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1 OLIVIA BARA PSICOLOGIA E POVOS INDÍGENAS: ENFRENTANDO A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2008

OLIVIA BARA PSICOLOGIA E POVOS INDÍGENAS: … Bara.pdf · Faculdade de Psicologia. PUC-SP. Orientadora: Profa. Dra. Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro Palavras-chave: Povos Indígenas

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OLIVIA BARA

PSICOLOGIA E POVOS INDÍGENAS:

ENFRENTANDO A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2008

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OLIVIA BARA

PSICOLOGIA E POVOS INDÍGENAS:

ENFRENTANDO A QUESTÃO DA EDUCAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso como

exigência parcial para graduação no curso

de Psicologia, sob orientação da Profa. Dra.

Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro.

Pontifícia Universidade Católica

São Paulo

2008

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Agradecimentos

A toda minha família – João, Gláucia e Vitor – que é sempre fundamental em todos os

momentos de minha vida.

A Flávia da Cunha Bastos por me ajudar com toda sua experiência e dedicação.

Ao Projeto Pindorama, especialmente à Marisa Penna, que me recebeu de portas abertas

e possibilitou a realização deste trabalho.

A Y., D., P. e G. que se disponibilizaram a conversar comigo, abriram as questões de

suas vidas e me ensinaram muito.

A Marilda que me orientou, me acompanhou e me deu força durante todo o ano.

Aos meus amigos que estiveram sempre ao meu lado, que me ajudaram para a

realização deste trabalho, ou me esperaram, com paciência, “passar desta fase”.

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Áreas do Conhecimento – Ciências Humanas - 7.07.05.00-3 Psicologia

Olívia Bara. Psicologia e Povos Indígenas: Enfrentando a Questão da Educação,

2008. Trabalho de Conclusão de Curso. Faculdade de Psicologia. PUC-SP.

Orientadora: Profa. Dra. Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro

Palavras-chave: Povos Indígenas, Educação, Inclusão Social.

RESUMO

Este trabalho aborda inicialmente questões pertinentes à educação dos povos

indígenas no Brasil. Retoma a configuração das questões dos índios desde a chegada

dos portugueses ao nosso país, a partir da colonização.

Descreve depois como vivem as tribos atualmente, quais as suas características,

seu modo de vida, seus valores e como se dá a educação nelas atualmente. Chega aos

dias de hoje abordando as políticas públicas para os indígenas e expondo os problemas

pelos quais as tribos passam. Com base na bibliografia e documentação consultada

aponta-se o desafio da inclusão dos índios no sistema dos brancos como sendo algo

importante que deve ser pensado, sobretudo quando a temática se refere à necessidade

de estudo nas cidades grandes. A partir dessas reflexões, o trabalho teve como

objetivos: 1- investigar as expectativas dos indígenas em relação à educação e 2-

descobrir quais as dificuldades enfrentadas por esta população em relação ao seu

processo de formação acadêmica. Foram realizadas entrevistas semi-dirigidas

individualmente com 4 sujeitos que participam do Projeto Pindorama da PUC-SP. A

Psicologia Sócio-Histórica foi tomada como embasamento teórico do trabalho e as falas

dos sujeitos foram organizadas em Unidades de Significado.

Os resultados foram apresentados por meio de 5 unidades de significado: apreço

pela cultura e tradições, aceitação/preconceito, faculdade para trabalhar com a questão

indígena, dificuldade de adaptação e/ou contradições e transculturação. Para esses

sujeitos ficou clara a importância de cultivar a cultura indígena mesmo vivendo em São

Paulo. A escolha de fazer uma faculdade apareceu intimamente relacionada com o

desejo de adquirir maior formação para trabalhar com a questão indígena. Observei que

não são muitas as dificuldades enfrentadas por eles; apareceram apenas algumas

questões relacionadas à diferença de modo de vida, educação e conteúdos estudados

entre a cultura indígena e branca.

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SUMÁRIO

1- Introdução.......................................................................................................... 1

2- Breve Histórico dos Índios no Brasil................................................................ 3

2.1- Os povos primitivos que habitaram nossa terra.................................... 3

2.2- A colonização do Brasil........................................................................ 4

2.3- A vida dos índios no Brasil pré-colonial............................................... 5

3- A Cultura Indígena............................................................................................ 8

3.1- A cultura Guarani.................................................................................. 8

3.2- A cultura Krenak.................................................................................. 10

3.3- A cultura Pankararu.............................................................................. 12

4- A Questão Indígena Hoje.................................................................................. 15

4.1- A vida dos índios................................................................................. 15

4.2- As políticas para os indígenas no Brasil............................................... 18

4.3- Educação indígena................................................................................ 21

4.4- O “Projeto Pindorama”......................................................................... 22

4.5- A questão da inclusão........................................................................... 24

5- Fundamentos da Psicologia Sócio-Histórica..................................................... 26

6- Objetivo e Relevância da Pesquisa.................................................................... 30

7- Metodologia....................................................................................................... 31

7.1- Sujeitos................................................................................................. 31

7.2- Instrumento e procedimento de coleta de dados................................... 31

7.3- Registro dos dados................................................................................ 33

7.4- Procedimento de análise dos dados....................................................... 34

8- Resultados......................................................................................................... 36

9- Discussão........................................................................................................... 51

10- Considerações Finais....................................................................................... 55

11- Referências Bibliográficas.............................................................................. 56

12- Anexos............................................................................................................. 59

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1- Introdução

Desde o começo do meu curso na Faculdade de Psicologia me interesso por

assuntos ligados à realidade brasileira. Sempre me questionei como a realidade social

pode interferir na formação das subjetividades de pessoas que vivem em comunidades

muito distintas do nosso país. Considero muito importante conhecermos outras culturas,

outras maneiras de viver e penso que, a partir de minha formação como psicóloga, posso

contribuir com conhecimentos da Psicologia para a melhoria da condição de vida dessas

pessoas e dessas comunidades.

Ao iniciar o processo deste trabalho me deparei com um grande desejo de

estudar as comunidades indígenas. A partir de leituras e de toda a minha formação

acadêmica pude observar que desde 1500, com a chegada dos portugueses ao Brasil, os

povos indígenas vêm vivendo problemas de várias ordens. Estas questões me

sensibilizaram e me fizeram concluir que seria de extrema relevância estudá-las.

Apesar de importante, a questão indígena no Brasil é um assunto que não tem

sido muito estudado pela Psicologia. Ao pesquisar a literatura a respeito, encontrei

poucos trabalhos e publicações. Esse fato reflete o pouco interesse da sociedade sobre

os cinco séculos de nossa história, mantendo-se quase que cega a ela.

A partir de minhas pesquisas, leitura de textos, participação em colóquios e

debates, pude verificar que a educação indígena é um assunto muito importante, rico e

delicado, já que envolve diversos desafios para o nosso país como por exemplo, a

inclusão dos indígenas e o respeito às suas tradições.

Essas informações demonstraram que os índios se preocupam muito com a

possibilidade de dar continuidade aos seus estudos. Essa é uma questão mobilizadora

para eles que enfrentam inúmeras dificuldades para conseguirem prosseguir com sua

vida educacional.

Refletindo sobre esses dados resolvi pesquisar o grupo de indígenas que estudam

na PUC-SP e fazem parte do Projeto Pindorama. Elaborei meu problema de pesquisa

definindo dois objetivos para esse trabalho: 1- investigar as expectativas dos indígenas

em relação à educação e 2- descobrir quais as dificuldades enfrentadas por esta

população em relação ao seu processo de formação acadêmica.

Para tal, considerei fundamental abordar a história dos indígenas no Brasil, seu

desenvolvimento, as questões que permeiam essa comunidade, sua situação na

contemporaneidade, suas diferentes culturas e tradições. Após essas considerações

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apresento os fundamentos da Psicologia Sócio-Histórica, linha teórica em que se baseia

este trabalho, para assim desenvolver a metodologia e concluir com os resultados e a

discussão.

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2- Breve Histórico dos Índios no Brasil

2.1- Os povos primitivos que habitaram nossa terra

Frequentemente nos referimos à história do Brasil datando-a a partir de 1500,

com o descobrimento desta terra pelos portugueses. Todavia, diferentemente de como é

referido pelo senso comum, pelas idéias cotidianamente difundidas, a nossa história

começou muito antes dessa data, já que há muito tempo havia uma população inteira

vivendo na América do Sul, que constitui o nosso passado cronológico, ideológico e

simbólico. Saber dessa população e de suas características é algo muito importante para

nós brasileiros, já que ela foi a primeira, da qual temos conhecimento, a viver no Brasil.

Além disso, esses povos que viviam no nosso país apresentavam culturas muito ricas

que incluíam mitos, ritos e explicações sobre o mundo e a natureza que, provavelmente,

nunca iremos conhecer profundamente.

Porém, é muito importante que se conheça esse passado, já que nós, na

realidade, somos fruto do que eles foram, somos seus descendentes e convivemos no

nosso cotidiano com muitas das características dessa cultura. Somos um povo

misturado, de origem européia, indígena e africana. Essas duas últimas foram renegadas

e suas formas de pensar desvalorizadas. Em relação à cultura indígena especificamente,

podemos afirmar que ela vem sendo julgada como pensamento selvagem, confuso,

primitivo, irracional e mítico, perdendo parte de sua identidade cultural. Com isso,

estamos reduzindo a complexidade e importância de outras maneiras de ver o mundo,

que não é governado apenas por necessidades biológicas ou econômicas, como pensa a

sociedade atual. Esta sociedade, regida pelo modo de produção capitalista termina por

desvalorizar quaisquer idéias que se contraponham às de sua cultura. Os costumes, as

soluções das culturas indígenas que só nos acrescentariam, são por nós até

ridicularizados, somente por serem diferentes do nosso pensamento ocidental que,

segundo Lévi-Strauss (1962) se apóia apenas na ciência moderna e na razão. Estamos

diante de dois tipos de pensamento diferentes, e isso não quer dizer que um seja melhor

que o outro, mas sim que eles se baseiam em padrões de verdade distintos, decorrentes

de modos de organização social também distintos. Um deles possui métodos científicos

rigorosos e o outro está muito mais próximo da intuição sensível, baseado em crenças e

mitos que também possuem um enorme valor.

Além do desinteresse por esses grupos, a dizimação dessa população acarreta a

perda de boa parte de um grande patrimônio cultural. São surpreendentes e assustadores

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os dados populacionais quando comparamos a data de 1500 com os dias de hoje.

Estima-se em cinco milhões o número de indígenas que habitavam as terras brasileiras

na época da chegada dos portugueses (Ribeiro apud Silva, 2004). Atualmente, calcula-

se que oitocentas etnias desapareceram para sempre, reduzindo drasticamente o número

desses indivíduos, que estão hoje na casa dos 200 mil apenas (Cunha apud Silva 2004).

Esses dados nos mostram que muito da nossa história se foi para sempre, a partir

de conhecimentos, línguas, costumes e etnias particulares esmagadas. Com a dizimação

dessa população, ocorre uma perda irreversível, já que um povo, com suas

peculiaridades, não se repete, não há um povo igual a outro e não podemos sequer

recuperar o que foi completamente destruído.

O menosprezo pela cultura indígena começou com a chegada dos portugueses,

quando o que se deu não foi o descobrimento, mas sim a devastação dos povos que já

viviam aqui.

2.2- A colonização do Brasil

Antes da chegada dos portugueses já havia uma população inteira vivendo nas

terras brasileiras. Com sua vinda e com a colonização tem início o processo de

aculturação dos índios que já moravam no Brasil. Durante os séculos XVI, XVII e

XVIII, os portugueses tentaram, não sem resistência dos índios, submetê-los à cultura

dos brancos. Isso ocorria através da imposição do trabalho, da religião, das crenças, do

comportamento, da língua, etc., e algumas vezes, simplesmente através da escravidão.

Por meio da catequização, a religião católica foi sendo imposta. Mas a preocupação

central não era apenas a religião. A catequização, que se deu através da ação dos

jesuítas, tinha o objetivo de transmitir aos índios do Brasil toda a tradição medieval e

renascentista da Europa (Massimi,1999). Isso foi feito pelos padres missionários da

Companhia de Jesus, originada num contexto cultural muito fecundo na Europa.

Massimi (1999) afirma sobre isso:

...uma das prioridades do plano missionário da Companhia era a educação das crianças e a criação de escolas para isso, sendo que a educação apresentava-se aos religiosos imbuídos pelo espírito da pedagogia humanista um instrumento privilegiado de formação do homem da sociedade. Nada melhor, então, do que a educação para criar um homem novo e uma nova sociedade no Novo Mundo. (p. 99).

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Nesse período, os índios não tinham qualquer direito, nenhuma lei que garantisse

sua segurança perante a colonização dos brancos. Somente no século XVIII, mais

especificamente em 6 e 7 de junho de 1755, com a criação do Diretório dos Índios do

Maranhão e do Grão-Pará, é que se inicia a cessação da escravidão indígena

(Martins,1997); apenas em 1910, com a criação do SPI (Serviço de Proteção aos Índios)

é que houve um órgão do Governo Federal encarregado de executar a política

indigenista.

Durante todos esses séculos, os índios foram vistos como desavergonhados, sua

cultura foi negada, seus valores, seu modo de vida foram vistos como primitivos e

irracionais. Pelo fato de não exercerem uma rotina de trabalho formal semelhante à que

existia na Europa, os índios eram tidos como preguiçosos e pecadores, já que era

considerado pecado não trabalhar. Massimi (1999) aponta claramente esse aspecto com

as anotações do jesuíta José de Anchieta (1534 - 1597) sobre a terra brasileira. Ele a

define como “melancólica”, e aponta que seria essa a causa da ociosidade e dos

excessos de alimentação e de bebida entre todos que viviam nela.

Com a vinda dos portugueses os índios que já moravam no Brasil sofreram

muito, pois foram escravizados, humilhados e desvalorizados. Segundo Silveira (2001),

as mulheres foram utilizadas como escravas e objetos sexuais, mas se por um lado eram

alvo de muito preconceito, por outro lado também fascinavam os portugueses.

Com a instalação dos portugueses, inúmeros conflitos foram surgindo e os povos

nativos foram se desagregando. Além disso, doenças que não existiam no Brasil foram

sendo trazidas pela nova população, levando muitos índios à morte. Porém, os índios

não estavam passivos à colonização. Durante todos esses séculos aconteceram muitas

batalhas entre eles e os portugueses, expressando uma resistência muito forte por parte

dos indígenas. Por exemplo, o rio Massangana foi palco de inúmeras batalhas entre

índios Caetés e portugueses, por conta do escoamento de mercadoria brasileira para a

Europa. Outro conflito bastante importante entre os dois povos foi “A Conquista de

Sergipe”.

2.3- A vida dos índios no Brasil pré-colonial

É muito difícil saber ao certo como era a vida dos índios no Brasil nessa época,

porque os documentos que encontramos já vêm com o crivo de outra cultura. As

descrições, na realidade já são interpretações. Massimi (1990) refere a descrição de

Fernão Cardim (1540 - 1625) sobre a vida dos indígenas que viviam no Brasil. Cardim

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foi missionário e escritor português. Como jesuíta, viajou para o Brasil na condição de

visitador, sendo um dos primeiros a descrever os habitantes e os costumes desta terra.

No período colonial, Cardim escreve que “os pais não tem cousa que mais amem que os

filhos, e quem a seus filhos faz algum bem tem dois pais quanto quer” (apud Massimi,

1990, p.8). Também descreve que não havia uma divisão rigorosa de papéis na relação

com os filhos, e os pais se faziam muito presentes na vida familiar, inclusive na hora do

parto de seus filhos. Segundo Simão (1668, apud Massimi, 1990) naquela época, após o

parto, a mulher se levantava e se ocupava das tarefas domésticas e da roça, enquanto o

homem ficava deitado na rede e recebia visitas. Para atender o recém-nascido, o pai se

abstinha do trabalho, e as mães amamentavam o bebê até eles terem um ano e meio,

aproximadamente.

Cardim (apud Massimi, 1990) comenta, em relação à rotina, que a criança

possuía grande participação na vida da família e da comunidade indígena. As mães

carregavam os filhos com um pedaço de rede para todo lugar que iam, inclusive para o

trabalho. Pais, mães e filhos iam juntos fazer a higiene diária no rio. As crianças

participavam desde cedo das festas e danças e eram ensinadas a cantar e a dançar.

O mesmo autor se admirou com a criatividade e com a sociabilidade das crianças

indígenas, afirmando que as suas brincadeiras eram muito variadas; em seus escritos

para a colônia, ele afirma que elas as “fazem com muito mais festa e alegria que os

meninos portuguezes” (Cardim, apud Massimi, 1990, p. 10). Entre elas não havia

queixas, nem brigas, nem palavrões.

As crianças aprendiam desde pequenas a pescar e a caçar e possuíam muita

habilidade nas águas do mar, dos rios e nas matas. Cardim destaca também que elas

tinham ótimo desempenho nas escolas organizadas pelos missionários e que

rapidamente aprendiam a ler, escrever e contar. Observa ainda que não eram punidas

pelos pais, pois se amavam muitíssimo e as crianças eram extremamente obedientes.

As mulheres desempenhavam um papel muito importante na comunidade, muito

distinto do que era visto na época em Portugal, onde não tinham nenhuma liberdade e

eram vistas como inferiores. O autor afirma também que os homens e as mulheres

indígenas sempre andavam juntos e que eles costumavam tratá-las bem.

Em síntese, em todos esses relatos de jesuítas aos portugueses apresentados por

Massimi (1990) é possível observar um tom de estranhamento em relação a uma cultura

distinta da européia e que, por ser diferente, muitas vezes ganhava o tom de

anormalidade e inferioridade.

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O trabalho de Silveira (2001) mostra que até hoje, muitas vezes, os índios são

vistos como preguiçosos, não pertencentes ao país, inúteis, seres que só dão trabalho

para os brancos.

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3- A Cultura Indígena

As culturas indígenas que vão me interessar neste trabalho são: Guarani, Krenak

e Pankararu. Levantei aspectos fundamentais de cada uma delas, pois essas são as

culturas de origem dos sujeitos da minha pesquisa.

Para compreendermos o discurso dos indígenas dessas etnias é necessário entrar

em contato com as tradições e o modo de vida desses povos.

3.1- A cultura Guarani

A cultura Guarani é uma das maiores culturas indígenas do Brasil. Na realidade,

ela não se limita apenas ao atual território brasileiro, mas também são encontradas na

Argentina, Paraguai e Uruguai.

Sua população, em nosso país, no século XVII, era de mais de dois milhões de

pessoas, enquanto atualmente está reduzida a alguns milhares distribuídos em várias

partes do Brasil, como por exemplo: São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,

Santa Catarina, Paraná, etc. Hoje em dia os Guarani já não ocupam grandes extensões

de terra como antigamente, e sim, vivem confinados em pequenas reservas ou aldeias,

segundo Shaden (1954).

Entre os Guarani a consciência de unidade não chegou a prevalecer. Existe

inclusive um sentimento de hostilidade entre as aldeias. Essas não apresentam

homogeneidade cultural em todos os aspectos. De acordo com Shaden (1954), a

diferenciação foi se acentuando muito com a colonização, já que em cada região houve

um contato diferente com a cultura branca. Nas diversas aldeias Guarani, atualmente,

variam também o contato que estabelecem com a civilização urbana e o apego aos

padrões tradicionais.

Os Guarani do Brasil meridional podem ser divididos em três grupos: os

Ñandéva (os que somos nós), os Mbüá (gente) e os Kaiová.

Colocarei agora alguns pontos importantes para compreendermos melhor a

cultura tradicional dos Guarani. Segundo Schaden (1954), essa etnia se estabelecia,

sempre que possível, no seio da mata, evitando a paisagem aberta dos campos. Viviam

em casas isoladas, mais ou menos distantes umas das outras, nas clareiras das florestas.

As casas não apresentavam muita mobília, e não é possível falar de um centro a não ser

que seja considerada a casa do Ñanderú (médico-feiticeiro) ou Oyguastú (casa de festas

religiosas).

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De acordo com o mesmo autor, suas principais atividades de subsistência eram a

lavoura, a caça e a pesca. Conforme os brancos foram invadindo seus espaços, os

territórios de caça foram diminuindo e a roça se tornou uma atividade muito importante.

Para os Guarani, a eficiência econômica de um indivíduo não representa especial

prestígio. A produção tem uma feição comunitária e o tabaco, a mandioca e as plantas

para uso terapêutico são alguns dos produtos importantes.

Podemos notar um predomínio extraordinário da religião em todas as esferas da

cultura. Até a relação com os alimentos demonstram essa importância, como por

exemplo: o milho é um alimento muito importante da produção, pois o que diz respeito

a ele é associado ao mundo sobrenatural.

Ainda em relação à religião, eles acreditam que o indivíduo é bom ou mau por

natureza, por fatalidade. Eles acreditam na teoria da reencarnação. A reza é o traço da

união entre o mundo dos vivos e o sobrenatural, ela tem como função também dar vazão

às suas vivências religiosas e é uma atividade que ora é comunitária, ora doméstica; há

rezas para tudo.

Em relação à educação podemos dizer que os Guarani tratam as crianças com

bastante independência. No dia-a-dia elas ficam soltas e participam com freqüência da

vida dos adultos. Poucos são os brinquedos que não imitam as atividades dos adultos.

Desde cedo eles ajudam os pais nas atividades rotineiras. Eles têm como característica

“o respeito pela personalidade humana e na noção de que essa se desenvolve livre e

independente em cada indivíduo, sem que haja possibilidade de interferir de maneira

decisiva no processo” (Schaden, 1954, p.75). Educação repressiva é quase inexistente.

A atitude em face da educação se modifica com a marcha do processo aculturativo.

Shaden (1954) observou que os Guarani apresentam pouca estabilidade

emocional. Em geral não são capazes de ódios prolongados ou rancor. Desmancham

casamentos com facilidade e quando se vêem frente a algum desentendimento

costumam conversar ou o mal estar passa rapidamente apenas com o tempo.

Esse mesmo autor coloca que entre os Guarani há momentos de crise

relacionadas ao indivíduo. Essas situações são: o nascimento, a maturação, as doenças,

o nascimento dos filhos e a morte. Em relação aos momentos de crise para o grupo,

podemos destacar: a colheita do primeiro milho verde, epidemias ou viagens.

Com a chegada dos europeus e o objetivo de catequizar os índios, os jesuítas

aproveitavam para levar os Guarani para ajudar nas missões a procura de ouro. Toda a

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colonização foi marcada pela tentativa de dominação dos europeus em relação aos

índios e por conflitos entre as duas culturas.

No século XIX, houve grande desmatamento das regiões em que viviam os

Guarani Kaiová e a instalação de fazendeiros no local, que culminou na expulsão dos

índios ou na transformação deles em mão-de-obra.

Shaden (1954) também afirma que a passagem do século XIX para o século XX,

no Brasil, foi marcada por um vasto processo de penetração econômica e conquista de

territórios que até então não tinham sido explorados. Esta expansão capitalista trouxe

como conseqüências um confronto violento com as populações indígenas, do país que

não tinha qualquer lei específica para proteger seus direitos.

3.2- A cultura Krenak

Os índios Krenak, de acordo com Douglas Krenak, liderança dessa comunidade,

em seu artigo online: O Povo Indígena Krenak, também se autodenominam: “Borun”.

Essa palavra quer dizer “nós”, “essência do ser”. Eles viviam em diversas regiões da

Mata Atlântica, no Baixo Recôncavo, e se subdividiam em vários grupos. Cada grupo

tinha seu modo de viver e seus costumes particulares. Eles viviam adaptados ao seu

meio e aproveitavam ao máximo os recursos naturais que tinham a disposição para

sobreviverem.

Suas atividades de subsistência eram a caça e a pesca e a coleta de alimentos no

interior da mata. Os Borun caçavam diversos animais, tais como: capivaras, veados,

caititus, queixadas, tatus, jabotis, quatis, tanajuras, larvas de madeira, nhambus, patos

selvagens, marrecos, jacus, araras, papagaios e pescavam diferentes espécies de peixes.

A coleta de frutas era mais exercida pelas mulheres, que iam para o interior das matas

nos períodos de seca. Havia uma grande diversidade de frutas e as mais importantes,

segundo Douglas Krenak, eram: mamão, jenipapo, caratinga, jatobá, imbu e pitomba.

Além da coleta de alimentos havia também a coleta de materiais para a produção

de artesanato, armas, enfeites, tintas, etc., e também a coleta de plantas medicinais para

a cura, já que esses indígenas utilizavam a sua medicina tradicional. As mais usadas

pelos pajés eram: urtiga, arnica, fedegoso, sementes de pau-ferro e cansanção.

Apesar das subdivisões dos Borun, todos os grupos falavam a mesma língua e

tinham a mesma visão de religião e crenças. Eles caminhavam por diversas regiões, pelo

espírito guerreiro, para se proteger de possíveis invasões realizadas por outros grupos.

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Os Borun possuíam um forte apreço pela religiosidade e pelo mundo dos espíritos. Os

rituais eram realizados pelas pessoas mais velhas ou pelos pajés. Segundo Douglas:

“através de seus cantos, concentrações e visões, teciam uma forte relação entre o mundo

em que viviam e o dos "Espíritos Marét", anjos Krenak e "Gyák", Deus força superior.

Também relacionavam-se com a natureza através da religião”. Eles acreditavam que

poderiam visitar o mundo dos Marét através dos sonhos. Os Marét eram os habitantes

das esferas superiores e os ordenadores dos fenômenos da natureza.

