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CLÁUDIA NEVES

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OReino Encantado de Luzia

A crónica da vivência e a

eterna busca do “Eu”

Ficha Técnica

Título: O Reino Encantado de Luzia. A crónica da vivência e a eterna busca do “Eu”Autora: Cláudia Sofia Silva NevesFoto da capa: Fotografia de Luzia tirada em 12 de Março de 1901, chapa no 19.009,Luísa Grande de Freitas Lomelino, espólio de José de Sainz-Trueva, ArquivoRegional da Madeira.Composição & Paginação: Luís da Cunha PinheiroCentro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras daUniversidade de LisboaInstituto Europeu Ciências da Cultura Padre Manuel AntunesLisboa, março de 2017

ISBN – 978-989-8814-62-3

Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação paraa Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto “UID/ELT/00077/2013”

Cláudia Sofia Silva Neves

O Reino Encantado de Luzia

A crónica da vivência e a eternabusca do “Eu”

CLEPUL

Lisboa

2017

Índice

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1 Quem foi Luzia? 131.1. – O percurso de vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131.2 – O percurso literário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271.3 – A receção da obra na sociedade da época . . . . . . . . . . . . . . 45

2 A eterna busca do “Eu” 532.1 – A vagabundagem pelo mundo e a saudade do que foi . . . . . . . 532.2 – A permanência da solidão no meio da multidão . . . . . . . . . . 652.3 – Ser/Parecer da alta sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72

3 O reino encantado de Luzia 833.1 – As paisagens dos seus reinos mágicos . . . . . . . . . . . . . . . 833.2 – Luzia: fada, mulher e escritora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 923.3 – O fim da magia, o que fica depois da morte? . . . . . . . . . . . . 99Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

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A voz canta, feiticeira. . . Repete mil queridas, velhas coisas que eujulgava não ouvir nunca mais, acorda lembranças que eu trazia a-dormecidas, semimortas dentro do coração. . . A voz murmura, tristecomo todas as vozes que consolam. . . A voz embala, monótona, igual,num ritmo doce de carícia. . . A voz evoca. . . ah! quantos paraísosperdidos! Sim, é a voz do mar, o meu grande amigo. O mar de queconheci todos os encantos, de que adivinhei todos os tesouros. O marque, tantas vezes, calçou de prata os meus pés, encheu de pérolas, osmeus braços. O mar imenso, solitário, profundo como a alma. Omar que tem rendas e tem soluços. O mar. . .

Luzia, Almas e terras onde eu passei, Lisboa,Edições Europa, 1936, pp. 11-12.

Luzia com 26 anos de idade.

Fotografia tirada em 12 de Março de 1901, chapa no 19.009, Luísa Grande de FreitasLomelino, espólio de José de Sainz-Trueva, Arquivo Regional da Madeira.

AGRADECIMENTOS

O meu agradecimento vai para todos os que, de alguma forma, contribuírampara que esta obra se concretizasse da forma mais positiva possível.

Um especial obrigada:À querida Professora Doutora Luísa Marinho Paolinelli, um imenso obri-

gada por ter referido Luzia nas suas aulas, sem isso, este livro nunca tinhaexistido. Obrigada por sempre estar totalmente disponível para ajudar, peloconstante apoio, amizade, boa disposição, e pelas suas assertivas palavras deencorajamento.

Ao meu amigo Joaquim Castanho que sempre me apoiou, semprese prontificou a ajudar, e que mesmo não me conhecendo me conduziu porPortalegre em busca de Luzia. Sem a sua ajuda, esta obra nunca se teria con-cretizado de forma tão completa.

À D. Angelina Conde, D. Teresa Saporiti e D. Conceição Saporiti, pelaamável hospitalidade, graciosa disponibilidade, e pela cedência de documen-tos fulcrais.

Aos meus amigos Carlos Barradas, Sofia Santos, Liliana Martins, e Yan Li,meus companheiros desta viagem, e que percorreram comigo os caminhos,nem sempre fáceis, da edificação e conclusão de um grande projeto.

Aos meus queridos pais e irmão Tiago, pelo seu apoio e amor absoluto.A ti, Margarida, minha fada madrinha, por melhorares sempre os meus

momentos.À Daisy e ao Boris, os meus gatos, que me aquecem o colo, me fazem sor-

rir, e que me iluminaram os momentos de maior fadiga.E a ti Juan, o meu maior obrigada, por acreditares sempre, pela paciência,

pelo amparo, pelo amor mais que incondicional, por absolutamente tudo.

INTRODUÇÃO

“Esquecer é matar e, muitas vezes, morrer. . . ”1, escreveu Luzia, uma escri-tora de fins do século XIX e inícios do século XX, que, talvez nunca o imagi-nando, acabou por cair no esquecimento. Apesar de bastante consagrada nasua época, de ter visto os seus livros esgotarem e serem impressos em váriasedições, a obra, depois da sua morte, nunca foi reeditada. É contra o esqueci-mento da autora, da sua dupla morte, que este estudo pretende contribuir, eé neste ponto que se encontra a sua pertinência, na tentativa de resgatar parao panorama literário português o que se acredita ser um exemplo de grandevalor literário.

Contextualizar Luzia relativamente ao seu percurso e modo de estar navida, às suas convicções e à família a que pertencia, bem como aos momentosque mais marcaram o seu trajeto, é vital para um melhor entendimento dequem foi a mulher e escritora, e é através de toda a sua obra, dos seus papéis,e da imprensa da época, que se irá traçar uma crónica da sua vivência e dabusca do “eu”.

Sendo Luzia uma escritora pouco estudada e conhecida, um dos objetivosdesta investigação passa por responder a questões relacionadas com quemfoi Luzia, como foi o seu percurso de vida, o seu percurso literário, bem comosaber de que forma era recebida na sociedade da época, e como via e vivianessa mesma sociedade.

O estudo tem também por objetivo refletir sobre como o “eu” e a vivênciade Luzia marcaram a estrutura da obra literária. A busca do “eu” está refletidana obra? A criação de um reino encantado deve-se às suas vivências? A obraespelha a sua existência?

1 Sobre a vida. . . sobre a morte, máximas e reflexões, Lisboa, s.e., 1931, p. 78.

10 Cláudia Sofia Silva Neves

Pretende-se também descortinar, através da imprensa da época, como éque Luzia foi lembrada nos anos seguintes ao da sua morte, tentando deter-minar quais, ou qual, a razão do seu esquecimento.

Acima de tudo, ambiciona-se encontrar o “eu” de Luzia, a sua multiplici-dade, por trás das belas e encantadas imagens que cria. Como escreve Bache-lard, “discernir todos os sufixos de beleza, tentar encontrar por trás das ima-gens que se mostram, as imagens que se ocultam, ir à própria raiz da forçaimaginante”2, demonstrando assim, a escritora de excelência que é Luzia,combatendo o seu esquecimento e divulgando a sua obra com esta investi-gação.

O estudo divide-se em três grandes partes.Na primeira parte, tenta-se responder diretamente à necessidade de sa-

ber exatamente de quem se está a falar, onde nasceu e como se formou, quevida teve e como a usou na criação da sua obra, bem como o tipo de receçãoque a sua obra teve na época. Será traçada uma breve biografia em conjuntocom o delinear do percurso de Luzia pelo mundo da literatura, desde comose apaixonou pelos livros na infância à primeira publicação de um conto noCorreio da Manhã, das suas influências literárias à composição de toda a suaobra.

Na segunda parte, analisa-se qual a trajetória existencial que traçou, co-mo reagiu face às vicissitudes e experiências, o que se esperava dela e comodeu resposta às expetativas. Dar-se-á relevo a temas que são uma constanteem toda a obra, como as viagens pelo mundo, a solidão no meio da multi-dão e a sociedade de aparência em que vivia, na qual tinha de representar, eostentar sempre a máscara do que não era.

Por último, na terceira parte, far-se-á um percorrido pelo mundo encan-tado criado por Luzia, procurando e resgatando da sua obra as paisagens,todas as chaves que abrem as portas para esse reino, tentando perceber arelevância que este teve no equilíbrio de Luzia. Será demonstrado tambémcomo se compõem em Luzia as suas três facetas de fada, mulher e escritora.Nesta última parte inclui-se também um levantamento de artigos de jornaisda época, tentando perceber o que ficou depois da morte de Luzia, como élembrada nos anos seguintes e por quem.

2 Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos, Ensaio sobre a imaginação da matéria, São Paulo, Mar-tins Fontes, 1998, p. 2.

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O Reino Encantado de Luzia. A crónica da vivência e a eterna busca do “Eu” 11

Relativamente à metodologia usada é de salientar que a investigação sebaseou em toda a obra literária publicada de Luzia, obra esta “em que avultamas crónicas de viagem, o romance, o conto, e a crítica de costumes que tratousob a forma de diálogos ricos de subtil, mas devastadora ironia, fotocópias dasociedade elegante em que ela própria se movia, e cujo snobismo e hipocrisiadetetava como ninguém”3, como refere Irene Gil.

A pesquisa apoiou-se também em documentos de arquivos, fundações,artigos da imprensa da época, e nas obras dos dois principais autores queescreveram sobre Luzia: Feliciano Soares e José Martins dos Santos Conde.

Procuraram-se também os lugares e as paisagens que habitam os livrosde Luzia e o seu imaginário, tendo sido realizadas visitas à Quinta da Piedade,no Jardim do Mar, à Quinta das Cruzes, à Quinta na Rua do Jasmineiro, ondeLuzia faleceu, bem como à casa onde Luzia viveu na infância, em Portalegre,e à Quinta das Assomadas, na Ribeira de Nisa, entre outros locais.

A investigação teve por vezes algumas contrariedades, pois para além dasobras publicadas de Luzia, sabe-se da existência de volumes e cadernos deapontamentos inéditos da autora, bem como de uma obra pronta a divulgar,mas que nunca veio a público, intitulada Pelos caminhos da vida.

Não se teve acesso a toda essa matéria em bruto, diários, cartas e inédi-tos da autora (salvo alguns apontamentos), mas não foi por falta de empenhoque não se conseguiram tais documentos, porque foram feitas diversas in-dagações por Portalegre, Lisboa e Madeira, contactou-se com os familiaresde Luzia de Portalegre, com familiares do ex-marido de Luzia, com a famí-lia de J. M. S. Conde, e foram feitas pesquisas em vários arquivos, de Lisboa,ao Funchal, passando por várias Fundações, como a Fundação António Qua-dros. Existiram momentos em que se parecia estar muito próximo do inéditode Luzia, Pelos caminhos da vida, mas o certo é que ele nunca foi disponibili-zado para a investigação, devido a de um momento para o outro, ninguémsaber da sua localização.

Relativamente à disposição da informação neste livro, a opção das cita-ções extensas e a transcrição dos excertos longos apresentou-se como a únicaviável ao propósito desta subintitulada tentativa de fazer a “crónica das vivên-

3 Irene Gil, apud, José Martins dos Santos Conde, Luzia, o Eça de Queiroz de Saias, Portalegre,Edição de autor, 1990, p. 101.

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12 Cláudia Sofia Silva Neves

cias e eterna busca do “eu” da escritora quase omitida dos estudos literáriosnacionais.

De salientar também a atualização de todos os trechos para a nova orto-grafia em vigor, devido à existência de muitas ortografias distintas, tanto nasobras de Luzia, como em citações de outros livros e jornais, e numa tentativade minimizar confusões, optando-se assim por uniformizar todo o texto.

Partir-se-á, então, à descoberta deste reino encantado de Luzia, em quea obra fala por si. Uma obra que é como um puzzle da sua vida, do seu “eu”mais profundo.

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Capítulo 1

Quem foi Luzia?

1.1. O percurso de vida

[. . . ] já eu estava sentada ao canto do fogão, remexendo cinzas. . . as cinzasda memória, aquelas em que é mais doce e mais perigoso tocar. . . 1

Luísa Susana Grande de Freitas Lomelino, cujo pseudónimo era Luzia,nasceu a 15 de fevereiro de 1875, em Portalegre2. O seu pai era o capitão Eduar-do Dias Grande, bisneto do Dr. Francisco Grande e Metelo, este último nas-cido em 1755 na freguesia de Galinde, reino de Leon, e formado pela Universi-dade de Salamanca. Dr. Francisco Grande e Metelo casou em 1797 com D. An-tónia Isabel Caldeira d’Andrade, natural do Crato e oriunda de uma famíliabrasonada, fixando a sua residência em Portalegre. Dos sete filhos do casal,apenas uma teve descendência, Antónia Benedita Grande e Caldeira3.

O pai de Luzia tinha dois irmãos, o general José Maria Grande e D. SofiaCândida Dias Grande, que foram os padrinhos de Luzia4.

1 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 252.2 Registo de batismo de Luísa Grande, Arquivo Distrital de Portalegre.3 V. José Martins dos Santos Conde, Luzia, o Eça de Queiroz de Saias, Portalegre, Edição de

autor, 1990, p. 40.4 V. Registo de batismo de Luísa Grande, ibidem.

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Eduardo Dias Grande foi Secretário-geral do Governo Civil do Distritodo Funchal5 e apaixonou-se por uma rapariga da alta sociedade madeirense,com quem casou, Luísa de Freitas Lomelino, filha do morgado da Quinta dasCruzes, Nuno de Freitas Lomelino e D. Ana Welsh de Freitas Lomelino.

“Os primeiros deste apelido que passaram à Madeira, por 1470, foram Ur-bano Lomelino e seu irmão Baptista Lomelino, aristocratas de Génova, quefizeram assento em Santa Cruz”6.

Do casamento de Eduardo Dias Grande e Luísa de Freitas Lomelino nascea primeira filha do casal, Ana Luísa, a 7 de dezembro de 1867, na freguesia deS. Pedro, no Funchal7. Luzia nasce oito anos depois, e, logo ao nascer, o seupercurso de vida fica marcado por uma ausência, a da mãe, que morre após oparto8. Escreve José Martins dos Santos Conde que “a infeliz criança, envoltanum cobertor, foi imediatamente transportada da casa onde nasceu, na Rua1o de Maio, para a casa grande de sacadas de ferro, na Rua dos Canastreiros, ondemorava a tia Sofia Cândida”9.

O mesmo autor refere também que foi com a tia que Luzia viveu dois pe-ríodos importantes da sua vida: os seis meses que passou com ela quandonasceu, e, mais tarde, aos nove anos, quando é mandada de novo para casada tia Sofia.

Ao fim dos seis meses passados em Portalegre, o pai de Luzia, que sofriade uma grave doença pulmonar, decidiu mudar-se para a Madeira com asduas filhas, em busca de um clima mais favorável à sua doença. Claudina,a fiel serviçal, viaja com eles também, e virá a falecer na Madeira em 1904quando Luzia tem vinte e nove anos. Foram viver para a Quinta das Cruzes(homónima da de Portalegre), propriedade dos avós maternos de Luzia10.

Claudina fez muitas vezes o papel de mãe para Luzia, que a adorava e comquem sabia poder sempre contar. No trecho seguinte, retirado de Última Rosa

5 Luís Peter Clode, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses, século XIX e XX, Funchal, CaixaEconómica do Funchal, 1983, p. 251.

6 Luís Peter Clode, Registo Genealógico de Famílias que passaram à Madeira, Funchal, Typogra-fia Comercial, 1950, p. 188.

7 Registo de batismo de Ana Luísa (irmã de Luísa Grande), Arquivo Regional da Madeira,livro 1372.

8 Registo de óbito de Luísa Lomelino Dias Grande (mãe de Luísa Grande), Arquivo Distritalde Portalegre.

9 Op. cit., p. 40.10 Idem, p. 42.

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de Verão, Luzia troca o nome de Claudina por Francisca, mas percebe-se queé de Claudina que fala:

São ingratas, cruéis, as almas das crianças. Também muito tinha de vaidosa ecovarde, a minha alma. Mostrando a Francisca o carinho que nunca deixei desentir, receava desmerecer no conceito da avó. Tantas vezes lhe ouvi: – Devemostratar bem os criados, mas sempre a devida distância. Não são iguais a nós. – Ena verdade, Francisca não era igual à avó: era-lhe imensamente, infinitamentesuperior. Havia, entre elas, o abismo que separa de uma boneca, uma alma.11

A Quinta das Cruzes foi dos lugares onde passou os anos mais felizes dasua vida. Foi nos seus jardins que começou a definir a sua sensibilidade, quemais tarde inspiraria a sua escrita, segundo reporta ao escrever, recordando:

Tenho oito anos. A vida abre-se diante de mim como uma flor maravilhosa.Na Quinta, a água despenha-se de cada cascata, ri, canta em cada levada. Oparque tão grande e que ainda me parece maior – tudo, na infância, toma, anossos olhos, imensas proporções, e fazemos de uma folha uma árvore, da árvoreuma floresta – é um encantamento sem fim, um mundo sempre novo, onde sesucedem as descobertas que fascinam a imaginação, esse tesouro das crianças. . .– Só das crianças?Tudo concorre para o meu prazer. Tudo vive. Tudo me fala.12

Com nove anos apenas, Luzia vê a vida levar-lhe a pessoa que mais adora,o pai, que “sucumbiu, enfim à tuberculose que o minava. Foi no dia 12 de se-tembro de 1884, data que Luzia nunca mais esquecerá”13, segundo José Mar-tins dos Santos Conde.

A figura paterna é reiteradamente invocada nas palavras de Luzia, comoseguidamente se exemplifica:

Todas as tardes, àquela mesma hora melancólica, em que se ativam os per-fumes e desmaiam os gorjeios, atravessava, pela mão do meu pai, a sombria,quase sempre deserta ruazinha. Conversávamos como se fossemos da mesmaidade. Já o meu espírito procurava compreender o seu, a minha alma adivinhara sua. . . Às vezes, ele tossia e, num gesto irresistível, levava a mão ao peito. . .[. . . ] Cada vez que o ouvia tossir, doía-me o seu peito. Adorei-o com uma paixão

11 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 68.12 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, pp. 27-28.13 Op. cit., p. 42.

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de criança, tão profunda como nenhuma sentiu a minha alma de mulher. Asoutras pessoas de família pareceram-me sempre estranhas: teríamos o mesmosangue, não tínhamos o mesmo coração. – “Lembras tanto o teu pai” – preten-diam os que o conheciam. “Herdaste-lhe as qualidades e . . . – acrescentavamsorrindo – os defeitos também.” [. . . ] Eu tinha nove anos quando o perdi.14

José Martins dos Santos Conde refere não se conhecerem quais as razõesque levaram ao embarque de Luzia para a casa da família de Portalegre depoisda morte do pai. Luzia fica de novo com a tia Sofia, que é casada com AntónioBernardo Xavier Tavares, e cuja filha, Maria Antónia, é mais velha que Luziatrês anos15.

Segundo nos conta Luzia na sua obra, foi este tio, inteligente, erudito,com uma cultura pouco vulgar num provinciano do seu tempo, que andava apar de todas as novidades literárias, portuguesas e estrangeiras, e, querendoinspirar à filha o mesmo gosto pelas boas letras, não cessava de enriquecer abiblioteca com o que de mais interessante aparecia para crianças, o respon-sável indireto pela sua excelsa erudição e formação literária. Observe-se, por-tanto, como a escritora salienta a sua influência: “Ah! vejo-a e parece-me atéque outra vez me faz palpitar o coração, essa estante onde se alinhavam, comas suas encadernações vermelhas e doiradas, todas as obras de Madame deSégur, os adoráveis contos de Perrault, de Andersen, um volume cujo autoresqueci mas cujo texto me encanta ainda: Infâncias Célebres”16.

A estadia de Luzia em Portalegre dividia-se sempre entre dois espaços, acasa grande das sacadas de ferro e a Quinta das Assomadas17: “mas lá vinha o mêsde abril e o tio anunciava que era tempo de ir para a Quinta das Assomadas. Oentusiamo de Luísa não tinha limites. Em lado algum se podia expandir tãolivremente, dar largas à fantasia e brincar o dia inteiro com a amiga Gina”18.Tal como Luzia também conta:

“Em fins de abril, quando se vestia de mil flores a charneca e até nacidade as ruas cheiravam bem, o tio, que era igualmente meu padrinho

14 Idem, pp. 53-54.15 Idem, p. 43.16 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 32.17 A investigação levou a que estas duas casas fossem visitadas, foram efetuadas viagens a

Portalegre mas não foram autorizadas fotografias pelos atuais proprietários.18 José Martins dos Santos Conde, ibidem.

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O Reino Encantado de Luzia. A crónica da vivência e a eterna busca do “Eu” 17

e o mais indulgente amigo, chegava a Portalegre. Via-o com infinitogosto, sabendo de antemão, o que ele diria: “– Esta pequena tem mácor, está magríssima, fraca decerto. . . Precisa de férias, ar do campo:Vai comigo para a Quinta”19.

Aos catorze anos, como refere José Conde, “os tios estavam preocupadoscom a sua educação. Como não havia, em Portalegre, qualquer instituiçãopara educar as meninas de família, decidiram interná-la no colégio das Sale-sas, em Lisboa”20. Luzia refere esta mudança em Cartas d’uma vagabunda:

Viva, real como a tarde de hoje, parece-me ainda aquela em que entrei nas Sa-lesas, com um tão assustado, confrangido coração. Pássaro que vê fechar-se,sobre o largo espaço, a porta da gaiola. . . Sufocavam-me as grades. Tinha frionos sombrios corredores. Tinha medo nos silenciosos claustros. E durante todaa noite, entre os cortinados brancos do dormitório, exilada, nostálgica, chorei. . .Porém quando na manhã seguinte, umas lindas mãos cor de marfim tomaramas minhas pobres mãos e a Irmã Maria Matilde indagou a causa das minhaspenas, já um princípio do que havia de tornar-se encanto incomparável, único,ternura nunca mais encontrada, infiltrou-se suavemente, como uma carícia,como um bálsamo, no meu assustado coração.21

José Martins dos Santos Conde também refere que, atingida a maiori-dade, Luísa “viveu algum tempo em Lisboa em casa dos viscondes de Gerazde Lima. Seguidamente acompanhou-os até à Madeira e passou a residir emcasa da avó Ana, na Rua dos Netos, no 19”22.

É na Madeira que Luzia casa com Francisco João de Vasconcelos, a quatrode abril de 189623, noticiando no dia seguinte o Diário de Notícias como decor-rera a cerimónia, com redação sucinta, caprichada e minúcias de Menu:

Realizou-se ontem na igreja paroquial de S. Pedro, o casamento da Exm.a Sr.a

D. Luísa Grande de Freitas Lomelino, uma menina muito distinta pela sua pri-morosa educação, com o Sr. Francisco João de Vasconcelos, um excelente e dignorapaz, sobrinho do nosso presado amigo e diretor deste Diário, Sr. Tristão V.

19 Idem, p. 68.20 Op. cit., p. 42.21 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 117.22 Op. cit., p. 42.23 Registo de casamento de Luísa Grande de Freitas Lomelino e Francisco João de Vascon-

celos Couto Cardoso, Livro 6814 A, Arquivo Regional da Madeira.

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T. Bettencourt e Câmara. A noiva trajava uma elegante “toilette”. Serviram detestemunhas os srs. Conde de Torre Bella e Francisco Anacleto de Freitas. Emseguida à cerimónia religiosa, foi servido um excelente almoço em casa da mãedo noivo, a Exm.a Sr.a D. Efigénia de Vasconcelos.Eis o MENU: “Fondus á la parisienne” | “Poisson au gratin” | “Cotelletes de vo-laille aux haricots verts” | “Bifstecks aux petites pois” | “Timbale de foie gras embellevue” | “Dindes farcis” | “Macédoine aux legumes” – “Poudings” | “Gateauxassortis” | “Desserts” – “VINS” | “Chablis”, “Bordeaux”, “Champagne” | “Ma-dére Vieux” – “Café et liqueurs”.Os noivos foram residir temporariamente para a quinta das Cruzes. Fazemossinceros votos pelas felicidades de que são merecedores os simpáticos noivos24.

As felicidades de que eram merecedores não se concretizaram, já que “ojovem casal (ela tinha 21 e ele 26 anos) não foi feliz. A enorme ilusão da jovemesposa, de ter um lar e filhos a quem oferecer todo o impetuoso amor quetinha no peito, depressa se desfez”25, nas palavras do estudioso J. Conde.

Após os primeiros tempos na Quinta das Cruzes, os noivos rumaram aoJardim do Mar e passaram a residir no Solar de Nossa Senhora da Piedade,descrito por José de Sainz-Trueva: “muralhado pela grande rocha do Jardimdo Mar, rodeado de vinhedos, terras de cultivo e casario, sobressai na pai-sagem a antiga casa dos Couto Cardoso, senhores e morgados do Jardim doMar”26. O Jardim do Mar era um local perdido na ilha, cujo único acesso erafeito de barco, e a infelicidade de Luzia começou a fazer-se sentir: “Mar bra-vio de temporais, que vi despedaçar-se, ouvi chorar, gemer, rugir de encontroà rocha, mar dum estranho jardim onde só desabrochavam, para logo se es-folharem, em pétalas de espuma, as flores das ondas”27. No trecho seguinte,Luzia descreve com mais pormenor essa vivência:

Durante os anos em que vivi na Madeira, passava três meses de inverno numapequena aldeia de pescadores, que se chama o Jardim do Mar e era então o quehá de mais selvagem e primitivo. Ali habitava um triste casarão, velho solar dafamília do meu marido, junto a uma capela, onde estavam enterrados algunsdos seus avós. Havia semanas inteiras de temporal, que nos deixavam incomu-nicáveis como Robinson Crusoé.

24 Diário de Notícias do Funchal, 04.04.1896.25 Idem, p. 46.26 “O Solar de Nossa Senhora da Piedade” in Atlântico, Revista Temas Culturais, no 20, 1989, p.

296.27 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 12.

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A chuva açoitava os vidros das janelas e tamanho era o barulho do mar e das le-vadas, despenhando-se na rocha que, em muitas noites não conseguíamos dor-mir.28

José Martins dos Santos Conde refere no seu livro um inédito de Luzia,Pelos Caminhos da Vida, Jornal I, que contém indicações dos motivos que po-dem ter levado à infelicidade e rutura do casal. Menciona o autor que no Jor-nal “transparecem amargas queixas, sugerindo que elas têm origem no aban-dono, desprezo e prepotência do marido”29.

O sofrimento estava instalado na alma de Luzia. Em junho de 1909, la-menta-se, escrevendo ser já “há doze anos que me pesa nos ombros esta pe-sadíssima cruz e ainda vivo, ainda posso rir, ter momentos de prazer, masno fundo do meu coração, alguma coisa morreu”30, num claro e inequívocodesabafo, referindo-se ao seu casamento.

Estava, no entanto, próxima a altura em que a possibilidade legal de di-vórcio surgiria. Como refere Rui Cascão, o “casamento é como uma aventuranuma região desconhecida, em que erros de percurso acarretam por vezesconsequências trágicas”31. E é por isto mesmo que D. Alberto Bramão, em1908, afirmava: “O divórcio é a errata do casamento. Quando este se tornaum cárcere onde a vida em comum de duas criaturas é impossível, o divórcioé a porta salvadora que se lhes abre”32.

Rui Cascão esclarece que o divórcio tem como consequência “a completadissolução do casamento, ao contrário da separação de pessoas e bens, con-signada no Código Civil de 1867 (art. 1203.o), que suspende a vida em comumdos cônjuges, mas mantém o vínculo originado pelo casamento”33. Não sepense, todavia, que o divórcio só foi considerado com a implementação daRepública. D. Alberto Bramão (1865-1944), através da sua obra, já tinha inten-sificado a propaganda a favor do divórcio, nos últimos anos da monarquia.Esta lei, segundo Bramão, para além de resolver graves problemas da famí-

28 Idem, 1936, p. 221.29 Op. cit., p. 48.30 Apud José Martins dos Santos Conde, idem, p. 51.31 Rui Cascão, “Família e divórcio na primeira república”, in A Mulher na Sociedade Portu-

guesa, Visão Histórica e Perpectivas Actuais, Actas do Colóquio, 1, Coimbra, Faculdade de Letras daUniversidade de Coimbra, Instituto de História Económica e Social, 1986, p. 154.

32 Apud Rui Cascão, ibidem.33 Op. cit., p. 154.

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lia, como o estatuto jurídico dos filhos adulterinos, favoreceria a situação damulher e elevaria a sua dignidade moral34.

Ao contrário do Código Civil de 1867, que considerava o casamento comoum contrato perpétuo e indissolúvel, a Lei do Divórcio (de 3 de novembrode 1910), que foi um dos primeiros atos legislativos do Governo Provisóriosaído da revolução de 5 de outubro 1910, “assenta na ideia do casamento comoinstituição humana de carácter civil e como contrato bilateral eventualmentedissolúvel”35. Como salienta Rui Cascão, “1911-1912 são anos de liquidação dopassado: no fim de 1911 existiam já em Portugal 2685 pessoas divorciadas”36.

Relativamente às causas do divórcio, o mesmo autor assinala que as duascausas mais comuns são as injúrias graves (violência física e moral), e o adul-tério, referindo ainda que a “indissolubilidade do casamento antes de 1910 éuma ficção, [. . . ] cerca de 18% dos divorciados nos anos de 1911 e 1912 já es-tavam separados de facto há mais de dez anos; muita gente apartava-se sema sanção legal, processo menos moroso, menos escandaloso, mais cómodo emais barato, em especial nas cidades”37.

Esta nova lei foi imediatamente aproveitada por Luzia, pois a 19 de no-vembro de 1911, Luzia escreve no seu Jornal: “Seulette, seulette, sans compagnonni maître. . . E agora, julgo que para sempre. Mas não me sinto feliz. . . Ai demim! Ai de todos nós! Passamos a vida a dizer: se não fosse isto, se tivés-semos aquilo. . . Isto deixa de ser, temos enfim aquilo, e ri dos nossos vãos,temerários ‘ses’, a cruel, irónica felicidade!. . . ”38.

Numa carta enviada a José de Sainz-Trueva, José Martins dos Santos Con-de chega a ser mais incisivo quanto ao que podem ter sido as causas destedivórcio:

“– E já agora, um bocadinho de bisbilhotice, tão do agrado da nossaquerida escritora. Sabe-se alguma coisa das desavenças do casal LuísaGrande e Francisco João, que possa ter conduzido ao divórcio? Ele erajogador, violento, amador de saias? No diário íntimo de Luzia – que

34 Cf. idem, p. 155.35 Ibidem.36 Ibidem.37 Rui Cascão, idem, p. 157.38 Apud José Martins dos Santos Conde, op. cit., p. 51.

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que tenho em mãos – ela deixa adivinhar que era maltratada, despre-zada, chega a recear violência mortal por parte do marido. . . ”39.

