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495 Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014 ILLAM GERSON DE FREITAS Recebido em mai. 2013 Aprovado em out. 2013 OLÍTICA E CIÊNCIA MODERNA EM HOBBES RESUMO Este artigo tem como objetivo evidenciar a relação de dependência entre a filosofia política e a filosofia natural de Hobbes. Para tanto, mostra: 1) a confiança hobbesiana no método geométrico e a inserção de Hobbes na tradição do ; 2) a definição da autoria da obra Short Tract on First Principles como sendo de Hobbes. PALAVRAS-CHAVE Ciência moderna. Filosofia natural e política. Tradição do maker’s knowledge. UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ - UFC e professor da FACULDADE DO VALE DO JAGUARIBE - FVJ.

OLÍTICA E CIÊNCIA MODERNA HOBBES - · PDF fileO ser humano, como observa Edgar Morin, em O enigma do homem, passa a pensar, a partir de então, ... Já na introdução de Leviatã

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WILLAM GERSON DE FREITAS *

Recebido em mai. 2013Aprovado em out. 2013

POLÍTICA E CIÊNCIA MODERNA EM HOBBES

RESUMO

Este artigo tem como objetivo evidenciar a relação dedependência entre a filosofia política e a filosofianatural de Hobbes. Para tanto, mostra: 1) a confiançahobbesiana no método geométrico e a inserção deHobbes na tradição do M������ �������; 2) adefinição da autoria da obra Short Tract on First

Principles como sendo de Hobbes.

PALAVRAS-CHAVE

Ciência moderna. Filosofia natural e política. Tradiçãodo maker’s knowledge.

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ABSTRACT

This article aims to show the relation of dependencebetween politics and natural philosophy of Hobbes.Therefore, shows: 1) Hobbesian trust in geometricmethod and inserting Hobbes in the tradition of themaker’s knowledge 2) Hobbes as the author of the Short

Tract on First Principles.

KEYWORDS

Modern science. Natural philosophy and politics.Maker’s knowledge.

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014CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 1

A obra hobbesiana emerge em momento de profunda efervescência, quando ocorre um rompimento

definitivo com a forma cristã-medieval de pensar, atéentão predominante, e inicia-se uma nova consciênciaacerca da natureza, do homem e da política. Os fatoresdecisivos do novo clima intelectual instaurado naprimeira metade do século XVII e de que Hobbesparticipou intensamente foram a revolução científica,o triunfo de uma concepção mecânica da realidade e osurgimento de uma nova concepção de racionalidadeque culminou com a ascensão do indivíduo à posiçãocentral do pensamento filosófico.

Hobbes viveu em um período de reviravoltadecisiva na maneira de se pensar o mundo ocorrida noinício do período moderno, na qual o eixo da reflexãofilosófica desloca-se da ordem objetiva para asubjetividade enquanto critério de inteligibilidade domundo. Na modernidade, a ideia de que há uma ordempolítica natural, típica do pensamento antigo, éabandonada. Enquanto para os antigos a realizaçãodo homem estava em sua inclusão em uma ordemcósmica imutável e preestabelecida – “O todo existenecessariamente antes da parte”, dizia Aristóteles –,para os modernos o âmbito do político passa a ser vistocomo produto da ação humana.

Ao se iniciar a modernidade, as pessoas passarama se enxergar como sujeitos de seu conhecimento e de

1 Este artigo contém parte dos resultados de minha pesquisa demestrado orientada pelo professor Dr. Odílio Alves Aguiar naUNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC.

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sua ação no mundo. O homem não se sentia mais comoparte de um todo ordenado, cujo sentido possuía umapreexistência, mas se via, enquanto subjetividade racional,como a fonte da qual nascia o sentido de tudo. Comoescreve Alexandre Koyré, em seus Estudos Galilaicos, hána modernidade “o abandono da concepção clássica emedieval do Cosmo [...] e sua substituição pela doUniverso, isto é, de um conjunto aberto e indefinidamenteextenso do Ser, unido pela identidade das leisfundamentais que o governam” (KOYRÉ, 1986, p. 182).

Ao se operar tal mudança, paulatinamente ohomem passa a se enxergar como a base para aconsideração de toda a realidade. Assim, o âmbito dapolítica, que se apresentava como algo natural, mostra-se agora como “produzido” pelo único e determinantesujeito do político, o próprio homem. O que possibilitatal transformação, segundo Norbert Elias, é o longo ecrescente avanço do processo de individualização daspessoas a partir do século XV, que leva a um novo nívelde autoconsciência. Os homens desse período tornam-se cada vez mais capazes de se avistarem como que àdistância, e de pensar a si mesmos como indivíduosautônomos (ELIAS, 1994, p. 85).

