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“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005 CÉZANNE E A ARTE COMO RESPOSTA À EXISTÊNCIA UM ESTUDO DE A DÚVIDA DE CÉZANNE DE M. MERLEAU-PONTY Wanderley C. Oliveira Departamento das Ciências da Educação - UFSJ “A vida não explica a obra, mas foi preciso esta vida para dar origem a esta obra” (Merle au-Ponty) 1. Introdução inha contribuição para este Encontro de PETs de Ciências Humanas, em torno do tema: Existência e Arte, é um estudo do ensaio de Maurice Merleau -Ponty dedicado a Paul Cé- zanne. Merleau-Ponty nasceu em 1908, numa cidade ao sul da Fra nça chamada Rochefort. Mo r- reu subitamente em sua mesa de trabalho em 1961 em Paris, cidade na qual viveu e se tornou conhecido como filósofo. Paul Cézanne também nasceu no sul da França, em 1839, numa cid a- de vizinha à de Merleau -Ponty, chamada Aix-en-Provence. Em Aix, o pintor passou quase toda sua vida. Morreu em 1906. O texto de Merleau -Ponty do qual nos ocupamos é: “A dúvida de C é- zanne”. Primeiro artigo do filósofo dedicado especificamente à pintura. Redigido em 1942 (B o- nan, 1997, p. 81), publicado pela primeira vez em 1945 1 e depois retomado na coletânea de artigos, Sens et non-sens de 1948, este ensaio inaug ura o diálogo de Merleau-Ponty com a pin- tura e, em especial, com a pintura de Paul Cézanne. Daí por diante, este artista torna -se referên- cia constante na obra do filósofo, que aprofunda seu diálogo com ele em O olho e o espírito, último ensaio que publicou em vida, e não deixa de mencioná -lo nas notas de trabalho do livro que preparava quando morreu: O visível e o invisível. Cézanne foi um artista qu e viveu para a pintura e queria morrer pintando. 2 A pintura foi “seu mundo e sua maneira de existir” 3 (SNS: 13) 4 . Desde muito jovem, já a percebia como sua verdadeira vocação e, no entanto, não lhe foi nada fácil segui -la; não apenas por empecilhos externos, por exemplo, seu pai que o queria como advogado, mas sobretudo, como veremos, por obstáculos internos à própria realização da pintura, tal como a concebia. Para pintar uma natur e- za morta, chegou a precisar de cem sessões e nada menos que cento e cinqüen ta para um re- trato. Pintar, para Cézanne, era um tr abalho extremamente lento, laborioso e tateante, repleto de 1 Contudo, Tymieniecka (1988, p. 195) faz referência a uma primeira publicação de A dúvida... em 1942, mas não cita a fonte. É na bibliogra- fia de Merleau-Ponty preparada por Alexandre Métraux no livro de Tilliette (1970, p. 174) que encontramos a referência exata da primeira publicação em 1945, na Fontaine, n. 8, p. 80-100. 2 Na carta de 21 de setembro de 1906, ele escreve ao jovem amigo Émile Bernard: “estou velho e doente, e jurei -me de morrer pintando” (Cézanne, 1978, p. 327). 3 Neste sentido, em suas “Souvenirs sur Paul Cézanne”, E. Bernard (apud Doran, 1978) dá-nos este belo depoimento: “Pode-se dizer – escreve Bernard – que Cézanne era a pintura viva, pois não havia um segundo em que ele não se considerasse com o pincel à mão. À mesa, ele se interrompia à cada instante para estudar nossos rostos segundo o efeito da luz ou da sombra, toda vasilha, todo prato, todo fruto, todo copo, todo objeto que estava perto dele tornava-se tema de seus comentários e de sua reflexão” (p. 65). M

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“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano I - Número I – janeiro a dezembro de 2005

CÉZANNE E A ARTE COMO RESPOSTA À EXISTÊNCIA

UM ESTUDO DE A DÚVIDA DE CÉZANNE DE M. MERLEAU-PONTY

Wanderley C. Oliveira Departamento das Ciências da Educação - UFSJ

“A vida não explica a obra, mas foi preciso

esta vida para dar origem a esta obra” (Merle au-Ponty)

1. Introdução

inha contribuição para este Encontro de PETs de Ciências Humanas, em torno do

tema: Existência e Arte, é um estudo do ensaio de Maurice Merleau -Ponty dedicado a Paul Cé-

zanne. Merleau-Ponty nasceu em 1908, numa cidade ao sul da Fra nça chamada Rochefort. Mor-

reu subitamente em sua mesa de trabalho em 1961 em Paris, cidade na qual viveu e se tornou

conhecido como filósofo. Paul Cézanne também nasceu no sul da França, em 1839, numa cid a-

de vizinha à de Merleau-Ponty, chamada Aix-en-Provence. Em Aix, o pintor passou quase toda

sua vida. Morreu em 1906. O texto de Merleau -Ponty do qual nos ocupamos é: “A dúvida de C é-

zanne”. Primeiro artigo do filósofo dedicado especificamente à pintura. Redigido em 1942 (B o-

nan, 1997, p. 81), publicado pela primeira vez em 19451 e depois retomado na coletânea de

artigos, Sens et non-sens de 1948, este ensaio inaugura o diálogo de Merleau-Ponty com a pin-

tura e, em especial, com a pintura de Paul Cézanne. Daí por diante, este artista torna -se referên-

cia constante na obra do filósofo, que aprofunda seu diálogo com ele em O olho e o espírito,

último ensaio que publicou em vida, e não deixa de mencioná -lo nas notas de trabalho do livro

que preparava quando morreu: O visível e o invisível.

