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Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

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Marxismo, Direito e Sociedade

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaôr Caffé Alves

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP

19 de novembro de 2003

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Transcrição:

Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori

Diagramação e capa:

Victor Fidel A. Gonçalves

www.olavodecarvalho.org

©2014

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Alaôr Caffé Alves

Dados biográficos

Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1963), mestrado

em Direito pela Universidade de São Paulo (1979) e doutorado em Direito pela

Universidade de São Paulo (1986). Atualmente é Professor Associado da

Universidade de São Paulo, Professor livre docente da Escola Superior do

Ministério Público de São Paulo, Professor - Faculdades Integradas Módulo.

Coordenador de curso - Faculdades de Campinas, atuando principalmente nos

seguintes temas: Meio Ambiente, Saneamento Básico, Direito Ambiental, Teoria

do Direito e Filosofia do Direito.

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Olavo de Carvalho

Dados biográficos

Olavo de Carvalho, nascido em Campinas, Estado de São Paulo, em 29 de abril

de 1947, tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos

pensadores brasileiros. Homens de orientações intelectuais tão diferentes

quanto Jorge Amado, Arnaldo Jabor, Ciro Gomes, Roberto Campos, J. O. de

Meira Penna, Bruno Tolentino, Herberto Sales, Josué Montello e o ex-

presidente da República José Sarney já expressaram sua admiração pela sua

pessoa e pelo seu trabalho.

A tônica de sua obra é a defesa da interioridade humana contra a tirania da

autoridade coletiva, sobretudo quando escorada numa ideologia "científica".

Para Olavo de Carvalho, existe um vínculo indissolúvel entre a objetividade do

conhecimento e a autonomia da consciência individual, vínculo este que se

perde de vista quando o critério de validade do saber é reduzido a um

formulário impessoal e uniforme para uso da classe acadêmica. Acreditando que

o mais sólido abrigo da consciência individual contra a alienação e a coisificação

se encontra nas antigas tradições espirituais — taoísmo, judaísmo, cristianismo,

islamismo —, Olavo de Carvalho procura dar uma nova interpretação aos

símbolos e ritos dessas tradições, fazendo deles as matrizes de uma estratégia

filosófica e científica para a resolução de problemas da cultura atual. Um

exemplo dessa estratégia é seu breve ensaio Os Gêneros Literários: Seus

Fundamentos Metafísicos, onde se utiliza do simbolismo dos tempos verbais nas

línguas sacras (árabe, hebraico, sânscrito e grego) para refundamentar as

distinções entre os gêneros literários. Outro exemplo é sua reinterpretação dos

escritos lógicos de Aristóteles, onde descobre, entre a Poética, a Retórica, a

Dialética e a Lógica, princípios comuns que subentendem uma ciência unificada

do discurso na qual se encontram respostas a muitas questões atualíssimas de

interdisciplinariedade (Uma Filosofia Aristotélica da Cultura — Introdução à

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Teoria dos Quatro Discursos). Na mesma linha está o ensaio Símbolos e Mitos

no Filme "O Silêncio dos Inocentes" ("análise fascinante e — ouso dizer —

definitiva", segundo afirma no prefácio o prof. José Carlos Monteiro, da Escola

de Cinema da Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aplica a uma

disciplina tão moderna como a crítica de cinema os critérios da antiga

hermenêutica simbólica. Sua obra publicada até o momento culmina em O

Jardim das Aflições(1995), onde alguns símbolos primordiais como o Leviatã e o

Beemoth bíblicos, a cruz, o khien e o khouen da tradição chinesa, etc., servem de

moldes estruturais para uma filosofia da História, que, partindo de um evento

aparentemente menor e tomando-o como ocasião para mostrar os elos entre o

pequeno e o grande, vai se alargando em giros concêntricos até abarcar o

horizonte inteiro da cultura Ocidental. A sutileza da construção faz de O Jardim

das Aflições também uma obra de arte. É grande a dificuldade de transpor para

outra língua os textos de Olavo de Carvalho, onde a profundidade dos temas, a

lógica implacável das demonstrações e a amplitude das referências culturais se

aliam a um estilo dos mais singulares, que introduz na ensaística erudita o uso

da linguagem popular — incluindo muitos jogos de palavras do dia-a-dia

brasileiro, de grande comicidade, praticamente intraduzíveis, bem como súbitas

mudanças de tom onde as expressões do termo vulgaris, entremeadas à

linguagem filosófica mais técnica e rigorosa, adquirem conotações imprevistas e

de uma profundidade surpreendente.

A obra de Olavo de Carvalho tem ainda uma vertente polêmica, onde, com

eloqüência contundente e temível senso de humor, ele põe a nu os falsos

prestígios acadêmicos e as falácias do discurso intelectual vigente. Seu livro O

Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996) granjeou para ele

bom número de desafetos nos meios letrados, mas também uma multidão de

leitores devotos, que esgotaram em três semanas a primeira edição da obra, e

em quatro dias a segunda.

Contrastando com a imagem de rancoroso ferrabrás que seus adversários

quiseram sobrepor à sua figura autêntica, Olavo de Carvalho é reconhecido,

entre quem desfruta de seu convívio, como homem de temperamento

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equilibrado e calmo mesmo nas situações mais difíceis, e como alma generosa

capaz de levar às últimas conseqüências, mesmo em prejuízo próprio, o dom de

amar, socorrer e perdoar.

Roxane Andrade de Souza

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Nota:

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma

delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais

completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram

para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma

revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate

receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do

marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no

Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.

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MEDIADOR: Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade

brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaôr Caffé Alves, muito conhecido por nós

estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as

relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o

polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares

do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições, entre outros livros,

e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a

tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um

centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A

iniciar pelo prof. Alaôr, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze

minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaôr e

Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de

nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na

sociedade? E no seu entendimento, quais as conseqüências de se pensar o

Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaôr Caffé Alves.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof.

Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a

respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico

calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia

marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional

do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas

questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento

teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas

históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com

frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau

de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas

importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco

– alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a

perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio

muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que

desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema

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político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são

efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na

conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer

forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva

um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da

sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito.

Na verdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito

singular no plano do pensamento teórico da economia, estabelecendo seus

princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade em

que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, em função da

historicidade dessas mesmas explicações. Então, é claro, temos de dar o devido

valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o

ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos

oferecer para entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no

nosso caso, o problema jurídico. Para colocar a questão muito rapidamente,

muito estrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos de levar em

conta as características do Direito exatamente dentro da perspectiva e da

posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão

estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura

social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as

possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a ponto de prever

as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramos várias ciências sob o

ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria economia, mas a questão

é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque o

próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua

socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situação individual

em que ele se apresenta também como ser biológico – ele também tem a sua

individualidade singular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre

a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto a

socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as

crenças? Em que sentido isso ocorre? O próprio Direito é uma expressão social,

pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado

desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no

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Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber

científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um

saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou

se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm uma fundamentação

científica adequada para verificação de sua validade, de sua verdade. Tudo isso é

um problema complicado, pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada

na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse

assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico

jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande

pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela

metodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando-nos uma

visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seu

ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É

claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas

como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligado também à perspectiva

marxista, e também Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem

do método marxista do Direito. Também temos o namoro feito por Norberto

Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas de

uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX

e mesmo do século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é

que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma

delas é a marxista. O conceito de direito no sentido positivista, como vocês

sabem, decorre exatamente de uma posição e definição da lei como sendo

aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes jurídicas de uma

sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas

também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O

grande problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há,

claro, explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que

são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora em defini-los,

porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –, explicações estas

que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito humano senão

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mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal

do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-

materialista corresponde ao fato de que há um espírito, espírito este que não

significa o de cada um de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são

as ações culturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que em

última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, o espírito

na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da

liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão

desse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que

acham que a espiritualidade tem por base uma estrutura social calcada na visão

da produção da vida social, na produção da vida material. Se não houver a idéia

da produção da vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do

próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à

materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não

caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a

matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidade dos físicos gregos

clássicos, a busca de um “em si”, de uma substância material no mundo. Para

Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da vida social humana.

Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo modo;

há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no

mundo e transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo,

os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que

acontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente o oposto

da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen,

que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito

abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é uma estrutura de

sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do ponto de vista

de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de

outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se

exprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma

estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever-ser,

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para Kelsen, é fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever-ser do ser.

Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o

ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil compreender

isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz

diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser,

isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade

deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o dever-

ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação

social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro

tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele

chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o

ser é absolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outra a

não ser pela condição necessária – não a condição per quam, pela qual, mas a

condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não há Direito

sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente

ladino, profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada.

O Direito como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora

tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina

(desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa

postura de direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, um

direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser, em que o

próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir

o Direito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô-lo implica uma

relativização do Direito, e esta relativização do Direito imposto pelo homem

(porque o homem é um ser circunstanciado, histórico, condicionado por

situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do

que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não

pode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a

positivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formas pela

qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz o Direito.

Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas escritas; por

isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão

expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais

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presente, e no século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito

escrito, e enquanto direito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que

tem de ser interpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se

torna muito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem o

Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente

interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as

possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos

fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de que no

positivismo se faz uma separação entre Direito como norma positivada e justiça,

moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas.

O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É

claro que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito,

melhor ainda, uma visão universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a

norma jurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do

Direito, é igual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a

norma é sempre a norma, é sempre o deverser. É por isso que ele, então,

essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho

platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as

circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do

mundo, como que sombras da caverna. O que importa fundamentalmente para

essencializar o Direito é a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido

da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura

marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada,

mais ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o

sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na

perspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países do mundo que

a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muito consagrada da

positividade, portanto a linha da legalidade.

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade, que é

uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo

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e o produto. A idéia é normalmente separar o resultado do processo, então fica

complicado porque ficamos apenas com o resultado. Em termos operacionais e

práticos dá para usar o resultado muito bem de forma instrumental, e como

dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule o

resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e

entendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o

resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o

processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por

si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhor para

entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a

expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua

negatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado. Uma

visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o

passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se

afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança

que foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso

existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de

projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se

dá? Em que termos a sociedade entra como processo? É um problema que eu

sempre levo em conta: ela é uma produção puramente espiritual, é uma

produção material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo?

Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história

do espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade

pura e simplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista da

matéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e

materialidade.

Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistas

consideram que, em última instância, a dimensão material (naquele sentido dito

por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou

seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem

história. Se examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não

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produziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de forma muito

diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. As

formas sociais para produção são diferentes, as relações que os homens

guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você

vê que, efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico

do Direito para saber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste

processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um

exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No

sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; era uma economia

mais natural, mais de subsistência; o valor de uso predominava; não havia valor

de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos centralizavam o

sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício

da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do

exercício da força; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A

relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação social destes

homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmo tempo,

de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para transformar o

mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra

e os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação

política, uma força política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época

escravista, como a época feudal, as relações entre os homens para produzir não

eram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou

capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da

força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o

político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal

maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era o mesmo

agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente

cultural e agente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à

força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é a

ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens

nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito

própria que traduz uma forma política específica da época medieval. Quando

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entretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processo

produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condição material da produção,

vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de certo modo,

que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia

avança pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu

trabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formas de

cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de vento, a roda

dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto vai

implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a

se desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a

produção) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor

basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazer com que a

venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para

todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas

situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um

conflito singular entre uma força produtiva típica singular feudal e a força

nascente, que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva de uma

nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise

em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova

fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso

distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que

ganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas

como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ou

escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir recursos; para isso, era

preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da

economia), o salário (o assalariato se inicia neste processo). É evidente que

neste momento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é

garantido em função de uma relação de imposição sobre o trabalho, mas era

preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a

dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das

peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a

força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então,

é o momento em que aparece a venda na força do trabalho, e venda forma o

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mercado, o mercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre

as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o

capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no

sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma

imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador.

Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma forma completamente

diferente, é preciso que os homens estabeleçam relações entre si de forma

mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm

que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários

correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do

outro lado a força de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário;

com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se a produção.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que

se universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova

forma de produção que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A

figura do contrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há

que haver portanto, a universalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de

que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que

tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: como

é possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a

igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito

civil especialmente (isso depois transcende para o direito público) acabam

resultando de um processo de movimento das forças produtivas, da capacidade

material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o

contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos.

Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para

ser reguladas de forma detalhada, singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura

de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão

muito singular, muito interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer

dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto da expansão

metodológica porque ela nos dá algumas bases interessantíssimas para explicar

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um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um

momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia

nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal,

mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro,

principalmente dos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos

jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR: Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. Agradecendo muito a Thiago

Magalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu

interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o que de certo modo

facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é sempre um problema quase

impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam

que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma

estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma

crítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao

mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em toda a história

humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outro fenômeno que

abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer

que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a que

gênero de fenômenos ele pertence.

Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do

gênero próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro

degrau da escada por não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a

tentativa de discussão do marxismo imita aquele célebre caso dos cegos com o

elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante é um poste, outro pega a

tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de

papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno

econômico – o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia,

porque a crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o

campo mais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando a

Page 22: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

22

discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da crítica moral do

capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido.

Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também

quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete

a teologia da libertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então,

realmente estamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente

que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que,

sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas

ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja

inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema.

Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de

abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o

marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo que me levam a

esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo pelo seu gênero

próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o

marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido

político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura, no

sentido antropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, um

complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos, reações humanas,

sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e,

sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura

existente, o desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o

marxismo, ao longo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios de

autopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto

de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que

professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela base

econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as

idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigo idealismo, se propagam

no ar sem nenhuma ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.

Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem

militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a

respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômeno econômico dos mais

interessantes.

Page 23: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

23

Quando digo que o marxismo é um fenômeno sui generis, que nunca houve um

complexo cultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo

também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada

NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –,

este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos

imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil

funcionários, sem contar toda a militância comunista espalhada pelo mundo (o

que era um serviço auxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais

dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de

auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços

secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não

tiveram um serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda

Guerra – os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da

KGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendo ali um

festival de compra de consciências como nunca houve na história humana. A

respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives (“Vidas

Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela

KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da

compra de consciências, de chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito

também deste período há um outro livro que eu lhes recomendo: chama-se

Hollywood Party, de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema

americano.

Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa no

mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos

Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de

Hollywood jamais compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma

outra comissão totalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista

negra no cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha das

pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos

últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.

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Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico e

organizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra no mundo

jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia desse mecanismo ainda

nos atinge no Brasil.

Onde quer que haja cinco ou seis professores marxistas – não no sentido do

prof. Alaôr Caffé, pelo amor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato

–, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe

de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que

não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se

Partido Comunista, Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo

de como se faz isso: este livro chamase Dicionário Crítico do Pensamento da

Direita. É uma obra feita por 140 professores universitários brasileiros;

portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores trabalharam

durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para

nos dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do

Partido Comunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar

também o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo.

Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem

Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz.

Em suma, todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservador

nos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O que representa

o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era

um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso do

Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você

compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali

um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversário que

não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes quer impor às

pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a abertura dos arquivos de

Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso desses métodos no

mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o

marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o

mecanismo de escamotear sua própria história e a história do adversário.

Page 25: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

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Ressalto: nunca houve uma organização de tamanho comparável, dedicada a

fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, até

anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta

duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si.

Para vocês terem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu

ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o

anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Por causa

disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão

disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido

falha logo de início.

Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente

acima de minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que

essa figura nebulosa e proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura

mais reconhecível. Daí a minha definição do marxismo como uma cultura.

Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem prioridade absoluta e, em

nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um

trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que

ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica

do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria

jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz Antonio Negri: “O problema foi que

o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes, nem

para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto

Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de

uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado

nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no

entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições

jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma

prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à

hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à

expressão do seu poder”.

O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não

haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem

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apenas observações mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos

podem tirar delas –, existe uma crítica marxista que está de certo modo

embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do seu poder. Ou

seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx:

é necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se

desenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido?

Muito bem, só que em seguida ele diz: “Se havia algo em comum entre Bobbio e

seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real (Sabem o que é

socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada na União

Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um

desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do

marxismo à história do socialismo real não faz nenhum sentido”. Ora, mas o

que é o socialismo real?

Ele não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da

criação do sujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria

marxista do Estado não está nos escritos de Marx e também não está no

resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na

prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É esta

prática que é a legítima, as anteriores não.

Isto é uma constante na história do movimento socialista. Tão logo enunciados

os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a primeira coisa

que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo

capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos

revisionistas (Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx

estabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões:

Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria por meio da violência,

ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o marxismo por meio da

educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-se, que

“para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns

quantos povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à

violência não fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie de

excrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No

terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando-se que

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é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e,

através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de

milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado

Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é

representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.

Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando

aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o

verdadeiro marxismo não existe como nenhuma formulação explícita, que possa

ser discutida racionalmente. O marxismo só existe como uma cultura, na qual a

formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e tático, que pode ser

trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente

mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome

do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem

na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: ele consegue não

apenas limpar a memória de seus próprios crimes, mas consegue trazer para si

os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo

que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do

sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “isso faz parte da

história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários

desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o

Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim”. A Queda do Muro

de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação do sujeito

revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único

marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de

qualquer religião, ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita

uma tamanha elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ou

internado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda, digo para

vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade consciente. Isto é

possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria

que se tenha de defender mediante uma discussão racional.

Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura,

todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade

Page 28: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

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não devem entrar na linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade,

moralidade e racionalidade são apenas expressões parciais da cultura, de

maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece uma insuportável

revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a

cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria.

Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não

podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as

impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima da moral, rejeitará

nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em nome da

ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se

colocar sob a fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você

discutir com um marxista sobre a sua cultura quanto seria você chegar numa

tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que algum de seus costumes é

imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são

exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele

possa apelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em

enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitas

culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado, nos induz ao

relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de abstração e

abrangência maiores, mais científicos.

Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer

produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no

seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento

conservador todo será substituído por pensadores de direita de baixíssimo nível

– de preferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos na primeira

palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede-se de

maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto

nível, mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil

vencê-los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para um outro

quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas

tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de

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uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião etc.),

nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um

desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só

existe a mistura, será então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá

em alguma coisa. Na época de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências

totalmente distintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles

diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o

esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém

entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste

movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é bastante

limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen está errado ao definir

o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa discussão com ele,

apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora do

quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando

simplesmente não se entrou no assunto. E assim se procede com praticamente

todo mundo.

Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o

marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito

piamente que não existem. Mas vamos examinar muito rapidamente alguns

conceitos marxistas.

Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a

realidade social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre

Feuerbach, ele vai um pouco mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que

você tem uma posição na sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de

produção e você tem um conjunto de idéias que é determinado por esta posição.

Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em

última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre

posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou

posição social é uma coisa e ideologia é outra completamente diferente. Se

houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o

proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a

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possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não

fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o

quarto também não? E de que praticamente toda a liderança do movimento

comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse de

proletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e que aderiram.

Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm.

Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre

escolha, e a famosa conexão não existe. Outro item (eu poderia dar uns

cinqüenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof. Alaôr) é o de que

cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro

deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e

derrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaôr deu como exemplo o

feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade; quando a

produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntem-

me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de

que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios

de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica.

O feudalismo foi derrubado quando o rei, que era um primus inter-pares,

decide derrubar os seus pares e tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no

caso da França, constitui-se, pela primeira vez, uma imensa burocracia estatal,

com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os burgueses puderam

competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que na

Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas,

não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos

capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eram todos padres, aristocratas

frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses ou capitalistas

pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que

lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas

nunca houve este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução

Francesa era a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os

burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que não

tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês vindo-

lhes pedir que fizessem algo.

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Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista da história é

pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em

meia hora o prof. Alaôr não pode expor a parte dele (a qual vocês já estão

acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar toda essa novidade.

Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.

MEDIADOR: Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaôr Caffé Alves.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, isso se trata de um debate, e se é um debate

pressupõe um embate de algumas idéias que são postuladas. Obviamente eu não

penso como o prof. Olavo no sentido tão global de cultura marxista; não

considero que isto exista no sentido que foi colocado. Há uma ideologia,

obviamente, e toda ideologia pressupõe sempre a restrição, em princípio, de

seus membros ideologicamente preparados e geralmente tenta excluir as outras

ideologias, tanto quanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista

– é óbvio, é a mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que,

como foi colocado aqui, a ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tem

até um trabalho muito conhecido, A ideologia alemã, onde ele desenvolve três

conceitos de ideologia; e além disso, depois, no curso dos seus trabalhos,

desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia é plurívoca, tem várias idéias,

vários conceitos para definição e caracterização das ideologias, mas não é tão

singelo assim como se fez parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de

questões relativas à história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos

senhores que isso não significa que reflita de forma nenhuma as bases

autênticas do pensamento marxista.

Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadas concepções,

de variadas formas de ver o mundo. Não existe “um” marxismo mesmo. Existe o

próprio Marx: quem quiser estudar, estude Marx. Não se postula apenas

inicialmente como uma cultura, porque Marx iniciou seu trabalho

cientificamente. Pode ter muita coisa errada, disso não há dúvida nenhuma.

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Mas que ele iniciou seu trabalho com uma análise científica da economia

burguesa de sua época, ele fez isso. Ele não teve intenção de estabelecer uma

sociedade socialista, comunista; ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre

propugnava alguns programas em bloco, propugnava uma sociedade mais justa.

Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um conjunto

de besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma realidade que até

hoje é presente? Expliquem para mim a racionalidade de que o bolo social é um

só e, no entanto, um grupo pequeno de pessoas amealhe esse bolo,

patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo, e uma grande quantidade

de pessoas não tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já não

estou partindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas.

Estou pensando na realidade atual: milhões de brasileiros não têm o que comer,

não têm recurso, e eles participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que

aqueles que têm um patrimônio imenso, recursos acumulados imensos. Esses

recursos vêm de fora da sociedade? De Deus? Deus seria malvado, não é? Ele dá

recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm da sociedade

conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tão profunda que não há

sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, e não

vai resolver. Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, o

neoliberalismo também não vai.

OLAVO DE CARVALHO: Tem toda razão.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados,

e tudo o mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos, dos quais

três bilhões estão numa situação de penúria ainda, se contarmos a África, a Ásia,

[palavras inaudíveis]. A pergunta é a seguinte: onde está a razão de que um

grupo social mantém uma estrutura, e que o Direito está aí presente, ele é um

instrumento para esse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de forma

nenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas

próprias. São os homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as

discrepâncias, as diferenças terríveis que existem nesse país? Dizem que é a

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nona economia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de renda. [Palavras

inaudíveis.]

Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse que realmente não

havia nenhum capitalista na Revolução Francesa. E hoje nós temos o sistema

mais bem definido, mais bem claro, mais bem caracterizado que é o sistema

capitalista no Brasil e em outros países e eu pergunto: vocês encontram políticos

burgueses? São os capitalistas que estão lá fazendo leis? São os capitalistas que

estão organizando e que estão governando o país? Não é só no Brasil, não. E aí

pensar: “Aí está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estão

conseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque o sistema é

tão forte, a dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte, que podem ter lá

idéias comunistas e socialistas que não vão conseguir nada. Porque a estrutura

determina isso. A questão científica está em saber quais são os elos que vão nos

explicar por que é que lá, no Congresso Nacional, não temos burgueses, mas as

leis são burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se utilizassem

instrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia

eleitoral para mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos no

Congresso? Nenhum, ou poucos, contam-se com as mãos. No meio rural?

Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são burgueses capitalistas. Não são os

pró-capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, o empenho deles não é participar

no sentido do proscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora do

sistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para isso mesmo.

Vamos criticar, por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas.