A série de alterações na forma de pensar omundo que se contrapunha ao universo fechado, fixo,ordenado e hierarquizado dos antigos foi possibilitada,principalmente, por descobertas científicas como aastronomia heliocêntrica de Copérnico e o universosem centro de Galileu. Estas, por sua vez, levaram auma modificação completa no universo intelectual dohomem moderno, dando origem a uma nova

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universo governado pelas leis naturais universais tomao lugar da passividade humana diante de umordenamento estático e imutável pré-estabelecido porpoderes superiores. O ser humano, como observaEdgar Morin, em O enigma do homem, passa a pensar,a partir de então, contra a natureza, certificado deque sua missão é dominá-la, sujeitá-la (MORIN, 1975,p. 12).

O homem não se distingue mais como meroreceptáculo de verdades supremas, mas passa a serconstrutor das verdades por intermédio do corretométodo de raciocinar. O indivíduo moderno é o homemque deixou de ser coadjuvante para tornar-se sujeitoatuante e transformador de sua realidade2. Como mostraBobbio, em Thomas Hobbes a expressão mais alta e maisnobre dessa qualidade transformadora do homem é aconstrução do Estado, na qual o ser humano, ao adquiriro conhecimento das leis que regulam os mecanismos danatureza – por sinal nem sempre favorável –, pode nãosomente imitá-la como corrigi-la, superando suacondição natural (BOBBIO, 1991, p. 33). A ordem social,ética e política apresenta-se, então, como um produtoda construção humana, e não como um dado danatureza. É influenciado decisivamente por essapercepção acerca da natureza e da capacidade de criaçãodo homem que Hobbes desenvolve sua filosofia política.

2 Essa autocompreensão do homem que se sente capaz de dominartudo por meio da previsão, e que se desenvolve fortemente namodernidade, é um indício decisivo do que Max Weberdenomina de processo de desencantamento do homem, de seudespojamento da magia do mundo (WEBER, 2004, p. 30,31).

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MÉTODO GEOMÉTRICO E CRIAÇÃO HUMANA

Já na introdução de Leviatã Hobbes evidencia acapacidade humana de criação: “a natureza [...] éimitada pela arte dos homens também nisto: que lhe épossível fazer um animal artificial” (Leviatã, Introdução,p. 11) 3. Na mesma medida em que o homem é a maisperfeita obra da natureza, o Estado é, por sua vez, amais primorosa invenção humana. Ao encetar Do

Corpo, Hobbes define a filosofia como “a natural razãohumana percorrendo diligentemente todas as coisascriadas e relatando o que for verdadeiro acerca de suaordem, suas causas e seus efeitos”. Mais ainda, eleconvida o leitor a “fazer como os escultores, que, aoesculpirem a matéria sobressalente, não produzem umaimagem, mas a descobrem” bem como a “imitar acriação” e levar a razão dele a se sobrepor “ao abismoconfuso” dos pensamentos e experiências. O filósofoinglês enfatiza no mesmo trecho que “é necessário ummétodo condizente com a criação das próprias coisas”(Do corpo, Ao leitor, p. 13).

O método defendido por Hobbes é o geométrico,clara influência de Galileu, para quem o “livro danatureza” havia sido escrito em caracteres geométricos.O cientista italiano tinha preferência pelo métodogeométrico porque com este as conclusões dependemde premissas e se evita supor como verdadeiros osassuntos que carecem de demonstração. Sua rejeiçãopela aceitação irrefletida das autoridades, em especial

3 Para facilitar a consulta aos textos de Hobbes, adota-se, aqui,a indicação das obras com os respectivos capítulos, parágrafose páginas (por exemplo: Do cidadão, VI, § 4, p. 103).

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e pelo raciocínio rigoroso influenciaram o filosofo deMalmesbury, que passou a considerar a geometriacomo a “infalível ciência” pela qual os homens deviamse guiar. Na ausência do método geométrico os homensabandonam “o próprio juízo natural para se deixarconduzir por sentenças gerais lidas em autores”(Leviatã, V, p. 46).

