Olavo de Carvalho _ Gilberto Freyre

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  • 8/19/2019 Olavo de Carvalho _ Gilberto Freyre

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    Gilberto Freyre: Ciência social e consciênciapessoal

    OLAVO DE C ARVALHODiretor do Seminário de Filosofia

    do Centro Universitário da Cidade, Rio de Janeiro

    Comunica!o a"resentada ao

    Seminário #nternacional $%ovo &undo nos 'r("icos)

    Centenário do %ascimento de *il+erto Frere

    Funda!o *il+erto Frere, Recife, -. de maro de -///

     

    Uma das dificuldades 0ue se a"resentam na constitui!o de 0ual0uerci1ncia 2 o "ro+lema de onde encontrar o seu o+3eto4 %as ci1ncias naturais,esse o+3eto está dado em torno e "ode ser a"reendido "elos sentidos4 &asmesmo essa a"arente facilidade 2 en5anosa, "rimeiro "or0ue os limitesentre as es"2cies de seres da nature6a s!o fre07entemente am+85uos ene+ulosos, se5undo "or0ue os o+3etos naturais n!o v1m com r(tulos

    informando 0uais as "er5untas 0ue devemos fa6er a res"eito deles9 e,0uando comeamos a fa6er estas "er5untas, n!o raro os o+3etos a 0ue nosrefer8amos nos res"ondem 0ue elas n!o se a"licam "ro"riamente a eles,mas sim a al5um outro ti"o de o+3etos ad3acentes ou circunvi6in:os, oumesmo a entes 0ue n!o e;istem na nature6a e 0ue foram a"enas inventados"or n(s mesmos4

    "alavra desi5nam tr1sas"ectos "erce+idos sucessivamente no mesmo o+3eto ou tr1s o+3etoscom"letamente diferentes4 %o "rimeiro caso, contra8mos a o+ri5a!o dedesco+rir 0ual a unidade ou su+stBncia da 0ual esses tr1s as"ectos s!o as

    "ro"riedades ou acidentes4 E, 0uando tivermos a felicidade de desco+ri=lo,teremos inau5urado uma 0uarta ace"!o da "alavra física, incum+ida de

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    desi5nar o estudo cient8fico do o+3eto unitário cu3os as"ectos se"aradosforam estudados sucessivamente "or Arist(teles, %e?ton e s fronteiras 0uese"aram os entes entre si, ou se refletem a"enas tr1s distintas direes"oss8veis da aten!o :umana, "ro3etada acidentalmente so+re entes,"ro"riedades e acidentes escol:idos a esmo4

    ue e;istem fronteiras entre os entes, 0ue eles n!o se a"resentam fundidose indistintos numa mi;(rdia universal, a mais +anal e;"eri1ncia o confirma4

     A o+viedade desta constata!o "ode dar lu5ar a situaes cmicas4 uandoo falecido "residente JBnio uadros, inda5ado "or 0ue +e+ia, res"ondeu0ue +e+ia "or0ue se tratava de l80uido, 3á 0ue se fosse s(lido o comeria,talve6 n!o tivesse a id2ia de enunciar um "rinc8"io de metodolo5iacient8fica, mas de fato o fe64 O $comer) "ode ser uma metáfora do$con:ecer)4 Se n!o "odemos comer o l80uido ou +e+er o s(lido, n!o"odemos con:ecer todas as coisas "elos mesmos modos, ou instrumentos4

    %!o "odemos con:ecer a estrutura de um mineral "ela mem(ria afetiva,nem a vida de %a"ole!o ona"arte "or dedu!o 5eom2trica4 Em GltimainstBncia, o delineamento do cam"o de uma ci1ncia a"arece 0uando elaes+arra em fronteiras ontol(5icas intrans"on8veis4 Edmund Husserl di6ia0ue n!o "ode :aver uma 5eometria dos lees ou uma em+riolo5ia dostriBn5ulos == o 0ue fa6 dele, no m8nimo, um "recursor do "residente JBniouadros4

    &as, na "rática cient8fica, raramente c:e5amos a essas situaes limiteuma +oa "arte das investi5aes e de+ates se desenrola numa 6onafronteiria su3eita >s mais alucinantes dis"utas de 3urisdi!o4 O "ro+lematorna=se ainda mais deses"erador "or0ue, uma ve6 constitu8do um sistemade distines entre os cam"os do sa+er, "or mais "rovis(rio 0ue se3a, essesistema se materiali6a imediatamente numa estrutura administrativa adivis!o dos de"artamentos numa universidade ou instituto de "es0uisa4 A8 oconflito de 3urisdies entre conceitos l(5icos se converte num conflito entre

