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TRACY KIDDER MUITO ALÉM DAS MONTANHAS

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TRACY KIDDERMUITO ALÉM

DASMONTANHAS

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Dèyè mòn gen mòn.Além das montanhas encontram-se montanhas.

PROVÉRBIO HAITIANO

“... E a justa ação será Livrar-se do passado e do futuro.

Para a maioria de nós, esse é o alvoQue aqui jamais se alcançará;Nós, que imbatíveis só somos

Porque em tentar perseveramos…”

T. S. ELIOT, “QUATRO QUARTETOS”

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Para Henry e Tim Kidder

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SUMÁRIO

Parte 1

Doktè Paul 9

Parte II

Os telhados de zinco de Cange 57

Parte III

Médicos Aventureros 139

Parte IV

Um mês tranquilo para viajar 199

Parte V

OPP – Opção Preferencial pelos Pobres 263

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PARTE I

DOKTÈ PAUL

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CAPÍTULO 1

Seis anos depois de nosso primeiro encontro, o Dr. Paul Edward lembrou:

– Por incrível que pareça, nós nos conhecemos por causa de uma decapitação.

Era 1994 e faltavam duas semanas para o Natal. Estávamos em uma cidade no planalto central do Haiti, um lugarejo asfaltado chamado Mirebalais. Próximo ao centro da cidade havia um posto do Exérci-to haitiano – um muro de concreto cercando uma praça coberta de mato, uma prisão e um quartel cor de mostarda. Eu estava sentado na sacada do segundo andar do prédio, acompanhado de Jon Carroll, capitão da Força Especial Norte-Americana. A noite se aproximava, trazendo o momento mais agradável daquele local: o ar quente tor-nava-se uma brisa leve, a música que tocava nos rádios dos bares e as buzinas das caminhonetes que cruzavam a cidade fi cavam mais altas, a sujeira e a pobreza eram disfarçadas pela escuridão, o mesmo acon-tecendo com os esgotos abertos, as roupas esfarrapadas, o olhar das crianças desnutridas e as mãos esticadas dos velhinhos pedintes que diziam “Grangou” – “faminto”, em crioulo.

Eu estava no Haiti para fazer uma matéria sobre os soldados ameri-canos. Vinte mil deles haviam sido enviados para reintegrar o governo eleito democraticamente e derrubar a junta militar que o depusera e que, fazia três anos, vinha governando de forma extremamente cruel. O capitão Carroll e seus meros oito homens estavam temporariamen-te encarregados de manter a paz entre 150 mil haitianos espalhados por cerca de 2,5 mil quilômetros quadrados de área rural. Embora pa-recesse uma tarefa impossível, no planalto central a violência política

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estava praticamente terminada. No último mês, só ocorrera um assas-sinato, hediondo, como sempre. Algumas semanas antes, os homens do capitão Carroll encontraram no rio Artibonite o corpo do vice-pre-feito, sem cabeça. Ele era um dos eleitos que reassumiriam o poder. O principal suspeito era um funcionário da junta militar, um delegado rural chamado Nerva Juste, fi gura temida pelos habitantes da região. O capitão Carroll e seus homens haviam interrogado Juste, mas, como não encontraram nenhuma prova concreta ou qualquer testemunha, tiveram que libertá-lo.

O capitão, batista praticante, tinha 29 anos e era do Alabama. Gos-tei dele. Pelo que vi, ele e seus homens vinham dando duro para me-lhorar as coisas naquela região do Haiti, mas não receberam prati-camente nenhuma ferramenta de Washington, que decretara que a missão não incluiria a reconstrução do país. Certa vez, o capitão foi criticado pelos comandantes ao solicitar um avião para transportar uma haitiana grávida que passava mal. Ali na sacada, ele desabafava essa sua última frustração quando foi avisado de que havia um ameri-cano no portão querendo falar com ele.

Havia cinco visitantes, na verdade, quatro deles haitianos. Eles fi -caram na frente do quartel, parados na sombra, enquanto o amigo americano avançou. Ele se apresentou ao capitão Carroll como Paul Farmer, disse que era médico e que trabalhava num hospital alguns quilômetros ao norte de Mirebalais.

Lembro-me de ter achado que os dois – o Dr. Farmer e o capitão Carroll – não tinham nada a ver um com o outro e que, quando com-parados, Farmer fi cava em desvantagem. O capitão tinha 1,90m de al-tura, era musculoso e bronzeado. Como de costume, um chumaço de rapé dilatava seu lábio inferior. Volta e meia ele virava a cabeça para cuspir. Farmer era mais ou menos da sua idade, porém tinha traços mais delicados. Cabelo preto, curto, cintura fi na, braços longos e del-gados, nariz pontudo. Perto do militar, ele parecia um palito branque-lo e por isso me deu a impressão de ser ousado e bastante arrogante.