E através de Ana Guiomar, personagem de Última Rosa de Verão, Luziaconfessa:

[. . . ] nunca lhe mereci a mínima importância. Para coisa alguma era consul-tada, tudo se decidia sem mim. – Vamos para aqui, para acolá. . . Fazemos isto,fazemos aquilo. . . – E pouco importava saber qual era a minha opinião, a mi-nha vontade. [. . . ] Uma única função me era exclusivamente reservada: a deassinar. Ah! Para essa, ninguém me fez concorrência! Julgo que nenhum diapassou sem que Carlos40 me apresentasse um cheque ou uma folha de papel se-lado, indicando negligentemente onde devia pôr o meu nome. E eu não pediaexplicações. Decerto tratava-se de negócios, assunto que nunca me interessou.41

Posteriormente a esta fase da sua vida, Luzia vai ainda passar por grandessofrimentos, já que para além do divórcio, terá vários problemas de saúde(dos quais a tuberculose42 e a neurastenia), cultivará a solidão, com receiode uma nova desilusão, o que quase a conduziu à loucura, à destruição dosseus sonhos, a um desequilíbrio emocional e físico que a levaram a desejar amorte.

“O choque da separação de um marido viciado no jogo, entre outros fato-res, dera origem em Luzia, a um abatimento profundo, que ameaçava trans-formar-se em neurastenia depressiva e arrancara-lhe toda a vontade de vi-ver”43, como não se evitou de referir sobre esta fase da sua vida José Martinsdos Santos Conde.

Feliciano Soares também assinala o estado em que Luzia se encontrou,observando que:

Luzia começava, então, verdadeiramente a preparar-se para os grandes sofri-mentos morais e físicos que haviam de vir à sua vida. Quando a Dor lhe bateu àporta do coração, Luzia fechou-se dentro de si mesma, perdendo o amor a tudo o

39 Cartas de José Martins dos Santos Conde a José de Sainz-Trueva, relativas a Luzia, espóliode José de Sainz-Trueva, Arquivo Regional da Madeira, carta datada de 3 de junho de 1990.

40 Nome modificado usado no romance.41 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 146.42 V. José de Sainz-Trueva, op. cit., p. 304.43 Op. cit., p. 24.

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que lhe é querido. Todo o seu ser se desequilibra, a neurastenia esmaga-a. Nãoquer viver. Positivamente não quer viver. A sua desmoralização física e moral,é aterradora. Sofre! Sofre!Na treva do seu quarto, sem um raio de luz, sem um raio de esperança, não querver ninguém. Só quer a morte.44

Os amigos, depois de esgotadas todas as tentativas de a ajudar e preocu-padíssimos com aquele desmoronamento rápido da sua vida, têm uma novaideia: “Fazer uma grande mudança de meio, de clima, de hábitos. A França, asua querida França vem logo ao pensamento. Arrancam-na do Hotel Nunes.Luzia vai para Pau. É um calvário a viagem. Instala-se no Hameau. É rodeadados mais especiais cuidados pelo grande médico-psicólogo Dr. Mabitt, e poruma enfermeira dedicada, que lhe tratam especialmente da alma”45.

É em Cartas d’uma vagabunda que Luzia conta, de forma suavizada, algu-mas das peripécias passadas no sanatório. Feliciano Soares, no seu livro, re-produz algumas das cartas que Luzia lá escreveu46, sem retoques, tal comoa escritora as escreveu no momento, e que depois foram usadas em Cartasd’uma vagabunda, mas já com algumas modificações, como que ocultando ossofrimentos mais profundos, mas mantendo grande parte dos factos, mos-trando o quanto a sua obra revela a própria vida, pois muito do que escreveunos seus livros baseava-se numa reprodução trabalhada das suas cartas e diá-rios íntimos. A sua vida, as suas experiências, as suas cartas, os seus blocos denotas, eram a matéria-prima da sua obra, que espelha sobremaneira a formaracionalizada e metódica como analisando-a e escrutinando-a a sublimou.

Luzia vivia em profundo desalento e foi com os soldados mutilados e trau-matizados da Primeira Grande Guerra, que chegavam ao hospital onde es-tava, que aprendeu e adquiriu a coragem admirável de que deu inúmerasprovas na vida e na criação literária, acabando estes por se tornarem os seusgrandes mestres. Percebeu que o seu sofrimento, ao lado do daqueles rapa-zes novos, com a vida para sempre marcada, não podia ser assim tão grave, etudo fazia para lhes proporcionar alegria, por mais pequena que fosse. A to-dos dava o que podia, desde a sua sobremesa do almoço aos bilhetes-postais,cartas e guloseimas. Uns pequenos nadas que lhes causavam tanto prazer.

44 Luzia, Espectadora das Comédias do Mundo, inédito, Instituto de Coimbra, s.d, p. 20.45 Idem, p. 21.46 V. idem, p. 74.

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Referia, a propósito: “Nunca é o que eu quero, pois se desse tudo o que quero,mil fortunas como a minha não chegariam. Mas é. . . alguma coisa”47.

Luzia é uma pessoa sensível, cheia de compaixão, que a vida tinha já mal-tratado, tornando-a mais atenta aos infortúnios dos outros, porém, não sedeixando vencer, salienta como e porquê resiste: “Toda a miséria enterneceo meu coração, e atrai a minha simpatia. Tenho de vingar-me da vida queme fez tanto mal. . . Prometi que nunca saberia duma miséria sem fazer tudo(que é tão pouco, ai de mim!) para acudir-lhe. É a minha vingança mas étambém o meu prazer”48. Promessa que cumpriu, tornando-se na reconhe-cida filantropa que foi, e que o seu testamento veio a comprovar.

Um outro exemplo do quanto Luzia dava de si mesma para aliviar o sofri-mento dos outros verifica-se quando, em 1916, organiza a festa de Natal paraos soldados: “Hoje, embora o dia esteja mau, e eu. . . terrível, lá vou para Pau,com o Berthaul que está tão doente, como eu, comprar coisas para a árvorede Natal dos soldados, e amanhã irei aos hospital, levá-las. Dia de Natal ireilevar-lhes também a alegria que não tenho, a coragem que faço diligência deter”49.

No dia de Natal, Luzia oscila entre duas emoções contraditórias. Ao en-trar no hospital vê como a árvore está bonita, mas uma tristeza imensa inva-de-a, perante todos aqueles rapazes na força da vida, mutilados para sempre,ou condenados à morte em pouco tempo. Mas, como a sua vida, tal como re-flete a sua obra, foi um equilíbrio/percurso entre rir e chorar – como um dosseus títulos tão bem exemplifica, o Rindo e Chorando, – no meio de toda a tris-teza, conseguiu acordar o seu outro lado, prestando atenção aos mil inciden-tes cómicos que estavam a acontecer, dando-lhe “uma vontade de rir quasetão irresistível, como tinha sido a vontade de chorar”50. É a partir deste mo-mento que Luzia começa a despertar de novo para a vida, a recuperar o olharirónico sobre os acontecimentos, a voltar a rir com as comédias da vida.

O relato da festa de Natal demonstra o espírito de Luzia a acordar paraa existência, bem como revela a eterna simpatia pela monarquia. Apesar dese ter divorciado devido a uma lei aprovada pela república, Luzia nunca acei-tou bem as mudanças e os movimentos por esta implementados. Pertencia à

47 Apud Feliciano Soares, idem, p. 49.48 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 49.49 Apud Feliciano Soares, idem, p. 55.50 Apud Feliciano Soares, idem, p. 58.

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aristocracia e não se associava aos movimentos feministas republicanos ou anovos movimentos da época, estando tudo isso ligado a uma nova era, coma qual não se identificava minimamente, resistindo-lhe de forma comedida:“As luzes começavam a apagar-se, as bandeiras aliadas punham ainda a notaviva das suas cores no fundo verde da árvore, e eu olhava com ternura para aminha (podes calcular que não era a encarnada e verde), para a minha lindabandeira, morta, tão morta como eu, mas tão linda sempre, e a que tinhamdado em minha honra, uma verdadeira place d’honneur [. . . ]”51.

Também não podia deixar de ser referenciado este trecho, de Cartas doCampo e da Cidade, que vem complementar a ideia defendida no parágrafoanterior:

Era por uma ardente tarde de verão. Havia sol e moscas. Mal se respirava nojardim onde morriam as últimas rosas. Na sala, logo à entrada, esbarrava-secom o busto duma dama arrogante, a liberdade, creio eu, gloriosamente em-barretada e engravatada de vermelho e verde. . . Mas, não ficava por aí a preo-cupação da ilustre autoridade em marcar bem a cor da sua festa. Até os bolos– deliciosos aliás, dignos do real apetite do Sr. D. João V – eram encarnados everdes. . . Observação esta, que não envolve a mínima censura. S. Ex.cia estavano seu pleno direito e a quem custasse digerir vermelho e verde que não fosselá.52

Luzia estava perto de ter permissão para abandonar o sanatório, mas pro-mete que iria continuar a escrever aos soldados, para lhes dar esperança: “Éum pouco difícil escrever aos soldados, mas já vou aprendendo. Não é precisosenão a inteligência do coração, e essa quem não a teria diante de tanta mi-séria, de tanta desgraça e, ao mesmo tempo, de tanta coragem e tão sublimee paciente resignação”53.

Luzia sorri sem vontade, para iluminar os outros.Depois da sua experiência de dor profunda no sanatório e da lenta recu-

peração, Luzia fica ainda mais caridosa e consciente das diferenças que exis-tem no mundo, e repensa a forma como se veste, oferecendo a Rosa (a suacriada pessoal) e às criadas do sanatório muitas das suas roupas e chapéus,presentes que as deixam felicíssimas. Luzia reflete que não precisa de tan-tos vestidos e chapéus, que são um luxo inútil e vão, e que só compraria um

51 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 59.52 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 205.53 Apud Feliciano Soares, idem, p. 47.

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vestido e um chapéu novo por estação, pois o que sobra “pode levar um boca-dinho de conforto e pão ao lar humilde, onde há frio, onde há fome! Quantascoisas o sofrimento tem ensinado à minha alma!”54.

Posteriormente, ao longo tempo passado no sanatório e da sua recupera-ção, Luzia passa anos de uma interessante vida intelectual, tendo começadoa publicar os seus livros, e de vida em sociedade, que era circunscrita a umpequeno mundo elegante, bem como inicia as suas viagens pelo estrangeiro.Como escreve F. Soares, é do “Avenida Palace em Lisboa, [que] Luzia partepara a sua vagabundagem pelo estrangeiro. A Itália, com a sua arte, a suapaisagem, o seu céu, atraiu-a fortemente. Mas a sua paixão é a França ou,para melhor dizer, Paris”55.

Feliciano Soares refere que Luzia, nas suas viagens, tudo ia comentandonos seus inseparáveis cadernos mencionando igualmente que estes valiososapontamentos de Luzia formam numerosos volumes em que regista “todasas suas emoções, muitas das cartas que escreve aos seus amigos, contando--lhes os seus interesses: livros novos, e livros velhos, relações sociais que vêmao seu caminho, aspetos da paisagem, em tudo pondo a nota bem pessoal doseu admirável espírito”56.

Luzia, pelas várias terras que vai passando, vai sentindo a nostalgia detodos os lugares por onde foi deitando raízes57, como refere, em Cartas do Campoe da Cidade, mas à medida que os anos vão passando, é da Madeira que sentemais falta, “a Madeira parece-me a minha terra de promissão onde hei deenfim descansar de tantos temporais que têm batido a minha pobre vida”58.Tendo andado por terras portuguesas do norte, no Buçaco, nas suas estânciasde águas, decide voltar à Madeira.

Nos primeiros anos, tudo lhe correu a seu gosto, no Funchal, num am-biente calmo e alegre, como refere Feliciano Soares: “Depois de vagabundearpor hotéis, instalou-se logo adiante da Ponte Monumental, de tão estranha,impressionante paisagem, na quinta Nogueira de que ela, com os seus qua-

54 Apud Feliciano Soares, idem, p. 50.55 Op. cit., p. 78.56 Ibidem, p. 78.57 Op. cit. p. 172.58 Apud Feliciano Soares, idem, p. 72.

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dros, as estantes dos seus livros ricamente encadernados, as suas flores sem-pre renovadas, fez um petit chateau de France”59.

A escritora declara, no entanto, que a sua deslocação para a Madeira nãose deveu apenas à nostalgia, mas também à preocupação com a conjunturapolítica e social na Europa, que anunciava um conflito bélico: “Além das gran-des saudades que a chamavam, a situação europeia inquietava-a sobremodo,e ela sentia a necessidade de refúgio seguro. Luzia encontrava-se em Royatquando se estava na eminência de ver rebentar a Segunda Grande Guerraque Chamberlain abafou. . . por momentos”60. A guerra esmoreceu-lhe todaa vontade de viajar. A saúde de Luzia era precária, e sentia-se sem forças,com vários problemas de saúde que iam surgindo de novo (“Tinha assistên-cia médica constante, e ainda andava em vagabundagem pelos consultóriosde especialistas dos vários males que a atormentavam”61).

Luzia mudou-se da Quinta da Nogueira para a Quinta Carlos Alberto,na rua do Jasmineiro, número 3, onde, como constata Feliciano Soares, mãoamiga lhe proporcionou o seu cantinho confortável e convidativo, pois Luzianão suportava qualquer esforço físico, e, desde que se mudou, “todos os ma-les do mundo nela se reuniram para lhe demolirem a vida, numa lentidão talque os seus amigos chegavam a iludir-se sobre a gravidade do seu estado”62.Luzia deixara de se queixar, mostrando relativa boa disposição. Mais tarde,vem a confessar que “olhando o inaudito sofrimento da humanidade inteira,não se sentia com o direito de se queixar”63.

Os achaques foram-se multiplicando, o declínio acentuava-se, os médicosredobravam os cuidados e os amigos começavam a alarmar-se. É F. Soaresquem conta a este propósito: “Luzia que, havia muito, já não escrevia cartas– ditava-as – e só as assinava, passou a não as ditar, dando apenas a ideia doque queria dizer para os outros a desenvolverem. E a assinatura diminuíade tamanho, às vezes, reduzida a pouco mais de um traço. A decadência emtudo. Por fim, deixou de assinar”64.

59 Idem, p. 82.60 Idem, p. 83.61 Feliciano Soares, op. cit., p. 85.62 Idem, p. 86.63 Apud Feliciano Soares, ibidem.64 Idem, p. 89.

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Após sofrimentos físicos e morais que se prolongaram ao longo da vida,Luzia falece a 10 de dezembro de 1945, pelas 14h, na Quinta Carlos Alberto65.

1.2 – O percurso literário

Sim, eu amo os livros. Mais do que tudo na terra? Talvez. . . Eles têm sidoos meus grandes, os meus fiéis, amigos. E realmente há-os espalhados portodo o quarto, sobre as mesas, sobre o fogão, sobre as cadeiras, brocha-dos, encadernados, abertos numa página mais querida, de folhas cerradas,guardando o seu mistério, alma, perfume que ainda não se revelou.66

Luzia fez os seus estudos no colégio das Salesas, em Lisboa, tempo do qualguardou sempre belas e pacíficas recordações, definindo-os como os anosmais tranquilos e luminosos da sua vida, apesar da dificuldade que teve emadaptar-se no início: “Tínhamos quase dezoito anos quando saímos definiti-vamente do convento, e fui eu, a que maior dificuldade sentira em adaptar--me à sua regra, que também com maior pena o deixei”67. No colégio, as ma-térias que mais gostava de estudar eram literatura e história. As composiçõesescritas eram as suas preferidas, já que podia dar largas à imaginação. Nãofoi, no entanto, no colégio que ganhou o gosto e a paixão pela leitura. Comojá foi referido, foi em casa do tio, com a rica biblioteca que este possuía, quecomeçou a fazer da leitura o seu paraíso.

Enquanto os tios estavam muito preocupados com os estudos da sua pró-pria filha, obrigando-a a estudar os manuais escolares, “nalgumas manhãs dedezembro, a água gela no tanque do jardim e toda a vida decorre em volta dabraseira, numa pequena sala, onde a minha prima, um pouco mais velha queeu, passa horas curvada sobre os compêndios ou martelando escalas no ve-lho piano. Os pais querem fazer dela uma sábia e uma artista. A mim, graças

65 Registo de óbito de Luísa Grande, no 1569, Arquivo Regional da Madeira.66 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 52.67 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 126.

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a Deus, ninguém procura incutir ciência nem música, ninguém obriga a es-tudar”68. A Luzia deixavam-na andar livremente de livro na mão, a qualquerhora do dia, e com qualquer um a que conseguisse chegar na biblioteca do tio:

todos adormecem, eu ainda não me separei do livro que, durante a maior partedo dia, prendeu, absorveu a minha atenção. Leio no último fiozinho de clari-dade que vem do jardim, leio à luz vermelha das brasas. . . – “Estudiosa crian-ça!” – exclamam parentes, amigos. E – feliz de mim! – enquanto Piedade que-bra a cabeça nos complicados, fastidiosos problemas, ou se debate com a fúriados verbos irregulares, eu entro naquele Paraíso, único, decerto, que, pelos anosfora, ainda não me fechou as suas divinas portas. Paraíso da leitura, já ele mecria uma vida à parte, uma deliciosa vida, onde me refugio contra tudo o queme faz mal. . . 69

Para um melhor entendimento do quanto a literatura e os livros faziamparte da vida de Luzia, é pertinente transcrever um excerto do seu diário, dequando tinha quase dezanove anos:

Li hoje Alphonse Karr, o escritor favorito dos meus dezasseis anos, o autor de“Geneviève”, de “Midi à quatorze heurs”, de “Voyage autor de mon jardin”, li-vros que eu não li mas decorei. . . li “Clotilde”, que bastante superior a “Gene-viève”, vale muito mais que todos os outros livros que conheço de Alphonse Karr.E depois de ter passado três anos quase sem abrir um livro dele, senti-o hoje como mesmo entusiamo, com o mesmo gosto. . . sentindo como dantes tudo o que es-creve Alphonse Karr. Por isso eu nunca devia ter aberto o “Clotilde”; para os queleem sentindo, é perniciosíssima a leitura desse livro.Perniciosíssima, sim! E eu tanto senti o mal que me fazia, que antes de chegaraos últimos capítulos, os piores, tentei deixá-lo, mas não pude, a curiosidade, atentação foram mais fortes do que eu. . .Quis resistir e, como sempre, não pude.Em mim, na luta entre o bem e o mal, vence sempre o mal.[. . . ] Envenena-me a alma o seu estilo quente cheio de voluptuosidade e aomesmo tempo de poesia parece que me sobe à cabeça, que me embriaga comoum vinho forte. Tenho medo de tocar num livro onde veja o seu nome. . . Dir-se--ia que me queima os dedos. . .

68 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 31.69 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 31.

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Há muitos livros assim que eu nunca quisera ter lido, mas para os quais umaforça misteriosa me impelia. . . Alguns faziam-me tédio, repugnância, rejeita-va-os e voltava a lê-los. . . Oh! sempre em tudo se revela em mim a atração peloabismo.70

É também na obra de Feliciano Soares que podemos ler a entrada do diá-rio de Luzia, na qual esta conta o que sente ao ver o seu primeiro conto publi-cado, a 8 de janeiro 1894, no Correio da Manhã71, quando afirma:

Creio que nada me falta para estar doida de alegria. . . Há pouco pego no Cor-reio da Manhã e o que vejo?! O meu conto, a minha lenda. . . E eu li, em grandesletras redondas “A Lenda das Estrelas”, lia. . . e não acreditava. . . com uma caraaparvalhada a mais não poder ser. . .Olhava para o jornal. . . não me podia convencer que se realizara, enfim, o meusonho dourado: escrever para o jornal de Pinheiro Chagas.Depois, pouco a pouco, quando me fui convencendo que não era um sonho, masa mais deliciosa das realidades. . .[. . . ] pus de parte a minha dignidade de escritora, a seriedade devida aos meusquase dezanove anos. . . e dei dois pulos, batendo as palmas, abraçando e bei-jando o jornal, com uma ternura que poucas pessoas me têm inspirado.72

Como se pode constatar, é desde tenra idade que Luzia sonha ser escri-tora. Com os elogios que recebeu com a publicação do primeiro conto, Luziaescreve freneticamente, produzindo mais contos e enviando-os para jornais.No entanto, não foi de longa duração o alimentar deste sonho, segundo Feli-ciano Soares, já que alguns jornais fizeram uma severa crítica a Luzia, o quefez com que a jovem escritora quase desistisse completamente do seu sonhodas letras, pois com a extrema sensibilidade dos dezoito anos, sentiu-se seria-mente magoada.

Para se compreender até que ponto a crítica quase afastava Luzia das le-tras, e fazia-a pensar que uma mulher nunca poderia ser verdadeiramenteescritora, seria vantajoso ler mais alguns excertos do seu diário, que se en-contram na obra de Feliciano Soares, e que datam de 7 de fevereiro de 1894:

Enfim esta noite apareceu o meu conto nas Novidades. Primeiro alegria, depoisdesapontamento. Meu Deus! Como é severa a crítica e como ela abre os olhos

70 Apud Feliciano Soares, idem, p. 9.71 Correio da Manhã, 08.01.1894, “A lenda das estrelas”.72 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 11.

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aos mais cegos! Meu pobre conto que ainda há dias me parecia tão bom. Hojepareceu-me detestável! Repetições, muito palavreado e nenhumas ideias, faltasde harmonia. Dura, duríssima a crítica! Não tenho coragem para continuara escrever. Não tenho, não. Ao mesmo tempo que acho um erro quase em cadalinha do meu Conto, dizem-me que tenho talento, que de aqui a uns dois ou trêsanos, hei de escrever bem! Bonita consolação, sim, senhor! Escrever bem, daquia três anos. . . e agora não escrever senão asneiras. . . Ah! que grande golpe sofrieu hoje na minha vaidade! Mas não deixa de fazer-me bem, que eu tinha umavaidade tola, ridícula, que me cegava [. . . ]Como o A. é grosseiro![. . . ] uma troça monumental ao meu pobre Conto “Amo-te”. Disse-me frasestão grosseiras, tão indelicadas como nunca ouvi.Mas que triste ideia a minha de publicar aquele conto. Ao mesmo tempo nãodeixou de ser proveitosa a crítica daquele espirituoso senhor. Curei-me parasempre das minhas literatices. Uma mulher literata! É o suprassumo do ridí-culo. E ainda àqueles a quem o ridículo não assustasse, devia assustar a ideiade se sujeitarem a uma crítica grosseira, quase brutal como a de A.Adeus, pois, meus belos sonhos de glória! Adeus para sempre!Os homens fizeram as leis deste mundo, tudo a seu gosto. Eles são os senhores.Quando mesmo tenham menos talento, menos dotes do que nós, podem aspirarà Glória, ao Poder, a tudo. Nós, a nada. Para sermos alguma coisa, é precisoficarmos sempre, simples mulheres.“Ne soyons rien pour rester quelque chose.”73

A crise foi grande, mas, segundo Feliciano Soares, nunca se extinguiu apaixão pela escrita, com “escritos dispersos pelos jornais – Luzia colaboroutambém na imprensa da Madeira, com o pseudónimo de Lady Butterfly – atéque anos depois, a grande chama, de intenso brilho, definitiva, irrompe entreuma verdadeira apoteose de admirações no Os que se divertem, em que Luziase afirma a notável Dialogista. Desde essa hora magnífica ela coloca-se entreos maiores Escritores de Portugal”74.

Maria Amália Vaz de Carvalho foi uma das pessoas que incentivou Luziaa escrever, tal como se pode provar no seguinte excerto:

– Porque não escreve? [perguntou-lhe Maria Amália Vaz de Carvalho]– Porque me falta tudo o que é necessário para fazê-lo, desde a gramática, ciên-cia com que nunca consegui entrar. . . até o tempo. . .

73 Idem, pp. 13-14.74 Op. cit., p. 14.

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O Reino Encantado de Luzia. A crónica da vivência e a eterna busca do “Eu” 31

– Sem a gramática, passa-se admiravelmente. Eu também nunca a aprendi,declarou, impagável de seriedade, a minha doce amiga – mas quanto a faltar--lhe o tempo, permita-me que duvide. . . Não tem casa, deveres de família, ne-nhum trabalho obrigatório. . .– É por isso mesmo, minha querida senhora. Não há ninguém tão “affairé”como um ocioso. . . ocupação tão absorvente como a de não fazer nada. . .– Mas experimente fazer alguma coisa. . .– É tarde demais. Habituei-me a esta vida inútil, vazia. . .– Porque diz o que não sente? Eu sei que sofre, que precisa de um interesse. . .trabalhe. Comece já hoje. . .– Tenho um “bridge”.– O “bridge” não a contenta. . .– Diverte-me.– Acho pouco. Melhor companhia lhe fará a pena. . . 75

Luzia e Maria Amália Vaz de Carvalho tornaram-se amigas íntimas. Se-gundo Feliciano Soares, Maria Amália e Luzia foram confidentes, partilhan-do muitas das amarguras da vida e de dramas pessoais. Por expressa deter-minação de Luzia, a correspondência entre ambas foi queimada, depois dasua morte. Luzia frequentou o seu famoso salão, o Salão de Santa Catarina, ecomo refere Feliciano Soares, “a sua presença tornara-se querida de todos osGrandes de Portugal que rodeavam a notável autora do Duque de Palmela, eera imprescindível já, em tantas horas amarguradas da vida de Maria Amá-lia”76.

Este salão foi, “famoso em Lisboa, durante mais de meio século e que nelese reuniram todas as personalidades marcantes do seu tempo”77, como refereJúlio Dantas: “O seu salão famoso, que ouviu, não apenas a conversação de tãonobres espíritos, mas a primeira leitura de algumas das obras que os imortali-zaram, ficará – mesmo quando a memória desta suave e gentilíssima Mulherse houver desvanecido – na história da sociedade portuguesa contemporâ-nea”78.

Existe uma tendência para se pensar que havia poucas mulheres a escre-ver na época, ou ligadas à escrita, mas, como refere Ana Maria Costa Lopes,

75 José Martins dos Santos Conde, op. cit., p. 48.76 Op. cit., p. 20.77 Apud Ana Maria Costa Lopes, Imagens da mulher na imprensa feminina de oitocentos, Percursos

de Modernidade, s.l., Quimera, 2005, p. 159.78 Ibidem.

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existia uma produção literária feminina de alguma importância, “enquantoalgumas intelectuais nobres ou burguesas se dedicavam exclusivamente àcriação e ao consumo de obras literárias, outras de várias classes sociais fa-ziam coisas bem diferentes, mas de maneira nenhuma menos importantes,no que toca ao conhecimento dessas obras: encarregavam-se da sua distri-buição e divulgação”79.

Tal como se pode perceber no ponto anteriormente abordado, sobre opercurso de vida de Luzia, esta cresce num ambiente de nobreza e riquezaque marcará o modo de se apresentar ao mundo. Apesar de ter nascido emfinais do século XIX, a personalidade e gostos de Luzia pertencem ao séculoXVIII, “eu tenho a alma e até as sobrancelhas dizem, segundo os moldes doséculo XVIII”80, e, como tal, era natural para Luzia o exprimir-se em públicoe a nível literário, uma vez que, “a mulher, no século XVIII, exprimia-se comalgum à-vontade em público, muitas vezes mesmo a nível literário ou artís-tico [. . . ]”81, e às senhoras nobres exigia-se uma postura, a nível literário ouartístico, bastante elevada, principalmente às que frequentavam reuniões esalões82. É neste espírito que emerge Luzia, nas casas que se abrem aos ami-gos que se reúnem para cantar, tocar, jogar, conversar e fazer poesia.

Escreve, a propósito do ambiente cultural do século XIX, Ana Maria CostaLopes:

Herda o século XIX do anterior, como se viu, práticas culturais em que o sexofeminino participa ativamente, designadamente em outeiros e salões literários,[. . . ] Muitos intelectuais que se queriam projetar no campo das letras, das artesou das ciências lutavam por frequentar salões literários dirigidos, regra geral,por mulheres. Aí se condensavam as discussões, se conheciam os novos talen-tos, se protegiam os melhores ou os mais favorecidos pela sorte. A frequência dossalões era, para alguns, a oportunidade de tomarem contacto com o escol inte-lectual e, para outros, o meio de reconhecimento do seu valor e da sua obra.83

O que se destaca em Luzia é que esta atreve-se a escrever na primeira pes-soa como mulher, algo que foge ao mais comum da época, já que escreve do

79 Idem, p. 162.80 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 32.81 Ana Maria Costa Lopes, idem, p. 144.82 Idem, p. 145.83 Op. cit., p. 173.

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ponto de vista feminino, não se escondendo numa voz informal ou mascu-lina, e isso transpira na sua obra. Como lhe escreveu Augusto de Castro, “oseu êxito minha senhora, era já muito grande; será com o Rindo e Chorando,maior. A sua soberba independência moral, a sua sensibilidade crítica, finís-sima e cultíssima, o seu eminente talento de escritora – tão profundo, tãonervosamente mulher! – marcam, no marasmo da atual vida portuguesa, al-guma coisa de imprevisto, de forte, de original”84.

E é esta a marca de originalidade de cariz feminino que faz o orgulho deLuzia. O facto de a sua obra ser indubitavelmente escrita por uma mulher,numa época em que muitas escrevem, mas ou sobre pedagogia ou dedicando--se à literatura infantil, ou simplesmente tentando imitar o estilo de escritamasculino, torna-se num fator distintivo. Como nos conta a própria Luzia:

Depois, encanto maior de todos – pelo menos para mim – madame de Noaillesé tão deliciosamente mulher! Porque, tu bem o sabes, eu não suporto aquelasescritoras de quem se diz: têm a inteligência viril, escrevem como um homem.. .Com esta minha perigosa mania de evocação oiço-lhes logo a voz grossa, vejo-asde peitilho de goma, colarinho alto, bengala e cachimbo.85

Tal como refere Joaquim Castanho, “Luzia desde sempre tentou tradu-zir a feminilidade numa língua com tradições enraizadas na narrativa dosaventureiros descobridores, todos eles homens, onde a mulher aparecia sem-pre como objeto, alvo, inspiração, ilha de amores e prazeres, e raramentecomo protagonista verve, ou sendo-o, nunca em seu nome mas sob pseudó-nimo, mais ou menos impessoal. Tentou sempre escrever no feminino – econseguiu-o. Custou-lhe caro, é óbvio, mas jamais o travestiu e masculini-zou [. . . ]”86.

Também o Visconde do Porto da Cruz aborda esta temática:

Fialho dizia que uma Escritora que foge da banalidade deve chamar-se "um ho-mem de génio". Na verdade, na mais das Vezes as intelectuais capricham emexteriorizar uma certa masculinidade, no trajar e nos conceitos, que lhes tira

84 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 39.85 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 195.86 “Do Verbo Andarilho nas Fadas de Portus Alacer” in Plátano, Revista de Arte e Crítica de

Portalegre, no 5, 2012, p. 5.