Cézanne foi um artista que viveu para a pintura e queria morrer pintando.2 A pintura foi

“seu mundo e sua maneira de existir”3 (SNS: 13)4. Desde muito jovem, já a percebia como sua

verdadeira vocação e, no entanto, não lhe foi nada fácil segui -la; não apenas por empecilhos

externos, por exemplo, seu pai que o queria como advogado, mas sobretudo, como veremos, por

obstáculos internos à própria realização da pintura, tal como a concebia. Para pintar uma natur e-

za morta, chegou a precisar de cem sessões e nada menos que cento e cinqüen ta para um re-

trato. Pintar, para Cézanne, era um tr abalho extremamente lento, laborioso e tateante, repleto de 1 Contudo, Tymieniecka (1988, p. 195) faz referência a uma primeira publicação de A dúvida... em 1942, mas não cita a fonte. É na bibliogra-fia de Merleau-Ponty preparada por Alexandre Métraux no livro de Tilliette (1970, p. 174) que encontramos a referência exata da primeira publicação em 1945, na Fontaine, n. 8, p. 80-100. 2 Na carta de 21 de setembro de 1906, ele escreve ao jovem amigo Émile Bernard: “estou velho e doente, e jurei -me de morrer pintando” (Cézanne, 1978, p. 327). 3 Neste sentido, em suas “Souvenirs sur Paul Cézanne”, E. Bernard (apud Doran, 1978) dá-nos este belo depoimento: “Pode-se dizer – escreve Bernard – que Cézanne era a pintura viva, pois não havia um segundo em que ele não se considerasse com o pincel à mão. À mesa, ele se interrompia à cada instante para estudar nossos rostos segundo o efeito da luz ou da sombra, toda vasilha, todo prato, todo fruto, todo copo, todo objeto que estava perto dele tornava-se tema de seus comentários e de sua reflexão” (p. 65).

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idas e vindas à tela e, por vezes, de abandono da mesma, quando não conseguia ser fiel à e x-

pressão do que via.

Estudando sempre, o artista progredia muito lentamente na luta para encontrar os cam i-

nhos que diminuiriam a distância entre a natureza e suas telas, que ele tampouco gostava de

expor. Fez pouquíssimas exposições e o que é sua obra, para nós, o artista a considerava ap e-

nas como “a tentativa e a abordagem de sua pintura” (SNS: 13). Mesmo no final da vida, quando

já era reconhecidamente um mestre, poucos dias antes de morrer, ainda indagava numa carta a

Bernard se chegaria “ao fim tão procurado e por tanto tempo pers eguido”5 (Cézanne apud SNS:

13). Mas que fim era este, que durante toda sua vida, afastado da convivência com os outros,

isolado e sem alunos, “sem admiração por parte da fam ília, sem incentivo por parte dos júris”

(SNS: 13), Cézanne tanto perseguiu? O que procurava este artista co m sua pintura? A que fim

visava com sua arte que o mobilizava tanto, afastando -o de todos? São estas as questões que,

com Merleau-Ponty, queremos refletir nesta comunic ação.

2. Como compreender a obra de Cézanne?

Para tentar responder às questões acima, Merleau-Ponty aponta-nos, primeiramente, dois

caminhos: um, a tentativa de compreender a obra pela vida, outro, o de dec ifrá-la através da

história da arte.

Zola, amigo de infância de Cézanne e, provavelmente, quem melhor o conheceu, optou p e-

la primeira alternativa: compreender a obra pela vida. Mas como ver o pintor, de insistência e

paciência incansáveis, sob o homem instável e colérico que Zola tão bem conhecia? E, talvez,

justamente por conhecer tão bem o homem, Zola foi incapaz de ver, em C ézanne, o artista. Erro

de perspectiva? Por se concentrar demais no caráter de Cézanne, Zola não perc ebeu o sentido

de sua pintura; por fixar-se demais à vida, não percebeu a obra; olhando em demasia o rosto do

amigo, não viu as telas do pintor. O rompimento entre Céz anne e Zola era inevitável6. Zola nunca

conheceu tão bem Cézanne, o pintor, por isso, acreditava no fracasso do artista e via sua obra

como manifestação doentia de seu caráter esquizóide. Não havia outro modo, da perspectiva

sob a qual via o artista, o objetivo de Cézanne de criar “uma pi ntura ‘direto da natureza’”, assim

4 Para referências aos textos de Merleau-Ponty usamos as siglas: OE (L’oeil et l’esprit), PhP (Phénoménologie de la perception), S (Signes), SNS (Sens et non-sens). Citação completa em Referências bibliográficas. 5 Cézanne morreu no dia 23 de outubro de 1906, a carta em questão é do dia 21 de setembro do mesmo ano. Cf. Cézanne (1978, p. 326-327). 6 O que se deu em 1886, devido à publicação do romance de Zola, intitulado: L’Oeuvre. Zola, como sempre fazia, enviou ao amigo um volu-me do livro que publicara. Cézanne se reconheceu no personagem de Claude Lantier, pintor fracassado que protagoniza o romance. Numa pequena carta de agradecimento ao escritor, o pintor pôs fim à sua mais antiga amizade. Desde então os dois homens nunca mais se reen-contraram.(Cf. a este respeito: Cézanne, 1978, p. 225 e Hoog, 1989, p. 79).

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como “o caráter inumano de sua pintura” surgiam para Zola apenas como “fuga do mundo h u-

mano, a alienação de sua humanidade”, enfim, “fenômeno de decadência” 7 (SNS: 15).

Ao procurar compreender a obra unicamente pela psicologia do artista, Zola não fez mais

que desconhecê-la, negá-la em seu sentido positivo, tirando toda sua signific ação própria, para

reduzi-la ao nível de sintoma, de descarga ou efeito de um psiquismo doentio. Sob a pena d e

incorrer em equívocos semelhante ao de Zola, a determinação do sentido da obra de Cézanne

unicamente por sua vida é uma perspectiva que Merleau-Ponty evitará. Para o filósofo, a obra

não é mero efeito da vida. Tudo aquilo que foi dado a viver ao pi ntor, seus problemas pessoais,

seu destino corporal, os acontecimentos históricos, para Merleau -Ponty, se nos instalamos no

pintor para assistir a este momento decisivo no qual tudo isto se “cristaliza sobre ‘o motivo’, rec o-

nheceremos que sua obra, que jamais é um efeito, é sempre uma resposta a estes dados” (S:

80-81. Itálicos nossos).

