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38 I ÉPOCA I 2 de fevereiro de 2015 CASO EXTRAORDINÁRIO CAPÍTULO 1 UM PRESO ESPECIAL izinho de um bairro nobre na Zona Norte de São Paulo e cercado por Mata Atlântica, o Presídio Militar Romão Gomes é o único do Brasil exclusivo para policiais milita- res. Suas celas, espaçosas e quase nunca lotadas, têm chuveiro quente, armário individual e, em alguns casos, TV de plasma. Os detentos podem optar pelo trabalho em uma horta ou em um apiário, frequen- tam sessões de cinema e têm à disposição uma biblioteca com mais de 1.000 títulos e uma academia improvisada. A segurança ali é mais flexível. Quem se comporta bem pode evoluir das celas para os alojamentos sem tranca. Do lado de fora, há cercas modestas em vez de muros altos. “Nossa muralha é psicológica”, afirma o tenente-coronel Eli Fraga do Rego, o diretor do presídio. “A tranquilidade daqui não existe em lugar nenhum. Ninguém quer ser expulso ou recapturado e mandado para outro presídio.” Há três meses, a cela X-3 de uma ala do Romão Gomes passou a ser ocupada por um inquilino especial: Cirineu Carlos Letang, de 50 anos, um ex-soldado das Rondas Os- tensivas Tobias de Aguiar, a Rota, tropa de elite da Polícia Militar (PM). Fosse o regimento interno do presídio cum- prido rigorosamente, o novato não poderia estar ali. Letang não se enquadra numa exigência do Romão Gomes: a de que todo preso deveria estar vinculado à PM na ocasião em que cometeu o crime pelo qual foi condenado. “Ele é uma exceção à regra”, diz Rego. Recém-transferido do Comple- xo Penitenciário de Tremembé, a 140 quilômetros de São Paulo, sua permanência na cadeia militar foi autorizada, em caráter extraordinário, pela Justiça. Letang corria perigo em sua antiga casa. Foi um dos 350 policiais militares que, no dia 2 de outubro de 1992, invadiram a Casa de Detenção, no bairro do Carandiru, em São Paulo, durante uma rebelião. A operação desastrosa ter- minou com 111 mortos. Ficou conhecida como Massacre do Carandiru e se tornou um dos mais conhecidos casos de violência em presídios do mundo. Sua complexidade jurídica é superlativa. Na Justiça, o Carandiru resultou no maior processo criminal do Brasil. Na madrugada de 10 de dezembro de 2014, Letang foi condenado a 624 anos de Aline Ribeiro O MATADOR DE TRAVESTIS A história do ex-policial Cirineu Carlos Letang, o único condenado pelo massacre de presos no Carandiru, em 1992, que está na cadeia. Mas ele cumpre pena por outro crime V Fotos: Edson Lopes Jr./Terra, Rogério Cassimiro/ÉPOCA EP869p038_041.indd 38 29/01/2015 20:36:04

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CASO EXTRAORDINÁRIO

CAPÍTULO 1

UM PRESO ESPECIAL

izinho de um bairro nobre na Zona Nortede São Paulo e cercado por Mata Atlântica,o Presídio Militar Romão Gomes é o únicodo Brasil exclusivo para policiais milita-res. Suas celas, espaçosas e quase nunca

lotadas, têm chuveiro quente, armário individual e, emalguns casos, TV de plasma. Os detentos podem optarpelo trabalho em uma horta ou em um apiário, frequen-tam sessões de cinema e têm à disposição uma bibliotecacom mais de 1.000 títulos e uma academia improvisada.A segurança ali é mais flexível. Quem se comporta bempode evoluir das celas para os alojamentos sem tranca. Dolado de fora, há cercas modestas em vez de muros altos.“Nossa muralha é psicológica”, afirma o tenente-coronelEli Fraga do Rego, o diretor do presídio. “A tranquilidadedaqui não existe em lugar nenhum. Ninguém quer serexpulso ou recapturado e mandado para outro presídio.”