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a característica de mulheres. Com a Senhora Dona Luísa Grande não aconte-ceu assim, porque foi dos espíritos mais geniais e das Artistas de mais refinadogosto, sem nunca perder o seu aprumo e a sua dignidade de Senhora.87

Deve-se destacar também a forte influência francófona que Luzia sofreu,dado que a França era o país que mais adorava e para onde viajava pelosmais diversos motivos, desde a moda a problemas de saúde, tendo a sua cul-tura muito influído no seu desenvolvimento e aperfeiçoamento literário. Sãoabundantes nas suas obras as referências a autores franceses e a utilizaçãode estrangeirismos gálicos. Também os há em inglês, mas não em tamanhaabundância. No Anexo 1, encontra-se um levantamento dos estrangeirismosutilizados na obra Os que se divertem, a comédia da vida, bem como um glossáriodos mesmos, no qual se pode verificar esta mesma tendência. Também Fe-liciano Soares defende que se “encontram nas suas páginas numerosíssimascitações francesas, vocabulário francês e também inglês – Luzia frequentavaos meios ingleses nas horas e noites de bridge – mas a construção da frasenão deixa de ser genuinamente portuguesa, [. . . ] o que se pode dizer é quea sua obra tem o espírito francês, a fina ironia francesa, por vezes o humoringlês”88.

Uma análise mais pormenorizada das suas duas primeiras obras permi-tiu comprovar a forte influência francófona em Luzia. Após um levantamen-to de todas as referências de escritores e obras citadas de Os que se diverteme Rindo e chorando, referências essas presentes no Anexo 2, são vários os as-petos que se evidenciam e que permitiram caraterizar o contexto literário ecultural em que a sua obra se desenvolveu.

Luzia era, de facto, uma mulher muito cosmopolita, de uma cultura alar-gada, o que se revela na sua obra, demonstrando que conhece bem os clássi-cos pela referência vasta aos principais autores da cultura oriental e ociden-tal, Shakespeare, Cervantes, Dumas, Verlaine, Rosseau, As Mil e Uma Noites,Musset, entre outros.

Uma das particularidades que se destaca é que a maior parte dos auto-res que Luzia menciona são seus contemporâneos, e que é seduzida sem dú-vida maioritariamente pela literatura francesa. Luzia, que viajava frequen-

87 Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, III Volume, 3o Período 1910-1953,Funchal, Edição da Câmara Municipal do Funchal, 1953, p. 85.

88 Op. cit., p. 31.

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temente para Paris, fazia parte da elite de intelectuais da época, frequentavaesses círculos, essa efervescência cultural, e verifica-se que foi fortemente in-fluenciada por eles.

A escritora sempre evidenciou ter uma personalidade forte e ideias con-testatárias, consideradas avançadas para a sua época. As escolhas das suasleituras acabam por ser um instrumento para compreender as influênciasque sentiu e o desenvolvimento do gosto pela ironia e pela sátira social.

Muitos dos autores nomeados são mulheres, tal como se pode comprovarno Anexo 2, escritoras que causaram sensação na sua era, que escreviam rá-bulas humorísticas e romances não convencionais com o objetivo de denun-ciar a sociedade, que versavam temas escaldantes, nada bem vistos na época,todas elas ligadas à elite literária e com ligações a grandes nomes. Há váriasreferências à literatura feminina, que tem um grande peso na escrita de Lu-zia, como se pode deduzir pelas referências exemplificadas nos quadros doAnexo 2. Uma das escritoras frequentemente citada é a Comtesse de Noailles,personalidade de grande prestígio, visto ter sido mecenas em Paris dos salõesliterários e ter travado amizade com a elite literária e artística da época.

Outra observação pertinente que se pode fazer, e já referida, é que Lu-zia cita abundantemente autores contemporâneos, e tendo ela pertencido esido reconhecida nos círculos intelectuais da época, pode-se deduzir que aescritora deva ter conhecido e se relacionado diretamente com muitos des-tes escritores e artistas. Luzia, pelo menos em Portugal, pertenceu ao cír-culo que juntava os artistas portugueses, fez parte desse mundo intelectualefervescente e em expansão. A análise dos muitos autores citados revela quequando são referidos os círculos e as personalidades com quem contactavam,testemunha-se que muitos dos nomes se repetem, eram amigos, mantinhamcontacto, frequentavam os mesmos lugares, o que pode sustentar o ponto devista que Luzia pertencia ao seu meio ou pelo menos se relacionava de formaconstante com eles.

Em relação às grandes influências, Anatole France aparece várias vezesmencionado, autor de renome na época, já citado em Os Que Se Divertem, es-crito em 1920, Anatole France vencerá o prémio Nobel da Literatura em 1921.Analogamente, é mencionado Sully Prudhomme, o primeiro escritor a rece-ber o prémio Nobel da Literatura. Paul Geraldy, o poeta das mulheres e dascoisas do coração, aparece em contraposição ao curioso Marcel Prévost, que

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escrevia sobre as mulheres do ponto de vista estritamente masculino e evi-denciando o efeito corruptor da sociedade parisiense nas mulheres jovens.

Quanto a referências a autores e personalidades portuguesas, os nomesmais recorrentes são Luís de Camões, Júlio Dantas, D. João de Castro, Vascoda Gama e Eça de Queirós.

“Eu tenho uma paixão pelo Eça”, diz pela voz de Clara, personagem au-tobiográfica. “Li, e sobretudo reli, todo o Eça, o meu grande Eça. Não possoresignar-me à sua morte, pensar que nunca mais o leio. . . Decerto, relê-lo émuito agradável, mas tenho, terei sempre saudades do entusiasmo, tão forteque me fazia bater o coração, ao começar um novo livro desse genial, únicoescritor”, afirma no seu Jornal89.

São várias as referências na sua obra a Eça de Queirós e às suas persona-gens, chegando a dar voz ao sobrinho do conselheiro Acácio, personagem in-ventada, “No Chiado, o Conselheiro X, herdeiro e sobrinho dileto de saudosoAcácio, que Deus haja, correu a abraçar o Conde [. . . ]”90. Outras personagensqueirosianas aparecem no interior dos seus textos, existindo inclusive emRindo e Chorando um capítulo com o nome de “Em Margem dos Maias”, ondese podem rever inúmeras personagens, desde o Conde de Gouvarinho:

Através de todas as lutas, vicissitudes, desilusões e chinfrins dos últimos anos,caluniado pelos correligionários, perseguido pelos adversários, desacatado noseu interior pela sr.a condessa, que ainda não perdeu aquele hábito desagradá-vel de manda-lo à Tabua, Gouvarinho conservou-se, quase como o conhecemos,na saleta verde e oiro de S. Marçal, entre os seus retratos de família.91

Ao Conde Salsede: “O Conde de Salsede – o inefável Damasco apareceuconde logo que a república suprimiu os títulos – considerava de absoluta ne-cessidade a reforma dos tratados de Genealogia e Heráldica, que declarouduma lamentável insuficiência”92.

E nem Eusébio ficou de parte: “Eusébio, que se tem dedicado ultima-mente ao estudo da flauta, deplorou o atraso em que vivem as nossas pro-víncias, com relação à música e outras Belas Artes, aconselhando, que, além

89 Apud José Martins dos Santos Conde, Luzia, o Eça de Queiroz de Saias, pp. 64-65.90 Rindo e Chorando, Lisboa, Portugália, 1922, p. 204.91 Idem, p. 201.92 Idem, p. 207.

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da fundação de novas filarmónicas, se promovessem concertos clássicos emtodas as cabeças de concelho”93.

“Muitas vezes a sua obra literária parece uma projeção daquela análisecuidada do nosso Eça imortal, mas logo verificamos que está bem dentro dasua inconfundível personalidade e do seu sentir característico”94, escreve Vis-conde do Porto da Cruz, Alfredo de F. Branco.

Mas, acima de tudo, Luzia foi a espectadora das comédias do mundo, escritoraque, desde a primeira publicação, agitou o mundo das letras portuguesas,entrando na intimidade intelectual das suas grandes figuras, e que, mesmono meio literário feminino, se viu rodeada de uma unânime admiração95.

Nunca gostou que lhe chamassem mulher de letras, ou lhe dessem outrostítulos, e são muitos os que conviveram com a escritora que o confirmam,bem como o testemunha a sua própria obra, na qual, a título de exemplo, emDias que já lá vão, afirma:

A mim, começa por chamar-me “deliciosa poetisa”, continua chamando-me“notável historiadora”, acaba, concedendo-me honras de “arguta jornalista”. . .Deixo-a dizer. . . sem a mínima veleidade de protestar. Só as intenções contam,e quer decerto ser amável comigo, a Marquesa. A um único título, aliás, julgoter direito: ao de espectadora das comédias do mundo, e foi esse, exatamente,que ela omitiu.96

Como refere também Feliciano Soares, “Luzia não quer ser Mulher de Le-tras, não quer ser Literata. Tem uma aversão por semelhante título. E toda-via, desde menina de colégio, a literatura é, de todos os seus estudos, além daHistória, o que mais interessa ao seu espírito”97.

A obra de Luzia tem uma forte componente autobiográfica. Ao lermos osseus textos, começamos logo a traçar paralelos com a sua vida. Quase se podeafirmar que, estudando unicamente com toda a atenção a sua obra, podemostraçar com alguma certeza vários traços de personalidade e de vivências daautora.

93 Idem, p. 206.94 Op. cit., p.86.95 Cf. Feliciano Soares, op. cit..96 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 239.97 Op. cit., p. 2.

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Feliciano Soares, jornalista e escritor que privou de perto com Luzia, noseu livro inédito sobre a mesma, afirma justamente que:

Em todos os livros de Luzia se pode encontrar um pouco do seu eu. A sua obraliterária é sempre um pouco de autobiografia. A Espectadora das comédias domundo faz passar personagens e factos através da sua alma, da sua sensibili-dade, do seu eu, diga-se, romântico, apaixonado. Todos os seus livros – não é sóo último, Dias que já lá vão – são livros de memórias.98

Outro traço que é importante realçar, é a ironia presente na pena de Lu-zia, que, como espectadora das comédias do mundo, construiu em si uma dispo-sição psicológica que se manifestava para além da pena, levando-a “a usar,por vezes, daquela fina, subtil, elegante ironia que não conseguia dissimulartotalmente uma pontinha de irreverência por certos climas intelectuais queas circunstâncias a obrigavam a frequentar”99.

Luzia desdenhava das reuniões intelectuais, fazendo realçar o ridículo e afachada de determinadas situações sociais. Particularmente as suas duas pri-meiras obras, Os que se divertem e Rindo e chorando, transbordam de exemplosmordazes que têm como alvo pessoas, costumes e protocolos sociais. A es-critora sentia uma tal aversão a esse mundo de pseudoliteratos, intelectuaise novos-ricos, que queria ser apenas considerada espectadora de todas essas“comédias”, abominando que a tentassem incluir nesse círculo.

A sua obra foi longamente meditada. Não era fruto de uma primeira ins-piração, ou simples reproduções das cartas que enviava, trabalhando as suasobras, encadeando-as e pensando-as, antes de as dar a público.

Um excerto do livro de Feliciano Soares valida esta mesma conclusão:

Lembro-me bem de que num verão que passámos no Monte Palace Hotel, noMonte, [. . . ] Luzia pediu-me, uma noite, depois do jantar, que lhe lesse o origi-nal dum livro seu que pensava publicar.Li-lho todo, nesse serão. Durante a leitura, Luzia fixou os seus olhos míopes novago, e não fez o mínimo comentário. Tinha as feições descaídas, um ar triste edesalentado. Receei que a minha leitura não a satisfizesse. Mas continuei sem-pre até ao fim.Eram altas horas quando acabei. Só então Luzia falou: – Que acha?Não me deu tempo a responder, porque logo continuou: – Não vale nada. Tenho

98 Ibidem.99 Idem, p. 4.

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de o refundir todo. . . talvez bem pouco possa aproveitar. [. . . ]Tempos depois, o livro foi publicado. Era outro. Tinha sido completamente mo-dificado. E à custa de quanto trabalho!100

O lançamento do primeiro livro de Luzia, Os que se divertem, a comédia davida, aconteceu quando a escritora tinha já quarenta e cinco anos, em 1920, enão foi uma surpresa no mundo das letras portuguesas. Como refere Felicia-no Soares, na frequência assídua no salão de Maria Amália Vaz de Carvalho,Luzia foi conhecida de perto e logo admirada. Dir-se-ia que já se esperava queela se afirmasse grande desde a primeira hora.

O sucesso foi enorme e imediato e a obra conheceu três edições, a pri-meira em 1920 (229 pp.), a segunda em que não aparece data de publicação(223 pp.) e a terceira edição em 1929 (305 pp.), esta última uma edição aumen-tada e com ilustrações de Bernardo Marques101.

Os que se divertem, a comédia da vida é um retrato da alta sociedade em queLuzia se movimentava. Os novos e velhos ricos, os vestidos, os eventos, a so-ciedade das aparências em que se movia são o cenário e protagonistas dassuas histórias. A ironia prevalece praticamente sobre todos os quadros que“pinta”, apontando os ridículos do que a rodeia. Dos retratos mais comuns,aparece o das mulheres, a mulher vaidosa, que só se importa com a aparênciae tudo faz para ocultar a idade; a mulher que inveja, que desdenha das ami-gas íntimas e de outras mulheres; a escrava do chic; a intriguista; os flirts; asnovas-ricas com seu mau gosto, a falta de cultura e educação; entre outrassituações ridículas e pequenas.

Como expõe José Martins dos Santos Conde, relativamente a esta obra:“Vinte e três episódios e cartas, dialogados uns, monologados outros, apre-sentam-nos, sobretudo, um vasto friso de personagens da alta sociedade lis-boeta do pós-Primeira Guerra Mundial. Velhos e novos-ricos exibem a suamentalidade e hábitos sociais típicos, num recorte supremo de fina ironia”102.

Rindo e Chorando (291 pp.) é publicado dois anos depois, em 1922, e man-tém os mesmos traços e até as mesmas personagens do livro anterior. Sente--se quase como uma continuação das “comédias da vida”, mas revela uma iro-

100 Op. cit., p. 79.101 Nesta edição novos capítulos são acrescentados, mas um é retirado, “As Cartas de Clara”,

sendo substituído pelo capítulo “A Récita de Caridade”, já publicado em Rindo e Chorando.102 Op. cit., p. 9.

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nia mais trágica que faz o leitor flutuar entre episódios de riso genuíno e desorriso amargurado, de tão trágica que pode ser a ironia da vida.

Cartas do campo e da cidade vem a público em 1923 (222 pp.), e, tal como opróprio nome indica, situa-se entre as paisagens e ambientes opostos destesdois lugares: das quarenta e quatro cartas, vinte e oito são escritas na cidade,algumas em Lisboa, outras no Funchal, e dezasseis no campo, a maioria delasnas Quintas de Portalegre.

Como refere José Martins dos Santos Conde, todas “estas cartas, do cam-po e da cidade, foram escritas, entre 9 de agosto de 1918 e 20 de setembrode 1919, o que de imediato nos traz à lembrança a experiência do Sidonismo,no nosso país, e o fim do primeiro grande conflito mundial. Estes eventoshistóricos, aliás frequentemente aludidos nas cartas, marcaram fortementetoda a vivência das pessoas da época”103.

Cartas d’uma vagabunda é o quarto livro de Luzia (310 pp.), no qual nãoaparece a data de publicação. Esta obra revela a enorme paixão que Luzia tempela epistolografia e como ela própria se destaca como grande epistológrafa.

Fazendo referência a Horace Walpole, discorre:

E, no século em que, com mais encanto e graça, se praticou a arte epistolar,commerce de lettres, como então se chamava, foi ele sem dúvida, um dos maisbrilhantes, infatigáveis, espirituosos e. . . bisbilhoteiros – não há missiva ver-dadeiramente interessante sem um bocadinho de bisbilhotice – epistológrafos.[. . . ] Atribuis-me tu a mesma exclusiva ocupação. Pretendes que, como a vidade Walpole, a minha se resume em uma longa carta. E não deixas de ter razão.Desde sempre cultivei com entusiamo os prazeres da correspondência.104

Nas cartas, Luzia testemunha que acaba de chegar de França e descrevecomo encontra Lisboa e os seus hotéis favoritos. Depois de instalada, retratade novo a cidade e os seus ridículos. Nada escapa ao olhar de Luzia, dos po-líticos à moda, dos hábitos culturais à alta sociedade, todos são alvo da suaironia. Mas um grupo em particular é alvo do seu mais violento sarcasmo, osnovos-ricos. Nesta obra, Luzia continua a caracterizar-se pela sua irreverên-cia, não faltando exemplos, como o trecho: “Parece-me que escolheste péssi-

103 Idem, p. 13.104 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 7.

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ma conselheira. Por distração e. . . talvez por um bocadinho de implicaçãotambém, faço sempre o contrário do que o código elegante manda fazer”105.

Em Cartas d’uma vagabunda, Luzia também relembra os doces momen-tos passados no colégio das Salesas, e algumas das histórias da temporadapassada em Pau, no sanatório, fazendo referência ao conflito mundial que omundo tinha atravessado. A chegada a Portugal, a estadia em Lisboa, segui-damente, em Pedras Salgadas e, por fim, de novo a sua amada França. É opercurso que Cartas d’uma vagabunda leva o leitor a fazer.

Sobre a vida. . . sobre a morte, máximas e reflexões surge em 1931 (84 pp.) e éum livro de pequeno formato em que Luzia faz reflexões sobre o que lhe ensi-naram as suas vivências, iniciando um diálogo com a morte. Tem cinquentae seis anos e abate-se sobre a sua alma a desilusão de sonhos desfeitos, deuma vida muito sofrida até ao momento: “Não sejas tão severo com os novos.Lembra-te que já seguiste a sua esperança e que eles caminham já para a tuadesilusão. . . ”106. Como refere José Martins dos Santos Conde, Luzia, inteli-gente, culta e viajada, já sofrera “a morte dos seres mais queridos, a separa-ção cruel do marido gastador e os espinhos da depressão e da doença, estavacredenciada para transmitir aos menos experientes, em forma de breves sen-tenças e avisos, as suas experiências sobre a vida e os seus pensamentos sobrea morte”107.

Almas e terras onde eu passei é publicado em 1936 (285 pp.) e é constituídopor relatos de fragmentos da vida de Luzia, pedaços de memórias, das pes-soas, das coisas e dos lugares por onde passou. O texto fixa impressões dostempos vividos no Jardim do Mar, pedaços de histórias vividas em Portale-gre, as “personagens” que com ela conviviam no sanatório, a vida elegante deLisboa, o colégio das Salesas, a Madeira, a revolução, os seus bem-amados li-vros, entre muitos outros assuntos. Tudo desfila, de forma aprazível e bemcontada, com toques de nostalgia e saudade, perante o leitor.

Última Rosa de Verão (cartas de mulheres) surge quatro anos depois, em 1940(329 pp.). O livro conta a história de Ana Guiomar, que é incumbida de “edu-car” o primo da sua amiga íntima Maria do Carmo, que vai uns tempos parafora. O primo de Maria do Carmo, Nuno, tem metade da idade de Ana Guio-mar, e com a convivência ambos se apaixonam. O romance entre os dois é

105 Op. cit., p. 31.106 Sobre a vida. . . sobre a morte, máximas e reflexões, Lisboa, s.e., 1931, p. 45.107 Op. cit., p. 23.

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contado maioritariamente em cartas escritas de Ana Guiomar a Nuno. ComoConde refere, “manejando o género epistolar com a destreza que já lhe co-nhecemos – neste caso o uso da carta poderá ser um artifício literário – Luziaconsegue uma perfeita urdidura de romance”108.

São aqui retratados um amor impossível, a expressão de genuínos sen-timentos e as condenações sociais. As semelhanças com a história de vidasão evidentes. A morte da mãe de Ana Guiomar, o marido que a despreza,o divórcio, as vivências de infância, tudo no romance encontra um paralelocom vida real de Luzia. Como sublinha José Martins dos Santos Conde, “Lu-zia está aqui retratada de corpo e alma. Ninguém diga que este romance nãoé profundamente autobiográfico”109.

Quatro anos antes da sua morte, em 1941, Luzia lança Lições da Vida, Im-pressões e Comentários (108 pp.), mais um livro de pequeno formato, com refle-xões sobre as efemeridades da vida, o amor, a beleza, as ilusões, os sonhos, amorte.

Dias que já lá vão foi publicado um ano depois da morte de Luzia, em 1946(248 pp.), pois: “apesar de muito doente e quase cega Luzia continuava a es-crever. Estava preparando um novo livro, intitulado Dias que já lá vão. Nãoteve tempo de o acabar”110, conta J. Conde. A edição apresenta um prefáciode Fernanda de Castro e Teresa Leitão, com ilustrações de Anne Marie Jauss.

A maior parte das narrativas deste livro lembram os episódios da infânciade Luzia em Portalegre, o início da sua paixão pelos livros, as aulas em casa, osinvernos rudes que passava de livro na mão em frente à lareira, e descrevema Quinta das Assomadas, nos meses de bom tempo, que fazia as suas delícias,cheia de flores campestres, águas da ribeira, onde brincava com a sua amigaGeorgina e fingia ser D. Quixote. Escreve J. Conde: “A alegria esfusiante, acriatividade assombrosa, a irreverência da linguagem e das atitudes de duascrianças terrivelmente endiabradas surgem, aqui, com um relevo e uma vi-vacidade insuperáveis. Raramente a língua portuguesa terá alcançado, comonestes episódios, tanta força, adequação e naturalidade”111. Os episódios dolivro constituintes da segunda parte, não sofreram os retoques da autora eisso faz-se notar. Sobressai um estilo definido pelo ritmo dos apontamentos,

108 Op. cit., p. 26.109 Idem, p. 28.110 Idem, p. 32.111 Ibidem.

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a que Luzia teria acrescentado sem dúvida graça e vivacidade se tivesse tidooportunidade de os trabalhar.

José Martins dos Santos Conde refere que, logo após Luzia ter publicadoo romance Última Rosa de Verão, tencionava editar um original intitulado PelosCaminhos da Vida, e, de facto, é o que é anunciado na página seguinte à capa deÚltima Rosa de Verão, referindo-se à preparação daquela obra. O mesmo autoresclarece: “Desconhecemos os motivos por que o original em causa, já datilo-grafado e rigorosamente corrigido, não chegou nunca a ser editado. Há, noentanto, uma suposição, que é quase uma evidência: as referências constan-tes a pessoas ainda vivas poderiam vir a melindrar muita gente”112.

O estudioso informa que o inédito Pelos Caminhos da Vida tem como subtí-tulo Jornal, e trata-se, na verdade, de um diário íntimo da autora, de trezentase cinquenta e nove páginas datilografadas. Abrangendo um período que vaide 24 de julho de 1902 a 10 de maio de 1915, Luzia começa-o com vinte e seteanos, quando era casada, e termina-o quando tinha já quarenta, depois dodivórcio, na fase da sua vida em que não queria nada, apenas morrer.

Conde também salienta que no volume que consultou a “capa que res-guarda o inédito, que temos em mãos, está encimada pelo número romano I,o que pressupõe a existência de mais volumes”113.

No momento do presente estudo, até este volume parece estar perdido,e dos diários de Luzia anteriores ao casamento, da sua correspondência comnumerosos escritores e linguistas, bem como dos vários cadernos de aponta-mentos que fazia em todas as viagens, nada se sabe.

Como se pode depreender, tendo em conta o seu percurso literário e a suaobra, Luzia é uma ecletista de inspiração feminista francófona, balizada porum iluminismo recorrente e por aquilo que em Portugal se estabeleceu ser odecadentismo saudosista.

Porém, não é fácil concluir acerca da sua fidelidade a qualquer dou-trina/corrente literária da época, e talvez nunca tal se venha a conseguir efe-tivamente, uma vez que Luzia era uma grande leitora – mesmo compulsiva,segundo escreve – o que lhe trouxe influências discursivas desde os nossosbucólicos românticos – como Bernardim Ribeiro (Menina e Moça), CristóvãoFalcão (Crisfal), Júlio Dinis, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco – até Eça

112 Op. cit., p. 32.113 Idem, p. 33.

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de Queirós, Voltaire, Anatole France, etc., etc., mas sempre com uma notóriapreocupação de tentar agradar pelo avesso de Xerazade das Mil e Uma Noites:negando-se a amar muito uma corrente de escrita ou pessoa por temer queisso lhe provocaria a morte.

Há também uma contínua busca do tempo perdido, como fez Proust aoanalisar a aristocracia e seu modus vivent, e chega inclusive a fazer algumascitações do autor francês, como quando afirma: “Penso como Marcel Proust,que a lisonja pode ser uma manifestação de ternura, enquanto a demasiadafranqueza, vem quase sempre da má vontade ou, pelo menos, do mau hu-mor”114.

Contextualizar um discurso romanesco da natureza do de Luzia não é ta-refa fácil, considerando que a escritora não era atreita a arregimentações dequalquer espécie. Foi simbolista, modernista, feminista, romântica, realista,tradicionalista, bucólica, parnasiana. . .

Luzia, de facto, demonstra nos seus textos um ecletismo que permite des-crevê-la em vários movimentos literários e em nenhum em particular. Pelogosto do pitoresco, do quotidiano, da expressão direta e realista aliada aotermo raro e expressivo e pela, por vezes, opção pela impessoalidade. Lu-zia tem qualquer coisa de parnasiano, de cujos poetas Eça escreveu: “A estespoetas deu-se o nome de cinzeladores. A sua obra, realmente, pertence maisà joalharia do que à poesia”115. Era no dia-a-dia que se inspiravam na buscadas temáticas. Como refere Hernâni Cidade, “a poesia deixa de ser efusãosentimental de quem vai empós o coração e passa a ser a expressão artística,pictural, mas preferentemente escultórica, colaborada pela inteligência vigi-lante, da visão da realidade exterior”116.

O poeta parnasiano buscava a beleza em si, e isso é percebido em muitostrechos de Luzia. Mas, Luzia também é romântica, na identificação dos seusestados de alma com a natureza, no sentimento de que é incompreendidapelo mundo que a rodeia, pelo gosto sensorial, formas e cores, pela adesão aum mundo fantástico, de fadas e castelos, tão ao gosto do romantismo inglês.Não pode, no entanto, não ser influenciada pelo realismo de Eça, pela ironia

114 Lições de Vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 66.115 Apud Lições de Literatura Portuguesa, 2o Ano do Curso Complementar, (Séc. XIX e XX), António

Bragança, 12a ed., vol. 3, Porto, Livraria Escolar Infante, 1978, p. 270.116 O Conceito de Poesia Como Expressão da Cultura, sua Evolução Através das Literaturas Portuguesa

e Brasileira, 2a ed., Coimbra, Armínio Amado, 1957, p. 247.

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no retrato da realidade, pelo ceticismo em relação aos finais felizes, pela crí-tica à confusão de valores que caracteriza a sociedade. A escritora depois,naturalmente evoluiu pouco a pouco, conforme aqueles tempos o exigiam,para anunciar o Simbolismo Decadente, mas sempre sem nunca se fixar anenhuma corrente ou estilo.

1.3 – A receção da obra na sociedade da época

Deu-me em perfumadas palavras a certeza da sua simpatia, deu-ma maisuma vez, e eu honro-me muito e envaideço-me com ela; e contou-me com asua maneira tão espirituosa o que sempre me agrada saber. O seu grandetalento literário prima na narração descritiva, descritiva das rápidas co-médias da sala, e consegue, como raros, comunicar a quem lê, as sensaçõesque experimenta, passando-as pela verve do espírito e polvilhando-as dosal duma inocente malícia verdadeiramente encantadora!117

Luzia era uma mulher que frequentava os círculos intelectuais e salões li-terários da época, era reconhecida e respeitada por todos, podendo verificar--se através da imprensa e dos que conviveram com a escritora no seu tempo,que gozava de grande prestígio.

Fernanda de Castro (n. 1900 – m. 1994, autora de Maria da Lua e Fontebela) eLuzia comungavam uma amizade e respeito mútuo, mas também interessesliterários. A escritora enviava a Luzia “cópias dos originais dos seus versos,antes de entrarem no prelo, e também da sua prosa – Maria da Lua – foi co-nhecida de Luzia antes de ser entregue ao editor – porque a opinião justa masbondosa da Mestra que dava Lições de Vida, era de um valor acima de toda adúvida”118.

As duas autoras trocaram uma correspondência considerável ao longo dotempo. Fernanda de Castro chegava a compor versos para falar a Luzia, comose verifica no pequeno excerto seguinte, retirado de uma longa carta em versodatada de 27 de abril de 1928:

117 António Cândido, apud Feliciano Soares, op. cit., p. 43.118 Feliciano Soares, idem, p. 33.

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Luísa, é quase a hora da saudade. . .Nasce a noite da própria claridadeque ainda se estende pelos campos fora.Vamos ambas sonhar. . . É quase a horado silêncio, do mar, das estrelas.Estas nuvens irreais são caravelasque vão levar-nos para lá da vida. . .É esta a hora suave e enternecidaem que não apetece falar alto. . .Na sua voz serena de contraltoreúne o mar as vozes de mil almas. . .Vamos sonhar. . . Há nestas horas calmastantos sonhos errantes, que é pecadoabandonar o que passa ao lado. . . 119

Mas não era só Fernanda de Castro que escrevia lindos versos e palavrasa Luzia. Muitos nomes da literatura portuguesa conheciam, apreciavam eescreviam a Luzia, como seguidamente se irá demonstrar.

Feliciano Soares, para além de ser amigo de Luzia, era também maridode Laura de Castro Soares, amiga íntima da escritora e a quem esta deixa emtestamento todas as suas cartas e papéis. Foi desta forma que o marido deLaura de Castro teve acesso aos papéis de Luzia e cartas, partilhando com osleitores alguns excertos. Destes, alguns explicitam a forma como era recebidapelos seus contemporâneos.

António Correia de Oliveira (n. 1878 – m. 1960, autor de Elogio dos Sentidose História Pequenina de Portugal Gigante), depois de ler Cartas d’uma Vagabunda,envia-lhe um poema, datado de abril de 1926:

Que belas cartas! Que suaves linhas!São “vagabundas”, boa Amiga? Qual!Todas se voltam para Portugal,Como voltam, de longe, as andorinhas.

Ora, tão altas, como as estrelinhas,Em viva nebulosa espiritual;Ora soluços de água; ou roseiral;Ou sol, cantando, entre a seara e as vinhas.

119 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 43.