Mas apreenderíamos melhor o sentido da obra de Cézanne recorrendo à história da arte?

E, deste ponto de vista, explicaríamos sua obra transformando -a em objeto de uma ampla pes-

quisa científica, na qual procuraríamos compree ndê-la por suas influências, os procedimentos

técnicos do artista e, mesmo, pelo que ele disse de sua própria pintura? Recorrer às suas infl u-

ências e tentar compreender sua obra por aquela de Delacroix, Courbet e a influência do impres-

sionismo, sobretudo, de Pissaro, mais uma vez, seria ignorá -la, procurando compreendê-la pelo

que nela é dos outros, ao invés de vê-la por ela mesma. Decompor a obra nos procedimentos

técnicos que a tornaram possível, dispersá -la em m inuciosas descrições técnicas, números e

medidas também é torná -la ausente, perdê-la ou fazê-la desaparecer entre cifras, cálculos e

fórmulas. Resta ainda o recurso ao próprio testemunho do artista sobre sua obra. Afinal, supo s-

tamente, quem estaria mais autorizado para falar de uma obra que seu pr óprio autor?

No final da vida, Cézanne empenha -se cada vez mais em compreender sua obra. A “sede

de exegese” de sua pintura era tanta que, na velhice, “o cuidado com a teoria” passa a ser pr e-

sença constante em suas cartas e sua conversação (Gowing, 1992, p. 12). Será, então, que

compreenderíamos melhor a obra de Cézanne considerando suas próprias palavras? Mais uma

vez, para Merleau-Ponty, estaríamos ignorando a obra, pois esta perspectiva implica em conc e-

bê-la como “tradução de um pensamento já claro” (SNS: 24), e xpressão de um conteúdo interior

do qual o artista tivesse, como mestre absoluto, pleno domínio e uma visão transparente. Neste

caso, a obra seria apenas a encarnação constitutiva de um sentido concreto; tornaria-se supér-

flua ou secundária, não mais que a ilustração de uma idéia clara, capaz de se expor e justificar -

7 Mas mesmo que Zola, através da vida do artista, tivesse compreendido a originalidade da obra de Cézanne, para Merleau-Ponty, como ele mesmo dirá numa conferência de 1951 (retomada sob o título “L’homme et l’adversité” em Signes, p. 284-308) o equívoco de toda explicação extríns eca à obra está em “sempre ceder à ilusão retrospectiva, (...) sempre realizar de antemão o válido – (...) sempre desconhecer o m omento humano por excelência, em que uma vida tecida de acasos se volta sobre si mesma, retoma -se e se exprime” (S: 305).

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se a si mesma, tornando a obra desnecessária. Mas este não é em absoluto o caso em Céza n-

ne. O pintor jamais teve clarividência de sua obra. Po r isso, nunca parou de trabalhar e ao inte r-

rogar os quadros que nasciam sob suas mãos, ao espreitar “os olhares dos outros sobre sua

tela” (SNS: 33), o que esperava dos outros, do assentimento que poderiam lhe dar, era a prova

de seu valor, que ele mesmo d esconhecia. Se tentava se explicar, mais que em teoria, era diante

da natureza, pincel à mão, que queria ter razão. 8 Se jamais rejeitou o pensamento, a reflexão

vinha-lhe sempre atrelada à visão.

Mais que o falar de Cézanne, o melhor caminho para compreen dê-lo talvez esteja em con-

siderar seu pintar. Portanto, para Merleau-Ponty, não é pela psicologia do artista ou pela história

da arte que desvelaremos o sentido da obra de Cézanne. Na esteira do pensamento de Heide g-

ger,9 Me rleau-Ponty, a fim de compreender o sentido da obra de Cézanne, ou melhor, como ele

especifica em O olho e o espírito, a filosofia que “anima o pintor, não quando exprime opiniões

sobre o mundo, mas no instante em que sua visão se faz gesto, quando, dirá Cézanne, ele ‘pe n-

sa com a pintura’ ” (OE: 60), não vai centrar -se, única e exclusivamente, na história da arte ou

na do indivíduo, dois modos artificiais de se ignorar uma obra, mas no gesto de pintar, no próprio

ato de pintar e no pintor em presença do mundo para, a partir daí, ver como a pintura, em Cé-

zanne, transformando a percepção num gesto, redobra-a na obra pictural.

3. Cézanne e os impressionistas.

Cézanne é, sem dúvida, devedor dos impressionistas. Antes de encontrá -los, sua pintura

era apenas a “encarnação de cenas imaginadas, a projeção de sonhos no exter ior” (SNS: 16).

Foi graças aos impressionista e, dentre t odos, Pissaro10, que o pintor concebeu a pintura não

como um trabalho de ateliê, mas como um “estudo preciso das aparênc ias” a partir do “trabalho

na natureza” (SNS: 16). Trata-se de esquecer “todo o resto”, perspectiva, ciência, tradição e vo l-

tar-se para esta “obra perfeita”, a natureza, da qual tudo nos provém e pela qual existimos, afi r-

mava Cézanne (apud SNS: 17). 11

8 Em carta a Louis Aurenche, provavelmente em outubro de 1901, o pintor admite: “Sou apenas um pobre pintor e o pincel seria sem dúvida sobretudo o meio de expressão que o céu pôs em minhas mãos. Portanto, ter idéias e desenvolvê-las não é meu negócio” (Cézanne, 1978, p. 276). E para Émile Bernard no dia 24 de maio de 1904 reafirma: “o pintor deve se consagrar inteiramente ao estudo da natureza (...). As discussões sobre arte são quase inúteis” (p. 302). Para o mesmo Bernard, em carta de 25 de julho deste mesmo ano, o artista assevera: “Não quero ter razão teoricamente, mais diante da natureza” (p. 304). 9 Como lembra Waelhens (1951), Heidegger, “no início de uma conferência sobre a origem da obra de arte, que constitui o primeiro estudo de Holzwege, mostra que nenhum problema de estética pode se resolver pela referência à psicologia do artista ou (...) à história da arte” (p. 366); 10 Cézanne (com sua mulher, Hortense e o filho, Paul) reuniu-se a Pissaro na cidade de Pontoise, vizinha a Paris, em 1873. Após o período de angústia e de busca pelo qual passou na juventude, vivendo entre Pontoise, Paris e Auvers-sur-Oise, Cézanne desfrutou uma dezena de anos de serenidade, rodeado pelos impressionistas (Cf. a este respeito Hoog, 1989, p. 43). 11 Como sugere Rey (1978): “Cézanne opera (...) concretamente em sua pintura uma espécie de colocar entre parênteses de todos os co-nhecimentos adquiridos e toda linguagem já instituída para, assim, tentar chegar à natureza em seu aparecer originário” (p. 159).