Outras entidades da religião dos Krenak, segundo a Enciclopédia: Povos

Indígenas no Brasil, eram os Tokón, espíritos da Natureza. Esses eram responsáveis

pela escolha dos Xamãs, que seriam seus intermediários na Terra através do contato

pelos rituais. Douglas afirma que os Borun “tinham também o costume de acender

fogueiras e oferecer comidas aos mortos, tudo para que as almas dos mortos não

voltassem e buscassem a alma de algum membro da tribo que estivesse doente, ou,

triste”.

A chegada dos colonizadores portugueses teve grande impacto para os Borun,

ameaçando sua cultura por conta da colonização. Os Borun ficaram muito conhecidos

como Botocudos, termo pejorativo empregado pelos colonos que se referiam aos

enfeites nos lábios que esses índios usavam. Nesse período os Borun guerrearam muito

contra os portugueses e os confrontos já eram conhecidos até na Europa, no início do

século XIX. As batalhas se davam devido a não pacificação dos índios em relação aos

interesses dos brancos, e tiveram como conseqüência muita violência e muitas mortes,

de acordo com Douglas. Segundo o mesmo autor: “Depois de várias tentativas de

redução e imposição cultural aos índios, é declarada a "Guerra Justa" através da Carta

Régia, com o objetivo de desocupar as margens do Rio Doce da presença dos

Botocudos, garantindo a segurança da navegação fluvial que se pretendia implementar e

a liberação do território extrativistas e mercantis”.

Segundo Douglas Krenak, o fim da Guerra Justa se deu por volta de 1823. Nesse

momento, o inspetor das Divisões Militares do Rio Doce teve como objetivo contatar e

pacificar os Borun para que eles se incorporassem na sociedade nacional. Porém, os

colonos não acreditavam nessa proposta e continuaram com as manobras militares.

Todas as missões nesse sentido fracassaram, mas a ocupação do Vale do Rio Doce

aconteceu no início do século XX.

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Depois disso, os Borun Krenak tiveram, com a urbanização, suas terras

invadidas e arrendadas. A partir daí continuaram os conflitos entre os brancos e os

índios, que não se conformavam com as situações que eram impostas.

As disputas sobre a terra dos Krenak estenderam-se a até a década de 1990. Em

1995, a partir de uma ação movida pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), houve a

decisão da retirada dos fazendeiros do território Krenak e, em 1997, eles são

reintegrados ao território. No entanto, segundo Douglas, a maior dificuldade vivida

pelos Krenak é a reestabilização no seu "antigo-novo território. Antigo porque já viviam

nele desde épocas passadas, e novo devido ao estado em que se encontra, totalmente

modificado sem os recursos naturais que existiam e de que precisam os Krenak. As

atividades tradicionais como a caça, pesca e coletas sofreram drásticas alterações.

Segundo depoimentos dos Krenak, a vida religiosa também sofreu modificações, uma

vez que utilizam a natureza como fonte inspiradora para o contato com os espíritos

Marét e Gyák”.

Atualmente, o posto indígena Krenak se localiza no município de Resplendor,

em Minas Gerais. Ele é composto por 45 famílias, uma escola, um posto de saúde e uma

sede da FUNAI. O saneamento básico e a água potável nas casas estão em processo de

instalação. A área educacional dos índios Krenak está baseada na "Educação Escolar

Indígena", um projeto criado pelo Governo do Estado, junto aos povos indígenas de

Minas Gerais.

As principais atividades econômicas dos Krenak são a agricultura, a pecuária, a

pesca e o artesanato.

De acordo com o mesmo autor: “Os Krenak lutam também para receber

indenizações pelos impactos causados pela construção da hidrelétrica de Aimorés, e um

recurso destinado ao parque Sete Salões para indenização dos fazendeiros, que podem

ser destinados aos Krenak por danos morais, pelos problemas causados pelo

empreendimento das empresas Vale do Rio Doce e Cemig” (Krenak, 2005).

3.3- A cultura Pankararu

De acordo com os “Povos Indígenas de Pernambuco”, atualmente a etnia

Pankararu é composta por aproximadamente 5.200 pessoas que vivem em uma área de

8.100 ha. A terra indígena Pankararu foi homologada em 1987 e é situada entre os

municípios de Petrolândia, Itaparica e Tacaratu, no sertão de Pernambuco, às margens

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do Rio São Francisco. O centro da reserva Pankararu é uma localidade que se chama

Brejo dos Padres. Esse local é um vale que possui várias fontes e terras férteis.

Devido ao contato com os missionários, os índios Pankararu possuem muitas

características da religião católica, por exemplo, alguns deles seguem o calendário e as

festas. Porém, muitos elementos da cultura tradicional foram mantidos, como rituais e

danças. É neles que a cultura está melhor representada. Os rituais tradicionais mais

importantes para esses índios, segundo a Fundação Joaquim Nabuco são: “Menino do

Rancho”, “Festa do Umbu” e “Corrida”.

O Toré é o centro do complexo ritual Pankararu. Ele, segundo a Fundação

Joaquim Nabuco, publicada online “é dançado ao ar livre por homens, mulheres e

crianças, de preferência nos fins de semana. O ritmo é marcado pelo som de maracás

feitos de cabaças. Os versos da música são cantados em português, misturados com

expressões do antigo dialeto da tribo”. Outra manifestação cultural importante é a

chamada “dança dos bichos”. Ela consiste em representar os movimentos de animais

como porco, formiga, sapo, cachorro, etc.

A base da economia dos índios Pankararu é a agricultura. Os alimentos mais

importantes da produção são a mandioca, o milho e o feijão. De acordo com a Fundação

Joaquim Nabuco: “Os índios também comercializam a pinha, fruta típica da região, e

têm no artesanato uma fonte de renda complementar. A fabricação de farinha de

mandioca, nas casas de farinha é, ainda, uma atividade comunitária entre os Pankararu”.

Os primeiros contatos do grupo, de acordo com Povos Indígenas de

Pernambuco, foram estabelecidos com missionários que, no começo do século XVII,

prosseguiram para dentro do sertão da Bahia com o intuito de encontrar mais pessoas e

convertê-las para a religião católica. Foi nessa época que surgiu nessa região a Vila

Tacararu, onde existia um agrupamento de índios Pankararu chamado Cana Brava. Há

indícios que a fundação da aldeia tenha sido em 1802, segundo a Fundação Joaquim

Nabuco.

No início do século XX os Pankararu tiveram grande contato com o Padre

Alfredo Dâmaso, que mais tarde os ajudou em diversas reivindicações fundiárias. Essas

reivindicações deram origem a diversos conflitos pela demarcação de terras entre os

indígenas e os posseiros de terras não-indígenas. No início da década de 40, foi

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demarcada parte da terra em que viviam os Pankararu e, também nessa época, foi

instalado um posto indígena na reserva com o objetivo de se preocupar com a ecologia e

ser a sede do órgão tutelar e a sede política, segundo a Enciclopédia Povos Indígenas de

Pernambuco.

Porém, os conflitos não cessaram. A presença de não-índios na reserva

aumentou a partir de 1979, o que ocasionou grande número de conflitos entre posseiros

e indígenas. De acordo com a Enciclopédia: Povos Indígenas no Brasil, essa rivalidade e

luta por direitos se deu até 2004, quando foi oficializada a posse permanente indígena

de uma nova extensão de terra.

De acordo com a mesma Enciclopédia, muitos Pankararu vieram viver na favela

do Real Parque, na zona sul da cidade de São Paulo e formaram um grupo de

aproximadamente 1.500 pessoas. Esse agrupamento teve origem quando, a partir da

década de 1940, começou um grande deslocamento de trabalhadores do nordeste para a

região sudeste do Brasil.

Hoje, de acordo com a Fundação Joaquim Nabuco, só existem alguns vestígios

do dialeto da tribo, sua língua nativa não sobreviveu. É possível encontra-la apenas em

cantos que acompanham algumas danças.

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4- A Questão Indígena Hoje

4.1- A vida dos índios

Segundo Silva (2004) e Silveira (2001), atualmente as tribos indígenas possuem

culturas muito diferentes entre si. Apresentam costumes, valores, soluções totalmente

distintas umas das outras. Existem índios que vivem isolados ou com muito pouco

contato com os brancos, mantendo firmemente suas tradições. Eles vivem na floresta

amazônica e ainda se defrontam com situações de ataques e fugas, já que massacres

contra índios continuam ocorrendo pelas florestas do Brasil, sem que isso tenha muita

repercussão. Sabe-se que hoje há cerca de 67 tribos vivendo em completo isolamento na

Amazônia. Porém, há outras tribos que têm muito contato com os brancos.

Um exemplo são os índios Kadiwéu. Através desse contato, alguns trabalhos

puderam ser realizados na tribo e, a partir deles, obtivemos informações sobre o seu

modo de vida. De acordo com o trabalho de Silva (2004), os índios Kadiwéu vivem no

Mato Grosso do Sul e se organizam numa sociedade heterogênea dividida em castas: as

dos mais nobres e as dos cativos. Essa sociedade valoriza muito a autonomia das

crianças, mas isso não quer dizer que elas sejam irresponsáveis ou sem limites. Pelo

contrário, as mães dão muita importância à obediência e ao respeito; as crianças mais

velhas ajudam a cuidar das mais novas enquanto os pais trabalham na caça, no

artesanato, etc. Isso fica evidente em algumas falas das índias entrevistadas no trabalho

de Silva (2004). Um dos exemplos é a resposta de uma mãe a quem foi perguntado

sobre quem a ajudava a cuidar das crianças:

- “Ah, os irmãos mais velhos né? Os mais velhos ajudam a cuidar dos mais

novos...” (Silva, 2004, p. 150).

A tribo mora em casas de taquaruçu, cobertas com folhas de palmeira. O idioma

principal é o kadiwéu, mas a maioria dos indivíduos também fala o português. Existem

ainda muitos ritos que funcionam como canalizadores das emoções nessa sociedade.

As principais preocupações das mães com seus filhos estão relacionadas à saúde,

ao futuro e aos estudos. Alguns exemplos são observados nas entrevistas realizadas no

trabalho de Silva (2004):

- “Ah, eu fico preocupada deles se machucarem, deles ficarem doentes...”

(p.170).

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- “Eu quero que Nino continue estudando, mas não sei como vou fazer porque

aqui só tem até a oitava série e acho que não vai ter mais depois, eu não sei direito...”(p.

138).

- “(..) alegria é ter meus filhos, ver eles estudando...”(p. 139).

- “Ah, eu me preocupo com o estudo deles, quero que eles sejam alguém,

tenham um trabalho, não quero que sejam um qualquer na vida, quero que eles possam

cuidar de mim...”(p. 171).

A educação formal ocorre numa única escola, dirigida pela própria tribo, que

atende desde a pré-escola até o ensino fundamental. O principal problema que eles

enfrentam é o alto nível de faltas e repetência dos alunos. Uma índia entrevistada,

também no mesmo trabalho, diz sobre isso:

- É, tem bastante... porque tem criança que falta muito sabe, é mais o problema

de falta mesmo...” (p. 144).

As aulas são baseadas não só no método tradicional, mas também utilizam temas

e preocupações da tribo. Um conflito vivido por eles é o término do ensino

fundamental, pois a continuidade da educação depende da saída da tribo. A maioria dos

alunos acha essa mudança difícil e quer voltar quando finalizar os estudos. As mães

também se preocupam muito com essa mudança, como observei a partir destes

exemplos:

- “Eu tenho medo, porque sei que lá na cidade tem muitos perigos... e eu não sei,

eu não confio muito nas primas pra deixar ele lá com elas... eu não sei o que fazer (...)

porque eu não quero que ele pare de estudar... mesmo que ele fique longe de mim, eu

sei que um dia ele vai entender que era para o bem dele... eu quero que ele seja alguém

sabe...”(p. 172).

Além da tribo dos índios Kadiwéu também existem outras com as quais os

brancos têm contato. Há tribos em que as crianças ficam mais soltas pelas terras, há

outras que, enquanto as mães trabalham, os filhos pequenos ficam presos por cordas que

evitam sua proximidade com o fogo e a mata fechada, de acordo com o trabalho de

Silveira (2001).

Em relação aos casamentos há muitas diferenças também. Em alguns lugares são

os pais que escolhem os casamentos dos filhos, sem permitir que o assunto seja

questionado, apesar de isso não ser muito bem visto por algumas mulheres. Não adianta

os pretendentes não quererem, é uma imposição rigorosa. Verifica-se a fala de uma

índia do Alto Xingu como exemplo, a partir do trabalho de Silveira (2001):

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-“Tem casamento que rapaz, menina escolhe; tem muito prometida também.

Mas prometida não dá certo não. (Não adianta a menina dizer para e mãe que não quer

casar?), Não adianta. Prometida, se menina não quer tem que fazer na marra. Tem que

casar. Se os pais desistirem, aí eles param; se não desistirem, tem que casar. E lamento

que não vai dá certo, né. Não vai dá certo, e homem falou: ‘Não, não ta dando certo,

porque ela não está gostando de mim’. Aí separa”.(p. 127).

Além disso, no Xingu, apenas os homens podem ter várias mulheres, mas em

outras tribos é o inverso. Existe também o casamento entre parentes próximos.

A questão do sexo é geralmente tratada com naturalidade, inclusive com as

crianças. Já a traição, apesar de freqüente, é algo que não pode ser comentado, (Silveira,

2001).

Muitos povos consideram que o nascimento de gêmeos é algo ruim, já que não é

possível identificar quem é o filho bom e quem é o mau. Com isso, o costume é matar

os dois logo após o nascimento.

-“Não é bom ter dois filhos ao mesmo tempo: os pais ficam com muita

vergonha, as pessoas acham feio. Por isso, gêmeos devem ser enterrados logo após o

nascimento. Seus pais entram em reclusão, como os jovens na puberdade, para que os

outros não os vejam.” (Junqueira, apud Silveira, 2001, p. 129).

Ainda de acordo com o trabalho de Silveira, em algumas tribos filhos

defeituosos e de mães solteiras também não são bem vindos. Outro aspecto interessante

é que os homens, com o nascimento de seus filhos, devem ficar isolados em suas casas

para pensar na nova responsabilidade que têm.

Para a maioria dos índios também a menstruação é um período em que a mulher

tem que ficar totalmente reclusa. Na menarca, a reclusão pode durar de meses a anos. A

partir do trabalho de Silveira (2001) constata-se algumas justificativas para isso,

baseadas em falas dos próprios índios, como esta, que se refere ao período de reclusão

da menina a partir da menarca:

- “É lá que ela aprende e fazer esteira, tecer rede e a executar as tarefas

femininas no preparo de alimentos (...) Ao sair, com novo nome, é considerada adulta e

pronta para o casamento”.(p. 125).

Apesar das diferenças entre as tribos, podemos observar alguns problemas

comuns entre todas. Atualmente, os problemas vividos pelos índios são muitos, e

quando os analisamos, podemos perceber que nossos atos, pelo menos os da sociedade

em geral, continuam indo em direção a ignorá-los, como veremos a seguir.

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4.2- As políticas para os indígenas no Brasil

Atualmente, existem no Brasil órgãos federais destinados a executar políticas

destinadas aos indígenas.

Uma delas é a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) que é o órgão do Governo

Federal que estabelece e executa a política indigenista no Brasil, dando cumprimento ao

que determina a Constituição Brasileira de 1988. Esse órgão foi criado em 1967 em

substituição do "Serviço de Proteção ao Índio" (SPI), este por sua vez criado em 1910.

Compete à FUNAI promover a educação básica aos índios, demarcar, assegurar e

proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimular o desenvolvimento de

estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas. A Fundação tem, ainda, a

responsabilidade de defender as Comunidades Indígenas, de despertar o interesse da

sociedade nacional pelos índios e suas causas, gerir o seu patrimônio e fiscalizar as suas

terras, impedindo as ações predatórias de garimpeiros, posseiros, madeireiros e

quaisquer outras que ocorram dentro de seus limites e que representem um risco à vida e

à preservação desses povos.

Outra é a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), um órgão executivo do

Ministério da Saúde e uma das instituições do Governo Federal responsáveis por

promover a inclusão social por meio de ações de saneamento e pela promoção e

proteção à saúde dos povos indígenas; foi criada em 16 de abril de 1991 e realiza vários

projetos nas tribos indígenas.

Porém, atualmente, constata-se que esses órgãos não vêm atendendo às reais

necessidades dos povos indígenas.

No Colóquio: “Psicologia e Povos Indígenas”, realizado dia 30 de março de

2007, no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, verificou-se que esses projetos

não são suficientes para atender todas as tribos e todas as necessidades dos índios, há

muitos desafios ainda para que isso ocorra. Do colóquio participaram índios, caciques,

presidentes de associações indígenas, líderes de aldeias, psicólogos, pedagogos e

funcionários da FUNASA; todos expuseram seus problemas e desafios para lidar com

as necessidades e questões dos índios. Os maiores problemas que apareceram foram:

falta de projetos específicos para cada tribo; precariedade da saúde; falta de saneamento

e de demarcação de terras (que mesmo quando são garantidas pelo Estado não estão

livres de conflitos e de riscos de perdas, pois sempre há o objetivo de lucro capitalista);

preconceito que sofrem quando vêm para as cidades (que apareceram inclusive nas falas

dos próprios índios no Colóquio). Além disso, o Brasil já conta com o suicídio de

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alguns grupos indígenas, muitas vezes praticados em ritos coletivos, que demonstra

sofrimento, perda drástica de identidade e conflitos.

Outra questão que é frequentemente apresentada, tanto nas dissertações de

mestrado de Silveira (2001), e de Silva (2004), quanto no Colóquio citado, é a falta de

auxílio para os índios que vêm estudar nas cidades. Eles não têm apoio, não têm

oportunidades e, assim, não conseguem concluir seus estudos e contribuir com

conhecimentos para a sua aldeia e para a sociedade brasileira na qual eles estão

precariamente incluídos. A questão da educação é uma das mais emergentes e uma das

que mais preocupa a população indígena. Nas aldeias, as escolas têm que ensinar tanto a

sua língua de origem quanto o português, para que as crianças possam se comunicar e

conviver fora da aldeia. Verifica-se esse dado ao ler o trabalho de Silva (2004) por meio

da fala de alguns índios, por exemplo:

-“Ah, aqui a gente só fala com eles no idioma, aí eles aprendem o português na

escola” (p. 140).

Os índios dão muita importância para a educação, como evidenciam diversos

depoimentos de várias índias, identificados no trabalho de Silva (2004). Contudo,

quando chegam às cidades não vêem nenhuma perspectiva, nenhuma chance de

continuar os estudos, já que eles quase não recebem apoio de parcerias com cursinhos e

universidades, aspecto considerado importante para um índio presente no Colóquio:

“Psicologia e Povos Indígenas”.

As notícias de jornais também evidenciam os problemas que os índios passam

devido à grave situação de algumas aldeias. Um trecho de uma matéria retirada da

Folha online exemplifica algumas dificuldades vividas por eles:

Ao menos 80 crianças indígenas das etnias guarani e caiuá aguardam vagas para internação no Centro de Recuperação de Crianças Desnutridas, conhecido como Centrinho, em Dourados (MS). Outras 38 crianças --a capacidade máxima de atendimento -- de até três anos já estão internadas. O Centrinho é administrado pelo hospital da Missão Evangélica Caiuá, na entrada de reserva indígena de Dourados. No hospital, o menino Rogério Vilhalva, de um ano e dois meses, que morreu no domingo passado, foi internado no último dia 6 com um quadro de desnutrição moderada. Segundo o médico, há também crianças em famílias com problemas com alcoolismo e conflitos culturais. (Folha online 15/03/2007).

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Francisco Matshua, presidente da Associação dos Índios Kadiwéu que se

pronunciou no Colóquio, afirmou que a FUNAI está se distanciando dos problemas

indígenas, não tendo mais condições de ajudá-los; todos os projetos novos que

aparecem ficam pela metade, não resolvendo, portanto, nenhum problema.

Percebo então o quão importante é a realização de projetos específicos para os

índios já que, apesar de eles pertencerem à sociedade brasileira, eles necessitam,

algumas vezes, de especificidades que não são oferecidas pelos serviços e políticas

públicas gerais. Isso porque eles possuem muitas peculiaridades como, por exemplo, o

fato de sua primeira língua não ser o português. Outro exemplo é que suas terras não

têm tanta infra-estrutura como vemos (na verdade, quando vemos) nas cidades. Além

dessas características, existem dificuldades que os indivíduos têm passado que se

refletem em problemas tais como o alcoolismo, o suicídio, a gravidez precoce, a

prostituição, a depressão, etc. Outro problema é o alto número de mortes de crianças por

subnutrição, como vem sendo observado em Dourados. No trecho abaixo retirado do

site da Tribuna da Imprensa online, em agosto de 2007, pode-se constatar a gravidade

da situação:

Os indígenas vivem nas aldeias Bororó e Jaguapiru, situadas dentro da Reserva Indígena de Dourados. Um dos líderes da invasão, o cacique Lucas Paiva, explicou que a tribo está passando fome, porque acreditou no programa que fornece cestas básicas para os índios da reserva. Ele afirma que as crianças indígenas das duas aldeias estão "chupando cana para enganar a fome". Disse também que há três meses as cestas de alimentos não são entregues nas aldeias.

Essas questões objetivas acabam constituindo a dimensão subjetiva de cada

indivíduo, como eles se sentem e agem. Elas podem demonstrar também a dimensão

subjetiva do grupo que está passando por dificuldades, que muitas vezes podem ser da

mesma natureza para todos os indivíduos do grupo que por sua vez podem buscar saídas

semelhantes. Seria importante pensarmos na complexidade dessas questões para

podermos pensar em projetos efetivos para melhorar as condições das diferentes

comunidades.

Todavia, existem hoje alguns planos externos aos órgãos federais destinados a

executar projetos a população indígena, que têm trazido bons resultados, como, por

exemplo, o Projeto Pindorama, da PUC-SP, do qual tratarei mais a frente no item 4.4.

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4.3- Educação indígena

É importante pensarmos na educação indígena no Brasil, já que existe uma

diferenciação entre essa e a educação tradicional. Com a Constituição Brasileira de

1988, assegurou-se aos índios o direito de eles manterem sua cultura, seus valores,

tradição e língua. De acordo com Grupioni (2006, p.56): “Ao reconhecer que os índios

poderiam utilizar suas línguas maternas e seus processos de aprendizagem na educação

escolar, instituiu-se a possibilidade da escola indígena contribuir para o processo de

afirmação étnica e cultural desses povos, deixando de ser um dos principais veículos de

assimilação e integração”.

Segundo Grupioni, após esse reconhecimento, as outras leis que se seguiram em

relação à educação no Brasil, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de

1996 e o Plano Nacional de Educação vêm defendendo uma educação diferenciada aos

indígenas valorizando suas tradições e seus saberes milenares e a formação de

professores indígenas.

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, educação deve

abranger os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência

humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e

organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. A mesma Lei, em dois

artigos explicita a peculiaridade dessa educação:

TÍTULO VIII

Das Disposições Gerais

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais

de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de

ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingüe e intercultural aos povos

indígenas, com os seguintes objetivos:

I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas

memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas

línguas e ciências;

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II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações,

conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades

indígenas e não-índias.

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no

provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo

programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.

§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de

Educação, terão os seguintes objetivos:

I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade

indígena;

II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à

educação escolar nas comunidades indígenas;

III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos

culturais correspondentes às respectivas comunidades;

IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e

diferenciado.

Isso demonstra que, ao pensarmos em educação indígena, é preciso levar em

conta diversos aspectos para atendermos às peculiaridades de cada cultura. Quando

pensamos em educação para os indígenas também devemos pensar na questão da

inclusão.

4.4- O “Projeto Pindorama”

O Projeto Pindorama é um projeto que existe na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo. Ele foi criado no ano 2000, a partir de um sonho de uma

professora que se preocupava com a questão indígena. Nesses aproximadamente sete

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anos de atuação, vem incluindo os alunos indígenas na universidade, por meio de

concessão de bolsas de estudo após a aprovação no vestibular. Além disso, tem como

objetivo a diminuição da distância existente entre as populações indígenas e os bens

sociais e o fortalecimento da identidade étnica e da cultura dessas populações. Ele

garante ao estudante indígena bolsa integral e apoio psicopedagógico.

Atualmente, existem sessenta e sete estudantes indígenas na PUC, de treze etnias

diferentes. Todo último sábado do mês é realizado um encontro para discussão e troca

de saberes, entre eles e a coordenação do Projeto.

Ao assistir um encontro sobre o projeto realizado no dia trinta de agosto de

2007, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, durante a Semana de

Integração da Faculdade de Psicologia, pude aprofundar meus conhecimentos sobre

educação indígena nas cidades.

Nessa ocasião observei, a partir da fala de alunas indígenas, que o estudo é

muito importante em suas vidas, e que com ele elas buscam condições melhores de

vida. Fica claro que elas passaram por diversas dificuldades na cidade grande que

variam desde preconceito, medo da repressão policial (já que os rituais indígenas não

eram aceitos durante a ditadura), dificuldade financeira, impossibilidade de cursar uma

faculdade, entre outras.

Com a participação no projeto elas puderam fazer a faculdade e aprender muito

mais do que os conceitos; elas aprenderam a aceitar e gostar do diferente e ser

respeitadas pelos outros também.

Cícera, uma das alunas, relata que nas escolas da tribo Pankararu os índios

aprendem aspectos da cultura deles e que da educação tradicional dos brancos eles

aprendem apenas português e matemática, que ajudam a fazer comércio com os brancos.

Ela disse que sua mudança para São Paulo foi muito difícil e que ela enfrentou diversos

obstáculos. Cícera contou que São Paulo é uma das cidades brasileiras que mais tem

população indígena, porém o governo não reconhece os indígenas nas cidades, pois se

eles saem das tribos já não são mais considerados índios. Ela afirma que atualmente não

tem mais como sobreviver morando somente na aldeia, é preciso trabalhar e estudar na

cidade.