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A Senhora de Lurdes é de França:Acaso entende a nossa Língua? AlcançaQue falam d’Ela? Talvez não, talvez. . .Mande-lhe as “Cartas”. Santo António é lusoE lhe dirá: – “Deixai, que eu vos traduzo. . .Que pena, não saberdes português!” 120

Branca de Gonta (n. 1880 – m. 1945, autora de Auto dos Faroleiros e Poetasde Ontem), a 4 de agosto de 1922, escreve a Luzia:

. . . Logo que o Rindo e Chorando apareceu, eu precipitei-me sobre ele; li-o. . .– e ri, . . . e chorei!. . . É uma maravilha de graça, de sentimento, de malícia, e debondade! . . . E de talento! E como Luzia conhece a vida, e os corações. . . e comosabe falar de Amor!. . .Adoro-a, e aos seus livros lindos!Não há nada de que eu tanto goste, na vida, como de gostar; e de si, do seuespírito, da sua alma, gosto plenamente.121

Feliciano Soares revela também que, já em 1920, Branca de Gonta pedira aLuzia a sua assinatura, datada de 28 de setembro daquele ano, “para mandarà Rainha, tão infeliz e que está tão triste. . . para dulcificar um pouco aquelaimensa amargura”122.

Virgínia Vitorino (n. 1895 – m. 1967, autora de Namorados e Apaixonada-mente), em 1937, escreve a Luzia:

[. . . ] Gostei muito do seu livro, muito. Há nele uma calma de oceano fundo, umapoesia como que disfarçada e involuntária, um delicioso espelhar de comoçõesque não chegam quase a formular-se.Aqui, além, a sua consagrada ironia não quer perder os seus direitos; mas écomo sempre foi – um modelo de sorriso sem azedumes.Gostei imenso da forma por que, sem se esquecer de diálogos, também como sem-pre, deixou que o dialogar escorregasse, aqui, além, para um filosofar discreto,elegante.123

Virgínia Vitorino também questiona Luzia sobre o teatro, pergunta-lhequando é que ela irá escrever teatro, uma vez que muitas das suas páginas

120 Apud Feliciano Soares, ibidem, p. 36.121 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 36.122 Ibidem.123 Apud Feliciano Soares, ibidem.

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parecem momentos de género dramático. Mas não é a única que a questionaa este respeito. Chagas Roquete (n. 1875 – m. 1940, autor de O Homem Fatal,comédia original em um ato, e Coisas Minhas) aponta que em relação “ao seubelo trabalho, ele veio revigorar em mim a convicção de que deve a minhailustre camarada, abordar com decisão a literatura do teatro. Quem tem odom da observação e quem dialoga assim, com uma naturalidade extrema,encontrará no palco o triunfo certo. Porque não experimenta?”124.

Também Câmara de Lima (n. 1868 – m. 1928, autor de Beco do Fala – Só eCartas a Mulheres e Bilhetes a Toda a Gente) refere “. . . e aqui vem a propósito la-mentar que V. Ex.a dispondo de um tão grande poder de observação e análise,e dialogando como só o fazem os mestres, não tente o teatro, na alta comédia,que lhe reservaria sem dúvida um completo triunfo”125.

Augusto de Castro (n. 1883 – m. 1971, autor de Chá das Cinco, comédiaem três atos, e, As Nossas Amantes, comédia em três atos) num dos seus ar-tigos do Diário de Notícias, chegou a chamar a Luzia, o Eça de Saias126. Comesta afirmação, Augusto de Castro quis enfatizar alguns traços de Luzia, aespontaneidade, a graça natural, a improvisação inesgotável, a admirável in-dependência moral, a sensibilidade crítica e culta. Quanto à denominação,Joaquim Castanho evidencia que “por melhores que tenham sido as suas in-tenções, esta classificação está eivada de uma subtil afronta, quiçá frequenteentre a intelectualidade de descendência antropocêntrica, com um discursodeclaradamente masculinizado, comparando uma mulher com um homem,ainda que ele fosse considerado – e talvez ainda o seja atualmente, e de facto– o expoente máximo das letras nacionais, hoje um clássico quase em vias dedescrédito, e a intenção fosse elogia-la”127.

Carlos Malheiro Dias (n. 1875 – m. 1941, autor de O Filho das Ervas e OGrande Cagliostro) é da opinião que a leitura das obras de Luzia é uma “leituraque tantas vezes lembra a graça sibilina do grande Eça: a graça e o airosoestilo que é a elegância e a boa educação do espírito”128.

Numa outra carta, de 1937, Augusto de Castro diz-lhe: “Os seus livros, sãomais conversados do que escritos. Nessa espontaneidade, nessa graça natu-

124 Apud idem, p. 38.125 Apud ibidem.126 Diário de Notícias, 13.12.1956.127 Op. cit., p. 5.128 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 40.

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ral, nesse milagre de improvisação inesgotável, a sua literatura não tem ri-val. Que grandes, excecionais faculdades de romancista existem na sua obra!Porque dispersa-las? Os seus admiradores esperam de há muito, do seu ta-lento, o grande romance da Lisboa atual, que falta entre nós, para continuara galeria de Eça”129.

Luzia era muito apreciada pela alta-roda da literatura portuguesa da é-poca, são, por isso, muitos os testemunhos espalhados quer em cartas a elaenviadas, quer em artigos de jornais.

O Conde de Sabugosa (n. 1851 – m. 1923, autor de Gente de Algo e Donas deTempos Idos), escreve a Luzia:

Este volume, “Cartas do Campo e da Cidade”, coloca-a, sem sombra de discus-são, na plana mais elevada da nossa literatura. Tem interesse, graça, obser-vação aguda, nobreza no pensar, elegância no dizer, é senhoril sem ser intole-rante, é malicioso sem maldade, é irónico sem veneno. Tem além disso tudo,aquela veia de sentimento sem a qual uma obra de arte é um corpo inerte.Atrai todos desde a Madame frívola que verifica sorrindo como é bem desenhadoo gabinete de modas do Sr. Pinto, até o velhote como eu que aprecia logo noprincípio aquela página magistral consagrada a Lisboa (eu sou um alfacinhairredutível) e se deixa comover com aquelas páginas tão palpitantes dedicadasao Albergue dos Velhinhos. E tudo, tudo o mais que neste volume denota umescritor de raça.Em França, que era dantes a Pátria do espírito onde as mulheres do século XVIIe XVIII brilharam pela graça e as de hoje, Gyp, Noailles e algumas outras aindasustentam as tradições, não se escreve melhor.130

Também Agostinho de Campos (n. 1870 – m. 1944, autor de Língua e máLíngua e Falas sem Fio) trocava correspondência com Luzia, muitas vezes ex-pressando opinião sobre os seus livros. Relativamente à obra de máximasSobre a Vida e Sobre a Morte, comenta:

Há lá coisas lindas e grandes que lembram Heine e estão pedindo um metrifi-cador que ponha em verso a sua poesia profunda, e depois um compositor queas ponha em Lieder.Grande consolação me deu esta leitura que muito fez crescer a grande admira-ção que eu já tinha por V. Exa.

129 Apud ibidem.130 Apud Feliciano Soares, op. cit., p. 40.

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A propósito de Almas e Terras Onde Eu Passei, reitera o seu apreço:

[. . . ] li com prazer, proveito e apreço. Encontrei nele muita sensibilidade, rea-ções prontas perante o natural humano e o da paisagem, ironia velada poraquilo que o nosso amigo France chamou “un bienveillant mépris des hommes”– e também lirismo e também poesia.Li tudo, gostei de tudo, (menos do título, porque sou inimigo pessoal de “eus” emtítulos), e não vi neste livro nada de livresco, salvo as citações de outros livros,mas essas mesmas revelam o fino sentimento de quem as notou e escolheu.

E também a respeito de Última Rosa de Verão: “Não faltam no livro de V.Ex.a frases lapidares que não se nos desprendem da memória: Um defeitoque me tirassem era um roubo que te faziam”131.

Como se pode observar, a apreciação da obra de Luzia caracteriza-se peloentusiasmo e admiração, sendo feita pelos grandes nomes da sociedade e cul-tura contemporânea.

Feliciano Soares refere também um livro de autógrafos feito para Luzia,no qual se encontram dos melhores nomes de poetas que assinaram as com-posições, algumas das quais pensa serem inéditas, e que podem ser conside-radas como “joias preciosas” da língua portuguesa: Comunhão de Fernandade Castro; O Teu Andar é Tão Leve de Laura Chaves; Bruges de Cândida Ayresde Magalhães; Ambição de A. de Oliveira Soares; Cinco Laranjas Douradas deEugénio de Castro; Infortúnio de Manuel Ribeiro; Sevilha de António Ferro;Soror Água de Américo Durão; Sonetos de Branca de Gonta Colaço; Que Tris-teza! de António Botto; Compasso de Espera de Henrique Lopes de Mendonça;Ó Portugal, Florida Alpendurada de Afonso Lopes Vieira; Mistério de Maria deCarvalho; Duas Pérolas Dum Colar que se Partiu de Alfredo Pimenta; A Parábolada Areia e da Lágrima de Ramiro Guedes dos Campos; O Amor e a Arte de Ma-ria do Carmo Peixoto; Minerva de João de Barros; A um Moribundo de FlorbelaEspanca; Halos de Sonho de Albertina Paraíso; Fim de Virgínia Vitorino; Os-cilações de Oliveira Guerra; A Vida é tão Pequenina de Augusto de Santa Rita;Carta de um Aldeão de Marta de Mesquita; Sonho Eterno de Domitila de Carva-lho; Procissão à Beira do Mar de Teresa Leitão de Barros132.

De onde se infere, como, aliás, todas as referências vêm comprovar, oquanto Luzia era lida e apreciada pelos seus contemporâneos, mas também

131 Apud ibidem.132 Feliciano Soares, op. cit., p. 45.

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que o seu nome andava lado a lado com os nomes que hoje reconhecemoscomo relevantes para a história da literatura portuguesa.

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Capítulo 2

A eterna busca do “Eu”

2.1 – A vagabundagem pelo mundo e a saudadedo que foi

Saudades e esperanças andam sempre de mão dada.Quase todas as esperanças choram um bocadinho de saudade e nem por isso

são tristes. . . Tristes são as saudades que choram sem esperança. . . 1

Luzia foi uma eterna viajante, corria o mundo por diversos motivos, des-de o desejo de desaparecer na multidão (“Não invejes tanto os que viajam. Háquem o faça por prazer, bem sei. Mas há quem ande de terra em terra, parafugir a uma lembrança, para enganar uma saudade, trocar o nome que tevee foi querido só de alguém, por um número nos hotéis, que já foi de toda agente!. . . ”2), à urgente necessidade de sentir saudades:

À pena do que deixo, junta-se a incerteza, o terror do que vou encontrar. Tenhomedo de partir. Tenho medo de chegar. É toda a angústia da despedida, já milvezes renovada, e a que jamais me habituarei! [. . . ]

1 Sobre a vida. . . sobre a morte, máximas e reflexões, Lisboa, s.e., 1931, p. 59.2 Idem, p. 65.

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Espalhei saudades pelo mundo, que me impelem irresistivelmente. . . Quantasvezes, avistando, após uma longa ausência, as oliveiras cinzentas do meu Alen-tejo, ou os luminosos jardins desta terra, que, por ser tua, eu queria escolhertambém, penso: Aqui é que vou ficar para sempre, fazer o meu ninho, descan-sar, enfim! E, pouco depois, invade-me a nostalgia doutro país, outras saudadeschamam-me, levam-me. . .Não é de viajar que gosto. O desconhecido não me atrai. Mas os lugares em queuma vez pus os olhos do meu coração, as queridas paisagens da minha infânciae da minha mocidade, aquelas onde mais vivi. . . porque mais sofri, preciso vol-tar a vê-las, se estou muito tempo longe delas é como se me faltasse alguém, seelas me dizem: – Vem – nenhuma voz, nenhuns braços humanos, são capazesde prender-me.3

Viajar, viajante, viagem, caminhante, andarilho, experimentação, im-pressão. . . Palavras que levam à reflexão sobre o ato de viajar. São inúmerasas situações que se podem considerar, pensar, experimentar como viagem.Em todas elas, um aspeto deve ser destacado, como afirma Michel Onfray, no“centro da viagem, descobrimos apenas e somente o eu”4. O encontro com o“eu” no centro da viagem põe em evidência o facto de que qualquer tipo deviagem envolve sempre uma viagem interior.

Luzia deambulava de terra em terra, sempre saudosa e nostálgica da terraque tinha deixado para trás, sempre querendo estar onde não estava, comotão bem exemplifica este trecho:

A quem espalhou tantas saudades pelo mundo é difícil escolher canto para oninho, porque, todos os lugares atraem ao mesmo tempo e nenhum contenta. . .A lembrança deste estraga aquele. No Alentejo eu teria a nostalgia da viçosaMadeira, no inverno da Madeira, cheio de flores e de sol, lembrar-me-ia dosPirenéus, sob o seu manto de neve. . . E em toda a parte – Ai de mim! – hei desofrer da minha estranha dualidade, a minha alma decadente de civilizada, háde lutar com a outra, a minha alma simples de provinciana. . .Nâitre, vivre et mourir dans la même maison! Único destino invejável, comodizia Sainte-Beuve!5

Aqui Luzia demonstra o seu traço romântico. Uma insatisfação cons-tante, um sentimento de injustiça perante o destino, e a presença do cha-

3 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., pp. 309-310.4 Michel Onfray, Teoria da Viagem, Uma Poética da Geografia, Lisboa, Quetzal Editores, 2009,

p. 84.5 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 62.

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mado “mal du siècle”, manifestando cansaço e melancolia, uma angústia deviver.

Ana Carvalho salienta o facto que não “raramente esta deambulação fí-sica reflete uma errância introspetiva, uma busca de si próprio, do Outro edo Conhecimento”6. Pode-se pois afirmar que em qualquer tipo de viagem,encontramos sempre a viagem interior, como sublinhou Maria José Meira:“Duma maneira ou doutra a viagem realizar-se-á sempre em função dumabusca de identidade própria”7.

Sentimentos como a saudade, a dor e a nostalgia, impregnaram o espíritode Luzia, desde muito cedo:

Tenho dez anos. Já estou de luto. Já tudo o que fez o encanto da primeira infân-cia se apartou de mim; conheço a saudade, o vão, ansioso desejo de voltar a ouvirpalavras que irremediavelmente se calaram. Fecho os olhos, na trémula espe-rança de que, ao abri-los, um milagre me restitua a casa, o jardim da Madeira;estendo as minhas mãos para o calor, a ternura das queridas mãos rugosas. . .Mas é a terra onde nasci que, longe, na ilha encantada, já o meu pai me en-sinara a conhecer, como única sua, e que, um dia – oh! um dia tão próximodecerto! – minha se tornaria também.8

Luzia passou a sua primeira infância entre os jardins, que considera co-mo jardins encantados, da Quinta da Madeira, onde, entre flores, fontes e fa-das, desenvolveu a sua sensibilidade, e onde já sonhava com terras distantes,para onde partiam os vapores que via do muro da Quinta, terras distantes,como a terra onde nasceu. Já com a alma sensível de poeta, órfã de mãe e depai, fica órfã também da terra que conheceu nos seus primeiros anos de vida,e é ao ser mandada para a terra onde nasceu, mal morre o pai, que a alma va-gabunda desperta em Luzia, e esta inicia a sua viagem em busca do “eu”, dasorigens e raízes.

A morte do pai é um marco na vida de Luzia. A morte e a viagem determi-naram o início de uma busca de tudo o que conheceu como seu. Até a morte

6 “Filipa Nesse Dia de Urbano Tavares Rodrigues: uma viagem deli(er)rante e ‘heliocêntrica’ou a busca do sentido”, in Literatura de Viagem, Ana Margarida Falcão, et al. (org.), Lisboa, Ed.Cosmos, 1997, p. 337.

7 “A viagem no imaginário ficcional de Mário de Sá-Carneiro”, in Literatura de Viagem, op.cit., p. 481.

8 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 30.

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do ser mais adorado pela autora à face da terra, foi vista como uma grandeviagem:

– E contudo, já a morte passou perto de mim, levando aquele que era todo o meuencanto na terra. Mas eu não o vi morrer, a última vez que nos encontramos,ele andava, falava, sorria como os vivos. “– Voltarei” – prometeu, e o meu painunca mentia. A sua ausência tornou-se, pois, como uma viagem prolongada,de que espero ainda a volta, uma saudade que hei de contentar amanhã, depois,mas, certamente, um dia. . . E tantas vezes adormeço julgando que vou acordarao seu lado!9

É esta busca pelo contentamento da saudade que faz com que Luzia nãopossa viver sem a viagem, sem o sentimento de nostalgia, pois é ela que aliga às suas raízes, a tudo o que conhece, que a mantém viva, dando-lhe aesperança de um dia reencontrar tudo o que conhecia como o “eu”.

Os familiares referiam que Luzia fazia lembrar o pai, mas a autora per-gunta-se onde estarão nela as características que lhe pertenciam?

Mas, pobre de mim, onde tenho eu aquela esplêndida alegria que, através demuitas horas negras, espalhou sempre o bom tempo. . . ? A linda coragem dian-te do maior perigo como o doce bom humor, capaz de resistir às preocupaçõesmiudinhas, veneno de cada dia. . . ? E, antes de tudo, mais do que tudo, o pudordo sofrimento, que foi o seu grande orgulho ou a sua heroica virtude? O meupai nunca admitiu que o vissem sofrer. Em vinte anos de doença, conservou osseus hábitos de “gentleman”, o seu fino espírito, a sua arte de encantar. Morreuconversando, como se estivesse numa sala. Eu tinha nove anos quando o perdi.Sobre a longínqua infância, toda uma dolorosa vida passou. Mas – abençoadaseja a saudade! – há pouco, na sombria travessa, junto do muro das “Cruzes”,voltei a sentir o calor da tua mão, Pai, tu andaste comigo!10

Neste trecho, assinala-se com clareza a saudade como sendo uma pre-sença companheira, doce, desde o luto pelo pai. Luzia descobriu uma identi-dade intrinsecamente ligada à saudade. A saudade que é tudo o que conhece,que é uma certeza desde tenra idade e que ainda lhe traz o calor da mão dopai. A doce, por vezes amarga, saudade, a quem perdoa todas as amarguras,“pela doçura de tudo o que fica, esqueço a amargura de tudo o que passa. Não

9 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 131.10 Idem, p. 54.

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será duas vezes o mesmo o coração em que pus o meu desejo, a minha espe-rança, mas daqui a muitos anos, se eu voltar, as mesmas sombras discretasme acolherão e, como agora, a terra me sorrirá pacificadora e linda”11.

Através da sua obra é possível ir traçando as diversas viagens da escritoraque são simultaneamente viagens físicas, literárias, pelas memórias, sonhose esperanças. Viagens que são como uma tentativa de se recuperar a si pró-pria, de buscar aquilo que foi, o sonho, a idealização da felicidade.

Para além da saudade, Luzia tem outros eternos companheiros de via-gem, os livros. Leitora compulsiva, jamais se separa dos seus fiéis compa-nheiros, “Vivo com as saudades: único bem de que jamais se despoja o cora-ção. E com os livros, velhos e novos amigos, lidos, relidos. . . Eterno encanta-mento!”12. E é com eles que Luzia também faz as suas viagens interiores, ecomunica ao leitor o que tanto busca na sua vida:

Ao serão releio os velhos romances demodés que fizeram o encanto dos meusquinze anos. . . Ce qu’on aime dans un livre c’est soi même. . . – Decerto, o queavidamente procuro, nesses volumes amarelecidos pelo tempo, é a minha almade rapariga romanesca e cheia de ilusões e, o que neles me encanta e prende, é asaudade de mim mesma. . . 13

A autora dá a conhecer através do texto o que já se suspeitava, e que como avançar das leituras se vai tornado cada vez mais evidente, a constante pro-cura do “eu” profundo através da viagem espiritual, literária e da escrita. Talcomo afirma Anne Martina Emonts, a literatura é um meio de construção dasua identidade14, referindo também que a “sua personalidade – como pessoae como escritora – é multifacetada, dissocia-se, agrega-se de novo. A vida e aescrita de Luzia revelam o desmoronamento do conceito de identidade”15.

Cassiano Reimão, no seu livro Consciência, Dialética e Ética em J.-P. Sartreafirma que ao “escolher as suas possibilidades, o homem, [. . . ] define um pro-jeto, projeto esse que se realiza no futuro, intrometido na ameaça constante

11 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 13.12 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 148.13 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 25.14 Cf. “Cartas do Campo e da Cidade”, LUZIA no seu jogo de identidades, in Lusofonia: Tempo

de Reciprocidades, Actas do IX Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, Vol. I, Porto,Edições Afrontamento, 2011, p. 210.

15 Idem, pp. 207-208.

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de outras possibilidades negadoras da sua possibilidade essencial. É isto, pre-cisamente, que constitui a essência do ser humano. A essência do homem é“aquilo que foi” em função da possibilidade escolhida”16. Luzia procura in-cessantemente “aquilo que foi”, tentando reconstruir um novo “eu”, ter maisuma possibilidade de escolha, dissociando-se de Luísa, e recompondo-se emLuzia.

Cassiano Reimão afirma que a “essência” do homem é esse “eu” com o seuconteúdo “a priori” e histórico. “E a angústia como manifestação da liberdadeface a si significa que o homem está sempre separado por um nada da suaessência”17. Luísa Grande ao criar Luzia tenta encurtar essa distância entreaquilo que é e quem escolheu ser, não parando nunca de procurar o seu “eu”,numa tentativa de se encontrar.

Como já referido, esta busca inicia-se com a morte do pai e consequenteviagem para a terra onde nasceu e para a qual a acompanhou já a saudade.Seguidamente, é uma incessante busca, nos livros, memórias, vivências, dosquais irá traçar um roteiro/percurso percorrido, para assim se tornar maisevidente e sustentado, que corresponde a uma incessante busca do “eu”, a-companhada da presença de uma eterna saudade.

A recorrência da temática da memória, especialmente a memória de in-fância, caracteriza a escrita de Luzia, como expressão da procura desse “eu”perdido:

Saudade de um jardim, doce, inútil saudade, em que procuro encontrar, ainda,um pouco do que tive, um pouco do que fui. Mas a outros pertence, agora, a som-bra das lindas árvores, a água que corre na fonte, o murmúrio do regato; outrosdescobrem, entre as folhas, o mistério das violetas, colhem a flor da magnólia,o fruto dos medronheiros. . . Do que fui, do que tive, nada resta. Passou o meureflexo no lago. Eu passei no jardim. . . 18

Foi com as paisagens de infância, com os livros e com a saudade (“Emcada sala, em cada jardim, em cada rua, quase em cada canto, um doce mo-tivo para sonhar, para lembrar, para ter saudades. . . ”19) que Luzia criou um

16 Consciência, Dialética e Ética em J.-P. Sartre, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,2005, p. 123.

17 Ibidem.18 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 63.19 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 27.

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mundo próprio de esperança e de sonho ao longo da sua juventude, ideali-zando um mundo em que iria ser feliz:

Devemos esperar, esperar sempre, por tudo o que é possível e ainda mais portudo que é impossível; esperar pelo prodígio, pelo milagre, pela sorte grande,pela cura do incurável, pela volta que já passou, pela ressurreição do que já mor-reu; esperar contra toda a esperança. . . 20

Um período importante da vida de Luzia foi também o passado no colé-gio das Salesas, onde Luzia e as suas companheiras idealizavam e sonhavamcom o mundo exterior: “Vem-me uma saudade das Salesas. Ah! foi o me-lhor tempo! Ignorávamos o mal. Acreditávamos no bem. Pensávamos que avida podia resumir-se nessas duas tão doces coisas: rezar e sonhar! Lembras--te?. . . ”21.

Luzia, protegida no ambiente do convento, imersa nos seus contos de fa-das e romances, sonha com um príncipe encantado, sonha casar, ter filhos,constituir família. A sua alma estava impregnada de sonhos, amor, espe-rança: “Sobre a minha saudade, que julgara eterna, sem remédio, já subtil-mente pousavam as asas maravilhosas do sonho. E quem sonha, espera. . . ”22.

Luzia esperou pela concretização do sonho, acreditou que tudo se iriaconcretizar, e lembra mais tarde:

Volta a saudade a cruzar os caminhos do passado. . . Oh! minha alma, bate astuas velhas asas, atravessa o oceano e o tempo, – oceano mais profundo ainda.Oh! minha alma, procura, entre as tuas mil lembranças, a de certo vestido, decetim branco também que, numa distante festa da Madeira, cobriu o teu corpofino. . . E sob os carvalhos deste parque de França, na limpidez desta manhãde Outono, revive a tarde de Maio, respira os mil perfumes da ilha jardim,embebeda-te de mocidade e de rosas. . . Ri, sê alegre ainda. Depressa minhaalma, que o tempo foge. . . 23

O sonho não se concretizou porque o casamento não foi feliz. A amar-gura, a solidão, o medo começaram a ser os seus companheiros diários, e,

20 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 7.21 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 147.22 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 107.23 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 157.

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mais uma vez, mergulhou no poço do tempo, sem fundo, viajou nas suas me-mórias, com a saudade, sua eterna companheira: “Ah! como a minha saudade– vagabunda incorrigível! – ainda me transporta a esse tempo das modas ir-reverentes, da mocidade sem cuidados, a tudo a que disse adeus, o adeus ir-reparável em que a vida se resume”24.

A saudade é o único sentimento com que pode contar, ela é tudo o queconhece, Luzia chega inclusive a ter saudades até do que não foi: “Com queenternecida alma os percorri e, comigo, sempre comigo, a pena do que. . .podendo ser, não foi, a saudade duma ventura. . . perfeita, porque nunca ative!”25. Sentimento que exprimirá Pessoa, que também refere a saudade doque não conheceu: “Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por umaangústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida. Caras que viahabitualmente nas minhas ruas habituais – se deixo de vê-las entristeço; enão me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida”26.

Na solidão do Jardim do Mar, pensou que iria enlouquecer, mas mais umavez o amor pela natureza foi a sua salvação. Todo o amor que tinha aprisio-nado em si, os sonhos reprimidos, na sua árida alma de sonhos desfeitos,foi entregue ao mar. Para os místicos, o mar simboliza o mundo e o coraçãohumano, enquanto sede das paixões27. E Luzia desenvolveu uma relação deamor pelo mar:

Passei a viver com o mar – foi ele o feiticeiro – e para o mar, ouvindo só a suavoz e, quer ela murmurasse docemente certa embaladora romance, suave can-ção das ondas mansas, quer rugisse numa fúria, atirando contra a terra, osdoidos vagalhões, era sempre a mim que falava, era eu só que a entendia!Perdi o medo dos precipícios que ladeavam as veredinhas escorregadias, onde aspedras fugiam debaixo dos pés e, a cada passo, me arriscava a rolar com elas.Corria a rocha para conhecê-lo de todas as alturas, em todos os aspetos, que-ria adivinhar-lhe todos os segredos. . . Lembro-me que, uma vez, me levantei denoite para ir vê-lo do cemitério. Havia luar e uma grande paz silenciosa . . . in-vejei os mortos que, para sempre, ali dormiam, tão perto do seu coração!

24 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 206.25 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 31.26 Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-

-livros na cidade de Lisboa, 3a edição, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 418.27 Cf. Jean Chevalier, Alain Cheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Mitos, Sonhos, Costumes, Ges-

tos, Formas, Figuras, Cores, Números, Lisboa, Teorema, 1994, pp. 439-440.

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Tudo lhe dei e tudo o mar me deu, até o que estava longe, o que ficava para trás,no domínio da nostalgia!Em tardes serenas, veladas por um brando nevoeiro, a sua superfície lisa, esten-dendo-se indefinidamente, a confundir-se com o céu, restituía-me as longas pla-nícies da minha querida província. . .E se tinha saudades de Lisboa, ele fazia, do poente, sobre as ondas, um jardimde olaias, uma velha catedral, uma torre rendilhada. . .E se desejava sedas, joias, flores – essas mil futilidades que amam as mulheres– logo me depunha aos pés, entre a franja do seu vestido, um colar de opalas,uma rosa de prata. . .Quantas, quantas razões tive para querer-te, e quanto te quis, mar bravo, marmanso, mar azul, verde, cinzento, mar que rugias, mar que choravas, mar quecantavas, mar do Jardim do Mar – Oh! meu tesoiro encontrado, oh! meu tesoiroperdido!28

Este trecho é uma revelação do que manteve Luzia viva, sem se deixarlevar permanentemente pela loucura, no tempo em que vivia com o maridono Jardim do Mar. O mar foi a fuga e ao mesmo tempo a salvação. Mas esteamor não era um amor qualquer, era um amor que vinha do mar, sobre asondas de espuma. Um amor muito antigo, que reporta à origem da civilizaçãoocidental, sobretudo greco-romana, tendo nascido Vénus da espuma do mare aportando à terra sobre uma concha aberta, sendo a sua pérola humanizadanuma esbelta e lindíssima “deusa”.

O valor das águas, o seu simbolismo, a relação com o nascimento, queacontece quando rebentam as águas maternas, da mesma forma que reben-taram as ondas cuja espuma aflora ao areal, é por demais evidente. Comoescreve A. Ronnberg:

“Ecossistemas inteiros, intocados pela luz do sol, florescem no mar as-sim como as redes de experiência acumulada florescem na psique, en-riquecendo as águas independentemente do nosso conhecimento a-cerca da sua existência. Nas veias mnemónicas de cada um de nós cor-rem salgadas águas amnióticas”.29

28 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, pp. 219-223.29 O Livro dos Símbolos, Reflexões Sobre Imagens Arquetípicas, s.l., Taschen, 2012, p. 36.

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Bachelard salienta: “A água leva-nos. A água embala-nos. A água adorme-ce-nos. A água devolve-nos a nossa mãe”30. E foi ao mar que Luzia foi buscara sua força, equilíbrio, onde mergulhou em estado de desesperança e de ondesaiu renascida, “mergulha-se na água para renascer renovado”31.

Com o divórcio, Luzia tornou-se mais vagabunda que nunca, reiterando--o plenamente ao afirmar: “Desde que vim a este mundo, sou involuntaria-mente, aliás, uma vagabunda. . . Não gosto de mudar, não gosto de viajar.Mas caminho sempre!”32, procurando-se cada vez mais em tudo o que per-deu, porém nunca abandonando o sonho, que apesar de a ter desiludido, é oque a mantém viva, sempre como uma réstia de esperança no negro mundo,nos amargurados corações: “Doce, perigosa aproximação da primavera,quando a terra se renova, quando tudo dá flor. . . [Pelo que] nos envelhecidos,quase mortos corações, um querido sofrimento renova-se também, voltaa doer uma adormecida dor, volta a sonhar-se o sonho que fez tanto mal. . .e fez tanto bem!”33.