    "oderes, "rest85ios e interesses :umanos, do 0ual, "ara usar o termo maiscomedido, direi 0ue 2 uma confus!o dos dia+os4

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    Ora, se essa confus!o dos dia+os "ode instalar=se no seio mesmo da ci1ncianatural, ao "onto de &ic:el Foucault e ':omas u:n n!o lo5rarem e;"licaras mudanas de orienta!o da ima5em f8sica do cosmos de 2"oca em 2"oca

    sen!o como rotaes acidentais e em Gltima análise irracionais do ei;o dasatenes, 0uanto mais desorientador n!o deve ser o "anorama no cam"odas ci1ncias ditas :umanas, onde o o+3eto n!o está dado > "erce"!osens8vel mas tem de ser a"reendido no curso da nossa "artici"a!o "essoalna "rodu!o e modifica!o dessa coisa == se 2 0ue 2 coisa == denominadasociedade :umanaI %esse cam"o de con:ecimento, 3amais c:e5amos asa+er ao certo se o nosso o+3eto e;iste ou se ele "assou a e;istir "or0uedissemos 0ue e;iste4 Um e;em"lo caracter8stico 2 o conceito de ideolo5ia de

    classe4 As classes economicamente distintas $t1m) seus res"ectivosdiscursos ideol(5icos ou "assam a t1=los desde o instante em 0ue umintelectual, fundado no conceito de ideolo5ia de classe, ensina a cada uma o0ue ela deveria di6er em defesa de seus "r("rios interesse de classeI Outroe;em"lo 2 o $inconsciente) freudiano4 Cada um de n(s $tem) uminconsciente "essoal ou ad0uire um na :ora em 0ue o "sicanalista o ensinaa assumir como "arte de si um amál5ama de "ensamentos semi"ensados ="e0uenas "erce"es, c:amava=as Lei+ni6 = 0ue andam soltas no am+ientefamiliar, social e f8sicoI

    Dos nossos cientistas sociais, nen:um se "reocu"ou mais com essas0uestes do 0ue *il+erto Frere4 Ora, a elucida!o delas 2 o fundamentomesmo da "ossi+ilidade de uma ci1ncia social4 Sondar at2 o fundo essaindistin!o de fronteiras, su+mer5ir cora3osamente nesse $mare ma5num)onde todas as correntes se entremesclam, im"re5nar=se da variedade e daconfus!o sem "erder o ideal de unidade e coer1ncia, eis a Gnica es"eranade 0ue as ci1ncias sociais ven:am a ter um o+3eto 0ue n!o se3a a"enas a

    "ro3e!o de um m2todo "reviamente escol:ido == um "reconceito, nosentido mais ri5oroso do termo4

    Dos nossos cientistas sociais, re"ito, nen:um levou mais a fundo essaim"re5na!o na nature6a "lástica e omn8moda do seu o+3eto, nem maislon5e sua dis"osi!o de a+rir=se a todas as correntes, a todas as :i"(teses, atodas as "er5untas4

    S( com isso ele 3á se isenta do v8cio redi+it(rio de "elo menos noventa "orcento da "rodu!o cient8fica na área de :umanas, 0ue 2 o "endor @antianode constituir o o+3eto se5undo as e;i51ncias do m2todo, em ve6 de ada"tar o

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    m2todo >s e;i51ncias do o+3eto4 Esse v8cio torna=se ainda mais 5rave nos"a8ses 3ovens, cu3a elite intelectual, ansiosa de om+rear=se a seus mestresestran5eiros, em"en:a tanto esforo em dominar os m2todos 0ue aca+a n!o