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4.5- A questão da inclusão

A partir do tópico acima explicita-se a importância da inclusão real dos

indígenas nas cidades e na convivência com os brancos para que esse caminho não seja

tão sofrido e tão repleto de injustiças.

Nós, que vivemos na cidade, devemos pensar em como incluí-los quando

necessário, já que uma das grandes dificuldades para os índios é fazer esse intercâmbio,

essa transculturação que ocorre da aldeia para a cidade. A questão da exclusão não

começou desde 1500 (só aparecendo depois), pois a escravidão não comportava essa

possibilidade; o escravo índio não era pessoa, era coisa. Na visão de um dos índios que

se posicionou no Colóquio: “Psicologia e Povos Indígenas”, realizado dia 30 de março

de 2007, no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, o país não está preparado

para receber o índio e ainda tem uma visão antiquada dos mesmos, como se eles fossem

seres primitivos, que andassem seminus com uma pena na cabeça e não nos

entendessem. Essa visão dificulta a inclusão dos mesmos no sistema capitalista em que

vivemos e ele ainda acrescenta que se eles não conseguirem ter essa educação de

qualidade (que vêm buscar aqui) eles serão engolidos pelo sistema. A meu ver, temos,

portanto, que adaptar nossos padrões, para que possamos recebê-los de maneira mais

consciente, justa e digna.

Porém, essa questão da inclusão também se mostra complexa. Como pensarmos

na inclusão das minorias de uma maneira adequada? Como juntar índios e brancos com

culturas tão diferentes num mesmo espaço, sem que isso prejudique a minoria?

Não é fácil pensarmos nessa integração sem estarmos preparados para ela. Não

devemos inserir indivíduos junto com outros sem pensarmos nisso, sem contarmos com

a participação de todos, com o diálogo, com a abertura. Colocar grupos com

necessidades diferentes no mesmo local só para falar que eles estão juntos, mas sem

pensar nessas diferenças, nas demandas, não adiantaria nada, a menos que nossos

conceitos mudassem e nossos preconceitos terminassem. Se isso não acontecer, a

pretensa inclusão servirá mais como exclusão do que como inclusão, afastando as duas

culturas ainda mais.

Melhor do que falar em exclusão, que de acordo com Martins (1997) é um termo

equivocado, porque ao invés de expressar uma prática, ele acaba induzindo a uma

prática, devemos falar em contradições, vítimas de processos sociais, políticos,

econômicos excludentes, ou inclusão marginal, precária, instável. Quando falamos de

exclusão estamos nos referindo àquilo que constitui o conjunto das dificuldades, dos

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modos e dos problemas de uma inclusão precária, segundo Martins (1997). E é com

essa inclusão precária que não devemos nos satisfazer.

É fundamental que trabalhemos para que a interação seja tranqüila para os

índios, para que eles possam usufruir da educação a que todos nós temos direito e, quem

sabe, até nos unir e aprender mais com nosso passado, que no cotidiano fica tão

distante. Esse é um grande desafio, porém temos que nos comprometer para que

possamos ter uma sociedade mais justa e unida.

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5- Fundamentos da Psicologia Sócio-Histórica

A Psicologia Sócio-Histórica é uma vertente teórica que surge baseada na

Psicologia Histórico-Cultural de Vygotsky do século XX que, segundo Rosa (1999),

teve como objetivo apresentar uma nova visão da Psicologia a partir do referencial

marxista.

Ela se apresenta como uma possibilidade de superar as visões dicotômicas sobre

fenômeno psicológico que eram pensadas até o século XIX. Essas visões compreendiam

o homem de diferentes maneiras, mas sempre escolhiam um pólo para se basear,

considerando que um fenômeno ou é natural ou social; ou interno ou externo; que o

homem ou é autônomo ou determinado. A proposta da Psicologia Sócio-Histórica vem

como uma visão crítica a essas posições, ao considerá-las reducionistas. De acordo com

Rosa (1999), ela rompe com a dicotomia indivíduo/sociedade, mundo subjetivo/mundo

objetivo e compreende que a subjetividade é singular, mas também é, ao mesmo tempo,

social e histórica.

Essa nova visão incentiva a produção de uma psicologia dialética. Essa se

fundamenta no marxismo e adota o materialismo histórico e dialético como filosofia,

teoria e método. Essa concepção defende que “a base de toda a sociedade e de sua

formação, de seus valores e idéias e até mesmo de suas transformações está nas

condições materiais, na maneira como os homens se organizam nesta sociedade para

garantir sua sobrevivência, nas relações concretas aí vividas.” (Rosa, 1999, p.31).

Ela considera o homem como um ser ativo, social e histórico e pensa “a

sociedade, como produção histórica dos homens que, através do trabalho, produzem sua

vida material. As idéias, como representações da realidade material. A realidade

material, como fundada em contradições que se expressam nas idéias. E a história, como

movimento contraditório constante do fazer humano, no qual, a partir da base material,

deve ser compreendida toda produção de idéias, incluindo a ciência e a psicologia”,

(Bock, 2001, p.17).

Para a Psicologia Sócio-Histórica o fenômeno psicológico se desenvolve ao

longo do tempo, não pertence à natureza humana, ou seja, não é pré-existente ao homem

e reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os homens. Ao falar

desse fenômeno é obrigatório pensarmos a sociedade. Portanto, para compreendermos o

interno é preciso compreender o externo. Cabe acrescentar que esses não são aspectos

descolados, fazem parte de um mesmo movimento.

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Deste modo, o fenômeno psicológico deve ser pensado como: “construção no

nível individual do mundo simbólico que é social. O fenômeno deve ser visto como

subjetividade, concebida como algo que se constitui na relação com o mundo material e

social, mundo este que só existe pela atividade humana. Subjetividade e objetividade se

constituem uma à outra sem se confundir”, (Bock, 2001, p.22).

A crítica da Psicologia Sócio-Histórica se baseia no entendimento de que a

realidade social, econômica e cultural não são aspectos externos ao homem. A

Psicologia então, para entender o mundo psicológico de um indivíduo, precisa

considerar sua realidade social obrigatoriamente, mas isso não significa negar a

singularidade e a subjetividade.

Além dessa, existe uma outra crítica importante feita pela Psicologia Sócio-

Histórica, em oposição às outras linhas teóricas. Esse novo olhar não naturaliza o social.

Essa naturalização que explica a realidade como dada, universal, que não pode ser

diferente, acabava indo ao encontro dos interesses dos grupos dominantes. Nesse

sentido, esta abordagem não naturaliza a normalidade, a desigualdade e as justificativas

para as desigualdades.

Novamente citando Bock (2001, p.30): “a posição crítica da Psicologia Sócio-

Histórica, que entende o desenvolvimento do homem e de seu mundo psicológico como

uma conquista da sociedade humana, permite denunciar esse trabalho de ‘ocultamento’

das condições de vida nos discursos da Psicologia”.

Outra crítica da Psicologia Sócio-Histórica é em relação à suposta neutralidade

do psicólogo. Ela afirma que o objetivo desse profissional é contribuir para a construção

de projetos de vida, direcionados para finalidades que interessem ao sujeito e à

comunidade. Ele é posicionado, já que tem como objetivo buscar o interesse do sujeito e

do coletivo, visando melhores condições sociais, apresentando um compromisso

político. O trabalho do psicólogo é, portanto, intencionado e direcionado, apoiado em

uma postura ética.

Esta teoria supera também a visão positivista que contribuiu para construir uma

Psicologia que entendeu o fenômeno psicológico como algo desligado das tramas

sociais. A Psicologia Sócio-Histórica se opõe à visão liberal de homem, já que aquela

não acredita que há um homem que se realize individualmente. O que existem, na

verdade, são homens concretos, determinados pela realidade social e histórica e, ao

mesmo tempo, eles determinam essa realidade coletivamente.

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Para a Psicologia Sócio-Histórica existem categorias que se apresentam como

aspectos do fenômeno psicológico. Consciência e atividade são duas categorias que nos

permitem nomear a relação do homem com o mundo.

A consciência é considerada um sistema integrado, determinado pelas condições

sociais e históricas, que, num processo de conversão, se transformam em produções

simbólicas singulares. Ela não é somente uma atividade cognitiva e intelectual, mas

possui uma dimensão emocional. A atividade do sujeito contém a possibilidade do

novo, da criação.

Como já foi dito, o homem atua sobre a sociedade para realizar suas

necessidades e utiliza-se de instrumentos para isso. Segundo Aguiar (2001), a

linguagem é um instrumento muito importante para a Psicologia Sócio-Histórica, já que

através dela, o homem significa a sua atividade e realiza seu contato com o mundo

externo e seu contato com si próprio, com a sua consciência.

Ela é o instrumento utilizado nas relações entre os homens, transformando

diretamente as subjetividades envolvidas. A linguagem é constituída social e

historicamente e é fundamental no processo de constituição do sujeito. Além disso,

apropriar-se dela permite ao homem ter acesso às produções realizadas ao longo da

história. E é através dela que podemos compreender e apreender a consciência dos

indivíduos, de acordo com Rosa (1999).

É pela palavra que o homem opera o pensamento e o sentimento. Eles estão

ligados e não podem ser vistos separadamente, pois há uma mediação entre eles. De

acordo com Vygotsky, apud Rosa (1999, p. 35) “A relação entre o pensamento e a

palavra é um processo vivo; o pensamento nasce através das palavras. Uma palavra

vazia de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento despido de palavras

permanece uma sombra”. A palavra possui uma dimensão afetiva, o pensamento e a

linguagem são emocionados. Ela traz consigo afetos, motivos e necessidades históricas

humanas. A palavra é, portanto, a arena onde se confrontam valores sociais

contraditórios, conflitos, relações de dominação, etc.

Assim, podemos dizer que “as significações construídas pelo sujeito

correspondem à maneira como este é capaz de expressar e codificar no momento as

vivências emocionais e psicológicas que se processam em sua subjetividade. Há muitas

vivências e experiências que não são significadas em sua totalidade pelo indivíduo, de

tal modo que o acesso e a compreensão das mesmas somente é possível através de um

esforço analítico, que busque os sentidos mais amplos e complexos contidos em suas

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significações, ou seja, os desejos, necessidades e emoções envolvidas” (Rosa,1999,

p.36).

Ainda de acordo com a mesma autora, o sentido subjetivo, portanto, se constitui

na relação dialética entre interno e externo, isto é, nas relações vivenciadas pelo

indivíduo e no modo como ele constitui seu plano subjetivo dessas experiências nesse

processo, carregado de significado, emoção, pensamento, necessidades. Assim, ele

transforma o que é social em psicológico, vivencia o mundo externo à sua maneira,

construindo sua personalidade.

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6- Objetivo e Relevância da Pesquisa

Os objetivos da minha pesquisa foram: 1- investigar as expectativas dos

indígenas em relação à educação e 2- descobrir quais as dificuldades enfrentadas por

esta população em relação ao seu processo de formação acadêmica.

Penso que trabalhar com a questão da educação indígena é algo muito

importante, já que os índios sempre referem uma grande preocupação em terminar seus

estudos. Muitas vezes não conseguem por diversos motivos, por exemplo, por terem

dificuldades em sair da aldeia de origem e vir para as cidades grandes, estando nessas

precariamente incluídos; não receberem incentivo e apoio como parcerias com

cursinhos e universidades, entre outros.

Considero que esse assunto traz outras temáticas fundamentais para pensarmos

na atualidade, tais como: real inclusão do indígena no Brasil, respeito às tradições

indígenas, oportunidades de ensino para todos. A educação para os indígenas

possibilitaria trocas de conhecimentos muito interessantes e fundamentais para que os

brancos possam compreender os índios e o contrário também. Com a oportunidade de

ensino os índios poderiam, por exemplo, levar diversos conhecimentos às suas aldeias e

investir nelas para buscar uma melhor qualidade de vida para a sua comunidade. Os

brancos, por sua vez, teriam a oportunidade de observar que outros modos de vida são

possíveis, de rever valores da sociedade em que vivemos.

Além disso, acredito que é fundamental que o psicólogo se implique com

questões sociais na sociedade ao qual faz parte. O trabalho do psicólogo, de acordo com

a Psicologia Sócio-Histórica, é intencionado e comprometido com o objetivo de buscar

melhores condições sociais para todos. Penso que esse profissional tem muito a

contribuir com a comunidade indígena que sofre diversas dificuldades no Brasil, a partir

da tentativa de compreender esses sujeitos e suas dificuldades, visando uma melhor

condição social e sempre respeitando sua cultura de origem.

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7- Metodologia

7.1 Sujeitos

Optei por realizar entrevistas com os índios que fazem parte do Projeto

Pindorama da PUC SP, pois acreditava que eles tinham muito a dizer sobre as

expectativas e as dificuldades de suas vidas.

No dia 27 de outubro de 2007, participei do encontro do Projeto Pindorama na

PUC e fui autorizada pela coordenação a fazer a pesquisa com os alunos do grupo.

Freqüentei alguns encontros abertos desse grupo, que ocorrem todo último

sábado do mês, e convidei quatro alunos que quiseram falar de suas trajetórias, pois

avaliei ser esse um número adequado para que pudesse obter todas as informações

necessárias para a realização do trabalho. Além disso, considerei importante que eles

assinassem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para que eu pudesse

utilizar seus depoimentos neste trabalho.

7.2 Instrumento e procedimento de coleta de dados

Foi utilizada a técnica de entrevista semi-dirigida com cada sujeito para uma

pesquisa qualitativa. Esse tipo de entrevista me auxiliou, pois o objetivo era o estudo

dos significados subjetivos dos sujeitos, que podem incluir fatos, opiniões, sentimentos,

planos de ação, condutas atuais ou do passado, etc.

As entrevistas foram realizadas face a face para que se criasse, além de uma

interação social, uma situação de confiabilidade do entrevistado em relação ao

entrevistador, o que é muito importante para que se obtenha um clima confortável e

assim, os dados da pesquisa (Szymansnki e cols. 2002).

Esses encontros foram realizados na PUC, por ser um local familiar a todos, num

espaço calmo e sem interrupções.

Durante o contato inicial com os entrevistados houve uma apresentação formal

da pesquisa e do entrevistador, e também foram feitos os combinados em relação à

gravação das entrevistas.

Tomando como base as orientações a respeito de entrevistas qualitativas

contidas no trabalho de Szymansnki e cols. (2002), as entrevistas iniciaram-se por um

período de aquecimento, que consistiu em uma apresentação mais pessoal do

entrevistador e na obtenção de dados necessários a respeito dos participantes. Nesse

momento me apresentei, contei o que eu faço e falei de como surgiu a idéia do trabalho.

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Também foi importante explicar como seria o transcorrer da entrevista e o que seria

feito depois. Após esse primeiro momento, foi essencial colocar para o entrevistado

uma questão desencadeadora como ponto de partida para o discurso. Considerei

importante também fazer questões de esclarecimento, de aprofundamento e

focalizadoras, para que o conteúdo da fala pudesse ser bem compreendido e que o

objetivo fosse completamente alcançado, ou seja, que o tema da pesquisa fosse

satisfatoriamente contemplado, segundo Szymansnki e cols. (2002).

Trago algumas referências de tópicos que abordei para a condução da entrevista,

levando em conta ser uma entrevista semi-dirigida e seu encaminhamento dependeu

também da trajetória de vida de cada sujeito:

Trajetória de vida:

� onde nasceu

� como viveu

� se teve contato com a tribo de origem

� se pretendia entrar em contato com a tribo de origem

� o que sabe da sua cultura de origem

Se nasceu na tribo:

� como era a vida na tribo

� relações interpessoais

� cotidiano

� valores

Como era a escola na tribo:

� relações professor/aluno

� conteúdos abordados

� forma de avaliação

Quais eram os planos e as expectativas de vir para a cidade estudar ou vir para

a PUC SP estudar:

� sonhos

� medos

� objetivos

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� razões

Como foi a adaptação:

� mudança de cultura

� se houve perda da identidade

� relações com as pessoas

� cotidiano

� dificuldades

Sobre a universidade:

� que curso faz

� o que vai fazer com o que aprende na universidade

� se há conflito com a educação que vem da cultura indígena de origem e

com a trazida pela universidade

� se sofre dificuldades na universidade

Sobre o futuro:

� se pretendem preservar sua cultura de origem

� o que pensam da transculturação

Esta pesquisa não contou com nenhum tipo de financiamento e foi aprovada pelo

Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP.

Foi solicitada permissão à coordenadora do Projeto Pindorama, por escrito, para

entrar em contato com os participantes, e foi entregue um Termo de Compromisso do

Pesquisador, conforme modelo apresentado no Anexo 1.

Após esclarecer os sujeitos a respeito dos objetivos da pesquisa foi apresentado

o Termo de Compromisso do Pesquisador (Anexo 1) e solicitado um Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), por escrito, por meio do formulário

apresentado no Anexo 2.

7.3 Registro dos dados

As entrevistas foram gravadas em áudio.

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7.4- Procedimento de análise dos dados

Considerei os pressupostos da Psicologia Sócio-Histórica para inspirar a minha

pesquisa. Essa concepção, que também foi uma referência para conduzir a minha

análise, vê o homem em uma relação dialética com o social e a história. “Um homem

que ao mesmo tempo, é único, singular e histórico, um homem que se constitui através

de uma relação de exclusão e inclusão, ou seja, ao mesmo tempo que se distingue da

realidade social, não se dilui nela, uma vez que são diferentes” (Aguiar, 2001, p. 129).

Essa complexidade deve ser contemplada na pesquisa qualitativa com sujeitos. O

seu objetivo é apreender aspectos da subjetividade do indivíduo, ultrapassando a sua

aparência e indo em busca, a partir da fala do sujeito, do processo, das determinações,

da gênese. O pesquisador, a partir do seu esforço analítico, deve ir além das aparências e

procurar saber quais as determinações (históricas e sociais), que se configuram, no

plano do indivíduo, em motivações, necessidades, interesses, para chegar ao sentido

atribuído/constituído pelo sujeito, segundo Aguiar (2001).

A pesquisa, portanto, deve explicar a realidade e ser um produtor de

conhecimento, numa lógica construtiva/interpretativa. De acordo com Rosa (1999,

p.40): “A produção do conhecimento deve, pois, a partir do real, buscar as leis de

transformação do fenômeno com a totalidade, reinserindo-o, finalmente, na realidade”.

Assim, conseguiremos chegar à essência, que consiste em uma verdade em relação ao

real, verdade esta que é relativa ao momento histórico que se encontra. Conhecer a

essência então, quer dizer conhecer a totalidade de determinações materiais do

fenômeno implicado e seu movimento de transformação e contradição.

Rosa (1999) acrescenta que a Psicologia Sócio-Histórica, portanto, pensa em um

homem que é social e que a partir de sua vida constrói sua subjetividade, sua

singularidade que se relaciona com sua história e seu contexto social. É esta dimensão

subjetiva que queremos buscar na produção de conhecimento, compreendendo seus

sentidos e considerando sua história.

Para realizar esse percurso, o instrumento mediador do processo de constituição

subjetiva é a linguagem. A Psicologia Sócio-Histórica considera que a fala do sujeito

expressa os significados de suas vivências na relação indivíduo – sociedade. “Ela é

capaz de revelar não somente as significações sociais oferecidas ao sujeito, como

também a forma como estas são articuladas em sua história de vida e em sua

configuração singular”, segundo Rosa (1999, p. 42).

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Cabe ao pesquisador fazer um esforço reflexivo para ir além da aparência do

que foi expressado pelo sujeito e buscar uma compreensão profunda do processo de

construção dos sentidos subjetivos. Para isso, é importante organizar essas falas e

pensar profundamente nas determinações dos conteúdos que apareceram e no contexto

que o indivíduo está inserido naquele momento.

Tendo os dados coletados a partir de entrevistas semi-dirigidas, como já foi

colocado anteriormente, foi fundamental uma análise que consistiu em apreender o

sentido do discurso e o processo de produção desse sentido, sem criar explicações

descoladas da realidade e do momento histórico que estamos nos referindo.

Então, foi importante a organização dos dados em “núcleos de significado do

discurso”, que dizem respeito aos conteúdos centrais apresentados pelo sujeito, sendo

esses os que mais motivam, geram emoções e envolvimento. No meu trabalho pude

fazer isso a partir de várias leituras dos discursos dos entrevistados. Com isso,

identifiquei temas comuns e considerei assuntos importantes através da ênfase que foi

dada para cada questão. Assim, pude levantar algumas hipóteses e sínteses sobre o

sentido do discurso de cada um dos entrevistados e sobre um sentido mais amplo:

aquele que se refere ao grupo social que esses sujeitos pertencem. Com isto, tentei ir

além da mera descrição daquilo que havia nas falas dos sujeitos.

Para finalizar, cabe ressaltar que essa é uma análise de pesquisa qualitativa e que

a generalização dos dados para populações semelhantes não é possível. De acordo com

Rosa (1999, p.45): “A validade do conhecimento produzido está, portanto, na

contribuição em termos de uma compreensão consistente a respeito do que seria o ser

humano, da maneira como se constitui sua subjetividade, dos processos envolvidos em

suas formas de sentir, pensar e agir. Tal compreensão é fundamental para que se possa

observar e entender os diversos processos e situações humanas”.

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8- Resultados

Para compreender o sentido que esses quatro jovens indígenas atribuem a cursar

uma faculdade na PUC-SP, suas expectativas e dificuldades, é necessário pensarmos na

complexidade do processo de apreensão de significados. Para entendermos suas

vivências precisamos considerar que esses sujeitos estão inseridos em uma realidade

social e histórica que envolve suas próprias experiências de vida, a história de sua

comunidade, suas contradições, transformações e movimentos.

Apesar de esses jovens serem de etnias diferentes e terem vivido histórias de

vida distintas, foi possível encontrar nos discursos aspectos semelhantes em relação ao

que a vivência na PUC trouxe para eles. Dentre esses aspectos elegi alguns temas que

me auxiliam a atingir os objetivos deste trabalho. Escolhi esses temas considerando a

ênfase que os sujeitos deram no seu discurso, ao falarem de determinadas questões. O

modo como eles trouxeram alguns conteúdos me chamou a atenção e, sem dúvida, a

reflexão sobre esses pontos me auxilia a me aproximar da subjetividade desses jovens, a

entender o significado que está inserido nas falas dos sujeitos. Também ressaltei

assuntos que foram mencionados pelos quatro entrevistados. Na fala dos sujeitos fica

nítida a relevância de algumas questões:

- dificuldade de adaptação ao modo de vida não indígena (contradições)

- preconceito

- apreço pela aldeia de origem

- importância de fazer faculdade para trabalhar posteriormente com a questão

indígena

- apreço pelos costumes e crenças tradicionais

- importância das tradições superando as dos brancos, mesmo quando os

indivíduos são mestiços.

Apresentação dos sujeitos

G. é uma mulher de 29 anos que se apresenta como mestiça. Sua mãe é da etnia

Guarani e seu pai Krenak. Ela faz o curso de Serviço Social na PUC-SP. Nasceu em São

Paulo e com 7 anos foi morar na aldeia Guarani, no Pico do Jaraguá. No início da

entrevista G. parecia estar muito tímida, falava baixo e estava um pouco retraída.

Conforme a entrevista foi acontecendo ela foi ficando um pouco mais à vontade, falou

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bastante sobre o que era solicitado e contou muito sobre sua trajetória de vida com um

tom bem pessoal e sobre a cultura indígena. Durante toda a entrevista seu tom de voz

permaneceu baixo.

Y. é uma mulher de, aproximadamente, 27 anos, nascida em São Paulo. Sua mãe

é descendente de italianos e seu pai é da etnia Krenak. Está terminando o curso de

Ciências Sociais na PUC-SP. Y. desde o início de nossa conversa se mostrou

extrovertida e falante. Aparentemente, ela estava bem à vontade e contribuiu com

muitos elementos sobre sua vida, se colocando bastante. Por fim, percebi que se

envolveu bastante com a entrevista.

P. é um homem de, aproximadamente, 25 anos nascido em São Paulo. Sua mãe é

descendente de espanhóis e seu pai é da etnia Pankararu. Está terminando o curso de

Pedagogia da PUC-SP. P. estava à vontade durante a realização da entrevista. No início

não sabia se podia contribuir muito para a pesquisa, pois, segundo ele, ele não tinha

muito contato com a cultura indígena. Foi o sujeito que menos discorreu sobre sua vida,

falava pouco e suas respostas eram relativamente breves quando comparadas às dos

outros sujeitos.

D. também é nascido em São Paulo, é um homem que tem, aproximadamente 30

anos e cursa Ciências Sociais na PUC-SP. Sua mãe é da etnia Guarani e seu pai não é

indígena. No início da entrevista D. me contou muito sobre a história dos Guarani e

parecia mais fechado. No decorrer da nossa conversa, foi se abrindo e pode falar

bastante sobre sua vida, se envolvendo nitidamente na entrevista.

Unidades de significados

A. APREÇO PELA ALDEIA E PELAS TRADIÇÕES

G. sempre teve contato com sua aldeia situada no Pico do Jaraguá. Nessa

comunidade vive um grupo de indígenas Guarani. Com sete anos ela foi morar na aldeia

e não saiu mais de lá. Ela coloca que gostava e gosta muito de lá e enfatiza isso várias

vezes. Não perdia a oportunidade de falar sobre a cultura indígena; mesmo quando eu

perguntava sobre algo específico, ela costumava se estender e descrever o modo de vida

dos Guarani, contar sobre as tradições, etc.