Apesar dos períodos tão dolorosos e negros por que passou, por muitoque por vezes desejasse a morte, o seu coração nunca se toldou totalmentede negro, pois Luzia era uma sonhadora, e como sonhadora que era, tinha nocoração sempre um fio de luminosidade, como elucida:

Todo o Hameau aquece, ao bom sol da luminosa manhã, os corpos cansados, asalmas inquietas. Há solidões que nenhuma companhia admite, desalentos queconsolação alguma atinge. Há manias, obsessões, tiques dum grotesco cruel,angústias, círculos de ferro, apertando o coração e a garganta, o inferno da ideiafixa. . . [. . . ]Mas há também a doçura incomparável da convalescença, quando, na escuri-dão do cárcere, entra o primeiro raio de luz, abrem-se de novo os olhos ao en-canto da terra, tudo é surpresa, descoberta; cada flor, cada frémito de folha con-tém um perfume, uma harmonia, a memória acorda, volta a saudade a cruzaros caminhos do passado, corre a esperança em busca dos bons dias que hão devir. . . Fazem-se projetos, esboçam-se sonhos, idílios. . . E já a vida sabe a rosas,a vida sabe a mel!34

30 A Água e os Sonhos, Ensaio sobre a imaginação da matéria, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p.136.

31 Idem, p. 151.32 Apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.33 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 279.34 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, pp. 153-154.

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No despertar do cárcere, está sempre presente a saudade do que foi, talcomo a escritora confessa: “sinto-me bem-disposta, dormi sem calmante e,em vez do habitual pesadelo, tive um delicioso sonho, onde de novo foi meutudo o que já perdi”35.

São eternas constantes no discurso de Luzia as saudades do que já passoue a vontade de reaver o perdido: “Fogem, fogem os dias, levam-nos talvez paradias melhores. . . Feliz quem pode viver de esperanças! Ah! por que tenho euhoje tantas saudades, esta pena do que já passou?!”36.

Recuperadas as energias, depois de dolorosa luta pela boa convalescença,a alma de vagabunda reacende-se com mais força em Luzia, quase como umdesespero, uma ânsia, de voltar onde já esteve, numa tentativa desesperadade se reencontrar. Procura-se de terra em terra, lutando sempre com a suaalma, a sua vontade que quer ficar e ao mesmo tempo que a obriga a par-tir (“Partir, sempre partir! Oh! como estou cansada de dizer adeus, de tersaudades!”37). Se está cansada de dizer adeus, de sentir saudades, ao mesmotempo, não pode deixar de as sentir: “– Esteja onde estiver – seja embora emParis, que é como quem diz o Paraíso – uma flor, um perfume, uma palavra,oh! qualquer pequenino nada, bastam para que a minha inquieta alma váhabitar a saudade do país onde não estou!”38.

Percorria-a o terror de partir e ao mesmo tempo o terror de chegar, masnão podia resistir aos encantos de se reencontrar e se reconhecer nas paisa-gens que um dia reconhecera como suas: “Também eu chorei, mal surgiram,ante os meus olhos encantados, os sobreiros e as oliveiras da minha terra.Porque estou na minha terra, enfim! Cheguei com a primavera, quando tudoabotoa, tudo quer dar flor, e até as velhas árvores, os troncos carcomidos, seenfeitam de gorjeios e de folhas tenras. . . ”39.

Por isso, sente e saboreia o sofrimento da saudade, “Oh! esperem.. . Nãome mandem já entrar. . . Não venham já receber-me. . . Deixem-me a sós comeste mal. . . tão bom! Deixem-me ter saudades!”40.

35 Idem, p. 49.36 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 303.37 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 36.38 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 198.39 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 21.40 Idem, p. 229.

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Não se encontrando a si própria nos lugares que vai frequentando, a almade Luzia impele-a de novo a partir, por muito que deseje ficar, por muitoexausta que esteja de, como um andarilho, caminhar de terra em terra, temde novo de fazer as malas e procurar os seus sonhos, as suas esperanças, oseu “eu”, que um dia lhe pertenceu, mas que entretanto se perdeu.

O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se no entanto nabusca da verdade, da paz, da imortalidade, na procura e na descoberta dumcentro espiritual41, porém, refere também que nunca será bem sucedida aviagem que é uma fuga de si mesmo.

Mas, já o meu humor vagabundo me leva para longe, outra vez. Onde esta-rei quando abrirem as beladonas? Donde evocará a minha saudade, o brandoaroma das azáleas?– Partir! Mudar! Ver sempre novos horizontes, novas terras! Ah! Como tu ésfeliz! Como nós te invejamos! – exclamam em coro, as minhas amigas.E eu não ouso confessar-lhes quanto lhes invejo a doçura de ficar. . . 42

São inúmeros os exemplos que Luzia dá na sua obra, relativamente à an-sia de partir, simultânea à ansia de ficar:

E eu tive o mal da Madeira: um estranho mal. Tu não sabes o que é. Só osmadeirenses o conhecem. Horrível acesso de nostalgia, saudades, ânsia de outracoisa, desejo de partir, de mudar, de fugir a este excesso de cores e perfumes.Susana chama-lhe: o sangue do Zarco, do aventureiro, turbulento descobridor,a pular-nos nas veias.43

Contudo, não era só da Madeira que Luzia ansiava fugir, em cada terrainstalava-se a dualidade do querer ficar e do querer partir:

Estou triste, Maria. Vou partir mais uma vez. Tu dirás que incessantementeeu me queixei desta cidade de sangue e de desordem, de luxo e de miséria, depolítica e de parlapatice; que declarei ser meu único desejo deixá-la quanto an-tes, fugir para nunca mais voltar. Sim, declarei, senti tudo isso. . . As eternascontradições do coração humano! Bastou que me resolvesse a partir para queos meus olhos vissem Lisboa sob um outro aspeto e logo lhe descobrissem milencantos, mil razões de querer-lhe mais e melhor. . . 44

41 Cf. Dicionário dos Símbolos, op. cit., p. 691.42 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 222.43 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 186.44 Idem, p. 148.

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Alma vagabunda a de Luzia, sempre em busca do amor, do seu mundoencantado de fadas, podia possuir tudo materialmente, mas apercebeu-se deque nada possuía, porquanto as suas viagens, o seu sofrimento, apenas real-çaram nela a efemeridade da vida, e era isso que tentava agarrar com a suaescrita, a fragilidade de uma flor, as cores de um pôr-do-sol, a música dos re-gatos: “O passado é uma sombra apenas, nem eu já sei se o vivi! Da manhã defadas e flores, desfaz-se em pó, em fumo, a saudade. . . ”45.

Apesar da sua incessante busca, das viagens de hotel em hotel, de livro emlivro, de paisagem em paisagem, de memória em memória, tudo o que en-controu foi a profunda solidão. Solidão esta, por vezes imposta, mas grandeparte das vezes cultivada.

Luzia sentia não pertencer ao seu tempo, nem a nenhum tempo, perten-cia a uma dimensão diferente, dimensão essa onde vivem os poetas, os so-nhadores, e os reinos encantados de fadas.

2.2 – A permanência da solidão no meio damultidão

Temos um lindo tempo. Dias deslumbrantes. Dias que fazem mal. Dão odesejo, a ânsia da impossível felicidade. Pergunta a gente porque há tantaluz na terra quando os corações humanos andam quase sempre às escu-ras. . . 46

A obra de Luzia revela a existência de um profundo drama íntimo. A es-critora exprime vários sentimentos reveladores de um estado de alma per-turbado, tal como o tédio, a solidão interior, a inquietação perante o enigmaindecifrável do coração dos homens e do mundo: “Sinto em tudo que me ro-deia, a profunda melancolia de uma despedida. Parecem-me lágrimas a cor-

45 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 221.46 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 18.

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rer das árvores, as folhas que caem.. . E se as árvores vivem, por que não hãode sofrer, por que não hão de chorar, como sofre, chora, tudo o que vive?”47.

Aos olhos da sociedade, Luzia possuía tudo, era uma mulher rica, via-jada, cosmopolita, inteligente e frequentadora dos mais altos círculos da so-ciedade. Porém, para Luzia, mulher de alma romântica e sonhadora, isso depouco valia, já que dos sonhos e ilusões cultivados na juventude recolhe ape-nas, segundo o que escreve, amargura, desilusão e solidão. Utilizando a ima-gem das rosas do seu jardim, destruídas pelo mau tempo, Luzia retrata-se asi mesma: “Rosas em botão que o temporal destruiu, lembram-me as almasferidas em plena mocidade, as almas que morrem, quando iam dar flor. . . ”48.

As rosas, sempre tão presentes na vida e na obra de Luzia, simbolizam“a evanescência da inocência e da juventude”49, mas acima de tudo, “as rosassignificam amor, em todos os seus matizes terrestres e celestiais: aquilo ouaquele que amamos no presente; aquele que amamos e perdemos e o desejode algo que não tem nome [. . . ] e que nos acena ao mesmo tempo que nosescapa”50, conforme O Livro dos Símbolos, dirigido por Ami Ronnberg.

De destacar também a figura de Vénus, já referida quando se mencionoua imagem da espuma do mar, e que volta a surgir de novo no contexto dasrosas. Embora “a rosa seja associada a várias divindades masculinas, ela épredominantemente da Grande Deusa, evocando a sua sensualidade, a suafertilidade e a sua régia compaixão. Consagradas a Vénus (Afrodite), as ro-sas flutuam ao vento na mais famosa pintura de Botticelli, que representa adeusa nascendo do oceano”51.

Luzia demonstra nas suas confissões que realmente tudo o que gostariaera de viver eternamente com os sonhos e a inocência da juventude, sendo oque mais importa, o amor e a paz:

Nos caminhos verdes do parque do Hotel do Monte, pairava um silêncio impres-sionante a deixar ouvir a voz da solidão. . . Luzia disse baixinho para acordaro silêncio:– Como será o Céu?

47 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 304.48 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 15.49 O Livro dos Símbolos, op. cit., p. 162.50 Ibidem.51 Op. cit., p. 162.

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Não tive resposta. Sentia em mim uma abstração da terra, de tudo. . . E Luziacontinuou comovida:– Eu queria que o Céu fosse um jardim com canteiros de rosas, muitas rosas quenão mais se desfolhassem. . . 52

O amor evocado pelas rosas que aparecem tanto na vida, como na obrade Luzia, representa o amor que perseguiu toda a sua vida, aquele que amoue perdeu, tal como foi a idealização do seu casamento, e, principalmente,aquele amor que lhe acenou e ao mesmo tempo lhe escapou, devido a, se-gundo a autora, ter chegado demasiado tarde: “Deixa-me ir devagarinho,deixa-me habituar à luz. Pensa que, durante anos, vivi infeliz e só. Chegastetarde: à hora em que as alegrias costumam despedir-se, é que tu chegaste,minha alegria maravilhosa! E não vi mais nada, não vi mais ninguém.. . ”53.

Luzia teve um vislumbre daquilo que ansiou toda a sua vida, do que idea-lizou, do que sonhou, mas tem a consciência de que apenas tocou ao de leveno seu sonho, um sonho que já não lhe era possível viver, segurar: “A vida, aardente, intensa vida, quando eu já não devo viver. A felicidade – a grande, adoida, a absurda, a inverosímil – quando eu já não posso ser feliz. Ilusão deum raio de sol na escura noite. . . ”54.

Essa escura noite, em que há muito andava mergulhada, fazia parte dadualidade da sua alma. O lado negro, da escuridão, da solidão, e, por vezes, areferência aos raios de sol, à natureza caracterizam as suas cartas e textos.

A obra de Luzia cobre-se de diversos véus, que lhe vão conferindo váriastonalidades, das mais sombrias, às mais ensolaradas, e o leitor como que flu-tua, sem dificuldade, entre os diversos véus da obra inteira, absorvendo todosos graus de luminosidade, como se lá estivesse, dado a abertura e franquezacom que coloca o “eu” nos seus textos.

O que mais interessava a Luzia eram as coisas que aqueciam o coração,talvez por ter ficado sem elas desde tão nova, e nunca mais as ter encontrado.Desenvolveu, por isso, uma personalidade solitária e carente, “como ele fazfalta na minha pobre, solitária vida onde toda a afeição, toda a simpatia é umraio de sol que me aquece”55, ansiando por amizades genuínas, mas no meio

52 Feliciano Soares, apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.53 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 24.54 Idem, p. 22.55 Feliciano Soares, idem, p. 55.

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em que circulava, muitos a rodeavam apenas por interesse, tal como se iráabordar no próximo ponto sobre o ser/parecer da alta sociedade. É por estemotivo que Luzia muitas vezes habita a solidão por opção, pois descobriu,ainda bastante jovem, o que era sentir-se só, no meio da multidão: “Relembroa angústia dos primeiros dias das Salesas, a sufocação que me davam as gra-des, tantas lágrimas choradas às escondidas, para que as outras não rissem demim, o primeiro encontro com a solidão por entre gente – a pior solidão!”56.

Foi nesta solidão, a pior das solidões, que Luzia viveu grande parte da suavida, o que a levou a cultivar o gosto de viver no isolamento. Enclausurava-sepropositadamente e deliciava-se com a sua solidão. Porém, deu-se conta quea solidão ora pode ser doce, ora muito rapidamente se torna amarga:

A minha orgulhosa solidão conhece essas horas de ansiedade pelo tom de umavoz amiga, que quebra o silêncio, quase tão profundo como deve ser o da morte.Ai de mim, ai de todos nós! Tudo na terra contém o seu perfume de doçura e oseu travo de amargura. A solidão pode ser um tesouro e pode ser um deserto,sem oásis, onde morra de sede a alma. Dantes, quando trabalhava, quando,sem cansaço e sem esforço passava horas – dias inteiros! – a ler, a solidão erapara mim o tesouro e nem supunha, nem admitia a possibilidade dela se tornaro deserto, sem oásis, onde morresse de sede a minha alma!457

Luzia tenta criar por várias vezes a ilusão de que não está só, através dasviagens pelo mundo, pelos hotéis, pelo que conhece, e procura, como já foi re-ferido, um contacto com ela própria, com a saudade, com aquilo que já foi seu,mas, no fundo, tem consciência do carácter ilusório da sua procura, como sepode constatar: “Mais tarde, na amarga vida, quando fazia as malas, paramudar de solidão, os olhos enchiam-se-me de lágrimas, lembrando-me docarinho que protegera a minha primeira viagem”58.

Verifica-se uma consciência amarga, já que apenas muda de tipo de soli-dão, lembrando-se ou imaginando uma época distante, Luzia procura apenasa ilusão de casa, que nunca mais encontrou em parte alguma, “[. . . ] recolheutodos os objetos, livros, retratos, bibelots, que andam sempre comigo, dão à

56 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 218.57 “Três Inéditos de Luzia”, Das Artes e da História da Madeira, Revista de Cultura da Sociedade

de Concertos da Madeira, Luís Peter Clode (direção), v. 5, no 25, 1957, p. 12.58 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 78.

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minha solitária vida um doce engano de companhia, aos banais quartos depassagem, uma doce ilusão de casa. . . ”59.

Esta solidão viaja de mãos dadas com a saudade, e ambas começam a pe-sar demais em Luzia, já maltratada por todos os acontecimentos trágicos dasua vida, a escritora começa a perder as forças, para as pesadas nuvens ne-gras, e mergulha num estado em que as saudades já não lhe bastam:

É que, em dia de Natal, lembranças e saudades não bastam. E não basta a com-panhia dos mortos, o silêncio que fala pelos olhos dos retratos. Volta-se o coraçãoirresistivelmente para tudo o que vive, da humana, efémera vida. Precisa-se deuma companhia tangível, duma voz que oiça e responda à nossa voz. Em diade Natal, não se pode, oh! não se pode, amar a solidão!Entretanto eu estive, eu estou só, porque assim o quis, assim o escolhi.60

Solidão escolhida, mas que já não suporta: “E após ter escolhido a solidão,como o supremo bem, já não posso, não quero estar só!”61.

Em determinados períodos, a dor é tal, que Luzia chega a desejar a morte:“Hoje o nevoeiro voltou, a odalisca encolhe-se, tiritando de frio, a humidadepenetra até à alma. Sinto-me triste, triste e é a morte que eu desejo outra vez.A morte em que descansarei enfim.. . Suave amada que traz as mãos cheiasde papoilas, a flor do esquecimento”62.

Luzia não quer mais lutar, perdeu todas as ilusões, vê a morte em todoo lado: “Ah! Maria, como a vida anda cheia de morte! Vamos sempre, entreagonias, a caminho do cemitério. Cada dia enterramos uma ilusão. Cada diavemos morrer e um pouco de nós morre também.. . Estou triste. Porquê, nãosei. . . Tristeza vaga, sem causa, que é muitas vezes a pior”63.

Sem esperanças e ilusões, pouco lhe resta, nem sequer “uma esperança,uma razão de continuar o caminho. Eu sigo-o não sei porquê, nem para quê. . .Ficam-me para trás – tanto para trás! – sonhos e ilusões, luxo vão com que seenfeita a vã mocidade. Adiante só avisto doença, solidão, morte. . . ”64. Luziaantevê a velhice, sente que falhou em algo na sua vida, não acha possível serfeliz:

59 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 308.60 Idem, p. 252.61 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 308.62 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 75.63 Idem, p. 171.64 Idem, p. 18.

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Já não se é nova e não se é velha ainda, como naquela hora em que o dia se des-pede, já se não vê e ainda não está escuro. A claridade teima em lutar com astrevas que lentamente a invadem. Em cada instante foge um pouco de luz. Cadainstante rouba-nos um pouco de encanto. . . Encanto físico, encanto moral. Be-leza, graça, elegância. . . tudo se estraga, tudo se fana. Até a sensibilidade, atéo coração! Há velhos felizes?! Talvez os que têm filhos e tornam a viver neles epor eles, com mais doçura ainda.65

A escritora nunca concretizou o sonho de ter filhos, de constituir famí-lia, sendo essa uma das suas maiores amarguras, restando-lhe apenas comocompanhia os mortos e as lembranças:

Sim, a vida toda faz-me companhia. . . Lembranças e saudades estendem-meos misericordiosos braços, cantam-me aquela doce canção do velho tempo, em-baladora de mágoas. Nos retratos dos meus mortos, tantos já, quase todos osque me quiseram bem, parecem acordar os olhos, humedecidos de ternura, aseguir-me, a envolver-me. . . E dizem os olhos dos meus mortos: – O melhor denós mesmo não morreu, está contigo. . . 66

Por vezes, na comunhão da tristeza e de outras solidões, encontrou bálsa-mos para a alma, como no período em que voluntariamente auxiliou os sol-dados da guerra. A sua vontade de viver de novo despontou. A experiênciacom os soldados deu-lhe uma outra perspetiva da vida:

Inverno de 1916, frio inverno de guerra. O parque do Hameau amanhecera co-berto de neve. Um desalento, mais pesado e mais fundo, apoderara-se de cadacoração. Lágrimas assomavam aos olhos. Ninguém ousava dizer boas festas. Opensamento estava longe, com os que se batiam sobre a neve. E, entretanto, eunão experimentava este sentimento de abandono e solidão que hoje me punge.Achava-me em casa, em família, entre os doentes do Hameau e depois, naquelehospital de tuberculosos de guerra, Noulibos, onde, para distrair os soldados, or-ganizáramos uma árvore. É que a falsa alegria, o vão divertimento do mundo,afastam, separam as almas e, na tristeza, há uma comunhão profunda em queas mais distantes podem sentir-se irmãs. . . 67

Seguindo a mesma ordem de ideias, observa a empatia estabelecida con-fessando que “instintivamente aproximávamo-nos, como se das nossas duas

65 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 124.66 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 251.67 Idem, p. 256.

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solidões, pudéssemos fazer uma companhia, e da comunhão das nossas lem-branças, uma realidade”68. Constatação, aliás, sintomática dessa nova perce-ção, equilíbrio e perspetiva.

Luzia ganhou de novo alento, mas jamais se separou da dor, da solidão,das saudades, do sofrimento, o tecido da sua alma já era entretecido por taissentimentos, a ponto de existirem dores das quais nem desejava separar--se: “Há dores de que desejaríamos não nos separar jamais, dores que, aoperderem-se, deixam a alma em maior, mais profundo isolamento”69. Assu-mindo uma atitude saudosista e decadentista que se aproxima da poesia deAntónio Nobre, que conhece e chega mesmo a citar em Cartas do Campo e daCidade referindo: “E, para quantos a vida é isto: longa estrada da desespe-rança! «Ai! Dos que neste mundo ainda esperam!» disse o mais triste, o maisportuguês dos nossos poetas. Mas, não é verdade António Nobre, não é. Fe-lizes os que esperam! Guarda cuidadosamente a tua esperança. Não a deixesmorrer ainda que tenhas de regá-la, às vezes, com as lágrimas da saudade”70.

A escritora tem o coração dividido, ama a beleza, a energia criadora dosraios de sol, mas ama também a escuridão, a solidão. Vive com este antago-nismo, sofre com ele, mas não pode viver sem ele. Mostra assim com a atra-ção pela escuridão, o seu lado romântico, pois como explica Franklin Baumer,em “oposição ao mundo de Newton, cheio de luz, os românticos ofereciamo seu mundo noturno. A noite, em contraste com o dia ou a luz, significavaaquilo que «exaltava as pesadas asas da alma» e as levava para além do mundoespácio-temporal em direção às regiões infinitas”71.

Como se pode ler no Livro dos Símbolos, a “escuridão é mais simplesmentedefinida como a ausência de luz, e a nossa experiência de uma pode, inicial-mente, formar-se como o reverso da nossa experiência da outra. Pensamosna luz, por exemplo, como algo que esclarece e caracteriza. O mundo carac-teriza-se ao romper do dia. A escuridão, por outro lado, como nos recordaRilke, absorve e reúne muitos num só:

Mas a escuridão detém tudo:68 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 111.69 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 70.70 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 18.71 Franklin L. Baumer, O Pensamento Europeu Moderno, Volume II, Séculos XIX e XX, Lisboa,

Edições 70, 1990, p. 26.

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Formas e fogos, animais e eu próprio,Quão facilmente os junta!72.

Conscientemente, Luzia mergulha muitas vezes na escuridão e sabe queela oculta valiosos tesouros, suportando assim o seu envolvimento, “nesteprocesso, a escuridão tornar-se-á a misteriosa e familiar fonte de transfor-mação e inspiração, crescimento lenitivo a que, gratamente, regressamos”73.

Luzia serve-se dela, e regressa a ela de bom grado, mas, por vezes, passatanto tempo na escuridão, que, quando quer voltar à luz, não consegue, é en-golida por uma força superior a si própria, as energias esgotam-se, e chega adeambular na linha entre a sanidade e a loucura, já só sente a dor sem pra-zer, já só pensa “tristemente em tudo o que morre para não reflorir nuncamais. . . ”74, e sentindo que está a entrar numa espiral cada vez mais descen-dente, apela a uma força superior, revelando que: “Deus é aquela voz que falaà tua dor, quando todas as vozes se calaram”75.

2.3 – Ser/Parecer da alta sociedade

Por amor da beleza da terra perdoo a fealdade do coração dos homens –pode sempre acrescentar mulheres, que, entre os dois. . . 76

Aliada à sua extrema sensibilidade e às vivências da saudade, solidão edor, há uma nota particular na personalidade de Luzia que não pode deixarde ser salientada: a sua irreverência, que pincela de ironia e sátira toda a obra.Um tom mordaz, um sorriso dissimulado espicaça o leitor, leva-o a refletir,e a rever-se em muitas das personagens, à semelhança da escrita de Eça de

72 O Livro dos Símbolos, op. cit., p. 100.73 Idem, p. 102.74 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 7.75 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 7.76 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 13.

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Queirós, que se volta sempre para toda a sociedade, com um “olhar agudo”77,como refere Massaud Moisés.

Irreverência adquirida, muito provavelmente, como já foi mencionado,quando endiabrada e livre corria pelos montes da Quinta do Alentejo, com asua amiga Gina, companheira das mais disparatadas e divertidas folias. E,tal como conta Luzia, foi nessa altura que descobriu Cervantes, o seu pri-meiro grande amor literário, e vestia-lhe a pele nas suas brincadeiras comGina. Luzia representava Quixote e Gina mascarava-se de Sancho. As aven-turas de Quixote foram lidas e relidas dezenas de vezes, e Luzia, ao longo dasua vida, manteve vivo este traço da sua personalidade, nunca deixando deser a menina endiabrada que corria pela Quinta, imaginando-se D. Quixote,o cavalheiro digno e nobre, idealista, que tentava endireitar o que estava er-rado.

O espírito irreverente marca o tom de muitas passagens da sua obra, co-mo quando refere: “O que mais me desagrada – revolta, ia eu dizer – na partedo género humano a que, convencionalmente, se chama sociedade, é o espí-rito de. . . rebanho. Ninguém pensa pela sua cabeça, ninguém vê pelos seusolhos. Como os carneiros, o que um faz, todos fazem, para onde vai um, todosvão”78.

Tal é ainda mais visível na chamada alta sociedade, na qual tudo é cons-truído sobre aparências, por baixo daquele manto colorido, e do alarido dossalões literários, nos quais se discutem arte e literatura, nada existe a não seruma amarga sombra vazia:

Como um terrível libelo acusador vinham-me à lembrança outras reuniões in-telectuais. De todas saíra com a mesma impressão de cansaço e tédio, em todas,qualquer coisa de postiço e convencional, me chocara, em todas me sentira es-tranha, sem ter nada que dizer, ou, o que é muito mais grave ainda, com umlouco desejo de dizer irreverências, atacar glórias consagradas. . .Entretanto eu julgo amar a literatura com o melhor do meu espírito, o melhorda minha alma!79

77 As Estéticas Literárias em Portugal, Volume II, Séculos XVIII e XVX, Lisboa, Caminho, 2000,p. 320.

78 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 38.79 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 275.

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Luzia, grande parte das vezes não suportava o mundo que se via obrigadaa frequentar. A sua sensibilidade era, de certa forma, doentia, pois frequen-temente se isolava, recusando-se a receber, porque o menor ruído, uma falamais alta, uma claridade mais forte, tudo cansava o seu espírito. E nem sem-pre estava disposta a participar das paradas de elegância que o seu meio socialexigia:

O jantar foi deslumbrante de luxo e de uma louca animação. Bebeu-se só Cham-pagne. Orquídeas magníficas enfeitavam a mesa. Mas por que estava eu tãotriste, por que desaparecera tão depressa o meu prazer? O Champagne, quepunha um brilho de febre nos olhos das raparigas, provocava-me a habitualenxaqueca. Todos riam. Eu queria fugir, esconder-me num canto escuro, soli-tário, onde contentasse o meu desejo de chorar. . . Se me perguntassem porquê,não saberia responder. Há lágrimas que não dizem as suas razões. E são asmais cruéis, as mais imperiosas, lágrimas que adivinham, talvez. . . 80

A escritora circulava numa sociedade de aparências, e sabia-o talvez me-lhor que ninguém, e isso magoava a sua alma delicada e consciente. Luziasentia uma imensa responsabilidade de viver, que não via na maior parte dasmulheres à sua volta:

Há eternas futilidades, mulheres que entram na velhice sem, durante um só mo-mento, terem pensado que tremenda responsabilidade é viver! Nunca sentiramquanto pode pesar uma alma, nunca procuraram saber donde vêm, para ondevão. Nunca lhes doeu a sua inutilidade. Como os pássaros, cantam e voam atémorrer. . . De vez em quando, apraz-me ou, pelo menos, diverte-me, encontrá--las no meu caminho. Fazem-me o efeito duma nota de zarzuela, quebrando agravidade triste duma marcha fúnebre.81

É com a escrita que Luzia, qual Quixote justiceiro, encontra uma forma dedenunciar o meio que habita, fazendo uso da comédia, ridicularizando as vi-cissitudes, vícios e hábitos da alta sociedade, deixando um sabor amargo emmuitos dos que a leem. Não se pode, porém, deixar de salientar que “mesmoo que se apresenta com aspeto jocoso de comédia, encerra muitas vezes lan-ces dolorosos, ocultos, de dramas da vida interior”, como escreve FelicianoSoares82.

80 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 134.81 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 105.82 Feliciano Soares, op. cit., p. 31.

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São várias as temáticas sociais apontadas por Luzia. A condição da mu-lher é um alvo muito recorrente na paródia da escritora, desde o querer sem-pre esconder a idade, às futilidades relacionadas com modas, vestidos; a in-veja das outras mulheres, principalmente das amigas íntimas, de quem de-sejam receber as mais recentes bisbilhotices para poder divulgar, e a arte deenganar. Para além da mulher, aparecem na obra de forma irónica os novos--ricos, o mundo snobe, os intelectuais, os casamentos arranjados, a moda dacaridade, entre muitas outras temáticas.

Veja-se um diálogo entre mulheres que Luzia usa para retratar a hipocri-sia social:

Joana – Já reparaste no vestido da Anita?Teresa – Ora se reparei! “Signé Patou”, minha filha. Para aí três mil francos. . .e pico!Joana – Mas ela não tem “chic” nenhum.. .Teresa – O Visconde não é dessa opinião. Ainda não lhe tirou os olhos de cima. . .Joana – Chega a fazer mal aos nervos. . .Teresa – Faz, faz uma certa comichão nos nervos. . . Eu já lhe disse que ela temuma doença de pele na perna direita. . .Joana (ansiosa) – E então?Teresa – Tenho as minhas desconfianças que não pegou.[. . . ]Teresa (para Anita, que se conservou um pouco aparte, sempre acanhadae “gauche”) – Quer que a sirva, minha joia?Ouve-se um grito. Todos se precipitam, de xícara na mão. Foi Teresa que en-tornou o chá sobre o vestido da condessinha.Visconde (ar consternado, inconsolável, de quem assiste a uma catástrofe na-cional) – “Quel dommage!”Prima Amélia emerge dum prato de bolos e declara, com a boca cheia: – Se nãotem açúcar, não põe nódoa. . .Teresa desfaz-se em desculpas.Madame Carneiro exclama: – Um desgosto assim tão inesperado!Joana explica: – É nervoso. Tem dias em que atira com tudo ao chão. . .E as senhoras, contentíssimas no fundo, – toda a mulher odeia o vestido de ou-tra mulher; não vem na sabedoria das Nações, mas é uma coisa mais do queprovada – rodeiam a condessinha, num murmúrio de simpatia e pena.83

83 Os que se divertem, A comédia da vida, 3a edição aumentada e com ilustrações de BernardoMarques, Lisboa, s.e., 1929, pp. 17-18.

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Este é um claro exemplo do meio no qual Luzia circulava, e de como aescritora tão bem exemplifica a cobiça, sempre centrada nas aparências, ex-pondo, com um toque de humor, o que se passava nos “chás” entre amigasíntimas, capturando a psicologia feminina.

