-tar. Eu nao posso dizer que a minha de agora e verdadeira e aquelaera falsa. Aquela era a que eu tinha em funcao do meu tamanho,agora eu tenho um outro tamanho, entao voce reconstroi o sistemaem outras proporcoes e esse sistema e verdadeiro, nao a imagemem si mesma.

Entao, se voce fecha os olhos e ve voce caindo num vulcao,como e que nos vamos saber se essa imagem era verdadeira oufalsa? Nos precisamos confrontar com o fato de que voce estaaqui, mas como voce caiu num vulcao e se eu estou vendo voceaqui agora? Se voce tivesse caıdo la voce estaria torradinho!...Mas, e se eu nao tenho essa outra imagem de voce aqui e agora,como e que eu vou conferir? Quer dizer, a veracidade tem sem-pre esse confronto. Se nao tem confronto com a possibilidade doreal voce nao pode saber se aquilo ocorreu. Assim, na hora queo sujeito fala assim, “O morto falou”, ele ja sugere o confronto aıporque ele ja estabeleceu uma relacao, nao e a imagem solta, eleestabeleceu uma relacao entre dois planos, entao isso aı permiteuma discussao.

As imagens recordadas sob hipnose, em si mesmas, nao da paravoce saber se elas sao verdadeiras ou falsas. Uma imagem e ver-dadeira ou falsa em relacao a um determinado objeto do qual vocetenha outras imagens de modo que voce possa conferir. Por exem-plo, para um desenho ser fidedigno ou nao e preciso que nos tenha-mos uma outra imagem sua, nao e? Um sujeito faz o desenho doMarcelo, e eu digo — epa! –, mas eu ja vi o Marcelo um montaode vezes, ou seja, eu tenho cinquenta imagens com as quais euposso conferir essa e vejo que nao bate. Voce precisaria ter outrasimagens que voce pesasse o valor respectivo de uma em face daoutra e da outra em face de uma, para voce chegar, vamos dizer, auma probabilidade razoavel. No caso da regressao por memoria,nos podemos confrontar a alegacao da regressao, que e feita pelo

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hipnologo, com a alegacao feita pela mesmo hipnologo e que afalsa queimadura produz uma lesao real. E ele mesmo quem dizas duas coisas. Mas se voce pode produzir lesoes fısicas atraves dapalavra, atraves da inducao, por que voce nao pode produzir falsasrecordacoes? E muito mais facil...

Entao, isso quer dizer que qualquer hipnologo que afirme acre-ditar na realidade historica das narrativas obtidas sob regressao,ele esta mentindo, ou entao ele tem dois cerebros, um que e ca-paz de produzir lesoes atraves da palavra, e outro que ao produzirrecordacoes nao influencia o paciente de jeito nenhum e so cons-tata a realidade da narrativa.

Em muitas das questoes voce pode chegar a uma certeza sobrea possibilidade e a impossibilidade. Quando voce ve possibilidadeentao nao vale a pena investigar por aı. O que nao quer dizer que,voce, fechando a possibilidade, ela saiba o que e, entao a perguntada Heloısa, “Bom, mas se nao e isto, o que e?”, eu digo, eu tambemnao sei, mas eu sei que na hora que voce exclui uma possibilidade,eu ja teria feito uma grande economia; por exemplo, um sujeitoque chega numa universidade com uma proposta de investigacaodo impossıvel voce ja diz nao, verba para isso nao sai. Poderiaservir para isso. Nao precisa de investigacao cientıfica para isso,basta o conceito mesmo da coisa.

Agora, tudo isso nao pode se feito com espırito erıstico, porquesenao voce ja rejeita a coisa na primeira, “Ah!, e absurdo!”, masabsurdo por que? Por que eu nao posso tentar pensar o absurdopara ver se ele e absurdo mesmo? As vezes nao e! O sujeito podevir com uma teoria estapafurdia e voce ve que ela tem fundamento.Entao o negocio e admitir ate mesmo a possibilidade que um mortofale a um gravador para ver se essa possibilidade se fundamenta ounao.

O melhor argumento do mundo seria voce nao ter opiniao sobrenada. Apaga tudo, eu vou fazer tudo de novo. Agora, numa es-

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fera pratica, nao e? Dito de outro modo, voce nao vai ter opiniaosobre nada que nao e da sua conta. Nada que voce nao possa de-cidir pessoalmente voce vai ter opiniao, ate segunda ordem. Sobreaquilo que voce pode decidir, sobre orcamento domestico, sobre aeducacao do seu filho, entao voce continua tendo opiniao; agora,saber se os mortos falam ou nao, para que ter opiniao?

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16 de junho de 1993

[ intervalo. Olavo retorna ao texto do Husserl ]Todo este texto do Husserl parte do princıpio de que existe uma

crenca na veracidade da Ciencia, que existe o conhecimento daverdade.

Se e assim, a questao da natureza da Logica significa que elaconsiste em esclarecer qual e a natureza desse conhecimento daverdade, quer dizer, por que o pensamento logico permite atingir averdade? E uma das respostas que existem aı sera chamada a res-posta psicologista, onde o pensamento atinge a verdade quando elefunciona de acordo com certas leis, que sao leis que determinam ocurso real do pensamento.

Existe um conjunto de leis psicologicas que definem ascondicoes do pensamento verdadeiro. E como se dissesse, umpensamento para ser verdadeiro precisa ser pensado de tal ou qualmaneira, ou segundo uma determinada ordem, ou segundo umadeterminada sequencia causal. Essa hipotese psicologista e justa-mente isto aqui que nos estamos investigando com este texto.

22. As leis do pensamento como supostas leis naturais que cau-sam o pensamento racional em atuacao isolada

O proprio tıtulo do paragrafo e muito interessante. Se nospudessemos descobrir quais sao as condicoes que causam o pen-samento verdadeiro nos poderıamos dominar o pensamento verda-deiro como nos dominamos qualquer outro processo natural, p.e.,

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quando nos sabemos as condicoes em que se da tal ou qual reacaoquımica e por isso, conhecendo as condicoes em que se da tal ouqual reacao quımica e por isso, conhecendo as causas nos podemosproduzir essa reacao quımica.

Se a veracidade do pensamento dependesse de leis naturais,entao nos poderıamos provocar o pensamento verdadeiro colo-cando em acao as causas naturais que o produzem. Vejam queconsequencia terrıvel, nao e? Seria muito facil, na verdade.

Ora, mas as leis naturais, ou elas funcionam de maneira abso-luta, ou de maneira probabilıstica. Entao vamos supor que fossede maneira probabilıstica. Isso significa que nos poderıamos deantemao calcular a probabilidade do acerto em qualquer questaoque se colocasse.

P.e., nos pegamos aqui um grupo de 30 pessoas, colocamos es-sas leis naturais em acao e elas encontrarao a verdade com x% deprobabilidade. Porem, se eu posso fazer esse calculo agora, euposso fazer esse calculo com relacao a quaisquer outras questoesfuturas.

Isso quer dizer que eu ja poderia ate mesmo conhecer a proba-bilidade do conhecimento da verdade em qualquer questao que euignoro completamente. Da para perceber que isso e um absurdo,nao e?

Nos vamos ver, nao a consequencia, mas a propria estruturalogica da proposta. Vamos la.

Este e tambem o momento de tomar posicao frente a uma difun-dida concepcao das leis logicas, que define o reto pensar por suaacomodacao a certas leis do pensamento. Sendo as leis do pen-samento leis naturais que caracterizam a ındole propria do nossoespırito, a essencia da acomodacao, que define o reto pensar, re-sidiria na atuacao pura (ou nao alterada por nenhum outro influxopsıquico como o habito, as inclinacoes, a tradicao) das ditas leis.

Isto e, existiria um pensar logico do pensar natural. Tudo seria

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uma questao de deixar o pensamento seguir o seu curso natural.Nao cortar esse curso natural. O raciocınio logico, a sequenciadedutiva, seria por si mesma uma lei natural. O pensamento senao for alterado por fatores externos ele segue esse curso natural.

Exporemos somente uma dentre as graves consequencias destateoria. As leis do pensamento, consideradas como leis causais sopoderiam aparecer na forma de probabilidade.

Claro, se fosse leis naturais. Mas nos so conhecemos leis natu-rais por inducao, porque nos vemos que certas sequencias de acon-tecimentos se dao de acordo com uma certa ordem e uma certaconexao, num numero significativo de casos, e daı nos induzimosuma lei.

Entao, toda lei natural e uma expressao de uma probabilidadedelimitada dentro de um campo, ou seja, dentro desse campo aprobabilidade que tal ou qual coisa aconteca e x. Nao existenenhuma lei natural que possa ser dita absoluta. Nenhuma, ne-nhuma!

Ela esta delimitada, primeiro por um determinado campo, e se-gundo, esta limitado por excecoes — todos os campos se interpe-netram de algum modo — e nao existe nenhuma lei natural queseja inflexıvel como leis matematicas, porque embora sejam ex-pressas matematicamente elas tem que ser expressas sob a formade probabilidade, que e uma especie de incerteza limitada.

Se as leis da Logica fossem leis naturais do pensamento elas te-riam que ter sido obtidas por inducao, e sendo obtidas por inducaoseriam expressadas probabilisticamente.

De acordo com isto, nao se poderia julgar com certeza sobre aretidao de nenhuma afirmacao; pois se as formas de toda retidaosao meramente provaveis, elas imprimirao necessariamente a todoconhecimento o selo da mera probabilidade.

Estarıamos, pois, ante o probabilismo mais extremo. A mesmaafirmacao de que todo saber e meramente provavel, seria so pro-

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vavelmente valida; e assim ad infinitum. Como cada novo passorebaixo um tanto o grau de probabilidade do anterior, deverıamosinquietar-nos seriamente com o valor de todo conhecimento. Porisso, podemos esperar que o grau de probabilidade das series infi-nitas tenha a todo momento o carater das “series fundamentais” deCantor, de tal modo que o valor limite definitivo seja um numeroreal ¿ 0.

Essa e a unica coisa que daria para voce saber, que o numero queexpressa a probabilidade do conhecimento e apenas um numeromaior que 0, ou seja, nao e zero.

Voce tem aqui uma verdade, mas essa e provavel, ora, essa pro-babilidade depende de que uma outra seja verdade. Essa outra,por sua vez, e verdade com uma probabilidade ainda menor, e ou-tra com uma probabilidade menor, menor, menor, entao, no fundo,no fundo, vai sobrar algo, esse algo o maximo que nos sabemos eque nao e zero, mas pode ser assim, p.e., 0,00000...001

Supondo, ainda, que nao existisse esta dificuldade, poderıamosperguntar: quando, onde, como foi provado que os atos justos dopensamento brotaram da atuacao pura destas leis?

Esse aı ainda e um outro problema. E que essas famosas leisnaturais do pensamento simplesmente nao sao conhecidas, nao seencontrou nenhuma ate hoje. A conexao de causa e efeito quemarcaria o carater de leis naturais, ela nunca foi encontrada.

P.e., quem e que diz o que que nos permite dizer o que quecausa o pensamento logico? Se as leis naturais do pensamento saoas proprias leis logicas, nos poderıamos perguntar, “Mas, por queum sujeito raciocina logicamente e outro nao?”; nao podem ser asproprias leis logicas que determinam isso. Portanto, o funciona-mento das ditas leis naturais, que seriam as leis da Logica, teriamque ser explicadas por outras leis, e essas leis ainda nao foramencontradas!?

Onde estao as analises descritivas e geneticas que nos autorizem

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a explicar os fenomenos do pensamento por duas classes de leisnaturais, de um lado, as que determinem exclusivamente o cursodaqueles processos causais que fazem surgir o pensamento logico,de outro, as que determinem o pensamento a-logico?

Algumas confusoes faceis de cometer parecem ter aberto o ca-minho a estes erros psicologistas. Em primeiro lugar, confundemas leis logicas com os juızos (no sentido de ato de julgar), istoe, confundem as leis como “conteudos dos juızos” com os juızosmesmos. Estes ultimos sao acontecimentos reais, que tem suascausas e efeitos.

P.e., quando voce afirma um princıpio de identidade, “Umacoisa e igual a ela mesma”. a identidade de uma coisa com elamesma e o conteudo do juızo, mas e o ato pelo qual voce cometeesse juızo mesmo? Quem causou foi o princıpio de identidade?

Voce diz que A = A, e aı eu pergunto, “Mas, por que que vocenesse momento intuiu e falou que A = A? Foi o fato de ser Aigual a A que causou isso?” Nao pode ser, porque antes de vocefalar, A ja era igual a A. E amanha ele vai continuar sendo, e nempor isso voce vai ficar falando isso o tempo todo, portanto, o atoque teria que ser explicado por alguma outra causa que nao temnada a ver com o conteudo do juızo.

Ora, se voce supoe que as leis logicas sao leis causais do pen-samento, voce esta supondo que e o conteudo delas que provoca ofato do juızo.

O fato de A ser igual a A faz com que voce pense que A = A,determina que voce nesse ou naquele momento pense que A = Ae nao pense em qualquer outra coisa. voce teria que pensar nisso otempo todo, nao poderia pensar em mais nada! Voce nao poderiaparar de pensar nos princıpios logicos o tempo todo!

Veja como teorias filosoficas que parecem verossımeis, quandovoce vai examinar, voce ve que e uma aberracao, uma absurdi-dade tao grande, e espanta ver que alguem tivesse podido chegar a

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pensar nisso, e no entanto chegaram!Se voce nao interpreta isso como um princıpio psicologico, uma

lei natural do pensamento, pareceria ate uma coisa razoavel emprimeira instancia, porque se voce nao aceita mais o princıpio me-tafısico da identidade voce tem que achar uma outra explicacao.Voce vai procurar nas Ciencias nas quais voce acredita, as CienciasNaturais, e aı voce pega la a Psicologia e diz que se nao e me-tafısico, deve ser psicologico.

Isso pareceu muito razoavel numa epoca onde as Ciencias Na-turais apareciam como um modelo do conhecimento verdadeiro.Porem, esse cientificismo do seculo XIX ja morreu, mas estaoacoitando um cavalo morto. O cientificismo morreu, mas o psi-cologismo continua vivo. Ele ja esta refutado enquanto teoria ci-entıfica, mas enquanto habito mental, enquanto ideologia, ele estavivo.

Portanto, nunca e demais nos vendermos esta coisa aqui; talvezo psicologismo seja o maior dos males do mundo moderno, porqueele esta na base de tudo quanto e erro. Quase parte de tudo o quevoce ve, voce le, esta a influencia do psicologismo. Tudo e voceremeter a causas psicologicas como se elas fossem a explicacao dapropria realidade.

Mas se se confunde a lei com o ato de julgar, ou seja, o idealcom o real, a lei aparece como uma potencia determinante docurso de nosso pensamento. Com facilidade muito compreensıvel,acrescenta-se, entao, uma segunda confusao, a confusao entre alei como membro do processo causal e a lei como regra deste pro-cesso.

Aı, de fato, ja e outra confusao, porque ha um processo causaldo pensamento que fez com que num certo momento voce descu-bra uma lei, mas acontece que essa lei e ela mesma a regra queestrutura esse mesmo processo.

Entao voce teria uma lei que determina para a psique humana

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a fatalidade da descoberta dessa lei. Voce tem uma lei causal queprovoca um determinado curso de pensamento o qual inclui comouma de suas etapas a descoberta dessa mesma lei. A resposta e oseguinte, “Entao, a descoberta dessa lei e fatal!”. Seria impossıvelque alguem nao a descobrisse.

Se a lei e a regra do processo causal, e ao mesmo tempo ela e umdos membros, se e ela que determina o conjunto do movimento dopensar e esse conjunto do movimento do pensar inclui como umade suas etapas a descoberta dessa mesma lei, entao essa descobertae sempre fatal, ela esta fada a ocorrer.

Isso e uma absurdidade, porque e claro que voce pode fazerum pensamento logico sobre milhoes de assuntos que nao sao aLogica. P.e., se voce comecar a fazer um raciocınio logico sobreGeometria, voce continua raciocinando sobre figuras geometricasindefinidamente, e voce nunca vai retornar isso aı para descobrirqual e a regra da estrutura logica porque o assunto nao e esse.

No caso da Logica e a regra que estrutura o processo, mas elanao e um assunto do processo, ela e a forma e nao um dos elemen-tos do processo. E como se todo pensamento fosse um pensamentosobre a Logica, e nao apenas um pensamento logico.

Imaginemos um homem ideal no qual todo pensar transcorracomo exigem as leis logicas. O fato de que transcorra assim, teranaturalmente sua explicacao em certas leis psicologicas, que regu-larao de certo modo o curso das vivencias psıquicas. As leis cau-sais, segundo as quais o pensamento transcorre necessariamente detal modo que possa justificar-se segundo as leis normais da logica,nao sao de modo algum o mesmo que estas normas. O exemploda maquina de calcular esclarece por completo a diferenca. Nadacolocara as leis aritmeticas no lugar das mecanicas para explicarfisicamente o movimento da maquina.

O cara esta confundindo o “hardware” com o “software”. Eleesta confundindo o problema com o equipamento. Hoje em dia e

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facil de voce ver isso, nao e?Mexer com computador qualquer moleque sabe, mas quantos

moleques nao lidam com computador e nao acreditam no psico-logismo? Acreditar em psicologismo e a mesma coisa que dizerque um programa de computador, por si mesmo, faz o computadorfuncionar. Ele esta confundindo informatica com eletronica!

O psicologismo e um programa abstrato, voce nao tem equipa-mento, voce nao tem tela, nao tem disco rıgido, nao tem disquete,nao tem tomada, nao tem eletricidade, nao tem nada; e um pro-grama que funciona no ar, isso seria o psicologismo! E o pro-grama que faz o computador funcionar! O programa, alem de serum conjunto de enlaces logicos, ele e dotado de energia!

Os logicos psicologistas desconhecem as essenciais e eternasdiferencas entre a lei ideal e a lei real, entre a regularidade nor-mativa e a regularidade causal, entre a necessidade logica e a real.Nao ha gradacao capaz de estabelecer termos medios entre o ideale o real.

Claro que isso dito assim a gente ve que e de uma evidenciaatroz. O problema e voce reconhecer isso quando voce esta raci-ocinando psicologisticamente. Voce ve que e uma coisa errada, ecomo aquele cara que diz que, “eu sei que eu preciso parar de be-ber, mas eu nao consigo, por isso mesmo eu vou beber para aliviaro sofrimento por nao conseguir parar de beber...”, e assim vai.

Isto aqui e um vıcio atroz, e pior do que bebida, cocaına, tudoo que voce possa imaginar. O vıcio do psicologismo talvez estejaate por tras do vıcio da embriaguez...

Toda a demencia contemporanea se (imanenta(?)) nisto aqui,porque um pensamento, que e um fato natural no homem, se ele seregra apenas pelas leis naturais que o causam, ele esta eternamentefechado dentro de si, ele nao pode alcancar uma verdade. Portanto,voce nao tem uma instancia superior que possa arbitrar se o seupensamento e verdadeiro ou nao. Voce esta preso a subjetividade

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para sempre, e esse e o drama contemporaneo.Quer dizer que o psicologismo e o pai de toda nossa demencia,

miseria, etc. Ele solapa a possibilidade de julgar um pensamento.Se o pensamento e causado pelas leis naturais e se essas mesmasleis naturais sao criterio da veracidade, entao o pensamento naopode ser de outro jeito senao daquele que ele e.

Entao, o simples fato do pensamento acontecer ja e prova deque ele e verdadeiro. Mas como qualquer pensamento acontece,voce pensa que uma coisa e quadrada e tambem, movido pelasmesmas leis naturais, voce pensa que a mesma coisa e redonda, ea lei natural que esta em acao e a mesma nos dois casos.

Isso e uma loucura, e isso esta no fundo de quase toda a Sociolo-gia contemporanea e de todas essas Ciencias Humanas, Psicologia,Economia, Antropologia, ou seja, todas as Ciencias fundamentaisnas quais nos baseamos as decisoes humanas.

Vamos supor que voce possa explicar os habitos mentais, oscriterios de veracidade, de uma determinada comunidade humanaa partir da sua vida social. Entao, tal e qual comunidade acreditaem tais ou quais verdades porque sua vida social e tal ou qual, suasinstituicoes sao tais ou quais, seus costumes sao tais ou quais, seusvalores sao tais ou quais.

Eu, por minha vez, olho isso desde este ponto de vista porqueos valores da minha comunidade sao tais ou quais, as instituicoessao tais ou quais, as normas sao tais ou quais, etc, etc. Deu paraentender?

Voce relaciona so o que e ideia ao meio social que o produz, ecomo a causa daquele pensamento foi de ordem social a validadedaquele pensamento esta, vamos dizer, dependente daquela causasocial.

Voce ve la uma comunidade humana onde as pessoas praticamregularmente, p.e., a morte dos recem-nascidos. Voce explica issoem funcao de tais ou quais necessidades que foram interpretadas

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de tal ou qual maneira por aquela sociedade, — explica funcional-mente, isso tem tal ou qual funcao dentro do conjunto. Essa funcaonao deixa de ser um fundamento racional desse procedimento.

P.e., voce ve que em Roma era comum as pessoas o bebe fora,faziam um aborto “a posteriori”, e era uma coisa normal, ninguemachava ruim, nao era imoral. Mas, tinha uma funcao economica,uma funcao quase que para a subsistencia daquele povo, eles naoaguentariam ter mais filhos.

Essa funcao que esse ato tinha para a manutencao da ordem so-cial e um fundamento racional do ato. Mais tarde voce ve que esseprocedimento e condenado. Daı voce ve que quando ele foi con-denado tambem coincidiu de que as famılias precisavam de maisbracos para a lavoura. Entao, parar de matar os bebes tambem temuma funcao, e isso passa a ser o fundamento racional dessa novaatividade.

Quer dizer que a causa ou mesmo a ocasiao, o pretexto socialdo ato, passa a ser a unica condicao legitimadora; tudo so podeser legitimado pela funcao que tem dentro de um conjunto social.Nunca da para voce saber se aquele procedimento e certo ou er-rado.

Porem, como funciona uma neurose? Numa neurose tudo naotem uma funcao? Um procedimento obsessivo, um sujeito quelava a mao o dia inteiro, tem alguma funcao dentro da economiado conjunto tambem? Como e que voce vai saber se o nego estalouco?

Se voce nao tem outro criterio para julgar a nao ser o da causaque o determinou — tudo tem causa — a causa passa a ser o fun-damento logico! E a mesma confusao.