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Aí a gente brincava muito de pescar, caçar, a gente vivia bastante a nossa

infância como se fosse mesmo, a gente gostava de ficar no meio do mato

mesmo, a gente ficava, como tinha o Pico do Jaraguá, a gente ia bem lá pro

alto. É que os Guarani deixa a criança muito à vontade, né, não prende,

então a gente com sete anos saia assim de manhãzinha e só voltava de

tardezinha.

Ah, eu gostava assim, mais de brincar mesmo, de pescar, caçar, eu lembro

que a gente se virava muito bem sozinhos.

Y. é nascida em São Paulo e sempre morou aqui. Conta que sempre ia para

aldeia Krenak em Minas Gerais e valoriza muito o tempo que ficava lá.

Era ótimo! Quando acabavam as férias a gente nunca queria voltar, ficava

chorando, querendo ficar lá, mas porque é diferente, né? Tem o rio, tem

brincadeiras, fica muito mais livre assim...

Era muito bom, sempre gostei. Não só em Minas, né? Quando eu era

pequena fui bastante para Minas, mas depois fui para outras aldeias

também. Xavante, Kashinauá, fui já pra bastante aldeias. (Y).

Ao longo de sua vida Y. teve bastante contato com diversos grupos indígenas, já

que seu pai é um líder indígena, viajava para aldeias e trazia indígenas para ficar na sua

casa. Ficou claro, pela maneira como ela fala, que vê seu pai como um modelo a ser

seguido. Durante a entrevista ela falou muito dele e foi ele quem passou grande parte da

cultura indígena. Hoje em dia ela inclusive trabalha no IDETI, Instituto das Tradições

Indígenas.

D. também coloca como era bom estar na aldeia. Ao longo de sua vida ele

morou em diversos lugares. Para ele sua mãe aparece como uma figura de referência

muito importante. D. coloca a questão do tempo como uma questão significativa:

Você percebe isso. É como se você chegasse lá e o tempo não passasse, né?

8 horas lá é 24 horas. Aqui não, aqui 8 horas é nada, você ta aqui, ta ali,

acabou, muito corrido. Aqui é uma loucura. E eu acho que eu indo pra lá é

como se eu, como se eu tivesse voltado pro, no túnel do tempo assim, mas

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pra você descansar a mente. Nossa eu consigo voltar de lá assim....

renovado.

A partir do modo com que ele relata sobre o tempo que morava na aldeia, pude

perceber existem sentimentos prazerosos em relação a esse momento:

Foi uma fase tão bacana, sabe?De, que hoje em dia, às vezes eu me sinto

até um pouco diferenciado das pessoas, porque eu já vivi tanta coisa, já.

Um mundo tão diferente, e as pessoas vivem só nesse mundo tão doido,

louco, não sei.

Essas falas demonstram que esses jovens valorizam a vida na aldeia. Alguns

motivos aparecem claramente para isso. O primeiro deles se refere ao modo peculiar de

educação indígena. A forma como os adultos tratam as crianças é muito diferente da

criação contemporânea das grandes cidades. Os indígenas dão liberdade e autonomia

para as crianças, o que não acontece entre os não indígenas fora das aldeias devido a

uma série de fatores, como o excesso de cuidado, o medo de que algo ruim e perigoso

aconteça, entre outros.

Outro ponto que apareceu foi a valorização da calma da comunidade, que dá até

a sensação de o tempo passar mais devagar, diferentemente de São Paulo onde tudo é

corrido, todos têm pressa e são raros os momentos de “não fazer nada”, devido ao modo

de vida capitalista em que o trabalho ocupa a maior parte do tempo da vida dos

indivíduos. O contato com a natureza também é muito apreciado. Nos grandes centros

urbanos, além de não existir uma abundância de natureza, o contato que se faz com ela é

muito diferente.

Além disso, podemos perceber o grande valor que os indígenas dão para as

tradições de suas aldeias, como eles mantêm os costumes e no que eles acreditam. É

interessante notar que mesmo os mestiços dão grande importância para essas tradições.

Assim, podemos dizer que o sentido que permeia essas falas parece muito relacionado

ao orgulho que esses jovens sentem do fato de serem de origem indígena.

D. coloca que está ligado com os costumes Guarani. Em relação à casa de oração

ele afirma:

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Freqüentava, entendeu, aí a gente foi batizado... a gente tem um nome

indígena que vem desde o batismo Guarani, entendeu? Todos, todos os

Guarani têm seu nome e o nome indígena. O nome indígena que é o

principal... que tem um significado. Por exemplo, o meu é Moranshin. O

que significa? Significa que é um moço, né, um moço, um menino que adora

a liberdade, por exemplo, eu tenho asas pra voar. (D).

G. também coloca sobre a relevância das tradições religiosas de sua etnia:

A minha avó gostava de contar histórias, né, em língua Guarani. Que tem

uma coisa que, uma das coisas que, do modo de educar as crianças é

contando histórias, que você aprende através da história, né? Então ela

contava muita coisa. A gente falava a gente não pode fazer isso, isso, isso,

porque a vó contou aquela história e se fizer isso vai acontecer alguma

coisa. Ela falava da gente ficar brincando na chuva, quando tava caindo

raio, aí ela contava uma história que tem um machadinho de ouro que vem

e bate na nossa cabeça, que a gente não podia ficar brincando na chuva

porque se batesse a gente ficava louco, alguma coisa assim. Mas acho que

era uma forma de não deixar a gente ficar brincando na chuva e tomar um

raio na cabeça. E assim, a minha infância foi maravilhosa. (G).

Aí quando veio um pessoal de outra aldeia, aí construiu a casa de reza lá,

aí foi quando eu me aprofundei muito, aí eu me aprofundei mesmo na minha

cultura. Isso me fez ficar mais próxima da minha comunidade. Aí então

depois da... acho que o que mais me fez ficar perto da minha cultura foi a

casa de reza mesmo. Aonde tem as tradições, vida espiritual maior. Pra

gente tem um significado muito forte. (G).

Y. coloca sobre como a medicina tradicional é importante em sua vida, mais

uma vez fala da transmissão da cultura através do seu pai e fala de como se identifica

com as crenças de sua etnia:

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É, desde pequena meu pai sempre, meu pai foi uma pessoa muito forte,.de

pajé e tal, então ele sempre cuidou da gente, da parte assim da medicina

tradicional, não da medicina alopática, ele sempre cuidou da gente com

fumaça, assoprar, ervas, e de rezas, de músicas, então eu nunca...A mãe

dele, meus tios, eles viraram crentes, né, da igreja evangélica e a gente não,

porque meu pai sempre resistiu muito, então, assim, eu nunca me

identifiquei com nenhuma igreja, não consigo entender assim muito, sabe,

não concordo, então eu nunca fui assim na igreja igual a minha família.

E: Mas as tradições que seu pai trouxe da cultura você acredita?

Sim, é. Eu acho que a gente fica doente porque tem alguma coisa que não

está boa na gente, não é só uma bactéria, um micróbio que está em você,

que você toma um remédio e vai resolver. Pode tomar um remédio e vai

resolver na hora, mas tem alguma coisa que está te trazendo esse problema

e aí você tem que tratar isso, né, essa coisa que está te trazendo esse

problema. Se tem uma coisa que não está te fazendo bem, você vai ficar

doente, né.

É interessante notar a diferença de pensamentos da cultura indígena para a

cultura branca ocidental. Y. mostra que os indígenas possuem suas próprias explicações

para o que os brancos consideram que só existe uma verdade absoluta. Apesar de dois

deles serem descendentes de brancos e indígenas, a cultura e a identidade que

prevalecem são as indígenas.

B. ACEITAÇÃO / PRECONCEITO

É importante falar sobre como o indígena é aceito, ou não, nos centros urbanos.

Apareceram alguns relatos com esse conteúdo. A questão do preconceito aparece na fala

de G., que coloca isso como algo sofrido na sua infância:

Mas eu lembro que eu fui pra escola e assim a parte que eu mais lembro da

minha escola, dentro da escola foi do preconceito. É que assim, todo mundo

conhecia: ah, a filha da Eunice, o pessoal, os índios.

E: a escola era tradicional dos brancos?

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É, é assim, é do lado, é perto da aldeia. É porque a aldeia fica num local

que passa rua... Aí eu sei que assim eu sofri muito preconceito. Tinha um

menino, acho que foi mais na quinta série. Eu sempre era quietinha...

sempre com no máximo uma amiguinha, assim, uma ou duas no

máximo,nunca fui de ter muitos amigos... as pessoas não tinham muita

vontade de sentar perto de mim, tinha um menino na quinta série que

sentava perto ficava falando: ah índio é fedido, o índio não toma banho. Eu

lembro que todo dia ele pegava no meu pé. Às vezes eu sentava aqui e ele

ficava assim (gesto). Acho que isso é uma coisa que marcou bastante.

Podemos observar que essa fala tem a ver com uma imagem negativa do índio

construída histórica e socialmente, que a cultura branca ocidental cultivou por séculos.

Esse estereótipo retrata um índio que não toma banho, é selvagem, anda pelado,

incompreensível, nada civilizado e com traços diferentes. Além disso, o índio é

ridicularizado por apresentar costumes e modos de vida distintos.

Na entrevista com Y. esse estereótipo também aparece, porém, ela traz esse tema

com mais tranqüilidade e menos sofrimento. Ela justifica as brincadeiras como coisas

naturais de crianças e não se atém muito a esse assunto.

Ah! Sempre foi um pouco assim eu sempre fui brava e as crianças sempre

me zoavam muito, porque meu pai nessa época estava muito na mídia

também, então não tinha nem como esconder. Tem gente que nem sabe que

você é indígena porque você não tem aquelas características físicas que as

pessoas pensam, então você passa como qualquer pessoa, mas meu pai não,

toda hora estava no jornal, tal, então todo mundo sabia, então na escola as

crianças corriam atrás de mim, fazendo uuuuhhhh, ficavam me zoando...

Ah, eu ficava brava, eu sempre fui assim, brava, eu tinha uma irmã mais

velha na mesma escola, ela sempre me defendia... assim, nada de mais,

assim, coisa de brincadeira de criança mesmo, nada de grave, assim, eu

acho. (Y).

P. é o sujeito que não tinha aparecido até agora na análise já que seu discurso

difere dos demais. Ele aparece agora, pois relata um momento em que sofreu

preconceito. Diferentemente dos relatos a cima, ele passou por essa situação depois de

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adulto e, segundo ele, foi descriminado por um negro. Esse foi um dos momentos da

entrevista que P. se colocou mais. Ele descreveu a cena do preconceito com muitos

elementos, diferentemente do que fez no restante da entrevista.

Me senti assim, como eu posso falar.......... senti o preconceito assim uma

vez, quando eu fui num encontro do movimento indígena com o movimento

negro, acho legal a bandeira deles, mas acho que rola um preconceito.

Nesse encontro eu fui testemunha, testemunha não, aconteceu comigo, num

encontro que teve lá no teatro Óregon. Aí eu cheguei lá no teatro e não

sabia se era lá, não tinha certeza. Aí tinha um senhor negro lá que estava

recepcionando os convidados, aí cheguei pra ele e falei que eu ia participar

do evento que seria no teatro Óregon, aí ele pegou, olhou pra mim e falou

não é aqui não. Mas aqui não é o teatro Óregon, ele falou é, ma me falaram

que é aqui. Ele: não, não é aqui não. Aí a Ana chegou, aí a Ana falou que

era lá sim. Aí a Ana falou: ele é do movimento indígena. Aí ele olhou na

lista, viu meu nome e ficou todo sem graça.

C. FACULDADE PARA TRABALHAR COM QUESTÃO INDÍGENA

Um aspecto muito significativo que aparece nas falas da G., Y. e D. foi a questão

de buscar um curso superior na PUC para se capacitar com o intuito de trabalhar com a

questão indígena. Apenas na entrevista com o P. isso não apareceu como prioridade.

E também um pouco do interesse de querer ajudar a comunidade, porque

eu lembro que eu trabalhei de agente de saneamento e aí a gente vai

pegando um pouquinho de noção da realidade. Aí eu fui aprendendo

algumas coisas como agente de saneamento, aí eu quis me aprimorar mais

pra poder lutar mais. (G).

Antes de entrar na PUC eu sempre quis fazer alguma coisa pela

comunidade, então quando eu comecei a fazer PUC , quando eu fui prestar

vestibular eu pensei eu ah, vou fazer, eu queria fazer Biologia, Biologia

voltada pro meio ambiente, que eu já sabia um monte de coisas que tinham

a ver com saneamento básico e a estrutura da aldeia é bem precária então

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pensei em fazer alguma coisa pra proteção do meio ambiente, como eu já

fui agente de saneamento Biologia seria melhor, mas como Biologia não

tem, então eu procurei Ciências Sociais (G).

G., nesse momento demonstra bastante preocupação com a sua comunidade.

Pude perceber a sua vontade para se dedicar em melhorar as suas condições de vida e as

das pessoas que vivem perto dela.

Em seu discurso, Y. também enfatizou muito o seu desejo de trabalhar com a

questão indígena e ficou claro como isso é algo importante em sua vida, algo que ela

realmente acredita.

Ah, trabalhar, né, eu já trabalhava na área, mas a faculdade me deu assim

uma, um conteúdo assim maior porque eu fazia mais assim a parte de

executar os projetos, não, o primeiro que eu escrevi foi gestão ambiental,

mas eu estava na faculdade então já tinha outras coisas assim que

ajudaram, formação em projetos tudo, então desde que eu comecei a fazer a

faculdade eu já consegui fazer vários projetos. que foram aprovados, aí eu

trabalho nesses projetos.

Eu pretendo continuar trabalhando nisso, né, mas eu quero fazer mestrado

agora, mais voltado pra área ambiental, eu quero trabalhar com essas

questões de demarcação de terra, ou de empreendimentos que vão afetar

terras indígenas, que vão causar um impacto ambienta... (Y).

D. também pareceu muito tocado com essa questão e parece estar bastante

convicto para ajudar sua comunidade em Bauru:

É. Eu quero fazer Antropologia, completamente voltado pra área indígena

mesmo, entendeu?...

Então, a minha vinda pra PUC foi o seguinte: eu, quando eu estive em

Bauru, em 2006, eu comecei a freqüentar os lugares da.., a escola, comecei

a freqüentar, a comunidade mesmo, conhecer aquele ambiente, né, e eu via

que tinha muita coisa que precisava ser feita, até como orientação, um

lugar que tinha muitas doenças, tinha muita, tem famílias lá que têm muito

problema de diabete, tem famílias que têm muito problema de câncer, tem

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muito problema lá. Na área da educação, principalmente, é uma área que

está necessitando de uma visão indígena, porque normalmente tem a visão

do não índio, né e a visão do não índio é....a realidade, porque se você não

entende esse ambiente, como que você vai fazer...isso me chama muito a

atenção, falei caramba eu preciso fazer alguma coisa pra esse pessoal. E a

minha intenção, desde o princípio, né, aí quando eu vim pra São Paulo, em

2005, eu liguei pro Benedito. Aí eu liguei pro Benedito, falei assim, até eu

falo pra todo mundo o Benedito é uma pessoa assim que, liguei pra ele e

falei: olha Benedito, eu estou querendo voltar a estudar, eu fiquei sabendo

que tem um cursinho na PUC e eu queria, eu já tinha pensado até no curso,

já, já... (D).

A partir dessas falas ficam evidentes problemas da comunidade indígena como

um todo. É claro que esses jovens se preocupam com as questões emergentes de suas

comunidades e dão tanto valor a isso que querem se capacitar para melhorar as

condições de vida se seu povo. Vale lembrar que ao longo desses séculos os índios

sofreram diversas privações devido à dominação da cultura branca ocidental que tentou

se sobrepor à cultura indígena, durante a colonização, como destaquei quando fiz um

histórico no item 2 deste trabalho.

D. DIFICULDADE DE ADAPTAÇÃO E/OU CONTRADIÇÕES: VIDA

INDÍGENA X VIDA NÃO INDÍGENA

Notei nas entrevistas alguns pontos semelhantes nas falas dos índios a respeito

de alguma dificuldade de adaptação à vida na cidade grande ou aos valores e

pensamentos dos não indígenas que aqui vivem. Y. coloca que não gosta de viver em

São Paulo. Esse foi um assunto muito forte em sua fala. Ela coloca com bastante

emoção como não concorda com o modo de vida que as pessoas levam em São Paulo e

como ao longo de sua vida tentou encontrar alternativas para isso. Ela já morou algum

tempo no ACRE e na Ilha Grande. Ela diz:

...eu não quero muito sair de casa, minha casa é bem legal, tem mato bom

então eu evito ao máximo ir pro centro, pra cá

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Ah, não gosto, muita gente, muito barulho, as pessoas são muito nervosas,

essa coisa de dirigir, assim, né, na cidade, as pessoas são muito nervosas,

você não pode demorar pra sair no farol, fica todo mundo te xingando e

isso é muito louco, muito ruim.

Esse foi um dos motivos de eu querer largar a Faculdade e ir pro Acre

naquela época. Quando eu estava no Colegial eu também larguei uma vez a

escola e fui morar na Ilha Grande. (Y).

G. conta que para ela foi difícil se adaptar ao cotidiano fora da aldeia. Percebi

como foi sofrido para ela deixar de fazer coisas na aldeia para estar na aula. De acordo

com sua fala, ela lutou muito para não deixar os estudos de lado e vir para a PUC todos

os dias. Ela também afirma que em relação aos conteúdos estudados ela também

discordava de alguns pontos:

Desde quando eu comecei a estudar no colegial, quando eu voltei a estudar,

eu falei: poxa vida, eu to muito fora do meu lugar, fora do meu ambiente.

Porque à noite onde que eu costumava ir era pra casa de reza. 6 horas da

tarde, escurecia, eu ia pra casa de reza, aí eu ficava rezando, rezando,

ficava perto da fogueira, conversando com o pessoal da comunidade, isso

pra mim foi um baque mesmo, foi muito difícil poder estudar e ficar

pensando podia estar na casa de reza, rezando. Aí até hoje me faz muita

falta a casa de reza, nos primeiros dias assim foi terrível mesmo, eu sou

uma pessoa anti social, uma pessoa tímida mesmo, e é um modo de vida

totalmente, visões de mundo totalmente diferente dos Guarani, a gente

aprende umas coisas, o modo de viver, aí você vê umas coisas e fala: nossa

que diferente. É difícil pra entender algumas coisas.

E: E o que você faz com isso?

Ah, eu leio o texto e coloco do jeito que está no texto. Mas assim, é uma

coisa que eu discordo.

...a gente aprende muito sobre a visão de mundo. De como foi a criação do

homem em relação à natureza. E o homem se difere da natureza, porque o

homem tem o poder de interferir dentro da natureza, mas ele não faz parte

da natureza. Natureza é uma coisa, o homem é outra, isso na PUC. E pra

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gente assim, a natureza e nós somos irmãos, porque são filhos de um só

criador. O ..... (?). Ele criou a Terra, ele criou os animais, ele criou tudo

que existe, então nós somos irmãos. E pra gente a natureza tem vida e tudo

que tem vida, precisa ter respeito. Então a gente não pode interferir na

natureza sem pedir permissão pra natureza. Então assim, a gente não olha

o homem separado da natureza. A gente se vê como um só. É uma visão

bem diferente, né?

Teve uma vez que a professora falou assim: então por que os povos

indígenas não lutaram, sei lá. Eu sei que foi uma coisa que incomodou. Ela

mesmo veio me pedir desculpas depois e falou: não foi isso que eu quis

dizer...(G).

Percebemos que não só o modo de vida dos indígenas é diferente do da cidade

grande, mas também muitos valores podem chegar a ser opostos. Devido à

religiosidade, os indígenas seguem horários próprios para realizarem rituais nas aldeias.

Sua relação com a natureza é totalmente distinta da relação na cidade. O contato com a

natureza, para os índios, é muito maior e isso também acaba tendo a ver com o valor

que eles dão a ela. As explicações para os fenômenos do mundo também são outros. O

modo de pensar e as crenças passam por outras fundamentações, totalmente diferentes

das explicações do pensamento branco ocidental dos grandes centros urbanos.

Diante de tudo isso, é possível compreender que exista algumas dificuldades de

adaptação à vida em São Paulo e alguns estrannhamentos em relação ao que é aprendido

na faculdade.

D. coloca que certa vez, durante a aula, o professor falou dos índios de maneira

preconceituosa e ele se posicionou fortemente, o interrompeu e mostrou a sua visão. Ele

diz que algumas vezes ouve coisas que não são verdade sobre os índios, ou que não

concorda e que não tem ninguém para contestar. Com isso, podemos dizer que ele se vê,

algumas vezes, como minoria.

...e até hoje, eu tive algum debate até com professor mesmo, que tinha uma

visão assim, vamos dizer assim muito preconceituosa, professores,

inclusive, que falavam coisas assim que você ouve e não tem ninguém pra te

defender, entendeu?(D).

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E. TRANSCULTURAÇÃO

Em relação ao que eles pensam sobre a transculturação, isto é, sobre a mistura de

duas culturas, no caso a indígena com a branca, pude perceber que D., G. e Y. acreditam

na importância de manter a sua cultura de origem mesmo quando há miscigenação. No

entanto, cada um deles levantou pontos diferentes em relação a esse tema:

Ah, eu penso que foi uma intromissão violenta, sabe, nas culturas indígenas.

Eu penso que eu queira ter sido um índio puro...(risos), eu penso, eu penso

que fatores históricos aí, coloniais, fatores até de crescimento acelerado, ou

dessa visão neo-liberal, às vezes, das pessoas, que não mudou do que era

em 1890, ou desde a época do descobrimento até hoje, não vejo muita

mudança de pensamento, não. Eu sei que existe um pequeno grupo que está

preocupado, o restante não quer nem saber...(D).

A partir desse trecho, podemos perceber que D. não considera a transculturação

como algo bom. Ele critica o que os portugueses fizeram com os indígenas no Brasil,

introduzindo de maneira invasiva a cultura branca sobre a cultura indígena, sem

considerar as tradições já existentes. Podemos pensar que ele afirma que gostaria de ter

sido um índio puro, já que, possivelmente, não teve durante a sua vida, pelo que

apareceu na entrevista, grande influência de seu pai, que é branco.

Já G. acredita que a transculturação não é algo ruim, ela acrescenta que ela

mesma é mestiça e que sempre respeitou muito a diversidade cultural. Vale ressaltar que

ela é filha de duas etnias indígenas. Porém, ao final da conversa, ela conta que

futuramente gostaria que seu filho casasse com uma Guarani. Podemos pensar que isso

tem a ver com o desejo de ver sua cultura mantida através das gerações, passada de pais

para filhos.

Ela diz:

E: e o que você pensa sobre a transculturação?

Ah eu não sei, eu não vejo como um ponto negativo, acho assim, mesmo

porque eu sou mestiça e eu casei com um não indígena, eu sempre respeitei

muito as outras culturas...

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Mas ao mesmo tempo eu penso com os meus filhos, ele é mestiço, ele fala

fluente Guarani, daí eu penso tomara que ele case com uma Guarani,

porque assim fica mais perto da cultura. Mas se ele quiser casar com uma

de lá eu vou ter que aceitar. Mas eu preferia que ele casasse com uma

Guarani. Mas eu não atrapalharia se ele casasse com uma de lá. (G.)

Y. também não se refere a transculturação como algo negativo, mas enfatiza a

importância de entrar em contato com sua cultura de origem:

...eu não vejo nada de ruim da gente se casar com a pessoa de outro povo

ou de qualquer lugar ou, acho importante você conhecer assim sua história,

sua cultura. Eu procuro estar sempre em contato com... é muito forte uma

parte assim da minha espiritualidade, não do modo de vida, eu não levo um

modo de vida igual ao das pessoas da aldeia, mas na minha vida assim

espiritual, religiosa ela está totalmente voltada para a minha cultura,

né?(Y).

Através desses relatos, pude notar a extrema importância que esses jovens

atribuem ao sentido de nunca perder o olhar para sua cultura, para sua história, de

refletir sobre o que aconteceu com seu povo, como aconteceu e por quê. Percebo que,

assim como foi transmitido a eles a cultura indígena, seus valores, suas crenças, seus

costumes, eles pretendem fazer com seus filhos. Isso garante, então, que essas tradições

que eles tanto apreciam e que quase foram exterminadas com a colonização, jamais se

percam com o tempo ou com a transculturação, ou por que não, com a globalização.

Isso retrata um modo de defender as tradições de uma população que é minoria em

nosso país.

A Singularidade de P.

P. foi o sujeito que se mostrou mais afastado de sua cultura de origem. Conta

que só foi à sua aldeia uma vez, e que só tem contato com os indígenas que fazem parte

do Projeto Pindorama. Coloca que não possui muito contato com as tradições

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Pankararu, pois não procura muito. Diz que sabe coisas básicas sobre alguns costumes e

crenças religiosas.

Ao falar sobre os indígenas que moram na sua aldeia de origem, P. afirma que

eles o vêem como diferente, já que não está próximo da cultura. Porém, coloca que não

concorda com essa diferenciação, porque acredita que o fato de você ser índio está no

sangue. Isso demonstra, em relação à identidade, que ele se considera índio, mesmo não

estando próximo aos costumes da aldeia.

Em relação aos seus planos para o futuro, P. diz:

E: O que você pretende fazer quando se formar?

Dar aula, mestrado, trabalhar com a cultura indígena também é

interessante...gostaria, se eu tiver oportunidade...trabalhar numa escola

indígena, né? Aí só o tempo vai dizer. (P).

A partir dessa fala é possível perceber que P. não coloca o trabalho com a

comunidade indígena como prioridade, o que difere dos demais entrevistados. Em

relação à transculturação ele fala:

E: O que você acha da transculturação?