Em artigo intitulado Hobbes and the method of

natural science, Douglas Jesseph aponta duascaracterísticas principais pelas quais a geometria é vistapelo filósofo seiscentista como um saber diferenciadoe superior aos demais ramos do saber humano(JESSEPH, 1996, p. 87). Uma, consiste em que seustermos são definidos e explicados minuciosamente. Ométodo geométrico permite o argumento preciso, porraciocínios com definições e explicações exatas. Eleutiliza “raciocínios por definições ou explicações dosnomes que irá usar [...] cujas conclusões assim setornaram indiscutíveis” (Leviatã, V, p. 42). A outra,indica que os objetos da investigação geométrica sãocompletamente conhecidos pelo geômetra devidoserem construídos por eles mesmos:

A ciência na qual os teoremas sobre as quantidadessão demonstráveis é chamada de geometria. E uma

4 Em Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e

copernicano, Galileu critica os peripatéticos que colocavam aautoridade de Aristóteles contra a evidência da experiência(GALILEU, 1994, p. 96). Segundo Koyré, Galileu é o granderepresentante da ciência moderna, que “tende a explicar tudo pelonúmero, pela figura e pelo movimento” (KOYRÉ, 1982, p. 182).

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vez que as causas das propriedades de seus valoresindividuais pertencem a nós, porque nós mesmosdesenhamos suas linhas, e, uma vez que a geraçãodos valores depende da nossa própria vontade, nadamais é necessário conhecer acerca do fenômenopeculiar de qualquer figura que seja, senão ter emconsideração tudo o que se segue da construção quenós mesmos fazemos da figura a ser descrita (De

homine, X, § 5, p. 41).

É partindo desta segunda característica queHobbes enxerga a política como o saber com maisafinidade em relação à geometria, visto que ambas sãociências demonstráveis ou, em outras palavras, seusobjetos são criados pelo arbítrio do homem. Em Six

lessons to the professors of the Mathematics, maisprecisamente na epístola dedicatória destinada ao CondePierrepont, Hobbes afirma que há artes que sãoindemonstráveis e artes que são demonstráveis. As artesdemonstráveis são aquelas cuja construção do objetoestá no poder do artista que, ao realizar suademonstração, deduz nada mais que as consequênciasde sua própria operação. Assim sendo, tanto a geometriaquanto a filosofia civil são demonstráveis. A primeira,porque as linhas e figuras do raciocínio são traçadas edescritas pelos próprios indivíduos; a segunda, porquesão os próprios homens que instituem o Estado (Six

lessons, The epístle dedicatory, p. 184).

QUEM CONHECE É QUEM FAZ

O argumento de Hobbes sobre a relação entrepolítica e geometria é semelhante ao utilizado porGiambattista Vico para demonstrar que a história

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criação divina, é impossível de ser conhecida. A históriahumana, ao contrário, é algo que se pode esperarconhecer visto que foi verdadeiramente criada pelospróprios homens (BOBBIO, 1991, p. 33). Conhecidacomo tese do verum factum, em Hobbes ela implica oconhecimento da política como criação humana, e, emVico, assegura que a história é a ciência do verdadeiroporque é o conhecimento de uma realidade feita pelopróprio homem, como mostra Patrick Gardiner:

O interesse de Vico pela história estava ligado a umadeterminada teoria do conhecimento. Segundo elecria, para se conhecer realmente a natureza dequalquer coisa era necessário tê-la feito. Ao contráriodo mundo dos objetos e dos acontecimentosnaturais, que “uma vez que Deus os criou, só ele osconhece”, o “mundo das nações”, ou históriahumana, foi de fato criado pelos homens e é,portanto, algo que os homens podem “esperarconhecer” (GARDINER, 1964, p. 12).

A afinidade da concepção de Hobbes com a tesedo verum factum o coloca na tradição do maker’s

knowledge, que nada mais é que a ideia de que quemconhece é quem faz. Para Bernardo Jefferson deOliveira, o conhecimento do fazedor é “uma imagemque associa o conhecimento à criação. De maneiraresumida, sugere que conhecemos algo quandofazemos e que quando fazemos algo é porqueconhecemos” (OLIVEIRA, 2000, p. 188). Oliveiraaponta um duplo aspecto na ideia de que quem conheceé quem faz. Em primeiro lugar, “a noção de que

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somente o fazedor de um mecanismo complexo oconhece, porque somente ele conhece os seuspropósitos e a função dos mecanismos”. Em segundolugar, o paralelo com a ideia do conhecimento-criaçãode Deus, que pode sugerir a possibilidade dos homensconhecerem as coisas que criam e, vive-versa, criar ascoisas que conhecem (OLIVEIRA, 2000, p. 189).