Voce nao pode julgar nenhum ato, nenhum procedimento, ne-nhum pensamento, a nao ser pela causa que o gerou. Aı eu digo,mas, a causa que gera uma coisa nao legitima essa coisa na mesmahora!

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Eu decido matar uma pessoa. Eu mato por que? Porque eu souesquizofrenico e matando as pessoas eu me reequilibro momenta-neamente; ora, nao tem uma funcao, uma causa?

Se nao existe nenhum outro criterio logico pelo qual voce possajulgar o ato a nao ser o criterio de sua causa, o que quer que tenhacausa esta certo! E verdadeiro, esta legitimado! Daı voce tem queassistir as maiores aberracoes e dizer, “Ah!, tudo bem, tudo temcausa, tem la a sua razao de ser ...”

As pessoas confundem causa com fundamento. Isso aı acon-tece com todas as Ciencias Humanas. Nao tem uma que nao estejacontaminada com esse negocio ate o pescoco. Nao existe um in-divıduo nas Ciencias Humanas que tenha a nocao de um limiteintrınseco da propria verdade.

Voce pode pegar essa escola desse Marcel Mauss, que e umaescola muito influente no Brasil, no meio dos nossos antropologos.Ele dizia que todas as categorias logicas sao uma exteriorizacaodas instituicoes. Conforme as instituicoes, voce desenvolve taisou quais categorias logicas.

Entao, quer dizer que voce muda as instituicoes, voce muda ascategorias logicas tambem, nao e? Sim, mas isso e causa, e nao oprincıpio logico em si.

Isto e a mesma coisa que voce dizer, p.e., por que a Geometriase chama Geometria? Porque ela nasceu da Agrimensura, nao eisso? Mas, a validade dos princıpios geometricos nao dependemabsolutamente da Agrimensura, porque ele nao e um raciocınio deagrimensor.

A descoberta disso pode ter sido causada pela Agrimensura,mas em seguida, as figuras logicas tem uma relacao intrınseca,porque o agrimensor nao tem mais nada que ver com isso, e conti-nua chamando de Geometria por uma especie de saudosismo, queseria para medir a terra, mas na verdade e a Geometria quem medea terra. E um nome inadequado e ja esta superado, e que continua

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a ser usado por tradicionalismo.Se voce comeca a vincular toda verdade a causa que determinou

a sua descoberta, ou a sua evidenciacao, daı toda e qualquer coisaque tenha servido de causa a toda e qualquer descoberta passa aser o princıpio de legitimacao dessa descoberta.

O negocio da quımica do amor e um pouco isso aı, nao e? Umprocesso quımico que esta envolvido e uma coisa, e a validade, averacidade ou nao do sentimento do amor e outra completamentediferente. Se for produzido quimicamente, tudo bem. Se nao for,tambem tudo bem. O processo causal nao e legitimador. Agora,se voce reduz princıpios logicos a princıpios causais, naturais, daıacabou, porque o que quer que tenha causa esta fundamentado.

Portanto, se eu decido dar uma martelada na tua cabeca e digoque isso nao aconteceu gratuitamente mas teve uma causa, entaoesta legitimado.

Entao, e claro que voce nao pode discutir nada, nao pode con-testar nada e esta tudo certo, esta tudo da melhor maneira possıvel,no melhor dos mundos possıveis. Isso e coisa de manıaco.

Vejam, essa campanha que tem hoje pela descriminalizacao dasdrogas e fundamentada nisso. As drogas existem e as pessoas asconsomem, e isto e um motivo para que os indivıduos nao sejampresos, porque existem e tem causas sociais que nao podem serinextirpaveis, logo ...

As pessoas nao entendem que nenhum ato humano pode serlegitimado estatisticamente, porque ele depende de uma decisaomoral. As drogas serao aceitas ou rejeitadas so por nos querermos,nada nos obriga a isso. Nada nos obriga a consumir drogas e nadanos obriga a deixar de consumi-las. E uma decisao livre, de ordemnormativa.

Entao voce tem aqui um princıpio superior a esse caso concretopara poder julga-lo, porque se voce vai se ater apenas ao ato con-creto voce so pode estudar as causas.

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Entao, existem causas que impelem a usar drogas e causas queimpelem a nao usar drogas, voce soma e voce vai chegar a umresultado de que x% da populacao eternamente consumira drogas.Como nos nao podemos acabar com isso entao esta legitimado.Mas isso tambem deveria ser aplicado a criminalidade, ao estupro,etc, etc. Sempre havera estupradores e as causas do estupro saoinextirpaveis. A nao ser que voce extirpe todos os penis...

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17 de junho de 1993

[ voltando ao Husserl ]23. Uma terceira consequencia do psicologismo e sua refutacaoSe o conhecimento das leis logicas tivesse sua fonte nos fatos

psicologicos, se as leis logicas fossem, por exemplo, aplicacoesnormativas de certos fatos psicologicos, possuiriam necessaria-mente um conteudo psicologico num duplo sentido: seriam leispara os fatos psıquicos e suporiam ou implicariam a existenciadestes fatos.

E evidente. Se essas leis tivessem sido obtidas por inducao apartir dos fatos psicologicos, e claro que esses fatos teriam queexistir. Portanto, se nao existissem os fatos psicologicos, muitomenos poderiam existir as leis logicas que deles foram derivadas.

Isto porem e falso. Nenhuma lei logica implica uma matter offact, nem sequer a existencia de representacoes, ou de juızos, oude outros fenomenos do conhecimento.

Vejam, quando voce diz que 2 + 2 = 4, isso supoe que, poracaso, alguem que pense que 2 + 2 = 4? Vamos supor, antes queexistisse qualquer ser pensante capaz de pensar que 2 + 2 = 4,2 + 2 dava 5?

Nao esquecam que a Aritmetica elementar e identica a Logica.O que vale para a Aritmetica elementar, vale para a Logica. Por-tanto, se as leis que regem essas quantidades da Aritmetica ele-mentar nao dependem de que ninguem as pense, ou seja, nao de-

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pendem de que aconteca nenhum fato psicologico, e evidente queelas nao poderiam ser deduzidas de fatos psicologicos, que inclu-sive lhes sao posteriores.

Nenhuma lei logica e uma lei para os fatos da vida psıquica.O que e passıvel de ser regulado seriam, entao, fatos psıquicos e

a existencia destes fatos seria uma hipotese da fundamentacao dasregras e estaria incluıda no conteudo das mesmas.

Claro, porque a existencia de fatos psıquicos deveria estar in-cluıda como uma dessas leis. Do mesmo modo que ha lei que dizque A = A, tem que ter uma outra lei que diz que tem que existirfatos psıquicos necessariamente.

Mas nem uma unica lei do raciocınio responde a este tipo. Ondeestao as formas do silogismo que permitem deduzir de uma lei, umfato?

Este e o ponto. Nao apenas as leis da logica nao explicam ne-nhum fato de ordem psicologica, como de outro lado, nenhumadelas pode ser origem de um fato, ou pode ser fundamento de umfato. Isto quer dizer que de nenhuma lei logica voce pode deduzirque o fato tem que acontecer, porque todas as leis sao hipoteticas.

Quando voce diz que A = A, isso nao implica que tenha queexistir um A. Se voce fizer a sequencia toda das leis logicas, todaa estrutura da Logica, voce nao tem um unico fato que voce possadeduzir daı como necessario.

Assim como em nenhum calculo aritmetico, qualquer que seja,voce poderia deduzir a existencia de objetos que se regrassem poresses calculos. P.e., se voce diz que 2 + 2 = 4, isto nao implicaque tenha que existir, p.e., 4 laranjas, ou 4 elefantes, ou 4 quaisquercoisas. Se nos pudessemos, das leis da Logica, deduzir os fatos,entao, dos calculos aritmeticos elementares nos deverıamos ter quepoder deduzir a existencia de coisas naquela quantidade.

Estao vendo como isso e absolutamente impossıvel sob todosos lados que voce examine? Ele concedeu a essa hipotese todas

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as possibilidades de ser verdadeira. Todas, todas, todas, as maisremotas!

Ontem, o que nos vimos foi que a hipotese psicologista con-funde o conteudo do juızo com o ato de um juızo ser pensado ouproferido. Aqui, ele nao esta falando do ato do juızo, ele esta fa-lando das coisas mesmas a que se refere. Ele esta falando da lei edo objeto da lei. Ele esta dizendo simplesmente que nenhuma leilogica tem por objeto, o fato.

Se as leis logicas sao leis psicologicas, foram obtidas porinducao, obtidas a partir da observacao dos fatos psicologicos.Ora, como e que voce poderia tirar por inducao uma lei desdecertos fatos, se esses fatos nao existissem?

Portanto, se existem leis psicologicas induzidas a partir dos fa-tos e porque os fatos existem. Mais ainda, essas leis teriam quedar fundamentos dos mesmos fatos. Portanto, a existencia dosfatos deveria estar afirmada por uma dessas leis, ou pelo menos,pressupostos nelas.

No entanto, nos vimos que isso nao se da com nenhuma leilogica; todas que voce examine, voce vera que delas nao se podededuzir nunca esse ou aquele fato, e alias, nenhum fato. E sovoce experimentar, voce pega qualquer lei logica, ou qualquer si-logismo que voce faca, qualquer um, referente a qualquer coisa, evoce ve que deles voce nunca pode deduzir a existencia do fato emquestao, mesmo que o silogismo se refira a fatos.

Quando voce diz, “Socrates e homem; todo homem e mortal;logo, Socrates e mortal”, isso aı implica a existencia de Socrates?E a existencia de homem? Entao voce esta falando das essencias,e nao das existencias. Voce diz o que que o homem e, indepen-dente dele existir ou nao. E isto e assim a respeito de todas as leislogicas, assim como de todos os calculos da aritmetica elementar.

A aritmetica elementar inteirinha nao supoe que exista nenhumfato que seja regrado por ela. Quando voce diz, “2 + 2 = 4”;

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vamos supor que so tivessem existido em toda a historia humana,3 laranjas, isso nao faria mais nenhuma diferenca para a aritmetica.

Se para o caso anterior havia uma confusao entre o conteudo dojuızo e o ato proferido, ou pensado, aqui nos estamos vendo umaconfusao entre a lei e o seu objeto.

Nao se deve objetar que em nenhuma parte do mundo se tenhapodido chegar a falar das leis logicas se nunca tivessemos tidorepresentacoes e juızos em vivencias atuais. Apenas e necessariodizer que esta consequencia nao e tirada da lei, mas sim do ato decompreensao e de afirmacao da lei.

Ou seja, pode surgir a objecao de que se nunca tivessemos tidoconhecimento de nenhum fato, tambem nao terıamos chegado aconhecer as leis logicas. Pode surgir esta objecao, porem estaobjecao nao objeta nada, porque ela nao diz respeito a lei masas condicoes de nos chegarmos a ter o conhecimento dela.

Seria a mesma coisa que dizer que se nao tivesse havido laranjasninguem poderia ter contado as laranjas e chegado a conclusao deque 2 laranjas + 2 laranjas sao 4 laranjas.

As laranjas sao um instrumento pelo qual voce tomou conheci-mento de uma relacao quantitativa entre laranjas e laranjas; seriaoutra coisa. As condicoes que permitem o conhecimento de algonada tem a ver com este algo.

As hipoteses ou os ingredientes psicologicos da afirmacao deuma lei nao devem confundir-se com os elementos logicos de seuconteudo.

As “leis empıricas” tem eo ipso (por isso mesmo) um conteudode fatos. Como leis impropriamente denominadas, somente afir-mam, dizendo a grosso modo, que diante de uma experiencia re-grada podem ocorrer certas coexistencias ou sucessoes em certascircunstancias, ou que, segundo estas, ocorrem com maior ou me-nor probabilidade. Isto implica a existencia efetiva de tais cir-cunstancias, de tais coexistencias e sucessoes. Mas tampouco as

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leis exatas das ciencias empıricas deixam de ter um conteudo defatos.

Por serem leis empıricas sao leis pela experiencia. Experienciade que? Experiencia de fatos. O fato que nao acontece nao podeser objeto de experiencia. Se e uma lei empırica significa que elafoi tirada da experiencia de determinados fatos, portanto toda leiempırica tem um conteudo referente a fatos.

[ Olavo pede que se repita o texto ]Como leis impropriamente denominadas, somente afirmam, di-

zendo a grosso modo, que diante de uma experiencia regradapodem ocorrer certas coexistencias ou sucessoes em certas cir-cunstancias, ou que, segundo estas, ocorrem com maior ou menorprobabilidade.

Toda e qualquer lei cientıfica se refere a coexistencia ou su-cessao. Coisas que acontecem ao mesmo tempo, que sao conco-mitantes, ou que sao sucessivas, seja por um enlace causal, sejapor um outro enlace qualquer. Toda lei empırica, e inclui quais-quer Ciencias.

Qualquer Ciencia que se refira a fatos, que nao sejam Cienciaspuramente formais como, p.e., a Logica ou a Matematica, todasas leis que elas formulam sao referentes ou a fatos coexistentes,concomitantes, ou entao a fatos de ordem sucessiva. Essas leisenlacam os fatos numa coexistencia ou numa ordem de sucessao.P.e., no seguinte sentido: onde ha tais ou quais condicoes surgemtais ou quais fatos concomitantemente ou sucessivamente.

Exemplo de uma lei cientıfica qualquer: lei da gravitacao,materia atrai materia, etc, o que e isso aı? E uma concomitancia,nao e? Onde tem determinados fatos vamos ter materia aqui, e temmateria do outro lado, entao acontece tal relacao. Toda e qualquerlei cientıfica e sempre assim. De fato e um sistema muito simples,nao e?

Os fatos sao fatos que acontecem no tempo e no espaco. O fato

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e aquilo que tem existencia cronotopica (espaco- temporal). Seaquilo que nao existe em parte alguma e em tempo algum, nao efato. A propria definicao de fato e aquilo que e cronotopicamente.

Voce pode, p.e., fazer a abstracao do tempo, mas nao do espaco;ou do espaco, mas nao do tempo; mas a abstracao dos dois vocenao pode fazer, porque aquilo que nao acontece em lugar nenhume nunca acontece, isto e, nao acontece em tempo algum, simples-mente nao acontece de modo algum, portanto nao e fato.

Isto implica a existencia efetiva de tais circunstancias, de taiscoexistencias e sucessoes.

Claro, porque se a coexistencia nao existe e a sucessao tambemnao, entao a lei e falsa. Se eu afirmo uma coexistencia, mas ela naoacontece em parte alguma e nem em tempo algum, entao minha leie falsa!

Se eu digo assim, p.e., existe uma correlacao entre o horario daspartidas dos avioes e o numero de nascimento de pessoas. Daı eufaco a estatıstica e vejo que isso nao acontece realmente em partealguma, entao a lei e falsa, nao e?

As leis astrologicas sao um outro exemplo. Se eu digo, “As pes-soas que tem Saturno na Casa 10 sao ambiciosas”, eu estou esta-belecendo uma relacao probabilıstica e vejo que ela nao acontece,porque as pessoas sao tao ambiciosas quanto as outras, ou tem taopouca ambicao quanto as outras, portanto isso nao acontece, nemaqui, nem la, nem em parte alguma e nunca acontece. Esta relacaonao se verifica. Portanto, a lei e falsa.

Se a lei e verdadeira e porque ela corresponde, ou uma sucessaoreal, ou a uma coexistencia real, ou a uma coexistencia e sucessoesreais. Portanto, a veracidade da lei cientıfica consiste na existenciados fatos respectivos.

Mas tampouco as leis exatas das ciencias empıricas deixam deter um conteudo de fatos.

Claro, se a lei for formulada matematicamente, ela ainda assim

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se refere a um conteudo de fatos. P.e., nos temos que E = mc2. Oque e energia? E uma relacao perfeitamente quantificada. Entao,o fato dessa lei ser exata nao a torna menos uma lei de fatos.

Assim, todas as leis das ciencias exatas sobre fatos sao, semduvida, autenticas leis; mas consideradas desde o ponto devista epistemologico, sao apenas ficcoes idealizadoras, ainda queficcoes cum fundamento in re (com fundamentos nas coisas). Es-tas ficcoes cumprem a missao de tornar possıveis as cienciasteoreticas, como os ideais mais ajustados e proximos a reali-dade; ou seja, de realizar o supremo objetivo teoretico de todainvestigacao cientıfica de fatos, o ideal da teoria explicativa, daunidade pelas leis.

Qualquer Ciencia empırica, qualquer Ciencia de fatos, visa aencadear as sucessoes ou coexistencias como se fosse uma cadeialogica.

Dados os fatos observados, se nos conseguirmos encadea-lossegundo uma relacao necessaria como se fossem sentencas de umaserie silogıstica, sentencas de uma cadeia dedutiva, aı realizamoso objetivo da Ciencia empırica.

Se os fatos pudessem estar tao bem encadeados como estao aspartes do silogismo, estaria realizada a Ciencia, de modo que, par-tindo dos princıpios dessa Ciencia nos tivessemos deduzido de an-temao os fatos, ou seja, prever. Nao e esse o objetivo de todaCiencia?

Uma Ciencia pode prever porque a estrutura logica e sempre amesma, nao e?

[ Olavo faz um desenho no quadro ]

+-- Princıpios

+---------+ +------------+ +------------+ +------------+

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| um fato +----| outro fato +----| outro fato +- ... -| outro fato +- ...

+---------+ +------------+ +------------+ +------------+

Entao voce tem la as premissas e tem as sentencas. So queno caso do discurso cientıfico ao inves de essas varias sentencasserem simplesmente ideias que voce teve, elas expressam fatosobservados.

Entao voce coloca um fato neste ponto da cadeia, outro fatoaqui, outro aqui, e eles estao encadeados dedutivamente exata-mente como se fosse um calculo matematico ou como se fosseuma sequencia silogıstica.

Ora, se e assim, voce possuindo os princıpios, e 2 ou 3 fatosiniciais, voce poderia deduzir o resto. Isto quer dizer que no idealcientıfico os fatos perdem a sua gratuidade, e aı comecam a serencadeados dentro de sequencias logicas. Isso e o que toda Cienciabusca fazer.

Claro que a Ciencia que mais se aproxima desse ideal e a Fısicateorica. Porem, e claro que nenhuma Ciencia alcanca esse ideal,porque e um ideal apenas, e esse ideal e dado pela propria Logica.

A Logica e um ideal pelo qual a Ciencia se pauta. NenhumaCiencia consegue encadear os seus fatos tao perfeitamente bemporque sempre faltam fatos, ou voce nao observou um outro, ouum outro campo de fenomenos se mistura a aquele que voce estaobservando, em suma, nunca voce chega a essa perfeicao.

Por isso mesmo e que ele diz que as leis cientıficas sao ficcoesidealizadoras. Uma Ciencia fısica descreve o mundo como seele fosse uma sequencia de silogismos. Como se..., prestem bematencao. E busca uma aproximacao, uma exatidao suficiente parapoder orientar a experiencia e fundamentar a tecnica e isso e tudo.

Mas e claro que nenhuma sequencia, ordem, de fatos pode es-tar tao perfeitamente bem encadeadas dentro de si mesma como

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a sequencia de silogismos, porque isso seria contraditorio com apropria definicao de fato, porque fato e aquele que acontece emalgum momento e em algum lugar.

Se os fatos pudessem estar tao bem encadeados uns com os ou-tros como estao as sequencias no silogismo, entao a necessidadedesses fatos ja esta dada de antemao, e como se voce dissesse, “to-dos os fatos teriam que acontecer de uma vez para sempre”; naoexistiria a propria sequencia temporal.

Toda Ciencia busca os invariantes. Invariantes sao relacoesrepetıveis. Na hora que voce expressa uma lei cientıfica, p.e.,materia atrai materia na razao direta das massas, voce esta falandode uma relacao invariante, ou seja, ela se repetira igualzinha emtodos os fatos da mesma natureza.

Ora, esses invariantes sao, por sua propria natureza, apenasaproximativos porque nao ha a mais mınima condicao de voce ob-serva-los ate a ultima exatidao. Se for inteiramente exato eu teriaque dizer que esse fato coincide inteiramente com a unidade demedida com que eu o meco. Ele e a propria unidade de medida!Ora, a unidade de medida, por sua propria definicao, e meramenteideal.

Nos sistemas de medicoes se observa isso, nao pode haver ne-nhuma coisa que meca exatamente 1 centımetro ou 1 milımetro, anao ser o proprio centımetro ou o milımetro. Todas as outras coi-sas, por mais identicas que sejam, medem aproximadamente. Pormais exata que seja! Pela propria natureza da coisa a ser medida,ela nao e uma medida, ela e uma coisa.

P.e., 1 centımetro mede apenas 1 centımetro de extensao.Agora, quanto mede o centımetro, de espessura? Quanto medeo centımetro, na duracao? Quanto mede o centımetro, na inten-sidade? O centımetro so mede 1 centımetro na extensao; ele e apura extensao.

Existe alguma coisa que seja pura extensao? Mesmo que na

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extensao ela medisse exatamente 1 centımetro, na espessura elamediria alguma outra coisa, na intensidade mediria alguma outracoisa, e assim por diante.

Nenhum objeto pode coincidir com a unidade de medida a naoser que ele seja a propria unidade de medida.

Outra coisa, unidades de medida sao separaveis, destacaveis.P.e., de um objeto nos podemos considerar somente a sua extensaoe nao a sua espessura, ou largura, mas certamente alguma espes-sura ou largura ele deve ter, a qual fica completamente a margemda medida de extensao.

Se na simples medicao ja e assim, voce imagine nas leis ci-entıficas mais abrangentes. Nao ha exatamente no mundo nadaque se passe tal e qual diz qualquer lei cientıfica. P.e., os obje-tos que se atraem uns aos outros na razao direta das massas, etc,etc, como dizia Newton, ao mesmo tempo em que se passa isso,se passa, p.e., transformacoes fısicas neles, e que nao estao abran-gidas por essas leis, e que podem, p.e., mudar o seu tamanho, ese forem, p.e., seres vivos, por questao de horas as massas delesaumentam e diminuem.

Portanto, nos dirıamos assim, a lei da gravidade, como qual-quer outra lei, descreve o que se passaria entre objetos dotados demassa caso essas massas permanecessem absolutamente inaltera-das durante o tempo de entrada em acao dessa mesma lei. O quejamais acontece.