Acho interessante, acho que é o Brasil, o Brasil é uma mistura. Se você

perguntar qual a origem do brasileiro eu não sei dizer. Falam que é os

índios, pode até ser, tem aquela história lá que quando os portugueses

chegaram os índios já estavam.

E: E o que você acha dessa mistura?

Normal, né? Acho que pelo gosto da família, pelo gosto do meu pai a gente

casava com indígena, mas acho que isso não vai acontecer.

Podemos dizer que P., apesar de se considerar indígena, se vê afastado das

questões de sua comunidade, perece não se interessar muito por sua origem, não

estranha o modo de vida dos brancos da cidade grande. Isso talvez ocorra porque ele

sempre viveu em São Paulo, distante de sua comunidade de origem, distante do dia-a-

dia, da religião, dos seus parentes, da tradição que é passada oralmente, ou seja, distante

de tudo que um índio é, acredita, faz. O que ainda mantém a ligação é sua carga

genética.

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9- Discussão:

A partir de tudo que foi colocado, da história dos indígenas no Brasil, das

peculiaridades de cada etnia e da história de vida de cada um dos jovens, podemos

pensar com mais elementos os objetivos do trabalho, que eram o de investigar quais as

expectativas e dificuldades dos índios que vem fazer faculdade na PUC-SP; em

especial, investigar as expectativas dos indígenas em relação à educação e descobrir

quais as dificuldades enfrentadas por esta população em relação ao seu processo de

formação acadêmica.

Em relação às expectativas de fazer um curso superior, ficou claro que trabalhar

com a questão indígena foi um dos motivos que levou os entrevistados a essa escolha,

excetuando-se P. Trabalhar pela comunidade, para eles, é mais do que algo que pode ser

feito no futuro, mas sim o grande desencadeador dessa iniciativa.

Podemos confirmar essa hipótese ao pensarmos como a escolha dos cursos que

esses sujeitos fazem na PUC tem a ver com o trabalho idealizado para o futuro com a

questão indígena. Ciências Sociais e Serviço Social fornecem uma base não só para

pensar a sociedade e entender os processos de organização da mesma, mas também

fundamenta e fornece elementos para a realização de projetos com a população.

É interessante pensar que isso se dá pela grande necessidade que os povos

indígenas têm de serviços básicos e de recursos para lutar pela sua existência, como

demarcação de suas terras e preservação de sua cultura, por exemplo. Como já foi

explicitado anteriormente, a história dos indígenas no Brasil foi marcada, desde a

chegadas dos portugueses, por uma retaliação da sua cultura, perda de territórios, não

aceitação de seus costumes, exterminação de população, imposição da cultura branca,

etc. Ao longo dos últimos cinco séculos, podemos observar, de acordo com a história de

cada povo indígena, que diversas batalhas ocorreram entre brancos e índios, a fim de

que os últimos não perdessem os seus direitos. Fica claro também que outros povos

tentavam a fuga como método para o mesmo objetivo. Apesar dessas tentativas,

sabemos que, hoje em dia, no Brasil, muito da cultura indígena se perdeu em

decorrência da invasão da cultura branca e da transculturação descuidada, que ocorre

durante tantos anos.

De acordo com o que foi apresentado sobre a história de algumas culturas

indígenas específicas nesse trabalho (as culturas de origem desses jovens), pude

verificar que, mais recentemente, aconteceram diversas lutas de indígenas para que

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houvesse a garantia de que seus direitos fossem alcançados. Essas lutas tiveram a ver

não só com a segurança de que sua cultura pudesse se manter, mas também com a

devolução de suas terras, a busca por saneamento básico, saúde, educação, entre outros

direitos. Além disso, podemos dizer que lutando para melhor qualidade de vida dos

índios e por seus direitos, eles conseguirão com mais sucesso manter e perpetuar suas

peculiaridades, que ao longo da história quase se extinguiram.

Para esses jovens, esse objetivo parece ser realmente relevante. Suas histórias de

vida nos mostram que eles sempre tiveram grande apreço por sua cultura de origem,

mesmo nascidos e vivendo em São Paulo a maior parte de suas vidas. O fato de alguns

deles serem mestiços não colabora para um afastamento da cultura indígena. Vemos que

esses indivíduos, na realidade, são mais ligados e identificados com seu “lado indígena”

do que com os costumes e valores dos brancos.

É possível pensar nesse fato mais uma vez relacionado com a grande vontade

dos indígenas em manter suas tradições. Isso, portanto, se dá através da educação de

seus filhos, do contato proporcionado pelos pais com a vida indígena e pelo trabalho, no

sentido de cuidar de sua população.

Em relação às dificuldades, observei, a partir das falas dos sujeitos, que eles

passaram por mais dificuldades antes de ingressar na PUC do que realmente durante o

curso. Eles afirmaram não ter dificuldades em relação à compreensão dos conteúdos,

nem à vida social na faculdade. Eles colocaram, na verdade, uma crítica a alguns

pensamentos dos brancos difundidos nas aulas. Essa crítica se dá pelo fato de se tratar

de crenças diferentes das dos índios.

G. foi a única que colocou alguma dificuldade relacionada à vida social na PUC.

Ela conta que estranhou muito o fato de no início as pessoas serem simpáticas com ela e

depois não serem mais. Ela faz uma comparação desse comportamento com o que

acontece na aldeia onde vive e diz que lá, se algo acontece e a relação fica estranha, ou

se estremece, se conversa para esclarecer o que estava acontecendo e que aqui ela não

entende o que ocorria.

Só que assim, hoje que é final do ano muitas pessoas que passam perto de

mim e nem me cumprimentam. Eu nunca cumprimento se não me

cumprimentarem, eu espero. Que nem várias vezes eu falava: oi tudo bem, e

passaram direto, então, aí eu não entendo, não sei...

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..., porque lá (comunidade) se acontece alguma coisa se fica muito ruim

eles falam, então vamos fazer uma reunião, pra ver o que está acontecendo

pra gente resolver... (G).

Observei que esses jovens vieram fazer faculdade com vinte e poucos anos, um

pouco mais velhos do que a maioria dos alunos que entram com aproximadamente 18

anos. As mulheres entrevistadas já tinham filhos, ou estavam grávidas, e todos já tinham

tido alguma experiência de trabalho anterior.

Apesar de terem tido, ao longo de sua vida, um grande contato com a cultura

indígena, esses jovens estudaram em escolas tradicionais de brancos. Isso pode explicar

porque não houve nenhuma dificuldade em relação à compreensão de conteúdos, mas

sim, uma opinião diferente em relação a alguns deles.

Baseando-me nesses dados, posso perceber que esses jovens foram bem

sucedidos no que diz respeito a seus projetos educacionais. Eles não tiveram

dificuldades significativas até o ensino médio, fizeram cursinho e hoje estão cursando

uma faculdade. Porém, como ressaltamos anteriormente, essa é a realidade da minoria

dos indígenas que vivem no Brasil e ser bem sucedido em relação à educação, como

vimos, é uma preocupação muito importante para essa população.

A partir de todos esses dados pude reconhecer a idéia de subjetividade como

algo social e pessoal. Ficou clara a noção da articulação entre cultura e indivíduo.

Pude observar que há nesses processos individuais de entrada na PUC algo

comum. Há uma subjetividade grupal que é determinada sócio-historicamente. Notei

que há uma grande valorização da cultura indígena, superando a cultura branca, mesmo

nos indivíduos mestiços. Constatei também que há, nesse grupo, que foi quase

exterminado, uma enorme vontade de dar prosseguimento à cultura através do trabalho

voltado a essa comunidade e da transmissão dos valores para as futuras gerações.

Porém, percebi também, que cada entrevistado vive o seu processo de entrada na

PUC de maneira específica. Cada um apresentou uma história de vida peculiar e pode

internalizar o fato de fazer uma faculdade do seu jeito, transformando a realidade em

um processo particular, que contém valores, afetos, desejos, necessidades, significados e

sentidos muito próprios. Cada indivíduo vivencia o mundo externo à sua maneira. Para

uns, alguns momentos foram mais difíceis do que para outros. Algumas situações foram

vividas mais intensamente, estavam carregadas de emoções. Outras traziam felicidade,

tristeza, indignação, esperança, indiferença. Ou seja, existe em cada um, sentidos

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subjetivos que se referem às vivências emocionais e psicológicas que se processam em

suas subjetividades de modo particular.

Portanto, a subjetividade é um fenômeno ao mesmo tempo social e individual,

pois cada sujeito internaliza de um modo o que está apresentado no social. De acordo

com Aguiar (2001), as formas de pensar, sentir e agir do indivíduo expressam uma

integração, muitas vezes contraditória, de experiências, conhecimentos, sem dúvida

emocionados, de uma história social e pessoal.

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10- Considerações Finais:

A partir da realização deste trabalho espero ter apresentado tentativas de

responder a questões sobre a educação indígena, que eram meu foco de investigação

principal, e também, ter feito algumas reflexões sobre a importância de olharmos na

atualidade para os indígenas do nosso país, de maneira mais ampla.

Penso que nós psicólogos temos muito com que contribuir para essa população

que enfrenta tantos problemas. Porém, para ajudarmos a resolver esses problemas é

necessário, antes, que compreendamos a realidade e a história dos indígenas do Brasil.

Somente com essa aproximação é que poderemos encontrar caminhos para o nosso

trabalho.

De acordo com Berni (2008, p.10), precisamos entender que os índios possuem

“uma visão diferente daquela da cultura ocidental, que precisa ser respeitada e

compreendida se quisermos que haja de fato um diálogo e não uma abordagem

reducionista, numa ótica racionalizante e utilitarista”. Essa foi uma de suas falas

extraídas do Encontro Multiprofissional de Atenção aos Povos Indígenas do CRP SP

que está iniciando esse trabalho sobre povos indígenas e psicologia.

O desafio é que o diálogo seja feito sem que a integridade cultural e étnica dos

índios seja ameaçada. Acredito que nossa contribuição pode ser possível no sentido de

ajudar essa população, sem invadi-la ou destruí-la, ao trazer nosso olhar.

Espero ter conseguido fazer uma pequena colaboração nesse sentido e ter

mostrado a relevância desse assunto que é tão pouco estudado pela Psicologia. Também

espero que consigamos achar um caminho para que o nosso campo de atuação possa

contribuir de forma adequada.

Para finalizar, gostaria de enfatizar o grande trabalho que o Projeto Pindorama

realiza, já que ele, além de incluir indígenas na Universidade com o objetivo de

proporcionar o Ensino Superior a uma população que quase não tem acesso a ele,

valoriza a cultura e as tradições indígenas. Isso se dá através de encontros mensais nos

quais os alunos do Projeto se organizam para mostrar sua cultura, falar de sua história,

trabalhar com as questões que permeiam sua realidade, discutir e refletir sobre temas

importantes para a população indígena do Brasil na contemporaneidade.

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11- Referências Bibliográficas:

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1999, 111p. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) – Faculdade de Psicologia,

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SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo, 1954.

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SILVEIRA, Maria Luíza dos Santos. Identidade em mulheres Índias: Um estudo sobre

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12. ANEXOS

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Anexo 1

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Anexo 2

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, ________________________________________________, R.G:______________,

declaro, por meio deste termo, que concordei em participar e ser entrevistado(a) para a pesquisa de campo da pesquisadora Olivia Bara, desenvolvida na Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Fui informado(a), ainda, que a pesquisa é orientada pela Profa Dra. Marilda Pierro de Oliveira Ribeiro, a quem poderei contatar a qualquer momento que julgar necessário através do telefone n° 3670.8320 ou e-mail [email protected]

Afirmo que aceitei participar por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa. Fui informado(a) dos objetivos estritamente acadêmicos do estudo, que, em linhas gerais, consistem em investigar as expectativas e as dificuldades da população indígena, que hoje freqüenta curso de graduação na PUC-SP, em relação ao seu processo educacional.

Fui também esclarecido(a) que a utilização das informações por mim oferecidas estão submetidos às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Conselho Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde.

Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista semi-dirigida a ser gravada, a partir da assinatura desta autorização, observação e aferição. O acesso e a análise dos dados coletados se farão apenas pela pesquisadora e/ou seu(s) orientador(es) / coordenador(es).

Estou ciente de que, caso eu tenha dúvida ou me sinta prejudicado(a), poderei contatar o(a) pesquisador(a) ou sua orientadora, ou ainda o Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CEP - PUC/SP), situado na Rua Ministro de Godoy, 969 - Térreo, Perdizes, São Paulo (SP), CEP:05015-000, Telefone: 3670.8466.

A pesquisadora principal da pesquisa me ofertou uma cópia assinada deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme recomendações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP).

Fui ainda informado(a) de que posso me retirar dessa pesquisa a qualquer momento, sem prejuízo para meu acompanhamento ou sofrer quaisquer sanções ou constrangimento.

São Paulo, de de 2008.

Assinatura do(a) participante:

Assinatura do(a) pesquisador(a):

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Anexo 3

Entrevista 1 – G.:

E: Queria saber onde você nasceu,quando, como foi sua infância...

Eu nasci no dia 19 de janeiro de 1979, eu nasci em São Paulo, aí fui morar um tempo

fora da aldeia, meu pai ele não é Guarani, ele é de outra etnia, ele é da etnia Krenac e

minha mãe é Guarani. Meus avós são indígenas, vamos se dizer, puros, né? E eu sou

mestiça. Aí eu fui morar dentro da aldeia quando eu tinha 7 anos.

E: Antes disso você morava em São Paulo?

Isso, eu morava no Jardim Colorado. Só que antes, a minha maior parte da infância que

eu lembro era no Jaraguá. A gente passava as férias todinhas lá, dentro da aldeia né? E

depois dos 7 anos nós fomos morar na aldeia. Aí a minha infância sempre foi assim né,

duas culturas. A cultura não indígena e a cultura indígena. Mas eu sempre cresci

escutando assim que eu sou indígena, né?

E: Então seu pai é de que tribo?

Meu pai é da etnia Krenac e minha mãe é Guarani. Vou até ter que te corrigir, desculpa,

mas é que tribo não é um termo correto que a gente usa. A gente usa é comunidade,

etnia, povos indígenas. É que tribo ta no pejorativo. É, tem a ver com as tribos

selvagens. Até alguns indígenas falam tribo, mas é porque eles conhecem.

E: Ah, ta. Aí com 7 anos...

É, aí com 7 anos eu fui estudar numa escola, primeira série... não lembro se era primeira

ou segunda. Porque eu lembro que eu estudei um pouquinho na outra escola antes de

vim pra aldeia, onde eu morava que era no Colorado. Mas eu lembro que eu fui pra

escola e assim a parte que eu mais lembro da minha escola, dentro da escola foi do

preconceito. É que assim, todo mundo conhecia: ah, a filha da Eunice, o pessoal, os

índios.

E: A escola era tradicional dos brancos?

É, é assim, é do lado, é perto da aldeia. É porque a aldeia fica num local que passa rua.

Minha mãe fala que eles foram morar lá há mais de 40 anos. E quando eles foram morar

lá não tinha nada. Não tinha nem rua, nem, e depois, quando a gente já tava maiorzinho,

quando ela casou como meu pai, depois ela falou assim, reclamou. Aí ela falou assim

que cresceu muito, que desenvolveu muito rápido a cidade. Aí eu sei que assim eu sofri

muito preconceito. Tinha um menino, acho que foi mais na quinta série. Eu sempre era

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quietinha... sempre com no máximo uma amiguinha, assim, uma ou duas no

máximo,nunca fui de ter muitos amigos... as pessoas não tinham muita vontade de

sentar perto de mim, tinha um menino na quinta série que sentava perto ficava falando:

ah índio é fedido, o índio não toma banho. Eu lembro que todo dia ele pegava no meu

pé. Às vezes eu sentava aqui e ele ficava assim (gesto). Acho que isso é uma coisa que

marcou bastante. Mas assim, a minha infância foi bastante legal, porque mesmo vivendo

nessas duas culturas, ir pra escola, ter que estudar. A minha vó ela não falava em

Guarani com a gente, apesar de ela ser fluente na língua materna, ela não falava em

Guarani, ela só contava as histórias, algumas lendas e algumas músicas, a gente cantava

muito.

E: Então você sabe Guarani?

Então eu sei, mas eu sei mais Português do que Guarani. Aí a gente brincava muito de

pescar, caçar, a gente vivia bastante assim a nossa infância como se fosse mesmo, a

gente gostava de ficar no meio do mato mesmo, a gente ficava, como tinha o Pico do

Jaraguá a gente ia bem lá pro alto. É que os Guarani deixa a criança muito à vontade,

né, não prende, então a gente com 7 anos saía assim de manhãzinha e voltava só de

tardezinha.

E: E o que você mais gostava de fazer?

É eu gostava assim, mais de brincar mesmo, de pescar, caçar, eu lembro que a gente se

virava muito bem sozinhos. A gente tava com fome, sei lá, criança esquece de comer, aí

a gente pegava, pescava, e fazia as comidas. Tinha batata doce também, dependendo da

época, aí a gente mesmo pegava as batatas, fazia fogueira, assava. Também a gente

gostava de brincar de arco e flecha, a gente não matava os animais, a gente caçava até,

mas só, o único animal que a gente caçava era ( ...?) que é um tipo de uma raposa, que

era o que a gente comia, né? A gente caçava com facão, a gente não caçava com arco e

flecha. Arco e flecha a gente usava pra brincar mesmo, assim pro alto.

E: Queria saber como era sua rotina na aldeia? Você ia pra escola todos os dias...

Ia pra escola todos os dias.

E: E você tem irmãos?

Tenho irmãos, primos, a gente andava em turma, brincava muito. A minha avó gostava

de contar histórias, né, em língua Guarani. Que tem uma coisa que, uma das coisas que,

do modo de educar as crianças é contando histórias, que você aprende através da

história, né? Então ela contava muita coisa. A gente falava a gente não pode fazer isso,

isso, isso, porque a vó contou aquela história e se fizer isso vai acontecer alguma coisa.

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Ela falava da gente ficar brincando na chuva, quando tava caindo raio, aí ela contava

uma história que tem um machadinho de ouro que vem e bate na nossa cabeça, que a

gente não podia ficar brincando na chuva porque se batesse a gente ficava louco,

alguma coisa assim. Mas acho que era uma forma de não deixar a gente ficar brincando

na chuva e tomar um raio na cabeça. E assim, a minha infância foi maravilhosa. Acho

que o mais difícil foi mesmo, acho que o mais difícil nem foi mesmo a adolescência.

Que a gente passa por aquela fase: ah, quem eu sou? Acho que a minha fase de

adolescência eu saí um pouco da minha cultura, eu me afastei. Aí quando eu retornei eu

retornei assim, eu queria sair, passear, eu não falava pra ninguém que eu era indígena. É

eu não contava, eu tinha vergonha de contar. Na escola assim, até a oitava série eu

estudei numa escola e lá todo mundo sabia que eu era indígena porque me conheciam

desde pequena. Aí quando eu mudei de escola ninguém sabia, ninguém soube que eu era

indígena, eu não quis contar, né, talvez porque eu não sabia o que as pessoas iam falar.

Eu tinha vergonha mesmo. Aí depois com uns 18 anos, aí a gente foi, a gente tinha casa

de reza, mas a casa de reza é da nossa religião Guarani. A gente não tinha uma casa de

reza lá. A gente ia pra outras aldeias. Aí quando veio um pessoal de outra aldeia, aí

construiu a casa de reza lá, aí foi quando eu me aprofundei muito, aí eu me aprofundei

mesmo na minha cultura. Isso me fez ficar mais próxima da minha comunidade. Aí

então depois da... acho que o que mais me fez ficar perto da minha cultura foi a casa de

reza mesmo. Aonde tem as tradições, vida espiritual maior. Pra gente tem um

significado muito forte.

E: Na escola você tinha contradições do que você aprendia na escola e o que você

aprendia na aldeia?

Ah, assim, eu nunca fui de falar muito, né? Então, mas assim, era estranho porque

parecia que a história que eles estavam contando não era a minha história. Porque conta

a história do índio como se ele não existisse mais: porque os índios não sei o que... e

conta de uma forma generalizada, pelo menos na época que eu estava não tinha assim os

povos. E eu fui crescendo como se, sem ter essa noção, eu fui ter essa noção depois

assim, não dentro da escola, que tem outros povos indígenas, nem eu mesmo sabia, eu

fui saber depois que eu conheci esses povos indígenas.

E: Como você veio pra PUC? Quais eram as suas expectativas?

Então, quem me incentivou foi minha irmã. Ela começou a fazer faculdade aqui. E

assim, de eu querer uma vida melhor para os meus filhos. Porque até então eu vivia de

venda de artesanato então a venda de artesanato era muito pouco, meu marido não

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conseguia trabalhar em emprego fora. E também um pouco do interesse de querer ajudar

a comunidade, porque eu lembro que eu trabalhei de agente de saneamento e aí a gente

vai pegando um pouquinho de noção da realidade. Aí eu fui aprendendo algumas coisas

como agente de saneamento, aí eu quis me aprimorar mais pra poder lutar mais.

E: então você mora lá até hoje?

Até hoje. Depois que eu fui pra lá com 7 anos eu não saí mais.

E: E com quantos anos você resolveu fazer faculdade?

Quando eu comecei a estudar, acho que foi em 2005. Antes disso eu tinha feito cursinho

da POLI acho que uns 3 anos. Três anos de cursinho. Um ano eu fiz só pra não perder.

E: Você se formou no colegial e foi trabalhar?

Não é porque eu me formei depois. Bem depois. Porque eu parei de estudar na oitava

série e aí depois eu voltei. Aí quando eu voltei a estudar já era com a intenção de

melhorar mesmo. Eu tinha 19 anos quando eu voltei. Foi quando eu tava fazendo curso

de saneamento. Falei: não, vou melhorar e vou tentar algo melhor. Aí eu comecei a

fazer o colegial. Aí eu fiz o ensino médio completo, aí com 21, 22 anos, não lembro

direito. Aí depois eu comecei a fazer o cursinho da POLI e como eu tinha acabado de ter

um nenenzinho naquela época eu falei: ah, só vou estudar pra não perder a linha de

raciocínio. Aí eu comecei a estudar, aí no primeiro ano de cursinho eu não prestei

vestibular nenhum, deveria ter prestado pelo menos pra ter noção, aí eu não prestei

nenhum vestibular. Aí no segundo ano eu prestei pra PUC, não consegui passar. Aí da

segunda vez que eu tentei prestar eu entrei aqui na PUC.

E: E você falou de um filho, você tem quantos filhos?

Tenho dois. Um está com 6 anos e outro está com 12 anos.

E: Onde eles estudam?

Agora eles estudam dentro da aldeia, porque agora tem uma escola que tem uns 5 anos

lá, não sei a data correta, não sei se foi em 2001, 2002.

E: E o ensino é específico pra comunidade ou é tradicional?

Não, ele é bilíngüe, ele é bilíngüe e assim, eu sou professora lá, né? Então assim, porque

quando eu comecei a fazer a PUC, saiu um curso da USP de formação para professores

indígenas, mas é um curso só pra professores indígenas. Aí eu fiz junto com a PUC,

tanto que eu terminei esse ano a USP, terminei em agosto, pra poder dar aula. Então,

mas lá é uma escola diferenciada, a gente tem que agir de acordo com a cultura, então a

gente procura fazer o máximo pra não ficar longe da realidade das crianças, então é

muito complicado.

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E: E o que você dão de conteúdo?

Então, pra mim fica complicado. Porque as crianças falam a cultura, falam Português e

Guarani, mas a língua materna deles é o Guarani. Então o correto seria que eles fossem

alfabetizados na língua Guarani. Mas por exigência da própria comunidade eles pedem,

eles querem que eles aprendam português, porque Guarani eles aprendem em casa,

então a gente quer o português pra eles. A gente procura, a gente explica, por exemplo,

o abecedário: a, b, c, d, e, f, g, sabe, a gente ensina isso pra eles, mas a gente também

ensina o abecedário em Guarani. Então por exemplo o y tem som de u, então eles não

falam y eles falam u, mas eles sabem que pros não indígena y tem som de i, então a

gente tenta amenizar um pouco, é porque é difícil aprender, ainda mais falando as duas

línguas, você tendo uma língua, falando uma língua, aprendendo outra língua. Os meus

alunos eles têm uma dificuldade muito grande de aprender as duas.

E: Que idade eles têm?

Então, desde a 1ª série, até a 7ª.

E: E que matérias eles têm?

Então, a gente tem que seguir o currículo, apesar de ser diferenciado, tem regras que a

gente sabe que tem que cumprir, a gente tenta mediar. E dentro da USP a gente

aprendeu que a gente tem que fazer com que a criança valorize mais a cultura, não pode

dissociar aprendizagem com a cultura, a gente tem que unir na verdade. Então é

considerado também como aula, quando a gente vai dar, por exemplo, quando tem um

batizado, algo cultural da comunidade, a gente trabalha junto com as crianças, depois a

gente trabalha em sala de aula. A gente procura valorizar a tradição oral. A gente

procura trazer uma pessoa mais velha, que conta história pra eles, aí é como se fosse

aula.

E: Me conta um pouco mais sobre as suas expectativas em vir para a PUC?