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Contudo, embora partilhassem do mandamento c omum de pintar na natureza, o fim a que

Cézanne visava com sua pintura não era o mesmo dos impressionistas. Contrastando o “pintar”

de Cézanne com o dos impressionistas poderemos ver mais facilmente a diferença entre eles.

Os impressionistas abordando os objetos num estado de inteira disponibilidade visual e

abstendo-se de todos “os refinamentos imitativos da tradição” (Gowing, 1992, p. 95), pretendiam

pintá-los, em termos de sua aparência atmosférica, tal como nos são dados na percepção insta n-

tânea. Para eles, é “o instante receptor da impressão da natureza” (Klee, 1985, p. 9) que cont a-

va. Como explica Merleau-Ponty, eles pretendiam “restituir na pintura a própria mane ira pela qual

os objetos atingem nossa visão e atacam nossos sentidos”(SNS: 16). Deste modo, no pint ar im-

pressionista, os objetos se dispersam ou dissolvem -se nos quadros, sendo apresentados “na

atmosfera (...) sem contornos absolutos, ligados entre si pela luz e pelo ar” (SNS: 16). Subme r-

sos neste “invólucro luminoso”, os objetos perdem toda sua densida de. Por sua vez, Cézanne

almejava com sua pintura dar uma forma de tal modo tangível aos objetos, que eles fossem an á-

logos às coisas em sua existência real. Tratava -se de devolver à pintura aquilo que os impre s-

sionistas, segundo ele, haviam tirado dela: o peso, a estrutura e a sol idez da matéria.

Mas, se Cézanne se afasta dos impressionistas ao querer reencontrar os objetos “atrás da

atmosfera” (SNS: 16) pintada por eles; é preciso reconhecer que ele não abandona a estética

impressionista no que ela “toma o modelo na natureza” (SNS:17). Em sua busca de uma pintura

direto da natureza, Cézanne só admitia como guia a própria natureza na impressão imediata que

temos dela. Neste sentido, desconsiderava todos os procedimentos clássicos da pintura: delim i-

tação das cores pelos contornos, o ponto fixo da perspectiva, a composição da tela e distribuição

da luz. Bernard via nisto o suicídio de Cézanne: visava a real idade, mas recusava os meios para

alcançá-la. O único meio admitido para encontrar o objeto era a própria impressão. Um parado-

xo?12 Nem Courbet, nem Monet, nem a co isa dos realistas, nem a sensação dos impressionistas,

mas uma terceira via entre eles: “procurar a realidade sem abandonar as sensações” (SNS: 17).

Projeto insano? A razão estaria novamente com Émil e Bernard, para quem Cézanne, ao se e n-

tregar às sensações, teria dissipado “a pintura na ignorância e seu espírito nas trevas”? (apud

SNS: 18). Ou o que se vê é um pintor que, “dócil ao sentido pr óprio de sua pintura” (SNS: 18),

não se persuade de ter que optar entre as alternativas prontas e dicotômicas que a tr adição lhe

propõe?

4. Cézanne: um novo caminho?

12 Este pretenso paradoxo na pintura de Cézanne não é senão o retorno à experiência perceptiva, tal como ela é vivida e descrita na Feno-menologia da Percepção (1945) de Merleau-Ponty.

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Mais que diante de um insensato, talvez Bernard não tivesse percebido de imediato que

estava diante de um artista que procurava instaurar uma nova v isão de mundo, desbravar um

caminho até então não trilhado. Caminho que, para o pr óprio Cézanne, longe de se apresentar

na clareza de uma alameda ensolarada, aparecia-lhe como uma vereda incerta a ser aberta no

emaranhado das sensações, sem nenhuma garanti a prévia de sucesso. Ser artista significa em

Cézanne aquilo mesmo que Van Gogh (1997) afirma de Mauve: “procurar sempre, sem jamais

encontrar a perfeição. Justamente o contrário de ‘eu já sei, já encontrei’ ” (p. 61). Entre a natur e-

za e a tela, a atividade expressiva do artista, que se guia apenas pelas sensações, não é uma

atividade harmônica, mas agônica. O trabalho do artista não é a celebração da suposta “perfeita

continuidade” entre a percepção e a pintura 13, a vida e a obra, é um combate pela expressã o.14

“É – na comparação oportuna de Van Gogh (1997) – a ação de se abrir uma passagem através

de um muro de ferro invisível, que parece se enco ntrar entre o que se sente e o que se pode” (p.

78), o que se vive e a possibilidade de exprimir, pela obra, o sen tido deste vivido. Deste ponto de

vista, o cuidado cada vez maior do velho Cézanne com a explicação de sua pintura (que o pr ó-

prio Bernard15 foi quem melhor testemunhou) não provinha da arrogância de uma inteligência

clarividente na plena posse do que fazia, mas do esforço de compreender a si mesmo ao tentar

explicar-se para o outro. Assim, ao invés de acatarmos o juízo de Bernard sobre a pintura de

Cézanne, melhor é abrirmos os olhos à própria obra do pintor e ao modo como ele a concebia.