Portanto, qualquer Ciencia recorta o campo do seu fenomeno,artificialmente. E dentro desse campo ela ve determina-das relacoes que se aproximam dos fatos observados, umaaproximacao ideal, mais ou menos no sentido daquela serie deCantor (um numero maior do que 0). Mas nunca vai dar 0. Odesajuste entre a lei e o fato nunca vai ser 0, por definicao. E naopode haver identidade entre fato e lei, porque a lei se aplica a todosos fatos, e cada fato e so um.

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So se houvesse um fato que adquirisse por si mesmo plena va-lidade de lei universal e absorvesse em si todos os demais fatos,entao seria um fato unico. Isto tambem nao existe, e claro.

Agora, e mais do que evidente que quem nao pensou essas coi-sas aqui nao pode entender direito o que que e uma Ciencia. Naovai chegar a entender jamais.

[ Stella: a perplexidade e saber: como e que funciona? ]Porque ha uma aproximacao suficiente. Funciona dentro de um

campo considerado. Se voce amplia o campo aquilo nao funcionamais. P.e., quando voce vai da Fısica Newtoniana para a Fısicasub-atomica. Para a Fısica atomica ja nao funciona mais, para aFısica sub-atomica muito menos ainda, porque e uma outra esfera.E uma esfera que voce nao ve, que voce nao toca e que nas suasrelacoes macroscopicas com o mundo exterior ela nao interfere,mas nao e menos real do que a Fısica newtoniana.

Uma lei empırica abrange fatos que acontecem dentro de umcampo definido de antemao. Mesmo que esse campo seja enorme-mente vasto ele nao pode ser a realidade total, nunca pode. Temalguma Ciencia que abranja a realidade total? Tem a Metafısica,mas ela e empırica? Nao, ela e meramente ideal, ou meramenteformal, ela lida apenas com a possibilidade.

No lugar do conhecimento absoluto, que nos esta recusado,nosso pensamento intelectivo extrai das singularidades e genera-lidades empıricas, primeiro estas probabilidades, por assim dizer,apodıcticas, que encerram todo o saber exequıvel no que concernea realidade.

Se se trata de fatos empıricos, entao o saber absoluto ja estarecusado, nao e possıvel pelo simples fato de que se refere a fatos.

“Fatos”, tem que ser delimitado um campo determinado. Alemdo mais, nos dependemos de que os fatos acontecam, ou seja, osfatos so poderao ser observados e estudados se acontecerem.

Portanto, o saber absoluto ja esta fora de cogitacao pois vai que

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os fatos nao acontecem e la se foi o nosso conhecimento. Entao,nos dependemos de que esses fatos acontecam e de que estejamao nosso alcance de alguma maneira. Mesmo com o raciocınioprobabilıstico.

Voce nao pode fazer um raciocınio probabilıstico a partir de 0(zero) fatos. Voce tem que ter uma base qualquer. Para voce ver aprobabilidade de qualquer coisa e necessario que uma outra coisaaconteca. P.e., vamos supor, a probabilidade real do sujeito sercandidato. Isto aqui nao se assenta em um fato? Porque senaovoce poderia fazer esse calculo com relacao a qualquer pessoa.

Mesmo que seja uma mera probabilidade remota voce sempredepende do nucleo de fatos inicial, porque senao voce vai medir aprobabilidade do que?

Suprima todos os fatos, experimente fazer um calculo proba-bilıstico sem nenhum, nenhum, nenhum, fato. O que que vocevai estabelecer? Vai estabelecer relacoes logicas puras, e isto naoe probabilıstico. Se voce suprime todos os fatos, acabou com aprobabilidade, voce entrou para o absoluto.

Partindo do fato de que determinadas coisas acontecem, existe aprobabilidade de que outras acontecam, mas se nada, nada, nada,aconteceu, o raciocınio probabilıstico nao se aplica; aplica-se ape-nas o raciocınio logico puro.

Husserl diz que essas probabilidades sao, por sua vez,apodıcticas. Voce pode chegar a uma probabilidade que em simesma e apodıctica, que existe uma margem de tanto a tanto deprobabilidade de que tal coisa aconteca. Isso aı ele ja disse la paratras. Basta o calculo estar certo que a probabilidade em si mesmae apodıctica.

Uma verdade apodıctica e uma coisa, e uma verdade proba-bilıstica e outra completamente diferente. E apenas uma probabili-dade inegavel. Voce nao pode negar que a probabilidade e aquela,mas voce nao pode dizer nem mesmo que ela vai acontecer de fato

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porque ela e mera probabilidade. Probabilidade apodıctica querdizer um calculo matematicamente correto.

Reduzımo-las logo a proposicoes exatas, que tem o carater deautenticas leis; assim e como lograrmos construir os sistemas for-malmente perfeitos das teorias explicativas. Mas estes sistemas sotem valor de possibilidades ideais, cum fundamento in re, que naoexcluem outras infinitas possibilidades.

“Mas estes sistemas so tem o valor de probabilidades ideais,cum fundamento in re, que nao excluem outras infinitas possibili-dades”, diz Husserl. Isto aqui e da maior importancia.

Uma vez que voce encontrou uma explicacao cientıfica para umdeterminado fato, o que voce fez foi exatamente isto, voce agrupouos fatos dentro de um campo, fez a probabilidade, quantificou, eesses fatos devidamente quantificados sao inseridos dentro de umasequencia silogıstica explicativa.

Na Medicina, p.e., o fato de que voce tenha atribuıdo a deter-minado sintoma, um determinado vırus, e tenha comprovado, isto,fora de qualquer possibilidade de duvida, isto nao implica que naohaja outras infinitas causas do mesmo sintoma, concomitantes.

Uma lei cientıfica e somente isso, e uma determinada relacaoque se observa dentro de um campo, e que em tais ou quaiscondicoes se repete. Isto e tudo!

Voce so nao pode negar que tem la o raio do vırus que causa oresfriado, o Aids, ou o raio que o parta, e ele de fato esta la. Agora,nos podemos dizer que o vırus e a causa? Nem mesmo isso! So sevoce cercasse por absoluta impossibilidade, que voce encontrasseapodicticamente que e impossıvel qualquer outra coisa causar omesmo sintoma.

Cada lei cientıfica descoberta, fundamentada, provada e verifi-cada, ela so exclui exatamente a proposicao inversa e mais nada.Todas as outras proposicoes concomitantes, paralelas, derivadas,parecidas, similares, tudo isso e possıvel.

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Portanto, quando alguem disser, “Esta cientificamente provadoque o que causa tal coisa e tal outra coisa”, nao esta provando nada.Esta provando que isso aı esta presente, e fim. A prova cientıfica elimitada a aquilo mesmo que ela prova.

Agora, pode acontecer que voce tenha cercado o fenomeno taobem que a probabilidade de haver interferencia de outras causasseja mınima. Dentro do campo considerado, notem bem. Porem,nos ainda poderıamos perguntar, “Mas, o que causa essas cau-sas?”.

P.e., nos debates de problemas psico-fısicos, se uma coisa temcausa psicologica; se o que causa o stress e um vırus, se e um fatorpsicologico, etc, etc. A pergunta esta totalmente mal colocada.E evidente que nao existem causas alternativas. Deve existir umencadeamento global de causas que so sera descritıvel na hora quevoce conhecer cada uma delas em particular.

Entao vamos ver, que peso tem o vırus? Vamos ver que pesotem a posicao do sujeito. Vamos ver que peso tem outra. Vejaagora as relacoes entre estas que liga uma causa parcelar numaoutra causa parcelar. Aos poucos voce vai compondo, voce vaimontando cada pecinha dentro de uma visao sistemica ate voceconseguir o sistema. Isso da um trabalho medonho.

Voce tem que ter a ideia do encadeamento sistemico e de cadauma das correlacoes. Neste sentido, eu tenho visto poucas coisasmais cientıficas do que a Astrocaracterologia, porque ela faz exa-tamente isto, pega a hipotese sistemica e vai parte por parte, semdestacar.

[ Stella: Kant tem razao, voce nao conhece um fato inteira-mente; talvez nao seja exagerado como ele diz. Kant diz que voceso conhece fenomeno. Talvez ele nao esteja tao errado assim por-que se voce vai fazer a coisa em si, o fato e totalmente cercado portodas as suas possibilidades explicativas...]

Nao e isso que ele disse. A “coisa em si” nao e isso. A “coisa

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em si” e tal como ela e, independentemente do observador. E noentanto voce tem a visao da “coisa em si”, ou nao?

P.e., o sujeito esta com gripe. Voce nao sabe que o cara estacom gripe? Voce nao sabe quando voce esta com gripe? Voce naotem uma visao global, imediata e ate intuitiva? Bom, mas agoraeu quero saber a sequencia de causas. Aı voce tem que segmentare analisar pedaco por pedaco. Agora, se voce perdesse a visaointuitiva do que e gripe, dancou.

A visao da sıntese confusa inicial nao pode ser perdida numunico momento, ela e um pressuposto do conhecimento.

Quando as pessoas pretendem que conhecimentos cientıficossubstituam a visao intuitiva, aı e que e demencia pura e simples,e como dizer, “Essa cadeira nao e uma cadeira, e um aglomeradode arvore”. Voce pegou a visao intuitiva confusa e trocou por umavisao cientıfica.

[ Stella: mas voce nao chega a uma sıntese distinta, nao e? ]Nao. Voce pode chegar, claro que pode. Na hora que eu estou

falando isso eu estou fazendo a sıntese de tudo. Voce diria assim,“Essa cadeira nao e uma cadeira, e um aglomerado de atomos”.Daı eu faco a seguinte proposicao, “Isto aqui e um aglomeradode atomos que no nıvel macroscopico da minha percepcao toma aforma de cadeira”. Pronto, esta aı a sıntese distinta.

O unico problema e o seguinte, a fragmentacao e a dificuldadede voce compor o conjunto surge na medida onde voce pretendatransformar tudo numa sequencia silogıstica global, que da ateuma impossibilidade pratica de voce fazer, porque a sequencia si-logıstica necessariamente recorta uma determinada regiao. Se elae linear, e evidente que ela nao pode ser tridimensional. Se nos sotivessemos essa forma de pensar — o silogismo — nos estarıamosperdidos.

[ Stella : a dialetica tenta lidar com algumas linhas, nao e? ]Na verdade tudo isso se fundamenta na sıntese inicial confusa.

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Isso e o que nos chamamos realidade, que e o mundo tal comoexperimentado, e o mundo da vida, onde tudo, tudo o que acontecetem milhoes de significados possıveis ao mesmo tempo.

Para a experiencia humana comum e corrente, nao existe, p.e.,realidade de ordem fısica. Tudo que e de ordem fısica, ao mesmotempo, pertence a ordem humana.

Quando voce vai a uma loja e compra uma cadeira, voce com-prou a cadeira fısica? Em Fısica qual e o preco de uma cadeira?Nao tem, nao e? Quer dizer que, os conceitos vagos que voce temnas varias Ciencias, que recortam certos pedacos que so tem sen-tido em face desse pano de fundo, e somando todas as Ciencias,nao completam de novo esse pano de fundo.

Toda hora a gente ve que esta faltando uma nova Ciencia queteria um ponto de vista que estaria implıcito na percepcao corrente,mas ao qual nao corresponde uma Ciencia determinada.

A realidade, a percepcao comum e corrente e valida, o sensocomum e valido, e nao so e valido como e o fundamento de todo oconhecimento. Voce pode conciliar o melhor do seu senso comumefetivamente, mas nao a respeito de tudo.

O sujeito que sabe toda a composicao quımica das coisas, seraque ele tambem sabe o preco de todas as coisas? Ou ele sabe aquem pertence todas essas coisas? Ou ele sabe a causa eficientede cada uma dessas coisas distintas, quem foi que plantou a arvore,quem foi que fez a cadeira? E claro que nao sabe!

Ele sabe tudo dentro de uma determinada linha de conexoes,mas a realidade significa inseparabilidade de todas as linhas deconexao. Onde voce puder separar uma, voce saiu do que chamarealidade, voce entrou na veracidade cientıfica e isto e outra coisa.

Nos podemos dizer que uma coisa e real quando nenhuma or-dem de significacao, ou de causa, pode ser excluıda dela. Se puder,ja e irreal, ja e abstrato.

Concreto e aquilo que cresce junto, quer dizer, todas as ordens

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de causa que provocam aquilo estao agindo concomitantemente, ese voce separar uma, a coisa ja nao existe mais.

A percepcao e abstrativa, mas a intuicao nao e. Quando vocereflete, voce ja esta subentendendo o mundo real por baixo. Bastavoce saber que a sua percepcao e incompleta para saber que aquilotem outros aspectos. Isto quer dizer que uma visao concreta darealidade e muito difıcil, e no entanto nos vivemos nela.

Uma visao concreta e essa coisa invisıvel e que esta por baixode tudo o que e visıvel, e que torna possıvel voce dizer algumacoisa. O mundo concreto e a base do seu pensamento abstrato.Agora, se voce procura inventar um mundo abstrato que substituao concreto, voce esta doido da cabeca.

As Ciencias todas vivem fazendo isso; o praticante de qualquerCiencia tende a achar que aquele aspecto que esta acostumado aobservar e mais real do que os outros.

Se estuda Fısica, o aspecto fısico lhe parece mais real, e omundo lhe parece organizado em cima das propriedades fısicas.Se voce estuda Lınguas, Biologia, Aritmetica, etc, etc, tudo issoque em Fısica e pura realidade, para voce e apenas um conjunto designos.

Esse e o conceito basico do Husserl: Lebenswelt, o mundo davida. Lebenswelt e o mundo no qual voce vive, e ele e invisıvel,e esse mundo tem um monte de propriedades. P.e., no Lebensweltele diz que a Terra e imovel.

A Terra e um fundo em relacao a um ser humano que a veimovel, e que mais tarde, num outro plano, por referencias a ou-tras observacoes que desde este mundo imovel que voce tem, vocedescobre que ela e, por sua vez, movel. Mas que por sua essencia,como lugar da vida humana, ela e imovel.

Dizer que a visao da Terra imovel e falsa em relacao aobservacoes astronomicas e absurdo porque desde uma Terramovel nao se poderia fazer essas observacoes astronomicas.

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E por isso que eu digo que a Ciencia e uma coisa muito novae as descobertas da Ciencia exercem sobre a cabeca humana umimpacto desequilibrante. Em troca de 2 ou 3 informacoes novasvoce cria uma imagem do mundo totalmente maluca. Eles temum certo desprezo pela intuicao dos outros. O que e intuitivo paraeles, catapimba! Mas a intuicao alheia para eles e louco.

O conhecimento cientıfico e muito limitante e ele pode ter umimpacto que torna o sujeito esquizofrenico, porque a Ciencia euma coisa nova e a humanidade nao evoluiu o suficiente para poderaguentar essa Ciencia e coloca-la dentro da concepcao racional domundo.

Nesse sentido nos podemos dizer que as consequencias ci-entıficas sao verdadeiras com relacao a certas partes do real. Essasconcepcoes antigas, mitologicas, embora erradas com relacao aessas partes, num todo elas sao mais verdadeiras. Nao e esquisitovoce dizer que o trovao e a voz dos anjos. Do ponto de vista do Le-benswelt e muito mais exato do que voce dizer que o trovao e umefeito acustico de um determinado fenomeno eletro-magnetico.

O mito e mais abrangente e por isso ele pode se referir a tota-lidade da experiencia humana muito mais verdadeiro do que talou qual teoria, e a teoria so tera um sentido plenamente racionalse ela conseguir ser inserida dentro dessa imagem, ou seja, den-tro da imagem do mundo que seja adequada a funcao do homemno cosmos, voce colocar la hierarquicamente distribuıdos os doissentidos.

So aı e que vai ser racional, por enquanto nao; por enquantosera racional com relacao a este ou aquele ponto a custa de voceser irracional em relacao ao todo. P.e., quando voce descobre queas coisas sao compostas de atomos, ou de um montao de partıculassub- atomicas, e daı voce nega que as cadeiras sejam cadeiras.

Tem um grande filosofo-cientista, (Whitecker(?)), que fez umagrande conferencia dizendo isto, “Estao vendo esta lousa, esta pa-

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rede? Tudo ilusao, porque realmente sao atomos!”, quer dizer, elenegou uma faixa da realidade e afirmou outra.

Se fosse um pouco mais tarde nos tambem poderıamos di-zer, “Ta vendo todos aqueles atomos? Tudo ilusao! Tudo tempartıculas sub- atomicas!...” Entao e o caso de voce perguntar,“Quanto custa uma partıcula sub-atomica?” Qual e o preco? Ah!nao custa nada? Entao leve seu carro para casa, de graca, porquetudo e partıcula sub-atomica mesmo ...

O que e isso? E uma informacao cientıfica, verdadeira, rela-tiva a um determinado aspecto do universo, que e incumbida de sesubstituir ao mundo real.

Sempre que voce pega um cientista, e o nego se mete a opinarsobre o mundo, so sai besteira. Se alguem pode opinar sobre omundo, essa opiniao so pode ser metafısica ou mitologica, nao vaisair disto. A sua Metafısica nao vai ser melhor do que a minhanao.

O problema e que a Ciencia ganhou um prestıgio muito grande;tao grande quanto o prestıgio do paje. Mas, e porque o paje temprestıgio que ele vai poder opinar, p.e., na Mecanica Newtoniana?Nao, e o cara que e newtoniano tambem nao entende nada daquelenegocio que o paje esta falando. Entao e uma questao de camposdiferentes, de planos diferentes.

A funcao basica da Filosofia e justamente articular essas coisasnuma visao coerente, ou seja, assegurar o fundamento racional notodo.

[ Pergunta: voce acha que e possıvel dizer que a Ciencia, ateonde ela chegou, por enquanto ela so fez um desservico a humani-dade, porque enquanto a Religiao e a Mitologia ofereceu todas asrespostas ...]

Nao! A Mitologia teve 10000 anos de chance, a Ciencia teve400 anos. A Ciencia e uma coisa nova com a qual a humanidadenao sabe lidar, o qual o indivıduo esta com o sorvete na testa. Nos

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nao temos experiencia suficiente para o saber cientıfico, nos somostodos caipiras que descobriram la um monte de contas, ficamosdeslumbrados, e achando que sabemos tudo.

A experiencia da Ciencia e nova, e o pior, as condicoes em quea Ciencia e ensinada sao de modo a tornar os sujeitos verdadeirosimbecis. P.e., se voce nao levou em consideracao essas coisas queesse homem esta falando aqui neste texto, voce jamais vai saber oque e Ciencia.

A esta altura o mundo todo esta cheio de pessoas nos labo-ratorios calculando os “buracos negros”, o nao-sei-o-que, e elesnem sabem o que estao fazendo. A Ciencia e um negocio quaseesoterico, mas que esta indo para as maos indevidas. Vejam, numseculo, quantas pessoas aptas a compreender estas coisas aqui?Umas 2 ou 3!

[ Stella: a gente nao consegue prever as consequencias lesivasde determinada direcao que ela possa tomar e se abster, nao e? ]

A Ciencia nao tem consequencias indevidas. Sao as aplicacoestecnicas, se forem levadas a pratica. Ela nao pode ser acusadadisso porque isso e quase impossıvel.

Voce preve as consequencias de todos os seus atos? Faz parte davida humana voce prever perfeitamente a consequencia dos seusatos, ou ao contrario, faz parte dela voce apostar?

Voce esta raciocinando sobre a tecnica, sobre a tecnologia. Atecnica e uma acao humana. E absolutamente impossıvel voceprever.

A pergunta entao seria, “se, em escala mundial, valeria a penavoce ter tanta tecnica”. Mas, sinceramente, isso aı, se a tecnica vaidesumanizar o homem, se vai destruir o planeta, eu estou poucoligando. Eu realmente nao me interesso; se destruir o planeta,tudo bem, algum dia ele vai ter que ser destruıdo mesmo.

Eu, quando discuto as coisas, estou me colocando numa esferapuramente teorica. As consequencias eticas, psicologicas, etc, etc,

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ja e um lado vulgar que a gente pode ver em qualquer editorial dejornal. Nao e nisso que a gente deve se preocupar.

“Ah!, como a tecnica e maldosa, porque ela destroi a camadade ozonio, etc, etc.”, mas ninguem sabe quando surgiu esse buracodo ozonio. Tem gente que diz que foi anteontem, e tem gente quediz que foi a alguns milhoes de anos. Nao tinha nem trogloditausando spray para fazer o buraco. Talvez esse buraco fosse im-prescindıvel, nao se sabe ainda. Entao, toda essa discussao sobreos efeitos da tecnica e prematura porque a gente ainda nao sabe.

O seculo XX foi de debates eticos, psicologicos, religiosos,teologicos, etc, etc, sobre essa coisa da tecnica, da Ciencia. Euconsidero tudo isso aı assunto para pessoas sentimentais, que fi-cam preocupadas com o futuro da humanidade, que acham real-mente que ele pode colaborar a advertir contra coisas perigosas,etc, etc.

Eu sou mais Hegeliano, ou seja, todo mundo e racional, o queacontece, tem que ver. Entao, nao tem tanto problema assim.Alias, o mundo nao esta numa situacao tao catastrofica quanto aspessoas moralistas dizem, nem tudo esta perdido, e eu acho que to-das as epocas sao iguais perante Deus; a nossa nao e nem melhornem pior do que nenhuma outra.

Por outro lado, eu acho que a nossa epoca prima pela imbeci-lidade, mas por outro lado e o contrario, porque onde e que vocevai encontrar uma outra epoca que tenha um sujeito tao inteligentequanto este (Husserl). E difıcil, nao e?

Nao se pode criticar uma epoca, nem o curso geral do mundo,nao cabe ao homem fazer isso. Voce nao pode ser policial do cos-mos. Se ele acha que o curso do mundo vai de mal a pior, ora, parao mundo e desce... Ora, se esta mal, entao ajuda e faz a sua parte,mas aı voce vai fazer parte de movimentos ecologicos, movimen-tos esotericos, holısticos, e fica jogando tomate. Alias, eu achoque isso aı e um dos fenomenos deprimentes do nosso tempo, o

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numero de pessoas que dao palpite em assuntos multiplos e as-sombroso!

P.e., a tal da tecnica; o que se escreveu de besteira sobre atecnica, “Ah!, a tecnica e uma coisa horrıvel”, “O computador vaidominar o homem”, mas, o que e isso?! Que loucura e essa?! Seo sujeito for imbecil, entao ele e digno de ser dominado por umcomputador. E uma questao de justica.