Paul Farmer perguntou ao capitão se sua equipe precisava de cui-dados médicos. O capitão disse que havia alguns prisioneiros doentes, os quais o hospital recusara-se a tratar.

– Acabei tendo de comprar os remédios.

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Farmer sorriu.– Você vai passar menos tempo no purgatório. Quem decapitou o

vice-prefeito? – perguntou em seguida. – Não sei ao certo. – É muito difícil morar no Haiti e não saber quem decapitou

alguém – contestou Farmer. Os dois, então, travaram uma discussão sem pé nem cabeça. Farmer

deixou claro que discordava do plano americano de intervir na eco-nomia haitiana. Um plano que, segundo ele, era muito mais voltado a atender interesses econômicos do que a solucionar os problemas que o povo da região enfrentava. Ele estava convencido de que os Estados Unidos haviam favorecido o golpe de Estado, por um motivo: terem treinado um alto funcionário da junta na Escola das Américas. Farmer disse que o Haiti estava claramente dividido em dois: de um lado, as forças de repressão e do outro, os haitianos pobres, maioria esmagadora. Farmer estava do lado dos pobres; entretanto, disse ao capitão:

– Ainda não está muito claro de que lado os soldados americanos se encontram.

O que gerava a dúvida era, em parte, o fato de o capitão ter libertado o odiado Nerva Juste.

Percebi que Farmer conhecia o Haiti muito mais que o capitão e procurava lhe passar algumas informações importantes. Ele parecia querer dizer que o povo da região estava perdendo a confi ança no capitão, o que obviamente representava um problema sério para um grupo de nove militares que tentavam governar 150 mil pessoas.

O aviso, entretanto, não fi cou muito claro, e o capitão se irritou com a crítica de Farmer à Escola das Américas. Quanto a Nerva Juste, ele disse:

– Escute aqui, aquele sujeito não vale nada. Assim que eu tiver pro-vas, ele vai se ferrar comigo. – O capitão golpeou a palma da mão com o punho cerrado. – Só que não vou me rebaixar ao nível desses caras, saindo por aí dando voz de prisão preventiva.

Farmer disse, então, que era um absurdo o capitão aplicar princí-pios de lei constitucional em um país onde o sistema jurídico encon-trava-se inativo. Juste era uma ameaça e devia ser preso.

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E assim chegaram a um estranho impasse: o capitão, que se dizia um “caipira”, defendia a aplicação devida da lei; e Farmer, que cla-ramente se achava o campeão dos direitos humanos, era a favor da prisão preventiva.

– Você cairia para trás se soubesse quantas vezes Washington deci-de o que posso e o que não posso fazer aqui – disse o capitão.

– Sei que você está de mãos atadas. Não leve a mal minhas críticas – ponderou Farmer.

Já estava escuro. Os dois conversavam sob um facho de luz que vinha da porta do quartel. Apertaram-se as mãos. À medida que o jovem médico desaparecia nas sombras, eu o ouvia falar em crioulo com os amigos haitianos.

Passei várias semanas com os soldados. Não simpatizei muito com Farmer. Apesar das palavras com que tinha encerrado a conversa, achei que ele não havia compreendido os problemas do capitão ou ao menos se preocupado em compartilhá-los.

Por acaso tornei a encontrá-lo no avião para Miami quando eu vol-tava para casa. Farmer estava na primeira classe. Ele me explicou que os comissários de bordo o colocavam lá porque viajava com frequência naquele voo e, de vez em quando, atendia pessoas que passavam mal no trajeto. Permitiram que me sentasse ao lado dele por um tempo. Eu tinha várias dúvidas em relação ao Haiti, incluindo o assassinato do vice-prefeito. Os soldados achavam que a crença no vodu tornava as decapitações ainda mais assustadoras.

– Por quê? A decapitação tem alguma base na história do vodu? – perguntei.

– Na história do vodu, especifi camente, não, mas na história da brutalidade.

Farmer franziu a testa e tocou no meu braço, como se dissesse que todo mundo fazia perguntas idiotas de vez em quando.

Acabei conhecendo-o um pouco mais. Ele não tinha nada contra os soldados.

– Cresci num acampamento de trailers e conheço bem a classe de pessoas que se alista no Exército americano – disse, referindo-se ao capi-tão Carroll. – Quando olhamos de perto esses soldados de 29 anos, pen-samos: “Coitados, não são eles que criam essas políticas ordinárias.”