    l:e so+rando tem"o de "restar aten!o no o+3eto4 Como "or sua ve6 ao"ini!o dos cientistas tende a ser imitada nos de+ates "G+licos, o rasil 0uese discute na m8dia e no estrutura da domina!o de classes0ue na verdade 2 uma doutrina enunciada muito antes "or StálinK, a8 "oucofalta "ara nos "ersuadirmos de 0ue a sociedade +rasileira 2 na6ista4 Ent!oouvimos o "residente Clinton declarar, no seu discurso em osovo, 0ue oE;2rcito americano 2 um e;em"lo de inte5ra!o racial, ficamos"rofundamente enver5on:ados de n!o ser t!o democráticos como osamericanos e, ato cont8nuo, sentimos a ur51ncia de co"iar o modeloamericano de inte5ra!o racial, onde o Estado sur5e como o mediador entre5ru"os raciais se"arados e socialmente incomunicáveis4 Ol:o "ara tudo issoe n!o "osso dei;ar de sentir 0ue estou em outro "laneta4 &as o 0ueaconteceria se, em ve6 de "ro3etarmos so+re o o+3eto os m2todos de Ra?ls ede Stálin tiv2ssemos nos "er5untados como esse o+3eto se constituiu e comoele c:e5ou ao nosso con:ecimentoI A8 ver8amos 0ue, entre a a+oli!o da

    escravatura e os nossos "rimeiros "assos "ara in5ressar no modernoca"italismo industrial, na d2cada de /, decorreram nada menos de0uarenta anos4 Ou se3a os escravos li+ertos tiveram 0uarenta anos "aramulti"licar=se sem 0ue a evolu!o da economia multi"licasseconcomitantemente os em"re5os4 Eles n!o foram e;"elidos dos em"re5os"or serem "retos4 Sim"lesmente n!o :avia em"re5os4 ue 2 0ue isso tem0ue ver com a discrimina!o racialI

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     Fernandes: Ciência e Ideologia, e com"rovarem 0ue Eric Voe5elin tin:atoda a ra6!o ao declarar 0ue a "ervers!o ideol(5ica das ci1ncias sociais nemsem"re vem de uma falsifica!o intencional da realidade coisa de 0ue o

    "rof4 Florestan n!o seria ca"a6K, mas do sim"les v8cio @antiano de aderir aum m2todo antes de es"erar 0ue o o+3eto di5a a 0u1 veio4

    Em com"ara!o com isso, o 0ue fa6 *il+erto FrereI Ele se "er5unta, antesde tudo, como o o+3eto veio ao seu con:ecimento "essoal4 A evoca!o dainfBncia n!o 2 a e;"ress!o de um sim"les "endor auto+io5ráfico, literário4Ela e;"ressa a consci1ncia de 0ue o o+3eto das ci1ncias sociais n!o 2 dadoaos sentidos, mas > "essoa concreta, ao eu autoconsciente 0ue ele "r("rio seautoconstitui > medida 0ue res"onde a um c:amado, o+edece ordens,formula "edidos, ocu"a um lu5ar, desem"en:a funes, etc4 O modo dea"resenta!o do o+3eto das ci1ncias sociais 2 esse e somente esse4 Ele n!oe;iste em "arte al5uma do cosmos se n!o e;iste na +io5rafia dos seres:umanos4 Ora, do o+3eto das ci1ncias f8sicas os "rimeiros sá+ios n!o:esitaram em concluir, desde muito cedo, 0ue seu modo de se a"resentarrevelava al5o de sua constitui!o4 Se eles se manifestavam afetando osnossos sentidos, eles "odiam ser con:ecidos "ela a!o 0ue e;erciam so+re onosso cor"o, distin5uindo o 0ue era sua a!o "r("ria do 0ue era nossa

    rea!o cor"oral4 uando falamos de $"ro"riedades da lu6), com"reendemos0ue em "arte o 0ue sa+emos da lu6 vem de uma rea!o cor"oral >estimula!o luminosa, mas em "arte vem de al5o 0ue, n!o "odendo sere;"licado "or essa sim"les rea!o, constitui a0uilo 0ue a lu6 2 $nelamesma)4 Um c!o adormecido, 0uando estimulado "or uma lu6 forte,des"erta imediatamente4 &as n(s, al2m de sermos des"ertados "ela lu6,isto 2, de sa+ermos o 0ue a lu6 fa6 conosco, sa+emos 0ue a lu6 $2) luminosa4 sociedade :umana fa6 "arteconstitutivamente dessa sociedade4 %!o "odendo se"ará=las, o modo de