Tambem esse negocio de Inteligencia Artificial; eu li umnegocio num Congresso sobre inteligencia artificial que todomundo discutiu isso, “sera que o computador vai ficar mais in-teligente que o homem a ponto dele poder fazer um homem?”.Veja, se voce bolar um computador tao inteligente assim que naoso inventa um homem teoricamente, mas ele e capaz de gerar umhomem transando com um outro computador, ele e um homem, oue uma mulher, ue! Esta resolvido o problema!

Se voce diz, “Ah!, mas foi feito por meio cibernetico!”, mas,existem milhoes de meios de voce produzir um ser humano, e otransacional e um pouco mais gostoso ...

Nao e normal voce produzir um homem na proveta? Mas sepor acaso ele for produzido assim, ele nao sera outra coisa senaoum homem. Quanto ao computador, ele foi feito para, sob certosaspectos, ser mais inteligente do que o homem, assim como o carrofoi feito para ser mais veloz do que o homem. Se voce inventa umcarro que e mais lento do que o sujeito que ele transporta ele seriaum fracasso tecnico completo, portanto...

E se eu fizer um computador que e mais veloz, mais eficaz doque eu, nao so nessas operacoes mas em todas as operacoes? Seeu fizer isso eu nao saberei julga-lo, e eu nem mesmo perceberei,portanto, nao ha nenhum problema. computador vai mandar emmim e eu estarei satisfeito.

Eu acho que isso aı sao vulgaridades de pessoas que nao com-preendem a essencia do que que e. O ser humano e um animal

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racional, dotado de liberdade, e isso e o suficiente para ser gente.Nao importa a forma que ele tenha. Normalmente ele tem essaforma humana, mas se aparecer um outro sob a forma de Tarta-ruga Ninja, ou qualquer coisa, e que tenha estes atributos, entaoeu nao tenho autoridade para nao dizer tambem que nao e gente.

Alias, o confronto de racas ja trouxe esse impacto. Quantosanos as racas nao levaram para perceber que o outro tambem eragente? Foram seculos, e os caras ainda nao perceberam. Naoe facil, voce ve la um pigmeu da Nova Guine, um homem destetamanhinho, que tem um filho menor ainda, nao e muito verossımila humanidade. Porque se e verossımil um homem de 1,10m, porque nao seria inverossımil um de 40cm? Este e o abismo que seabre na mente humana, porque se ele reconhecer que esse cara de1,10m e gente, o de 40cm tambem sera. E se aparecer um de 6cm?A mesma coisa.

A tua percepcao sensıvel demora para se acomodar, mas omundo das essencias nada tem a ver com a percepcao sensıvel,nao e? Quer dizer, isso e falta de capacidade abstrativa.

Dentro dos limites de uma determinada cultura voce pode consi-derar que um de fora nao e gente. A palavra “barbaro” quer dizer,“o sujeito que nao fala”, entao nao pensa; se voce nao pensa, entaovoce nao e gente.

A partir da hora em que voce entende que a condicao humananao e algo que esteja biologicamente grudado no sujeito, mas quee uma condicao que voce deve reconhecer naquele sujeito quemesmo com uma possibilidade remota possa vir a participar disto,na hora que voce entendeu que essa condicao humana e um im-perativo categorico, que ela e um ideal abstrato, e que nao e queesteja grudada nesse ou naquele, mas, se voce e humano, voce estaobrigado a reconhecer a humanidade do outro por menos evidenteque ela seja.

Nao e se o pigmeu da Nova Guine, ou o Frankenstein, ou o

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gentio, e ou nao e gente. Se eu sou gente eu tenho que achar queeles sao gente!

Entre essa rigidez greco-judaica que so reconhece como hu-mano um membro da sua comunidade, ...(?)... e pergunta a opiniaodo alface, eu acho que o mundo cristao-islamico chegou numplano bem definido: basta voce ser humano para que os outrossejam humanos. Em quaisquer comunidades. Este e o ponto dauniversalidade.

Estas duas religioes universais, elas servem para todo mundoporque elas nao reconhecem essa ou aquela comunidade. O Bu-dismo, p.e., serve para todo mundo, ate minhoca, pedra, serve paragente e ate para quem nao e gente. Entao, se voce quer ficar nomeio-termo, voce pega o mundo cristao-islamico que voce esta nomeio-termo.

Voce tem a religiao exclusivista onde so os membros da nossacomunidade importa. Os outros sao os “barbaros” ou os “gen-tios”. Isso e um exclusivismo racial. O grego nega o dom da falaao “barbaro”, subentendendo que eles nao falam, mas latem, ougrunhem. A perspectiva greco-judaica e comunitaria. Uma comu-nidade humana cercada de animais.

O Budismo e o contrario, todo mundo e gente. A cachorra doMagri, a minhoca, a ameba, a pedra, todo mundo e gente. O Bu-dismo e uma linguagem universal, todo mundo fala, a minhoca daopiniao, a pedra refuta, entao e claro que e impraticavel. Nem obudista chega nesse negocio, tanto que voce nao pode pisar na for-miga. Se voce vai daqui ate a esquina voce faz uma devastacao,porque voce vai destruir um mundo de coisas, nao e?

Entao, nao precisa ser assim tao bonzinho quanto o budista, enem tao durao quanto o greco-judaico.

Agora, eu ja disse para voces que tudo isso sao perspectivas con-denaveis. Eu acho que o racismo e inerente a condicao humana.O homem nasce racista, depois ele aprende a nao ser. Que tem

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uma coisa instintiva, tem. Nao tem se voce ja foi criado num meiointer-racial.

Isso e sempre a confusao da percepcao sensıvel habitual com asessencias, ou seja, e uma confusao entre o real e o ideal.

O racismo e uma forma do psicologismo. Voce deduz o seu con-ceito de essencia humana num monte de seres humanos parecidosque voce ja viu. E uma deducao errada. O conceito humano e umconceito ideal.

A definicao plena do Eric Weil sobre o homem e a definicaoideal. Quando ele diz que o homem e um animal racional ele naoesta dizendo por inducao que ele e racional, mas que ele deve serracional para merecer o nome ideal.

Agora, se voce tirou o seu conceito pelo empirismo, se voce ejapones, o homem e isto; na hora que voce ve um cara diferente,ele nao e homem.

Voce pega um cara desses que acha que so os amigos dele saoseres humanos e voce ensina Fısica Quantica para ele. O que voceacha que vai dar? Quantos cientistas, doutores, professores de fa-culdade, nao tem dentro de suas cabecas essas ideias arcaicas?Eles tem uma etica de botocudos, uma metafısica de esquimo.Entao, tem que civilizar a etica deles, a metafısica deles, tem quesumir tudo.

O problema e a civilizacao parcial dos indivıduos, porque aCiencia so mudou um atimo nesses 4 seculos, e numa so direcao,entao precisa subir o resto, senao vai ficar doidinho mesmo.

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18 de junho de 1993

[ Olavo retorna ao texto do Husserl ]Se as autenticas leis sao um mero ideal na esfera do conheci-

mento de fatos, como acabamos de ver, este ideal se encontra idea-lizado na esfera do conhecimento “conceptual puro”. A esta esferapertencem nossas leis logicas puras e as leis da mathesis pura.

Mathesis pura e como se fosse “combinatoria universal”. Se-ria o conjunto de leis da possibilidade. Mathesis e um termogrego que, em ultima analise, significa ensinamento, ou conheci-mento. Mathesis seria a metalinguagem de todos os conhecimen-tos possıveis. P.e., as leis que regulam a possibilidade e a impossi-bilidade, as leis que regulam a anterioridade e a posterioridade, oucontinencia e conteudo; sao relacoes puras. O que Husserl entendecomo logica pura no fundo e essa Mathesis.

Estas leis nao tem sua “origem”, seu fundamento justificativo,na inducao. O que estas leis afirmam e plena e totalmente valido.Nenhuma delas se apresenta como uma possibilidade teoretica en-tre outras mil de certa esfera objetivamente definida.

Isto e uma coisa importante. Qualquer lei de fatos, que se tenhatirado de fatos, ela e sempre uma possibilidade entre outras, e essapossibilidade se verifica na esfera dos fatos.

Dadas as varias possibilidades, uma delas se patenteia, se mos-tra verdadeira, e que os fatos a acompanham. Portanto, nao existe

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uma unica lei de fatos que possa ser logicamente uma possibili-dade unica.

Se uma lei e tirada dos fatos, e dizer que ha outras possibili-dades, mas somente uma dessas possibilidades e manifestada nosfatos. P.e., na investigacao de um crime existem varios culpados,mas se logicamente devesse existir um e um so, e todos os outrosfossem inconcebıveis como culpados, entao voce nao precisariados fatos evidentemente.

Toda lei indutiva e sempre uma possibilidade entre outras.Varias hipoteses tem mais ou menos o mesmo grau de possibili-dade. Agora, se voce demonstra que so uma e possıvel e as outrassao impossıveis, entao voce nao desceu para a esfera dos fatos,voce esta falando da esfera logica pura.

Qualquer uma delas e uma so e unica verdade que exclui todapossibilidade distinta.

As leis logicas dizem respeito a esfera de possibilidade pura. Oque nao e logicamente consistente, e impossıvel. Nao e apenasirreal, e falso.

Aı terıamos que estabelecer uma distincao entre verdade e rea-lidade. Realidade e aquilo que se da na esfera dos fatos.

Como e natural, nao devemos compreender, dentre as leis defatos, aquelas proposicoes gerais que aplicam aos fatos leis con-ceptuais puras, isto e, relacoes universalmente validas por estaremfundadas em conceitos puros. Se 3 ¿ 2, tambem os tres livros da-quela mesa sao mais do que os dois livros daquele armario. Mas alei aritmetica pura nao fala de coisas, mas sim de numeros na suapura generalidade.

24. ContinuacaoTalvez, tratem de escapar a nossa conclusao, objetando que nem

toda lei para fatos nasce da experiencia e da inducao. Todo conhe-cimento da lei descansa na experiencia, mas nem tudo brota delana forma de inducao. Em particular as leis logicas sao leis con-

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formes a experiencia, mas nao indutivas. Reconhecemos de um sogolpe que o que encontramos no caso particular e universalmentevalido, porque se funda tao somente nos conteudos abstraıdos.Desse modo, a experiencia nos proporciona uma consciencia ime-diata das leis de nosso espırito. E como nao temos necessidadeda inducao, tampouco o resultado padece das suas imperfeicoes;nao tem o mero carater da probabilidade, mas sim o da certezaapodıctica.

Ele esta dizendo do caso de leis que se aplicam a experiencia, eque se aplicam a experiencia independentemente de voce ter feitoa experiencia. E esse exemplo que ele da: se 3 ¿ 2, entao os treslivros que estao aqui sao mais do que os dois livros que estao la.Isso nao e retirado da experiencia.

Talvez se possa tentar escapar ao argumento dele dizendo quenem todas as leis que tem fundamento na experiencia nascem dainducao. Isso seria um subterfugio para poder dizer que, em ultimaanalise, os fundamentos da logica provem da experiencia mas naoatraves da inducao.

Nao obstante, a objecao nao e suficiente. Nao ha duvida deque o conhecimento das leis logicas suponha, como ato psıquico aexperiencia particular e tenha sua base na intuicao concreta.

Ou seja, Husserl admite que se nao tivessemos a experienciatambem nao terıamos o conhecimento logico, alias nao terıamosconhecimento de coisa nenhuma.

Mas nao se deve confundir os “pressupostos” e “bases” psi-cologicas do conhecimento da lei com os pressupostos, os fun-damentos ou as premissas logicas da lei. Esta ultima e o resultadointelectivo da relacao objetiva de princıpio e consequencia, en-quanto a primeira se refere as relacoes psıquicas na coexistencia ena sucessao.

Isto e fundamental! Nos inteligimos uma lei logica, as vezestomando como pretexto, como ocasiao dessa inteleccao, uma ex-

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periencia. Porem, o elo que nos estabelecemos, o elo interno, nocaso e um elo de coexistencia e sucessao, e no outro caso e umarelacao de princıpios e consequencia.

[ Olavo desenha um esquema no quadro ]

EXISTENCIA | LOGICA+-------------------+--------------------+| Coexistencia | Princıpio || | | | || Sucessao | consequencia |

O que nos captamos por experiencia sao de coexistencia ou su-cessao, algo que se expressou ao mesmo tempo, ou em seguida.

Porem, quando nos estamos aprendendo uma relacao logicapura, a relacao entre seus elementos nao e nem de coexistencia,nem de sucessao, elas nao sao nem simultaneas, nem sucessivas.Elas sao atemporais, porque e uma relacao de princıpio a con-sequencia.

Ou seja, a consequencia esta contida no princıpio como umaespecie de exigencia interna dele mesmo, sendo que as palavras“contido” e “interno” nao devem ser tomadas no sentido espacialevidentemente, porem no sentido de uma transmissao de veraci-dade. Se uma e verdadeira, a outra tambem e.

A transmissao nao e verdadeira nem ao mesmo tempo, nemsucessivamente, porem a margem de qualquer sucessao ou coe-xistencia. Nao e que uma e verdadeira ao lado da outra espacial-mente, ou por depois ou antes da outra, temporalmente.

A apreensao intuitiva da lei pode exigir psicologicamente doispassos: a visao das particularidades de intuicao e a inteleccao dalei referente a elas. Mas logicamente so ha uma coisa.

Quer dizer que pode haver um transcurso de tempo, tal comono conhecimento por experiencia. Mas aı so houve transcurso de

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tempo no ato de conhecer, quer dizer, o ato se da um dois momen-tos, mas a relacao apreendida nao se da em dois momentos. Arelacao logica nao se da um dois momentos.

Todo conhecimento “comeca com a experiencia”, mas nempor isto “surge” da experiencia. Se ha leis conhecidas com ainteleccao, nao podem ser (imediatamente) leis para fatos.

Se sao leis captadas por pura inteleccao, nao sao, em princıpio,leis referentes a fatos, embora possam tambem serem aplicadas afatos. Sao leis independentes dos fatos e que sao verdadeiras emsi mesmas independentemente dos fatos se manifestarem ou nao.

Ate o presente, sempre que se admite a inteleccao imediata deleis de fatos, o resultado foi que se misturaram verdadeiras leis defatos — isto e, leis da coexistencia ou da sucessao — com leisideais, as quais e em si estranha a referencia ao temporal, ou quese confundiu o vivo impulso de conviccao, que trazem consigo asleis empıricas muito familiares, com a inteleccao, que so vivemosna esfera do puramente conceptual.

Essas duas coisas, psicologicamente sao muito parecidas. Elediz que toda vez que alguem imaginou ter captado intelectiva-mente uma lei referente a fatos, ou ele confundiu, pegou uma leiideal e imaginou que e uma lei de fatos, p.e., intuiu que 2 + 2 = 4e acha que isso se refere a coisas — 2 pessoas + 2 pessoas,2 laranjas + 2 laranjas — quando na verdade nao se refere.2 + 2 = 4 independe que hajam pessoas, ou laranjas, ou qualqueroutra coisa.

Entao o sujeito, na verdade, teria captado uma lei puramenteideal, ou formal, pensando captar uma lei referente a fatos. Esta ea primeira hipotese.

Todas as leis logicas puras tem um mesmo carater. Logo, se de-monstrarmos que a algumas delas e impossıvel considerar comoleis de fatos, isto mesmo sera necessariamente valido para todas.Pois bem, entre essas leis se encontram algumas que se referem

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a verdades em geral. Por exemplo, e valido para toda verdade Aque a sua proposicao contraditoria nao e uma verdade. E absurdoconsiderar como leis de fatos leis que sao validas para as verdadescomo tais. Uma verdade nao e nunca um fato, isto e, algo tem-poral. Uma verdade pode ter a significacao de que uma coisa e,ou um estado existe, ou uma mudanca ocorre, etc. Mas a verdademesma se acha por cima de toda temporalidade, isto e, nao temsentido atribuir-lhes um ser temporal, um nascer ou perecer.

Um fato que nao acontece nao e verdadeiro, por isso mesmo quenao e real. Antes de acontecer ele nao pode ser real, portanto elese torna verdadeiro a partir da hora que acontece.

Agora, as relacoes entre verdades nao acontecem. Elas sao ver-dadeiras antes e independentemente de acontecerem, porque elaspodem ser formuladas hipoteticamente, “Se isto, entao aquilo”, eesta relacao permanece verdadeira mesmo que os fatos sejam ver-dades. Sao anteriores, independente dos fatos. Podem ser formu-ladas hipoteticamente.

Na verdade nao sao hipoteticas, sao o que nos chamamos “for-mais”, ou “puramente ideais”. 2+2 = 4 nao e hipotetico; pode serformulado hipoteticamente no sentido de que se voce somar 2 + 2vai dar 4, ou formulado normativamente, “para obter 4 some-se2 + 2”.

Agora, um fato pode ser formulado hipoteticamente? Nada, emlinguagem hipotetica, e um fato. E um dado. Se voce narrar hipo-teticamente voce o desrealizou, ele deixa de ser fato. Nao e que asverdades puras, formais, sejam hipoteticas mas, se formuladas hi-poteticamente, elas nada perdem da sua substancia. Agora, o fato,se formulado hipoteticamente, ele nao e mais nada, nao e maisfato. Esse e o teste. Se ele e uma hipotese ele nao e um fato.

P.e., em Matematica voce nao raciocina constantemente assim,“suponhamos que tal, tal e tal...”, daı voce tira as deducoes. Con-tinua sendo verdade matematica, mas voce nao pode formular um

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fato assim. So se voce negar o seu carater de fato, p.e., “suponha-mos que o PC Farias tenha recebido grana, pa, pa, pa...”, se voceja transformou numa suposicao ja nao e fato mais.

Como leis reais, as leis das verdades seriam regras da coe-xistencia e da sucessao. Entao uma lei prescreveria o ir e virde certos fatos, chamados verdades; e entre estes fatos deveriaencontrar-se, como uma a mais, a lei mesma. A lei mesma nas-ceria ou pereceria segundo a lei... patente contra-senso..

Se fosse possıvel isso, deveria haver uma lei que regrasse a co-existencia e a sucessao, e que dentro dessa sucessao passaria a serverdade a mesma lei que regra essa mesma sucessao. Isto aı pareceo “Exterminador do Futuro”.

A lei passaria a ser verdade. Aı voce teria uma lei que regra-ria uma determinada sucessao dentro da qual a mesma lei que re-gra essa sucessao passaria a ser verdade a partir do momento queacontecesse, e nao antes.

Alias, falando em “Exterminador do Futuro”, saiu um artigoem Sao Paulo, do Conrad Lorentz, chamado “O Exterminador daLogica”, porque o Exterminador do Futuro voltava para o passadopara impedir que acontecesse uma coisa no futuro, futuro esse noqual ele tambem estava. De modo que o efeito teria o poder deretroagir sobre a causa, e anular a causa.

O curioso e que as pessoas veem esse filme e elas sentem asemocoes do filme como reais, embora ele se fundamente numahipotese que e impossıvel. Nao e a mesma coisa que uma ficcaocientıfica qualquer que nega apenas as condicoes presentes dapercepcao do indivıduo.

Voce pode supor estorias onde todas as leis da Fısica e dapercepcao ...(?)... das revistas, e a imaginacao pode operar estamudanca. Voce pode inventar uma outra realidade partindo doprincıpio da sua possibilidade, ou seja, nao e impossıvel que fosseassim, e o fato nao ser impossıvel, embora altamente inverossımil,

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e que permite que voce creia por uns instantes.Agora, se voce cre na verossimilhanca da impossibilidade,

entao para isso voce tem que desligar o seu cerebro completa-mente.

Se voce pensa que uma coisa e impossıvel, voce matou averossimilhanca dela, alias, a coisa e impossıvel em si mesma. Eimpossıvel em si mesma que uma coisa aconteca e nao aconteca.

Ou voce conta a estoria, ou voce nao conta a estoria; ou o per-sonagem existe, ou nao existe; ou ele existe sob uma forma, ousob outra, ou existe sob varias, porem, se uma coisa e intrinseca-mente impossıvel, nao extrinsecamente, a condicao que possibilitaa crenca a verossimilhanca foi solapada.

Se voce olhar la a metamorfose de Kafka, e o nego virou barata,voce sente aquilo como ma possibilidade, que se nao e verdade aoprincıpio da percepcao dele, tem que se dar de alguma outra ma-neira. Ele toca de algum modo. Mas se voce disser que ele viroubarata, embora nao tivesse virado barata de maneira alguma, qualemocao voce vai ter? Zerou, a imaginacao nao pode prosseguir.Nao da para entender.

Agora, se voce faz o nego virar barata na pagina x, daı la paradiante voce continua a estoria como se ele jamais tivesse viradobarata, e um outro pedaco da estoria totalmente independente doprimeiro, voce mudou de estoria no meio e nao percebeu.

E exatamente isso que faz o “Exterminador do Futuro”, sao duasestorias, totalmente superpostas, e uma nao tem absolutamentenada que ver com a outra. O sujeito que bolou isso e muito in-teligente. Ele bolou para sacanear mesmo.

[ Stella: como assim “2 estorias”? Voce tem o mesmo persona-gem... ]

O que quer dizer “o mesmo”? Voce contou duas estorias comose fosse o programa “Voce Decide” (Rede Globo). Voce contauma estoria, e conta outra estoria alternativa; ou esta, ou aquela.

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So que este ou ele trocou por e; esta e aquela.Entao, numa o sujeito matou a mulher, no outro ele nao matou

a mulher. Voce conta as duas estorias, voce sente, voce vivenciaa primeira, e voce vivencia a segunda. Ele conta as duas, quesao estorias alternativas, e simplesmente diz que nao e alternativa,mas que e soma. E voce aceita. Quer dizer, nao e uma verdadeiraficcao, sao duas ficcoes.

[ Stella: mas onde e que esta a raiz disso ser admitido comoverossımil? ]

Nao, isso nao e admitido como verossımil, isto e vivenciadocomo verossımil. Agora, a pergunta e a seguinte, “Por que o su-jeito se emociona com isso?” Ele se emociona porque as emocoes(no caso(?)) sao independentes do sujeito ter voltado para o pas-sado ou nao.

O fundo logico e a propria trama. O que e uma trama, nao e umarelacao logica? O espectador ignora que sao duas estorias, elevivencia as duas estorias, que nao se misturam de jeito nenhum,e que sao mostradas como independentes, e a suposicao de queexiste uma relacao entre passado e futuro e acrescentada de fora,ela nao e vivenciada, prestem bem atencao. Isto nao e vivenciadocomo nocao estetica um unico momento. Nao e possıvel.