[Palavras inaudíveis.] Criticar todos, porque todos participam desse processo de

fazimento, realização e estruturação das idéias dominantes. Idéias estas que

definem exatamente essa profunda injustiça que existe.

Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que idéias vocês vão usar, se

idéias marxistas, idéias neoliberais, idéias liberais, idéias social-democratas.

Não importa. O fato importante, fundamental é este, gente: nós temos de vencer

as discrepâncias, as diferenças sociais profundas que existem nesse país. Isto é

muito grave, sério. Pouco importa, inclusive, o esquema de idéias que vamos

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utilizar. É natural que diante de uma situação dessas, os homens tendem

sempre a tentar equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante sua

compreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão da distribuição

da renda. Não é fácil. Dentro do regime de mercado, que é tão defendido pelos

neoliberais, nós não encontramos nenhuma solução. Até agora nunca houve

isso. Pelo contrário, no sistema de mercado temos uma diferença tão profunda

entre os homens: entre muitos que não têm absolutamente nada, que não vão

ter mais nada do que têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a

chance de ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não

existe? É a lei do mercado: quem tem recursos, tem como produzir a liberdade,

ou não tem? Quem tem recursos vai à Europa, vai à Ásia, vai conhecer o fruto de

culturas diferenciadas, vai expandir sua personalidade, vai ter educação, vai ter

a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua cultura acrescentada, porque tem

recursos. E quem não tem? E quantos não têm? Não têm nem recursos para ter

saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é uma

realidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construção silogística

ou teórica. Isso é real, e o mercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por

enquanto assim jogado às suas próprias forças, autonomicamente desta forma

como ele é, que ele é sempre um indutor da miséria e das diferenças profundas

sociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo, inclusive nos Estados

Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo.

Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar uma coisa

como esta? A KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses? Ninguém vai

aceitar. Ninguém, na boa consciência dos homens. Está correto o professor, o

doutor Olavo. Mas é preciso também dizer o seguinte: hoje, os Estados Unidos

põem 450 bilhões de dólares anualmente no seu orçamento militar. Não estou

falando em KGB, não. Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de

máquinas mortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam

botões e vai matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram o que é 450

bilhões de dólares em um ano? 450 bilhões de dólares! Se isto fosse distribuído

para toda a África em três tempos nós teríamos o desenvolvimento de toda a

África. É claro que não vão fazer isso, pois eles vão cuidar eles próprios dos seus

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próprios problemas. Fazer isso significa criar opressividade para eles. Imagine o

que seria 450 bilhões de dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país

inteiro há muito está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um

ano na máquina, na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nós

estivéssemos importando recursos deste tipo, não há dúvida que teríamos

chances enorme de ter um desenvolvimento enorme imediatamente. Eu diria

que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo, teríamos

desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não é comportado pelas

relações produtivas do sistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo,

não só os 450 bilhões, são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas

na estrutura social americana, na NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram

aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo custa dinheiro, aquilo custa

recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos? Vem do

povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programas espaciais, o

seu programa de atuação militar, a sua dimensão de políticas sociais? Nada! É

do mundo inteiro que eles tiram!

ALGUÉM DA PLATÉIA: A China também, né, professor?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês

vêem portanto o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dos Estados

Unidos singularmente; eu estou dizendo, gente, que o sistema não funciona de

outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na carne hoje o problema do

desemprego. O desemprego não é uma questão simplesmente conjuntural, é

uma questão estrutural hoje. Não é no Brasil, é no mundo inteiro.

O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Da

introjeção de tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio. É muito

fácil isso. É necessário. Mas na medida em que se vão introjetando sistemas

cada vez mais sofisticados de produção, vai se expulsando cada vez mais mão-

de-obra do processo produtivo. E não é só expulsão no primeiro ou no segundo

setor da economia, na indústria ou no setor rural; também no terciário: cada vez

mais vocês têm dificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como

fazer, porque ele está entrando em contradições profundas. Ele é contraditório

Page 36: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

36

na sua própria realidade estrutural, na sua dinâmica. Ele é contraditório

mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada vez mais e mais, com

máquinas, com automatização, com informática, com a robótica, com tudo. Mas

os homens vão e se apresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens,

para que eles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todas

produzidas pelas máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E

então não podemos avançar mais com a economia, não podemos avançar mais

com a tecnologia, com a ciência. Nós precisamos distribuir renda.

Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nós

chamamos de materialismo histórico: o desenvolvimento das forças produtivas

está definindo uma nova relação entre os homens. Como sair dessa? É claro que

pode levar dez dias, levar dez anos, ou mesmo uma centena de anos; isso aí

nunca se sabe, isso é um produto histórico. Mas que as contradições internas o

estão corroendo, estão. Não porque os homens assim queiram; é porque a

estrutura social e econômica está definindo esta forma: as relações entre os

homens mediante os processos produtivos e os instrumentos de produção.

Talvez não comporte mais esse tipo de relação; uma outra relação onde haja

uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma produtividade cada vez mais

sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não se distribui

mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Conte

para mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente, inclusive, da

econômica; não é teoria, nem teorético, de jeito nenhum. Com isto todos estão

preocupados, inclusive os teóricos burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão

percebendo isso, certamente, claro.

Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; como se não

houvesse nenhuma alteração do sistema feudal que passou para o sistema

capitalista, burguês, sem uma modificação específica. O Estado, inclusive, foi

tomado primeiramente pelos nobres que atuavam de forma absoluta, mas não

se percebeu aqui que o Estado apareceu justamente neste momento como

Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu? Apareceu justamente na

continuidade do que eu havia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar

Page 37: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

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bem a análise analiticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo de

desenvolvimento das forças produtivas determinou que os homens ampliassem

o mercado, portanto aparecem neste momento as forças mercantis progressistas

que avançaram. Não vão pensar que o capitalismo apareceu como uma mazela.

Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para fora do planeta;

tivemos enormes progressos; o individualismo se criou no sistema, quando

nobre, adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro das

condições éticas, tudo bem. Infelizmente o próprio sistema exacerbou esse

processo pela busca do mundo, pela busca exacerbada da acumulação

desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer neste momento para coibir o

processo produtivo.

Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma idéia clara. Quando o

trabalho não é mais posto forçadamente… Porque no sistema feudal, o que

aconteceu, isso precisa ser explicado concretamente: o sistema feudal, o sistema

de trabalho, da produção da vida material dos homens era feito em função de

uma imposição por parte de uma força política, que também era econômica.

Como eu disse, os nobres eram detentores não só do esquema econômico, eram

patrimonialistas em função do sistema feudal, como também esses nobres eram

os políticos do sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para

impor o trabalho ao produtor direto. Quando, então, há o desenvolvimento

progressivo da economia, e era preciso fazer a distribuição de renda a fim de

criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forças produtivas,

era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questão econômica. Não

era possível manter o econômico e o político conjugados à força daquele que

produzia, não só por razões de interesse econômico, mas também por questões

de ordem política, atuava para que o trabalho fosse força. Na hora em que o

trabalho começa a ser assalariado (o que precisava sê-lo, para que o sistema

funcionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias, porque

senão não há contrato. É por isso que neste período começa a pensar-se

ideologicamente no chamado contratualismo: ele se expande entre os teóricos

do contratualismo porque o contrato passa a ser uma figura, um instrumental

fundamental para aproximar capital e trabalho. Não havia isso antes. Por isso é

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que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitos de direito, direitos e

obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe

pago o seu direito de salário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu

trabalho, eu sou obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas

eu tenho de receber o meu salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos e

obrigações.”. E isso se universaliza por toda a sociedade, justamente nos séculos

XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com o político? Ele vai se

destacando e se concentrando não mais na sociedade descentralizada, como

havia antes; ele se concentra no poder absoluto dos reis, e aí é que aparece o

Estado pela primeira vez. Um Estado ainda não adequado à burguesia

totalmente, mas como efeito de um processo que correspondia exatamente a

esse movimento do capital. Era a necessidade de que o trabalho, o contratado,

deveria ser contratado e não forçado, conseqüentemente não podia haver a

política no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante em

que o contrato fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou

seja, a força, para que o sistema continuasse a funcionar. Como isso é apenas

formalizado em nível de mercado e não em nível da produção, porque a

produção ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porque é lá no

processo produtivo que havia o processo expropriatório de acumulação), era

preciso manter uma estrutura de força para qualquer tipo de emergência que

houvesse; caso grande parte dessa população que tinha de entregar a sua parte

de trabalho para acumular a outra parte, era preciso que houvesse a emergência

possível de uma força, caso falhasse o esquema ideológico. O esquema

ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que todos aceitassem a

situação como natural. Mas a miséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o

sistema burguês hegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar

qualquer tipo de crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através da

força centralizada do Estado que só aparece no sistema burguês. O Estado é um

fenômeno tipicamente moderno. Não havia Estado na época feudal; havia

organização política, isso havia, mas não Estado. Não havia Estado na época

clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com uma dimensão

descentralizada enorme, por causa dos senhores de escravos, que atuavam

diretamente de suas fazendas; eram as famílias que tinham atuação de poder

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político. Isso não acontece mais no sistema burguês, não acontece mais no

sistema moderno, onde o sistema então acrescenta o ponto de vista mercantil, e

vai se desenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se concentra

enormemente num processo imenso em que o Estado faz presente o gendarme,

o Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que viesse a conflitar

com os interesses da política dominante, o que aconteceu mesmo já o século

XIX.

O próprio Marx, que postulava idéias estranhas a esse sistema, foi perseguido, e

teve de, inclusive, tomar posições complicadas nesse processo, e outros

movimentos, é claro, movimentos operários nessa época do século XIX. Aí vocês

vêem que não há nada de culturalidade abstrata. É preciso agora (eu disse isso, é

claro, de forma muito genérica) mas eu preciso basear agora os erros concretos

de cada coisa. Eu explicaria para vocês o contrato, explicaria a hipoteca,

explicaria o aluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso fazê-lo

porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata, ampla,

múltipla simplesmente, é uma questão que envolve métodos especiais

singulares.

Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muito bem

aqui, porque Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muito inteligente –,

ele era um leitor fruto das condições do chamado positivismo, do primeiro

quartel do século XX. Ele postulava a idéia de ciência pura, a partir de uma idéia

do positivismo como ciência do objetivo. A ciência tem de ser objetiva, de tal

maneira a dizer o que a coisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há

ciência do direito, essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá,

como objeto, é dever-ser, é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos

isso. Mas o direito como ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significa

dizer o que é o dever-ser, como é a norma. E ele, muito bem aparelhado com a

perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistas jurídicos, mas dos

positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, que tentavam buscar a extração

do sujeito em relação ao objeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo

contrário, neutralizar o mais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse

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claramente como algo objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro

está que esta dimensão foi fracassada, mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas

pela crítica da própria sociedade.

Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos por exemplo

um [?], um François [?], esses pensadores, esses sociólogos, que tentaram

quebrar a condição formal de Kelsen. E Kelsen ainda diz assim: “Não, mas a

questão sociológica não é uma questão jurídica na sua essência.” Nós sabemos

muito bem disso. Muito bem! Essa história é muito bem contada! Efetivamente,

é claro que Kelsen queria só uma pequena questão, que é a questão do que é, na

sua essência, o jurídico. O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo,

mas por vários pensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode

ser puro quanto à sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, o

Direito como objeto, é claro que ele nunca foi puro, e o próprio Kelsen sabia

muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura é a teoria sobre ele, isto

é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja o que eu digo –

epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma

de compreender o mundo? Talvez fosse válida naquele momento.

Compreensível! Mas depois da Segunda Guerra Mundial, com a conturbação

imensa do humano, do homem, já não se pensava mais em buscar ciências

puras, isoladas, solitárias, cada uma de per si. Percebeu-se que os homens

tiveram mazelas profundas exatamente por não se comunicarem não só eles,

como com as próprias ciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade

que vocês conhecem hoje, que é um problema muito complexo, muito difícil,

que não se soluciona facilmente. Buscar o Direito na sua expressão a partir da

forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a juridicidade como norma,

mas também o que é a dimensão social, econômica, e assim por diante. Como

compreender uma realidade plenamente senão descendo às suas próprias

raízes? Isso é como imaginar que somente o estudo do caule lhe dê a realidade

da planta. Não é isso. E o caule sozinho existe? Não. Ele só existe em ligação

com a planta, e este só existe em ligação com as suas raízes. Vejam, então, os

senhores que, efetivamente, é claro que há muitas outras questões a serem

colocadas, como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução.