Avesso às dicotomias entre o pintor que vê e aquele que pensa, entre sensação e intel i-

gência, Cézanne não se persuadia de ter que optar entre elas como entre o caos e o cosmos.

Pelo contrário, procura uni-las: “uma inteligência que organiza possantemente é a colaboração

mais preciosa da sensibilidade na realização da obra de arte”, afirma o artista 16. Se ao olho cabe

ver o mundo, ao cérebro resta a tarefa de organizar os dados da visão, descobrindo os me ios de

exprimi-la na obra. Sensação e reflexão são, para Cézanne, dois mom entos inseparáveis e es-

senciais para toda realização em arte. O genioso artista de Aix estava longe de ser um bruto,

entre a comunhão com a natureza através dos sentidos e a ação do pincel na tela, um longo e,

freqüentemente, penoso trabalho de refinamento intelectual das sensações se interpunha. Nada

mais longe de Cézanne que a pintura como resu ltado de uma ação-reflexo onde o olho guia a

mão sem que a reflexão intervenha.

13 Haar (1992, p. 106-107) aponta esta “perfeita continuidade” em Merleau-Ponty, quando basta A dúvida de Cézanne, para vermos a difi-culdade que comporta o trânsito entre experiência e expressão, longe do “espontaneismo” que Haar (p. 109) insiste em ver. O próprio Merle-au-Ponty, no congresso sobre Husserl em Royaumont, afirma que a tarefa da fenomenologia, de “conduzir a experiência ainda muda a ex-primir seu próprio sentido” é uma “tarefa difícil, quase impossível”; pois entre uma e outra, o que temos “não é uma espécie de acordo ou de harmonia preestabelecida, é uma dificuldade e uma tensão” (cf. Merleau-Ponty apud Waldenfels, 1998, p. 334). 14 Na carta a seu filho de 8 de setembro de 1906, o pintor escreve: “comigo, a realização de minhas sensações é sempre muito difícil. Não consigo chegar à intensidade que se desenvolve em meus sentidos, não tenho esta magnífica riqueza de coloração que anima a natureza.” (Cézanne, 1978, p. 324). 15 Bernard visitou Cézanne pela primeira vez em 1904, depois disso eles se corresponderam até o ano da morte do velho mestre em 1906. Bernard é o principal destinatário dos ensinamentos teóricos de Cézanne. Nas cartas para o jovem amigo, mais do que em quaisquer outras, Cézanne fala de sua pintura e de suas teorias artísticas. Cf. Doran (1978, p. 23-80). 16 Cf. Doran (1978, p. 15), segundo notas recolhidas pelo filho de Cézanne e publicadas por Léo Larguier.

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Alheio às querelas teóricas sobre sua pintura, longe do público e das críticas, trab alhando

“em silêncio”, como ele mesmo gostava de dizer, Cézanne prosseguia com t enacidade suas

pesquisas plásticas, constante em seu projeto de pintar a “natureza à sua origem”(SNS, 18), mas

recusando as facilidades que a tradição e a ciência pudessem lhe oferecer. Cézanne queria, no

próprio contato com a natureza, desvendar o caminho para expressá-la.

A pesquisa sobre “o motivo” (como chamavam a nat ureza) era uma constante em sua vida.

E foi justamente por esta fidelidade ao olhar sem preconceitos para nat ureza que Cézanne des-

cobriu, sobre a perspectiva, aquilo que só mais tarde a psicologia viria formular, ou seja, que “a

perspectiva vivida, aquela de nossa percepção”, é diferente da “perspectiva geométrica ou fot o-

gráfica” (SNS: 19). Por isso, por exemplo, no retrato da Senhora Cézanne, “o friso da tapeçaria,

de uma parte a outra do corpo, não faz uma linha reta”, porque, tal como na perspectiva vivida,

“sabe-se que se uma linha passa sob uma larga tira de papel, as duas seções visíveis aparecem

deslocadas” (SNS: 19), o mesmo não acontecendo na fotografia.

Do mesmo modo, Cézanne percebeu que “os contornos dos objetos, concebidos como

uma linha que os delimita”, é uma traição do pintor perante a natureza e ao seu próprio olhar,

visto que, tais contornos não pertencem à ordem espontânea das coisas percebidas, mas à o r-

dem humana das idéias e das ciências. O contorno, para C ézanne, jamais existiu como prisão

das formas; mas tão somente como fronteira entre elas, o lugar onde uma acaba e outra com e-

ça. Por isso, para restituir a coisa tal como ela originariamente é dada na sensação, Cézanne

recusa aprisionar as formas da natureza às suas figuras mais simples e isoláveis, tais como o

cone, a esfera e o cilindro, que são abstrações sobre o objeto e não ele mesmo, tal como se dá

a ver aos olhos depurados de toda idéia prévia, ou seja, tal como aparecem na perspectiva viv i-

da. Se as formas da natureza, de fato, tendem para tais figuras, trata -se de verificá-las no conta-

to com natureza, a partir da “geometria da visão” (Go wing, 1992, p. 20) e não de reduzir a natu-

reza a tais abstrações. Para Cézanne, a figura não preexiste ao seu conteúdo e é da existência

deste que depende a inteira construção figurada. É a natureza – uma paisagem, um rosto ou

uma natureza morta – que, na riqueza de sua presença, deve suscitar a estrutura que lhe conf e-

rirá identidade. Tal estrutura não deve ser um dado prévio presidindo a recriação fig urada da

coisa.

Assim, ao pintar uma maçã, diante das alternativas entre (1) marcar com um traço a figura

arredondada da fruta, traindo a perspectiva vivida e sacrificando a profundid ade, no entanto,

fazendo dela uma coisa a partir do “limite ideal”, ou (2) “não marcar contorno algum, que seria

tirar dos objetos sua identidade”, Cézanne “seguirá numa mod ulação colorida a intumescência

do objeto” e onde deveria haver um contorno delimitando a forma da maçã, o artista opta por

marcar “em traços azuis vários contornos” (SNS: 20). O olhar, oscilando entre eles, capta “um

contorno nascendo (...), como acontece na pe rcepção” (SNS: 20). A maçã, deste modo, ao invés

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de surgir imóvel e aprisionada nos limites rígidos do desenho circular que detém a cor; ela ap a-

rece vibrando em suas bordas, pulsando em sua forma, que vai ganhando volume e profundid a-

de diante do olhar, como uma maçã concreta e individual, tal como ela aparece na experiência

primordial, em que nos é dada “plena de reservas e como uma realidade inesgotável” (SNS: 20).