Como refere Gilberto Freyre, a forma de vestir também denunciava po-der, visto que:

o modo de as mulheres casadas se apresentarem em público constitui um dosmeios dos seus maridos se afirmarem prósperos [. . . ], ou socioeconomicamentebem situados. Sendo assim, é preciso que os vestidos de esposas ou de filhasvariem, de menos a mais exuberantemente caros, e adornados como expressão,quer da constância de status alto dos maridos e pais, quer como expressão deaumento de prosperidade ou de ascensões socioeconómicas ou políticas ou naocupação de cargos ilustres dos mesmos maridos ou pais.84

Luzia tinha noção que essa era a sociedade em que estava inserida, e quepor muito que lhe desagradasse, era nela que tinha de viver, verificando como“para a vida íntima, a vida de família, a toilette pouco contava, mas infeliz-mente na sociedade, tinha uma importância capital. – Antes de te verem, vêmo teu vestido. Por ele avaliam donde vens, o que sentes, o que podes. – Eu pro-testava, indignada: – A mulher é que faz valer o vestido, não é o vestido quefaz valer a mulher”85.

Tendo esta opinião, satirizava cáustica esse mundo de aparências, che-gando a retratar uma viúva, em que a maçada maior que sentia por ter per-dido o marido era não poder usar, nos próximos tempos, o vestido verme-lho, de última moda, que tinha mandado fazer em Paris, como se pode lerem Rindo e Chorando. Há também na sua obra, outras descrições caricatas defunerais, desde as bisbilhotices entre amigas, às “obrigações” da sociedade,que impedem as pessoas de estarem presentes no funeral de um amigo ín-timo. Tal pode ser melhor percecionado, com a leitura do seguinte excerto,referente a um funeral:

(Entram madame Santos e Mariquinhas. Mariquinhas sobraça um enormemolho de lilases).Joana – Ena pá! Aquele é que leva a palma a todos!. . .

84 Modos de homem & modas de mulher, Rio de Janeiro, Record, 1986, p. 31.85 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 133.

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Maria da Luz – Que admiração! Se eu tivesse a fortuna do Papá Santos até tra-zia uma árvore. . .Maria do Céu – Com raízes e tudo. . .Joana – Um pinheiro d’oiro. . .Maria da Luz – Com pinhas de brilhantes. . .[. . . ] [agora relativamente a Gonçalo, que vai jogar bridge, em vez decomparecer no funeral da amiga]Maria da Luz – Nesse ponto desculpo-o. . . O pobre Gonçalo tinha mandado di-zer que não ia. . . Mas faltaram os parceiros. . . A Teresa insistiu. . .Maria do Céu – Realmente quem anda na sociedade tem obrigações. . .Maria da Luz – Por uma pessoa morrer não se há de desmanchar uma par-tida. . . 86

Luzia retrata de forma acutilante o meio que a envolve, e tal como referidoacima, apesar do tom jocoso que usa, percebe-se uma certa amargura de terde viver no meio de uma sociedade tão vazia de princípios, em que o pareceré mais importante que o ser.

Descreve de forma magistral como é que o snobismo transforma as pes-soas, e confessa que também ela, por vezes, faz parte desse meio que retratae satiriza:

Por ventura, nasceste sincero. Contudo o snobismo condena-te a uma eternamentira. Deves mostrar-te encantado pelo livro de que nem uma folha abriste,falar de músicos, que sempre te foram incompreensíveis, com os olhos em alvo, aboca em ponto de exclamação: Oh! Wagner! Oh! Bravel – declarar-te íntimo depessoas que não conheces, frequentador assíduo de casas onde nunca entraste. . .E não têm conta os teus sacrifícios, os teus sustos!Quantas humilhações, quantas sabujices, para conseguires que um. . . tal, te es-tenda as pontas dos dedos! Quantos pretextos, subterfúgios e transes mortais,para escapares à companhia do parente, considerado. . . gebo, que teima em des-cer contigo o Chiado!Bem entendido, eu menciono apenas os sintomas mais flagrantes desta horrí-vel. . . doença.Outros existem, porém, escondidos ou que julgamos escondidos, no segredo doscorações e, quer tu queiras, quer. . . “eu” queira, quer não, todos somos escravos,“snobs”, de alguma coisa, de alguém. . . 87

86 Rindo e Chorando, Lisboa, Portugália, 1922, pp. 60-61.87 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 95.

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Para expor de forma mais clara esta ideia, incluem-se mais dois excer-tos demonstrativos e representativos da intelectualidade presente na grandemaioria da alta sociedade. No primeiro excerto, Luzia descreve uma parte dodia de uma mulher rica e com muitos títulos, num capítulo chamado “A es-crava do chic”, não tendo esta mulher nunca tempo para si, em virtude dosvários compromissos sociais em que tinha de participar ao logo do dia,

– Maria, depressa. Aquele livro que veio há dias e eu nunca abri. Depressa. . .Dê cá. . . Não. . . Abra-o você. . . E, entretanto, dê-me a lima para arranjar asunhas, que não posso perder tempo. . . Já abriu, Maria? Está bem. . .Deita a lima no chão. Tem um sapato calçado, outro na ponta do pé. Lê o título.Lê uma frase em cada capítulo. Lê o fim. Recolhe-se. E numa doce voz – a vozque ele chama de cetim “liberty”. Cetim “liberty”! Tem tanta originalidade!Outro qualquer diria cetim sem mais nada – murmura: Que deliciosa sensaçãode arte eu lhe de devo, Armando! Como me senti bem, a sós com o seu livro, nojardim, sob as mimosas em flor! Que poder de análise, que psicologia a sua!Como conhece bem as mulheres! A cada página, eu exclamava: Mas é a Joana,mas é a Carlota. . . E depois, a nota elegante! Despe-nos a alma e veste-nos ocorpo com igual mestria. . . Eis o que não é fácil, meu amigo.88

O segundo excerto diz respeito a determinados conselhos que Luziatransmite a uma amiga, sempre sob o manto da fina ironia, sobre as atitudesque deve ter perante a arte, os livros e a música, para ser aceite e respeitadano meio da alta sociedade, esse meio de aparências:

Sobre livro, música ou quadro, que entendas à primeira, exclama, com a caretamais feia que fores capaz de fazer: – Horror!Sobre livro, música ou quadro que entendas à segunda, com trejeito enfadadoainda, declara: – Banalidade!Sobre livro, música ou quadro que após horas de concentrada meditação, deesforço tremendo, as fontes latejando, suores frios humedecendo-te a testa, con-seguires enfim decifrar, resmunga: – Mediocridade!Porém, daquele que ficou sempre para ti latim, decreta, sem hesitação: – Obra--prima! – E logo todo o cenáculo reconhecerá, na tua pessoa, afinidades, paren-tescos espirituais. . . 89

88 Os que se divertem, A comédia da vida, 3a edição aumentada e com ilustrações de BernardoMarques, Lisboa, s.e., 1929, pp. 54-55.

89 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., pp. 37-38.

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A escritora usa também a ironia para denunciar os vários eventos que sãofeitos em nome da caridade no seu meio social, pois a caridade não é o obje-tivo maior de tais acontecimentos, mas sim ver quem organiza o aconteci-mento com maior impacto, quem se veste melhor nessas ocorrências, quemmaioritariamente contribui. Resumindo, é mais uma atividade alicerçadanos pilares da aparência. Observe-se o exemplo: “Teresa vai promover umarécita de caridade para um asilo de surdos. Surdos, mudos ou gagos é o quemenos lhe importa. . . Promove a récita, única e simplesmente, porque a Joa-na, sem lhe dizer nada, arranjou um benefício no Politeama e teve um su-cesso doido, representando a Dama das Camélias, com o visconde no papel deArmand Duval”90.

Outro tema também recorrente é o dos novos-ricos, classe que Luzia abo-mina, devido à sua ostentação e mesquinhez, o desprezo pela vida (alheia), ea quem frequentemente satiriza: “D. Belmira (ao chauffeur) – À rua da Palma.E vá depressa. Se atropelar alguém, paga-se. . . ”91.

Por fim, a análise deve versar um dos pecados sociais retratados por Lu-zia, referente à bisbilhotice, por esta ser talvez a mais referida ao longo daobra, e por ser um dos traços que a escritora assinala como intrinsecamenteligado à alta sociedade, fazendo notar a sua distribuição generalizada por-quanto: “[. . . ] foi-nos administrada a primeira dose de bisbilhotices que, denorte a sul do país, fazem as delícias da mais alta e seleta camada social”92.

“Bisbilhotices” que eram proporcionalmente mais valiosas consoante ograu de intimidade e de notoriedade da pessoa a que dissessem respeito: “Acidade que me encanta, nem de leve interessa à minha amiga, [. . . ] Muitomais do que ver florir um jacarandá, apraz-lhe ver despontar uma bisbilhoticemazinha, sobretudo se tiver por objeto alguma amiga íntima. . . ”93.

Luzia, sem marido, filhos, família, vê-se rodeada destes amigos, presanuma rede social, que sabe, no fundo, não lhe proporcionar nenhum suporte.Muito poucos eram aqueles em quem podia de facto confiar, já que no meioem que estava inserida era praticamente impossível ser-se genuíno. Tinhade se pensar muito bem nas atitudes, nos desabafos, correndo-se o risco de

90 Rindo e Chorando, Lisboa, Portugália, 1922, p. 137.91 Os que se divertem, A comédia da vida, 3a edição aumentada e com ilustrações de Bernardo

Marques, Lisboa, s.e., 1929, p. 225.92 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 264.93 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 118.

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se espalhar pela cidade o acontecimento ou sentimento que era suposto tersido guardado na intimidade. Outro exemplo para ilustrar esta corda bambaem que se movimentavam as pessoas da alta sociedade pode verificar-se notrecho carregado de humor, em que três amigas (uma das quais a narradora)vão à bruxa, com esperanças de verem resolvidos vários infortúnios das suasvidas. Constate-se nesta passagem a hipocrisia, o medo e a desconfiança ins-taurados nos relacionamentos:

[. . . ] Enfim: eu estava morrendo por comprar a cabeça de víbora. . .Mas surpreendi um sorrisinho nos lábios finos de Mariana. E uma malíciapassou também no olhar de Ritinha. Diante delas. . . Para toda a Lisboa saberamanhã. . . [. . . ]E eu afirmei também que madame Saida jamais me impingiria a cabeça de ví-bora, benzida pelo sacristão torto.Mas, esta manhã, quando tornei a subir a escada do Poço do Borratem, paraadquirir, às escondidas das minhas amigas, o precioso talismã, esbarrei comRitinha, que descia, airosa e leve, segurando o seu embrulhinho de pomada mi-lagrosa; e mal tínhamos começado uma difícil e emaranhada explicação, avis-tamos Mariana que, deitando os bofes pela boca, corria também a encomendaros maravilhosos trabalhos para a felicidade.94

Nestes trechos, a bisbilhotice é caracterizada como o rumor que difama, a“bisbilhotice enquanto rumor, especialmente do tipo sensacional, alimenta--se da inveja e da insinuação para difamar o carácter e arruinar vidas”95. Tal éo que se tem observado ao longo destes exemplos, em que a presença da invejana alta sociedade representa a ruína dos conhecidos e dos bem-sucedidos. Oque vem demonstrar a oposição entre o ser/parecer deste meio social, temá-tica cara aos realistas como Eça de Queirós. As personagens desejam, apa-rentam ser e ter uma realidade, que nunca serão ou possuirão.

E Luzia, com o seu acutilante poder de observação, capta a sociedade edescreve-a muito bem na sua obra, sabe que essa é a realidade em que se mo-vimenta, e ela mesma vive um antagonismo semelhante, pois amaldiçoa es-ses factos, essas ocorrências, mas reconhecendo que, por vezes, não conse-gue evitar participar da mesma realidade que critica, discernindo neles “dias[que] passaram, inúteis. . . ”, lamenta: “Cansei-me. Provei vestidos. Comprei

94 Os que se divertem, A comédia da vida, 3a edição aumentada e com ilustrações de BernardoMarques, Lisboa, s.e., 1929, pp. 172-173.

95 O Livro dos Símbolos, Reflexões Sobre Imagens Arquétipas, op. cit., p. 482.

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um chapéu. Tratei as mãos, queimadas, estragadas pelo sol da minha terra.Ondeei o cabelo. Perdi dinheiro ao bridge. Disse e ouvi tolices. Disse e ouvimentiras. Bem vês, já retomei todos os meus hábitos de civilizada”96. Comoque sentindo-se, prisioneira do esplendor da alta sociedade, Luzia ao mesmotempo que lhe pertence, abomina-a. Proferindo,

Antes mil vezes antes, a solidão de Pau do que esta solidão por entre gentes queinvade a minha vida, altera os meus hábitos, vem visitar-me à hora em quecostumo jantar, e fica até às nove, muitas vezes até às nove e meia, falando decoisas que não me interessam, potins duma sociedade que se julga civilizada eé apenas uma paródia da civilização, em que todos disputam os lugares maishonrosos e todos se rasgam entre si. . . [Pois já se] tinha esquecido de tantamá-língua, de tanta intriga, da inconsciência e inconsistência das opiniões, daspseudoamizades – porque amizades a valer não existem, creio eu [. . . ]97

96 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 7497 Apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.

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Capítulo 3

O reino encantado de Luzia

3.1 – As paisagens dos seus reinos mágicos

Foram amáveis as fadas que presidiram à minha vinda ao mundo, que mederam uma alma tão fácil, e através de tanto sofrimento me conduzirama esta paz serena, com que atravesso, como se atravessa um bonito jardimem que as flores têm espinhos mas tanta beleza também, a vida misteriosa,a vida cheia de imprevisto.1

Luzia conduz os leitores a testemunhar as suas experiências, de formadescritiva, a mergulhar nas suas memórias, que são, também, a criação deum outro mundo, de alguém que se (re)constrói. A singeleza das expressõese das experiências respiram, contudo, um tumulto desejoso de liberdade.

Esse outro mundo encontra-se presente na sua obra de tal forma que seentrelaça com a realidade que descreve. Os seus livros abordam as mais diver-sas temáticas, desde a sátira social, literatura, política, todos os acontecimen-tos do meio envolvente exterior, os eventos mais interiores do ser humano,os sentimentos, sonhos, ilusões, paixões, memória, são porém pontuados de

1 Apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.

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pequenas portas que se abrem para um reino mágico, encantado, habitadopor seres de um outro mundo, e onde todo o leitor é convidado a entrar.

As ilusões desfeitas, as vicissitudes sofridas, um constante deambularpelo mundo das sombras e dos mortos, alimentam esse mundo para-lelo: “Com a maior angústia que até hoje tenho sentido em uma voz humana,disse: – Tudo acaba. – Um longo suspiro fugiu-lhe do peito. E o que era foicomo se nunca tivesse sido”2. Apesar de tudo isto, uma luz nunca abandonouLuzia:

Oh! minha tia, porque fez Deus então o céu do mais puro transparente azul,porque criou o perfume dos lilases, o riso dos pássaros?Bem entendido, a ventura de que ela prudentemente negava a existência, a quenegava até o direito de existir, resumia-se, aos meus olhos, em ter, de manhã ànoite, o dia todo para brincar. . . Mais tarde, outra quis, pressenti, não realizei.Mas tão maravilhosa foi a da minha infância, que bastou para encher-me declaridade uma vida inteira. . . 3

Neste excerto percebe-se a extrema importância que teve para Luzia a in-fância, e a influência dos ambientes territoriais na sua narrativa, principal-mente nas narrativas que irão ser abordadas no presente ponto, relacionadascom a criação e o seu reino fantástico e maravilhoso. Só há dois tipos de es-critores, de acordo com o estipulado pelos seus discursos – os lógicos e osmágicos: e ela foi ambos.

As fadas e os seres mitológicos ou fabulosos começaram a povoar o seuconsciente de forma mais marcada com a leitura dos livros presentes na bi-blioteca infantil do tio, tal como se pode constatar no seguinte fragmento:

Sim, dias há em que a chuva não cessa de bater nos vidros da janela e tão negroestá o céu que, mesmo de manhã, já parece noite. Na Igreja vizinha, os sinostocam tristemente, teimosamente, como a chuva cai. As frieiras torturam-me,trago as mãos inchadas, mal posso andar. . . Porém Joana d’Arc, pequenina e játão grave, fia na sua roca de alvo linho. . . Em vão a chamam, pretendem levá--la outras crianças que brincam sob a árvore das fadas. Joana prefere a solidãodo seu jardim, certo canto de sombra onde vozes misteriosas lhe dizem: “Joana,corre em socorro do rei, salva o reino de França. . .Aubignette guarda os perus, distribui a aveia, varre os sótãos do velho castelo

2 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 90.3 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 90.

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de Murcy. Nenhuma humilhação é poupada à sua triste infância. Quase tãopobre e tão triste, decorre-lhe a adolescência. Mas passa o Tempo – esse grandefeiticeiro – e troca-lhe os vestidos desbotados por sumptuosas sedas, faz da infe-liz pastorinha a muito alta e poderosa Marquesa de Maintenon, que Luís XIV,um rei como nunca houve outro, o rei de Versailles, escolhe para esposa. . . Ah!quantos prodígios, que fáceis parecem os milagres! Fecho o livro com pena.Julgo que nenhum outro pode conter tamanhas maravilhas. E já a Condessade Ségur – que Jules Lemaitre chama “avó das crianças francesas” e, com maisjustiça, parece-me, eu chamo “avó das crianças de todo o mundo”. . . enquanto,no mundo, houver crianças – me prepara um novo encantamento. . . [. . . ]Vêm depois as fadas: “Cendrillon” que se chamava a Gata Borralheira quandoeu, nem mesmo em português, sabia ler, e, nunca farta de ouvir-lhe a história,pedia à minha criada Claudina: – “Conta, conta outra vez. . . ”4

Os textos da Condessa de Ségur, a vida de Joana d’Arc, contos como aGata Borralheira, livros lidos e relidos, enchem de sonhos, de sentido de jus-tiça e de encantamentos a alma de Luzia, que já de si era sensível, marcadapelo seu ainda curto percurso de vida e pelo maravilhoso jardim da Quinta daMadeira, onde já brincava com as fadas:

Inventei uma bruxa horrenda, com brasas nos olhos e brasas na boca, vivia es-condida na mata de carvalhos e tanto me sugestionei que por fim, acreditavanela como se a tivesse visto e não passava na mata, sem que os dentes me bates-sem de terror. . .Em compensação, o jardim era o domínio das fadas minhas amigas, que ha-viam de dar-me tantas coisas, quando eu fosse grande. . . Vestidos feitos de sol emantos feitos de luar e um príncipe com cabelos d’oiro. . . 5

Foram tantos os jardins que foram fundamentais para Luzia, que alimen-tavam e transportavam a escritora para o seu reino mágico, que é vital queaqui se dê a conhecer mais alguns deles.

Há, no fundo deste velho jardim, um canto que faz as minhas delícias. En-sombrado pelas árvores dos quintais vizinhos, tem qualquer coisa de misteriosocomo os bosques. . . A erva cresce entre o musgo. Aqui e ali, surge, na sua hastedelgada, uma papoila vermelha. Contra o muro vivem, exuberantes, a hera, oalegra-campos e, onde pode suspender um raio de sol, debruça-se, miudinha,

4 Idem, pp. 32-34.5 Os que se divertem, A comédia da vida, 1a edição, Lisboa, s.e., 1920, p. 158.

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clara, uma roseira de toucar. No inverno, cheira a violetas, a terra húmida. Naprimavera, tem um perfume especial de erva fresca, de folhas tenras. O rou-xinol, que ama o mistério e a sombra, escolheu este canto de jardim, para neleexalar as suas lágrimas musicais, as suas harmoniosas queixas. . . Se eu tivessea voz do rouxinol, era ali que chorava, que me queixava também. . . 6

Este era um dos jardins de uma das casas onde viveu, um jardim que pas-sara a fazer parte constituinte do tecido de Luzia, levando-a a vê-lo como ob-jeto estético e artístico, tornando-o sujeito da escritora. No Anexo 3, encon-tra-se a fotografia de um conjunto de azulejos, com palavras de Luzia, que seencontra nesse mesmo jardim.

Outra paisagem de um dos seus reinos mágicos é a Quinta da Ribeira deNisa, da qual refere: “Ribeira de Nisa! A Quinta! Como estas palavras fazempalpitar ainda o meu velho coração! Já tantas vezes vista, percorrida, era aeterna surpresa que, cada dia, levantava uma ponta do seu véu, para reve-lar novos, maiores encantos”7. Luzia via esse espaço como seu, eram os seuscampos, as suas flores, as suas árvores, e descobria o seu reino, corria-o en-feitada de colares de flores, como uma fada, à semelhança do que ainda hojeem dia as raparigas fazem na região celebrando as Maias:

– Nem as dríades aqui faltam! – exclamara um amigo do tio, vendo-nos surgir,assim enfeitadas de oiro, no fundo ensombrado de uma alameda. . .– Sabes o que é uma dríade? – perguntei eu imediatamente. Georgina não es-tava bem certa. Resolvemos consultar o dicionário. – Com y grego, lembra-te.– E com o competente y grego, como se escrevia nesse tempo, lá encontramos.Porém a significação “ninfa dos bosques” deixou-nos também a ver navios, o quenão nos impediu, aliás, daí em diante, de mutuamente nos chamarmos: “– Ódríade!” “– Ó ninfa!” Quanto à linda hora do pôr-do-sol, representava apenasa desagradável obrigação das ninfas recolherem. . . 8

Eram estes os campos de que tinha saudades de cada vez que estava longe,e quando voltava, quando avistava à distância as oliveiras da sua terra, cho-rava, sendo depois um deleite, cada dia que lá passava, pondo até de lado osseus tão viciantes livros, conforme confessou: “Passo os dias na mais vergo-

6 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 37.7 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 71.8 Idem, p. 103.

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nhosa ociosidade. Nem sequer leio. Ando em lua-de-mel com este campo,que é meu”9.

Referindo-se ainda à Quinta das Assomadas, na Ribeira de Nisa, Luziaconta:

Junto ao muro, estava a olaia,“coquette”, linda no seu vestido de primavera, oseu vestido de baile. Envoltas em brandas musselinas, voavam as doidas bor-boletas. Eu exclamava: “– Ah! quem pudesse andar com elas pelo ar!” – Menosambiciosa, a minha companheira respondia: “– Pode-se sempre dançar.”– Ao cheiro penetrante das glicínias, dos jasmins, dos lilases, juntava-se o finoaroma da magnólia que o meu pai trouxera da Madeira e logo se aclimatara.Às vezes perguntava-lhe: “– Por que te mostras tão viçosa e forte, longe da tuaterra, onde abrem rosas pelos caminhos e não morre de frio uma planta?” –Julgava ouvi-la dizer: “– Este ar é puro como o diamante. Tenho os beijos doorvalho, os mais doces beijos do amor. E às rosas de todo o ano, eu prefiro asrosas de Maio. . . ” 10

A borboleta e o orvalho são detentoras de profundo simbolismo, como seexplica em O Livro dos Símbolos, coordenado por Ronnberg: “Desde temposantigos que a borboleta, Psique, tem significado, não apenas os mistérios dametamorfose física, como as mais enternecedoras mutações da alma. [. . . ]Em todo o mundo a beleza diáfana da borboleta, a sua beleza alada e a espan-tosa saída de um casulo, tem simbolizado o renascimento da alma saindo doseu encapsulamento de crisálida”11. Tal como a alma de Luzia, que continhaum tumulto desejoso de liberdade, “– Ah! quem pudesse andar com elas pelo ar!”,diz a narradora, ansiando já algo mais: “Não meramente uma forma mercu-rial de entendimento, mas incorporando valores de sentimento, o “orvalho”aludia à capacidade da psique para restaurar e reanimar a personalidade de-sidratada pela inconsciência da sua substância anímica”12.

Os beijos do orvalho são comparados aos beijos do amor, e era de amorque Luzia sentia falta, era a este que ansiava para restaurar a sua personali-dade sofrida. Tal como a magnólia, Luzia também teve de se aclimatar a umambiente e vivências muito mais agrestes, depois da morte do pai.

9 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 14.10 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 58.11 O Livro dos Símbolos, op. cit., p. 234.12 Idem, p. 74.

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A escritora tem também uma forte ligação com a água. Ao longo da obrasão inúmeras as referências aos regatos murmurantes, cascatas, às levadas,às fontes, e claro, a ligação de amor com o mar, que já foi mencionada ante-riormente. A fonte e a água são representadas da seguinte forma: “Era ali afonte que, na hora do sol, quando tudo cintila, tudo dá luz, ao correr sobre asminhas mãos, as enchia de brilhantes”13.

Lê-se no Livro dos Símbolos que:

A fonte é água que pressionada sai de uma nascente escondida. A qualidadeanimada da fonte, o jogo de luz solar ou lunar na água prateada, o tilintarmelodioso nas pedras e folhas sugere eternamente a presença dos espíritos danatureza e os “afloramentos” mágicos da mente. [. . . ] Universalmente, a fonte éuma imagem das “águas vivas” que restauram a alma sequiosa de significado,criatividade e alegria.14

Mas não só, porque inicialmente a fonte também representa, as “águascaóticas” do inconsciente a borbulhar para o consciente com a possibilidadede submergir assim como de fertilizar com as fantasias eróticas e desejos ar-dentes da vida não vivida”15. Posteriormente, através da reflexão e do senti-mento a fonte representa o arrefecimento e o humedecimento de paixões.

Apesar da sua forte educação religiosa, o facto de Luzia ter crescido livre-mente entre campos, jardins e florestas, cultivou nela uma profunda almapagã, que a escritora admitia e alimentava:

Só acredito nos deuses da Fábula, da Mitologia. . . Ceres farta e abundante, aencher de flores e de frutas os vergéis, Ceres, a alma perfumada das laranjeiras,é uma santa da minha devoção. – Esqueceu-se Fred, que tenho horror às mu-lheres gordas. . .Pan, tocando a sua flauta de pastor, n’um canto florido de bosque, é o meu anjoda guarda!Já depus uma complicada oferenda d’ovelhas e de pombas no altar escandalosod’Eros!Tenho um fraco pelos faunos, que se escondem nos maciços de madressilva parasurpreender as ninfas, que nas brandas noites, dançam ao luar! – Em boa horanão se lembrou de dizer que faço parte do bailado!

13 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 57.14 O Livro dos Símbolos, op. cit., p. 608.15 Ibidem.

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Acredito na virtude cantante das fontes e acho mais devotas de que as catedrais,as árvores, erguendo para o céu, as torres de verdura!Se, nas doces tardes de maio, alguém me viu no mês de Maria, é porque nessadevoção cristã, a uma virgem coroada de rosas, erra ainda, perfumada e bela,a alma do velho paganismo!. . .Mais nada, senhor inquisidor-mor?. . .Ah! reconheço que toca as raias da idolatria este meu desordenado amor pelaterra quente, musical, palpitante. . .Sou uma grande amorosa das coisas.Não se esqueça, Fred, que vivi muitos anos no campo. Conheceu a quinta ondepassei toda a minha solitária infância.Nunca brinquei com bonecas. Preferia as flores, achava-as mais vivas, maisleves, manejava-as melhor entre os meus dedos pequeninos. Estudava-lhes oshábitos, adivinhava-lhes os segredos.16

Não se podia deixar de citar este trecho, que evidencia a forte ligação deLuzia com a Natureza, com a Terra e que demonstra o conhecimento da es-critora pela mitologia celta.

Como pessoa sonhadora que era, com a mente povoada de doces histó-rias e mitos, Luzia acreditava no fantástico a ponto de subscrever a telepatia:“Estás longe, bem sei, mas eu creio na transmissão do pensamento, creio emtudo o que é sobrenatural, maravilhoso”17.

Por conseguinte, o mundo das fadas era bem real e concreto para a es-critora. A sua obra está repleta de “convívios” com fadas, são numerosos ostrechos em que o maravilhoso se entrelaça com o real. Observe-se o que Lu-zia escreve numa epístola, após ter aconselhado a leitura a uma amiga de umlivro sobre as fadas do mundo, e a amiga, intimidada com o tamanho do livronem o abriu, ao que Luzia ripostou:

Quanto a “Vie et mort des fées”, cujas quatrocentas e vinte e seis páginas – con-cordo que é de respeito – te assustaram a ponto de nem as abrires, faz favor depenitenciar-te também. A sua autora, Lucie Félix Faure Goyau, nem por som-bras merece o teu desprezo. [. . . ]Mas o curioso livro de Lucie Félix Faure Goyau não se limita à França. Vai poraí fora numa linda erudição. É, pode dizer-se, a história das fadas de todas asliteraturas e de todos os países. [. . . ]

16 Os que se divertem, A comédia da vida, 1a edição, Lisboa, s.e., 1920, pp. 156-157.17 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 27.

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Porém, esta história universal das fadas não menciona – nem de passagem –uma única fada portuguesa. Lucie Félix Faure Goyau, conhecendo como os seusdedos, todos os mais remotos autores, desde Homero até o Tasso, jamais suspei-tou a existência do Auto de Gil Vicente e cairia certamente das nuvens se alguémlhe dissesse que, tão linda como Mélusine, tão poderosa como Viviane, Alina, afada de Garrett, encerrou num raminho de murta, todo o destino de Ben-Afan.18

As fadas estiveram presentes na vida de Luzia desde a infância até à ve-lhice. Onde quer que ela brincasse, o que quer que ela lesse, observasse, en-contrava sempre uma referência às fadas. Se o mau tempo não lhe permitiaencontrá-las no jardim, onde tinha feito planos com as amigas para brinca-rem no domingo, ia desencantá-las no armário das bonecas:

Falta o passeio, projeto, sonho de toda a semana, e até no jardim só Zapa, queadora a chuva, o frio – lembram-lhe decerto a sua Rússia distante – se aventura,apesar dos meus prudentes conselhos: – “Zapa, olha que andam por aí tantasconstipações!” Mas temos licença de abrir certo armário, durante a semana her-meticamente fechado: o delicioso armário das bonecas. Aurora, Bela, Florindaacordam do seu sono, longo como o sono das fadas.19

Preterindo mesmo, aqui, a mestra de francês, atribuindo-lhe papel se-cundário na sua formação, como elucida, claramente dizendo: “Mas – que aexcelente senhora me perdoe – as minhas grandes mestras de francês forama Condessa de Ségur e as fadas de Perrault”20. Até na capela Luzia se lembrado feiticeiro Merlin e das fadas: “De boca em boca, anda a profecia do feiti-ceiro Merlim: – A salvação da pátria virá de uma menina. – O feiticeiro, nacapela! Ah! que a Santa me perdoe. . . Eu agora não rezo, converso, falo-lheda nossa infância, do meu conto de fadas. . . ”21.

E já adulta, quando tenta falar das fadas a uma criança, tem a maior dasdeceções:

Daí a pouco, vendo-a absorta defronte dum cogumelo, caí na tolice de confessar--lhe, que, no tempo da minha infância, os cogumelos serviam de chapéu-de-solàs fadas. . . [. . . ]

18 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., pp. 55-58.19 Dias que já lá vão, Porto, Livraria Tavares Martins, 1946, p. 43.20 Idem, p. 35.21 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, p. 150.