Há três meses, a cela X-3 de uma ala do Romão Gomespassou a ser ocupada por um inquilino especial: CirineuCarlos Letang, de 50 anos, um ex-soldado das Rondas Os-

tensivas Tobias de Aguiar, a Rota, tropa de elite da PolíciaMilitar (PM). Fosse o regimento interno do presídio cum-prido rigorosamente, o novato não poderia estar ali. Letangnão se enquadra numa exigência do Romão Gomes: a deque todo preso deveria estar vinculado à PM na ocasião emque cometeu o crime pelo qual foi condenado.“Ele é umaexceção à regra”, diz Rego. Recém-transferido do Comple-xo Penitenciário de Tremembé, a 140 quilômetros de SãoPaulo, sua permanência na cadeia militar foi autorizada,em caráter extraordinário, pela Justiça.

Letang corria perigo em sua antiga casa. Foi um dos350 policiais militares que, no dia 2 de outubro de 1992,invadiram a Casa de Detenção, no bairro do Carandiru, emSão Paulo, durante uma rebelião.A operação desastrosa ter-minou com 111 mortos. Ficou conhecida como Massacredo Carandiru e se tornou um dos mais conhecidos casosde violência em presídios do mundo. Sua complexidadejurídica é superlativa. Na Justiça, o Carandiru resultou nomaior processo criminal do Brasil. Na madrugada de 10de dezembro de 2014, Letang foi condenado a 624 anos de

Aline Ribeiro

O MATADORDETRAVESTISA história do ex-policial Cirineu Carlos Letang,o único condenado pelo massacre de presosno Carandiru, em 1992, que está na cadeia.Mas ele cumpre pena por outro crime

V

Fotos: Edson Lopes Jr./Terra, Rogério Cassimiro/ÉPOCA

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cadeia pelo assassinato de 52 presos. Dos policiais acusa-dos pelo massacre, ele foi o último réu a ser julgado – e éo único na prisão.

CAPÍTULO 2

O SOLDADO DA ROTA

Letang virou policial em 1985. Era um soldado de 28anos quando, naquela tarde de 1992, recebeu, com outroscompanheiros da Rota, a convocação para controlar arebelião de presos no Pavilhão 9 do Carandiru. Por voltadas 13h30, uma briga entre dois detentos dera início a umtumulto entre grupos rivais. A situação fugiu ao contro-le – e a invasão da PM foi autorizada pelo comando daSegurança Pública de São Paulo.

O plano de invasão foi improvisado. Coube à Rota en-trar no 2o e 3o andares do pavilhão. A invasão foi descritacomo “um estouro de boiada” pelas testemunhas. Nosandares em que estava a Rota, a violência se impôs com

A VIDA NA PRISÃOO ex-policial CirineuCarlos Letangé detido em 2011 pelamorte de um travesti.No detalhe, a celado presídio militaronde está agora

mais força. Seus homens dispararam mais de 300 vezes emataram metade dos 111 presos assassinados no massa-cre. “Eles nem sequer renderam ou desarmaram alguém.Chegaram atirando”, diz o perito Osvaldo Negrini Neto,um dos primeiros a chegar à cena do massacre.

Posicionados na soleira das celas, os atiradores da Rotametralharam de cima para baixo e da esquerda para a di-reita. No tribunal, os policiais afirmaram que o local estavaescuro e tomado por uma cortina de fumaça. Segundo orelato deles, apenas devolveram os disparos em direçãoaos clarões que vinham do sentido contrário. “Não houvenenhum disparo por parte dos presos”, diz o promotorFernando Pereira da Silva, que atuou no julgamento.“Pelomenos 90% dos cadáveres tinham tiros na cabeça. Os po-liciais sabiam onde estavam atirando.”

A defesa de Letang apresentou recurso contra a con-denação. “Não existe uma prova sequer de que o PM Xatirou na vítima Y.A decisão foi política, não jurídica”, afir-ma a advogada Ieda Ribeiro de Souza, há mais de 20 anosresponsável pela defesa de todos os ex-integrantes da s

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CASO EXTRAORDINÁRIO

Rota que participaram do massacre. Letang, apesar da penade 624 anos, não está preso pelo caso do Carandiru – umde seus recursos ainda não foi julgado. Encontra-se noRomão Gomes para pagar por crimes que lhe conferiramnotoriedade na crônica policial paulistana. Letang ficouconhecido como serial killer de travestis.