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Marx nunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor de Deus!

Foi colocada aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Teses sobre

Feuerbach, Marx coloca muito claramente o que ele entende por revolução. Ele

não fala especificamente de revolução: ele fala em transformação pelas raízes. A

revolução não tem de ser necessariamente violenta, de jeito nenhum. Pode ser

outra. Por exemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a da

limitação do próprio sistema econômico capitalista que não pode superar-se a si

próprio, vai implicar uma revolução, uma transformação profunda. Isso não

precisa ser pelo caminho das armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das

pessoas. Quanto mais as pessoas forem conscientes, mais educadas, mais claras

em ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer a transmutação. Por

isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democracia

simplesmente representativa, mas uma democracia participativa que permite a

todos nós trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor a democracia

participativa não à ditadura, não aos meios autocráticos apenas, mas também,

gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrível que não tem força nenhuma

que o coíba. É preciso coibi-lo através do quê? Da conjunção, do consenso da

comunidade, para buscar melhor a expressão do valor do uso social! Evitar que

esse valor de troca toque todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem

de sofrer impactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade

humana, em prol da distribuição para os homens, em prol da paz entre os

homens. Isto é fundamental. É disso que se trata.

MEDIADOR: Passo a palavra para Olavo de Carvalho.

OLAVO DE CARVALHO: Então está muito bom. Já que passamos a

discussão para o terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marx teria

encontrado e que ainda se encontra mais ou menos igual no mundo, então

vamos ver um pouco a relação entre os fatores considerados: mercado e miséria.

Segundo o prof. Alaôr, o grande culpado da miséria e da desigualdade é o

mercado descontrolado. Ele usou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”.

Portanto, é necessário controlar e coibir o mercado.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não foi isso.

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OLAVO DE CARVALHO: Aí eu não sei…

ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO: Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhe

dei aparte. O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO: Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu esperei

aqui. Muito bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibição total seria

a estatização total dos meios de produção. Não me parece que o prof. Alaôr seja

um defensor disto, e não creio que exista mais, nem mesmo entre os teóricos

marxistas, alguém que defenda exatamente isto. Mas, se o grande culpado da

miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado, então para melhorar a

condição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz basicamente de

duas maneiras: a mais direta, que é a participação do Estado na economia como

proprietário e investidor, e a segunda através de legislações controladoras e

restritivas, seja sob o aspecto fiscal seja sob outros aspectos.

Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica. Liberdade

econômica seria a ausência de controle. Ausência total não existe, assim como

controle total não existe. Mas dentro dessa escala que vai de 1 a mais ou menos

150, nós temos entre os países de economia mais livre do mundo Hong Kong,

Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Estados Unidos, Austrália,

Chile, Reino Unido etc. E assim, à medida que aumenta o número de controles,

supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escala de

liberdade econômica. Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou

menos no meio da terceira, encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem mais

controle do que o Brasil e, portanto, está abaixo nesta lista? Eu vou dar alguns:

Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda, Tanzânia, e assim por

diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformado para uma projeção

visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e,

portanto, de menos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm mais

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controle. É só você olhar estes dados, que são coletados anualmente com muito

critério por um grupo de economistas, e você verá que a idéia mesma de

melhorar a condição dos pobres através de controle é um absurdo sem mais

tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não vai resolver, é claro que não.

Em primeiro lugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é

um liberalismo meia-bomba que também se mistura com um socialismo meia-

bomba, e o neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nosso

governo tem feito, que é controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, só de

dispositivos que regulam o orçamento federal, vocês sabem quantos há? Cinco

mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar o orçamento com

consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é

humanamente impossível. Isto é o controle estatal.

Ora, o prof. Alaôr reconhece que aqueles que estão no Congresso e que fazem as

leis não são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eles legislam em favor

dos capitalistas. Aí eu me permito concluir que se fossem proletários não

legislariam necessariamente em favor dos proletários. Porque acabamos de ver

que a ideologia e os ideais do indivíduo não são de maneira alguma

condicionados nem determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse

o caso, eu, que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser

o mais marxista de todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e

toda essa gente seriam pró-capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasil

como em outros lugares, não são nem capitalistas nem proletários, o que é que

eles são?

Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde o reinado

de Luís XIV se começa a formar, para fins militares, um princípio de

organização burocrática estatal. Aos poucos essa organização burocrática vai

tirando da aristocracia feudal as funções locais que elas exerciam (por exemplo,

tribunais, juiz de paz, coleta de impostos etc.) e passando para a burocracia. É

evidente que os aristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos

impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com

toda justiça, a Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempo

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que se forma a burocracia estatal, para preenchê-la é necessário ter funcionários

preparados. Para ter funcionários preparados, é preciso haver uma expansão do

ensino. Então cria-se, para uma multidão de pessoas de todas as origens sociais

mais pobres, desde a pequena burguesia até os camponeses, uma promessa de

subir na vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inédito na

História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, e

junto com ela cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número de candidatos

cresce formidavelmente mais. E com isso se cria uma legião de pessoas que têm

alguma instrução e que aspiram ao cargo público e não o têm. É a esta classe

que eu chamo a burocracia virtual.

Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa,

Revolução Russa, Revolução Chinesa etc.) não através de impressões gerais e

nomes de classes – gêneros universais como burguesia e proletariado – mas se

você for vendo uma a uma a origem social dos líderes, era a esta classe que

pertenciam. Esta é a classe revolucionária. Mais ainda: todas as revoluções que

ela fez foram sempre em proveito próprio. Quem sai ganhando com as

revoluções não é o proletariado e também não é a classe capitalista. É a

burocracia virtual, que sempre legisla em causa própria, segundo a norma que

foi assim enunciada pelo próprio Trotsky: “O encarregado da distribuição

jamais se esquecerá de distribuir a si próprio em primeiro lugar.” Isto é norma,

e é por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia à sua própria

mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os mais

altos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não há solução

enquanto o poder da burocracia, sobretudo da burocracia virtual, não for

quebrado.

Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui. Porque

esta escola existe para isto. Numa pesquisa feita entre universitários brasileiros

dois anos atrás, verificou-se que menos de 2% deles queriam ser empresários

depois de formar-se. Todos queriam um emprego. De cara eu fico espantado,

porque eu sempre ouvi dizer que a Universidade faz parte do aparelho

ideológico da burguesia para formar a classe dominante, e de repente nós

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descobrimos que todos eles querem ser empregados. Que tipo de empregado?

Não é necessário dizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais,

esperando para transformar-se em burocratas reais. Portanto, são por

excelência a população da qual o movimento político revolucionário colhe os

agentes de transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar para os

burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando eles

estiverem no poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim às

injustiças. Uns acreditam, outros são mais cínicos e sabem que não.

Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior e mais

poderoso que está oprimindo este aqui, que é menor e menos poderoso. Então

eu entro e digo: vou parar com essa injustiça, eu vou intervir. Ora, para intervir

numa briga entre o mais forte que oprime o menos forte, eu tenho de ser

necessariamente mais forte que os dois. Isto quer dizer que qualquer

intervenção política que vise a diminuir a desigualdade econômica tem de fazê-

lo necessariamente aumentando a desigualdade política, portanto concentrando

o poder político. Isto é uma regra jamais desmentida em qualquer processo

revolucionário violento ou pacífico do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o

poder; concentra o poder, concentra o quê? O controle.

Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive o poder

político? O poder político não custa dinheiro? O próprio prof. Alaôr estava

falando do orçamento militar americano. Isso quer dizer que se há uma

concentração do poder político, há necessariamente uma concentração ainda

maior do poder econômico. E é isto que permitiu ao socialismo realizar um feito

jamais igualado na história humana: matar de fome, em cinco anos, trinta

milhões de pessoas, no Grande Salto para a Frente, que foi o quê? A

centralização da agricultura chinesa. Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém

conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar novamente… Bom, agora querem.

O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma agricultura centralizada,

estatizada, diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem perfeitamente

que o MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentemente um

livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais de trinta

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acampamentos rurais e disse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser

outra coisa. A socialização da agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos

os países africanos que estão numa condição de miséria atroz, todos eles foram

vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hoje em dia, na

Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se

você tem um firma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52%

de imposto, e para cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga mais

trinta, e assim por diante. Saiu um livro recentemente descrevendo a economia

da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o mercado é o monstro que está

deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo, porque o

mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, na Zâmbia, no

Gabão. Por que é que não imitamos esses lugares? Parece que a presente

geração está seriamente inclinada a fazer isso. Por que é que está inclinada?

Porque o raciocínio que preside essa decisão, essa escolha, não é um raciocínio

baseado na economia, na realidade econômica, na racionalidade econômica. É

um raciocínio de ordem cultural.

Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético, de

bondade e de solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar de uma

ideologia ou de uma idéia é relativamente fácil, porque você simplesmente

muda de idéia. Mas, como é que você faz para se desgarrar do meio marxista, da

atmosfera marxista? Primeiro, tem de abandonar seus amigos: eles não gostam

mais de você. Isto, todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo

centenas de cartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São

centenas, e chegam todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus,

não é isso o que eu estou dizendo. Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo,

eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o mais científico que eu posso.

Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.

Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico que elas têm

sobre o público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamada Kubanacan?

Vocês sabem o que quer dizer “Kubanacan”? Sabem o que quer dizer essa

palavra? É o nome da agência oficial de turismo de Cuba. Se você pegar todas as

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novelas da Globo, de vinte anos para cá, a seleção ideológica é estrita. No tempo

do falecido Dias Gomes havia uma central de seleção de novela. A novela

passava por três peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística;

terceiro, comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não

atende ao requisito ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamos

impregnados de cultura marxista 24 horas por dia; é difícil sair de dentro dela.

Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim, quem quer que participasse

desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contar por que.

Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fiz foi

entrar no Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era um jornalista

pernambucano chamado Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da

“base” (na época chamava-se base à unidade mínima). A base era na Folha de

São Paulo, que se chamava Empresa Folha da Manhã na época. Passa um mês,

chega um sujeito muito sinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do

tal do Pedro, que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com um

problema. Nós estamos desconfiados de que o companheiro Pedro arrumou

uma amante, e temos razões para crer que ela é agente do Dops. Não temos

certeza, e por isto nós precisamos isolar esse camarada enquanto tiramos o

assunto a limpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um local para

depositá-lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto averiguamos”.

Delegou quatro voluntários, entre os quais este que vos fala, para fazer esta

porcaria. Eu arrumei um barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria

chegar – é impossível, é depois de Deus-me-livre. E deixamos o camarada lá.

Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e cigarros para o

sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir

falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, uns

nove ou dez meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquele f.d.p. do

Pedro. Nós não deixamos nem entrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.”

Passam mais alguns meses, eu estou no bar na frente da Folha tomando um

cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo, verdadeiro

mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Este

era um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lhe eram

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desagradáveis. Isso não aconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é

muito comum, porque é considerado uma justa medida de segurança.

Por aí vocês vêem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos para sair.

Você tem de cortar os contatos um por um, você tem de fazer novas amizades,

você tem de mudar de lugar, porque se você está ali você não vai agüentar a

pressão. Isto não é a força de uma ideologia, uma ideologia não pode ser tão

forte assim. Uma ideologia não penetra até às mais íntimas reações emocionais

da pessoa. Isto é uma cultura no sentido antropológico do termo, da qual

evidentemente fazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas não

essenciais, tanto não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso

de que Marx acreditava que era imprescindível o uso da violência (e nisto ele é

textual, não há menor possibilidade de dúvida), que a geração seguinte já

acredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em seguida, se

volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessão absolutamente

alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode

dizer uma outra coisa completamente diferente, sem perder o senso de unidade

– isto é que é miraculoso. Há pessoas que dizem que o marxismo é uma religião;

eu digo: de maneira alguma. Ele pode ser uma religião no sentido primitivo, em

que cultura, religião e sociedade formam um amálgama indiscernível. Mas no

sentido das religiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas têm de

ter um dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, e

aceitar ou impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de

qualquer das suas doutrinas, se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver os

feitos do adversário. Eu já lhes provei como é assim.

Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo. O

fascismo existiu no mundo e chegou a ter força graças à União Soviética. Por

quê? Stalin, analisando marxisticamente o fenômeno, acreditava que aquilo era

uma rebelião meio anárquica de classe média que conseguiria destruir as

instituições das velhas democracias capitalistas, mas que não conseguiria

manter-se no poder. Então, ele dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo

da revolução”. Dito de outro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu

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ajudá-los o mais que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes

mostrar aqui mais um livro: The Red Army and the Wehrmacht. É a história de

como a União Soviética construiu militarmente a Alemanha nazista. Isto foi

escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dos arquivos

de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalin tinha a respeito do

nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função

disso, ele de repente dá para trás e invade a União Soviética. Aquilo era tão

absurdo do ponto de vista da interpretação marxista de Stalin que ele levou dois

dias para acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Ele achou que era uma

operação de contra-informação feita pelos malignos ingleses. Bom, durante toda

a década de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da eleição de

Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp-Molotov de 1939. O pacto

foi apenas a exteriorização de uma colaboração muito profunda que pelo menos

desde 1933 construiu o poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como

operação diversionista, Stalin lançava em alguns países ocidentais,

especialmente na França, uma imensa campanha de antifascismo literário, na

qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem paga.

Até hoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve o famoso

atentado ao Parlamento alemão; daí lançaram a culpa num comunista e

prenderam um agente do Komintern, George Dimitrov – vocês já devem ter

ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunal e diz: “Eu estou aqui preso

por causa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e dos

Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Não sabem,

por exemplo, que o velho Thyssen, quando veio o nazismo, fugiu para a França,

de onde foi seqüestrado e obrigado a voltar para colaborar com os seus

inimigos. Mas como é que George Dimitrov foi parar na cadeia? É muito

simples. Ele era a figura mais importante do Komintern, e estava ali na

Alemanha; foi almoçar no restaurante que era o ponto de encontro de toda a

oficialidade nazista; vocês imaginem um militante clandestino fazer isso,

almoçando com dois de seus assessores ao lado. Foi preso ali, evidentemente,

sem nenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde fazer o seu show e

em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois

assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer que toda a

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50

nossa concepção corrente de fascismo é um mito publicitário, criado para

encobrir a colaboração profunda da União Soviética com o fascismo.

Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negócio há

trinta anos: eu não sou um teórico neoliberal, não pertenço a movimento

nenhum, tenho horror dessa direita brasileira, cuspo na cara de todos eles, estou

pouco me lixando para o que pensam, não estou falando em nome de ninguém,

e não tenho nenhuma solução para os problemas do mundo. Eu falo somente

daquilo que eu estudei. Esse negócio de marxismo e de história do comunismo

eu estudei. Eu lhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do

próprio marxismo fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não se

mostrasse exatamente o contrário da verdade. É uma por uma, a lista não acaba

mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que comecei a ficar alucinado: não é

possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal da direita é verdade.

É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foi chocante,

porque eu saí do Partido não por discordância ideológica; saí simplesmente

porque fiquei moralmente confuso com episódios como esse que eu lhes contei,

e durante 25 anos não dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho

no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu

tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx

era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria

os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo

que ele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas

estatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais

do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário

do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que

é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros

estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros,

mas como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os

registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja. Mais

ainda: na hora em que o sujeito editou o seu próprio sistema de “materialismo

dialético”, vocês já pararam para pensar nessa expressão? Uma dialética é um

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fluxo, um processo inteligível de idéias. Em que sentido isto pode acontecer na

matéria? Engels diz que a matéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje

nós diríamos assim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a

síntese. Não é preciso dizer que todas essas idéias foram absolutamente

desmoralizadas. Depois de desmoralizadas, apareceu esta versão que o prof.

Alaôr defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou o materialismo

apenas no sentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da ação

histórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeito apenas à

nossa ação sobre a matéria, então a matéria é o fator passivo e alheio ao

materialismo dialético. Só existe materialismo dialético, portanto, na ação

humana. Mas que raio de materialismo sem matéria é esse aí? Isto não é um

materialismo. O que é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente nada

sobre isso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora do

homem no cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode transformar? Um

pedacinho insignificante da crosta de um planetinha, e todo o restante do

cosmos permanece perfeitamente indiferente a isto aí. Como é que este processo

pode ser o centro da realidade material? Se você disser que espiritualmente ele é

o centro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele é

significativo. Colocá-lo materialmente no centro é nonsense e é de um

primarismo filosófico digno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto,

Marx era simplesmente mentiroso. As provas disso são abundantes: a sua

falsificação de fontes, as interpretações absolutamente forçadas. Por exemplo,

quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: ele não faz

absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética não tem nada a ver com

Hegel, ele passa longe. E no entanto todo mundo acredita que é a estrutura da

dialética de Hegel que está lá dentro, e assim por diante.

A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes expor em

meia hora, ou até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulas sobre isto, e o

negócio não acaba. Então, eu vou terminar esta exposição com um apelo. Não se

sai de uma cultura mudando de idéia. A cultura abarca a personalidade das

pessoas. Para você abandonar essa cultura, você vai ter insegurança, problemas

psicológicos e dificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que dentro da

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redoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a

alma e a existência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer a

liberdade para os outros, experimente o que é a liberdade. Experimente

examinar a cultura marxista não desde dentro, como ela sempre faz, mas

experimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem diferente da que talvez

tenham. Muito obrigado.

MEDIADOR: O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dez minutos

ao prof. Alaôr Caffé Alves para tecer comentários.

OLAVO DE CARVALHO: Só se eu também tiver dez minutos também. Ou é

igual ou nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem.

[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido que cada um

dos debatedores terá a palavra por dez minutos.]

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem.

Mas esta última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo de política que

me é extremamente estranha e séria, mostrou inclusive que não se sabe o que é

o nazismo. Porque os outros, isso que vocês conhecem, vocês sabem o que é…

Porque existe uma outra idéia do nazismo que talvez fosse aceitável, como o

Olavo falou. Profundamente triste isso. De qualquer forma, a questão de dizer

que Marx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa

forma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem a

condição de se defender. Mas isso é muito complicado porque não existe só a

literatura marxista, existem marxistas, os que são simpatizantes de Marx, os que

aproveitam parte da concepção marxista, e que admitem perfeitamente a

possibilidade de desenvolver teses interessantes e importantes, de cunho

científico. Marx viveu praticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres

dando toda a sua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua

época. Como eu disse, ele pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceita

isso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas atacar uma dimensão moral, contra

um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dos maiores

intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisa dessa?

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OLAVO DE CARVALHO: Eu vou discutir.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuito

isto, colocar essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito. Não, não

é assim que vamos discutir. Eu, por exemplo, fiz toda uma série de colocações

singulares a respeito de como se estrutura o sistema, pelo menos aí

rapidamente, pelo menos no sentido de verticalização, mas eu fiz umas coisas

concretas, de mencionar portanto discussões conceituais. Quando se penetrou

no terreno conceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre a

matéria, mas Marx nunca se preocupou especificamente com a matéria no

sentido físico. E quando ele [Marx] fala em matéria, a matéria corresponde a um

esforço da transformação do homem como um fato importantíssimo, que não

foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer uma

análise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homens agem

sobre o mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queria transformar o

universo não tem sentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava

nisso…

OLAVO DE CARVALHO: Nem eu disse isso.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: …ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A

transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marx propunha

era a transformação do homem, do homem na sua pequena Terra mesmo, no

seu planetinha, direitinho. Mas é o homem, ele estava estudando o homem! Ele

não estava estudando um marciano nem nada disso. É o homem e, portanto, os

homens, claro, têm uma dimensão concreta que é a ação humana, que ele

imagina não poder explicar as questões especulativamente. Era isto o que ele

queria dizer só. Que a especulação filosófica, puramente teórica, não é suficiente

para caracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco na

contraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente um Descartes,

que dizia que o homem é um ser pensante. A postulação do homem, inclusive,

como ser pensante, o distinguia dos outros animais, é assim que se pensava em

forma clássica. E Marx não acreditou simplesmente nessa posição, ele avançou.

Ele não está excluindo a vida teórica, ele foi um teórico. Ele se trancou. Ele quis

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incluir a vida emocional dele, a vida da praxis, da ação, da decisão, dos valores.

Isso aí ele quis incluir. E é claro que o movimento dapraxis envolve exatamente

o movimento do homem como um todo, não apenas como inteligência, como

um ser especulativo, como lógica. Ele via o homem como um movimento do seu

corpo, dos seus pés, das suas mãos. E uma relação social, nunca se viu o homem

tornar-se solitário. Ele não pensava na matéria no sentido, por exemplo, dos

gregos, buscar a arkhe, o fundamento de todas as coisas, como se fazia desde

Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses pensadores

todos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com

esses filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels,

que é Parmênides e Heráclito, com as suas posições. Pena que não dá tempo de

desenvolver toda a temática desses pensadores muito maravilhosos, que foram

trazidos para nós, que foram recuperados.

Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porque está

vivendo justamente num período que se chama “Revolução Industrial”. O

homem pobre não pode ser simplesmente teórico, ele tem que entrar em

contato com o mundo, transformar o mundo, ele tem de mudar a matéria-

prima, ele tem de buscar matérias-primas, ele tem de transformar o mundo com

as suas mãos, com a sua indústria. Daí porque ele teve de começar a pensar

especificamente, não de forma puramente teórica, ou de forma especulativa.

Esta dialética é diferente. Quando ele busca a materialidade, não é essa

materialidade portanto abstrata. É muito concreto, porque ela é calcada no

trabalho humano. Para ele, o trabalho é fundamentalmente aquele núcleo que

perpassa o próprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e

socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é a

administração do homem sobre o mundo, transformando esse mundo, porque

nisso ele transforma-se a si mesmo. É isso que ele quis dizer: matéria

transformada permanentemente pela sua própria ação. Não é matéria bruta,

como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essa idéia da física nem da

química. Não contava para Marx isso. O importante para ele era a dimensão

fundamentalmente social, isso é que era importante para ele.

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Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de ter uma

burocracia. Por isso mesmo que se propugna por uma dimensão outra, que é

aquela que o Olavo disse a respeito do poder maior do que aqueles poderes. Um

poder que oprime o outro, que pressupõe o outro, que é bem maior. Sabe qual é

o poder maior? É a comunidade! É a sociedade democraticamente organizada,

articulada de forma tal que se permita coibir (agora sim, a palavra mais correta)

a ação sozinha e solitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui

imaginar que o mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares

se movimentando pelo alto, pelo labor da globalização, nós vamos conseguir

neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a vontade singular de cada um?

Ou com recursos que nós não temos? A única forma de coibir é exatamente

através de uma democracia participativa! Não é através da democracia

representativa, que de quatro em quatro anos vocês vão correndinho num

domingo determinado de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger os

políticos que, em última instância, vão ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É

a democracia participativa formada por divisão de comissões, de conselhos, de

articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que é uma coisa

difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que está

sob a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os

donos do mundo! Eles decidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar,

pôr… Eles fazem. Esses movimentos de capitais procuram as comunidades onde

a mão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas postulações de que se o Estado

interfere o sistema fica pior, ele está propugnando fundamentalmente que

largue tudo ao mercado, que façam tudo de acordo com as forças do mercado,

que tudo vai bem. Como, se cada pessoa tem o seu poder no mercado em função

do quê? Em função da sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não

estou colocando a questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não têm

mesmo nada. São aqueles que ainda têm trabalho e que ganham metade de um

salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como é que essas pessoas vão definir

situações, vão decidir sobre questões do mercado? E essas pessoas vão fazer o

quê? Vão ganhar mais? Então vocês estão percebendo que eu acho que essas

questões de colocar Marx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem.