Então porque é assim: dentro do que eu aprendi na minha cultura, você nunca pode

fazer sozinho. Não é que alguém disse você tem que estudar, pra trabalhar pra

comunidade. Isso é uma coisa, é como andar, você vê as pessoas andando e você quer

andar. Antes de entrar na PUC eu sempre quis fazer alguma coisa pela comunidade,

então quando eu comecei a fazer PUC , quando eu fui prestar vestibular eu pensei eu ah,

vou fazer, eu queria fazer Biologia, Biologia voltada pro meio ambiente, que eu já sabia

um monte de coisas que tinham a ver com saneamento básico e a estrutura da aldeia é

bem precária então pensei em fazer alguma coisa pra proteção do meio ambiente, como

eu já fui agente de saneamento Biologia seria melhor, mas como Biologia não tem,

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então eu procurei Ciências Sociais, aí Ciências Sociais eu prestei como primeira opção,

aí a 2ª eu prestei Serviço Social.. Aí acabou que eu passei, mas eu passei pra 2ª opção,

pra Serviço Social.

E: E você gosta?

No começo eu falei o que eu estou fazendo aqui, mas depois eu vi o que eu vim fazer,

mas assim eu lembro que antes de eu vir pra PUC, a gente acredita muito assim, no

poder espiritual, aí eu ia pra casa de reza e rezava muito, falava, ai meu deus me ajuda a

procurar um curso que dê certo pra mim eu lembro que eu rezei muito aí acabou dando

certo. Que na verdade... eu lembro que eu passei em serviço social e falei ah, então

deixa, hoje eu penso que não poderia ter sido opção melhor. Se eu tivesse ficado em

Ciências Sociais talvez eu não teria gostado tanto como eu to gostando de Serviço

Social.

E: E você pensa assim como quem você quer trabalhar?

Eu quero fazer assim, principalmente com os adolescentes, porque eles têm esse conflito

de que, quem eu sou? Eu sou Guarani, minha cultura, mas é uma coisa que vai se

perdendo, eles entram muito no alcoolismo, acho que esse negócio de conflito de

identidade é uma coisa que ta muito forte principalmente no adolescente Guarani. A

gente até queria ler um livro de psicologia, que fale da criação da identidade e do ser

social.

E: Teve alguma dificuldade em vir pra PUC?

Desde quando eu comecei a estudar no colegial, quando eu voltei a estudar, eu falei:

poxa vida, eu to muito fora do meu lugar, fora do meu ambiente. Porque à noite onde

que eu costumava ir era pra casa de reza. 6 horas da tarde, escurecia, eu ia pra casa de

reza, aí eu ficava rezando, rezando, ficava perto da fogueira, conversando com o pessoal

da comunidade, isso pra mim foi um baque mesmo, foi muito difícil poder estudar e

ficar pensando podia estar na casa de reza, rezando. Aí até hoje me faz muita falta a

casa de reza, nos primeiros dias assim foi terrível mesmo, eu sou uma pessoa anti social,

uma pessoa tímida mesmo, e é um modo de vida totalmente, visões de mundo

totalmente diferente dos Guarani, a gente aprende umas coisas, o modo de viver, aí você

vê umas coisas e fala: nossa que diferente. É difícil pra entender algumas coisas.

E: Teve mais alguma coisa que foi difícil com a sua entrada na PUC?

Acho que é estranho assim, porque quando eu entrei e eu falei que eu era indígena, todo

mundo falou: ah, que bonitinho, ela é índia, não sei o que. A visão que eles têm é que o

índio ou ele é totalmente selvagem, ou ele é totalmente bonzinho, anjo, como se não

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tivesse maldade, sendo que não é isso, ele é um ser humano normal que tem raiva, tem

amor, tem carinho, só tem um modo de viver diferente. Aí todo mundo falava assim: oi,

tudo bem? Todo mundo queria vir conversar comigo. Aí no primeiro ano era assim oi

índia, tudo bem? Oi indiazinha!

E: E você se incomodava?

Não, eu até gostava, pelo menos as pessoas me conhecem. Só que assim, hoje que é

final do ano muitas pessoas que passam perto de mim e nem me cumprimentam. Eu

nunca cumprimento se não me cumprimentarem, eu espero. Que nem várias vezes eu

falava: oi tudo bem, e passaram direto, então, aí eu não entendo, não sei. Mas não sei,

eu acho que, por exemplo, dentro da aldeia, eu lembro que uma vez, eu tinha brigado

com o meu marido e passava nervosa, aí sabe quando você está nervosa não vê

ninguém. Mas não é porque você ta com raiva do resto das pessoas. Aí eles falavam: é

Jaciara, você está agitada, parece que está com raiva da gente. É que às vezes eu

passava num dia e no outro dia falava: oi, tudo bem? E cumprimentava. Aí eles

falavam: é que às vezes você está com raiva e parece que a gente fez algo de ruim pra

você. Aí eu falei: não é isso, às vezes eu estou nervosa com outros problemas, não é por

causa de vocês. Aí eles falaram: não é assim que tem que ser, você tem que sempre

sorrir, mesmo que você tiver com algum problema, você não pode ficar com raiva do

mundo. Isso quem falou pra mim foi o (?...) que é o filho do Pajé. Dentro da

comunidade tem várias famílias e toda família tem o direito de falar numa reunião. Aí

minha tia me falou, a tia Rosa, a mesma coisa. Vai ver que eles também são assim né, às

vezes passa fala oi, às vezes não passa, não fala. Mas assim, não fica aquele clima com

os índios. Na faculdade já não, eu sinto que, porque lá (comunidade) se acontece

alguma coisa se fica muito ruim eles falam, então vamos fazer uma reunião, pra ver o

que está acontecendo pra gente resolver porque o que não pode é você ficar ..?... porque

às vezes você fica com uma impressão errada da pessoa, né, às vezes você fica, sei lá,

fica com raiva de alguma coisa, aí você olha pra pessoa, mas na verdade você não está

nem enxergando ela, está pensando em outra coisa e nem consegue ver, aí a pessoa te

cumprimenta e você nem vê, mas não porque você está com raiva. Então quando está

com esse tipo de problema eles procuram fazer uma reunião porque eles sabem que às

vezes acontece isso, né? Às vezes eu lembro que minha mãe fala: às vezes a gente pensa

demais, só que não tem que pensar demais, se a gente pensa demais faz mal pra gente,

né? Então acho que era bem isso que é diferente, as pessoas elas pensam demais,

pensam: ah, ela ta pensando isso de mim, aí vai longe, né? Não sei. Porque do mesmo

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jeito que às vezes eu posso estar com raiva de alguma coisa que não tem nada a ver com

a outra pessoa, pode acontecer ao contrário também. Eu sempre cumprimento as pessoas

que me cumprimentam e as pessoas que não me cumprimentam eu não cumprimento.

Então, eu achei, eu não sei se foi comigo, mas tem pessoas não querem mais ficar perto

de mim, não querem mesmo, não querem me cumprimentar. Aí eu falei: ah, não vou

ficar pensando. No começo eu tava muito incomoda, ficava pensando: o que será que eu

fiz de errado? Porque as pessoas tão olhando? Tão esquisito né? Aí fiquei pensando

assim, fiquei matutando muito. Até isso me incomodou, fiquei um pouco agitada. Será

que eu sou tão anti-social assim? Aí eu conversei com a minha irmã e ela falou assim:

você tem que parar com isso. Aí ela falou: a gente tem que pensar no que faz bem pra

gente. Aí eu comecei a ficar com as pessoas que realmente me fazem bem.

E: E na aldeia é diferente?

Ah, não sei por quê. Acho que tanto as crianças Guaranis, têm assim muita afetividade

com as crianças. Por exemplo, as crianças, eu dou aula pra elas, elas querem ficar o dia

todo comigo querem ficar, aí a gente brinca, é como se fosse mãe e filho, dentro da

cultura é assim. Agora dentro das normas da escola eu não posso me envolver com uma

criança como se fosse alguém da minha família, eu não posso ter esse afeto, tem que ser

professora e aluno, uma coisa que pra gente não existe. A gente a caba se apegando

muito, né? E às vezes eu também sou assim, às vezes eu me apego muito a uma pessoa

e de repente quando acontece alguma coisa, eu me pergunto: mas por quê? E acabo me

machucando.

E: E dentro da PUC tem pessoas que você gosta?

As pessoas que eu gosto eu nem falo que eu gosto, eu falo que eu amo mesmo. Amigos

que eu vou levar pro resto da vida.

E: existe algum conflito entre o que você aprende na sua comunidade e na PUC?

Ah, acho que não chega a ser um conflito forte, mas que fica muito, a gente aprende

muito sobre a visão de mundo. De como foi a criação do homem em relação à natureza.

E o homem se difere da natureza, porque o homem tem o poder de interferir dentro da

natureza, mas ele não faz parte da natureza. Natureza é uma coisa, o homem é outra,

isso na PUC. E pra gente assim, a natureza e nós somos irmãos, porque são filhos de um

só criador. O Nhanderú. Ele criou a Terra, ele criou os animais, ele criou tudo que

existe, então nós somos irmãos. E pra gente a natureza tem vida e tudo que tem vida,

precisa ter respeito. Então a gente não pode interferir na natureza sem pedir permissão

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pra natureza. Então assim, a gente não olha o homem separado da natureza. A gente se

vê como um só. É uma visão bem diferente, né?

E: E o que você faz com isso?

Ah, eu leio o texto e coloco do jeito que está no texto. Mas assim, é uma coisa que eu

discordo.

E: E você já discutiu isso na sua aula?

Não, eu ainda não tive coragem.

Teve uma vez que a professora falou assim: então por que os povos indígenas não

lutaram, sei lá. Eu sei que foi uma coisa que incomodou. Ela mesmo veio me pedir

desculpas depois e falou: não foi isso que eu quis dizer.. Ela falou assim, por que os

indígenas não foram capazes de lutar, né, que nem os europeus que vieram tentando

dominar o mundo, por que os indígenas não fizeram isso? Aí eu pensei: que que teve de

tão civilizado de querer conquistar outras terras? E conquistar mais... É uma coisa que

ficou meio assim, meio incomodada. Porque dentro da cultura Guarani mesmo quando

tinha povos que guerreavam entre eles havia um certo respeito não havia tanta... não

existia uma guerra assim de matar....não sei, e dizem que os Guarani principalmente,

eles fugiam muito. Melhor fugir do que ficar pra guerra.

E: E você aprendeu coisas legais na PUC?

Muita coisa. Aprendi muita coisa, da criação da subjetividade. Me deu um apoio grande,

principalmente pra eu poder fazer meu TCC eu fiquei pensando a experiência e cada vez

mais os adolescentes Guarani na aldeia, eles não se encontraram ainda, entendeu, os

adolescentes eles crescem nessas duas culturas, eu mesma passei por esse conflito:

quem eu sou? Dentro da minha comunidade (...?...) de repente, ter que trabalhar pra

poder ter algum valor, fica complicado, a gente aprende de um jeito, mas pra viver tem

que ser de outro.

E: e o que você pensa sobre a transculturação?

Ah eu não sei, eu não vejo como um ponto negativo, acho assim, mesmo porque eu sou

mestiça e eu casei com um não indígena, eu sempre respeitei muito as outras culturas.

Só que assim, o (...?...), por exemplo, fala que tem que respeitar mesmo as outras

culturas, que hoje um dia o pessoal lá acredita em Umbanda, Candomblé... não tem

nada a ver isso, tem que respeitar, qualquer que seja a crença, qualquer religião que for

é tudo de um Ianderu só, só que cada um aprende de um jeito a rezar pro seu. Ianderu.

Só que aí, até ir, visitar, conhecer, até aí tudo bem, só que quando tem um

relacionamento de um indígena com um não indígena, aí é complicado. Não é uma

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aceitação muito, quer dizer não há uma aceitação dentro da cultura. Eu lembro que eu

sofri muito. Então, porque isso tem a ver com a nossa, com a criação da aldeia. Essa

aldeia era uma aldeia assim que meu pai não era indígena, a minha avó teve filhos que

foram crescendo e foram casando, como eles moravam distantes de outras aldeias e era

só a família, um núcleo familiar, eles acabaram casando com pessoas de fora, então não

teve muito preconceito. Mas há uns 10 anos atrás, veio pessoas de outras aldeias,

pessoas mais tradicionais que cresceram e viveram na cultura, lá no Paraná, aldeias mais

afastadas da cidade, vieram pra cá, tanto que agora tem esse conflito. Eles falam que

isso não é tão Guarani assim, tem umas coisas bem complicadas. Depois eu te dou meu

TCC que fala bastante sobre isso. Eu acho que assim tem várias contradições, dentro

dos Guarani também têm contradições, tem que amar, respeitar, não sei o que e de

repente quando um quer casar com outro não pode, não há essa aceitação. Ao mesmo

tempo que eu acho que é ruim isso porque as pessoas têm direito de amar umas as

outras independente, por outro lado eu entendo até que às vezes vai começando a casar,

casar, casar, com não indígena eu acho que existe mesmo a possibilidade de ter um

afastamento da cultura Guarani. Mas eu também acho que não deveria ser tanto assim,

esse preconceito de um Guarani não querer casar com não indígena. Tanto que eu sou

casada com um não indígena. Mas ao mesmo tempo eu penso com os meus filhos, ele é

mestiço, ele fala fluente Guarani, daí eu penso tomara que ele case com uma Guarani,

porque assim fica mais perto da cultura. Mas se ele quiser casar com uma de lá eu vou

ter que aceitar. Mas eu preferia que ele casasse com uma Guarani. Mas eu não

atrapalharia se ele casasse com uma de lá.

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Entrevista 2 – Y.:

E: Me conta um pouco da sua origem...

Eu nasci em São Paulo, meu pai é Krenak, ele é uma liderança indígena, ele veio pra

São Paulo com 17 anos. Ele veio pra São Paulo porque não tinha mais território Krenak

lá em Minas, o Krenak de Minas. Aí ele veio pra São Paulo com a família dele toda

assim, em busca de trabalho, tal, mas porque ele queria lutar contra a demarcação de

terra lá do povo dele, porque antigamente, há muito tempo atrás, na época assim da

república eles deram esse território para os Krenak. Não... que é hoje, mas depois o

governo brasileiro descobriu o título da região, então onde era território Krenak foi

distribuído pra fazendeiros, então eles.não tinham mais onde morar e vieram embora,

então um monte de Krenak que foram embora de lá. Aí aqui em São Paulo ele começou

a trabalhar, conheceu pessoas também, né que trabalhavam com questões indígenas e

começou o movimento, né pela demarcação de terra dele e por outras questões, aí eles

fizeram o núcleo de cultura indígena, na época era União das Nações Indígenas, a UNI.

Ele foi presidente da UNI durante muitos anos e trabalhou com muitos povos do Brasil,

não só com os Krenak. Em 92 foi demarcada a terra Krenak e aí muita gente voltou pra

lá, pra Minas.

Aí meu pai continuou aqui, porque ele estava trabalhando, o núcleo tinha sede aqui em

São Paulo, minha mãe conheceu ele na escola, ela deu aula pra ele no supletivo, aí eles

começaram a namorar e casaram. Minha mãe era jornalista, só que ela deixou a

profissão assim de lado pra trabalhar com ele no movimento indígena.

E: E ela não é indígena?

Não ela não é, ela é descendente de italianos. Aí eles dois juntos trabalharam muito,

durante 20 e tantos anos. Então eu nasci em São Paulo e cresci aqui, tenho uma irmã, a

gente sempre estudou em escolas particulares porque, pelo trabalho do meu pai, ele

sempre conheceu muita gente e aí a gente teve bolsa. Eu estudei no Equipe, estudei no

Fernando Pessoa, colégios bons, acho que por isso eu não tive muita dificuldade nessa

parte de aprendizado assim da escola. Acho que algumas dificuldades dos meus colegas

do Pindorama e de outros indígenas é ter estudado em escolas públicas ou escolas

indígenas, o que é pior ainda, não que é pior no sentido de quanto você aprende; pra

depois passar num vestibular e tal. Então eu sempre estudei nessas escolas.

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Fiz, fiz o vestibular a 1ª vez logo que eu terminei o Colegial, pra Gestão Ambiental. Aí

eu passei, fiz um ano no SENAC, mas passei um ano lá, tentando conseguir uma bolsa,

mas eu não consegui, aí eu desisti, porque não dava.

E: você gostava?

Gostava, mas não dava pra pagar, muito cara, até...eu tinha lá, quando eu entrei eles

falavam ah, se tiver alguma possibilidade...depois de um ano pedindo, pedindo, pedindo

e não rolou aí eu tranquei, aí eu fui pro Acre, né. Eu trabalho numa organização

indígena também, o IDETI, Instituto das Tradições Indígenas, quando eu estava fazendo

Gestão Ambiental eu fiz um projeto sócio-ambiental para as comunidades do Acre,

porque eu tenho muito amigos lá e aí o projeto foi aprovado e então eu tranquei a

Faculdade e fui pra lá, aí eu trabalhei lá um ano, com os Kashinauá, casei com um

Kashinauá, tive um filho com Kashinauá, mas depois que acabou o Projeto eu voltei pra

São Paulo, aí eu prestei vestibular aqui na PUC, entrei.

E: Na escola você tinha algum conflito de valores entre o que você aprendia na escola e

o que te passavam da cultura indígena?

Ah! Sempre foi um pouco assim eu sempre fui brava e as crianças sempre me zoavam

muito, porque meu pai nessa época estava muito na mídia também, então não tinha nem

como esconder. Tem gente que nem sabe que você é indígena porque você não tem

aquelas características físicas que as pessoas pensam, então você passa como qualquer

pessoa, mas meu pai não, toda hora estava no jornal, tal, então todo mundo sabia, então

na escola as crianças corriam atrás de mim, fazendo uuuuhhhh, ficavam me zoando...

Ah, eu ficava brava, eu sempre fui assim, brava, eu tinha uma irmã mais velha na

mesma escola, ela sempre me defendia... assim, nada de mais, assim, coisa de

brincadeira de criança mesmo, nada de grave, assim, eu acho.

E: Além da cultura do seu pai você teve contato com outras culturas indígenas?

É, tanto que, tive contato, por causa do trabalho dos meus pais, durante a época de aula

sempre tinha gente na minha casa, um monte de indígenas que vinham pra São Paulo

sempre ficaram na minha casa. Então, sempre vinha gente morar lá pra estudar e pra

trabalhar, então sempre tive bastante contato com o pessoal Krenak, mas com muita

gente de outros povos também e nas férias sempre acabava indo pra aldeia, porque meus

pais tinham que trabalhar, então eles levavam a gente junto.

E: Como era lá?

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Era ótimo. Quando acabavam as férias a gente nunca queria voltar, ficava chorando,

querendo ficar lá, mas porque é diferente, né, tem o rio, tem brincadeiras, fica muito

mais livre assim, aqui em São Paulo a rotina de ir pra escola, todo dia.

E: Era bom?

Era muito bom, sempre gostei, não só em Minas, né, quando eu era pequena fui bastante

pra Minas, mas depois pra outras aldeias também Xavante, Kashinauá, fui já pra

bastante aldeias.

E: E quando você pensou em prestar vestibular, como foi sua entrada na PUC?

Eu tinha acabado de voltar de lá e eu não tinha condições de fazer Faculdade, mas a Ana

Bataglin foi lá no IDETI, onde eu trabalho, falar do Projeto Pindorama, que tinha essas

vagas pra indígenas, se a gente não queria tentar. Eu, o Jurandir, Xavante, que trabalha

comigo, outras pessoas.de outras etnias. Aí na época eu fiquei meio assim, não sabia se

eu estava querendo voltar pra Faculdade, falei, ah, vou tentar. Até que eu não estudei

muito pro vestibular, não sabia se eu tava afim de fazer aquela... aí eu passei,né, eu fiz a

prova, mas eu achei que eu não tinha ido muito bem na prova, porque eu já tinha

terminado o colegial há 6 anos, fazia tempo que eu não estudava, eu nunca gostei de

química, física, matemática, mas eu sempre fui bem em geografia, história, aí deu uma

equilibrada porque...

E: Você faz o que?

Ciências Sociais. Eu acho que eu zerei em matemática, na prova de múltipla escolha, é

que como conta as duas, né, aí eu passei no vestibular. Mas, foi difícil assim.

E: E como você escolheu o curso?

É, eu gosto muito da área ambiental, por isso que eu fui fazer Gestão Ambiental, mas a

PUC não tinha nenhum curso na área, tinha Biologia, mas em Sorocaba, não era uma

opção pra mim, e aí eu achei que em Ciências Sociais eu ia ter um contato

com......Antropologia estava muito presente na minha vida. A maioria das pessoas tem

preconceito com a Antropologia, os indígenas, né, e não gostam, ficam meio assim, aí

quando eu falei que eu ia fazer Antropologia todo mundo ficou: puta, você vai fazer

Antropologia? Ah, eles tem uma idéia que o antropólogo não entende de comunidades e

tem um, escreve como se entendesse tudo e sei lá, se apropria das coisas, acho que o

pessoal tem uma resistência assim, sabe?

Realmente, na Faculdade eu vi que os antropólogos não entendem nada de cultura

indígena, confirmou sim, porque o que você aprende na faculdade de Antropologia é os

autores europeus, que estudaram as sociedades melonésicas, é muito diferente. É muito

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diferente antigamente de hoje em dia, tem muita coisa diferente, então eu acho que fica

muito vago assim, até a maioria das pessoas que estudaram comigo não vão trabalhar

com índio, um ou outro vão, fora que não é voltado para a etnologia, a Antropologia é

mais ampla, aí nesse sentido sim você estuda um monte de coisa da sociologia, política.

Tudo foi bom, importante, mas na questão indígena a formação não é assim voltada pra

isso.

E: E como foi na PUC pra você. Foi tranqüilo, sofreu algum tipo de preconceito?

Foi, não, foi ótimo. Eu entrei grávida, né e no 1º ano, eu entrei com 3 meses, 4 meses aí

eu fui muito bem recebida pela classe, acho que por estar grávida as pessoas são

diferentes com você, todo mundo me paparicava e tal, foi muito fácil, só não tive aquela

parte de ir pra balada com o pessoal, eu não fiz, não fui pro bar....mas foi legal.

E: Você parou?

Não, não parei não. Só que eu entrei na turma da noite, aí depois que meu filho nasceu

eu mudei pra manhã, porque não tinha ninguém pra ficar com ele à noite. Eu senti uma

diferença na turma da noite com a turma da manhã. Eu tenho meus amigos na turma da

noite, não sei se tem a ver com ter entrado junto na faculdade e tal, mas de manhã não

fiz muitos amigos foi mais vim, estudar e ir embora pra casa.

E: E você está acabando?

Eu estou no 5º, né, estou no 4º. É, eu não parei, mas no ano que ele nasceu eu fiz menos

matérias, pra não ter que vir todo dia e tal. Eu fiz 3 e deixei 3, aí nesse semestre eu estou

fazendo 3.

E: Agora você acaba?

Acabo.

E: E agora, o que você pretende fazer...

Ah, trabalhar, né, eu já trabalhava na área, mas a faculdade me deu assim uma, um

conteúdo assim maior porque eu fazia mais assim a parte de executar os projetos, não, o

primeiro que eu escrevi foi gestão ambiental, mas eu estava na faculdade então já tinha

outras coisas assim que ajudaram, formação em projetos tudo, então desde que eu

comecei a fazer a faculdade eu já consegui fazer vários projetos. que foram aprovados,

aí eu trabalho nesses projetos.

Eu pretendo continuar trabalhando nisso, né, mas eu quero fazer mestrado agora, mais

voltado pra área ambiental, eu quero trabalhar com essas questões de demarcação de

terra, ou de empreendimentos que vão afetar terras indígenas, que vão causar um

impacto ambiental, então tem que ter profissionais voltados pra essa coisa de fazer esses

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relatórios, essas.pesquisas, por isso (...?...) que eu estou escolhendo ecologia, porque eu

acho que os antropólogos que eu conheço que fizeram estudos assim de áreas indígenas,

eu vejo muito falhas assim, sabe, de por exemplo considerar que determinado território

não fazia parte e fazia, não é porque eles não moravam ali que não fazia parte então

assim acho que falta um pouco isso, são coisas que você não aprende na faculdade, você

só aprende na vivência sabe com essa comunidade. Então talvez as pessoas que já se

formaram há muito tempo e já tiveram uma vivência de comunidade começam a ter essa

visão, mas não é uma coisa que você vem da faculdade com essa visão, sabe, de

território, de cultura, de muita coisa porque as pessoas pensam que se você não vive lá

igual a você vivia há cem anos atrás, você não é mais indígena, você não é mais índio de

verdade e que não é assim, então eu acho importante que as pessoas que estão

trabalhando na área, mas que tenham uma relação com a comunidade.

E: O que você pensa da transculturação?

Ah, eu não sei assim, eu acho que é inevitável, eu não vejo como uma coisa negativa,

mas também não vejo como uma coisa positiva, porque eu acho que em muitas aldeias

no caso as pessoas acabam vindo embora, né....meu pai veio embora....ele acabou

vivendo fora da aldeia e tal, depois ele teve uma crise, se separou da minha mãe pra

voltar pra aldeia, ela não quis ir morar lá, então tem um lado que eu acho que às vezes

acaba afastando as pessoas, não da cultura, porque eu acho que ele nunca se afastou da

cultura, mas da aldeia, de você ir embora, porque você casou com alguém de fora, então

você vai embora. Eu casei com um Kashinauá e fui morar lá, só que depois eu também

não quis ficar mais lá e ele veio embora pra cá comigo...então acho que tem essas

dificuldades, mas eu acho que não é impossível assim, né, eu não vejo nada de ruim da

gente se casar com a pessoa de outro povo ou de qualquer lugar ou, acho importante

você conhecer assim sua história, sua cultura. Eu procuro estar sempre em contato

com...é muito forte uma parte assim da minha espiritualidade, não do modo de vida, eu

não levo um modo de vida igual ao das pessoas da aldeia, mas na minha vida assim

espiritual, religiosa ela está totalmente voltada para a minha cultura, né?

E: Como assim...você pratica?