CAPÍTULO 3

O MATADOR DE TRAVESTIS

Depois do Carandiru, Letang levava o que parecia umavida ordinária. Casado pela segunda vez, o jovem soldadoda Rota morava com a mulher e dois filhos, trabalhavacomo policial à tarde e, nas horas vagas, fazia bicos de segu-rança. Na noite de 12 de março de 1993, cinco meses após omassacre, deu os primeiros indícios de que se transformavaao andar pelo lado selvagem de São Paulo.

De folga, Letang perambulou por duas horas na ZonaOeste, uma área de classe média. Dirigia um Fusca bege1974. Numa área de prostituição, parou o carro, baixouo vidro do passageiro e chamou um travesti que esperavapor um cliente. José Wilson da Silva, de 30 anos, conhecidocomo Valéria, curvou-se até o veículo para combinar oprograma. Segundos depois, levou um tiro fatal no ros-to. Naquela mesma madrugada, Letang já havia matadooutros dois travestis: os irmãos Reginaldo e Jaime Félixda Silva, de 22 e 24 anos, de codinomes Viena e Wilma.Letang desferiu vários golpes contra o corpo sem vida deReginaldo. Usou um objeto cortante, arrancou o pênis docadáver e o colocou na boca da vítima.

Um professor de balé testemunhou um dos crimes. Doistravestis anotaram a placa do Fusca. Letang foi expulso dapolícia tempos depois. Em seguida, foi condenado a 44anos e quatro meses de prisão pelos assassinatos cometidosnaquela noite. Ficou 18 anos preso. Na cadeia, Letang setornou evangélico, fez faculdade de sociologia e trabalhounum escritório de advocacia. Chegou a responder a ou-tros 18 inquéritos. Muitos deles, que envolviam homicídio,foram arquivados por falta de provas. Letang costumavaagir sempre da mesma forma. Abordava o travesti e, semmotivo aparente, disparava na direção do rosto. “Assimcomo outros assassinos em série, ele tinha uma assinaturaprópria: um tiro no olho direito”, diz a criminóloga IlanaCasoy, autora de Serial killers – Made in Brazil.

Letang saiu da cadeia em 16 de março de 2011. Depoisde 71 dias, voltou a atacar.

CAPÍTULO 4

A ÚLTIMA VÍTIMA

Numa moto Twister vermelha, vestindo calça jeans,jaqueta de couro, pochete e capacete pretos, Letangdeixou sua casa no bairro de Imirim, na Zona Norte de

São Paulo, na noite de 26 de maio de 2011. Ao chegarà Barra Funda, na Zona Oeste, abordou um travestique, ocupado, recusou-se a fazer um programa. Pró-ximo dali, numa rua onde funcionam, durante o dia,galpões industriais, Alison Pereira Cabral dos Anjos,ou Camila Close, de 23 anos, fazia ponto. Alison tinhaos cabelos pretos esticados por chapinha, silicone nosseios e nas nádegas, a barriga sarada e o nariz corrigidopor cirurgia plástica. Morava na casa de uma cafetinadas redondezas. Letang estacionou a moto e se enca-minhou com Alison para o local dos programas – aoar livre, entre uma árvore e uma Kombi abandonada.Letang pagou com uma nota de R$ 50. Por se recusara dar o troco de R$ 10, Alison levou vários tiros. Umdeles no olho.

Assim que o assassinato de Alison chegou aos delegadosda Polícia Civil, o burburinho tomou conta das rodas decafé. Alguns funcionários mais antigos lembraram logodo nome de Letang, mas o descartaram como suspeito.Achavam que ele continuava preso. Um delegado de plan-tão resolveu fazer uma busca mais detalhada. Descobriu,então, que Letang estava em liberdade. A principal pistada investigação era uma anotação, feita às pressas e noescuro, no dia do crime. Um travesti que presenciou osdisparos copiou o que conseguira enxergar da placa damoto do assassino: ECJ 0___.

Fotos: Niels Andreas/Folhapress e reprodução

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para Roma, Paris ou Londres, para trabalhar. O nomede guerra Camila Close batizou o pizza-bar “CamilaForever”, aberto pela família. No aniversário de Alison,Maria de Lourdes e os outros filhos vão até o cemitério,abrem o porta-malas do carro perto do túmulo e colo-cam “a Claudinha” (Leitte) no som para tocar. Ao ladoda lápide, comemoram a data com champanhe e bolo.