No artigo O argumento do conhecimento do

criador como argumento cético, Danilo Marcondesmostra que essa tradição, que ele denomina de‘argumento do conhecimento do criador’, pode serconsiderada como uma das principais correntessubterrâneas do pensamento moderno, e que esta écomumente utilizada mais como um componentesubjacente das doutrinas do que propriamente comoum argumento explicitamente formulado edesenvolvido (MARCONDES, 2007, p. 48). Surgido emum período de transição, de mudanças profundas e doquestionamento da autoridade estabelecida, talargumento foi disseminado amplamente no início damodernidade, assumindo distintas formas emdiferentes filósofos, retomando “a argumentação céticasobre a questão dos limites da capacidade humana deconhecer a realidade tal como ela é: não podemosconhecer a natureza tal como ela é em sua essência,porque não a criamos” (MARCONDES, 2007, p. 50).

No pensamento antigo prevalecia a concepçãode que o conhecimento por excelência era a theoria,isto é, a contemplação de verdades eternas e imutáveis,independentes do intelecto humano. Em contraposição,a nova concepção que surge a partir do renascimento

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humana, a arte e a técnica, do ato de criar, no sentidodo trabalho do artífice. A arte (ars, tradução latina paraa techné grega) aparece, então, como a esfera porexcelência na qual o homem ultrapassa seus limites,podendo produzir ou criar algo e, assim como Deuscriou o Cosmos, o homem é capaz de criar sua própriaobra. Ainda que a criação artística seja assunto quaseausente do debate filosófico dos primórdios daModernidade – em autores como Bacon, Descartes,Hobbes e Locke – a importância desta questão é centralna discussão política, mais precisamente na visão dasociedade como algo a ser criado (MARCONDES, 2007,p. 49).

Marcondes enumera duas maneiras decompreender o argumento do conhecimento do criador.Uma primeira explicação ressalta que o homem podeconhecer apenas aquilo que ele cria: “conhecimentohumano, se é que merece este nome, está restrito ameras aparências, aos fenômenos, e não pode serconsiderado verdadeiro, demonstrável oufundamentado, em nenhum sentido conclusivo”. Umasegunda explicação possui sentido oposto da anterior:embora os seres humanos não tenham criado anatureza e, portanto, não tenham a possibilidade deconhecê-la, mesmo assim “podem imitá-la e reproduzi-la através da técnica e podem assim efetivamenteconhecer aquilo que criam. O homem é neste sentidoum imitator Dei” (MARCONDES, 2007, p. 51).

Destes dois modos Marcondes deduz quatrosentidos gerais do argumento do conhecimento do

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criador, não necessariamente excludentes. O primeirosentido denomina de religioso: só Deus pode conhecera natureza porque só Deus é seu criador. A ciêncianatural é impossível ao homem. O segundo é designadode técnico: o homem, como imitator Dei, é capaz dereproduzir certos processos naturais e seus efeitos. Oterceiro é nomeado de humanista: o homem devededicar-se à investigação do mundo humano, daquiloque cria – a realidade social e política, a história e alinguagem, porque estas são criações humanas e,portanto, podem ser conhecidas – e não ao mundonatural. O derradeiro é chamado de epistêmico: “Ohomem não conhece diretamente a realidade naturalporque não a cria e, portanto, não tem acesso à suaessência, à sua natureza última, mas a conhece atravésde suas ideias ou representações que são produçõessuas” (MARCONDES, 2007, p. 53).

Marcondes apresenta, ainda, uma concepçãoque surgiu desde o século XVI como um desdobramentodo argumento do conhecimento do criador, que é aconcepção de ciência natural que considera a naturezaum mecanismo e vê o papel da ciência como a descriçãodas leis que explicam o funcionamento desta estrutura.É comum encontrar nos autores mais representativosdesta concepção a famosa metáfora do relógio. Nela, arealidade natural é simbolizada pelo relógio e o seucriador, o relojoeiro, é aquele que realmente conhece ofuncionamento deste mecanismo. Os homens podemobservar a face externa da máquina, isto é, perceberapenas exteriormente e usá-la mesmo sem compreenderseu funcionamento. O cientista não conhece a natureza

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pode reproduzir os seus efeitos na construção demecanismos semelhantes. Réplicas da natureza, osmecanismos são construídos por hábeis artífices(MARCONDES, 2007, p. 53).