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    con:ec1=las terá de consistir em articulá=las, o 0ue fa6 da ci1ncia social,inse"aravelmente, um e;erc8cio de autoconsci1ncia4 A0uele 0ue n!o sa+e"or onde e como a sociedade :umana veio at2 ele e o constituiu ao mesmo

    tem"o como mem+ro dela e como individualidade distinta nada sa+e dasociedade :umana e;ceto "elos meros nomes 0ue, nos tratados desociolo5ia, desi5nam os "rodutos da a+stra!o 0ue outras inteli51nciaso"eraram so+re ela4 Esses nomes "odem ser com+inados numa infinidadede sentenas, 0ue em sua mera formula!o ver+al "odem sercom"reendidas "or "essoas 0ue, 3amais tendo contado a si mesmas a:ist(ria de seu "r("rio in5resso na sociedade :umana, n!o t1m a condi!ode tornar "resentes > sua consci1ncia os o+3etos de 0ue elas falam4 ideolo5ia"roletária 0uando alertados "elos intelectuais e estes aderem a ela semnen:uma a3uda "roletária, o fato mesmo de 0ue tantos intelectuais

    "roclamem um v8nculo essencial entre classe e ideolo5ia 2 um forte ind8ciode 0ue esse v8nculo 2 acidental4

    Eis "or 0ue tanto da ci1ncia social moderna tem a a"ar1ncia inconfund8velde um fin5imento :isteriforme, como no caso de um su3eito 0ue saia5ritando 0ue n!o conse5ue falar4

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    "r("rios fa6emos do 0ue as coisas 0ue nos c:e5am "rontas4 A constitui!oda "r("ria "ersonalidade 2, assim, o Gnico lu5ar onde "odemos encontrar,em estado "uro, o o+3eto da ci1ncia social4 "or onde me con:eo 0ue

    con:eo a sociedade4

    %!o "or coincid1ncia, no instante mesmo em 0ue *il+erto iniciava suaauto+io5rafia da fam8lia "atriarcal +rasileira, um outro 5rande cientistasocial, o alem!o Eu5en Rosenstoc@, "u+licava seu livro $RevoluesEuro"2ias), 0ue se a"resentava como o "ro3eto de uma $auto+io5rafia daEuro"a)4 Auto+io5rafia no sentido de 0ue a e;"ans!o da consci1ncia:ist(rica de um indiv8duo, at2 a+ran5er uma evolu!o de al5uns mil1nios,era ali mostrada como resultado e retorno refle;ivo dessa mesma evolu!o4Cada sinal dei;ado "ela evolu!o "assada trans"arecia em e"is(dios da vidade Eu5en Rosenstoc@, e a evolu!o "essoal de Eu5en Rosenstoc@ era, aomesmo tem"o, uma recon0uista do sentido do "assado :ist(rico4 Emnen:um momento consci1ncia "essoal e consci1ncia :ist(rica sese"aravam4

    &as, em Rosenstoc@, a "alavra $auto+io5rafia) tin:a o sentido de umac:ave inter"retativa a"enas4 Em *il+erto ela torna=se instrumento material

    de investi5a!o ele "arte da sua auto+io5rafia "essoal "ara asauto+io5rafias dos outros, "ara os re5istros de mem(rias familiares, "ara as:ist(rias ouvidas de vel:as escravas, "ara as cartas 8ntimas de "ol8ticos esen:ores de terras == e, am"liando o :ori6onte em c8rculos conc1ntricos, vaic:e5ando "asso > "asso > auto+io5rafia do rasil4

    uando ele di6 0ue desco+riu o rasil, esta frase deve ser com"reendidanum sentido muito mais "rofundo e vital do 0ue 5eralmente se fa64 *il+erto

    desco+riu o rasil na sua "r("ria alma > medida 0ue esta alma se constitu8adesco+rindo o rasil4

    %en:uma ci1ncia lida com fatos concretos4 O concreto n!o 2 o fato isoladono desen:o da sua ess1ncia, mas o fato inte5rado na multid!o de acidentes0ue o "ossi+ilitam4 'oda ci1ncia, "ara a"reender seu o+3eto, deve destacá=lo"or a+stra!o, fa6endo dele uma ess1ncia ideal 0ue "ossa ser o+3eto de"ro"osies 5erais, as 0uais em se5uida ser!o verificados "or e;"eri1nciasou constataes tam+2m seletivas e a+strativas4 &as o o+3eto da ci1ncia

    social demanda um ti"o es"ecial de a+stra!o4 A ess1ncia a+strata ideal 0ueela visa a o+ter 2 nada mais nada menos 0ue a ess1ncia a+strata da "r("ria

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    sociedade considerada na sua e;ist1ncia concreta, vivente, total4