Para Merleau-Ponty, “não há nada menos arbitrário” (SNS: 20) na pintura de Cézanne do

que estas famosas deformações perspectivas. 17 Elas têm o mérito de nos mostrar não apenas

que as figuras geométricas que acreditamos ver nas coisas não provêm delas, mas são proj e-

ções da ordem da ciência e do ideal que fazemos sobre o percebido ou viv ido; como também,

evidenciam que aquilo que o artista pinta é seu encontro com o mundo, são as coisas, não como

seriam nelas mesmas, mas como ele as vê, ou melhor, como as sente, como elas se fazem co i-

sas para ele ou como se manifestam à sua visão ou se fazem present es em sua experiência. O

filósofo esclarece ainda que o gênio do pintor está em fazer com que tais deformações, “pela

disposição de conjunto do quadro, deixem de ser visíveis por si mesmas quando o olhamos gl o-

balmente, contribuindo somente, como o fazem na visão natural, para dar a impressão de uma

ordem nascente, de um objeto aparecendo, aglomerando-se sob nossos olhos” (SNS: 19-20). As

deformações de Cézanne surgem assim, mais que impe rfeições de quem não sabia desenhar,

como o resultado de um profundo re finamento das sensações obtido – como afirma Rivière –

“através de uma ciência enorme” (apud H oog, 1989, p. 51) e grande atenção às sensações.

Para o artista, o mundo “é um organismo de cores” (SNS: 20), o que faz com que as rel a-

ções entre elas surjam como verdadeiras conjunções entre as partes de um me smo corpo. Como

explica Gowing (1992), estava fora de questão para Cézanne observar outra coisa que as rel a-

ções entre as cores, equivalentes, “aos seus olhos, (...) às seqüências de formas que ele podia

desenhar no museu” e, sem dúvida, comparáveis “em seu espírito (...) às articul ações do corpo”

(p. 115-116). Daí o rigoroso sentido de sua resposta a V ollard, quando este lhe chama a atenção

para dois pequenos pontos em branco sobre a mão do retrato para o qua l posava. Cézanne res-

ponde-lhe: “Se minha sessão desta tarde no Louvre for boa (...) talvez amanhã e ncontre o tom

certo para fechar esses brancos (...), se ponho aí qualquer coisa, ao acaso, serei forçado a r e-

tomar todo meu quadro partindo deste lugar!” (V ollard apud Doran, 1978, p. 8). Assim, para rest i-

tuir o mundo em toda sua espessura, repleto de reservas e inesgotável, e não simplesmente c o-

mo algo plano e estirado diante de nós, o pintor acreditava que o desenho devia resultar da ha r-

monização das cores, isto é, das correspondências entre elas e da passagem de umas às o u-

tras. A figura, para Cézanne, é tributária da cor e só ganha consistência através dela. Deste po n-

to de vista, ele não vê distinção entre desenho e cor, tudo na natureza sendo colorido, é n o fluxo

das cores, à medida que se pinta, que as coisas vão ganha ndo suas formas distintas, vão sendo

17 Schnerb e Rivière (apud Cahn, 1995) contam que o próprio Cézanne “era consciente (...) das deformações em suas composições. Contu-do, ele se recusava a corrigi-las, querendo preservar as impressões que havia sentido diante do motivo” (p. 88-89).

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desenhadas. Daí o ditame maior de sua técnica: quanto “mais a cor se harmoniza, mais o des e-

nho se precisa; quando a cor está em sua riqu eza, a forma está em sua plenitude” 18 (Cézanne

apud SNS: 20).

Quanto ao próprio desenho, que se pode arbitrariamente separar da cor, o “desenho de

exatidão automática ensinado na Escola de Belas Artes”, Cézanne tinha verd adeiro horror dele.19

Na contrapartida da tradição linear das escolas clássicas vigentes (Realismo, Romantismo, Ne o-

classicismo), para as quais o desenho era imprescindível, Cézanne acreditava que somente a

cor, bem modulada, bastaria para tudo exprimir: “a profundidade, o aveludado, a maciez, a dur e-

za dos objetos – Cézanne dizia inclusive: seu odor” 20 (SNS: 20). Para tanto, para fazer da pintura

não apenas uma “alusão às coisas” (SNS: 21) ou uma superfície colorida endereçada somente à

visão, mas apresentação das coisas mesmas, atacando -nos por todos os lados, tal como origina-

riamente aparecem, isto é, “em sua unidade imperiosa” e fazendo apelo a todos os sentidos c o-

mo esta presença plena “que é para todos nós a definição do real”21 (SNS: 20), cada toque dado

pelo pintor em sua tela (e, às vezes, ele levava horas para fazê-lo) deveria satisfazer a uma inf i-

nidade de condições, a fim de ser a solução exata para a expressão desta visão orig inária das

coisas. Vemos mais facilmente, agora, por que a pintura era para o artista uma atividade extr e-

mamente laboriosa e lenta. Sem separar visão e pensamento, os progressos a fazer eram, para

Cézanne, incessantes, uma vez que a t arefa do pintor: “A expressão do que existe” delineava-se

para ele como “tarefa infinita” (SNS: 21).