Tem uma estoria aqui e tem outra estoria la. Nao e que estamesma e a questao logica, prestem bem atencao. Este e ou ou euma questao meramente logica, esta e que e logica. Se as duasestorias sao vinculadas por alternativas, ou por uma conjuncao,este e que e o enlace logico. E este enlace permanece puramentelogico, e nao estetico, ele nao faz parte da estoria, nao faz parte dofilme.

Se aparecesse, p.e., o bandido perseguindo o mocinho e que-rendo mata-lo, e voce vivencia isto. Daı aparece o mocinho dandoum “amasso” na mocinha, e voce vivencia isto. Onde que vocevivencia o antes e o depois, o transcurso retroativo de tempo?

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Nao ha no filme nenhuma emocao relativa a um transcurso re-troativo de tempo. Prestem bem atencao, e uma relacao externaque simplesmente e afirmada.

[ Pergunta: o filme nao mostra esse momento de volta ao pas-sado? ]

Isso nao e vivenciado, simplesmente se superpoe. Claro que temalgo que representa, que faz o gancho, mas o gancho permaneceexterno.

[ Stella: nao e como “a arvore que fala”? ]Nao! Nao e como “a arvore que fala”. De jeito nenhum! Se

a arvore fala voce pode ter uma emocao de quem ve uma arvorefalando; se um burro voa voce pode ter a emocao de quem ve umburro voando; se aparece o ET, que e uma meleca falante, vocepode ter a emocao de quem ve essa meleca falando.

Por que o ET emociona? Porque ele e feio, esquisito, e fala desentimentos humanos. Ele e uma sıntese! E uma sıntese estetica!O ET e mostrado tendo sentimentos humanos e voce vivencia isto.

Agora, o homem que volta ao passado para retroagir sobre ofuturo, ele nao e mostrado fazendo isto. Ele e mostrado agindonum transcurso normal de tempo e afirma-se, no cartaz do filme,que ele fez isso. So se informa.

Voce pode informar no proprio filme, mas nao como um ele-mento que faca parte da propria trama. P.e., e que nem contar umaestoria e dizer que essa estoria se passou em 1725. A data ficaexterna. Ou entao, mostra um filme que se passou todinho den-tro de uma sala, e informa que isso aı se passou na Russia, p.e.Voce nao viu Russia nenhuma, nada, nada, nada. Voce superpoe ainformacao.

Voce superpoe logicamente, e nao esteticamente, prestem bematencao! Voce trocou um ou por um e, esta e uma operacao pu-ramente logica, que nao poderia ter uma traducao estetica porquea narracao, ou ela segue um tempo que vai do tipo de tras para

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frente, ou ela tem que (picotar(?)) e mostrar varias narracoes, p.e.,voce pode mostrar uma parte que se passou em 1960, outra que sepassou em 1910, mas quando esta se passando em 1910 faz de traspara frente, ou seja, cada uma das sequencias segue uma sequenciade tempo normal, linear para frente, e nao para tras. Nao e possıvela narracao para tras, nao e possıvel. Nao e “ananab”, e “banana”.

Se voce diz que tais coisas aconteceram depois, e que tais outrasaconteceram antes, mas voce nao mostra nenhum transcurso, otranscurso nao foi narrado, ele foi simplesmente afirmado.

Entao, a reacao normal seria dizer, “E empulhacao, porque vocedisse que ia me mostrar que ele volta no tempo e voce me mostrouum cara aqui no tempo normal, agora, voce me disse, me afirmouque era num tempo anterior! Mas eu nao vi isso...”

Em qualquer ficcao voce pode as condicoes fısicas, psi-cologicas, etc, etc, mas as condicoes logicas voce jamais des-mente, porque a imaginacao esta rigorosamente encadeada a leidas possibilidades, alias, sao as unicas que ela conhece.

[ Stella: e esse filme que esta aı, que e baseado no romance daVirgınia, “Orlando”, onde ela nao so vive 400 anos, mas como elamuda de sexo? ]

E isso e logicamente impossıvel? Voces ja deveriam ter perce-bido a diferenca entre uma impossibilidade fısica e uma impos-sibilidade logica. Viver 400 anos e uma impossibilidade logica?Mesmo se voce disser que esse quadro e realista, o sujeito durou2000 anos, isso e uma impossibilidade logica? Nao e impossibili-dade logica, no maximo e inverossımil.

Todas as ficcoes se baseiam no improvavel e no inverossımil, eos padroes do improvavel e do inverossımil se baseiam na possibi-lidade logica, que sao as unicas leis que a imaginacao reconhece.

“Ele viveu 400 anos, embora tivesse vivido apenas uma se-mana”, isso e que e ilogico! A impossibilidade fısica e mera-mente relativo, porque e improvavel, “Neste mundo nao acon-

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tece...”, quer dizer, desmente as condicoes da sua intuicao domundo sensıvel, desmente as suas conviccoes profundas adqui-ridas pelo longo habito, sedimentadas por um habito humano mi-lenar, mas nao e impossibilidade intrınseca.

A imaginacao nao esta presa as leis do bom-senso, da percepcaocomum e corrente, etc, etc. As unicas leis que existem para aimaginacao sao as leis da possibilidade pura.

Agora, “O Exterminador do Futuro” desmente exatamente estasleis. E o que me espantou e que as pessoas nao exigissem do filmenenhum sinal de que aquilo realmente e do futuro, ou do passado,e aceitar aquilo que esta dito no cartaz, ou no tıtulo.

E como se eu dissesse assim, eu vou mostrar para voces umaestoria de um faroeste, e ao inves de eu mostrar a estoria, eu digo,“Nessa estoria ha um personagem que corresponde ao conceito democinho e que age de acordo com as determinacoes logicas do seupapel, etc, etc”, quer dizer, eu falei sobre o filme, eu nao mostreiesse troco! Eu fiz um comentario externo.

No filme “O Exterminador do Futuro” o nucleo do enredo e ummero comunicado externo, que nao acontece, que nao esta la, eque voce aceita como uma referencia externa.

Que o espectador veja isto, e que ele saia contando a estoriacomo ela tivesse acontecido e sinal que ele conta uma estoria di-ferente da que ele viu no filme. Ele conta a estoria logicamente!...Ele la viu uma estoria cronologica, e a estoria que ele sai contandoe a relacao logica que ele mesmo inventou e que nao esta la. E eleacredita que ele viu aquilo!

Que o sujeito faca isto e nao perceba e sinal de que chegounum nıvel de imbecilidade atroz, e eu acho que esse filme foi feitojustamente para testar isto, “Vamos ver como e que as pessoasengolem...” Engolem qualquer coisa.

O cara nao foi para o passado, voce e que quis que ele fosse.Nao foi isso que foi mostrado no filme, foram mostradas acoes

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que transcorrem num tempo qualquer.Nao e uma coisa que voce ve, nao e essa coisa fısica, estetica,

e uma relacao logica, que nao esta no filme, que esta apenas pro-posta, dita, e que voce acredita que viu.

Vejam, ate que ponto voce esta disposto a aceitar uma mentirapara atender um desejo? Eu diria, “A imaginacao esta limitadapelas leis da impossibilidade intrınseca!”

P.e., voce pode imaginar que voce fosse uma outra pessoa vi-vendo em outra epoca, “Eu sou um prıncipe que mora no Afega-nistao, num palacio de marfim, com 40 princesas...”, voce podeimaginar tudo isso. Agora, quem era esse prıncipe? Era eu, e euvivi as experiencias do prıncipe com o meu ego, eu sentia. Ou eraum outro que sentia?

Aı entrou a impossibilidade logica, porque eu posso supor queeu era o prıncipe, mas algo de mim tem que se conservar. Seeu dissesse, “Eu era totalmente diferente, e tinha inclusive outrasmemorias, a minha memoria era outra, ...”, entao nao era eu! Umpouco o pessoal que fala de reencarnacao fala isso. Se voce naotem memoria pessoal entao voce nao tem utilidade para o ego econsequentemente nao e voce.

Voce pode satisfazer os desejos atraves da imaginacao contantoque voce nao negue o eu que e o detentor desses mesmos desejos.Agora, se voce esta disposto ate a isto, e a mesma coisa que vocecortar a cabeca para curar a dor-de-cabeca, nao e? Quer dizer, euma proposta sub-humana. Ninguem jamais deveria aceitar umacoisas dessas.

Eu poderia contar uma estoria que se passou comigo, sem eu ternascido? Eu nao posso!... O meu nascimento e um pressuposto deque eu possa ate ter desejos. Entao, esse ponto a imaginacao hu-mana jamais violou essas coisas, porque se ela viola, ela se desligaautomaticamente.

Voce fecha o ...(?)..., porque voce substitui por uma especie de

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combinatoria logica de computador. Voce acaba com o propriodesejo. Seria assim como, voce deseja tanto a fulaninha que vocequeria ser ela, p.e. Isso e demencia, nao e? Se voce e ela, vocenao a deseja mais, voce esqueceu o que voce queria. Isso aı negaa propria condicao do desejo.

Se o sujeito chegasse a esse ponto, como o esquizofrenico apai-xonado, que se identifica com o ser amado, alias, outro dia passouum filme com o Antony Perkins, que so faz papel de louco, e ti-nha uma moca que era secretaria de dia e prostituta a noite, ele vaila, fala um monte coisas esquisitas para ela, e ela pergunta, “Masquem e voce?”; ele fala, “Eu sou voce”. O cara esta muito louco,nao e? Isso aı ja transcendeu os desejos. Porque nele o desejode possuı-la se mistura com o desejo de que ela o mate. Que raiode desejo e esse? E um desejo que tem a sua propria negacao, nomesmo ato, e que nao pode ser atendido em hipotese alguma. Naverdade, e outro desejo, e a destruicao total.

A partir do momento onde o espectador comeca a aceitar essemonte de coisas e porque entrou num estado de depressao taogrande, mas tao grande, que ele para atender o seu desejo de imor-talidade ele concorda em jamais ter existido, p.e. Aı e o niilismototal, e a paralisia total da imaginacao, da inteligencia, de tudo. Euma coisa muito grave.

Se voce aceita a hipotese psicologista voce acaba aceitando tudoisso aı. As formas da imaginacao, as formas da arte, tudo isso vemdo horizonte que a inteligencia humana e capaz de abarcar numcerto momento. Se a inteligencia humana nao chegou a abarcaressa contradicao do psicologismo, aı vale tudo!

Os artistas sao antenas, eles captam coisas que estao no ar, queeles nao sabem de onde vem e expressam aquilo imaginativamentecomo podem. Seja um artista grande ou pequeno, ele vai captarformas imaginarias que nao sao criadas inteiramente por eles, naopoderiam criar do nada. Sao emocoes, e valores, e imagens, que

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estao por aı pelo (cosmos(?)). Quando voce vai ver o que que estapor aı, voce ve que e o psicologismo.

O “Exterminado do Futuro” e a mesma lei de sucessao que setorna verdadeiro a partir de um dado momento da mesma sucessao,mas que faz parte da mesma sucessao. E exatamente isso!

E isso que ele (Husserl) disse aqui, e a lei que regra uma su-cessao, mas que faz parte da mesma sucessao, como fato, de modoque ela se torna verdadeira a partir do momento onde ela acontece.Isto e o “Exterminador do Futuro”.

Vamos supor que fosse, p.e., a lei da evolucao das especies; masacontece que a lei da evolucao das especies, nessa hipotese, elaseria uma especie de bicho. Alem dela ser a regra do conjunto elae uma especie de bicho, e ela so passa a ser verdadeira a partir domomento onde essa especie de bicho surge, embora ela ja regrassetoda a evolucao anterior.. E uma loucura! Isso e impossıvel!

Numa sociedade onde se aceitou a hipotese psicologista, o “Ex-terminador do Futuro” tem todo o direito de exterminar o que elequiser.

Isso e uma maneira de voce fazer um sujeito acreditar que eleviu uma coisa que ele nao viu, que ele mesmo colocou la! E maisou menos como na propaganda subliminar.

Assistam ao filme e vejam se existe algum sinal que possa fazervoce ter a mencao de retorno ao passado. Isso e mais ou menosaquela estoria do Barao de Itarare, “O jovem D. Pedro I era pai dovelho D. Pedro II”.

[ Stella: quando voce falou em aulas passadas que um dos mo-tivos de erro das Ciencias e voce tomar uma evidencia indiretocomo direta, isto seria uma definicao do que o psicologismo fazou uma outra coisa?]

Para o psicologismo praticamente nao existe a evidencia direta.Todas as evidencias sao indiretas, esse e que e o problema. Naoexistem evidencias intelectuais, so as evidencias tiradas da ex-

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periencia, que no fundo sao coletadas por inducao.Isso aı e uma tragedia, mas essa tragedia nao acontece em todas

as Ciencias. Isso e irrelevante na Biologia, na Fısica, em toda aesfera da tecnologia, e gracas a Deus porque senao nos estarıamosvivendo em cima das arvores de novo. Mas em toda esfera dasCiencias Humanas isto aqui impera.

Existem muito males na cultura do seculo XX, mas nenhum taograve, tao profundo quanto este. Daı voce espera um contra-sensoque jamais ocorreu em toda a Historia e que fica ate inverossımil.

Os nazistas diziam que os alemaes sao a raca superior, o alemaoe bacana e o resto nao presta. Ao mesmo tempo o sujeito pretendeobter para isso a adesao dos outros povos. Como e possıvel umacoisa destas? Voce nao pode ter aliados, so pode ter derrotados.Mas, como e que com isso eles convenceram o japones, o italiano,como e que voce vai convencer o japones que ele e ariano?

Se eles dissessem assim, “Olha, se nos somos uma raca supe-rior, nos vamos ficar bem quietinhos, nos vamos dominar todoseles sem que eles percebam, e nao vamos fazer propaganda dessateoria”, ainda seria logico, mas voce faz a sua propaganda da suaraca superior para o cara que e da outra raca, e quer que ele achelegal? O que que e isso aı? E um psicologismo.

Em toda Historia humana nao houve nenhuma ideia tao estupidaquanto essa, nenhuma, nenhuma, nenhuma. Atila, o Huno, eramais razoavel do que os alemaes. E no entanto pegou, e num povoculto, letrado, etc, etc.

Agora, o terreno para isso foi longamente preparado nasCiencias, para que essa imbecilidade culminasse nas ideiasteoricas.

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19 de junho de 1993

Este texto aqui tem uma vantagem em mostrar para voces que oprogresso do conhecimento e muito ambıguo. Me parece que umateoria tao bem refutadinha assim, continuasse sendo acreditada porquase 1 seculo depois.

As pessoas normalmente imaginam que tudo o que veio antes eabsorvido e transcendido pelo que vem depois. A propria ideia deprogresso e que tudo o que veio antes e absorvido, quer dizer, ereinserido como elemento dentro de uma outra forma mais abran-gente. Sem isso nao tem progresso.

Assim como no crescimento de um indivıduo, as fases anteri-ores nao sao apagadas, cortadas, elas sao reabsorvidas dentro dapersonalidade do adolescente e essa por sua vez foi absorvida pelapersonalidade do adulto, de modo que voce ainda dispoe dos dadosda infancia sob uma forma mais sintetica.

Claro que voce nao lembra tudo com todos os detalhes, masvoce tem 2 ou 3 chaves que, puxando pela memoria, aparece todo oresto, de modo que todo o conhecimento adquirido na infancia naofoi perdido. Ele foi superado justamente porque nao foi perdido.Se fosse apagado, se perdesse o disquete, voce nao poderia dizerque houve progresso.

Normalmente nos imaginamos que cada nova teoria, cada novaideia, nova corrente filosofica que surge, absorve as anteriores.Absorve e supera. Mas essa ideia e muito ingenua, na verdade

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nao e assim, porque voce absorver o que foi feito antes nao e taofacil, nao e tao rapidinho.

O progresso e muito menor do que voce poderia imaginar por-que ele implica justamente essa absorcao do passado, a qual eproblematica e demorada. Muitas vezes o que acontece depoise simplesmente uma recaıda num nıvel anterior, que ja tinha sidosuperado. Um erro que ja foi superado, como a geracao seguintenao sabe que foi superado ela o comete de novo, esquece.

Entao, se a gente for medir assim, o que que houve em termosde progresso real, primeiro, todo progresso e por sua propria na-tureza, problematico, ele nao e uma coisa que ja esta garantidode uma vez para sempre; partindo de uma determinada geracaoter compreendido e superado algo, nao e garantido que a geracaoseguinte absorvera isso, nao tem garantia, nenhuma , nenhuma,nenhuma. Tem que estar sempre revitalizando.

A reabsorcao constante do passado, sintetizacao, simplificacaode certo modo, de todo o conhecimento passado e uma condicaoindispensavel para que exista alguma progresso, e essa condicaonao se cumpre automaticamente. Ao contrario, e extremamentedifıcil, e se torna mais difıcil a cada dia.

No caso, nos temos aqui um exemplo escandaloso de que rarasvezes alguma hipotese foi afastada com tanta minucia como essahipotese psicologista. Talvez tenha sido a teoria mais bem refutadada Historia. E, no entanto, ela esta aı...

‘As vezes, a mesma hipotese psicologista aparece sob outronome, e as pessoas nao reconhecem isso. Se nao estiver psico-logismo escrito na testa os negos nao percebem que e.

Sao teorias parentes, empirismo, psicologismo, sociologismo,etc, etc. O problema e que as teorias nao vem com o princıpioestampado na cara, as vezes esta escondido, nao e? Voce teriaque analisar muito a teoria para voce poder chegar no princıpio.Voce precisa chegar no princıpio dela, precisa primeiro enunciar

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o princıpio, para depois voce ver se ele e um fato, ou se e umaverdade teorica.

O criterio para voce distinguir se se trata de um psicologismono caso seria voce dispor de uma sentenca que explicite o negocio,mas primeiro voce tem que achar essa sentenca.

Hoje em dia, p.e., esse negocio da consciencia ecologica, mo-vimento ecologico, e que critica o meio universitario, o meioacademico, por ter perdido um tipo de consciencia cosmica,eles nao percebem a relacao que existe entre este conceito deconsciencia cosmica e o psicologismo, p.e.

Quer dizer que o indivıduo pode, por um lado, ser um ecolo-gista, ou ate defensor do holismo, e por outro lado, ele defenderteorias psicologistas, sem perceber que ele esta puxando o propriotapete. Isso acontece muito frequentemente.

Ideias incompatıveis convivem na mesma cabeca com uma faci-lidade impressionante, p.e., na medida em que no seculo passadocomeca a se formar esse psicologismo, junto vem a ideia sobre so-ciologismo, ou seja, voce vai tentar explicar tudo o que aconteceua partir dos fatos sociais, como se eles nao requeressem explicacaopelo seu lado. Como acontece, p.e., com esse Marcel Mauss.

[ Olavo le o trecho de um texto de Marcel Mauss ]Por muito tempo os filosofos discutiram categorias basicas

como espaco, tempo, infinito, etc, etc,... No seculo XIX os ne-gos descobriram o seguinte:

“As nocoes como a de tempo, espaco, a alma sagrada, nao exis-tem em nos senao sob a forma que lhes e dada pela sociedade.”

Eles descobriram isso e diz que e a verdade. Essas nocoes naoaparecem em nos em si mesmas e diretamente, mas atraves deuma determinada interpretacao que nos recebemos da sociedadehumana. Quer dizer que isso nao foi praticamente ninguem queinventou, que e um produto anonimo e coletivo, que as vezes vempor exemplo de uma tradicao mıtica. Entao, nos ja recebemos essa

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ideia de espaco e tempo filtrada por tudo isso.“Com isso, a discussao se desloca desde os conceitos em si mes-

mos ate a sua origem social, na esperanca de que, elucidando per-feitamente a origem social das causas, nos tenhamos elucidado oproblema a respeito do espaco, do tempo,...”

Ou seja, a discussao se desloca desde as coisas conceituadas atea origem historico-social dos conceitos, acreditando que a questaoestivesse sido superada. Entao nos dizemos assim, “Nao, essesproblemas relativos a definicao de espaco, de tempo, etc, etc, saopseudo-problemas, porque na realidade exprime apenas um fatosocial que esta por tras dele”, isso aqui mesmo e que ficou muitovago porque ainda que voce saiba toda a origem social dos concei-tos, nao resolveu absolutamente nada!

Se ele diz, “... a forma que lhes foi dada pela sociedade.”, eleesta pressupondo a sucessao historica, que por sua vez pressupoeuma nocao de espaco e tempo! Quer dizer que os mesmos concei-tos podem ser ditos de muitas maneiras diferentes, e essas manei-ras diferentes simplesmente refletem diferentes estruturas sociais,e nao refletem necessariamente no tempo e no espaco, e a mesmacoisa que dizer que equivale ao conceito de (nada e quase(?)).

Na medida em que se cria essa direcao sociologista, as dis-cussoes a respeito desses conceitos eles perdem o interesse. Oeixo se desloca completamente.

Se voce for ver, Karl Marx faz muito isso. Muitas questoesmetafısicas ele simplesmente dissolve na historia das discussoes,porque essas discussoes refletem tais ou quais estruturas sociais,tais ou quais processos dinamicos na sociedade, e pronto!

Ele comeca a se interessar pelo processo social que gerou, pro-duziu, o que suscitou essa discussao, como se a explicacao desseprocesso resolvesse a mesma questao. Isso e mais ou menos comose voce tentasse demonstrar o Teorema de Pitagoras vendo ascondicoes sociais implıcitas que permitiram a emergencia do pro-

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blema do triangulo retangulo no tempo de Pitagoras. Ainda quevoce soubesse todas essas condicoes o teorema nao esta resolvidopor causa disso.

Isto aqui e muito mais comum do que voces possam imaginar.Se voces pegarem os jornais diarios voces verao montes de dis-cussoes, de ideias em circulacao que sao tudo psicologismo. Sevoce retirar o psicologismo de baixo delas nao sobra nada. E comoo psicologismo nao tem fundamento elas nao podem ter funda-mento nenhum.

Esta e uma ideia que entrou tao profundamente na nossa culturaque todo mundo a considera natural e obvia. Tem-se como umdogma que nenhum conhecimento pode ser explicado, nao podeser compreendido, nem significa nada fora do contexto social queo criou.

P.e., nos podemos referir o surgimento da algebra a um certocontexto social. A algebra nasceu na Renascenca. Por que naoveio a algebra antes e por que depois?

E claro que houve uma serie de condicoes sociais, culturais,psicologicas, etc, que mudam a mentalidade e que deu margemque aparecesse a algebra, mas, bom, voce saber isso e uma coisa,voce saber algebra e outra muito diferente.