A metáfora do relógio, cuja formulação pressupõeo mecanismo como imagem do conhecimento, éapresentada por Hobbes em Do cidadão. Ao buscardiscorrer brevemente sobre seu método, Hobbesdefende que se deve proceder à geração e à forma dogoverno civil com o intuito de compreendê-lo melhorpor intermédio de sua causa constitutiva:

Assim como num relógio, ou em outro pequenoautômato de mesma espécie, a matéria, a figura e omovimento das rodas não podem ser bemcompreendidos, a não ser que o desmontemos econsideremos cada parte em separado – da mesmaforma, para fazer uma investigação mais aprofundadasobre os direitos dos Estados e os deveres dos súditos,faz-se necessário – não, não chego a falar emdesmontá-los, mas, pelo menos, que sejamconsiderados como se estivessem dissolvidos, ou seja:que nós compreendamos corretamente o que é aqualidade da natureza humana (Do cidadão, Prefáciodo autor ao leitor, p. 13).

Hobbes tem a convicção de que, para que seerga um Estado bem fundado e que este seja compostode forma correta, é necessário que os homenscompreendam corretamente as qualidades da naturezahumana (os homens são partes constitutivas da cidade)e o que é e o que não é adequado em relação ao governocivil. Além do prefácio ao leitor em Do cidadão, há pelo

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menos outras duas obras suas afirmando claramenteque sua teoria política é deduzida de suas premissasacerca da natureza humana. Logo no começo de The

Elements of Law Hobbes diz que “a explicação clara everdadeira dos elementos das leis, natural e política,o que é meu presente objetivo, depende doconhecimento do que é a natureza humana” (The

Elements of Law, I, § 1, p. 47). Em Leviatã ele é atémais enfático ao dizer: “fundamento o direito civildos soberanos, e tanto o dever como a liberdade dossúditos, nas conhecidas inclinações naturais dahumanidade” (Leviatã, Revisão e conclusão, p. 589).Como explica Denis Rosenfield:

Conhecer uma coisa é compreender os elementosque a compõem, o que significa conhecer as regrasde sua composição. Assim, o conhecimento dasociedade política deve partir de uma corretaformulação da ‘natureza humana’, isto é, como dizHobbes, do ‘natural dos homens’. Trata-se, pois, delançar os verdadeiros ‘fundamentos’ da políticasegundo ‘demonstrações infalíveis’, ou seja,corretamente inferidas, dos postulados relativos ànatureza humana (ROSENFIELD, 1993, p. 24).

A interpretação de Rosenfield concorda com LeoStrauss que, em Direito natural e história, afirma quenão se pode perder de vista a filosofia natural deHobbes ao tentar compreender sua filosofia política.Para Strauss, o filósofo seiscentista teria feito umacombinação tipicamente moderna de idealismo políticocom materialismo, baseado na visão de um universoconstituído unicamente por corpos e pelos seus

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ceticismo na tentativa de encontrar uma instânciaisenta do fluxo sempre aleatório da causalidademecânica, e nesse ponto desenvolve o argumento domaker’s knowledge:

Só compreendemos aquilo que criamos. Como nãocriamos os seres naturais, estes são ininteligíveis nosentido estrito do termo. Segundo Hobbes, este fatoé perfeitamente compatível com a possibilidade deuma ciência da natureza. Mas tem como consequênciaque a ciência da natureza é, e será sempre,fundamentalmente hipotética. Porém, isso é tudo oque necessitamos para nos convertermos em donos esenhores da natureza. Ainda assim, por muito bemsucedido que o homem possa ser na conquista danatureza, nunca será capaz de compreendê-la. Ouniverso permanecerá para o homem um perfeitoenigma (STRAUSS, 2009, p. 151).

Os homens podem adquirir conhecimentocientífico, isto é, absolutamente seguro, dos objetosde que são a causa, e cuja construção está ao seualcance ou depende de sua vontade arbitrária. Averdade científica é conhecida ao mesmo tempo emque os homens são seus autores. O mundo dasconstruções humanas não possui enigmas porque sãoos próprios homens sua única causa e porque têmconhecimento perfeito de sua causa.

A POLÊMICA SOBRE O ¿HORT TRACT

Em The Political Philosophy of Hobbes, Straussafirma o oposto do que escreve em Direito natural e

história: que a teoria política hobbesiana não foi

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decisivamente afetada pela concepção de ciência, nemé derivada de uma compreensão do homem a partirdo materialismo mecanicista. Há, segundo Strauss, umarelação de independência entre a ciência natural e afilosofia política de Hobbes. Os princípios psicológicospelos quais o filósofo seiscentista deduziu sua políticateriam sido obtidos pela auto-observação e nãonecessitaram ser deduzidos das leis do movimento damatéria. Ele abaliza seu comentário em passagem daintrodução de Leviatã, na qual Hobbes convida o leitorà introspecção, recorrendo ao preceito nosce te ipsum,provando que a busca da verdade tem origem nointerior do próprio homem. Sendo assim, a origem daconcepção de Hobbes acerca do homem estariacompletamente elaborada antes mesmo que eleestivesse familiarizado com a ciência moderna(STRAUSS, 1963, p. xi).