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Ele confi rmou minha impressão de que fora ver o capitão para deixá-lo de sobreaviso. Muitos de seus pacientes e amigos haitianos haviam se queixado da libertação de Nerva Juste, alegando que isso provava que os americanos não tinham ido para lá com a intenção de ajudá-los. Farmer contou que cruzava Mirebalais com uns amigos haitianos que não paravam de implicar com ele, afi rmando que não se atreveria a parar e conversar com os soldados americanos sobre o assassinato, quando, de repente, o pneu da caminhonete furou, bem na porta do quartel. Ele então brincou com os amigos:

– Vocês precisam escutar as mensagens dos anjos! Consegui extrair de Farmer mais alguns detalhes sobre sua vida. Ele

tinha 35 anos. Estudara medicina em Harvard, onde também fi zera doutorado em antropologia. Trabalhava quatro meses em Boston, onde morava em uma casa paroquial num bairro pobre, e passava o resto do ano no Haiti, basicamente prestando de graça atendimento médico a camponeses que perderam suas terras para uma usina hi-drelétrica. Ele havia sido expulso do Haiti durante o golpe militar, mas conseguira voltar para seu hospital sorrateiramente, segundo ele, após pagar “uma propina ridiculamente pequena”.

Fui atrás dele depois que o avião aterrissou. Sentamos num café, con-versamos mais um pouco e quase perdi meu voo de conexão. Algumas semanas depois, eu o levei para jantar em Boston, na esperança de que me ajudasse a dar mais sentido àquilo que eu estava escrevendo sobre o Haiti – o que ele pareceu feliz em fazer. Esclareceu alguns aspectos da história do país, mas me deixou intrigado a seu respeito. Ele havia des-crito a si mesmo como “um médico dos pobres”; porém não se encai-xava de modo algum no modelo de “médico dos pobres” preconcebido em minha cabeça. Era evidente que gostara do restaurante chique, dos guardanapos de linho e do vinho de qualidade. O que me chamou a atenção foi como ele parecia feliz com a vida que levava. Obviamente, um jovem médico em suas condições poderia muito bem estar exercen-do a profi ssão transitando entre Boston e um bairro elegante, não entre um quarto de uma casa paroquial provavelmente imunda e o centro devastado do Haiti. Pelo modo como se expressava, parecia que gostava de viver entre os camponeses haitianos. Num determinado momento em que falava sobre a medicina, ele disse:

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– Não entendo como podem não se empolgar com ela. – Em seguida deu um sorriso radiante, que iluminou todo o seu rosto e me emo-cionou profundamente. Foi como se me acolhesse calorosamente, sem que eu o merecesse.

Depois do nosso jantar, porém, divergi dele; basicamente – percebo agora – porque ele também me incomodou. Ao escrever meu artigo sobre o Haiti, acabei compartilhando o pessimismo dos soldados com os quais convivera.

– Acho que devíamos deixar o Haiti para lá – dissera-me um dos homens do capitão Carroll. – Não importa quem esteja no poder. Sempre haverá esta divisão entre ricos e pobres e ninguém no meio. Não sei aonde queremos chegar. Sempre haverá uma montoeira de haitianos se metendo num barco, querendo ir para os Estados Unidos. Acho melhor nem tentar entender.

Os soldados chegaram ao Haiti, fi zeram o maior terror, restauraram o governo, foram embora e o país continuava tão pobre e decadente quanto antes de eles chegarem. Fizeram o melhor que puderam, pen-sei. Eram frios e durões. Não se sensibilizariam com nada que estivesse fora de seu controle.

Eu tinha a sensação de que Farmer havia me apresentado uma nova forma de pensar sobre um lugar como o Haiti; mas seria difícil compartilhá-la, pois ela implicava uma defi nição muito extrema da expressão “fazer o melhor que se pode”.

O mundo está cheio de lugares em condições lastimáveis. Uma maneira de se viver bem é não se pensar neles ou, ao pensar, mandar alguma colaboração em dinheiro. Nos cinco anos seguintes, enviei pequenas doações para a entidade benefi cente que apoiava o hos-pital de Farmer no Haiti. Sempre que eu colaborava, recebia seus agradecimentos escritos à mão. Certa vez, um amigo de um amigo me disse que ele estava ganhando destaque internacional, realizan-do algo relacionado à tuberculose. No entanto não procurei saber detalhes, e só voltei a vê-lo no fi nal de 1999. Fui eu que marquei o encontro. Ele indicou o local.

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