De fato, o processo historico do conhecer nao tem uma relacaotao logica assim com o ser, do tipo assim, “Ali esta um elefante, oelefante sempre existiu, mas nos so tomamos conhecimento deleem tal data”, de fato nao e assim. Por que?

Porque quando se trata de conceitos abstratos como tempo,espaco, relacoes matematicas, etc, etc, elas nao estao ali pronti-nhas esperando que voce as conheca. O processo do conhecimentoe muito complexo, e dialetico, tem contradicoes internas, de modoque o conhecimento do processo historico do conhecer nao e inutil.

O unico problema e nao confundir, p.e., a historia da algebracom a algebra mesma, ou a Sociologia da Geometria com a

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Geometria mesma, coisa que em hoje em dia se faz com umafrequencia assombrosa!

Muitas vezes o conhecimento da historia de um debate, sabercomo surgiram ideias, quais sao os fundamentos do processo quepermitiram seu surgimento, muitas vezes ele elucida mesmo, prin-cipalmente quando sao ideias erradas. No mesmo sentido que apsicanalise.

A psicanalise vai elucidar as condicoes culturais que fizeramvoce criar certas ideias erradas. Mas, p.e., qual e o nome da ruaque voce morava quando era moleque? Claro que o nome dessarua deve ter entrado na historia da sua mente num determinado dia,mas depois desse dia e que passou a existir a rua.

O estudo das origens temporais da concepcao que voce tem nadadiria a respeito da veracidade ou falsidade do conhecimento quevoce tem, ou seja, em alguns casos dizem e em outros nao dizem,e e preciso discriminar.

De qualquer maneira, o princıpio, o criterio de discriminacaoe a distincao entre o real e o ideal. Se se tratar de verdade numaesfera ideal, entao pouco importam os fatos que levaram ao conhe-cimento dela, como p.e., as relacoes matematicas. Claro que certasrelacoes matematicas sao mais facilmente perceptıveis desde umcerto momento historico, e menos desde outro, mas as relacoescontinuam existindo em si mesmas.

Eu posso dar um outro exemplo: teve um Congresso de Antro-pologia na Alemanha, que foi o Congresso mais famoso que teveno ’seculo, e esta obra, “Nova Antropologia”, e uma verdadeirasuma antropologica do seculo XX; foi uma obra coletiva de cen-tena de autores.

[ Olavo le alguns trechos ]“O avanco das Ciencias no seculo XX, como a Biologia, Antro-

pologia, etc, etc, tirou o carater dogmatico de muitos conceitos queexistiam na Filosofia antiga...”, e ele diz que, “ Carater dogmatico

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semelhante e o sentido dos conceitos de consciencia e vontade. Oconceito de consciencia e o conceito de vontade dominou de forma...(?)... o idealismo filosofico, tanto na teoria do conhecimentodo seculo XIX, quanto na sua psicologia...; basta ter claro queo princıpio de consciencia individual que se encontra na base doconceito da sıntese transcendental da percepcao (Kant) nao resis-tiu a crıtica que se iniciou com Nietzsche e que foi levada a vitoriano nosso seculo por Freud. Essa crıtica significa, entre outras coi-sas, que o papel social, em face da pessoa, passa para um primeiroplano, o que significa a constante identidade do outro. Existe re-almente o Eu, como e demonstrado na consciencia individual? Deonde aparece a continuidade da sua identidade? ... O rumo dapesquisa comportamental da um exemplo da desdogmatizacao daconsciencia individual, pois ali estudamos modelos de comporta-mento que sao comuns ao animal e ao homem e que nao podem seratingidos partindo do conceito como o de consciencia individual.”

Eu digo, ora, se nos chegamos a origem da consciencia indi-vidual, nos podemos chegar a sua elucidacao? ‘A origem tempo-ral, biologica, etc, etc? Como ela vai se formando atraves do ID,Ego, Superego, etc, etc, nos podemos? Aı voce esta estudando aconsciencia individual como um fato.

Agora, esse fato tem que ter comecado a acontecer em um deter-minado ponto, voce nao nasce com a consciencia individual gru-dada, ela pode se formar atraves de uma sucessao de papeis, epapeis podem ser, num certo momento, predominantes em relacaoa qualquer contexto individual; ela pode ate surgir deles.

O problema e que a consciencia individual esta idealmente pres-suposta em qualquer conhecimento que voce tenha. Mesmo queela seja uma falsidade, mesmo que voce tenha mostrado que ela euma falsidade, que nao existe consciencia individual alguma, voceprecisaria ter uma consciencia individual para desmentir isso.

Entao, nao existe nenhuma, nenhuma, pesquisa no campo dos

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fatos que possa dar conta desse problema.”E igualmente impressionante apreender da Biologia e da pes-

quisa do comportamento a continuidade dos passos do comporta-mento animal para o humano, e que nao se pode explicar facil-mente o salto para o homem a partir de certas peculiaridades pelosquais ele se diferencia dos outros animais.

O progresso da pesquisa mostra que os sentimentos anti- evolu-cionistas, originados de disputas contra o Darwinismo ja nao temnenhuma importancia hoje em dia. ... Ja nao se ensina que a almapertence a uma ordem superior mas, ao contrario, que a naturezanao e natureza naquele sentido que fomos obrigados a imagina-la pelas pesquisas do seculo passado ... O homem nao e homemporque dispoe de um equipamento acessorio que o relaciona comuma ordem superior (o conceito de Schiller), mas tambem porqueeste ponto de vista nao basta para explicar essa peculiaridade. Ohomem parece antes ser caracterizado pela instabilidade de suasmultiplas potencialidades e possibilidades de percepcao e movi-mento”.

Em ultima analise, e trocar o conceito de homem pelo conceitode aparato cibernetico auto-regulavel. Eu digo, tanto faz, vocechame de homem, ou chame de aparato cibernetico auto-regulavel,como voce quiser. Voce pode ate dizer que e uma continuidade daesfera animal para o homem, em todos esses casos o conceito deuma consciencia individual capaz de julgar a veracidade disso, elaesta pressuposta. Nao tem como voce escapar disto aqui!

“Parece ter sentido imaginar uma cibernetica completa, para aqual a diferenca entre maquina e homem realmente nao seja maisvalida”.

Isto e um livro de 1980, e de la para ca... Mas pouco importa!Mesmo se voce disser que voce e uma maquina, nao ha nenhumadiferenca entre voce e este computador aqui, isto nao e problemaalgum, o problema e que para voce dizer isto voce precisa pressu-

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por nesta maquina uma consciencia individual capaz de dizer simou nao diante de um juızo, ou diante de um conjunto de juızosproferidos, ou mesmo diante do conjunto de um programa.

Ou seja, nao ha possibilidade de voce pronunciar um unicojuızo, se voce nao parte do princıpio da consciencia individual.Agora, o surgimento historico dela, as analogias de diferenca queela apresente com relacao as formas de percepcao animal, ou ma-quinal, isso ...(?)... porque isso esta na esfera dos fatos.

Agora, idealmente, da para entender que sem uma conscienciaindividual auto-consciente, nenhum juızo pode ser conferido. Naoha nenhum, nenhum, nenhum. Facam voces o que quiserem, des-cubram o que descobrirem, negue o que negar, voce nao vai sairde dentro disso.

Se voce disser que o homem e uma maquina, a definicao dehomem nao importa nesse sentido, porque quem disse que aconsciencia individual tem que ser humana? Se nos fossemosmarcianos, hipopotamos, a consciencia individual que subscrevea veracidade ou falsidade do juızo e a mesma.

A ideia do sujeito do conhecimento, so em parte e uma ideia no(fruto(?)) dos fatos. No que ela tem de mais significativo, ela e umconceito ideal. Tanto essa nocao e indispensavel que mais tarde,aqui, o mesmo autor reclama do ensino universitario.

“O ensino universitario cultiva a adaptacao as formas racionaisde relacao de organizacao ao passo que descuida da independenciados juızos. Quanto mais racionais sao as formas de organizacao davida, menos se ensina e menos se pratica o juızo razoavel indivi-dual”.

Olha! Com 3 paginas de diferenca! E doido!“A isto acrescenta-se outra falta de liberdade. Existe a criacao

artificial de necessidades, especialmente atraves de anuncios mo-dernos e trata-se de uma dependencia dos meios de informacao”.

Ue! Mas se nao e discernido a diferenca entre um homem e uma

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maquina, por que voce estranha que essa maquina seja tao sujeita ainfluencia das informacoes que alguem injeta nela? Se nos somosmaquina nos temos o direito de ser influenciados por quem querque aperte o botao!

Daı mais adiante ele protesta:“O tecnico representa uma instancia inexpugnavel. Ja que

ninguem pode julgar um tecnico melhor do que outro tecnico, esteterreno tornou-se autonomo de um apela a Ciencia, irrefutavel. Aconsequencia inevitavel e que o que se diz na Ciencia e uma me-dida que vai muito alem da sua competencia”.

Ele reclama do abuso da Ciencia no campo pratico e nao per-cebe o abuso dela no campo teorico. Se a Ciencia, de fato, podeinvadir o terreno das relacoes normativas ideais, por que na socie-dade os cientistas nao podem tambem invadir outros campos ondequeiram? Se o abuso ja foi feito no terreno teorico, ele vai ser noato da pratica. Ele esta querendo a causa sem o efeito.

Notem bem, tudo isto aqui e um psicologismo enrustido. Voceprecisaria pegar a base do que que esse sujeito precisaria acredi-tar para ele poder dizer o que ele esta dizendo. E preciso voceencontrar o fundamento logico do que o cara esta falando.

Voce precisa supor que ele pensa logicamente — o que e umasuposicao nem sempre valida — e supor que deve haver uma co-nexao logica entre os seus princıpios e suas consequencias.

Entao, partindo das consequencias afirmadas voce remonta ateos princıpios e daı voce ve que elas sao incompatıveis com ou-tras coisas que sao afirmadas la para diante. E voce buscar a con-sistencia logica naquilo. Nao so a consistencia de uma frase coma outra, que e uma consistencia horizontal, mas uma consistenciaem profundidade, isto e, a dependencia de varias sentencas emrelacao a um mesmo princıpio.

Entre voce dizer que nao ha diferenca entre um homem e umanimal, e voce reclamar que as universidades nao fomentam o

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juızo individual, eu digo, nao ha princıpio comum que aguente!Sao duas coisas completamente diferentes!

Se nao ha diferenca entre um homem e uma maquina, entaonao pode haver diferenca entre o ensino e a programacao de umcomputador. Entao a Universidade esta muito certa em abolir ojuızo individual!

Agora, ele acha que no terreno da moral e da atuacao polıtica,etc, etc, pode haver uma total independencia em relacao a aquiloque ele mesmo afirmou no campo biologico!

E como se dissesse, “Aqui existe um homem biologico, o qual etotalmente uma maquina, e nao e discernıvel de um computador”,porem, “Aqui existe um homem social que e dotado de opiniaopropria, juızo individual, etc, etc, autonomo, e parece aquele ho-mem espiritual de que falavamos em 1900 e antigamente”.

Isto quer dizer que uma simples mudanca no regulamento uni-versitario pode mudar a lei da Biologia. E esta distorcao surge daesperanca de que a investigacao no terreno dos fatos possa resolveresse tipo de problemas ideais.

Entao voce quer saber o que e tempo, espaco, o Eu, aconsciencia, etc, etc, o sujeito vai fazendo a investigacao psi-cologica por inducao e ele vai descobrir um monte de coisas, masnao o quid est, porque vai descobrir apenas o que acontece.

Agora, o que acontece so faz sentido dentro de um quadro dereferencia que e puramente ideal e que tem que ser dado a priori,isto sempre foi assim. Nao tem nenhuma pesquisa de relacao en-tre causa e efeito que possa explicar o que e causa, p.e. Voce podeter milhoes de causas mas voce so percebe que sao causas porquevoce tem a nocao de causa. E voce tentar obter a nocao de causaindutivamente, voce chegar na famosa objecao de Hume, “Eu vejouma bola de bilhar rolando, depois vejo outra bola de bilhar ro-lando; eu nao vi a primeira causar o movimento da segunda. Eu vique a segunda comecou a rolar na hora que a primeira parou.”

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De fato, a causa nao e um dado sensıvel, e uma interpretacaoque voce faz baseado num conceito que se tem. Agora, esse con-ceito por sua vez, nao poderia ser obtido da experiencia, ele podeate ser refletido na experiencia. Se voce sabe ja mais ou menos oque e causa, voce observa causas, fora.

E do mesmo modo que um sujeito que nao sabe o que e o Eu.P.e., o esquizofrenico que esqueceu que ele e ele, e que voce evoce, alguma experiencia pode demonstrar para ele isso? Naopode mais, porque na hora que perdeu essa conexao ideal, a ex-periencia nao vai devolver, nao vai reconstruir isso jamais.

O recurso a experiencia para elucidar essas coisas numainvestigacao util, em parte e um subterfugio covarde para aliviara responsabilidade da consciencia individual. Por que? Porquese tem coisa que voce sabe, que so voce sabe que sabe, nessecaso voce e o ultimo testemunho, nos quais nao existe nenhumaprova objetiva externa, entao voce fica como o pino que sus-tenta aquela maquina toda funcionando. O conhecimento tem, emultima analise, o testemunho humano.

E esse testemunho humano nao pode ser objetivo, ele podeser intra-subjetivo supondo-se que os varios indivıduos falem averdade. Entao vai haver ate este fundamento etico da propriaCiencia. A Ciencia vai ser verdadeira dependendo de que as tes-temunhas falem a verdade e que, inclusive eu seja suficientementehonesto para aceitar a verdade.

Daı os cientistas pensam assim, “Nao, mas, seres humanos,neste mundo, nao sao dignos de confianca, nos temos que des-cobrir algum testemunho mais fidedigno”. Mas, claro, o objetivoe este! E voce achar o fundamento externo da veracidade. Masisto aqui e esquizofrenia total!

E a mesma coisa que voce estar andando de bicicleta e, de re-pente, voce percebe que a bicicleta esta ficando de pe apenas por-que voce quer, e voce que esta fazendo aquele milagre. Daı voce

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quebra o padrao na esfera de equilıbrio que te segura e voce parade pedalar, e daı, catapimba!, ela cai!

Ou seja, uma vontade de abolir o sujeito como agente e che-gar a uma especie de visao totalmente externalizada, totalmenteestatica. E a vontade de se ver meio de fora, mas isso so e legıtimoate certo ponto, ate o ponto onde voce sabe que ver-se desde forae uma ficcao.

Se voce comecar a achar que a visao desde fora e mais verda-deira do que a de dentro, voce ja esta mentindo, porque voce ja-mais esteve de fora, voce jamais fez as minhas acoes, voce jamaisteve as minhas percepcoes. Voce pode fingir, voce pode imaginar,mas na verdade voce tem as suas percepcoes, voce e o senhor dassuas acoes, voce e o agente das suas acoes e na verdade voce e aunica testemunha do que se passa aı dentro e nos dependemos doteu testemunho, ou entao, voce mesmo. Nao tem escapatoria.

No fundo, no fundo, esse negocio todo e uma fuga da solidaohumana. No Corao esta escrito assim, “... e Deus falou para ohomem, que tinha procurado uma testemunha que pudesse atestara existencia de Deus. Ele vinha pedindo isso para as estrelas, paraos sois, para as montanhas, para os animais, e todos correram ater-rorizados, e que somente o homem aceitou este encargo porque ohomem e livre.”

Vejam que coisa profunda! O homem e um ser que tem o conhe-cimento e exige dele uma imensa responsabilidade que ninguemmais tem. O outro nao pode ter no lugar dele, p.e., o testemunhodas galaxias, das estrelas, isso so vale se voce estiver la para ver.

Entao nao e uma verdade objetiva, a verdade e subjetividade daauto-consciencia. A auto-consciencia e que e o fundamento daobjetividade, e nao o contrario.

Agora, se eu quero achar um fundamento objetivo da auto-consciencia e a mesma coisa que eu querer achar, p.e., um fun-damento grafico da Geometria. Quem sabe a Geometria se assenta

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nas propriedades objetivas do papel? Isso e uma incapacidade deaceitar a sua condicao de sujeito cognoscente, e transferi-la paraa sociedade humana, para as instituicoes de ensino, para os arqui-vos, bibliotecas, como transferi-la para as coisas. Quer dizer, e umalıvio da solidao, e uma nao aceitacao da solidao humana.

E uma covardia e ao mesmo tempo e um traco esquizofrenico.Agora, esse traco e comum no ambiente de todas as Ciencias Hu-manas, e na verdade, na Filosofia cientıfica tambem.

P.e., voce procurar um dado que seja absolutamente igual paratodas as pessoas e que independa do testemunho humano; eu digo,para que isso? Se o dado numero um e a insubstitubilidade dotestemunho humano, este dado e constitutivo do cosmos. Naoexiste um cosmos objetivo que independa totalmente da presencahumana pela simples razao de que dentro desse cosmos existe oser humano, e se voce pudesse retirar esse ser humano de dentrodo cosmos, esse cosmos seria diferente.

A ideia de que a verdade objetiva e como as coisas serem inde-pendentemente do observador, esta ideia e auto- contraditoria. P.e.,a verdade objetiva sobre esta garrafa e como ela e, independente-mente do observador. Eu digo, bom, esta garrafa aqui, indepen-dentemente do observador e invisıvel. Ou nao e? Ela como formavisıvel ela so e visıvel por alguem que tenha a faculdade visıvel,mas ela nao e visıvel pelo cego, pela parede, alias, do ponto devista da parede esta coisa aqui seria totalmente invisıvel, ela seriainocua. Para a parede isto nao existe. Entao seria uma especie deobjetividade redutiva, que vai tirando as qualidades do objeto atereduzi-lo a suposta “coisa em si”; tudo comeca com essa malditaideia de “coisa em si”!

Os negos nao entendem que se e coisa, nao e em si. Voce podefalar “ser em si”, mas “coisa em si”, nao. Agora, o “ser em si”nao e coisa, e existencia. Coisa e substancia, e esta garrafa, estecopo, voce, isto e substancia. Agora, se eu digo “o ser em si”,

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ele e existencia em si, independentemente de quais as substanciasexistentes. Nos podemos conceber a existencia em si mesma, ouseja, a existencia independentemente dos existentes.

Uma coisa que existe, uma essencia qualquer, existe a partir domomento onde ela tenha relacao com outras coisas, com outrasessencias, em relacoes espaco-temporais. Portanto ela existir emsi mesma e a mesma coisa que voce dizer que um quadrado e umquadrado, independentemente dos seus lados e angulos. E exata-mente a mesma coisa. Isto nao e forca de expressao, e uma analiselogica da “coisa em si”.

Quer dizer, eu quero conhecer a “coisa em si”, isto e, inde-pendentemente de todas as relacoes que ela possa ter com quais-quer outros seres, entao essa “coisa em si” e apenas uma essencialogica, e a essencia logica so pode ser conhecida em si mesmaporque ela e conhecida independentemente da sua existencia. Elae conhecida apenas enquanto possibilidade logica, ela nao e uma“coisa”, ela e uma possibilidade de “coisa”, o que e muito dife-rente.

Vamos supor, p.e., que eu quero conhecer o Alexandre em si.Entao seria o Alexandre independentemente de todo o conjunto derelacoes que ele tenha com todos os outros seres, inclusive pai emae, ou seja, o Alexandre independentemente dele ter sido gerado.Porque ter sido gerado ja e sofrer uma acao. Entao, o que o Ale-xandre seria se ele nao fosse gerado? Ele seria uma possibilidadede Alexandre, e nada mais.

Entao, se nos procurarmos a objetividade na supressao d su-jeito cognoscente nos estamos criando um mundo mais fictıcio quepossa existir. O maximo que nos poderıamos chegar e supor ou-tros sujeitos cognoscentes que vissem a coisa de outra maneira e,alias, a propria nocao de um sujeito cognoscente supoe essa pos-sibilidade. Nao se pode conceber um sujeito cognoscente isolado.

P.e., suponha que voce tenha, de um lado um homem, e do outro

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uma pedra. Se o homem ve a pedra e sabe que ve a pedra e porqueele sabe que a pedra nao o ve. Ou sera que ele nao sabe? Essesujeito, ao ver a pedra, tivesse a mesma reacao que teria ao verum outro ser humano, supondo que a pedra o ve, que ela tem umaopiniao sobre ele, que ela gosta dele ou nao, ele esta vendo com aimaginacao dele.

Quer dizer, ver o objeto e saber algo do que o objeto sabe aseu respeito. P.e., se eu vejo um cachorro eu sei que nao adiantaeu falar com um cachorro, nao adianta eu dar uma explicacao, soadianta eu gritar; ele e sensıvel a isto. E se eu vejo uma pedra eusei que ela nao e sensıvel a isto.

Portanto eu tenho alguma informacao a respeito da informacaoque o objeto tem a meu respeito. Portanto eu nao sou o unicosujeito cognoscente que esta em questao, o objeto tambem e vistocomo sujeito cognoscente porque se ele nao for visto assim eu naoo conheco absolutamente. Se eu nada sei a respeito do que e oobjeto, eu nada sei a respeito dele. E isso se refere inclusive ascoisas inanimadas.

Eu sei que a pedra e pedra porque eu sei que ela nao e bicho. Eeu sei que o animal e um animal porque ele pode me morder, ouporque a vaca da leite, e assim por diante. Eu sei algo a respeitodele. Eu sei algo das relacoes que ele pode ter comigo e portantoeu o vejo alternadamente como objeto e como sujeito. E a mimmesmo eu me vejo alternadamente como sujeito de um conheci-mento e como objeto de um conhecimento que aquele objeto temde mim. Isto esta suposto em qualquer relacao cognitiva, e isto euma coisa que escapou a Filosofia durante muitıssimo tempo.

Os caras supuseram que a relacao sujeito-objeto e “one-way”.Se ela for “one-way” ela nao acontece. Se eu nada sei sobre oobjeto desde o ponto subjetivo dele, eu nada sei dele, ele e o estra-nhamento total.

Na verdade, suponha uma pedra cujo ponto de vista voce nada

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sabe. Voce nao sabe que a pedra te ignora, voce nao sabe quea pedra e insensıvel, voce nao sabe que a pedra apenas pesa, ouseja, voce nada projeta sobre ela e portanto voce nao recebe delanenhuma informacao. Isto e uma percepcao de pedra? Isto e umapotencia de percepcao de pedra apenas.