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Já não há crianças. As vidas desabrocham precocemente emurchecidas. Desa-pareceu do mundo a linda fantasia. Morreram as doces lendas, evolaram-se osqueridos feitiços. . . Só para mim que, como sabes, estou na segunda meninice, opalácio da Carochinha, conserva abertas as suas divinas portas. Ainda gosto deouvir – querido, saudoso eco de vozes que se calaram – o velho: Era uma vez. . .Mas tu não tens culpa da minha demência.22

Todavia, Luzia continuava a ser criança e sempre acreditou na existênciadas suas fadas, considerando que foi o reino mágico onde se reconstruiu, quelhe deu a luz, quando se sentia impotente perante a escuridão,

Porque a noite estava clara, dum formosíssimo luar e porque é tão pacífica, semperigo, a qualquer hora, a doce terra da Madeira, recolhi só, vagarosamente,através das ruas desertas, cujo silêncio rompia apenas, no seu cantar incessante,a água das levadas. E pela voz da água quantas vozes me falaram, na solidão,no mistério da noite prateada!Maria, tu ris quando eu te asseguro que, último refúgio de fadas e ninfas, asfontes e os regatos falam; zombas de todo esse mundo gentil e alado que dá àminha imaginação as suas lindas festas. . . porém, se estivesses há pouco co-migo, eu te provaria, ah! eu te provaria até à evidência, que as minhas fadasexistem e são mais que uma ilusão as minhas brancas ninfas. . . Tê-las-ias ou-vido e visto, como eu ouvi e vi, murmurar, suspirar, rir, cantar, dançar, desfiarpérolas, tecer luar, nas musicais levadas da Madeira.23

O reino mágico é um reino de amor. Foi o que procurou toda a vida, foi oque sonhou, já que antes ainda de saber ler, ouvia a criada a contar o “era umavez. . . ” repleto de fadas, no qual o bem impera sobre o mal, no qual apesarde todas as dificuldades e amarguras por que passam os personagens, chegasempre a altura da recompensa, e no fim faz-se justiça. Luzia esperou sem-pre por essa justiça, Luzia esperou sempre pelo amor: “Por encanto, comonas histórias de fadas, o tempo recuou. Voltei para trás, sou nova outra vez.Tenho a minha alma de paixão. Os meus braços ainda sabem prender, guar-dar. A minha boca ri, para ti e para a vida. Tenho sede de amor.”24 – conforme(variadas e repetidas vezes) admite.

22 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 64.23 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, pp. 203-204.24 Última Rosa de Verão, Lisboa, Portugália, 1940, p. 23.

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3.2 – Luzia: fada, mulher e escritora

Sofreu como uma Senhora e encantou como uma fada. Mas perdeu-se doscompêndios da lusofonia e afundou-se na solidão das multidões e modas.25

Lendo o que amigos e conhecidos escreveram sobre Luzia, tanto em jor-nais, como em livros, uma opinião generalizada transparece: Luzia foi du-rante toda a sua vida uma elegante, tanto na sua linha indumentária e perfilfísico, como nas suas atitudes e no trato com os demais.

Esguia, “silhueta de adolescente”, e admiráveis mãos, iluminadas de joias dis-cretas, a que se juntava, discreto também, o seu brasão de armas, mãos quetinham gestos doces, mãos para acariciarem os que sofrem e se abrirem em dá-divas generosas aos que junto dela choravam sem pão e sem abrigo.Grande Senhora que a Alta Costura de Paris se honrava de servir com a últimapalavra das suas criações, Luzia impressionava todo aquele mundo eleganteque, nos salões doirados faz as lindas paradas de elegância. À sua figura es-belta e às suas conversas cheias de talento e graça, sem sombra de afetação, seprestava um verdadeiro culto feito de admirações e simpatia.26

Para além de ter sido uma elegante, Luzia era igualmente conhecida pelabondade e compaixão. Talvez por ter sido também uma sofredora, ti-nha “mãos para acariciarem os que sofrem”. Este traço de personalidade nãopassou despercebido na sua vida, já que Luzia se condoía pelos injustiçados,pelos filhos da má sorte, ajudando-os sempre que podia.

A sua obra demonstra essa mesma faceta, tanto em frases construídascom o propósito de levar o outro a refletir, propondo que “não tenhas pressade julgar, de condenar. O que sabes tu, o que sabemos nós, uns dos outros?Para lá das aparências – esse maior dos enganos – o que veem os olhos, oque percebe o coração?”27, como nos momentos em que fala dela mesma, evi-dência passível de se constatar no seguinte excerto do seu primeiro livro: “A

25 Joaquim Castanho, “Do Verbo Andarilho nas Fadas de Portus Alacer” in Plátano, Revistade Arte e Crítica de Portalegre, no 5, 2012, p. 6.

26 Feliciano Soares, op. cit., p. 5.27 Lições da vida, Lisboa, Portugália, 1941, p. 24.

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noite estava linda. No meu jardim o cheiro das açucenas embebedava. Deitei--me cansada, triste, com um imenso fastio da vida, um imenso desejo d’outracoisa, d’um mundo menos injusto, onde houvesse menos pérolas no pescoçodas milionárias e menos lágrimas nos olhos das criancinhas pobres, onde senão jogassem libras e nunca faltasse a humilde moeda de cobre com que secompra o pão”28.

Ajudava todos os que se aproximavam dela pedindo pão ou abrigo, e mes-mo na altura da sua morte, pensou em todos. No seu testamento deixou per-tences e dinheiro a todos os seus criados, deixando inclusive uma casa à suacriada pessoal, Rosa:

Lego o usufruto vitalício do meu prédio urbano ao Caminho dos Barreiros, fre-guesia de São Martinho, à minha criada Rosa Ramos Cascão, solteira, comigoresidente, nesta cidade; e lego a propriedade deste mesmo prédio, em partesiguais, ao Concelho Central das Conferências de São Vicente de Paula do Fun-chal, à Associação das Damas de Caridade desta cidade e à Santa Casa da Mi-sericórdia do Funchal. [. . . ] Lego mais à mesma minha criada Rosa a quantiade dois mil escudos.29

Luzia, de alma bondosa, qual fada caridosa espalhando tesouros pelosmais desfavorecidos, tinha uma presença tão poderosa e fina, que todos gos-tavam de a ter presente nas suas salas e reuniões. A sua figura atraía, as suasconversas estimulavam, como testemunha Feliciano Soares:

Acolhedora, de trato despretensioso, sem, todavia, entrar pela simplicidade vul-gar mas também sem altivez, Luzia inspirava respeito e cerimónia. Era a rea-leza do talento, e da elegância, e da graça, tocada duma delicada, leve ironiaque lhe dava aquela majestade que se admira, respeitando e que se rodeia comcerimónia.Flor já desabrochada, sem jardim, sem família que lhe aquecesse a alma, Luziafaz-se Vagabunda de hotéis.30

Apesar de Luzia ser uma presença estimada, e de se pressentirem naquelaalma tantos sonhos, adivinhava-se também nela uma imensa solidão. O sen-tir da escritora é muito diferente dos demais daquela época, e, ainda hoje,

28 Os que se divertem, A comédia da vida, 1a edição, Lisboa, s.e., 1920, p. 153.29 Testamento de Luísa Grande, Arquivo Regional da Madeira.30 Op. cit., p. 15.

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Luzia iria sentir-se da mesma forma, sozinha por entre as gentes, lembrandoo decadentismo de Cesário Verde, em que está presente um tédio e sufocoprovocado pela cidade, mas ao mesmo tempo um fascínio.

Para a escritora, a “felicidade é este escorregar das horas, sem imprevisto,sem emoções, hoje igual a ontem, amanhã igual a hoje, doce monotonia, em-balada pela voz dos sinos e pela voz do Gave, atmosfera de sonho em que tudose atenua, se suaviza, como, nos véus da bruma, se atenuam e suavizam os ás-peros cumes das montanhas”31.

Luzia era, portanto, uma sonhadora: “Fechei o livro – um romance qual-quer – para seguir o capricho das chamas que, em pequenos estalos secos, vaidesenhando grinaldas e cachos de luz. Oh! deliciosa companhia do lume, dobom amigo lume! Como ele convida a sonhar, que grande é o seu poder deevocação! E eu que, para sonhar, para evocar, nunca me faço rogada, já voupor aí fora. . . ”32.

Como já foi referido anteriormente, a autora não era só dada a nostal-gias, sonhos e solidão, dado que uma certa irreverência caracterizava o seuser desde pequena: “E quando o meu riso soa um pouco mais alto, a tia Ma-ria Vitória explica a D. Paulina, a senhora de maior cerimónia: – Foi sempreaquilo desde pequena. . . Nunca houve maneira de ter propósito. . . ”33. Umairreverência que a levou a andar sempre um passo à frente do seu tempo, ase assumir como mulher escritora, a usar a ironia, a apontar os caricatos daalta sociedade, a rir alto quando era suposto fazer silêncio, e a discutir junta-mente com os homens, assuntos em que as mulheres não teriam acesso nemvoto de opinião: “As senhoras refugiam-se num silêncio modesto. . . Eu e oshomens é que fazemos todas as despesas da conversa. Discute-se política eliteratura”34.

As gargalhadas nos salões, o discutir política e literatura no meio dos ho-mens, o recurso à ironia na sua obra, podiam fazer acreditar a um leitor maisdesatento que Luzia era uma escritora que tentaria masculinizar a sua es-crita e os seus modos para ter um maior sucesso no seu meio, mas Luzia eraorgulhosamente feminina.

31 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., pp. 230-231.32 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, pp. 41-42.33 Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923, p. 22.34 Idem, p. 21.

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Feliciano Soares, que conviveu de perto com a escritora, relata que estaera “elegantemente feminina”, que a sua prosa tinha a “transparência de por-celana fina”, uma graciosidade e leveza de linguagem, “que só uma mulher detalento, exclusivamente feminina consegue realizar.”35.

Porque, na verdade, foi neste ambiente, neste clima, de elegância feminina queela sempre viveu, fazendo-se rodear de tudo quanto concorresse para, pelo me-nos na aparência, maior beleza dar a todas as horas da vida: flores – rosas,as lindas rosas do seu jardim que todo o ano dava rosas – móveis com históriasaudosa, retratos amigos. E toda esta moldura duma cativante impressionanteharmonia era o perfeito reflexo do seu modo de ser moral e intelectual, em plenoacordo com a elegância dos seus hábitos, com o requinte das suas “toilettes”, coma aristocracia da sua figura esbelta e insinuante. E as suas lindas mãos vinhammornas de sol, depois de colherem rosas no seu jardim sempre florido, tecer essalinda teia de prosa que é toda a obra de Luzia.36

É o mesmo autor que põe em destaque a originalidade de Luzia e nos re-vela em que é que esta era diferente das suas contemporâneas: refere autorascomo Maria Amália Vaz de Carvalho, Caiel, Teresa Leitão de Barros, Domití-lia de Carvalho, Virgínia de Castro e Almeida e salienta que estas escritoras,apesar de terem uma ou outra composição marcada pela graça feminina, ali-nham na literatura masculina e viril, trabalhando entre estantes austeras degabinetes, ao invés das rendas, retratos queridos, rosas, livros e mesinhas dechá, que rodeavam Luzia e marcavam o tom da sua escrita:

O modo de ser literário e psicológico de Luzia não se harmonizaria com a rea-lização do “Duque de Palmela”, a obra prima de Maria Amália, com o caráctersociológico da Obra de Caiel, com as “Escritoras de Portugal”, de Teresa Lei-tão de Barros, com a trilogia “Terra Bemdita”, “Trabalho Bemdito”, e “CapitalBemdito” de Virgínia de Castro e Almeida e muito menos com “A Praga” e “Ino-cente” da mesma autora, contos admiráveis dum realismo aflitivo.O próprio teatro de Virgínia Vitorino – deliciosa poetisa dos “Namorados” e do“Apaixonadamente” – o teatro, primoroso, vive num ambiente Literário que nãoé o dos diálogos de Luzia, que não quis nunca fazer teatro.37

35 Op. cit., p. 28.36 Op. cit., p. 29.37 Idem, p. 30.

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Em Luzia, como se pode constatar ao ler a sua obra, apercebe-se um poucoda sua alma em todas as páginas, mesmo as que relatam acontecimentos his-tóricos, políticos, socias ou mais objetivos. Tudo é sentido na sua obra. Aspaisagens, as personagens, tudo são quadros vivos com que a escritora vibra,porquanto “toda a expressão traduz um pensamento, um sentimento ou umaatitude interior ou exterior. E por mais complicado que seja o pensamento, osentimento ou a atitude que tem a exprimir, a frase sai-lhe natural e simples,sem nunca deixar de ser elegante e artística”38, como refere Feliciano Soares.

A leitura de Luzia não se consegue apressar porque a escrita é visualiza-dora. Os olhos detêm-se nas palavras, que transportam o leitor para os locais,vêm-se os raios de luz, as árvores, sentem-se os cheiros, as saudades, a nostal-gia, e almeja-se que as frases não acabem nunca, para sempre deseja-se ficara ver os poentes cor-de-rosa do Alentejo, ou uma cor que desmaia no céu.

Amo – quem sabe se de preferência – o aroma que guardam, entre as páginasdum livro, certas velhas flores; o sorriso, a graça juvenil que persiste em algunsantigos retratos. . . E amo os longos crepúsculos de verão, aquela indecisa horaque já não é dia e não quer ser noite, quando antes de fundir-se nas trevas, des-maia, cor de lilás, o céu que foi azul. . . 39

Saboreiam-se as palavras, as pausas e as cores, a escrita de Luzia é inteli-gente, não elitista, e é cheia de rendas e aromas, convidando a entrar sempreem espaços mágicos.

O todo da obra é maior que a soma das suas partes, já que ao ler-se a obratoda, compreende-se uma dimensão diferente, como se um clique interno es-talasse, e uma porta se abrisse para a dimensão de Luzia, pois a obra da escri-tora é como um imenso vitral que só pode ser compreendido absolutamenteno seu todo. Um detalhe interessantíssimo é que a obra de Luzia, lida de tráspara a frente, ou seja, do último livro publicado em direção ao primeiro, é deuma doce revelação, pois há pedaços desse vitral que são só compreendidosquando a obra é lida do “avesso”, parece que dessa forma se atinge a sua totalbeleza, que, só assim, determinados vidrinhos assumem a sua correta posi-ção, revelando-nos pormenores que de contrário passariam despercebidos.

Começando a ler a obra do último livro para o primeiro, todas as peçasse encaixam, todo o vitral se ilumina, todos os protagonistas são comuns e

38 Ibidem.39 Almas e terras onde eu passei, Lisboa, Edições Europa, 1936, pp. 67-68.

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reconhecidos, e isto porque as últimas obras são de caráter mais autobiográ-fico, revelando ao leitor pormenores que seriam impossíveis de descortinar,ou apreender nos primeiros livros. Lendo a obra em ordem inversa à da pu-blicação, é possível descobrir Luzia por detrás de muitas das personagens porela criadas. E dá-se conta de quanto daquele quotidiano retratado ao acaso éminimamente casual, comprovando-se antes ser arte e engenho aquilo que sejulgava ser apenas natural espontaneidade no cursivo dos (seus) dias, comorefere Emonts, há “um jogo irónico permanente com o que é ao mesmo tempoestranho e familiar”40.

A obra de Luzia expressa o ser profundo do seu autor, Luísa, que se querlibertar das amarras, desilusões e tristezas do seu mundo real, servindo-se deLuzia e da sua escrita, para se reconstruir:

A minha história?Quando eu nasci uma estrela dançava. . .Tal e qual como a Beatriz de Shakespeare. . .Por isso sou assim um nadinha telhuda e ando sempre meio a sonhar. . . MeuDeus! Que tempo tão lindo e tão quente!Junho, o mês azul. Parece que foi o céu que floriu os jacarandás.Sinto-me morrer de calor e de preguiça. E quer que eu lhe conte. . .O sol queima, abrasa, devora. . . Já estragou as minhas “Captain Christy”.Já bebeu o manso fio d’agua que cantava na cascata. Os pássaros escondem-seentre os ramos das acácias. Cirano anda com a língua de fora. . .Hoje sinto em mim uma alma pagã, a alma d’uma ninfa! Não, não é isso. Hojeparece-me que não tenho alma nenhuma. Sou apenas um corpo preguiçoso quevou estender na “chaise longue” da minha varanda, e uns olhos ávidos, encan-tados que vão beber toda a beleza da terra. . . A minha história?. . . “La suit auprochain numéro”. . . 41

Que se espere pela próxima edição. . .Nem Luísa já sabe bem qual a sua história, uma vez que se reconstruiu

exaustivamente em Luzia, e há memórias das quais já duvida se viveu. A obrarevela uma busca de um tempo perdido, quase como a de Proust, e como tãobem refere Joaquim Castanho:

Nos romances epistolares Luzia mete-se também de fora (de si) e quem executaas missivas é uma ou várias personagens, e à vez, contando-nos algo que está

40 Op. cit., p. 208.41 Os que se divertem, A comédia da vida, 1a edição, Lisboa, s.e., 1920, pp. 155-156.

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inequivocamente à distância de todos, do leitor, do escritor, do pseudónimo e dealguns personagens, embora lhes pertença igualmente – e por inteiro. E nestaatitude é mais que óbvia a intenção artística e literária (exploração do labirintooriginal, em espiral que parte dela, ou o escrever concêntrico de pedrinha quecai na água de Proust, originando um número infinito de ondas circulares emvolta desse momento) de Luísa Grande, declarada sobretudo com a criação dopseudónimo Luzia, que outra não é senão si mesma, em que tudo o que estapublicou/editou é inegavelmente arte e artifício, perfilando uma obra literária– e de excelência!42

Luísa e Luzia são inseparáveis, reinventando-se uma à outra. Não se sabeonde começa Luísa e onde acaba Luzia. Reconstruíram-se em tudo o que fo-ram criando ao longo da vida, como refere João Bigotte:

Eu não consigo nem imaginar a operação em que o artista se desprende da peledo homem, de modo a ficarem, se não irreconhecíveis, pelo menos facilmenteidentificáveis. [. . . ]O rosto, a pele, a alma não se mudam assim, como se muda de roupa. Numaarte que seja o reflexo do homem interior – o que é a única arte autêntica –, elahá de exprimir fatalmente o ser profundo do autor.43

É, assim, através da sua arte de escrita, que Luzia se revela em toda a suaprofundidade, e revela também Luísa, pois uma é a outra, e vice-versa.

A 8 de dezembro de 1956, Alberto F. Gomes publica um artigo sobre osAspetos autobiográficos da obra de Luzia, expondo a ideia de que:

A feição autobiográfica da obra de Luzia empresta-lhe uma beleza e emoçãoparticulares e distintas – esse encanto mágico que se evola das confissões ínti-mas que tornaram inconfundíveis as páginas de Katherine Mansfield e MarcelProust. Em cada período fala uma Luzia que não é uma vaga figura de fic-ção, mas a alma inteira de uma mulher que amou e sofreu. Este poder, quasevocacional, de confessar o próprio drama íntimo e de saber comunicá-lo semo tornar vulgar ou insípido, é o segredo do interesse e da originalidade da suaobra literária.44

42 Um ponto de vista. . . , consultado em 20 de junho de 2012 através de <http://escribalistas.blogspot.pt>.

43 João Bigotte Chorão, O escritor na cidade, Lisboa, Editorial Verbo, 1986, p. 133.44 Apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.

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Luzia, mulher elegante, compassiva, possuidora de um sentir tão dife-rente dos demais, vertendo-se e reconstruindo-se nas suas páginas, reinven-tando os mundos por onde sempre desejou deambular, busca um tempo per-dido, e marca a literatura feminina da época, como Mansfield ou Proust.

3.3 – O fim da magia, o que fica depois da morte?

Como havemos de estranhar que os estrangeiros nos ignorem, se nós pró-prios, gostosa e propositadamente, nos ignoramos?45

Chega enfim o dia do eterno descanso de Luzia. O seu corpo repousa noCemitério de Nossa Senhora das Angústias.

Luzia redigiu uma última versão do seu testamento a 21 de julho de 1945,no qual integrou dois apontamentos referentes às suas obras e aos seus pa-péis que são importantes referir, pois deixou-os a duas amigas distintas:Laura de Castro Soares e Teresa Leitão de Barros.

Laura de Castro, que usou o pseudónimo de Maria Francisca Teresa, nas-ceu no Funchal em 1870 e casou com o escritor e jornalista de Aveiro, Feli-ciano Soares. Foi a grande e íntima amiga de Luzia, desde a infância46. Noseu testamento Luzia escreve: “Lego à minha amiga Laura de Castro Soares aquantia de dez mil escudos, um anel rodeado de pérolas que pertenceu à suamãe, o par de castiçais de prata que está na sala, uma bolsa de prata antigae ainda todas as minhas cartas, papéis e retratos podendo-lhes dar o destinoque quiser”47.

É a esta amiga que Luzia confia os seus papéis mais privados, todas ascartas, todos os retratos e também todos os diários íntimos, não deixando anenhum familiar o precioso legado.

45 Cartas d’uma vagabunda, Lisboa, Portugália, s.d., p. 59.46 Visconde do Porto da Cruz, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, III

Volume, 3o Período 1910-1953, Funchal, Edição da Câmara Municipal do Funchal, 1953, p.49.47 Testamento de Luísa Grande, Arquivo Regional da Madeira.

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Tal como não é a nenhum familiar que Luzia entrega a propriedade dassuas obras e os seus inéditos que tinha deixado prontos para publicação, massim à amiga de Lisboa, Teresa Leitão de Barros, jornalista e escritora: “Deixo aTeresa Leitão de Barros, residente em Lisboa, a quantia de vinte mil escudose a propriedade de todos os livros escritos e publicados por mim, a minhamaior bandeja de prata e um tinteiro antigo de latão amarelo”48.

Após a morte de Luzia, Teresa Leitão de Barros, em parceria com Fer-nanda de Castro, publicam o livro Dias que já lá vão, uma obra que Luzia tinhacomeçado, mas que tinha deixado a meio. Não se consegue é compreender oporquê desta escolha das escritoras, pois Luzia tinha deixado Pelos Caminhosda vida, Jornal I, já pronto para ser editado, estava dactilografado e rigoro-samente corrigido. Porque nunca foi publicada a última obra em que Luziatanto empenho e esforço tinha colocado? Esta é uma questão a que não seconseguiu dar resposta, embora as leituras tenham apontado para o caraterinflamatório da obra, devido a serem satirizadas figuras de grande influênciae poder na sociedade da época.

As investigações levaram a que se concluísse que Luzia e Fernanda deCastro cultivaram uma amizade de longos anos. Na Fundação António Qua-dros podem encontrar-se 75 cartas escritas por Luzia a Fernanda de Castro,perfazendo mais de 350 páginas manuscritas. No entanto, nos dois volumesde memórias de Fernanda de Castro, nos quais se esperam encontrar refe-rências a Luzia, surgem apenas duas:

Como acontece a todas as pessoas que escrevem nos jornais, eu recebia bastan-tes vezes cartas de rapazes e de raparigas que frequentemente transformavamem versos os seus recalques, as suas frustrações, os seus anseios, devido em gerala uma vida provinciana, sem horizontes. Eu respondia sempre a encorajá-losnos seus primeiros voos, como outros – Branca de Gonta, Luzia, o conde de Sa-bugosa –, poucos anos antes me tinham encorajado a mim.49

Neste trecho, descobre-se o que já tinha sido sugerido no início deste tra-balho, sendo revelado por Fernanda de Castro que, antes de publicar os seustrabalhos, os enviava sempre primeiro a Luzia para ter a sua opinião, e que foiesta uma das pessoas que a incentivou a escrever. O segundo trecho referentea Luzia consta do volume II e pronuncia o seguinte:

48 Ibidem.49 Ao Fim da Memória (Memórias 1906-1939), vol. I, Lisboa, Verbo, 1986, p. 232.

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Pode a razão dizer-me: “Luísa morreu”, que o coração não acredita. A morte é odesaparecimento total, e, para mim, a morte da Luísa Grande é apenas ausên-cia. Vivia na Madeira desde o princípio da guerra – e as suas cartas traziam-meregularmente notícias do seu corpo martirizado, da sua alma inquieta, sensível,nostálgica. Tinha verdadeira angústia da morte e, embora às vezes a desejasse,por excesso de sofrimento, nunca ninguém me deu uma sensação de maior, demais profundo, mais violento amor à vida. Falava das coisas da Natureza, docéu, da cor de um crepúsculo, da chuva a bater nas vidraças, das pétalas mo-lhadas duma violeta. . . com uma compreensão que só encontrei em KatherineMansfield – com quem, aliás, tinha parecenças de irmã.Há pessoas que não deveriam nunca morrer, porque fazem falta à vida – e LuísaGrande fez-lhe falta, uma grande, imensa falta. Quem há de agora falar, porexemplo, do mistério das flores por abrir, dos pássaros por nascer, da água derocha, fina como um diamante, das árvores pesadas de folhas e de nevoeiro, dapenugem cor-de-rosa do amanhecer? Não, Luísa não morreu. Luísa Grandefez mais uma vez as malas e mais uma vez partiu. Para onde? Para um paíssecreto, misterioso, que é a pátria das almas, e onde um dia, levada pela mesmacorrente impetuosa do tempo, irei procurá-la para matar esta grande, dolo-rosa saudade, e mais uma vez, com ela, falar da vida, amar a vida, glorificar avida.50

Ainda mais curioso é que este trecho foi escrito em dezembro de 1945,quando Luzia morreu, e foi publicado no início de Dias que já lá vão, livro esteque saiu em 1946 na “Coleção Contemporâneos”, dirigida por António Ferro,e no qual Fernanda de Castro e Teresa Leitão de Barros dedicam algumas pa-lavras a Luzia. Este facto levanta a questão do porquê Luzia praticamente nãoaparecer nas “Memórias” de Fernanda de Castro.

Foram várias as personalidades que depois da morte de Luzia, a continua-ram a referenciar e elogiar nos anos seguintes. Visconde Porto da Cruz refereque, depois de Maria Amália Vaz de Carvalho, Luzia foi a Senhora que maisilustrou a Literatura feminina de Portugal: “Pelo seu imenso talento, pela suavastíssima cultura literária e pela elegância do seu estilo, foi uma das maioresEscritoras de Portugal”51.

Um interessante livrinho composto de recortes de notícias sobre Luzia,bem como alguns inéditos da mesma, e sem autor, foi encontrado na biblio-teca da Universidade da Madeira, e testemunha que, em 1956, por algum mo-

50 Ao Fim da Memória (Memórias 1906-1939), vol. II, Lisboa, Verbo, 1986, p. 49.51 Op. cit., p. 85.

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tivo que se desconhece, foi feita uma grande evocação a Luzia na imprensamadeirense, bem como na nacional.

Um dos artigos é considerado um texto inédito de Feliciano Soares, gran-de amigo de Luzia que acompanhou de perto a sua vida literária, e que já ti-nha falecido na data desta evocação à escritora. Neste artigo, Feliciano Soa-res refere que a obra de Luzia é Ela mesma: “Ela mesma a contar-nos a suainteligente, elegante Vagabundagem por terras e almas, por salões e jardinsrindo e chorando, talvez sofrendo sempre, mesmo quando sorria, enterne-cida, para uma paisagem doirada de sol, ou ria sem amargura nem desdém,antes com sincera indulgência, dos mil ridículos de que é feita a vida”52. Paraalém dos elogios à escritora e à sua obra, Feliciano Soares revela um acon-tecimento extremamente importante, e que demonstra o quanto Luzia eralida, reconhecida e apreciada na sua época: “É ainda digno de nota o factode que quando a Lisboa chegou a dolorosa notícia do falecimento de Luzia,as livrarias exporem nas suas montras, lado a lado, os livros de Eça e os deLuzia”53.

No mesmo artigo, faz também uma comparação entre a escrita de Luziae a de Eça de Queirós, expondo quais as diferenças e quais as semelhançasentre os dois. Para além disso, salienta o facto de como Luzia era apreciada eelogiada pelos grandes nomes da literatura portuguesa da época.

O fim deste artigo traz um apelo, que acaba por ser comum em todos oscorações que leram e apreciaram Luzia, mesmo na atualidade:

Se tivermos a honra do Sr. Presidente da Câmara do Funchal ler estas desvalio-sas notas, certo que, pela sua inteligência, pelo seu amor – de sobejo provado –ao desenvolvimento cultural de esta terra, há de sentir que a cidade não podedeixar de perpetuar a memória de Luzia, a Grande Dialogista e Epistológrafa,que na Madeira viveu uma parte da sua vida e aqui escreveu alguns dos seusmelhores livros. Não, não pode ser esquecido o seu Nome, a sua Vida, a suaObra.54

Também Horácio Bento Gouveia participa nesta evocação a Luzia, com-pondo elogios à escritora e explorando algumas das suas obras, salientando

52 Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.53 Ibidem.54 Ibidem.

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a inovação de umas e a analogia de outras com as de João do Rio, concluindoque:

A sua obra é reflexo de um espírito que repartiu o mundo em duas partes: emuma, a vida flui de fora para dentro, o humano se desvenda por um sétimo sen-tido, acerado, da psicóloga que mediu o pulsar das mínimas vibrações emotivasde seu semelhante; em outra, corre de dentro para fora, da memória para os sen-tidos: tudo é colorido daquele intimismo, saudosismo repassado de melancoliasem cura, o qual saudosismo é libertação de pesadelo, escape de um braseirode lume brando que só ficará reduzido a cinzas quando a morte puser termo àmatéria. [. . . ] Foi Luzia da estatura intelectual daquelas mulheres de espíritosuperior que, quando envelhecem e caminham para a morte, nunca chegam amorrer.55

Ricardo Nascimento Jardim, em dezembro de 1956, também contribuicom um artigo para a evocação de Luzia, artigo esse, anos mais tarde, ane-xado ao seu livro Fantasmas e Fantoches56, publicado em 1987, em que no fimabre um parêntese para transcrever as quase quatro páginas que redigiu emmemória de Luzia.

O escritor conta que em adolescente frequentava a casa de Luzia, pedin-do-lhe conselhos sobre um romance que andava a escrevinhar e que Luziaacalentara o seu desejo de ser escritor. Ricardo Nascimento Jardim refere aautora como uma grande escritora impossível de se esquecer: “Última Rosa deVerão há de ser colocado no plano dos melhores romances portugueses escri-tos por mão feminina. Nele se revela domínio absoluto da técnica e estruturade romance, a par de uma prosa maleável, elegante e sugestiva”57.

M. Amândio Rodrigues contribuiu para a evocação a Luzia com um longoartigo, traçando um perfil da sua obra, da sua vida, das suas qualidades de es-critora e lembrando que com a morte de Luzia “extinguiu-se um espírito deescritora notabilíssima onde avultavam, em conjunto impressionante, carac-terísticas de surpreendente capacidade intelectual”58.

A 10 de dezembro de 1956, Teresa Leitão de Barros, num artigo de jornalrefere que os “intelectuais do Funchal e a esclarecida imprensa madeirense

55 Idem.56 Fantoches e Fantasmas, Funchal, s.e., 1987.57 Idem, p. 164.58 Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.