É, desde pequena meu pai sempre, meu pai foi uma pessoa muito forte,.de pajé e tal,

então ele sempre cuidou da gente, da parte assim da medicina tradicional, não da

medicina alopática, ele sempre cuidou da gente com fumaça, assoprar, ervas, e de rezas,

de músicas, então eu nunca...A mãe dele, meus tios, eles viraram crentes, né, da igreja

evangélica e a gente não, porque meu pai sempre resistiu muito, então, assim, eu nunca

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me identifiquei com nenhuma igreja, não consigo entender assim muito, sabe, não

concordo, então eu nunca fui assim na igreja igual a minha família.

E: Mas as tradições que seu pai trouxe da cultura você acredita?

Sim, é. Eu acho que a gente fica doente porque tem alguma coisa que não está boa na

gente, não é só uma bactéria, um micróbio que está em você, que você toma um

remédio e vai resolver. Pode tomar um remédio e vai resolver na hora, mas tem alguma

coisa que está te trazendo esse problema e aí você tem que tratar isso, né, essa coisa que

está te trazendo esse problema. Se tem uma coisa que não está te fazendo bem, você vai

ficar doente, né.

A gente tem que cuidar do nosso corpo, a gente cuida com.o nosso espírito né, se o seu

espírito está bom, seu corpo está bom, também. Claro que tem coisa que você pega, frio,

você fica resfriado, normal, mas não assim essas coisas que pegam as pessoas e deixam

elas doentes, doentes por muito tempo, essas coisas de... Com os Kashinauá eu acabei

tendo uma grande influência, porque meu pai mesmo, quando ele veio pra cidade a

aldeia dele já estava totalmente detonada assim, né, então ele buscou muito aqui em

outros povos, não é só Krenak, sabe, ele teve contato muito grande com aldeias do Acre,

porque acho que no Acre eles são mais organizados, o movimento indígena, ele buscou

um apoio, apoiou, acabou virando uma troca assim de conhecimento e eles usam uma

bebida sagrada, o Ayuaska a gente faz, que faz a gente ver coisas né de espiritualidade

assim dos antepassados, coisa de energia também, sabe? Então desde criança eu

comecei a tomar essa bebida, né, com o meu pai e com os pajés do Acre. O Kashinauá,

Iauanauá os (...?...), tem vários povos assim que usam essa bebida. A ligação com o

Acre é antiga assim, porque quando eu tinha 12 anos eu fui pra lá, aí eu fui com meu pai

eu não conhecia quem ia ser meu futuro marido, mas eu tinha uma ligação grande, então

foi a primeira vez que eu tomei chá foi lá, foi com o pajé Kashinauá, então foi

despertando eu acho algumas coisas e aí aqui em São Paulo a gente procurava manter,

fazendo alguns rituais em casa, com amigos assim, sítios de amigos.

E: Então você conseguiu manter a cultura mesmo morando aqui...

Sim, eu tive algumas crises ....eu não quero muito sair de casa, minha casa é bem legal,

tem mato bom então eu evito ao máximo ir pro centro, pra cá. Quando eu comecei a

trabalhar no IDETI que era todo dia, na Liberdade, né, do lado da Praça da Sé, não me

fez bem porque eu não me sentia bem de vir todo dia aqui pro centro, então eu mudei

assim minha rotina. Eu venho no IDETI uma vez por semana, nos outros dias eu

trabalho nas aldeias Guarani ou em casa. Na época da Faculdade, agora está mais

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tranqüilo, porque eu estou vindo 3 vezes por semana, antes também, sabe, de vir todo

dia, eu não gosto. Quando eu venho pro centro e eu fico o dia inteiro no centro, eu volto

pra casa assim..., quero chegar em casa, tomar banho.

E: O que te incomoda no centro?

Ah, não gosto, muita gente, muito barulho, as pessoas são muito nervosas, essa coisa de

dirigir, assim, né, na cidade, as pessoas são muito nervosas, você não pode demorar pra

sair no farol, fica todo mundo te xingando e isso é muito louco, muito ruim. Quando, no

1º. ano, que eu vinha de ônibus e tal eu estava grávida eu vivia triste. Pó, você está

grávida, de 7 meses, você chega no ônibus as pessoas fingem que não viram, que estão

dormindo pra não te dar o lugar, sabe, então as pessoas são muito egoístas, assim, elas

só pensam nelas e isso eu acho muito ruim, isso é São Paulo, porque não é só porque

são os brancos, porque eu já morei em cidades pequenas as pessoas não são assim, né,

as pessoas são muito mais solidárias umas com as outras. Aqui não, eu acho muito

chocante, eu não consigo me acostumar, com ver as pessoas dormindo na rua, sabe,

criança, um puta frio e criança sem sapato, só de bermuda, pedindo dinheiro no farol.

Eu acho um absurdo assim. Sei lá, né, como que a gente chega num ponto desse.

E: E acaba achando normal, né?

É, é normal, todo farol tem uma criança, é normal,.pô, como que é normal? Como que a

gente faz isso? A gente faz isso, porque a gente é uma sociedade, se a sociedade está

nessa situação e tem outros puta ricos, né, que nem andam de carro, andam de

helicóptero pra não ver o menino na rua, no farol. Isso me faz mal assim, isso não me

faz bem não. Esse foi um dos motivos de eu querer largar a Faculdade e ir pro Acre

naquela época. Quando eu estava no Colegial eu também larguei uma vez a escola e fui

morar na Ilha Grande.

E: Ah é?

É. Eu fui pra lá no 1º. Colegial, passar férias, com uma amiga, que tem uma casa lá. Aí

eu falei eu quero ficar aqui, no mato, que não tem carro, não tem energia elétrica, sabe,

as casinhas assim simples, as pessoas são simples, né, uma outra vida. Aí eu falei pros

meus pais que eu ia ficar lá eles ficaram malucos, porque eu tinha 15 anos, estava no 1º.

Colegial, mas eu falei, não, eu vou ficar, não vou, fiquei lá um ano.

A minha amiga tem uma casa lá, né, a família dela é de lá, essa minha amiga do

Colegial, mas é que a casa ficava vazia, eles só usam no feriado, em férias, fica o ano

inteiro a casa vazia, aí ela me emprestou, eu fique morando lá.

E: E o que você fez lá?

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Ah, tem tudo, no terreno todo lá, tinha fruta pão, mandioca, banana, mamão, peixe, não

tem energia elétrica, então os pescadores pescam no fim da tarde e o que eles não

venderam, eles dão pras pessoas que moram ali, então comida não faltava, não tinha

dinheiro, mas comida não faltava, tinha tudo. Aí no feriado eu trabalhava numa pousada

que tinha lá, dava pra descolar um dinheirinho, mas fora de feriado eu só andava,

nadava, cuidava do terreno dela foi ótimo, foi ótimo, mesmo, me fez bem, eu sempre

tirei uns períodos assim da escola. Eu fui sempre bem na escola, mas na oitava série eu

larguei a escola e fiquei um ano sem estudar.

E: Você ficou em casa?

É, fiquei em casa, fiquei só trabalhando com meu pai, ele falou que se eu não fosse eu

tinha que trabalhar. Aí, foi quando eu comecei a trabalhar. Aí depois eu voltei, fiz o

Colegial, só que eu fiz um ano e também parei, aí fiquei lá um ano e voltei. Aí eu fiz o

2º. e o 3º. no supletivo, mas eu não tinha dificuldade com essa parte de aprendizado.

Acho que a minha dificuldade maior era São Paulo, eu não gosto de São Paulo, eu quero

me formar e ir embora daqui.

E: Você pretende?

Pretendo. Eu quero continuar trabalhando, com as aldeias. Eu aqui nem acabo

trabalhando tanto em São Paulo, porque as aldeias que eu trabalho são em Parelheiros,

não sei se você conhece as Aldeias Guarani lá. Elas são na cidade de São Paulo, mas

não é cidade, porque é na beira da represa, tem uma mata, sabe, é outra história, apesar

de ser na cidade e lá ser um bairro muito violento assim, né, mas na aldeia tem um

ambiente diferente, e o lugar que eu moro também, só acabo ficando mais em casa.

E: E além de você ir para as aldeias para trabalhar você sai para algum passeio?

Por perto... batizado, mitãmongaraí que chama, né, eles traduzem como batizado. Não é

batizado do jeito que, da igreja assim. É outro, são rituais, que acontecem lá o (...?...)

festas, mas aí eles convidam as pessoas então eu vou, minha irmã, minha mãe, meu

padrinho, vai muita gente.

E: Você comentou, você tem um filho, né?

Tenho.

E: Quantos anos ele tem?

Vai fazer 4, amanhã.

E: E ele já está na escolinha?

Ele vai na escolinha desde um ano, eu estava na Faculdade quando ele nasceu, eu mudei

pra turma da manhã, mas o pai dele ainda morava aqui em São Paulo, aí eu vinha pra

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Faculdade e o pai dele cuidava. Aí, com 1 ano o pai dele não agüentou morar mais aqui

não, foi embora pro Acre, aí eu coloquei ele na escolinha, então no período que eu estou

na faculdade ou trabalhando, ele fica na escolinha.

E: O que você pensa em fazer quando ele crescer? Como é que você vai passar os

valores, a cultura?

Eu penso, né, porque o pai dele é Kashinauá, saiu da aldeia pela primeira vez com 15

anos, então ele tem dificuldade.em estar perto dele. Não sei se você conhece o Acre,

assim, a aldeia dele é na divisa com o Peru, sabe onde acharam aqueles povos isolados,

é na terra indígena dele, dos Kashinauá, então assim, é bem floresta mesmo. Aí o pai

dele quer levar ele pra conhecer, ainda não deu, porque é muito longe, é 3 dias de

ônibus, você viajar 3 dias de ônibus com uma criança é isso, isso até Rio Branco, de

Rio Branco pra cima ainda é uma semana de barco, então é muito longe, estou

esperando ele ficar um pouco maior, mas aqui em São Paulo ele tem bastante contato,

porque toda vez que vem alguém.Kashinauá fica na minha casa. Continua o mesmo

esquema de quando eu era criança, ele tem muito contato com os indígenas em geral.

Outro dia eu estava ouvindo um programa de rádio, foi engraçado, estavam conversando

em português, mas ele falou mamãe, isso é índio falando, né? É, por causa do jeito que a

pessoa estava falando, ele identificou assim, sabe, e ele fala: eu sou índio, muita gente

acha que ele é japonês, porque ele tem o olhinho bem puxado. Aí ele fala, não, eu sou

índio.

Na escolinha dele, eu já fui lá fazer atividade com as crianças. Acho que é importante as

crianças terem uma relação legal com essa questão dele ser índio e tal, aí a gente, o pai

dele já foi lá, fez brincadeiras junto com as crianças, eu já fui lá conversar com as

crianças, ler histórias, então assim é, a escola dele tem um a relação boa com ele e com

a gente, porque tudo que eles querem saber eles vem perguntar, sabe, é uma relação boa

com a escola e com os colegas da escola. Mas ele está feliz, ele gosta desta escola. Ele,

no começo, com 1 ano eu pus ele numa outra escola, ele não se adaptou e eu também

não me adaptei, eu achava muito louco, tudo, a escola e tal, tudo era pagar, sabe, tipo

dias das crianças você paga um monte de bugiganga, dia dos pais, você paga pra eles

fazerem alguma coisa, dia das mães você paga, sabe, aquela coisa assim e ah, outra

coisa, tudo que eles queriam que a crianças fizessem eles ofereciam alguma coisa em

troca, sabe. Tipo, ah, se você fizer isso, a gente te dá um pirulito, sabe, eu achava isso

um absurdo. Assim, a escola é cheia de alunos, então tem um monte de pais que

concordam com isso, mas eu não me dei bem, aí um dia eu fui buscar ele na escola, aí a

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professora fez uma coisa dessa na minha frente, aí eu falei eu não quero que você fique

dando essas porcarias pra ele, aí ela discutiu assim comigo e me desautorizou na frente

dele, e falou: mas aqui dentro da escola sou eu que mando e deu.mesmo assim, sabe, aí

ele não voltou mais lá. Aí nessa escola que ele está hoje eu gosto, ele se deu bem, tem

um quintalzão, sabe, é um lugar gostoso, crianças de várias idades convivem juntas, não

tem uma divisão por classe, eu achei bem legal, porque como as crianças aprendem, é

assim que a gente aprende na aldeia, convivendo com os maiores, com os menores, não

tem essa coisa de você dividir eles desde pequenininhos por classe, só da idade deles, eu

acho meio esquisito, né, porque como que eles aprendem, só com os adultos? Então ele

está feliz com a escola dele. Agora a preocupação é que está acabando, né, daqui um

ano ele vai ter que entrar na 1ª. série, aí eu ainda não sei o que eu vou fazer.

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Entrevista 3: P.

Onde você nasceu, onde você viveu?

Então, nasci no Real Parque, que é o lugar onde tem lá a concentração de Pankararu.

Vivi lá até os 4 anos, morava de aluguel, depois eu mudei lá pro Jardim Ângela. A gente

tipo assim, lá em casa a minha família, que é considerada Pankararu, eu meu pai e

minha irmã, porque a minha mãe é filha de espanhóis então não tem nada a ver, a gente

é isolado entendeu, porque a concentração de Pankararu fica mais no Real Parque

entendeu, na favela do Real.

E: Por que vocês saíram de lá?

Porque meu pai tava procurando um lugar melhor pra gente morar entendeu, ficar perto

da favela.

E: E aí você morou lá até que idade? Ainda mora lá?

Moro lá ainda, tem 23 anos que eu moro lá.

E: Você tem contato com a comunidade indígena que morava no Real Parque?

Não. Só tenho contato nos nossos encontros aqui na PUC.

E: Você tem lembranças dessa fase no Real Parque?

Do Real Parque tenho. Lembro da minha infância, bem do comecinho mesmo... quando

eu brincava lá com os meus primos na favela. Tanto que quando eu mudei lá pro Jardim

Ângela, demorou pra eu me acostumar lá.

E: Então você tem contato com o resto da sua família?

Tenho, tenho. Só não tenho contato com a aldeia, eu só fui pra lá uma vez, em 97.

E: Ah, e como é que foi?

Foi interessante, apesar que eu não participei muito do ritual que tem lá, mas foi

interessante conhecer o lugar que meu pai nasceu.

E: Onde é?

(...?...), Pernambuco.

E: Então você teve contato com a cultura?

Tive contato. Então minha irmã tem mais contato com a cultura né, tanto que ela até

fuma cachimbo, mas eu não.

E: E por que ela tem mais contato? Por que ela foi atrás ou por que seu pai mostrava?

Ela que vai atrás, meu pai compra pra ela.

E: O que você sabe da sua cultura de origem?

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Eu sei dos Torés, dos costumes, entendeu, eu sei no que eles acreditam, sei coisas

básicas assim.

E: Me conta...

Conto, posso falar um pouco dos Praiá, entendeu? Os Praiá são uma espécie de guia

espiritual, cada família tem seu Praiá, cada Praiá tem um nome. Você já viu um Praiá,

não já?

E: Não.

Nunca? Nem aqui na PUC? O que diferencia um Praiá do outro é um lenço, uma

espécie de uma bandeira que ele tem na cabeça, uns lenços coloridos, que tem desenhos.

Cada família tem o seu e quando a pessoa tem um Praiá pra usar aquela. roupa ela tem

que ser escolhida, entendeu? Só quem foi escolhido é que pode usar aquela roupa do

Praiá pode chamar por ele.

Então, sei do Praiá, sei também do ritual que tem do Menino do Rancho. O que

acontece lá, que é um momento que quando você tem um apuro, é como se fosse uma

promessa. Você faz uma promessa, vamos supor: você tem um filho, aí seu filho ele

nasce com uma doença, alguma coisa ou aí ele fica doente. Aí você promete para aquele

Praiá o seu filho. Aí você promete que vai colocar ele no Rancho. Pessoal chama de

menino do rancho. Aí você escolhe o padrinho e faz esse ritual lá. É uma coisa muito

legal, tem até vídeo sobre isso, se você quiser levo você pra você dar uma olhada.

Geralmente, quando acontece, vamos supor, se acontece em São Paulo os pais levam a

criança pra lá, pra pagar essa promessa lá, entendeu? É só lá que pode pagar.

E: Você sabe como é a rotina, o modo de vida, como é lá? Você vê alguma diferença

entre a vida daqui e de lá?

A diferença daqui pra lá é porque o pessoal lá eles são muito próximos da cultura,

entendeu?

E: E o modo de vida?

Meu pai, quando meu pai vai pra lá eles viviam de agricultura, mas hoje em dia não,

hoje em dia eu não vi lá quando eu fui, eles vivem mesmo da FUNAI agora.

E: E seu pai veio pra cá com que idade?

Meu pai veio de lá com dezoito anos. Conheceu minha mãe aqui, minha mãe era casada

já, tinha dois filhos ele conheceu ela, eles tiveram eu e minha irmã, minha irmã é mais

velha que eu. Meu pai começou a ensinar um pouquinho da cultura mesmo pra gente eu

tinha treze anos.

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E: E você se interessava?

Me interessar eu me interesso, mas é que pelo menos eu e os que nasceram aqui a gente

sente isso é uma coisa que eu acho, que o pessoal que nasceu lá é um pouco diferente,

tratam a gente com um pouco de diferença, entendeu? Mas isso aí é normal. Ah, tipo,

vocês não são índios que nem a gente, vocês tem que conhecer a cultura. Acontece

muito isso, pode falar que não, mas acontece.

E: E o que você acha disso?

Ah, eu acho besteira, eu acho que está no sangue entendeu? A cultura tem a ver, mas

está no sangue. Se você vai viver ali com os índios, você pode ser chamado de índio só

que você nunca vai ser índio, está no sangue, entendeu, não tem esse negócio de cultivar

a cultura, é importante, pra não deixar morrer, mas eu acho que você nasceu na sua

família você é índio.

E: Me conta mais sobre os seus estudos.

Eu terminei o ensino médio eu tinha 18 anos ....(?) estudar, depois eu fiz cursinho na

Poli em 2002 aí em 2003 eu prestei vestibular aqui pra Física, aí eu tava com muita

dificuldade na Física aí eu fui pra Pedagogia e agora eu estou no último ano graças a

Deus da Pedagogia.

E: E você gosta?

Gosto.

E: E como foi na escola? Durante o ensino médio e fundamental? Você gostava?

Gostava, gostava muito da escola... tanto que quando você é mais novo você fica

torcendo pra chegar nos 18 anos, você não tem vontade de ir pra escola, mas depois que

passa você fica com saudades de tudo. Acho que acontece com todo mundo.

E: Nessa época como você se colocava? Você falava que era o que? Índio, branco?

Eu falo que eu sou índio. É que tipo assim, existe uma barreira, às vezes você fica meio

assim de falar, porque as pessoas brincam, tudo é programa de índio, tem muito disso.

E: Você percebeu algum preconceito, alguma coisa chata?

Me senti assim, como eu posso falar.......... senti o preconceito assim uma vez, quando

eu fui num encontro do movimento indígena com o movimento negro, acho legal a

bandeira deles, mas acho que rola um preconceito. Nesse encontro eu fui testemunha,

testemunha não, aconteceu comigo, num encontro que teve lá no teatro Óregon. Aí eu

cheguei lá no teatro e não sabia se era lá, não tinha certeza. Aí tinha um senhor negro lá

que estava recepcionando os convidados, aí cheguei pra ele e falei que eu ia participar

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do evento que seria no teatro Óregon, aí ele pegou, olhou pra mim e falou não é aqui

não. Mas aqui não é o teatro Óregon, ele falou é, ma me falaram que é aqui. Ele: não,

não é aqui não. Aí a Ana chegou, aí a Ana falou que era lá sim. Aí a Ana falou: ele é do

movimento indígena. Aí ele olhou na lista, viu meu nome e ficou todo sem graça. Aí

quando chegou lá dentro, tinha um auditório. Tinha 2 lados. Eles sentaram de um lado,

se excluíram da gente Aí a gente sentou do outro, ficou dividido, entendeu? Então eu

naquele dia me senti mal, vou falar pra você. É que às vezes o preconceito vem da

própria pessoa. É porque às vezes, posso te falar, tem índio que eu conheço que não

gosta de branco, não daqui de São Paulo, estou falando de Brasília. Tem branco que não

gosta de índio, tem negro que não gosta de branco, tem negro que não gosta de índio.

Eu acho que o preconceito às vezes parte do individual, entendeu?

E: Quais eram as suas expectativas, seus sonhos, seus medos ao entrar na PUC?

Ah, eu sei lá hoje em dia o mundo está muito difícil, meu sonho mesmo era ter um

curso superior mesmo, mas a Pedagogia, vamos dizer assim, que eu me descobri. Eu

comecei a fazer Física aí eu comecei a dar aula no estágio, como professor eventual, eu

gostava, comecei a me interessar e aí eu mudei de curso.

E: Na PUC você teve alguma dificuldade?

A PUC em si me ajudou muito. O problema, como eu falo, é relacionamento individual,

entendeu? Aqui na PUC, não sei se acontece isso na sua sala, mas na minha pra aceitar

o diferente é difícil, as pessoas não aceitam, pode ser em cor, pode ser em classe social,

pode ser em tudo, não aceitam o diferente. Comigo não, eu vejo com outras pessoas.

Tem pessoas que querem debater, quer brigar, por causa das diferenças, eu acho que a

diferença existe quando você fica colocando ela a todo momento ali. Quando você faz

as pessoas enxergar as diferenças. Porque a diferença vai existir sempre, mas se você

ficar toda hora mostrando tem diferença, diferença, você nunca vai se sentir à vontade,

entendeu?

E: Você sentiu alguma dificuldade no curso?

Física era muito puxado, agora pedagogia não, pedagogia é relax.

E: O que você acha da transculturação?

Acho interessante, acho que é o Brasil, o Brasil é uma mistura. Se você perguntar qual a

origem do brasileiro eu não sei dizer. Falam que é os índios, pode até ser, tem aquela

história lá que quando os portugueses chegaram os índios já estavam.

E: E o que você acha dessa mistura?

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Normal, né? Acho que pelo gosto da família, pelo gosto do meu pai a gente casava com

indígena, mas acho que isso não vai acontecer.

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Entrevista 4 - D

E: Me fale um pouco sobre você?

(...?...) Eu comecei a.fazer um estudo também em cima eu comecei a enxergar um

pouquinho sobre a realidade das comunidades principalmente lá em Bauru, porque

existe uma estrutura montada pelo Governo do Estado, não sei se você chegou a

....Existe uma estrutura formada pelo Governo do Estado, o Governo do Estado montou

algumas estruturas assim onde em cada região, aldeia ou reserva, os próprios

professores de lá começam a dar aula. Então só que, na teoria deveria ser assim, né, os

próprios, as pessoas da aldeia dão aula de 1ª a 4ª série (...?) de aldeia. Só que como seria

feita essa formação? Então acontece o seguinte: eles pegaram um grupo de alunos da

própria reserva, trouxeram aqui na USP, entendeu? E eles ficam 15 dias aqui na USP,

num hotel aqui na rua da Consolação e 15 dias na aldeia, e aí eles dão a aula, pro

pessoal. Só que é de 1ª a 4ª série, né, então é muito restrito ainda e até eles não foram

formados através de um concurso, ou através, não fizeram vestibular, então eles são

considerados um professor de reserva, vamos dizer assim, quer dizer.. não funciona

desse jeito. Se não tiver uma visão um pouquinho mais abrangente da realidade não vai

funcionar. Então, daí eu comecei a perceber a (...?...)

E: Me fale sobre a sua vida?

Então, isso é uma linha só, né, quer dizer, na verdade eu estou olhando o contexto geral.

Então, eu faço Ciências Sociais, estou no 2º. ano, agora o 4º. Semestre agora que a gente

está passando, né. É pra falar um pouquinho da história do...

E: ...onde você nasceu, onde você cresceu...

Eu nasci na verdade em São Paulo mesmo, Santo André. A história do grupo étnico, né,

principalmente o meu, que eu participo é uma história um pouquinho diferenciada das

demais. Por que? Porque em mil oitocentos e alguma coisa, um grupo de Guarani

saíram da região da fronteira entre o Paraguai e o Mato Grosso e resolveram descer em

busca da terra....e aí eles desceram via rio Paraná, do rio Paraná eles cortaram eu acho

que pelo, uma parte veio pelo rio Paranapiacaba, acabaram formando alguns grupos ali,

algumas aldeias na região do Paraná, que no passado eram na divisa de um Barão

chamado Barão de ....., que foi um Barão que ficou com muita terra na época da divisão

ainda, quando era colônia. Os grupos Guarani formaram um grupo indígena ali, dali eles

foram expulsos e dessa expulsão alguns, eles se deslocaram pra vários lugares, uns

foram pra Bauru, outros se deslocaram pra Laranjinhas, que é um posto no Paraná

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também, uma reserva, outros se deslocaram para o litoral de São Paulo, esse é o grupo

étnico Guarani Ambá Verá e se formou a reserva em Bauru, onde minha mãe nasceu,

entendeu?

E: Entendi.

E aí só que a região do centro oeste paulista foi muito, houve muitos conflitos, porque

era uma região é onde existia uma grande..era assim, os Guaranis estavam ali num lugar

aonde todo o progresso cafeeiro tava indo de encontro com eles, e a expansão da

Ferrovia Noroeste Paulista. Então, quer dizer, a Noroeste Paulista inclusive passou por

dentro da reserva e ali muitos dos grupos foram feitos escravos, outros foram prostitutos

sexuais e foram também expulsos daquela reserva. E aí, depois de várias, aí minha mãe

resolveu sair de lá e voltou pro Paraná e no Paraná ela casou com um não índio e veio

pra São Paulo e aí eu nasci.