A pedra nao se perfilou na sua frente como um objeto distinto.Voce nem sequer a distinguiu de voce mesmo. E assim como obebe ve a pedra. E uma pre-concepcao, vai ter uma percepcao dis-tinta o tempo todo. Tudo aquilo que ele falasse, ele nao percebeua mais mınima atencao...

Esse dialogo entre o sujeito e o objeto esta tao automatizado quenos nao pensamos nele, e na hora que nos comecamos a pensar,pensamos que estamos ficando loucos. Mas, nao, antes e voceestava louco!

Se eu nao me vejo desde o ponto de vista da pedra eu nadasei sobre a pedra. E so voce perguntar a qualquer pessoa, “Essapedra fala?”, “Se voce pedir para ela vir aqui, ela vem?”, todomundo sabe que nao, nao e? Portanto, voce sabe quais sao aspossibilidades de acao da pedra; voce sabe as suas possibilidadesde acao sobre ela, e sabe as dela tambem. Isto esta subentendidona percepcao.

Agora, normalmente nos nao analisamos isso porque esse pro-cesso se cumpre numa fracao de segundos, mas que tudo isso estaali subentendido, esta.

Portanto, o que seria a pedra se eu fizesse a abstracao de qual-quer sujeito cognoscente? P.e., o chao em cima do qual esta apedra, esta recebendo informacao dela, ou nao? Claro que esta,ela esta pesando em cima dele. Entao esse sujeito tambem naopoderia estar ali para que voce pudesse pensar na pedra em si. Apedra tem que estar agindo e ser objeto de acoes possıveis. Umapedra em si, p.e., nao seria quebravel, nao e? Nao tem quem aquebre. Ela perderia esta possibilidade de ser quebrada. Ela nao

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pode pesar porque para pesar tem que pesar em cima de algo.Entao, a expressao “coisa em si” e auto-contraditoria, porque

ser coisa e ter um conjunto de relacoes com outras coisas. O quenao tem relacao com nada e so essencia pura, a qual nao existe.Entao nao ha pedra, mas o conceito de pedra. O conceito de pedranao pesa. Voce nao pode jogar um conceito de pedra na cabeca doseu adversario, voce nao pode nem ter um conceito de pedra norim, e assim por diante. Essa e a nocao ingenua de objetividade.

A objetividade consiste em, nao voce abolir o sujeito, mas es-tabelecer em torno e a proposito do objeto o conjunto das pers-pectivas que articulam corretamente esse objeto no lugar onde eleesta.

Entao e voce saber o que e a pedra desde o ponto de vista dochao que esta embaixo dela, da atmosfera que a cerca, da suacomposicao quımica, e do seu proprio ponto de vista, e assim pordiante, ate voce alinhavar as suas varias perspectivas e fazer umtodo concreto, e isso e objetivo.

Tudo o que existe e fenomeno. E o que tem por tras dofenomeno? Nao tem nada. Quer dizer, que raio de coisa deve-ria existir por tras do fenomeno pedra? Deveria existir uma outrapedra? Por que esta aqui nao basta? Quer dizer que a pedra queacertou na sua cabeca nao basta, tem que ser a “pedra em si”?

Aqui a gente poderia chamar de, tambem, de objetividade su-pressiva, que e quando o sujeito abole qualquer testemunho do fatoe voce separa do acontecimento em si, do fato em si, nao enquantoconsiderado enquanto fenomeno. Entao, o fato em si, seria aquelefato que nao foi fenomeno para ninguem. Mas, o que e fato? Fatoja e uma relacao, nao e?

Entao, tudo isto aqui vem de uma grossura filosofica que surge,por incrıvel que pareca, do sucesso das Ciencias Naturais, ondevoce acredita que voce recorrendo ao mundo dos fatos voce vaobter uma explicacao completa.

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Primeiro e o sucesso das Ciencias Naturais que cria essa nocaodos fatos, tanto que as Ciencias Sociais depois comecam a se cons-tituir com a nocao de fato social. Agora, o que os neguinhos naoperceberam e que as Ciencias Naturais deram resultado nao por-que investigassem os fatos, esta e uma visao exatamente invertida,porque investigar os fatos o homem sempre investigou, o que mudada Ciencia antiga para a moderna, a Ciencia pos-galilaica, nao eque ela passa a observar os fatos, e o contrario, ela comeca a ma-tematizar essas observacoes. O que que os fatos tem que ver comisso? Nao tem nada, quer dizer, a Ciencia se tornou mais abstratado que era antes, e e por isso mesmo que ela retem alguma coisa.

Quer dizer, essa grosseria filosofica surge de uma mainterpretacao do sucesso das Ciencias Naturais, e quando isso setranspoe para a esfera das Ciencias Sociais e ja essa nocao erronea,mal-interpretada, e que e transposta.

P.e., a ideia de fato social que e de Durkheim; quem disse queo que acontece na esfera social deveria poder ser visto como fato?O cara (quer estar(?)) na esfera da natureza e dos fatos, e que aCiencia Natural alcancou o sucesso porque ela observava os fatos.Entao ele ja nao entendeu a Ciencia Natural.

Na verdade, a observacao dos fatos na Ciencia Natural modernae reduzida ao mınimo, porque o que interessam sao justamenteas relacoes matematicas que voce estabelece, que e exatamente oque fazia Galileu. Portanto, se a Ciencia Natural obteve sucessonao foi por causa dos fatos externos, mas por causa de uma maiorcontribuicao do sujeito. Nao seria errado voce dizer que a Cienciase tornou mais subjetiva, nao e?

[ Olavo retorna ao texto do Husserl ]Capıtulo 5AS INTERPRETACOES PSICOLOGICASDOS PRINCIPIOS LOGICOS25. O princıpio de contradicao na interpretacao psicologista de

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Mills e de SpencerJ. St. Mills ensina que o principium contradictionis e “uma de

nossas mais antecipadas e mais imediatas generalizacoes da ex-periencia”. Ele encontra o seu fundamento primitivo no fato deque “crer e nao crer sao dois estados distintos do espırito”, que seexcluem mutuamente.. Sabemos isto — prossegue literalmente —pelas observacoes mais simples de nosso proprio espırito. Perce-bemos tambem que a luz e a obscuridade, o ruıdo e o silencio, aigualdade e a desigualdade, o andar para frente e o andar para tras,a sucessao e a simultaneidade, em suma, todo fenomeno positivoe sua negacao, sao fenomenos distintos que se encontram em umarelacao de antagonismo extremo. “Considero”, diz ainda, “o axi-oma em questao como uma generalizacao de todos estes fatos”.

Quer dizer que, pela experiencia repetida, do ruıdo, do silencio,da igualdade, nos acabamos induzindo uma lei.

A unica dificuldade neste ponto e compreender como pode pa-recer convincente semelhante teoria. A primeira coisa que sur-preende e a patente incorrecao da afirmacao segundo a qual oprincıpio que diz que duas proposicoes contraditorias nao sao ver-dadeiras e, nesse sentido, se excluem, e uma generalizacao dos“fatos” indicadores de que a luz e a obscuridade, o ruıdo e osilencio, etc, se excluem; estes sao tudo antes que proposicoes con-traditorias. Nao se compreende muito bem como Mills pretendeestabelecer a conexao logica destes supostos fatos de experienciacom a lei logica.

Lemos, com referencia a estas leis, o seguinte: They may ormay not be capable of alteration by experience, but the conditionof our existence deny to us the experience which would be requi-red to alter them. Any assertion, therefore, which conflicts withone of these laws — is to us unbelievable. The belief in such aproposition is, in the present constitution of nature, impossible asmental fact.

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Eu acredito que isto aqui ja poderia ser contestado no proprionıvel em que Mills coloca a coisa que e o ponto de vista historico,que e o ponto de vista da origem, que e um ponto de vista queHusserl nao discute.

Mas, independentemente das contestacoes que Husserl vai fa-zer mais adiante, o proprio ponto de vista de que, temporal-mente falando, o princıpio de contradicao emerge de tais ouquais experiencias, ja pode ser contestado na raiz mediante a se-guinte pergunta, “Como eu poderia perceber a repeticao do mesmofenomeno se eu ja nao tivesse uma raiz de uma percepcao de iden-tidade?”.

Eu simplesmente nao perceberia o homogeneo e nem adefinicao entre o homogeneo e heterogeneo. Seria uma percepcaoatomıstica, quer dizer, o princıpio da repeticao e da identificacaodas mesmas essencias por tras de fenomenos que sao apenas se-melhantes, e uma predisposicao inata no ser humano. Mesmodo ponto de vista empırico isto aqui seria inaceitavel. Porem, acontestacao que Husserl vai fazer e bem mais elegante.

[ Stella: se voce tem o princıpio da identidade anterior a tudo,entao ja indica que existe uma logica que nao e psicologıstica, quee formal. ]

Nao. Mesmo que ela fosse psicologista, mesmo que ela fosseuma predisposicao biologica do ser humano, mesmo assim, elaestaria pressuposta anteriormente a experiencia. Ela sera a propriaestrutura humana.

Como e que eu posso perceber a diferenca entre a luz e a obscu-ridade se quando retorna a luz, ou quando retorna a obscuridade,eu nao percebo, de novo, a presenca do mesmo?

Toda e qualquer percepcao de qualquer coisa, toda e qualquercomparacao, pressupoe no homem a consciencia do mesmo edo outro, do homogeneo e do heterogeneo, ou seja, pressupoe oprincıpio de identidade.

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Na medida em que pressupoe o princıpio de identidade, oprincıpio de contradicao e uma simples decorrencia do princıpiode identidade que, se o sujeito nao percebesse por essa maneira,acabaria percebendo por outra mais cedo ou mais tarde, ou mesmoque nao percebesse nunca estaria logicamente implıcito.

Entao, a linguagem, ou o princıpio de significacao, e impossıvelsem a percepcao do homogeneo e do heterogeneo. Se voce re-montar a aquele famoso exemplo do signo da mulher cega, surdae muda, voce ve que o signo so foi possıvel pela repeticao doestımulo. Porque na hora que a mulher identifica que e o mesmo..., mas o mesmo nao e o mesmo!

Se eu pego isto aqui, solto, e depois pego de novo, nao foi amesma experiencia que eu tive, eu tive duas vezes uma experienciaque e essencialmente identica. Portanto eu percebi uma identidadede essencia entre duas experiencias que temporalmente sao dife-rentes, e daı eu posso registrar e repetir, mas nao poderia haversequer significacao sem o mesmo e o outro.

Entao, o princıpio basico, nao so logicamente mas temporal-mente, e esse do mesmo e do outro, e portanto e a identidade.Senao nos poderıamos cair tambem, — lembram que eu conteipara voces a estoria do Piaget, das bolinhas — cair na mesma es-parrela do Piaget e achar que a crianca, porque ela confunde adistancia das bolinhas com o numero de bolinhas, ela nao tem umsenso de identidade.

Mas eu digo, nao, e ao contrario, para que a crianca possa fazeressa confusao ela tem que ter um princıpio de identidade, senaoela nao conseguiria fazer.

[ Olavo faz um desenho no quadro ]Caso 1 — o o o o o o (6 bolinhas com um espacejamento)Caso 2 — o o o o o o (6 bolinhas com um espacejamento maior)Se voce acha que o volume de bolinhas aumentou de quantidade

na hora que o espacejamento foi aumentado e porque voce tem a

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identidade da extensao. Se a extensao continuasse a mesma, seriao mesmo numero de bolinhas; aumentou a extensao, aumentaramas bolinhas, e um raciocınio errado, mas fundado num princıpiode identidade.

Agora, na hora que um homem como Jean Piaget fala umacoisa dessas, nao e possıvel que ele seja burro assim, e porque eletem um preconceito, tem um odio d que quer que seja da esferabiologica.

O quer que ele nao encontre uma explicacao biologica capaz dematar a charada inteira, o que quer que exija dele uma remessa auma esfera ideal normativa que saia da esfera dos fatos, ele ficadesesperado.

Piaget diz que o princıpio de identidade e aprendido, que acrianca nao tem nenhum, que a crianca so tem o princıpio de auto-conservacao, o qual aplicado a tais ou quais ...(?)... vira princıpiode identidade.

A minha explicacao para o caso das bolinhas e o seguinte: acrianca nao sabe a distincao entre quantidade distinta e quantidadecontınua, ou seja, ela nao sabe a diferenca entre extensao e quan-tidade aritmetica, porque quantidade aritmetica e uma abstracao,que ela so pode fazer depois.

Quando voce fala conjunto de 6 bolinhas, nos queremos di-zer conjunto aritmetico de 6 bolinhas, e ela quer dizer, o con-junto espacialmente determinado daquelas 6 bolinhas. Portanto,alem da quantidade aritmetica aquele conjunto tem um tamanhogeometrico, que e o tamanho que as bolinhas ocupam, e ela naoseparou uma coisa do outro.

Para ela poder separar a pura quantidade aritmetica, da ex-tensao, leva mais um tempo. Na hora que o conjunto aumentoude extensao, ela acha que aumentou de quantidade. Prova de queela nao distingue a quantidade, da extensao.

Quantidade de elementos separados, p.e., quantidade discreta,

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ou distinta, ela acha que quando aumenta a extensao, aumenta aquantidade discreta, como um elastico. O elastico, p.e., tem 5cm e estica para 8 cm; ele nao tem 5 cm, um centımetro sepa-rado do outro, nao e? Nem 8 cm, um centımetro separado do ou-tro. Aumenta a extensao inteira. Portanto, extensao e quantidadecontınua. Entao a crianca aumentando a quantidade contınua, istoe, a extensao, aumentou a quantidade discreta, porque ela nao con-seguiu perceber a diferenca entre as duas coisas. Por que? Porquena verdade esta distincao e abstrativa. Voce nunca vai ver nenhumaquantidade discreta de nada, nada, nada, que esteja fora de algumaextensao. P.e., quantos nos somos aqui? Voce pode contar umnumero, mas esse “quanto nos somos” ocupa ou nao ocupa umaextensao determinada no espaco?

Quantidade discreta, em si, so existe mentalmente, nao existena natureza. O que existe na natureza sao extensoes.

A crianca nao faz essa abstracao ainda, porque para fazer essaabstracao ela precisa querer fazer. O ato abstrativo e voluntario.Voce separa um aspecto do outro se voce quer fazer isso e se voceprecisa para algum motivo. Senao o aprendizado da aritmeticaseria espontaneo, e de fato ele nao e.

Agora, o mero senso de auto-conservacao tanto nao pode ser abase da identidade porque ele supoe a identidade. P.e., nos naoconhecemos certas patologias onde as pessoas perdem o senso deauto-conservacao? Quer dizer que o senso de auto- conservacaonao e inerente ao homem, nao e? O senso de auto-conservacaoe uma reacao complexa que o ser humano tem em face de umambiente biologico total, e muito mais integrado que o senso deidentidade. Porque senao ele vai auto- conservar o que?

Vou dar um exemplo: voce so pode desejar conservar uma coisaque voce sabe que existe. Aquilo que voce nao tem notıcia deque existe voce nao auto-conserva. P.e., o famoso caso de um ja-care, que contava a Amelia; o jacare nao tem sensibilidade no rabo,

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entao a onca, que aprecia muito a carne de jacare vai comecar a co-mer o jacare pelo rabo, e ele nao percebe coisa nenhuma. Quandopercebe ele ja esta comido pela metade. Quando chega no pontoonde e sensıvel e o tempo de sentir e morrer.

A auto-conservacao pressupoe o senso da integridade do orga-nismo. A auto-conservacao e tremendamente complexa. E sim-ples tendencia que nao se realiza de uma maneira perfeita na maiorparte dos casos. A auto-conservacao, ao contrario, ela e que e fo-mentada pela Razao. Quer dizer, o Piaget quer reduzir a Razao aosenso de auto-conservacao, e o senso de auto- conservacao ajuda avoce captar certas estruturas racionais, mas as estruturas racionais,em si mesmas, elas nao tem nada que ver com isso. Nada, nada,nada...

Entao voce querer achar uma raiz biologica dos conceitoslogicos e voce forcar no sentido psicanalıtico. E claro que aevolucao biologica tem algo a ver com a captacao de algumas des-sas nocoes. Por outro lado, voce saber que o ser humano tem ounao tem um princıpio de identidade inata e perfeitamente irrele-vante do ponto de vista logico.

Se voce nasce com o sentido de identidade, ou voce o aprendeudepois, eu digo, ue, o que e que isto muda as coisas do ponto devista logico, do ponto de vista ideal? Primeiro que esta questao jaseria irrelevante; voce provar que o sujeito nao nasce com o sensode identidade, mas o adquire depois, nao provaria que ele tem umavida biologica, provaria apenas que o conhecimento da identidadetem uma vida biologica.

Este princıpio que voce, pela sua evolucao biologica, chega aconhecer em tal ou qual data, ele vale ou nao vale? Esse e que e oproblema.

A validade do princıpio de contradicao, ou do princıpio de iden-tidade nada tem a ver com etapas do aprendizado de que voce to-mou conhecimento dele.

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O desejo de reduzir todas as relacoes ideais, da esfera dos fatos,e um desejo de voce escapar completamente do incorporeo. Nadamais e incorporeo, nao pode ser, e proibido.

Voce nao se conforma de que certas realidades, certas verda-des, so possam ser captadas abstratamente pelo espırito humano,mas voce quer que a natureza te imponha essas coisas desde fora.Voce esta na lei da liberdade, mas voce escolhe a lei da servidao.Voce quer que o princıpio de identidade te seja imposto do mesmomodo que a lei da gravidade. Entao voce tem que achar um fun-damento biologico que esse princıpio se reduza a esse fundamentobiologico. Entao voce entra num monte de contradicoes.

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08 de dezembro de 1993

[ A aula comeca com uma pergunta a respeito da aula anterior ]Quais os sinais de psicologismo no texto de Capra e no de David

Bohm?Em David Bohm o sinal do psicologismo e obvio, ele con-

funde o processo do conhecer com a natureza da coisa conhecida.Quando ele diz que o conhecimento por conceitos e estatico, querecorta figuras estaticas, e que o processo real do conhecer — co-nhecer pelas sensacoes — e um fluxo permanente, alem de ele es-tar dizendo algo que e intrinsecamente falso, porque essas coisasnao sao de fato assim. Mas mesmo que fossem assim ainda haveriaum segundo inconveniente: Quem diz que a coisa que e conhecidaatraves de um fluxo de impressoes e em si mesma dinamica?

Se eu faco um quadrado na parede, o qual permanece inaltera-damente igual, nao consigo ter duas impressoes exatamente iguaisa respeito desse quadro. Entao, por que o conhecimento obtidosob a forma de fluxo deveria ser mais fiel a realidade do que umoutro? Isto e mero psicologismo. O que e fluxo e o conhecer, nao oconhecido, mas Bohm, partindo do pressuposto de que o processoreal do conhecimento e um fluxo, conclui que a realidade conhe-cida deva ser tambem um fluxo, coisa que em muitos casos ela naoe. Inclusive, os modelos de universo que ele propoe sao todos nabase do fluxo ininterrupto. E por que isso deveria ser mais fiel arealidade do que um modelo estatico? E porque o seu modelo de

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conhecer e fluxo, a sua experiencia interna e fluxo; mas o fato deeu conhecer assim, nada revela quanto a natureza do objeto, revelaapenas quanto a minha natureza. Entao, aı voce tem um exemplotıpico de psicologismo.

Tudo aquilo que sei sobre o meu modo de conhecer se referesomente a mim, e nao ao objeto. As conexoes do objeto so serevelarao independentes da minha modalidade de conhecer se eufor capaz de concebe-las idealmente, por abstracao. Por exemplo,tenho a visao desta porta, e claro que eu nunca tive duas visoesdela que fossem exatamente iguais, cada vez que eu vi a portaestava a uma distancia diferente, sob uma luz diferente, etc, etc.A unidade deste objeto “porta”, so existe idealmente. No entanto,esta porta ideal esta mais proxima da porta real do que as minhassucessivas imagens de porta.

Entao, por um lado voce tem a consistencia fısica do objeto emsi mesmo; de outro lado voce tem as visoes dele, que sao mutaveis;e tem ainda as alteracoes da propria constituicao fısica, que naosao as mesmas alteracoes do sujeito cognoscente e de suas im-pressoes. E onde esta a unidade do objeto? Essa unidade so econcebida idealmente.

Mas isto e assim em qualquer conhecimento que voce tenha,ou seja, como e que David Bohm sabe que ele e David Bohm?Como e que ele sabe que o livro que ele estava escrevendo onteme o mesmo que ele esta escrevendo hoje? E so por unidade ideal.A unidade do ser nao e objeto de experiencia. No entanto, ela euma pre-condicao para que voce tenha a experiencia dele: paraque eu possa obter varias visoes diferentes de um mesmo objeto enecessario que ele seja o mesmo. Eu nao confundo, por exemplo,varias visoes de uma vaca com varias visoes de um cachorro, domesmo modo que nao confundo a variedade de meus alunos coma variedade de roupas diferentes com que cada um se apresenta emdias diferentes. Entao, essas varias visoes que compoem a unidade

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ideal de uma pessoa nao permitem que eu a confunda com umaoutra pessoa. Nao e porque a Nancy se penteou diferente que elapassou a ser a Edna, e nao e porque o Guilherme veio de terno egravata que ele passou a ser o Joao Carlos. Ou seja, ha alteracoesque percebemos como acidentais, como secundarias, alteracoes dequalidade que nao afetam a substancia.

Entretanto, se voce abolir a nocao de substancia, como pretendeBohm, entao nao da nem para comecar a pensar. Se voce supoeque por tras de cada alteracao do sujeito ha uma alteracao conco-mitante do objeto ao ponto do objeto perder sua identidade, entaonao da para reconhecer nem mesmo as alteracoes, porque o ob-jeto alterado sera um novo objeto sem relacao com o anterior. Ee claro que esse tipo de proposta bohmiana serve para ser ditomas nao para ser usado: ninguem pode praticar esse tipo de co-nhecimento fluidificado, embora possa falar dele como hipotese.E o pior e achar que com isso voce estaria mais proximo da re-alidade, o que e um pouco a ideia do Krisnahmurti, que diz quea realidade do mundo e outra e outra a cada momento, que naoexiste substancia... No meu entender o Krisnahmurti nao esta nemsequer enganado: ele mente e e falso desde a raiz do cabelo. Osujeito dizer que todas as estruturas cognitivas que o homem tem,montadas na linguagem, no aprendizado, etc. impedem a visao darealidade e que para ter a visao da realidade voce precisa apagartodas essas estruturas e uma besteira inominavel. E a apologia doprimarismo, a apologia da imbecilidade, e o fato e que ninguempratica isto, as pessoas so falam. Sao teorias que oferecem ideaisinatingıveis e que alem disso sao desnecessarias. Por exemplo, quealteracoes voce poderia fazer no corpo humano para que ele fossemais eficiente? Colocaria asas, talvez colocasse cascos, colocariaum olho atras, e daı voce comporia o tipo ideal; entao diria, “Estee o meu ideal de conhecimento.”