Não fica bem. Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros

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pensadores que seguiram, inclusive que houve outras mudanças, outras formas

inclusive de considerar Marx, a questão até dessa violência, nunca Marx falou de

materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx diz materialismo histórico!

O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx nunca falou

em materialismo histórico.

OLAVO DE CARVALHO: Falou em “materialismo dialético”.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceu

essas formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fim acabam

distorcendo até o pensamento, embora dê a entender Marx nos seus conceitos.

Ler O Capital, ler… Tem várias obras dele maravilhosas e interessantes, já que

ele [Olavo] está fazendo tanto denegrir, tanto. Eu diria para vocês que há obras

notáveis. Obras notáveis que exprimem conceitos riquíssimos. Podem não ser

todos suficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas que

nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx. Pensem

num Weber, por exemplo, um Durkheim. Tem de estudar esses pensadores para

mostrar plenamente que tudo se compõe, esse sim, o espírito humano, mas

como a base fundamental da estrutura de ação humana constante e

permanente, que é o trabalho, que nós devemos cultivar permanentemente.

Estou contra essa idéia de “Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o

prof. Olavo não precisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele é

suficientemente filósofo, eu sei, eu conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma

coisa mais profunda, mais tranqüila, mais científica. É isso.

OLAVO DE CARVALHO: Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aos

senhores que o conceito de fraude intelectual não é um insulto, é um conceito,

inclusive jurídico, perfeitamente delimitado, e que eu tenho todas as provas de

que Marx se enquadra nisto, pela falsificação de fontes, pela má interpretação

proposital de autores que ele conhecia perfeitamente bem, e assim por diante.

Em segundo lugar, eu não vejo por que eu deveria me abster de usar a palavra

correta para designar o procedimento dele, quando na verdade eu li Marx

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durante muito tempo e conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas

contra as quais ele não tinha tantas acusações assim chamando-as de cães

sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas. Assim, este é o estilo de

Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando um conceito

perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto é fraude

intelectual. Outra coisa: eu não posso confundir a tranqüilidade com a

cientificidade. Estar nervoso ou estar calmo não tem nada a ver com esta

história. Não vamos confundir calma e tranqüilidade com honestidade. Só

interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que

não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade

intelectual.

Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e é uma

literatura enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, é desconhecida,

porque o ensino universitário aqui é nesta base: existe a redoma. Prova de que

existe a redoma é que o prof. Alaôr ficou escandalizado quando eu sugeri que

havia um outro conceito de nazismo que não fosse aquele expresso por

Dimitrov, o que significa que ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele

também está dentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem

essa concepção marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo

Strauss, há uma bibliografia imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é

bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos que ele não foi de maneira alguma a

ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muito menos ainda foi um

regime capitalista: foi um dos regimes mais socialistas e mais intervencionistas

que houve na história do mundo. E quando eles se chamaram de partido

nacional-socialista, não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança

estrutural entre nazismo e comunismo permite dizer que, de fato, a única

diferença é entre socialismo internacional e socialismo nacional. É somente isso,

e é por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional Nazista”, porque só

quem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquela

porcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é para ficar

escandalizado, mas o próprio escândalo do prof. Alaôr mostra como essas idéias

e essas informações estão distantes do meio universitário hoje. Porque o prof.

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Alaôr não é um homem inculto; ao contrário, é um homem bem informado. Só

que é o seguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de fora já come

no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, e eu digo:

eu levei vinte anos para sair disto.

Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400 bilhões

de dólares do orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares

para o Brasil ou para a África, nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês

um outro dado: só no ano de 2000 (é a informação mais recente que eu tenho,

não tenho outra mais atualizada), os cidadãos americanos – cidadãos e

empresas, sem contar o governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares de

contribuições para entidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo.

Some com o governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro?

É dado diretamente aos necessitados? Não, é dado a uma estrutura burocrática

da democracia participativa: é a comissão, é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E

tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, tem de pagar aluguel, tem de

pagar empregados etc. Vocês sabem como os americanos definem FMI? FMI é

uma entidade que se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos

para dar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa. De

vez em quando nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o

FMI…” etc.) como se o FMI fosse um propugnador da economia liberal e não

um dos maiores controladores da economia que existe no mundo: é o órgão

controlador por excelência fundado por Lord Keynes, que além de ser um

estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, isto quer dizer

que ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando-o como símbolo do

capitalismo. Mas, quando o FMI estrangulou economicamente o governo

Somoza para dar o poder aos sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI

não tem essa identidade ideológica que lhe estão dando, ele tem uma outra.

Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das grandes fortunas,

veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford.

Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria a esquerda

nacional. Elas subsidiam partidos, ONGs, o Fórum Social Mundial etc, e

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ninguém pára para pensar que talvez a equação socioeconômica do mundo seja

um pouco mais complicada, um pouco mais sutil do que o esqueminha marxista

admite que você veja. Na verdade, se você pensar: mas por que é que esses

grandes capitalistas contribuem para o movimento revolucionário? É por um

motivo muito simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e

acumula tanto dinheiro, mas tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na

seguinte consideração: “Não podemos permitir que essa fortuna, que custou

tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É preciso

preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa a entrar

em considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidade daquela

fortuna: o mercado não pode fazer isso, somente o Estado pode. Por isso é que

se você pegar as duzentas maiores fortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram

uma política liberal. Entre dois candidatos nos EUA, eles apóiam sempre o mais

intervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles podem fazer isso?

Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o estatismo total

jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha,

haverá uma margem de liberdade econômica para quem tenha o poder de

assegurá-la. Eles sabem que o estatismo total não funciona, porque isto lhes foi

demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até hoje não – com o

economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig von Mises disse o

seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina o mercado; se elimina o

mercado, as coisas não têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo

de preço; se não dá para fazer cálculo de preço, não dá para fazer economia

planejada; portanto, não existe socialismo. Por isto mesmo, tanto os

metacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam para isto. Na

União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para

a economia capitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dos

grandes milionários russos. Que, se era tudo do Estado, de onde apareceu tanto

milionário do dia para a noite? Já eram milionários. Sempre existiu capitalismo

na Rússia, como sempre existiu na China. Ou seja, a estatização total nunca

acontecerá. Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros sabem

disso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo:

chama-se economia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas na

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concorrência do mercado e eles precisam do Estado para garantir o seu poder

monopolístico; por isto fomentam movimentos socialistas e estatistas em todo o

Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessa acreditando que estamos lutando

contra o poder do capitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado.

MEDIADOR: Passamos agora às perguntas.

P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eu tenha

compreendido mal – na verdade são três perguntas –, o senhor chegou a dizer

que os censores das novelas da Globo tinham uma ideologia marxista…

OLAVO DE CARVALHO: Certamente.

P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eu gostaria

de um pouco mais de explicação. Com relação à sua concepção do marxismo

como cultura, no sentido antropológico de termo, eu também não consigo

enxergar claramente todas as dimensões disso, porque a cultura no sentido

antropológico implica instituições, e aí eu gostaria de enxergar mais claramente

quais são as instituições marxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em

qualquer outro desses países. E a última pergunta é que o senhor faz uma

aproximação, inclusive mostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e

centralizado e o marxismo… [troca de fita]

OLAVO DE CARVALHO: Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar,

estude simplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, que sempre

foram militantes do Partido Comunista; em seguida, você vai precisar de

informações de um pouco mais de dentro e conhecer os scripts de novela que

são propostos, que você vai averiguar gradativamente a introdução de

elementos de propaganda claramente esquerdista, se bem que light,

evidentemente. Porque você vai usar o meio de propaganda conforme a

natureza e o público que você vai atingir. Em segundo lugar, quanto à questão

da cultura marxista, a resposta é simples: leia Gramsci. E não é verdade que

cultura implique instituições. Cultura, no sentido antropológico, é um termo

que abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas] modernas. Eu

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usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituições dos

países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas você pode ter um

domínio sobre uma parte das instituições, mas isto não é absolutamente

essencial para o processo que eu estou descrevendo. E, quanto à terceira

pergunta, é verdade que naquele momento Marx advogava o livre câmbio

porque as políticas protecionistas eram políticas herdadas de um concepção

mercantilista antiga, e naquele momento Marx achava que era mais importante

liberar a força do capital, para que crescesse e para que, no entender dele,

chegasse a criar a contradição que resultaria no socialismo. Porém, a verdade é

que, no século XX, sempre os partidos comunistas e de esquerda favoreceram as

políticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens da esquerda é

ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradições entre países.

Então, por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apóia políticas protecionistas;

e no Terceiro Mundo reclama contra as políticas protecionistas americanas que

ela mesma criou.

P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, os políticos, o

jurídico, qualidade de vida dos brasileiros, milhões de miseráveis, como resolver

isso, distribuir renda – e isso me fez lembrar que três anos atrás

aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, que escreveu um artigo em que ele

defendia, em vez da apropriação dos meios de produção, a tributação da

produção e da renda. Deu como exemplo países como Suécia, Noruega,

Dinamarca e Finlândia. Talvez eu não esteja sendo preciso por uma questão de

memória fraca, mas eram basicamente esses países da Escandinávia. Eu

pesquisei e descobri que exatamente esses países citados pelo Joelmir Beting

são países com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50%

e mais). E, por coincidência, esses países também são os países com melhor

índice de desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida. Então,

será que nos regimes capitalistas vigoraria o que Joelmir Beting chamou de

“socialismo fiscal”?

OLAVO DE CARVALHO: De maneira alguma. Na escala de liberdade

econômica a Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta para

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62

caracterizar um controle estatista. É necessário haver legislações restritivas etc.

No conjunto, a economia dinamarquesa é extremamente livre, está bem mais

próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa, e assim também os outros

países. Se me escreverem para o meu e-mail, eu passo essa escala para quem

quiser.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, a tributação vem do corte financeiro em cima

da sociedade civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa viver de

um recurso, quer dizer, o recurso é extraído da produção. E conseqüentemente a

produção, como não é neutra, ela envolve capital, o capital muitas vezes resiste à

tributação. Vocês vêem que ele resiste à tributação tendo em vista o fato de que

isso atrapalha a acumulação dele. Então, ele não quer evitar, ele não quer ter

limitações de sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise interna,

pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muito

acentuada dos tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos conflitos

e das contradições internas da sociedade em torno disso. Quando não acontece

isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já ouviram falar no “caixa 2”: não paga

exatamente para ficar com uma parte e conseguir fazer, com isto, a acumulação.

Há portanto uma dinâmica econômica no processo, muito importante: não é

simplesmente tirar da sociedade.

P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o atual

momento político e ideológico do país, e se os dois têm esperança no Brasil, e no

quê eles teriam esperança?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, o atual sistema, o atual momento político é um

momento à esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, o sistema

que prevalece hoje é o Partido, é o PT. Só que é evidente que o PT não pode

tomar posições senão pragmáticas, em função da situação. Porque aquilo até

que se esperava – que o PT tomasse uma posição mais radical em termos

econômicos –, não o fez, aceitando de certo modo as diretrizes de definição

econômica e social, tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando.

Vocês vêem até que eles estão conservadores no processo, inclusive de abertura

econômica. Isso significa, é claro, que não é a perda do ideal mais socializante,

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63

ou então mais equalizador, do sistema social. Isso é importante. Não é esta

perda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E essa

impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem de fazer,

porque tem de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo, então ele tem de

tomar certas posições pragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma

série de questões e problemas que nós temos de enfrentar como um todo, o país

como um todo. E o próprio governo neste caso tem problemas muito graves e

gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensão social, mas

porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle

e condições de fazer.

OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. O presente governo tem duas

prioridades e nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A

primeira é manter o equilíbrio orçamentário, controlar a inflação e, em suma,

atender às exigências do FMI de, como eles chamam, sanidade financeira.

Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológico que as pessoas lhes

atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode ser usado para esmagar

governos de direita ou de esquerda – acabei de lhes dar o exemplo de Somoza.

Então, dependendo de quem controla o instrumento, ele aperta aqui ou aperta

acolá. Esta é a primeira prioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de

desenvolver a segunda parte, que é a integração dos movimentos políticos

latino-americanos – movimentos revolucionários – e a identificação de Partido

com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho

miserável.

Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Eu acho

tudo isso de uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a política que Lenin

seguiria. Três meses antes de o Lula ser eleito, eu escrevi um artigo chamado “O

que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na mão. Faria exatamente isto: acalmar o

investidor estrangeiro (através do equilíbrio fiscal etc.) e montar um sistema de

controle político (através da expansão indefinida do Partido, da identificação

entre Partido e Estado etc.).

Page 64: Olavo x Alaôr - Marxismo, Direito e Sociedade

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Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação à política, eu

sou incapaz de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperança em política alguma;

nem chego a entender o que as pessoas querem dizer com isso. Eu estou me

limitando a estudar a situação e tentar entendê-la da melhor maneira que eu

possa. Não tenho nenhuma fórmula para salvar o Brasil, mas se fosse para fazer

uma coisa boa, eu faria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia

fazer. O governo viu que o grande número de propriedades imobiliárias

irregulares no país (quase 80%) impede a formação de capital para os pobres.

Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é capital morto, não tem liquidez.

E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedade imediatamente. Mas falou

isso durante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a coisa boa

para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem com fazer a

revolução latino-americana. Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles.

P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaôr, e se o sr. Olavo quiser

comentar também… Bom, o professor falou que acredita numa democracia

participativa, e entende isso como a participação de cada indivíduo de uma

sociedade brasileira diretamente nas decisões governamentais. Eu pergunto:

como isso é possível hoje no Brasil, sem que haja uma dominação dos meios

públicos? Por exemplo, aqui na faculdade tem o orçamento participativo: os

alunos vão, orçamento participativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a

maioria dos alunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver,

não pôde ir para a aula”. Enfim, como é que isso vai acontecer com o resto do

povo brasileiro, com o pescador, um sujeito que não entende muito bem de

política (com todo o direito), como é que… Enfim, não sei se o senhor entendeu

a minha pergunta. Eu não acredito no orçamento participativo. Como é que o

senhor acredita?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não. Acontece o seguinte: a democracia participativa

impõe todo um processo muito amplo de mobilização social e de organização

social. Se não houver a mobilização e a organização social não haverá nunca a

democracia participativa. Ela é agora uma coisa nova. Na verdade, ela é uma

proposta de quê? De dez anos, no máximo. Não tem ainda a organicidade que

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deve ter, e, muitas vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o problema

complicado. O próprio sistema não quer saber da democracia participativa

efetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma idéia para

vocês entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Ele fica

praticamente neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que deve surtir. O

sistema de conselhos seria interessante, não o conselho de rua (geralmente há o

conselho de rua). A chamada democracia representativa é a democracia da rua:

todas as pessoas vão à rua, os políticos vão à rua, propõem as suas colocações,

fazem as suas exposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou

seja, persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Por

exemplo, a democracia que envolve a possibilidade de participação de todas as

comunidades, inclusive as comunidades escolares, fabris, os clubes, as igrejas,

as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a caminhar. Nós precisamos trabalhar

muito e estudar muito esse aspecto e tentar estabelecer relações internas dessas

unidades todas e externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é fácil. Nós

temos a democracia representativa, que domina completamente. E muitas vezes

eu tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a

participação. Eles não querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus

poderes respectivos. Portanto, eles fazem uma proposta sempre constante de

democracia representativa, evitando o mais possível o domínio da democracia

participativa. É complicado, demanda consciência, demanda, digamos, uma

dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente, por parte das

organizações. Aqui por exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria

ter muito mais disso, de um movimento político nesse sentido.

OLAVO DE CARVALHO: É preciso ver se nós estamos discutindo as palavras

pelo seu valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela

substancialidade das situações de fato que elas representam. Com relação ao

conceito genérico de participação, ninguém pode ser contra. Santo Tomás de

Aquino já dizia que qualquer sociedade política só pode estar segura da sua

sobrevivência se todos os seus membros participarem da política. Quer dizer,

isto é uma espécie de consenso universal. Ninguém discute isso há sete séculos.

O problema é o como. Ora, a estrutura partidária da representação que nós

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temos já é suficientemente complexa para que nenhum cidadão possa dizer que

a conhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de conselhos, comissões,

assembléias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigir todas

essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, a concepção

atual da participação é tão complexa e tão custosa que eu a afastaria de cara

como simples psicose. A proposta de democracia participativa pode servir como

um instrumento propagandístico para desmoralizar o sistema representativo,

que já não está muito bem das pernas. Mas que vá substituí-lo é absolutamente

impossível.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo.

Mas ele demanda mesmo uma complicação em função de uma sociedade

altamente complexa. Não há dúvida. Não há dúvida. O que ocorre é que a

democracia representativa não assumiu, e não assume de forma nenhuma, as

dimensões necessárias para compor políticas públicas de forma a efetivamente

trazer à comunidade a satisficação necessária, tendo em vista exatamente esses

problemas que nós elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças

profundas entre as pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa,

ela tem um problema de representação das camadas sociais e das classes sociais

muito distorcido. Não há possibilidade de um aproveitamento claro nesse

sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende dos “bolsões”. Não

é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão do meio ambiente, a comissão

da educação, disto ou daquilo, as comissões singulares, que vão atuando em

sistemas capilares. É claro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente

complexo, numa sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é

ter uma posição, digamos, pessimista quanto a isso, porque depois não há

sistema nenhum, nenhuma engenharia social ou institucional que nos permita

realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade justamente para

quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicos do sistema,

os donos do capital.

OLAVO DE CARVALHO: Quando você fala dos “donos de capital”, eu queria

lembrar uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem uma instituição

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que a defende: chama-se Instituto Liberal. O Instituto Liberal de São Paulo

fechou por falta de verbas. Jamais faltam verbas para o Fórum Social Mundial,

para o PT, para o MST etc. Portanto, a distribuição do poder e do dinheiro não é

exatamente esta que geralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses defendendo

os seus interesses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando em

favor dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aqui para

defender proposta nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e a realidade

no momento é esta. Por exemplo, essa capilaridade se faz em grande parte

através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das ONGs que nascem no Brasil é

produto local? Vocês sabem que a ONU tem um curso de formação de

movimentos sociais no Terceiro Mundo que anualmente espalha vinte mil

profissionais disso para tudo quanto é lugar, subsidiados por outras ONGs

enormes financiadas por Rockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm

idéia de que essa tal da democracia participativa é ela mesma uma obra de

engenharia social que está sendo implantada em toda a parte, e não está

surgindo de baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU.

Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil,

chamado La face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que trata dessas

coisas. Então, notem bem que a estrutura do poder global é bem diferente do

que uma análise marxista permitiria imaginar. A estrutura do poder não

corresponde a isto. Muita coisa que parece movimento social vem diretamente

do grande capital.

P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria saber a

opinião de “um”, que coloca que aparentemente não há solução, e a do

professor, que o sistema capitalista não seria a solução. Eu queria saber se

dentro do próprio sistema capitalista vocês não acham completamente inviável

uma coisa que o pessoal abomina: o hobbesianismo, o princípio do interesse

próprio. Na verdade o interesse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos,

não pode encaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismo

romântico, sem apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio

capital para se manter ele vai criar, e cria – como tem criado – a função social

das empresas, a ação voluntária das pessoas, para desenvolver os próprios

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68

mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruir mercados dos quais

ele precisa.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não, não se trata disso, do fato de que o capital não

faça o possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. E não se

trata do fato de que o capital não faça também alguma coisa de cunho social. Eu

não coloquei essa questão, eu coloquei uma questão de estrutura interna. De

qualquer forma, todas as empresas vão buscar o quê? Elas querem mercado,

querem tentar colocar os seus produtos. O que eu disse aos senhores é que com

a inclusão da sofistificação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a

si mesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi

comentada aqui), e eu falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda a

dimensão muito sofisticada da produção… Não porque o capitalista queira, ele

não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital que vai querer isto? Vai querer

nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos da sua competição mundial, ele

precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, ele libera necessariamente a mão-de-obra

porque faz parte dos custos. Ele tem de tirar isso da frente. Os custos mais

facilmente tiráveis, ou seja, que são possíveis de ser eliminados, são os custos

relacionados com a mão-de-obra. A matéria-prima ele tem de aplicar, as

máquinas ele tem de fabricar e tem que utilizá-las, não tem jeito. E as máquinas

e a matéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode eliminar

é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque

ele queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo ajustes sociais, fazendo tudo

o que você imaginou, a beleza da coisa, se ele está metido em algum processo de

acumulação, ele vai precisar necessariamente continuar o processo de expansão

da economia, porque a lei do capital é esta mesma: é de permanente ampliação e

acumulação. Ele entra num processo de crise e de conflito, que tem um limite, é

claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social, histórico. E como ele

tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vai ter, mas eu não sei nem

quando. Qual é a idéia que se vai ter disso? Ele é um processo social. Ou o

capitalismo é eterno? De repente apareceu o final da História: é o “Fim da

História”? Quebrou aqui e aqui, e não tem mais? Não é isso. Nós estamos

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mostrando as contradições que levam o sistema a outra situação, mesmo um

sistema que seja em geral “bonzinho”.

OLAVO DE CARVALHO: Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Se

o socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar? Ademais, o

capitalismo não tem de ser defendido como ideal para resolver o que quer que

seja, porque, em primeiro lugar, o capitalismo já existe. E quando eu o defendo

– e mesmo assim com limitações, que eu não sou nenhum entusiasta do

capitalismo – é apenas como algo que está funcionando, que funciona bem onde

lhe permitem funcionar. Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia

participativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que

tem contradições, toda sociedade tem contradições. Mas nunca o capitalismo

chegou às tais contradições que Marx denominava “contradições antagônicas”,

que o destruiriam desde dentro. A isso não chegou até hoje; e o socialismo

chegou. O socialismo mostrou que é incapaz de passar de um certo ponto. Em

matéria de contradições antagônicas, o socialismo está ganhando.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Parece que não se percebeu claramente a lei do

materialismo histórico. É que a indução do socialismo no século passado foi

artificial. Não é que socialismo acabou, como você está dizendo. Ele nem

começou.

OLAVO DE CARVALHO: Ah!

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Nem começou.

OLAVO DE CARVALHO: Então me enganaram o tempo todo!

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de ver

fantasmas socialistas de anos atrás por toda a parte [palavras inaudíveis], isso

realmente obscurece a pessoa.

OLAVO DE CARVALHO: [Risos.]

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ALAÔR CAFFÉ ALVES: É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal,

como o próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivas

avançarem de tal maneira a chegar no limite das relações sociais de produção. O

fato é que até agora não se chegou aos limites do sistema. Está se percebendo

agora que está começando a entrar nesse processo.

OLAVO DE CARVALHO: Puxa, que maravilha…

ALAÔR CAFFÉ ALVES: A crise está começando a entrar agora. Agora é que

estão começando a se desenvolver os problemas de desemprego, do social etc.,

né? A crise mundial, onde as coisas são irracionais. Um sistema como esse

americano, que faz a coisa mais absurda e irracional, como atacar um país

inteiro sem motivo praticamente, a não ser um motivo pessoal, um motivo

articulado do próprio país, que é a busca de energia que ele precisa tanto para

desenvolver o seu sistema. Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai,

ele cai completamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram

isso. Não é o Bush que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a

gente nunca sabe). Ele tem de fazer isso em razão da própria impulsão do

sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismo não começou, não. Ainda temos

muita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte.

Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas não são. O que

aconteceu foi o desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não

chegou justamente aos limites que o sistema vai ter. Porque os limites o sistema

vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não sei quanto tempo, pode

durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo. Estamos agora já com a

indicação histórica que alguma coisa agora está condenada pelo sistema

capitalista. É isso aí que eu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo

de socialismo, que forma de socialismo. Isso nós não sabemos. É claro, isso não

sabemos.