5. Pintar e reaprender a ver o mundo.

Olhando como apenas o homem é capaz de olhar, 22 Cézanne recusa o olhar ordinário que,

contaminado pelas necessidades práticas, habituou -se a só enxergar nas co isas o genérico e o

18 Para Cézanne, “o desenho puro é uma abstração (...), à medida que se pinta, se desenha” (SNS: 20). Neste sentido, bem que poderiam ser suas as palavras de Frenhofer, herói do romance Chef-d’oeuvre inconnu de Balzac (1994), que pretendia exprimir a vida pelas cores: “A linha – diz o personagem – é um meio pelo qual o homem se dá conta do efeito da luz sobre os objetos; mas não existe linha na natureza, onde tudo é pleno: é modelando que se desenha” (p. 51-52). São palavras que cabem perfeitamente na maneira de pensar de Cézanne que via neste herói romanesco um retrato dele próprio. 19 Cf. “O ateliê de Cézanne” de RP.Rivière e JF.Schnerb (apud Doran, 1978, p. 87) 20 Para Merleau-Ponty , com isto, Cézanne “queria dizer que o arranjo das cores sobre a coisa (e na obra de arte se ela retoma totalmente a coisa) significa, por si mesmo, todas as respostas que ela daria à interrogação dos outros sentidos, que uma coisa não teria esta cor se ela não tivesse também esta forma, estas propriedades táteis, esta sonoridade, este odor, e que a coisa é a plenitude absoluta que projeta diante de si mesma minha existência indivisa” (PhP: 368). Por outras palavras, a percepção não é a soma dos dados fornecidos pelos sentidos, que acrescentados uns aos outros, daria-nos a coisa; percebemos de “maneira indivisa” com nosso “ser total”; a pintura de Cézanne preten-de mostrar a coisa tal como ela nos aparece na experiência natural, isto é, como “uma estrutura única (...), uma única maneira de existir” que se dirige ao mesmo tempo a todos os nossos sentidos (SNS: 63). 21 “Quando olho o verde brilhante de um vaso de Cézanne, - afirma Merleau-Ponty - ele não me faz pensar na cerâ-mica, ele a apresenta a mim, ela está ali, com sua crosta fina e lisa e seu interior poroso, na maneira part icular pela qual o verde se modula” (PhP: 380). 22 Segundo Merleau-Ponty, ordinariamente, nosso olhar é viciado, ele “se põe sobre as coisas apenas o suficiente para reencontrar sua presença familiar, e não o suficiente para redescobrir aquilo que elas encerram de inumano. Mas a coisa - continua ele – ignora-nos, ela repousa em si. Nós o veremos se colocarmos em suspenso nossas ocupações e dirigirmos a ela uma atenção metafísica e desinteressada” (PhP: 372). Tal é o olhar cezanniano.

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previsível ou o que lhe é útil às ações do cot idiano. O olhar de Cézanne pretende ver o mundo lá

onde ele originariamente aparece, o mundo que está abaixo do mundo das preocupações pra g-

máticas da vida cotidiana, em que não vemos realmente as coisas, mas as v emos tão somente

como pontos de aplicação de nossas ações, ou seja, as vemos para agir e não para simplesmen-

te vê-las. O olhar de Cézanne se coloca fora desta vida. Pretende ir às raízes inumanas do mu n-

do, o mundo aquém da humanidade constituída (SNS: 22); quer ver “o fundo de natureza inum a-

na sobre o qual o homem se instala” (SNS: 22). É p or isso que em suas pinturas, progressiv a-

mente, descobrimos não uma transcendência da expressão que nos conduziria ao realismo, mas

a expressão como expressão de uma transcendência 23. Em seus quadros, as coisas aparecem

fora da familiaridade na qual habitua lmente as vemos, no contexto de nossas ocupações, se m-

pre como “ponto de aplicações” (SNS: 22) de nossas poss íveis ações. Sua pintura é “um mundo

sem familiaridade, onde não se está bem” (SNS: 22), seus personagens são estranhos, as pa i-

sagens sem vento, a água sem movimento, “os objetos transidos hesitando como na origem da

terra” (SNS: 22). E nisto está, para Merleau -Ponty, o mérito de Cézanne: relembrar-nos desta

inumanidade, pintar desde este lugar em que o real se faz real, retornando às origens, às font es

do real.

Sem negar a ciência ou a tradição, Cézanne estudava horas a fio no Louvre, que consid e-

rava “um bom livro para se consultar” (Cahn, 1995, p. 79), e julgava o estudo ge ométrico dos

planos e das formas útil à pintura, chegando até mesmo a se infor mar sobre “a estrutura geológi-

ca das paisagens” (SNS: 22); contudo, todas essas informações, ele as tomava como secund á-

rias, sem jamais se deixar orientar primeira e exclusivamente por elas. Para o artista, o motivo

primeiro que sustenta cada gesto do pint or jamais poderia ser “unicamente a perspectiva ou a

geometria ou as leis de composição das cores ou qualquer conhecimento que seja”; mas, tão

somente, como único “motivo”, “a pa isagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta”

(SNS: 22). Não se trata porém de negar tudo e recomeçar a pintura, datando -a a partir de si

(complexo de Adão), mas de descongestionar a visão de todas as lembranças de museus, exp o-

sições e teorias que a sobrecarregam, como condição para se poder ver a natureza sob um novo

olhar.

Paralela à atitude de Monet, que declarava ter querido nascer cego e recuperado, de r e-

pente, a visão; Cézanne também gostava de dizer que seu desejo era “ver como aquele que

acaba de nascer” (Cahn, 1995, p. 88). Mas, mais uma vez é que, para ele, era pre ciso abster-se

dos recursos à ciência e à tradição, aplicando -se em simplesmente ver, pôr-se diante da nature-

za com o propósito de tudo esquecer, justamente, para redescobri -la. Cézanne não era um primi-

tivista, a descoberta de um novo caminho pressupõe o c onhecimento daqueles já trilhados, seja

para evitá-los ou para se saber a partir deles até onde já se foi. A descoberta do novo e desc o-

23 “O que tento vos traduzir é mais misterioso, entrelaça-se às próprias raízes do ser, à fonte impalpável das sensações”, dirá Cézanne numa carta a J. Gasquet (apud OE: 1).