Discordando do posicionamento de Strauss,Maria Liliana Lukac se vale de um manuscritosupostamente escrito por Hobbes. Trata-se de Short

Tract on First Principles (Breve tratado sobre os primeiros

princípios), um manuscrito anônimo redigido em inglêse descoberto em 1878 no Museu Britânico pelosociólogo Ferdinand Tönnies, que o publicou em 1889.Este texto, que Tönnies acredita ter sido escrito no anode 1630, fazia parte de um conjunto de 28 documentosque pertenceu a Charles Cavendish. Para eliminar asdivergências quanto à autoria hobbesiana do tratado,o sociólogo alemão alude a uma carta de Hobbes aoMarques de Newcastle, dedicando um trabalho de ótica,na qual seu autor sustentava que o ali escrito se

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dezesseis anos antes (TÖNNIES, 1988, p. 130). Dessaforma, o Breve tratado teria sido escrito depois datradução hobbesiana da História da guerra do

Peloponeso de Tucídides e antes da versão concluídaem 1640 de The Elements of Law, comprovando-se queHobbes tinha conhecimento das descobertas científicasmodernas antes de desenvolver sua filosofia política.Strauss, não obstante conhecesse este texto, “oconsiderou de pouco interesse ao seu propósito”(LUKAC, 1999, p. 54).

Lukac afirma que é no Breve tratado que Hobbesestabelece, pela primeira vez, uma série de ideias que,em seguida, haveriam de receber um papelfundamental em sua filosofia política. Tal manuscritofoi o primeiro esquema da teoria hobbesiana do mundofísico e da condição natural do homem. (LUKAC, 1999,p. 55). Entretanto, é preciso ressaltar que a definiçãoda autoria do Breve tratado é mais complexa do queadmite Lukac. A dificuldade de atribuí-la ao filósofode Malmesbury é bem apresentada por GuilhermeRodrigues Neto em sua tradução deste manuscrito.Publicado sob o título de Hobbes e o movimento da luz

no Breve tratado, seu estudo introdutório aponta que aautoria do citado texto não é objeto de consenso entreos estudiosos, constituindo-se uma questão polêmicae não resolvida.

Sendo assim, é apenas uma hipótese provável aautoria hobbesiana do manuscrito, ainda que sejabastante plausível aceitá-la. A autenticidade daatribuição a Hobbes da escrita do Breve tratado envolve

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duas questões de suma importância. Em primeiro lugar,tem a ver com a autonomia da filosofia natural delecom relação à filosofia de Descartes 5. Em segundolugar, é decisivo para compreender os liames entre afilosofia natural e a filosofia política do pensadoringlês no interior de seu sistema. Como explicaRodrigues Neto:

Se aceitarmos a tese de Tönnies de que o Breve

tratado foi escrito por Hobbes em 1630, deveremosreconhecer que Hobbes já possuía um esboço defilosofia mecânica antes mesmo de elaborar as linhasmestras de sua filosofia política, e que sua filosofianatural teria sido, portanto, historicamente anteriorà sua filosofia política – uma condição inicial para apossibilidade de a primeira determinar a última(RODRIGUES NETO, 2006, p. 254).

Todavia, há um forte motivo para questionar eexcluir o tratado do corpus hobbesiano, qual seja, aincômoda doutrina das species apresentada na seção IIda obra. Por outro lado, embora haja desacordo entrea física das species e as teorias ópticas desenvolvidaspor Hobbes noutro lugar 6, o tratado, de um modo geral,

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de Hobbes e a filosofia de Descartes é a indicação de que oDiscurso do método de Descartes, publicado em 1637,especialmente o ensaio da Dióptrica, teria determinado o iníciodo desenvolvimento da filosofia natural de Hobbes.

6 Juntamente com o Breve tratado, Tönnies encontrou outromanuscrito anônimo, escrito em latim, e que recebeu o títulode Tractatus opticus I. Nenhuma objeção existe quanto àautoria hobbesiana deste manuscrito latino de óptica, aocontrário do outro. Sobre a publicação de Hobbes de estudossobre ótica ver RODRIGUES NETO, 2006, p. 252.