Outra bobagem do mesmo genero e achar que as limitacoes ine-

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rentes a percepcao humana nos afastam da realidade, ou seja, quepelo fato de nossa percepcao ser limitada nos estamos na falsi-dade, e que se tivessemos mais sentidos ou se os nossos sentidosfossem mais agudos perceberıamos a realidade melhor — isto eabsolutamente falso. Se os nossos sentidos sao limitados e porqueter um sentido e ter uma limitacao, uma especializacao na direcaode um determinado tipo especializado de estımulos que nos vemda realidade: e essa limitacao que nos afina e nos sintoniza comcertos aspectos da realidade, em vez de nos afastar dela. Os olhosnao escutam, as orelhas nao enxergam, e assim por diante. Se vocetivesse noventa orgaos dos sentidos isto nao melhoraria em nadasua percepcao da realidade, porque voce poderia se enganar domesmıssimo modo, voce teria mais informacoes e voce teria maismargem de confusao.

E a extensao artificial dos sentidos? Quando voce inventa umequipamento para observar uma coisa melhor, esse equipamentoso funciona se voce tem um quadro conceptual dentro do qual asobservacoes assim obtidas significam algo. Entao, veja, desde queinventaram o microscopio ate hoje, quantas hipoteses falsas naoforam levantadas a partir de observacoes feitas no microscopio?Muito mais do que teriam sido levantadas atraves da observacao aolho nu. Portanto, aquilo que ajuda tambem atrapalha.

Como fazer para aproveitar uma observacao obtida por um mi-croscopio? Voce precisa ter todo um quadro conceptual, um sis-tema de criterios, etc. etc., ou seja, da mais trabalho do que inven-tar um microscopio. O acrescimo de um equipamento e entradade mais dados, e mais dados nao significa mais verdades. Essae uma nocao ingenua de conhecimento, e o realismo ingenuo. Euma visao quantitativista.

[ Aluno: O proprio do David Bohm cometer contradicao de umafrase para a outra ja nao demonstra um psicologismo? Na hora queele nao se submete a uma regra logica...]

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Nao, nao, nao, pera la, isso nao e psicologismo. O psicolo-gismo nao nega a logica, e evidente. Algumas das melhores obrasde logica foram escritas por psicologistas: John Stuart Mills e psi-cologista e autor de um brilhante livro de logica; Bertrand Rus-sel e outro psicologista; ou seja, o psicologismo nao e um errode logica, o psicologismo e uma doutrina gnoseologica errada.Agora, o David Bohm nao e isso, ele e um jumento! Ele nao eso ignorante, ele e um ignorante metido! E bem diferente! Naoe possıvel que um sujeito que estudou tudo isto ignore esses errosque esta cometendo. Ele comete porque quer mesmo, porque euma mente torta! Isso aı eu publicaria tambem, e se o sujeito meprocessasse eu ia la e provava...

Nos estamos falando de outra faixa. Nao e que o sujeito vemcom doutrinas erradas, e que essas coisas que ele escreve nao saodoutrinas de nada, nao sao teorias de nada, isso e um monte deasneiras, esta abaixo da crıtica! Porque livros como esse do Caprae do David Bohm nao sao sequer para serem discutidos. E para serjogado no lixo, nao e aceitavel nem como trabalho de escola, por-que voce colocar um problema, eu digo, bom, pelo menos supoe-se que voce tem uma ideia da evolucao da discussao e do pontoque as coisas estao. Segundo, supoe-se que voce conheca a ori-gem das ideias e dos termos que voce esta usando, para voce saberqual e a acepcao que usa. Mas, por exemplo, esta distincao entreconceito logico como estatico e o intuitivo como dinamico, estae uma distincao bergsoniana. Foi Bergson quem introduziu isso,e nao tem sentido voce falar de mundo ideal sem ter referencia aPlatao, ou falar de lei da gravidade sem saber que foi Newton, saoconceitos que nao fazem sentido fora dessas bases de referencia.O sujeito fala isso aı e repete a toda hora e nao cita Bergson umaunica vez; eu tenho a impressao que ele esta inconsciente de queisso e bergsoniano. Ou seja, ele se da ao trabalho de cruzar paginase paginas para explicar a coisa, quando bastaria ele dizer assim,

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“Numa perspectiva bergsoniana...”, com duas palavras ele resumi-ria aquilo e nos ja entenderıamos o que ele queria dizer. Se eleexplica tudo de novo e nem mesmo se refere a Bergson, e porqueele nao sabe de onde veio. Ele pensa que ele descobriu aquiloporque foi Krisnahmurti(?) quem disse. Krisnahmurti(?) e umpseudo-oriental que leu Bergson e copiou, e oferece aı um bergso-nismo muito mal feito dizendo que e oriental.

Segundo Bergson, existem duas maneiras de voce captar umacoisa: diretamente, ou seja, nela mesma; ou segundo suas relacoes.Nela mesma voce capta por uma identificacao, e e isso que elechama de intuicao, por uma especie de simpatia entre voce e oobjeto. E voce pode capta-las atraves das suas relacoes, e e issoque ele chama de razao. Entao, a razao captaria a coisas segundoas suas distincoes, semelhancas e diferencas em relacao a outros.

Entao deu burrada! Primeiro porque a percepcao desemelhancas e de diferencas e intuitiva! E se ela nao fosse in-tuitiva, queria eu ver a razao captar a semelhanca e diferenca;como e que a razao poderia captar as semelhancas e diferencas?As semelhancas e diferencas sao dados. Saber, por exemplo, queuma coisa esta em cima da outra, esta a esquerda, a direita, oumaior, ou menor, o habito de contar 1, 2, 3, estas operacoes saotodas intuitivas, nao tem nada de racional.

Entao, essas distincoes bergsonianas nao resistem ao maismınimo exame. Bergson sempre foi um filosofo, foi mais conhe-cido popularmente pelo fato de falar muito bem, falar muito bo-nito, e os cursos dele tinham uma grande audiencia, sobretudo depessoas ligadas a estetica, a parte literaria, por exemplo, o nossoAlceu Amoroso Lima assistiu muitos cursos de Bergson, e ele erauma especie de Milan Kundera da Filosofia. Entao, ele faz su-cesso, mas nao e um homem de profundidade excepcional. A filo-sofia de Bergson na verdade tem dois ou tres temas, e e so aquiloali. Nao e totalmente sem valor, mas nao tem porque pesar tanto

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assim. Agora, quando o sujeito pega o bergsonismo e vem nosvender como se fosse uma sabedoria oriental, ah!, faca-me o fa-vor... Isso e charlatanismo do brabo!

Mas o publico do Krisnahmurti(?) sempre foi um publico deiletrados — donas-de-casa, pessoas solitarias que querem umaesperanca na vida –, e esse publico que vai parar la, que nao tendojamais ouvido falar de Bergson, nao estando sequer interessadoscom a colocacao filosofica do problema, gostava daquilo de umamaneira ou de outra. Agora, se chega esse David Bohm, com to-dos os seus diplomas de Fısico, e se torna um discıpulo de Kris-nahmurti(?), e sinal de que ele ja tem miolo mole! Ate uns quinzeanos, atras um sujeito tentar discutir seriamente o Krisnahmurti(?),ja seria propriamente ridicularizado. Hoje nao; hoje ja e possıvel,porque ninguem lembra mais de nada. agora, o que o Bohm fazmais para diante, na parte referente a linguagem, e terrificante.Como e que um sujeito pode ignorar tao profundamente um pro-blema?

[ Aluno: Quem e David Bohm? ]E um professor de Fısica, formado na Universidade de Viena,

cheio de diplomas, e autor de alguns trabalhos fısicos, que eudesconheco, e que tem um certo conceito.

Agora, o sujeito, porque estudou Fısica, ele da palpite em tudo...mas para dar palpite e preciso saber se ele tambem entende, naoe? Entretanto, Fısica virou uma palavra magica, e a ciencia fısicaganhou um prestıgio que nao e justificado pelas conquistas teoricasdela. Como um fısico e capaz de fazer uma bomba atomica voceacha que ele tem capacidade de resolver qualquer problema. Eudigo, nao, ele e so capaz de criar problemas... O sujeito e capaz decomplicar muito, entao voce acha que ele e capaz de resolver.

Agora, as consideracoes do Bohm sobre linguagem; primeiroele nao sabe a diferenca entre linguagem, lıngua e fala. Ou seja,o conceito basico da Linguıstica, o primeiro deles e como se fosse

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o ponto, reta e plano; o que o ponto, reta e plano e para a Geo-metria, lıngua e fala e para a Linguıstica — e ele ignora isso aı.Toda hora ele atribui a lıngua caracteres que sao da fala. Lınguanao existe; lıngua e um conjunto de possibilidades logicas, pos-sibilidades combinatorias que constituem, por exemplo, a lınguaportuguesa. A lıngua so pode ser analisada abstrativamente, e naohistoricamente. O que voce vai analisar e a fala. A fala seria o usoefetivo dessas possibilidades por este ou aquele grupo em deter-minada epoca. Ou seja, a lıngua so existe como abstracao, o queexiste efetivamente e a fala.

O Bohm atribui a lıngua caracteres que sao da fala, por exemplo,o predomınio do substantivo sobre o verbo, do substantivo sobreo adjetivo, etc, etc. eu digo, ora, mas numa lıngua nao predominaum tipo de palavra sobre outra, predomina e no uso. Por exem-plo, se num dicionario voce tem dez mil substantivos e trinta milverbos, na pratica voce pode usar apenas dois mil substantivos equinhentos verbos. Entao nao existe predomınio de uma coisa so-bre a outra na lıngua, e impossıvel. A propria nocao de predomınioimplica um uso, uma pratica.

O mais curioso e quando esses caras fazem a apologia da lınguachinesa, quando a lıngua chinesa e obviamente muito mais estaticado que todas as lınguas ocidentais. A lıngua chinesa nao temgramatica e nao existe nela uma maneira de voce representar pu-ras relacoes. Todas as relacoes sao substancializadas numa figura.Entao, a ideia mesma de fluxo nao tem. O fluxo e proprio dessaslınguas que tem uma articulacao mais complicada, com um montede tempos verbais. Por exemplo, a simultaneidade de tempos ver-bais que voce pode usar numa unica frase numa lıngua ocidental:como e que voce faz isso em chines? E todo mundo se preocupaem pensar assim, “Como seria o equivalente ocidental em certascaracterısticas da lıngua chinesa?”, eu digo, agora faca o contrario:pegue Hegel e traduza Hegel para o chines — simplesmente nao e

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possıvel. Entao, nos vemos que existe toda uma faixa da realidadeque para o chines nao existe.

[ Aluno: Eu nao entendi a relacao da lıngua chinesa; um ideo-grama e verbo de ... ]

...Nao existe a nocao de verbo e substantivo; qualquer coisapode ser verbo ou substantivo, conforme o lugar que voce po-nha. Mas todas as palavras tem sempre um significado concretoporque estao ligadas a algum sımbolo, voce nao tem o totalmenteabstrato. Entao quer dizer que aı e que cada palavra e substan-cializada. Por exemplo, voce pega a palavra que representariaconfianca, esperanca, etc; isso e representado por um indivıduoempurrando um muro — o ideograma e mais ou menos assim:

Entao, bastou voce fazer isto aqui para voce conseguir pensaresta ideia independentemente da sua representacao sensıvel. Narepresentacao sensıvel so existem substancias, nao existem purasrelacoes — como e que voce vai ler? Como e que voce vai pe-gar uma pura relacao? Por exemplo, a relacao de anterioridade,de posteridade, de predomınio, como e que voce faz a palavra pre-domınio? voce tem que imaginar isso atraves de sımbolos. E umatrabalheira!

A lıngua chinesa e tao boa que ate hoje os caras nao consegui-ram unifica-la. Existem milhares de lınguas chinesas diferentes,uma para cada quarteirao, e dois chineses nao se entendem entresi. Voce quer saber, e uma porcaria de lıngua! Agora, quando ...(?)olha para o lado de ca e bonito porque e artıstico. Isso dito por nos,prestem atencao! Nao quer dizer que o chines mesmo veja todasessas profundidades.

[ Aluno: Como e que eles fazem uma cadeia abstrativa? ]Simplesmente nao fazem! Da um trabalho medonho! Entao,

voce pode dizer, e uma lıngua mais estetica, e sendo mais estetica,significa que a escrita esta mais proxima do desenho, esta maisproxima das artes plasticas. Isto quer dizer que tudo aquilo que

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voce pega atraves das artes plasticas aparece tambem junto no de-senho. E a mesma coisa que voce dizer, todo livro chines vem comfigurinha.

A prova de que e uma porcaria de lıngua e que ela jamais sedesenvolveu, a literatura chinesa e feita de repeticao ao longo dosmilenios. Voce tem aqueles modelos de perfeicao e a geracao se-guinte aprendia a escrever exatamente igual. Se a lıngua fosse taoprofunda como as pessoas imaginam aqui, voce acha que nao teriasaıdo uma literatura um pouquinho melhor? Entao, o chines naosai do lugar. O aprendizado de literatura chinesa seria a mesmacoisa como se nos estivessemos usando ainda a lıngua de Cıcero,sem poder mudar. Mas se a lıngua e tao rica, como e que nao saiuma literatura mais inventiva? Nao conseguem nada...

Uma coisa e o chines tal como nos o vemos, como novidade;outra coisa e o chines que e usado pelos chineses, que nao estaopercebendo nada dessas profundidades que nos enxergamos. Porexemplo, uma conhecida minha foi para a China, e eu pedi paraela comprar os pauzinhos do I Ching. E quem e que sabia o queera os pauzinhos do I Ching la na China? Ninguem sabia!

Mas e que o pessoal aqui imagina que todo mundo esta imbuıdoda mentalidade do I Ching. Eu digo, ora, voce imagina um chineslendo o Evangelho e supondo, “Poxa, la no Ocidente todo mundoe bom, todo mundo da a outra face; aqui e que as pessoas saoruins...”. O que as pessoas escreveram aqui sobre o I Ching e exa-tamente a mesma coisa que isso aı, voce encarar o Ocidente inteirocomo se fosse uma expressao do Evangelho — e uma ideia total-mente idealizada. Voce pega um livro de cinco mil anos atras eacredita que todo mundo le aquele livro e que todo mundo pra-tica aquilo... mas, ora, facam-me o favor!! Isso e absolutamenteridıculo! Os caras nao sabem o que e I Ching, do mesmo jeito queas pessoas aqui nao sabem o que e Evangelho.

Eu so sei que os pauzinhos do I Ching nao tinham em parte

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alguma, ninguem sabia, e ela teve que pedir ajuda a uma outrapessoa que ia para o interior, onde havia um velhinho que tinha lauma lojinha e daı ela achou. Ou seja, e tao raro la quanto aqui; tal-vez aqui seja mais facil. Entao, tudo isso aı sao visoes idealizadase no mais das vezes sao propositadamente falseadas...

“O homem ocidental pensa por categorias logicas.” O que epensar por categorias logicas? Nunca ninguem jamais pensou porcategorias logicas. Voce pensa psicologicamente, voce pensa porcadeias analogicas, voce pensa de modo totalmente irracional. Alogica e uma conexao ideal que serve para conferir se o seu pen-samento foi certo. Ninguem pensa com logica.

Veja as esperancas que as pessoas tem que as criancas lidandocom computadores vao ficar mais inteligentes; elas vao ficar e me-nos inteligentes, porque elas vao aprender a repetir sequencias quesao puramente logicas. O computador pensa de maneira logicaporque ele e um pensamento limitado. Entao, nao podendo imitaro processo biologico do pensamento, que seria muito limitado, se-ria voce fazer nao um cerebro eletronico, mas um cerebro de fato,entao voce constroi um modelo de cerebro que repete as operacoeslogicas e que de fato pensa logicamente. Agora, pensando logica-mente tem certas operacoes que ele fara muito melhor do que nose tem outras que ele fara muito pior. Ou seja, aquelas que possamser decididas por uma cadeia logica conhecida ele fara com umarapidez impressionante; e aquelas onde se trata de voce sintetizardados por canais desconhecidos, ele simplesmente nao fara. Porexemplo, como e que voce vai fazer um computador ter uma auto-consciencia? A nao ser que voce imagine uma auto-conscienciasimplesmente nunca exprimida. Auto-consciencia implica a res-ponsabilidade, culpa, risco, etc, etc, e voce teria que fazer um com-putador que tivesse responsabilidades civis, “agora voce tem que irpara a escola”, “Voce nao fez o dever de casa”, “Agora voce esta decastigo”, “Hoje voce vai ficar sem o almoco”, a auto-consciencia

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humana seria ligada a tudo isso aı, entao e uma funcao que ele naopode ter. Se ele nao pode ter auto-consciencia, entao ele so podeoperar sınteses puramente logicas, ou analogicas segundo uma ca-deia analogica dada ja de antemao.

Se voce vai ensinar uma pessoa a pensar assim, o sujeito vaificar extraordinariamente burro, porque voce pensar logicamentenao serve para absolutamente nada. O normal nao e pensar logi-camente. Para pensar logicamente voce tem que ir por uma cadeiasilogıstica, demora um tempo extraordinario, voces nao entende-riam uma palavra do que eu estou dizendo se pensassem logica-mente.

O homem tem a facilidade de suprir muito do que ele desco-nhece a respeito dos codigos atraves de um ato de vontade, porqueele assume a responsabilidade, por isso mesmo que ele entende.Agora, se voce vai ensinar a crianca a pensar logicamente, e claroque ela vai ficar muito burra. E as pessoas que trabalham cons-tantemente com computadores acabam imitando o computador —por que? Porque tem uma visao um pouco idealizada da coisa eporque quer seguir os passos do computador; mas isso nao e nor-mal, a mente humana pensa por saltos formidaveis que nao teriajamais como voce preencher logicamente esses hiatos, e e por issomesmo que funciona.

Entao, o pensar biologico real e uma coisa, e o pensar logicoe outra; alias nao existe o pensar logico, a logica e a forma idealpelo qual o pensamento se molda para ter coerencia e integridade.Por exemplo, voce pega a estetica de um quadro, e voce pega afabricacao das tintas. Como e que voce faz a tinta? E segundopadroes esteticos, ou seriam padroes quımicos? Se a fabricacaodas tintas tivesse que obedecer a estetica, quando e que o indivıduoia terminar de fazer essas tintas? Se o pintor tivesse que pintar oquadro, se os gestos do pintor tivessem que obedecer a esteticado quadro final, ele nao ia terminar o quadro. Quem diz que o

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quadro tem que comecar a ser pintado pelo que e o centro da suahierarquia? Muitas vezes voce nao consegue, nao da nem paracomecar.

Entao, o pensamento e um processo biologico, e um processoreal, que acontece na ordem em que acontece, isto e, qualqueruma. Ha milhares de ordens possıveis, e voce as escolhe conformea sua cabeca, conforme a sua inteligencia, ou talento, etc, etc.

Agora, a conexao logica nao e real, isto e o que este livro estamostrando, a conexao logica e puramente ideal. A conexao logicaserve para voce representar mentalmente...

[ Aluno: ...mas o texto do Eric Weil ja dizia isso; ele dizia paraverificar o pensamento, e que na verdade o que produz conheci-mento e a dialetica. ]

Sim, o Weil vai mais alem. Na verdade, nem a dialetica produzconhecimento. Ela produz uma sıntese logica, essa e a diferenca.Ela e que funda as ciencias. Agora, a conexao logica e um outronegocio. A conexao logica permite voce representar o que sao osencadeamentos causais reais. Logica nao e um modo de pensar,e um modo de voce dar ao seu pensamento uma integridade quereflita as conexoes reais dos fatos, conexoes necessarias dos fatos.

Vou dar um exemplo: um sujeito mata o outro, ele deu um tirona cabeca do outro. Entao, este e um fato concreto. Porem, estefato concreto e composto de muitas linhas causais diferentes. Porexemplo, voce tem a quantidade de polvora que esta dentro dacapsula, tem uma relacao com o peso do projetil, o qual tem umarelacao com o seu impacto. Tudo isso voce pode calcular; aı saoconexoes logicas. Ou seja, se a polvora e tanto, o potencial deexplosao e tanto; se voce tem tantos graos de polvora, com umprojetil de tal peso ele saira com tal velocidade e batendo no objetoa tantos metros tera um impacto de tanto. Tudo isso e uma conexaologica.

Agora, a partir da hora que a bala bateu na cabeca do sujeito,

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comeca uma outra sequencia causal, que e fisiologica, que vai le-var a morte. Entao, acertou um pedaco do cerebro; acertando aliuma certa cadeia neuronal, paralisa um determinado orgao. Estae outra cadeia causal que nada tem a ver com a primeira. Vocenao poderia explicar um processo fisiologico da morte pelas leisda balıstica. No entanto, essas duas cadeias causais convergiramno mesmo fato concreto. A logica serve para que? Serve paravoce montar essas cadeias causais isoladas. Agora, a logica naoserve para voce ver que sujeito matou o outro — por que? Porqueum sujeito matar o outro e um fato concreto, que por ser secretojunta infinitas linhas causais que estao unidas num determinadomomento e lugar. Por que o sujeito morreu? Morreu porque oprojetil saiu com velocidade tal e bateu com um impacto tal nahora em que a cabeca do sujeito estava na frente.

Alem disso, o sujeito para matar o outro tem que ter tido ummotivo, ou seja, e um processo de causalidade psicologica que estaenvolvida. Ademais, o crime tem repercussoes de ordem jurıdica.Tem la um determinado tipo de crime, que aquela sociedade encarade uma certa maneira, e que vai ter tais ou quais consequenciasde ordem judicial. Tudo isso esta conectado no mesmo evento.A logica e o qenos eficiente. Por outro lado, lhes parecera maiscientıfico.

[ Aluno: Ele confunde uma utilidade pratica com um grau de ...]

...nao, mas nao tem utilidade pratica nenhuma! Veja, isso e umacoisa que para mim me parece falso; se voce pegar as possibilida-des que tem um computador desses de mesa, e a possibilidade queum cidadao tem de usa-lo, e uma desproporcao total. Um compu-tador e como se voce tivesse4

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