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nhecido pressupõe a mediação do velho e conhecido, do contrário, a novidade pode ser apenas

repetição ou pastiche. Cézanne, portanto, não recusava a tradição, só não admitia partir dela ou

limitar-se a repeti-la. Fazê-lo seria fechar os olhos para a infinita n ovidade da natureza, recusar a

admiração. Deste modo, se o artista considera o Louvre “um bom livro”, “onde aprend emos a ler”,

acrescenta em seguida, “mas ele deve ser apenas um intermediário”, “não devemos nos conte n-

tar em reter as belas fórmulas de nossos ilustres antecedentes. Sa iamos dele para estudar a

bela natureza”.24

A natureza em sua prodigiosa fecundidade estava sempre em primeiro lugar diante do o-

lhar admirado do artista. Diante dela, imóvel, olhos dilatados, o pintor a contemplava, “germin a-

va” com ela, esquecendo toda ciência e toda trad ição, olhando como quem olha pela primeira

vez, a fim de constituí-la “como organismo nascente” (SNS: 23), como o mundo em sua origem.

Entre a paisagem e o quadro, está o artista, “nem servidor submisso, nem mestre absoluto,

mas simplesmente intermediário” (Klee, 1985, p. 17), que se deixa inspirar pelo mu ndo através

da sensação para, em seguida, expirá-lo transfigurado, através do trabalho, em obra. A arte não

é nem a representação exata de uma realidade entendida como substrato em si perante o olhar

do artista, nem a tradução fiel de uma idéia que do interior o assedia. Para al ém da pintura como

“imitação” do mundo, transposição de uma visão objetiva para a tela equivalente do “real”; ou da

pintura como tradução de um pensamento já claro, um conteúdo interior; ela é sempre “uma op e-

ração de expressão” (SNS: 23), a partir deste e ncontro originário do corpo e do mundo no solo

originário das sensações.

Semelhante à palavra que “não se assemelha ao que designa”, assim também, “a pintura

não é uma cópia” (SNS: 23). Mesmo na pintura clássica, quando os artistas, com os olhos fixos

no mundo, acreditavam ter dele o segredo de uma representação fiel, ainda assim, sem sab e-

rem, transfigurava-o na pintura. Ao olhar o mundo, pensavam soletrá -lo, quando na verdade o

recriavam pela pintura. Parafraseando Van Gogh (1997, p. 183), mesmo que pudésse mos fixar

com todas as cores e traços o reflexo da realidade num espelho, o resultado não seria de modo

algum um quadro. Toda esta riqueza de cores atuando umas sobre as outras na natureza, ela é

perdida se a pintura limita-se a ser uma cópia literal da na tureza; ao contrário, ela é resg atada

se, na pintura, procura-se recriá-la através de uma gama de cores paralelas que não tem que ser

fatalmente idêntica à da natureza, mas que se harmoniza tão bem na tela quanto é harmônica na

natureza. Trata-se, portanto, de buscar uma identidade da pintura consigo mesma e não entre a

pintura e a natureza. Pintar não é copiar servi lmente as coisas da natureza, pois tal submissão

faria da arte uma mera imitação sempre inferior ao original.

24 Cf. para as citações acima: cartas a Émile Bernard de12 de maio de 1904 e de 1905 (sem referência ao mês) em Cézanne,1978, p. 303, 313-314.

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6. Considerações finais

Chegando ao fim desta comunicação, podemos concluir que pintar, para Cézanne, é, sem

separar o pensamento da visão, interpretar a natureza, aquilo que se vive, que se vê. O que para

o artista significa, a partir da natureza, “apreender uma harmonia entre numerosa s relações (...)

desenvolvendo-as seguindo uma lógica nova e orig inal”,25 tornando real ou realizando o quadro,

não como cópia, mas como “uma harmonia paralela à natureza”, que é a própria definição de

arte para Cézanne.26 Ele vai, portanto, ao encontro da c lássica concepção da arte como “o h o-

mem acrescentado à natureza” (SNS: 22); da qual, entretanto, ele depreende uma signific ação

ou uma concepção que traz sua marca, que se expressa na sua obra como algo que ele trouxe à

luz, que sem ele não existiria. Em t ais termos, podemos afirmar com Klee (1985) que, “a arte não

reproduz o visível; ela torna visível” (p. 34); ela não imita a coisa, mas apreende, segundo a lóg i-

ca e os recursos que lhe são próprios, o modo como a coisa se manifesta como coisa e se inst a-

la num mundo particular. É assim que vemos, em Cézanne, o artista procurando “restituir o e n-

contro do olhar com as coisas que o solicitam” (S: 71), retomando -as tal como se dão a ver, or i-

ginariamente, a cada consciência, isto é, como “vibração de aparências” (SNS: 23), para conver-

tê-las, através da pintura, em objeto visível e acess ível a todos, liberando-as da vida secreta e

privada de cada consciência solitária, na qual, antes da pintura e sem ela, elas permaneceriam

encerradas.

Portanto, para um pintor como Cézanne, que quer pintar as coisas desde o berço das se n-

sações em que surgem, como afirma Merleau -Ponty: “uma única emoção é possível: o sentime n-

to de estranheza, um único lirismo: o da existência sempre recomeçada” (SNS: 23). A mesma

admiração, que está na base do filosofar, aparece igua lmente fundamentando a atividade do

artista. Nos dois casos, a admiração se traduz, igualmente, como sentimento de estranheza p e-

rante a existência que, visada fora do ci rcuito familiar da visão cotidiana, aparece originar iamente

sempre como a mesma; mas, posto que, visada desde a fonte em que se manifesta (o berço das

sensações), não cessa de mostrar -se também sempre como nova e estr anha. Por isso, talvez,

Cézanne repetisse sempre: “A vida é espantosa”. No entanto, era des te espanto que nascia sua

pintura. A pintura como sua resposta ao espanto.

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(Fólio/Classique).

25 Cf. Larguier apud Doran (1978, p. 17). 26 Carta de 26 de setembro para J. Gasquet (Cézanne, 1978, p. 262).

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