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filósofo inglês, as quais Rodrigues Neto apresenta sete,a saber: 1. a ideia de um determinismo universalfundado na necessidade da causalidade mecânica e anegação do livre-arbítrio; 2. o princípio da conservaçãodo estado de movimento e a ideia de que nada podemover-se a si mesmo; 3. a doutrina da subjetividadedas qualidades sensíveis e a redução mecânico-cinéticados acidentes; 4. a definição de substância como corpo;5. o tema das vias insondáveis e invisíveis da natureza;6. o ideal de ciência demonstrativa; 7. o valor daexperiência na elaboração das hipóteses físicas(RODRIGUES NETO, 2006, p. 258).

O manuscrito em questão poderia ser, então,um esboço de filosofia retificado posteriormente 7,“uma obra de transição e situado em um períodoformativo do desenvolvimento da filosofia natural deHobbes” (RODRIGUES NETO, 2006, p. 259). Seria,portanto, insuficiente a incompatibilidade dosargumentos presentes em outros escritos de Hobbese a doutrina da emissão das species no Breve tratado

para negar a tese de Tönnies sobre a autoria, poisHobbes poderia tem mudado de opinião. Para opropósito aqui desenvolvido, não é necessárioapresentar os demais argumentos favoráveis edesfavoráveis à autoria hobbesiana confrontados porRodrigues Neto. Contudo, é importante destacar sua7 João Aloísio Lopes, em sua introdução à obra A natureza

humana, afirma que o Breve tratado, composto em 1630,embora esteja “vazado numa terminologia ainda nãototalmente hobbesiana” (p. 34), é fundamental paracompreender a teoria de Hobbes.

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objeção ao argumento de Timothy Raylor, que atribuia autoria do manuscrito a Robert Payne 8.

Raylor, conforme explica Rodrigues Neto, apontaum antagonismo metodológico entre a formademonstrativa do tratado e a tese hobbesiana de que afilosofia natural não pode ser demonstrada a partir dosprimeiros princípios, que são necessários e verdadeiros,pois o Breve tratado é organizado de forma diferente doTractatus opticus I: este é organizado em “hipóteses e“proposições” e aquele em “princípios” e “conclusões”.A dificuldade consiste em que Hobbes distingue, em todoo desenvolvimento de sua filosofia política, geometriade filosofia natural ou física. O filósofo inglês atesta emdiversas passagens que a filosofia natural éindemonstrável a priori, sendo impossível ao filósofonatural utilizar apenas demonstrações com base nosprimeiros princípios, ou valendo-se de causas, comomostra em Tractatus opticus II:

O tratamento das coisas naturais difere, em grandeparte, daquele de outras ciências. [...] Na explicaçãodas causas naturais, devemos recorrer a um gênerodiferente de princípio, chamado “hipótese” ou“suposição”. Pois, quando uma certa questão é posta,[isto é, qual é] a causa eficiente de algum eventopercebido pelos sentidos (o que é, por costume,chamado “phenomenon”), [a hipótese] consiste

8 Timothy Raylor, professor de língua e literatura inglesa doCarleton College em Minnesota (USA), baseia-se emargumentos paleográficos para apontar as diversas similaridadesgrafológicas do Breve tratado com obras de R� ��� ����� ������6-1651), c������ � ��c������� � !�"#��� $�%�� ��& '����� �

década de 1630, e amigo íntimo de Hobbes.

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algum movimento a partir do qual o fenômeno seguenecessariamente. E uma vez que não é impossívelque movimentos dessemelhantes possam produzirfenômenos semelhantes, pode ocorrer que o efeitoseja corretamente demonstrado a partir domovimento suposto e, ainda assim, que a suposiçãonão seja verdadeira (Tractatus Opticus II, apud

RODRIGUES NETO, p. 273).

Vale notar que Hobbes afirma nesta passagemque a filosofia natural emprega um tipo especial dedemonstração e de princípio, e não que ela sejaindemonstrável. Cabe à física, impossibilitada de acessaras “causas verdadeiras’ e de conhecer e construir seusobjetos tal qual faz a geometria, empregar suposições ehipóteses. Não obstante o conhecimento que a geometriaproduz possua um estatuto diferente daquele da filosofianatural, há uma assimetria entre a geometria e a ciênciada física que consiste em que, enquanto a primeirademonstra com base em proposições necessariamenteverdadeiras estabelecidas pelo próprio geômetra, asegunda demonstra valendo-se da experiência(RODRIGUES NETO, p. 274).