CAPÍTULO 5

O PSICOPATA

Aos olhos da mulher, dos filhos e de sua advogada,Letang é um marido bom, um pai dedicado e um evan-gélico disciplinado. Após o último assassinato, a famíliachegou a fazer um blog – já fora do ar – para combatero que chamava de calúnias. “Ele é absolutamente nor-mal, uma pessoa calma, tranquila e que deveria estarincorporada à sociedade”, diz a advogada Ieda Ribeirode Souza. Procurados por meio da defesa, Letang e suafamília se recusaram a falar com ÉPOCA.

A psicólogos e psiquiatras, Letang relatou ter um paialcoólatra e uma mãe com quem nunca se entendeu.Na adolescência, segundo ele, costumava ser assediadopor mulheres mais velhas. Afirmou ainda ter sofridoabuso aos 17 anos, sem entrar em detalhes. Uma denún-cia assinada pelo promotor Eduardo Martines Júnior,apresentada em 1993, diz que Letang manteve relaçõeshomossexuais com um travesti portador de HIV. Quan-do descobriu, segundo a denúncia, decidiu matar outrostravestis. “Letang nega os crimes, mas é moralista ao falardos travestis. Para ele, são pessoas lesivas à sociedade”,afirma o psiquiatra José Ciro de Paula Barreira, do Insti-tuto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo,que fez um laudo sobre a saúde mental de Letang. Todosos psiquiatras e psicólogos que conversaram com Letango diagnosticaram como psicopata.

A psicopatia é uma perturbação mental, não umadoença. Os pacientes diagnosticados não têm delírios nemalucinações. Pelo contrário. Compreendem, com a maisabsoluta clareza, o mundo real. Letang é descrito por seusinterlocutores como inteligente, educado, articulado efrio. Na penitenciária de Tremembé, usou tais habilidadespara se proteger. Como ex-PM da Rota, Letang era umalvo natural dos demais presos. Mas Letang conseguiu secolocar a salvo – pelo menos até o ano passado, quandoo julgamento do Massacre do Carandiru trouxe o caso devolta à luz.“Ele convenceu os detentos de que sua partici-pação no massacre não foi ativa”, diz o delegado.

Questionado sobre os crimes que lhe são atribuídos,não franze a sobrancelha, não mexe os olhos, não trans-parece emoção. O único assunto que parece mexer comele é o Carandiru. Ao falar do massacre, seu olho bri-lha, diz um delegado. Parece manter alguma espécie deorgulho desse crime. u

Na casa de Letang, com um mandado de busca eapreensão em mãos, o delegado do caso soube queele acabara de vender uma moto com as mesmas ca-racterísticas da que fora descrita pela testemunha docrime. A placa se assemelhava: FJG 0540. Letang foiintimado a comparecer na delegacia. Lá, foi colocadodentro da sala de reconhecimento, ao lado de outrostrês homens com feições semelhantes às dele. Do ladode fora, separados por vidros espelhados, cinco traves-tis que testemunharam o assassinato foram unânimesem apontar o ex-soldado. “Todos o reconheceram semtitubear”, afirma o promotor José Carlos Cosenzo.Letang negou o crime. Em setembro de 2013, foi con-denado a 21 anos e quatro meses de prisão.

“Alison era tudo de delícia na minha vida”, diz Mariade Lourdes Pereira dos Anjos, de 53 anos, sobre o filhomorto. A última vez que Maria de Lourdes falou comAlison foi na manhã do dia da morte, por telefone. Coma voz esbaforida, ele contou que estava atrasado parapegar o ônibus que o levaria até o dentista. Prometeuretornar mais tarde. Naquela mesma noite, um amigo deAlison bateu à porta de Maria de Lourdes com a notícia.

Passados quase quatro anos do crime, a mãe aindacoleciona fotos do filho em canecas, camisetas e am-pliações gigantes pela casa. Para suportar a perda, criouum mundo de faz de conta onde Alison está vivo e viaja

COLEÇÃODE CRIMESO corredor daCasa de Detençãodo Carandiru ficoutomado de sangue.No jornal de 1993,Letang apareciacomo suspeito dostrês assassinatosque cometeunuma noite

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