E: E seu pai?

O meu pai é não índio. Eles se conheceram no Paraná, entendeu?Nessa reserva,

Laranjinhas.

E: E seu pai....

Meu pai, depois de algum tempo, minha mãe se separou. Inclusive na história de...

Guarani é assim, todo Guarani ele anda muito e ele sempre volta pra sua terra natal, um

dia minha mãe resolveu ir pra Bauru e não voltou mais. E aí a gente voltou toda a nossa

trajetória do passado, voltou tudo pro presente, e aí a gente começou a se envolver, eu

fui morar lá, e estudei lá, e depois eu vim pra São Paulo pra terminar os estudos.

E: E você tem irmãos?

Tenho.

E: E onde vocêestudou?

Eu estudei lá...eu estudei... primeiro eu estudei aqui, no começo da, aqui em São Paulo,

e depois minha mãe.... Ah, escola pública, né? Escola pública, normal, eu nunca tive

muita dificuldade na escolas assim, principalmente na minha região lá, aonde eu moro

no extremo leste de São Paulo. Era um lugar que tava se iniciando ainda, uma COHAB

que estava no início, então muitas pessoas acabaram praticamente se formando na

comunidade. Então a gente nunca teve dificuldade de se envolver com o todo o redor.

E: Você nasceu em São Paulo?

Eu nasci. E fiquei até 1980, em 80 nós voltamos.

E: e você morava com quem?

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Eu, minha mãe e meus irmãos. Em 1980 nós voltamos pra lá e aí de lá pra cá a gente

vive indo e voltando. Minha irmã está lá.

E: E depois?

Depois eu voltei, continuei os estudos lá, né, concluí o primeiro grau, porque eu ainda

estava no primeiro grau e vim, fui fazer o segundo grau aqui em São Paulo. E depois...

E: como foi a sua adaptação de um lugar pra outro?

Então, como eu te falei eu nunca tive muita dificuldade assim, né, (...?...) que acaba

sentindo a (...?...) eu acho que hoje em dia em acho que eu tenho uma visão um pouco

mais ampla,né, é diferente porque, por exemplo, eu fui.em Bauru uma época e trouxe

parentes meus, é tão diferente, porque imagina você trazer alguém que nunca entrou

dentro de um metrô, nunca andou, nunca viu esse movimento, isso aqui é uma loucura

pra eles, né, pra quem não está acostumado com essa.. e aí você percebe que é uma

referência muito grande né, você que acabou voltando e ...que acabou saindo, né, é um

choque.

E: E como era sua vida lá na aldeia?

Então, quando eu cheguei em 1980 ainda era uma região muito...por exemplo, os

Guaranis ainda estavam numa região que eles chamam de Batalha, né. Era assim, como

era, né? Até porque a região de Bauru foi uma região muito sofrida, né, uma região que

sofreu um processo de transformação muito grande. Pra você ter uma idéia de

transformação na época da ditadura: um Guarani, ele vinha pra São Paulo conversar

com o presidente, entendeu? E daqui ele levava uma divisa e ele já voltava como

capitão. Ele fazia parte do exército. Então imagina o que mudou na estrutura cultural

dele, daquela região. Não foi só de lá, foi no Brasil inteiro que aconteceu isso,

entendeu? Dessa transformação se formou aquela reserva, e aquela reserva era

tradicionalmente era uma reserva que tinha influências do Guarani e do candango????,

mas com esse processo de transformação e até por introdução na época do antigo

Marechal Rondon, o Marechal Rondon, por exemplo, ele trouxe do Mato Grosso uma

outra etnia e essa outra etnia foi conviver junto com os Guaranis, entendeu? E aí dessa

transformação, dessa união, né, por exemplo, se formou duas reservas. Que era uma

reserva conhecida como...antigamente era o Posto, a reserva Ararubá, entendeu? Mais

pra frente, na época que eu estava chegando já era, já existiam duas. Existia já a reserva

dos Guaranis e a reserva dos Terenas. E por incrível que pareça eu fiquei na dos

Terenas.

E: Ah é? Por quê?

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Porque eu tinha um tio que, porque assim, existia uma sede, né? Uma sede principal

onde tinha a escola e a escola era próxima da sede. Então nós ficamos próximo e é

aonde até, a gente estava no lugar onde estavam os Terenas. Depois do conflito que

passou... nessa época ainda existia então duas reservas tanto do lado Guarani quanto do

lado Terena. Então, era assim, eu estava de encontro com meus parentes e eles estavam

nessa região do Batalha que era muito longe, era muito longe, coloca aí...a gente descia

na época de trem, a gente pegava o trem aqui na Estação da Luz e tinha uma estação de

trem dentro da reserva. Tinha, não tem mais, infelizmente já não existe mais. E a gente

descia e era interessante porque quando a gente descia nessa estação o trem inteiro

colocava o rosto pra fora assim, queria ver, né? Quem são os índios?...risos...A gente era

atração, né? Quando a gente descia, cheio de saco, sacola, compra, nossa, era demais,

era demais, isso eu não vou esquecer nunca, nossa isso vai ficar na minha lembrança pro

resto da vida. E esse pessoal todo dando tchau pra gente, a gente não entendia nada,

imagina, a gente estava acabando de chegar...risos.. mas era um barato, e pra ir, pra

você ter noção, da estação de trem até aonde estavam os Guaranis era mais ou menos

uns 12 quilômetros e pra você andar 12 quilômetros era muita coisa e coloca que não

era... ah, era no asfalto... não! Uma areia, areia mesmo aquelas areias que entram no pé

até a metade do seu pé e você anda e não anda, porque você não consegue andar. Nossa,

é uma loucura. A gente, imagina, eu, minha mãe e meus irmãos, era muito longe, muito

longe, muito longe, a gente tinha que andar muitos quilômetros. E tinha que passar por

dentro de um cemitério, eu lembro até hoje, que era o cemitério dos Guaranis, era o

cemitério dos Guaranis.

E: e você disse que você foi pra lá em 80 e você morou lá?

Eu morei lá. Eu fiquei lá até mais ou menos 87, 88... quer dizer... é.

E: Me conta mais um pouco sobre como era a vida lá. Se era diferente...

Puts, em 1980 ainda era, como eu tava dizendo, 80 ainda era ditadura militar, e como, e

vindo daquela região eles também começavam a já... transformar, né, porque a ditadura

mudou muita coisa, principalmente deles a gente percebia que tinha já uma certa

hostilidade entre eles mesmo, né? E até os grupos étnicos já não se combinavam mais.

Não se combinavam porque culturalmente já não tem muita coisa a ver. Os Terenas eles

tem, eles são voltados pra agricultura familiar, os Guaranis eram mais na área espiritual,

uma cultura mais voltada pra reza, oração, era uma língua completamente diferente. Um

é do tronco Tupi, o outro é já é de outro tronco que eu nem sei bem também. E a idéia

daquela, da construção daquela reserva era transformar numa fazenda. Realmente ela

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tinha todas as características de uma fazenda, entendeu? Era um lugar já desmatado na

época, mas eu depois conversando com até gente de fora da região, todo mundo, o

pessoal da região ali é um dos lugares mais bonitos que tinha, no aspecto de floresta,

meio ambiente mesmo e foi muito transformado. É como se ali tivesse todo o ouro que

(...?...) e era muito grande aquilo, é um terreno muito grande lá.

E: E você ia pra escola... Como era sua rotina lá?

Então, na aldeia não tinha muito o que fazer. Ou a gente ia pescar, ou a gente ia nadar

no rio, ou a gente ia catar, pegar fruta, no mato, mas naquela época ainda tinha bastante

mato, tinha muito tatu, tinha muito tamanduá, tinha muito veado, tinha muito, tinha

muito... sucuru tem até hoje lá, nossa.

E: E você gostava?

Eu gostei, até que eu gostei dessa fase. Foi uma fase tão bacana, sabe? De, que hoje em

dia eu, às vezes eu me sinto até um pouco diferenciado das pessoas, porque eu já vivi

tanta coisa, já. Um mundo tão diferente, e as pessoas vivem só esse mundo louco,

doido, não sei.

E: E na adolescência?

Então, depois nessa época eu voltei, um pouquinho mais na adolescência eu voltei pra

cá.

E: Por que você voltou?

Eu vim pra estudar, na verdade eu vim pra estudar. Minha mãe ficou, minha mãe ficou

em Bauru...

E como foi a adaptação?

A adaptação foi igual, a adaptação foi normal, porque aí eu voltei com meus amigos que

eu já tinha, que eu já conhecia, né? De antes.

E: Você também gostava daqui?

.Gostava, eu sempre gostei dos dois, hoje em dia eu me dou muito bem, eu vou pra

Bauru, a gente vai na cidade, conhece todo mundo, eu vivo uma vida meio paralela, mas

a minha intenção realmente é voltar e fazer de tudo pra tentar restituir, retribuir???

alguma coisa pra eles, eles estão necessitando muito, entendeu, eu acho que eles estão

necessitando muito de uma orientação.

E: ...essa orientação....

È. Eu quero fazer Antropologia, completamente voltado pra área indígena mesmo,

entendeu?

E: E como é na PUC?

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...falar como era, né? As pessoas olhavam pra mim, já me chamavam de índio, muita

gente me chama de índio.

E: É? E você se incomoda com isso?

Nunca tive isso, é uma coisa normal pra mim. Todo mundo na minha vida sabia, sabe

até hoje, né...chegou pra mim...levou no ônibus, excursão pra aldeia. Nunca teve muita,

a gente, muito pelo contrário, né, a gente tenta mostrar um pouco da cultura, num lugar

que é difícil, onde existe uma grande discriminação, ninguém quer saber.

E: E como foi então a sua vinda pra PUC?

Então, a minha vinda pra PUC foi o seguinte: eu, quando eu estive em Bauru, em 2006,

eu comecei a freqüentar os lugares da.., a escola, comecei a freqüentar, a comunidade

mesmo, conhecer aquele ambiente, né, e eu via que tinha muita coisa que precisava ser

feita, até como orientação, um lugar que tinha muitas doenças, tinha muita, tem famílias

lá que têm muito problema de diabete, tem famílias que têm muito problema de câncer,

tem muito problema lá. Na área da educação, principalmente, é uma área que está

necessitando de uma visão indígena, porque normalmente tem a visão do não índio, né e

a visão do não índio é....a realidade, porque se você não entende esse ambiente, como

que você vai fazer...isso me chama muito a atenção, falei caramba eu preciso fazer

alguma coisa pra esse pessoal. E a minha intenção, desde o princípio, né, aí quando eu

vim pra São Paulo, em 2005, eu liguei pro Benedito. Aí eu liguei pro Benedito, falei

assim, até eu falo pra todo mundo o Benedito é uma pessoa assim que, liguei pra ele e

falei: olha Benedito, eu estou querendo voltar a estudar, eu fiquei sabendo que tem um

cursinho na PUC e eu queria, eu já tinha pensado até no curso, já, já tinha feito umas

pesquisas, tal, ele falou, não, tudo bem eu vou ver e ligo pra você. Daí ele ligou pro

Foco, você chegou a conhecer o Foco? O Foco é um cursinho da PUC, lá em Santana e

aí ele falou pra mim, falou olha, ele me ligou depois e falou, olha, eu liguei no .Foco tal

então se você quiser você já vai no, em Santana, conversa com um rapaz lá, chamado Zé

Antonio, eu acho que é um professor inclusive de Psicologia também. Aquele dia eu

quis matar ele, cheguei lá às 10 horas da manhã, né, eu falei pra ele: o Benedito ficou de

falar com você pra ver se dar pra eu começar, ele falou, não, você vai começar agora. Aí

ele já abriu a porta da sala de aula e falou assim: pessoal, pessoal, é o seguinte, tem um

índio aqui, eu quis matar ele...professor na sala...eu fiquei vermelho na hora, fiquei

vermelho na hora, todo mundo olhando pra mim, vocês vão aprender a conviver com o

diferente, eu queria matar ele. E até hoje eu falo pra ele, meu, aquele dia eu queria .te

pegar no pescoço e aí numa boa, comecei a conversar, já fiz amizade com todo mundo,

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já fui pegando caneta de um, lápis do outro e comecei a freqüentar o cursinho, né, que é

um programa chamado Diversidade na Universidade, que era um programa que a PUC

tinha em parceria com o Ministério da Educação e com a Unesco e aí quem passasse

eles iam pagar a entrada da Faculdade...eu sei que eles pagaram, depois eles

depositaram o dinheiro na minha conta, eu recebi acho que R$ 900,00. Eu fique mais

contente porque quem depositou foi a ONU.

E: Ah, é?

Eu fiquei mais contente porque poxa eu comecei lá em 2005, pensando em vim e fazer

uma coisa, acho que está dando certo e você vai vendo que vai dando uns passos

adiante, né? E é como se fosse um reconhecimento, né? E fazer a faculdade pra mim

seria caro, se qualificar pra tentar trazer uma nova diretriz, vamos dizer assim, pra eles.

Só que eu tenho pensado muito, muito, porque uma nova diretriz às vezes, pra eles, a

gente tem que ver se eles querem também, a gente tem que ser humilde pra saber se

realmente é uma coisa que eles querem, né? Que você interfira, até que ponto, entendeu.

Então, porque eu vejo que muitas pessoas têm intenção de fazer essa mudança, mas, tem

que perguntar pra eles, né, se eles querem.

Como é aqui na PUC

A PUC pra mim é uma oportunidade de ouro, eu não tenho nenhuma dificuldade na

minha sala de aula, assim, vamos dizer de mostrar pra todos eles que a minha intenção é

outra, muito pelo contrário, ainda existe alguns debates ainda que eu acho bom eu estar

ali, porque eu consigo dar uma nova visão pra eles também, acrescentar.

E: As pessoas da sala?

Não, o pessoal da sala de aula é tudo bacana, no começo era, eu acho que, no começo

foi assim, eu acho que pelo lado da, da, eu fiz a primeira prova eu lembro até hoje, era

uma prova de Sociologia, né? Aí o professor me olhou e falou pra todo mundo, né? Era

a primeira prova. Eu não vou nem falar nada, o único que tirou 10 foi ele, aí até eu

falei... professor o senhor precisa me preparar, não é assim. Vai falando assim, de

repente eu tenho um treco, caio no chão aí, dá um...E aí eu acho que foi um pouco, que

começou um pouco pela área, pela parte do respeito e depois pelo lado mais pessoal, ta,

l aí eu também vi que eu estava no caminho certo, eu me senti, eu falei poxa, ...e até

hoje, eu tive algum debate até com professor mesmo, que tinha uma visão assim, vamos

dizer assim muito preconceituosa, professores, inclusive, que falavam coisas assim que

você ouve e não tem ninguém pra te defender, entendeu? Então ele falou e tomou de

bate pronto, já.

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E: Em que sentido?

No sentido de passar uma imagem dos povos indígenas assim negativa, entendeu,

denegrir mesmo e não era bacana, eu achei que...Professor, pera um pouquinho, não é

assim. E foi desse jeito: pera um pouquinho, não é assim, não é assim. Ficou óh, os

índios estão aí, andando de avião, eles estão bem. Pera aí, está falando de quem? Vamos

se situar, pra de repente não dar a impressão que está todo mundo desse jeito, entendeu?

Não é bem assim, não é bem assim, então por que? Por causa disso, disso e disso.

E Eu fiquei com uma dúvida: quando você...Bauru, a escola que você estudava lá???

Era assim, na época que eu estudei lá tinha uma escola de 1ª. a 4ª. Série.

E: E a escola era igual a escola daqui ou era ???

Escola normal, não, escola normal, é como eu te disse, né? É uma visão do não índio e

quem administra é o Governo do Estado.

E: Ah, entendi.

Entendeu? É escola estadual, como se você encontrasse na periferia de São Paulo, em

qualquer lugar de São Paulo. É a mesma estrutura, não tem nenhuma, não tinha

nenhuma...hoje é que tem uma nova visão assim, mas também não corresponde, eu vejo

que ainda tem muita coisa pra mudar.

E: Sua mãe, seus outros parentes, eles passaram...

Se em algum momento eu me senti dentro da cultura, vamos dizer assim ou fora, em

que sentido?...

E: Sua mãe, sua família...coisa..sua comunidade... não sei...escola.

Não, minha mãe sempre, por exemplo, minha mãe viveu, nasceu em Bauru, como eu

tinha dito, saiu de Bauru, foi pro Paraná, do Paraná veio pra São Paulo, de São Paulo,

veio pro Paraná...já estavam praticamente 30 anos fora da região, e por incrível que

pareça, depois, 30 anos, não, 15 anos mais ou menos, e por incrível que pareça a língua

que ela aprendeu a falar em pequena, pra mim assim o que eu vou lembrar bem disso é

quando ela retornou pra aldeia e viu os guaranis conversando, e ela começou a

conversar também, depois de 15 anos sem falar uma palavra.

E: E você não aprendeu...

Então, e aí a gente conhecia algumas palavras e aí a gente começa a se situar também,

você começa a se situar, você fala: meu Deus, eu conheço outras coisas também, né. E é

muito interessante isso. Hoje não, hoje já estou mais dentro da situação do que , do que,

do que naquela época, né. Mas teve uma grande influência minha mãe sempre foi uma

pessoa assim que tinha a, a (...?...) eu sou índio na frente. Nunca, nunca foi passado pra

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gente que coincidisse a questão cultural, religiosa, espiritual, cultural, vamos dizer

assim do Guarani é uma coisa muito dela, íntima, entendeu? Pra você ter uma idéia,

quando você está fazendo...uma oração, se...uma oração, eu não posso de repente, de

repente alguém, por exemplo minha mãe ela não pode contar pra você qual é a oração

que ela tem, entendeu? E muitos morrem sem passar pro outro.

E: Você pegou isso?

A gente pegou, a gente participou bastante porque na época que a gente morou lá, foi

como eu te disse, né a gente, é como se você voltasse de novo e o Guarani ele tem a sua

casa de reza a sua casa de oração que chama Andarái..

E: E você freqüentava?

Freqüentava, entendeu, aí a gente foi batizado, o meu nome indígena é, a gente tem um

nome indígena, que vem deste batismo guarani, entendeu, você tem o teu nome não

índio e tem um nome indígena, entendeu? Todos, todos os guaranis têm o seu nome e o

nome indígena. O nome indígena que é o principal.....que tem um significado, por

exemplo, o meu nome é...Moranshin, o que significa? Significa que é um moço, né, um

moço, um menino que adora a liberdade, por exemplo, eu tenho asas pra voar.

E: entendi.

E pra você ter uma idéia da importância do nome guarani, eu vou te dar um exemplo:

tem uma tia minha que ela se chama ....Quando ela foi batizada, ela, . ela, prá você

entender: você está numa floresta, nessa floresta tem um trio, um triozinho, sabe o que é

um triozinho? Quando você vai passando não vai formando aqueles caminhos?

E: Sei, sei, trilhas!

Trilhazinhas isso, eu chamo de de trio, triozinhos, e aí você vai passando nesse triozinho

na parte da manhã, tem uma gota de orvalho naquelas, naqueles matos e aí você passa e

bate a perna numa dessas plantas e aí cai aquele orvalho no chão, significa gota de

orvalho que cai.

E: Nossa!!!!

Pra você ver que tem toda uma história por detrás disso, todo guarani é assim, todo.... o

que é a cultura guarani, entendeu?

E...você viveu isso?

Vivi, vivi e vivo até hoje, né? É muito interessante porque você consegue enxergar o

mundo de outra forma. Você consegue entender que o deus não é o mesmo deus, que

tudo que você de repente aprendeu do lado de cá, não tinha a ver com a cultura que você

pertence.

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E:

No princípio eu...viver eu tive, você chega, de imediato, e transforma a sua vida, né?

Mas eu acredito que...lado do bem, sim foi lado bom. A gente, e aí eu comecei a ter

aquela vida...do lugar, né? Então freqüentava...criei um novo grupo de amigos, tenho

amigo até hoje, né, porque na época nós estudamos juntos, hoje... já se formaram

também, muitos deles já se formaram, fizeram faculdade na região, muitos deles são

agrônomos, mais voltados pra esse lado, né, são agrônomos, outros fizeram cursinho ali

pra trabalhar mesmo no campo, mas é uma vida diferente, né? Sabe que você vive num

lugar desse, você, a velocidade da vida delas não é igual à velocidade da vida daqui de

São Paulo, né. Você percebe isso, é como se você chegasse lá e o tempo não passasse,

né? 8 horas lá é 24 horas. Aqui não aqui 8 horas é nada, você tá aqui, tá ali, acabou,

muito corrido, aqui é uma loucura. E eu acho que indo pra lá é como se eu, é como se eu

tivesse voltando pro, no túnel do tempo assim, mas pra você descansar a mente. Nossa,

eu consigo voltar de lá assim..

E: renovado.

Renovado, renovado.

E: E você vai com que freqüência?

Por exemplo, esse ano eu já fui 2 vezes. To querendo ver se dá pra eu ir agora lá esse

mês, aqui, vamos ver esse mês que entra, mas eu cheguei a ir 5, 6 vezes o ano passado.

Eu acho que depois que em entrei no cursinho, na faculdade, acho que aí eu já tinha esse

objetivo de estar, e até porque eu estou fazendo um estudo sobre aquela região, né, eu

estou fazendo, por exemplo, o meu tema é Genealogia e Deslocamento, ou seja montar

toda uma...

Conta dessa trajetória... pra você ter uma idéia, eu estou montando..pai, mãe, tio, tia, da

onde veio, quem é, quem são, da onde são, são do ...são do Paraná, são de Bauru,

são...mais ou menos isso...é o que estou fazendo, que mais?

E: Eu queria fazer uma última pergunta, o que você pensa da transculturação...

Ah, eu penso que foi uma intromissão violenta, sabe, nas culturas indígenas. Eu penso

que eu queira ter sido um índio puro...(risos), eu penso, eu penso que fatores históricos

aí, coloniais, fatores até de crescimento acelerado, ou dessa visão neo-liberal, às vezes,

das pessoas, que não mudou do que era em 1890, ou desde a época do descobrimento

até hoje, não vejo muita mudança de pensamento, não. Eu sei que existe um pequeno

grupo que está preocupado, o restante não quer nem saber, ...vamos dinamitar logo aí,

acabar com esse pessoal aí e vamos viver nossa vida.

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Por esse motivo assim que eu vejo que principalmente depois que eu comecei a

freqüentar a faculdade eu acho que aí que ficou mais claro isso, ficou mais claro essa

visão...acho importante também pra mim foi muito importante esse contato, porque eu

aprendi muita coisa

Talvez, ...tenho sim. Aprendi muita coisa, aprendi a lidar muito com certas coisas,

aprendi a .ser uma pessoa que pode levar muita coisa nova também, mas não só com o

intuito de transformar , acho que mais com o intuito de tentar não transformar, porque

você já conhece o que é transformado, entendeu?

E: Entendi.

Então eu acho que é isso, eu acho que pra mim foi muito bom, eu cobro muito o projeto

do pessoal, porque às vezes eu penso que se não for levado ...que por mais que você

tenha o seu lado indígena, você está num lugar não indígena, você está em São Paulo, a

quarta maior cidade do mundo, aqui tudo acontece, aqui tudo se transforma a cada dia e

penso que as pessoas do projeto às vezes...podem também estar desfocando um pouco e

debandando pra outra linha de pensamento, até é uma linha ocidental mesmo, né?

Porque é a predominante, né, então,.... cobro às vezes do pessoal pra, que você tem que

devolver pra sua comunidade. Eu, por exemplo, nunca tive intenção de entrar na

faculdade pra não fazer isso. Desde o começo, desde quando eu entrei, o objetivo

principal, se não eu não sei nem porque , pra mim não teria sentido fazer Administração,

fazer Direito..

E o que me preocupa mais assim é..com esse crescimento ao redor, né, das

comunidades. ..Por exemplo, pega a, onde a Jaciara mora mesmo, ela está em volta de

tudo, né? Interessante que eles conseguem ainda, eles conseguem manter as tradições

assim de um jeito até, sei lá, ...embora é como eu te disse, se você vai na aldeia, você já

foi lá? Você vai na aldeia você vai se deparar com uma realidade assim, a pessoa

vestida com um tênis, uma calça, uma camisa, até uma camiseta de um clube de futebol,

por exemplo, aí você fala, poxa, mas como mudou, né? E aí de repente você entrando

naquele mundo, você vê que não é bem assim, porque os valores deles são outros,

principalmente voltado pro lado espiritual, entendeu? Esse lado espiritual é o que

prevalece, principalmente na cultura guarani, entendeu? Seja de Bauru, seja da região

do Paraná, seja no litoral de São Paulo, entendeu? Essa diferença assim, existe e até hoje

eles conseguem manter essa tradição, entendeu, eu acho interessante, e quando você vai

numa região assim como a de Bauru e você vê, por exemplo que lá fora, por exemplo,

um desses alunos saindo pra escola e lá na escola já está tendo contato com um grupo de

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alunos que já não está mais ligado na escola, que já está ligado já em vários problemas

da cidade, como criminalidade, como drogas, como.. e você que você está sendo

colocado ali fora de uma forma assim até violenta, porque se você não tiver um certo

acompanhamento...são estruturas e às vezes eu questiono a verdadeira intenção da

escola.

E: Entendi.

Será que é realmente pra educar ou será que é pra fazer parte desse mundo também

continuar...e já, sabe, quanto mais tiver nesse mundo, melhor. Não sei. Eu acho que de

quando eu vou...eu me preocupei, acho que foi um dos focos assim principais...enxergar

isso e falar: poxa, eu acho que está na hora de fazer alguma coisa, entendeu?

Espero que tenha contribuído, né?

E: Muito, foi muito legal.