OLAVO DE CARVALHO: Bom, vocês sabem quantos livros foram publicados

com o título de “A Crise Geral do Capitalismo”?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ih, muitos…

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OLAVO DE CARVALHO: Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico:

“Agora sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando se diz

que muita água vai correr, não: muito sangue ainda vai correr. Matar cem

milhões não foi o bastante. Notem bem, uma ideologia que, com esses

mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, da ideologia, do mercado etc.,

tomou o poder em um terço do globo terrestre, matando cem milhões de

pessoas e só conseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se

gerou na China – depois de tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para

dizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro socialismo. Nós vamos tentar outra

vez. Vocês me dêem mais um creditozinho de confiança, e desta vez nós vamos

acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança? Baseado em quê?

Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram? Chega disto! O capitalismo

não é grande coisa, o capitalismo chega a ter aspectos até demoníacos. Porém,

esse tipo de malefício ele jamais fez: nunca chegou tão profundamente.

Portanto, não vamos destruir uma coisa razoável que temos, que pode ser

mudada e aperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente no socialismo.

Mais ainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as

idéias não existem separadamente da história, que as idéias só existem pela sua

encarnação material na história, e em seguida dizer que toda a história deles

durante um século não o compromete de maneira alguma, e que ele como ideal

permanece puro e intocável no céu das idéias platônicas. Isso é charlatanismo.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é uma

resposta. Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União Soviética,

nem está pretendendo que era isto que eu estaria fazendo. Ele [Olavo] está com

fantasma na cabeça. Também isso nem precisa mais pensar, que isso já foi

mesmo, é coisa da História. Então é um fantasma pensar que o que se propugna

é aquilo que estava lá. Não é nada disso. Soube-se que houve erros profundos,

sérios, seríssimos. Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da

hora, fora da História, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a

dimensão histórica. Então, é isso que se está colocando aqui. Não é a defesa de

coisa nenhuma, de três milhões, de cinco milhões, de trinta milhões que foram

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perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas [palavras

inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não fez tantas mortes.

OLAVO DE CARVALHO: Não fez!

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não?

OLAVO DE CARVALHO: Não fez! Não fez! De jeito nenhum!

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos de

muitas guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerras deste

mundo inteiro? Quem fez isto, senão todo o sistema burguês capitalista que fez

isto? É evidente que houve também essa ampliação burocrata em termos

objetivos por parte do socialismo. Então, neste caso, o certo é o seguinte, só para

terminar: não adianta entrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como

é que ele vai resolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser

relido com conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com o

desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra,

expulsando a capacidade de poder consumir aquilo que o próprio capital

produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!

OLAVO DE CARVALHO: Essas contradições são exatamente as mesmas que

Lenin diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução. Agora,

quanto ao morticínio, está aqui: O Livro Negro do Capitalismo. Quando saiu O

Livro Negro do Comunismo, feito por pessoas de esquerda, que provava

documentadamente que os comunistas haviam matado cem milhões de pessoas,

encomendou-se a um monte de intelectuais que produzissem, de qualquer

maneira, cem milhões de vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este

livro: são trinta autores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para

chegar aos cem milhões, foi preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas da

Segunda Guerra Mundial (cinqüenta milhões, todas as vítimas de todos os

lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os lados), todas as

vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo. Todo marxista é

um charlatão.

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P: Eu gostaria que os dois debatores comentassem algumas considerações

minhas e vou fazer uma pergunta específica para o prof. Olavo. Pelo tema do

debate, eu esperava que houvesse uma discussão a respeito das principais teses

desenvolvidas pelo Marx, mas infelizmente as discussões tomaram outro rumo,

e eu percebo que as teses propriamente de Marx foram tangenciadas. Como por

exemplo a crítica feita ao materialismo, se ele não é o poder de a matéria gerar

frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o homem feito

do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo reside

justamente na interação do homem com a natureza, que é, segundo o próprio

Marx, o corpo inorgânico do homem, e a produção da ideologia se dá a partir

dos pressupostos da atividade espiritual humana. Então, nós estamos aqui

fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nós estamos aqui vestindo

roupas, nós estamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando

cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo isso foi

criado de alguma forma através de alguma espécie de intervenção humana. Isso

é a produção da ideologia, e não dizer que o trabalhador tem de pensar como

proletário e o capitalista tem de pensar como um crápula. E isso é ridículo. E a

maior prova ao contrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é um

trabalhador e que diz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por

aí. Eu gostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração.

Outra delas é que me pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi

discutido em termos de planificação estatal, quando na realidade a teoria de

Marx é muito diferente disso. Não se trata de perfectibilizar o Estado ou de

aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar o mercado. A

perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é a destruição do mercado,

a destruição do Estado, mas a destruição do mercado não para substitui-lo pela

planificação, mas para substitui-lo pela apropriação social. Esse é segundo

ponto que eu gostaria que fosse comentado. E aí, por fim, a pergunta para o

prof. Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui, pela oportunidade

de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um

ano e meio no jornal O Globo, se não falha a memória, em que você afirma que o

então presidente Fernando Henrique Cardoso estaria mancomunado com o

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74

MST e preparando a transição do Brasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor

comentasse esse seu ponto de vista.

OLAVO DE CARVALHO: Vocês façam a conta de quanto saiu do governo

FHC para o MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só isto: ele fez

o MST, ele é o criador do MST. Quais foram as intenções ideológicas, eu não sei,

evidentemente. Porém, houve uma série de artigos publicados por Alain

Touraine na Folha de São Paulo (Alain Touraine é uma pessoa que tem

influência grande sobre a cabeça de FHC), nos quais ele traçava o plano de uma

virada do Brasil à esquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem

me cabe conjeturar –, mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que é

possível haver uma ligação. Quanto saberemos se houve isso ou não? Daqui a

muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC construiu o MST com verbas

do Estado, isso é um fato inegável.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu não tenho muito que comentar à formulação

dessas questões. Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, o fato de que

a materialidade depende das relações de produção dos homens. Por exemplo, o

caso que foi colocado aqui: nós estamos aqui nessa mesa, tudo está sendo visto,

todos estamos vestidos, temos nossa alimentação já preparada, temos nossas

roupas; amanhã ainda teremos porque outras pessoas estão trabalhando para

nós também. Nós estamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma

relação social envolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e

séria. Eu não posso estabilizar que os homens, apenas pelas suas idéias, é que

transformam as coisas ou fazem as coisas; fazem através do movimento prático

da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a troca entre os

homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobre esse

aspecto da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse a vocês, abstrata,

mas é a matéria do ponto de vista das relações humanas concretas, o homem

agindo sobre o meio e transformando o meio. E quanto à apropriação social, que

foi uma das propostas, mostra claramente que a apropriação social é feita de

uma forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa questão que foi

colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da

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necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for

para a distribuição melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, que

vamos para a esquerda. Ué, se há uma miséria imensa, e nós vemos que as

estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem importância: vamos à

esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós não

temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quase

que dizer… Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema, de forma

nenhuma, mas vamos então admiti-lo como bom, que ele é a única coisa boa

que tem.” Mas nós temos também expectativas, utopias, nós temos também

meios de ver o mundo, nós temos também aspirações, nós temos nossa

imaginação, e nós precisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico.

Isso é otimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, se

for à esquerda, não presta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de

direita dizendo não está se fazendo isso: “Não estou fazendo isso.” Está aqui

atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença de idéias.” É um ataque

com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que são razoáveis em muitas

questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não é que seja a panacéia, e não será

mesmo. Nós temos de criar a nossa própria panacéia. Nós temos de criar o

nosso mundo, a nossa utopia. Não é Marx no século XIX. O importante é que

temos de utilizar isso. É pena que tudo isso que nós conversamos e

desenvolvemos nós pensamos em falar em “Marxismo, Direito e Sociedade”,

especialmente a questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente.

Talvez eu tenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele

diga que não, porque tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são de

esquerda, a Globo é de esquerda. É ver as coisas que não tem, que não existem

mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso acabou. Nós temos de

agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outra sociedade. É isso que

tem de fazer, e não ficar remoendo problemas do passado. Existe aqui até um

movimento muito sério, muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição,

Família e Propriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como

se houvesse ainda esse fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela

simplesmente vai tentar desenvolver um sistema onde haja mais distribuição

social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que se pretende fazer? Uma

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igualação, uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende fazer.

O que é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor

igualdade, maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, e que as

pessoas tenham oportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida…

Enfim, é isso que nós queremos. Não queremos mais nada do que isso. E não

ficamos aqui apresentando esses exemplos; esses exemplos históricos que são

mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo] chega a dizer

que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado, o nazismo não teve

nenhum problema…

OLAVO DE CARVALHO: [Olavo protesta.]

ALAÔR CAFFÉ ALVES: “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E o

capitalismo é um sistema absolutamente muito bom. O que é que é isto? Todos

estão de acordo com esse tema que ele está, com essa distribuição terrível que

ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui a pouco vai se falar que a miséria é

determinada pelos esquerdistas, pela esquerda…

OLAVO DE CARVALHO: E é, e é.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: …como está se fazendo colocando a questão de que o

FMI é de esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerda etc. Isso é

uma coisa maluca. É uma questão emocional muito grave…

OLAVO DE CARVALHO: Ora, o prof. Alaôr tem a pretensão de diagnosticar

os meus problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa: ignorância.

Primeiro, ignorância dos escritos de Marx. Ele diz que a matéria é função da

produção; Marx diz exatamente o contrário: Marx subscreve inteiramente as

concepções atomísticas de Demócrito e aceita a ciência newtoniana como a

tradução perfeita da realidade. Ademais, a idéia de uma dialética interna da

matéria está exposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição do

movimento comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção

é absolutamente ridículo, é coisa de ignorante, para não dizer mentiroso. Não o

acuso de mentiroso mas o acuso de ignorante. Em segundo lugar, com um

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homem que chega para mim e diz por um lado que “ah, esse momento é da

esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outro lado, diz que não existe

esquerda nenhuma, em algum ponto a coisa está falhando. Em terceiro lugar, o

conselho de “esqueçamos a História, nada disto aconteceu, vamos tentar de

novo, vamos confiar”, isso é uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar

uma discussão nessa base.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu evidentemente não estava esperando essa

agressividade. Essa foi demais.

OLAVO DE CARVALHO: Agressividade é a sua, que começa a falar em

problemas emocionais.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de

ignorante, e pressupor que eu não conheça Marx…

OLAVO DE CARVALHO: Pressupor não: afirmo!

ALAÔR CAFFÉ ALVES: ...e ele diz também que quatro décadas foi do Partido

Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!

OLAVO DE CARVALHO: O quê? Está me acusando de mentiroso?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: O senhor me acusou de mentiroso aqui.

OLAVO DE CARVALHO: Não, eu te acusei de ignorante.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.]

[Tumulto.]

OLAVO DE CARVALHO: Você é que está mentindo.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Você é que me xingou!

OLAVO DE CARVALHO: Você é mentiroso! Safado!

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ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] anti-

socialista ou anti-marxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tão

profundamente. Imagine que ele agora não é, porque ele analisou tão

profundamente isso e está dizendo…

OLAVO DE CARVALHO: Pois foi exatamente isso que você nunca fez.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ora, pelo amor de Deus!

OLAVO DE CARVALHO: Você é um idiota.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmo

tempo; agora, se você disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me perdoem. Eu

sou da Faculdade. Eu não vou permitir uma coisa dessa! Isso é uma agressão

pessoal. Eu esperava…

OLAVO DE CARVALHO: Você me agrediu primeiro, falando de problemas

emocionais.

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais

possível a minha idéia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre a questão

que o Marx colocou; e a coisa foi num crescendo que eu não vou me admitir,

vocês me perdoem.

ALGUÉM DA PLATÉIA: Está fugindo?

ALAÔR CAFFÉ ALVES: Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo para

respirar. Eu sei que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados. Houve

uma mobilização aqui, séria, grave, séria, e eu não vou me permitir, como

professor da casa, ser agredido dentro da minha casa, por uma pessoa como

esta. Vocês me perdoem.

* * *

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Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos e vaias

misturam-se de maneira indiscernível. A maior parte das vaias condena a atitude de

desistência do prof. Alves, mas num canto da sala ouve-se distintamente o refrão

gritado por um grupo organizado de jovens de idade manifestamente inferior à da

média da platéia: “Alerta! Alerta! Alerta aos fascistas! A América Latina será toda

socialista.”. – O. de C.

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