A geometria produz proposições necessariamente

verdadeiras. A filosofia natural, por sua vez, produzproposições provavelmente verdadeiras, não podendose conhecer seu valor de verdade. Desse modo, ofilósofo natural pode construir uma ciênciademonstrativa ao explicar os fenômenos tomando porbase hipóteses de causas possíveis, ainda que não possater o conhecimento atingido pelo geômetra. Como osmecanismos causais da física são inacessíveis em seu

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todo, cabe ao filósofo natural descrever algunsmovimentos particulares nos quais o fenômeno podeser deduzido, chegando a uma causa hipotética, sempreprovável. Como filosofia e ciência são a mesma coisapara Hobbes, a filosofia natural não seria filosofia senão fosse demonstrável de alguma maneira (Do corpo,VI, § 1, p. 133). Em Do corpo, Hobbes dá o acabamentoa sua noção de ciência demonstrativa mostrando queexistem dois métodos para a construção da ciência: avia analítica e a via sintética. No décimo capítulo deDe homine ele usa a terminologia demonstração a priori

e demonstração a posteriori:

[...] nós podemos deduzir as consequências dasqualidades que não podemos ver e demonstrar quaistinham sido essas suas causas. Este tipo dedemonstração é chamado a posteriori, e essa ciência,física. E porque não se pode argumentar sobre ascoisas naturais que são levadas pelo movimento dosefeitos às causas sem um conhecimento dessas coisasque seguem qual o tipo de movimento; e porqueuma não procede das consequências dosmovimentos em conhecimento de quantidade, queé geometria; nada pode ser demonstrado pela físicasem alguma coisa também ser demonstrada a priori

(De homine, X, § 5, p. 42).

Como observa Monzani, tal postura revela queo homem, embora possa decompor suas própriasfaculdades, nem sempre pode encontrar em todos ospormenores sua causa geradora. A razão pela qual afísica não possui o rigor da geometria é que os objetosda natureza não são criações humanas. Assim, asdemonstrações da física sempre apresentarão um

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(MONZANI, 1995, p. 73), diferente da ética e dapolítica que são, como a geometria, obras do própriosujeito. Por isso a geometria pode ser denominadacom propriedade de ciência porque é possível aohomem, criador de seus objetos, ter total sapiênciada causa geradora destes. No entanto, é porque averdadeira filosofia natural tem suas limitações queela depende da geometria. Como escreve RodriguesNeto:

Ainda que a física não possa produzir proposiçõescategóricas, ela produz proposições universaishipotéticas e opera de modo demonstrativo; de um lado,devemos manter o caráter demonstrativo da filosofianatural e, de outro, reconhecer a dimensão hipotéticada imputação causal. Portanto, Hobbes não destitui aciência natural de sua forma demonstrativa, emborareconheça que não esteja disponível a razão ou causada geração dos objetos naturais, uma vez que o homemnão é o autor desses objetos. O filósofo natural somentepode obter um conhecimento demonstrativo de tipohipotético acerca de processos naturais e, desse modo,ele pode aproximar-se da certeza fornecida pelageometria (RODRIGUES NETO, 2006, p. 278).

A forma demonstrativa do Breve tratado nãoseria, portanto, incompatível com a não-possibilidade de demonstração da ciência natural,como aponta Raylor, e Hobbes pode muito bem serarrogado como seu autor, o que prova a tese sobreas aspirações científicas de Hobbes e a influênciaexercida por elas na construção de seu pensamentopolítico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento político hobbesiano é fortementemarcado pelas transformações científicas de sua época.O conhecimento científico – mais particularmente ageometria, mas também a física e a antropologia – éfundamental para o desenvolvimento de sua concepçãode pacto entre os indivíduos para a criação do podersoberano. O Estado, tal como o filósofo inglês oconcebe, é a ato criativo dos homens com o propósitode exercer domínio sobre a natureza, maisespecificamente sobre a própria condição naturalhumana. Entretanto, por que Hobbes afirma que oconhecimento acerca da política pode prescindir dasoutras partes, a saber, o estudo do corpo e do homem?

Na verdade, assim como no método geométrico,é possível compreender a política tanto partindo dosseus elementos básicos constitutivos (paixões-homem-Estado), como fazer o percurso inverso (Estado-homem-desejos). É, entretanto, a junção de resoluçãoe composição que permite um entendimento verdadeiroda realidade. A certeza de que o homem é capaz deobter sucesso nessa empreitada, superando suacondição natural de infelicidade e miséria, é o aspectomais marcante da filosofia hobbesiana. É a aspiraçãopor fazer da política uma ciência rigorosa que orientao pensamento de Hobbes, e que o conduz à tentativade construção de uma ética racional e demonstrável.

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