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prestaram hoje homenagem à escritora que mais «declarações de amor» fezà Madeira”59, Luzia, e, nesse mesmo artigo, Teresa Leitão de Barros prestatambém homenagem a Luzia, traçando-lhe um breve percorrido biográfico,bem como uma exposição sobre as obras que escreveu, referindo que paraalém das obras publicadas, escreveu “outras obras, constituídas por simplesapanhados dos milhares de páginas – «Correspondência» e «Jornal» – que iaescrevendo sempre que o sofrimento lhe concedia horas de tréguas”60.

Ainda no mesmo artigo, bastante extenso, conta peripécias da amizadetravada com Luzia, referindo que:

Como derradeira prova de afeição e confiança, Luzia deixou-me a propriedadeliterária das suas obras e os seus manuscritos inéditos. Espero que graças a estes– e publicando apenas uma pequena parte do muito que preciosamente guardo– ainda apresentarei mais um testemunho de que Luzia foi, na verdade, umaescritora “ímpar” em nossa assembleia magna de poetisas [. . . ] O seu encontrocom as letras não foi um “béguin” de senhora de sociedade, ociosa e fútil – comoalguns, ou sobretudo “algumas” quiseram fazer crer – mas uma afirmação dereal valor, que a sua obra póstuma só virá confirmar.61

José Martins dos Santos Conde refere também, no seu livro, um artigo deTeresa Leitão de Barros, publicado no Diário de Lisboa, a 10 de dezembro de1956, em que a jornalista menciona, tal como no artigo de jornal anterior, quenão sabe bem que aspeto revestiram, no Funchal, as comemorações de maisum aniversário da morte de Luzia. E ao longo do artigo conta algumas dasperipécias que viveu com Luzia, referindo mais uma vez a posse dos inéditosda escritora: “As suas obras inéditas, em meu poder – última e desvanecedoraprova de confiança que lhe fiquei devendo [. . . ]”62.

Infelizmente, Teresa Leitão de Barros, munida de tão preciosos docu-mentos de Luzia, nada mais publicou, deixando que a amiga caísse no es-quecimento nacional, apesar de a escritora lhe ter confiado e dado tanto.

Também o Diário Popular, a 13 de dezembro de 1956, lembra a morte deLuzia, onze anos antes, com um pequeno artigo que entre outras coisas, re-fere a fina sensibilidade de Luzia, comentando que “sob a forma da ironia

59 Artigo de jornal escrito por Teresa Leitão de Barros, em 10 de dezembro de 1956, fotocópiacedida por Conceição Saporiti (prima de Luísa Grande) sem referência ao nome do jornal.

60 Ibidem.61 Ibidem.62 Luzia, o Eça de Queiroz de Saias, Portalegre, Edição de autor, 1990, p. 93.

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suave e despretensiosa escondia-se um espírito compassivo, atento às doresdo mundo e às ansiedades do coração”63.

O Diário de Notícias de 13 de dezembro de 195664 faz uma homenagem aLuzia, com um artigo de Augusto de Castro em que este começa por referiro fulgor do olhar de Luzia, descrevendo uma visita que lhe fez “na sua lindacasa do Funchal”. Expõe que, nessa visita, num período em que a escritoraainda convalescia de uma doença que a deixara quase moribunda, Luzia lhediz que lhe escreveu uma grande carta, pois queria fazer-lhe umas recomen-dações. Mas, como estava melhor, ficava para outra vez, quando fosse a úl-tima. Augusto de Castro refere que Luzia morre pouco tempo depois, e quenunca chegou a receber “a carta que ela provavelmente rasgou e que deveriaser qualquer coisa como o seu testamento literário”. Augusto de Castro teceainda elogios a Luzia, à sua personalidade, sensibilidade e qualidades literá-rias, contando as suas viagens por Itália e França, e referindo que “Luzia era,ela própria, um salão literário”, deixando impresso no artigo o receio: “que asnovas gerações não compreendam muito esse lento e subtil jeito de vaguearsobre as ideias e as pessoas, os sentimentos, a arte e a vida que era a grandevocação dessa viajante literária que foi Luzia”65.

Em 1957, a Revista de Cultura da Sociedade de Concertos da Madeira, publicatrês inéditos de Luzia, mencionando:

Na passagem de mais um aniversário da morte [. . . ] de “Luzia”, a imprensado país prestou unanimemente homenagem à sua memória, pondo em justo emerecido relevo essa aliciante figura de mulher e de intelectual.Os principais jornais e revistas portugueses publicaram então estudos firma-dos por nomes largamente acreditados nas letras nacionais. A personalidadede Luzia, espiritualmente alta, inconfundível, foi vista sob múltiplos aspetos,sobremodo como mulher de letras – conquanto nunca lhe tivesse agradado estadesignação específica, posto que escrevia por necessidade de comunicação, numespontâneo movimento interior de desabafo e de compreensão, o que emprestaparticularmente à sua obra o carácter epistolar, tão vivo, rico e expressivo.66

Conde apresenta também um artigo de Maria do Carmo Rodrigues, queapareceu no Diário Ilustrado, a 2 de fevereiro de 1957, artigo este que tece largos

63 Diário Popular, 13.12.1956.64 Diário de Notícias, 13.12.1956.65 Ibidem.66 “Três Inéditos de Luzia”, op. cit., p. 12.

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elogios à alma e à obra de Luzia do qual se apresenta apenas um pequeníssimoexcerto:

Ninguém melhor do que Luzia falou do céu, dos crepúsculos, dos si-lêncios do Hameau, do cantar do rouxinol. . . no canto do jardim. Ver-dadeira artista na arte de ouvir vozes. Mais do que literatura, há vozesnos seus livros. Tão espontaneamente transpostas que temos a impres-são de assistir a um espetáculo onde se movimentam figuras tão vivase humanas, que logo as ficamos conhecendo por dentro”67.

A 9 de agosto de 1973, o Diário de Notícias publica um artigo sobre Luzia,referindo-se à iniciativa da Câmara Municipal de Portalegre de dar o nomede Luzia à principal avenida do novo bairro de S. Bernardo. Para além disso,neste mesmo artigo, há a referência aos seus inéditos, referindo que a es-critora nunca gostou que lhe chamassem “mulher de letras”, “não obstanteter publicado uma dezena de obras e deixado, inéditas, centenas de páginasde um curiosíssimo «Diário» e de «Correspondência», à altura das melhoresque escreveu, mas à espera de editor”. É referido também que Teresa Leitãode Barros é a guardiã dos imensos inéditos, e sendo companheira de trabalhode quem escreve o artigo, pôs à disposição deste os papéis, dos quais ambosescolhem ao acaso um apontamento datado de março de 1910, no qual Lu-zia se mostra entristecida com tudo o que a primavera promete “e vem-me oterror da estação amorosamente linda que começa, que promete mil coisas eacorda mil coisas, esperanças, saudades. . . ”68.

A 22 de maio de 1974, Irene Gil escreve sobre Luzia no Notícias de LourençoMarques, terminando o artigo da seguinte forma:

Nascida no último quarto do século passado em Portalegre, foi em 1945 que parasempre os olhos se lhe fecharam no Funchal, cidade que muito amava. Conhe-cida e admirada pelos seus contemporâneos julgo que, talvez por não ter tidofilhos que por isso velassem, as edições dos seus livros se foram pouco a poucoesgotando, e difícil será hoje encontra-los. Mas a sua recordação perdurará nosleitores para quem a sua prosa foi fonte de perene encantamento – aqueles ami-

67 Maria do Carmo Rodrigues, apud José Martins dos Santos Conde, Luzia, o Eça de Queirozde Saias, Portalegre, Edição de autor, 1990, pp. 98-99.

68 Diário de Notícias, 09.08.1973, fotocópia de artigo cedida por Conceição Saporiti (prima deLuísa Grande) sem referência ao nome do autor do artigo.

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gos desconhecidos de quem – e com quanta verdade! – ela dizia serem os quemelhor nos conhecem.69

Em 1981, Luísa F. Lopes da Silva escreve que Luzia tem “no mundo das le-tras um lugar de destaque; um lugar estável, donde jamais sairá, e cujo acessotão difícil se torna a qualquer mortal. Se Luzia não teve um lar fixo, teve, edisso não resta dúvida, uma obra admirável a rodeá-la, e que o tempo jamaisdestruirá”70.

Como se pode observar ao longo destes trechos, são várias as referênciasfeitas a inéditos e à obra que Luzia deixou pronta para publicação, mas queficou até aos dias de hoje resguardado pelas sombras. Ricardo NascimentoJardim refere: “O sopro de alento que lhe restava, permitiu-lhe escrever aindaoutro livro que infelizmente nunca chegou a ser publicado”71. Também noRegisto Bio-Bibliográfico de Madeirenses é feita uma referência a este inédito:“Tinha em preparação o livro «Pelos Caminhos da Vida»”72.

Esta obra tantas vezes referida acabou por perder-se mesmo pelos cami-nhos da vida, bem como todas as obras da autora, que acabaram por cair noesquecimento nacional, sendo a autora apenas relembrada e conhecida pormuito poucos.

No seu livro, José Martins dos Santos Conde menciona que “Luzia foi umapena brilhante, de projeção nacional e mesmo europeia, e uma artista de sen-sibilidade profunda e vibrátil. Sem dúvida, ela deve ocupar um dos primeirolugares no panorama da literatura feminina portuguesa”73.

O estudo desta autora e da sua obra consolida essa ideia. Reconhecida eelogiada pela sociedade da sua época, continua a ser tida como uma excelenteescritora por quem a conheceu mesmo depois da morte, até cair nas teias doesquecimento quando os que conviveram com ela ou se interessaram pelaautora acabaram por falecer.

69 Irene Gil, apud, José Martins dos Santos Conde, Luzia, o Eça de Queiroz de Saias, Portalegre,Edição de autor, 1990, p. 102.

70 Roteiro e subsídios para a história da cidade de Portalegre, Portalegre, s.e., 1981, p. 95.71 Ricardo Nascimento Jardim, op. cit., p. 165.72 Op. cit., p. 251.73 Op. cit., p. 132.

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CONCLUSÃO

Luzia, uma alma sensível, errante e vagabunda por entre as multidões. Almade poeta, cheia de sonhos, ilusões e paixões que a vida foi desgastando.

Luísa e Luzia dois nomes que se fundem. Vida e obra, realidade e ficçãoentrelaçam-se para contar uma história, para dar a conhecer o verdadeiro“eu” da fada, mulher e escritora. O encontro consigo mesma foi o que Lu-zia procurou toda a sua vida, experimentando-se, estranhando-se, vagabun-dando.

Vivia deslocada do seu meio, do seu reino alado, rodeada de gentes e mo-dos que não compreendia, que não se ligavam ao seu sentir, e a amargura-vam, obrigando-a a usar máscaras, com as quais muitas vezes se enganava asi própria, fazendo uso da irreverência, do riso, e da ironia como forma de seproteger do ambiente árido em que achava que vivia:

Continuo triste e estranha, embora todos me achem alegre, divertida, comosempre tive fama de ser e, na engrenagem dos “bridges”, jantares e chás emque, sem saber como, já me sinto metida, o meu riso canta tão alto, tão sonoroque, às vezes, a mim própria engana. Mas o engano não dura. Rio por orgulho,talvez que também por um resto de “coquetterie”. Toda a mulher consciente ouinconscientemente é “coquette” até morrer. Sei que o riso me rejuvenesce. É omeu “maquillage”. . .Quando ao voltar a casa, tiro a máscara, tenho vontade de chorar. . . 74

Por detrás de todas as imagens que cria, da sua multiplicidade, a escri-tora é um ser essencialmente romântico, já que dentro do seu ser é o senti-mento romântico que prevalece, roçando frequentemente uma tendência de-cadentista. Um ser romântico que habita numa época de tendências realistas

74 Apud Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal.

110 Cláudia Sofia Silva Neves

e que tem de lidar com o mundo de máscaras no qual vive, com a dualidade doser/parecer, adotando na sua análise da sociedade uma lente irónica e crítica,queirosiana. Luzia movia-se num meio em que prevaleciam as aparências, etantas vezes teve de usar máscaras para se adaptar ao meio, queixando-se dadificuldade em saber qual o seu verdadeiro “eu”.

O reino encantado (desde a infância, que as fadas e a natureza lhe servi-ram como uma proteção em relação ao mundo exterior) e o seu sentido críticoem relação à sociedade, serviam-lhe de refúgio, eram locais onde o seu “eu”ainda se matinha íntegro.

Esta investigação pretendeu dar a conhecer quem foi Luzia, quais as cir-cunstâncias marcantes da sua vida, como se relacionava e via o seu meio apartir do ser delicado que era, tanto na sua constituição física e indumentá-ria, como nas suas atitudes e formas de se relacionar com os demais.

Até os amigos que com ela conviviam, a consideravam um ser alado. Au-gusto de Castro escreve num artigo de jornal: “Passaram onze anos sobre odesaparecimento desse admirável e frágil espírito – tão forte, tão aladamentefrágil! – que viveu de ramo em ramo, de árvore em árvore, de jardim em jar-dim, espalhando convívio, amizade, «rosas de verão» e talento, num bater deasas douradas e inquietas”75.

Percebe-se através deste estudo de que forma a vivência de Luzia e a suabusca do “eu” marcaram a estrutura da sua obra literária, pois este processode experiência/conhecimento é o verdadeiro sujeito/objeto da sua produçãoestética.

As várias referências à morte do pai, pessoa que mais adorou em toda asua vida, pontuam as obras da autora, pois foi a partir deste sentimento deperda que Luzia iniciou a sua eterna busca do “eu”, explorando temáticas re-correntes em toda a obra, como a saudade, as sombras e a sensação de estra-nheza em relação aos outros e ao mundo.

A desilusão e sofrimento vividos com o casamento e posterior divórcioquase fizeram Luzia perder o contacto com a própria realidade, tal foi a es-curidão em que mergulhou e que expressa nos seus textos. Foi a sua ligaçãoà natureza e aos reinos mágicos que construíra e privilegiara na infância aque recorreu mais uma vez, permitindo-lhe o distanciamento de uma situa-ção que a assustava, a permanência na loucura. O seu reino mágico é um

75 Diário de Notícias, 13.12.1956.

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reino de amor, o reino no qual a escritora volta atrás no tempo e volta a serela mesma, cheia de sonhos, ilusões, paixão e amor.

Para além do contacto com o reino alado, outra tábua de salvação para Lu-zia foi a leitura, paixão e paraíso de Luzia desde tenra idade, no qual a escri-tora se refugiava de tudo o que lhe fazia mal e que teve também uma grandeinfluência na sua escrita.

Através da análise da vida de Luzia, das suas cartas, papéis íntimos e dosseus livros, conclui-se que a obra revela toda a sua vida, embora muitos dosnomes, acontecimentos e factos fossem, quase sempre, trabalhados literaria-mente, ficcionalmente. As cartas, diários e blocos de notas foram a matéria--prima da sua obra. A forma como compilou, organizou e reescreveu, trans-formando em quadros vivos tudo o que descrevia, dá ao leitor vontade deexperimentar e visualizar cada paisagem, sem nunca se apressar, demons-trando a escritora de excelência que foi Luzia, que criou uma obra em que oseu todo é maior que a soma das suas partes.

Os grandes nomes da literatura da época, as personalidades ilustres ad-miravam e teciam considerações elogiosas a Luzia e à sua obra.

O seu nome, como se pode observar com o decorrer desta investigação,andava lado a lado com os nomes que hoje reconhecemos como relevantespara a história da literatura portuguesa, sendo unanimemente consideradauma mulher de letras, admirada por todos, e que deixou um traço de origina-lidade na sua época.

Escreveu e assumiu-se como mulher, sem se esconder atrás de uma vozinformal ou masculina. Este é o seu fator distintivo no contexto nacional,numa época em que muitas mulheres escreviam, mas dedicando-se comu-mente à pedagogia, literatura infantil, ou tentando imitar o estilo de escritamasculino.

Mesmo depois da sua morte, Luzia continuou a ser referenciada e elogia-da, existindo um consenso comum, entre as personalidades da época, emconsiderar Luzia como uma das maiores escritoras portuguesas, existindoa convicção de que Luzia tinha criado uma obra que jamais seria destruídacom o passar do tempo. Como é possível, então, que uma escritora que teveos seus livros expostos nas montras das livrarias, lado a lado com os de Eçade Queirós, continue a ser ignorada no panorama literário português?

Com esta investigação foi possível trazer à atualidade a memória de umaescritora, que, como se pode ver, caiu injustamente no esquecimento. A in-

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vestigação demonstrou a riqueza dos seus textos literários, as múltiplas face-tas dignas de uma continuação de estudos sobre a obra da autora. Contudo,no decorrer da investigação não se chegou a nenhuma conclusão irrefutávelsobre a causa do esquecimento de Luzia. Apenas se pode avançar com supo-sições sobre algumas das causas. O facto de não ter tido filhos que zelassempela sua obra é uma delas. Crê-se também que a obra de Luzia, especialmenteos seus inéditos, desagradariam pelo conteúdo a muita gente de poder na so-ciedade de então, e possivelmente também à família, uma vez que Luzia dei-xou os seus papéis a duas amigas distintas, e não a um membro da família epede também, em testamento, para ser sepultada no jazigo da prima, D. Anade Ornelas Cisneiros Gubian, em detrimento do jazigo do avô Nuno de Frei-tas Lomelino.

Apesar de todo o empenho e esforço concedido a esta investigação, mui-tas questões ficaram por responder, deixando em aberto caminhos para fu-turas pesquisas, que não caberiam no teor deste livro.

A obra e a vida de Luzia merecem ser investigadas e analisadas, pois osseus textos possuem riqueza e relevância para a cultura e literatura portu-guesa. Das descrições do meio ambiente e social da Madeira, ao relato sobreo meio social português de início do século XX, passando pela descrição demomentos históricos nacionais e mundiais de extrema importância, Luziafoi testemunha do seu tempo, de forma crítica e bem-humorada, retratandoo mundo que a rodeava.

Luzia merece uma detalhada e profunda análise literária, que a coloquede novo como uma das melhores escritoras de Portugal e que a resgate para opanorama literário atual, reconhecendo-lhe o valor e o traço de originalidadecom que marcou a sua época.

Luzia, mulher e escritora, desde muito jovem percebeu a efemeridade davida, mas usou a escrita para fixar as nuances efémeras da existência, denun-ciando, sonhando, rindo e chorando, vagabundando pela sociedade e pelaalma humana.

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BIBLIOGRAFIA

Obras de Luzia:

“A lenda das estrelas” in Correio da Manhã, 08.01.1894.

Os que se divertem, A comédia da vida, 1a edição, Lisboa, s.e., 1920.

Os que se divertem, A comédia da vida, 2a edição, Lisboa, Guimarães & C.a,s.d.

Os que se divertem, A comédia da vida, 3a edição aumentada e com ilustraçõesde Bernardo Marques, Lisboa, s.e., 1929.

Rindo e Chorando, Lisboa, Portugália, 1922.

Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, Portugália, 1923.

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Periódicos, documentos de arquivo e outros:

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Cartas de José Martins dos Santos Conde a José de Sainz-Trueva, relativasa Luzia, espólio de José de Sainz-Trueva, Arquivo Regional da Madeira.

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Diário de Notícias de 09.08.1973 (fotocópia de artigo cedida por ConceiçãoSaporiti, prima de Luísa Grande, sem referência ao nome do autor do artigo).

Diário Popular, 13.12.1956.

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Evocação de Luzia, no 11o aniversário da sua morte, Funchal, s.e., s.d.

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LEITE, Fausto Correia, Lados da Vida, Antena 1, 8 de junho de 1988 (peçaradiofónica).

Madeira na Escrita, entrevista realizada a Martina Emonts, relativa a Lu-zia, emitida em 28 de outubro de 2007, Funchal, RTP Madeira.

Manuscrito de Luísa Grande ao seu parente Rui Bettencurt da Câmara,espólio de José de Sainz-Trueva, Arquivo Regional da Madeira.

Postal escrito a Luísa Grande, espólio de José de Sainz-Trueva, ArquivoRegional da Madeira.

Registo de batismo de Ana Luísa (irmã de Luísa Grande), Arquivo Regio-nal da Madeira, livro 1372.

Registo de batismo de Luísa Grande, Arquivo Distrital de Portalegre.

Registo de casamento de Luísa Grande de Freitas Lomelino e FranciscoJoão de Vasconcelos Couto Cardoso, Livro 6814 A, Arquivo Regional da Ma-deira.

Registo de óbito de Luísa Grande, no 1569, Arquivo Regional da Madeira.

Registo de óbito de Luísa Lomelino Dias Grande (mãe de Luísa Grande),Arquivo Distrital de Portalegre.

Registo passaporte de Luísa Grande, Passaporte no 613, Arquivo Regionalda Madeira.

Registo de passaporte de Francisco João de Vasconcelos Couto Cardoso(marido de Luísa Grande), Passaporte no 8, Arquivo Regional da Madeira.

Registo de Passaporte de Rosa Cascão (empregada pessoal de Luísa Gran-de), Passaporte no 614, Arquivo Regional da Madeira.

Testamento de Luísa Grande, Arquivo Regional da Madeira.

Documentos eletrónicos:

CASTANHO, Joaquim, Um ponto de vista. . . , consultado em 20 de junho de2012 através de <http://escribalistas.blogspot.pt>.

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ANEXOS

Anexo 1 – Estrangeirismos presentes na obra Os que se di-vertem, A comédia da vida, 2oedição

Abat-jour, fr. Quebra-luz. “Acendem-se as luzes, veladas por discretosabat-jours.” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 18).

All right, ingl. Tudo certo, muito bem, isso mesmo, de acordo. “All right.Às 4 horas.” (“Em casa da Bruxa”, p. 115).

Almées, fr. Mulher Indiana cuja profissão é improvisar versos, cantar edançar em festas, acompanhada de flautas e címbalos. “– Ou como as alméesnos romances de Loti. . . ” (“As conquistas de João”, p. 91).

Ancient regime, fr. Antigo Régimen; antiga ordem das coisas; inicial-mente; o estado social e político da França até à Revolução (1789); a antigamonarquia dos Bourbons. “Pousa para o género respeitável, ancient regime.”(“Chá de novas ricas”, p. 159).

Appartement, fr. Já adaptado em apartamento: instalação composta devárias divisões; aposento, quarto, residência. “S. Ex.as tomaram um apparte-ment de príncipes no Hotel Meurice. . . ” (“Duelo”, p. 63).

At home, ingl. Em casa, no lar. “Madre Paula nos Alamos, fica at home,quase como em Odivelas.” (“As cartas de Clara”, p. 155).

Baccarat, fr. Jogo de cartas. “Por causa do baccarat? Houve outra vezrombo nas finanças?” (“Mariquinhas tem ciúmes. . . ”, p. 77).

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Bahuts, fr. Caixa de madeira. “Os preciosos bahuts da tia Duquesa revol-vidos de cima a baixo.” (“Boatos”, p. 100).

Bandós, fr. Cada parte do cabelo que, em certo penteado feminino, as-senta de cada lado da testa “– Farto-me de repetir-lhe isso todos os dias. Jálhe aconselhei que use bandós. . . ” (“A educação de Mariquinhas”, p. 70).

Barrette, fr. Barrinha; alfinete de segurança. “Põe-se-lhe uma barrette,madame Santos, não lhe dê cuidado.” (“Na loja dos chapéus”, p. 21).

Béguin, fr. Paixão amorosa passageira; pessoa que é objeto dessa paixão;gosto especial por qualquer coisa. “Mariquinhas ainda te há de inspirar umbéguin.” (“Paulo vai casar”, p. 44).

Béret, fr. Boina. “D. Rosalina, a vendeuse magra, pasmava para nós, comum béret vermelho na mão.” (“Na loja dos chapéus”, p. 23).

Bibliothèque Rose, fr. Coleção de livros para crianças. “Era tudo o quepode haver de mais secante, em género Bibliothèque Rose.” (“As cartas deClara”, p. 149).

Bijou, fr. Joia, mimo. Usa-se em português em sentido figurativo: “bele-zinha”. “o ranchinho passou logo a discutir a grande amiga da Sr.a Viscon-dessa, essa secretária da Rússia, para uns, estranho bijou de mulher, com osseus olhos garços e o seu cabelo loiro, para outros implicativa boneca, pin-tada, estofada, pretensiosa e estúpida.” (“Uma escrava do chic”, p. 41).

Blasé, fr. Enfastiado, farto; que tem os sentidos amolecidos pelos exces-sos; que fica indiferente perante o que lhe diz respeito. “MARIA DA LUZ (iró-nica) – Blasé? PAULO (sombrio) – Farto até aos olhos. . . ” (“Mariquinhas temciúmes. . . ”, p. 77).

Bluff, ingl. Burla, engano, logro. “Uma maçada, filha! Joguei o bluff emcasa da Mariana, que toda a noite descompôs os parceiros. Perdia cinco milreis.” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 10).

Bon gré mal gré, fr. Quer queira quer não. “No meu terror doentio da mul-tidão, fui a última a subir e como me demorasse um pouco, atrapalhada como regalo, o chapéu-de-chuva e a capa de peles que Antónia, bom gré mal gré,me pendurara no braço, o condutor berrou furioso.” (“No elétrico d’Algés”, p.133).

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Bonbon, fr. Confeito para ser trincado ou chupado. “Recebi ontem demanhã os bonbons, à noite os cigarros, esta manhã as orquídeas, os cravos.”(“Mariquinhas tem ciúmes. . . ”, p. 80).

Bonnet, fr. Gorro. “Dois rapazes passaram de bonnet sobre os olhos, cal-ças estreitas de fadistas, gravatas vermelhas, e disseram alto muito provo-cantes [. . . ].” (“Boatos”, p. 98).

Bouquet, fr. Ramalhete; aroma do vinho. “Quinta do Duque, um bouquetlindo de árvores, com as folhas doiradas, debruçava-se do muro.” (“No elé-trico d’Algés”, p. 139).

Boutade, fr. Dito espirituoso. “MARQUEZA (atalhando vivamente; temo terror das boutades de Pedro) – Contem-me vocês, toda essa reinação. . . ”(“Velhas”, p. 202).

Bric-à-brac, fr. Amontoado de objetos desusados para venda, estabeleci-mento de antiquário. “No indicador uma esmeralda monstro, que pertenceua Nero (comprou-a ontem no bric-à-brac da rua do Alecrim).” (“Chá de novasricas”, p. 160).

Bridge, ingl. Tipo de placa dentária; jogo de cartas derivado do whist, pra-ticado por quatro elementos, dois contra dois, com baralho de 52 cartas. “Sóanteontem no bridge da Joana, ela deu um arzinho da sua graça, começou adomesticar-se. . . ” (“As conquistas de João”, p. 18).

Buffet, fr. É uma forma de servir comida a uma grande quantidade depessoas. De maneira geral a comida é exposta em uma ou mais mesas paraque o consumidor se sirva sozinho em uma ou mais passagens. “Depois, nummovimento brusco, levantou-se, enfiou-lhe o braço, pediu-lhe que a levasseao buffet. Tinha uma destas fomes!” (“As conquistas de João”, p. 88).

Canaille, fr. Pessoa desonesta, sem moral. “O tango divertia-a, achavapândego, canaille, tinha pilhéria, lembrava coisas . . . ” (“As conquistas deJoão”, p. 89).

Canotier, fr. Tipo de chapéu de palha para homem. “Mariquinhas San-tos, que é amarela e magríssima, desaparecia sobre um enorme canotier ondeuma grande pomba abria as asas inquietas.” (“Na loja dos chapéus”, p. 21).

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Capeline, fr. Tipo de chapéu para senhoras. “enquanto Mariquinhas, cadavez mais triste e mais amarela, tornava a desaparecer, sob as asas duma ca-peline enorme, onde uma vistosa galinha da Índia, se agachava como parachocar os ovos.” (“Na loja dos chapéus”, p. 22).

Carnet, fr. Caderno, pequeno livro de notas. “Toma aspirina. Consulta oseu carnet.” (“Uma escrava do chic”, p. 33).

Chaise longue, fr. Canapé com encosto só numa das extremidades. “Souapenas um corpo preguiçoso que vou estender na chaise longue da minha va-randa, e uns olhos ávidos, encantados que vão beber toda a beleza da terra. . . ”(“As cartas de Clara”, p. 151).

Champagne, fr. Do top. Champagne, região de França. Já aportuguesado:champanhe. “Não há como o Champagne para dar ideias alegres.” (“As con-quistas de João”, p. 88).

Chauffeur, fr. Já aportuguesado em chofer, com sinónimo motorista. “ASr.a D. Teresa seguiu há bocado para lá, mas por precaução, levava um mari-nheiro ao lado do chauffeur.” (“Boatos”, p. 95).

Chef d’oeuvre, fr. Obra-prima. “Mas a carta do poeta, aliás bem escrita. . .Oh! um pequeno chef d’oeuvre, em que se reúne os seus dois géneros – nebu-loso e para gente conhecida – põe-na fora de si.” (“Uma escrava do chic”, p.35).

Chic, fr. Já aportuguesado: chique. “Paulo, ultra distinto. Ultra chic. Agoraé que os seus olhos cortam como aço. . . ” (“A educação de mariquinhas”, p. 69).

Chiffons, fr. Trapo; tecido. “A gordíssima Lady Stanhope, envolta emvéus, em écharpes, em chiffons, fingia de magra, como sempre.” (“As cartasde Clara”, p. 147).

Cloche, fr. Sino. Tipo de chapéu de senhora. “Aproximava-se a hora dochá. Tirei o meu cloche.” (“Na loja dos chapéus”, p. 29).

Cocotte, fr. Mundana, mulher galante. “Oh! Paris, Paris, chás do Ritzentre elegantes diplomatas, ceias na Abbaye, entre bonitas cocottes. . . e todas,diplomatas e cocottes, doidas, perdidas de amor por ele!” (“As conquistas deJoão”, p. 86).

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Coquetterie, fr. Elegância, graciosidade, galanteria, garridice. “Ah! Ma-ria da Luz, receio que desta vez a tua desalmada, cruel coquetterie tenha con-sequências funestas.” (“Mariquinhas tem ciúmes. . . ”, p. 81).

Coup de foudre, fr. Acontecimento súbito; paixão à primeira vista; maisraro, desgraça repentina. “Foi o coup de foudre!” (“Paulo vai casar”, p. 48).

Crochet, fr. Trabalho de malha ou renda, feito com agulha especial; adap-tado: croché. “Faziam-se preparativos. Levava-se merenda e crochet.” (“Noelétrico d’Algés”, p. 135).

Croquette, fr. Pastel cilíndrico de batata com recheio de peixe ou carne.“Pediu croquettes, depois aquela salada de frutas que rescendia a ananás.” (“Asconquistas de João”, p. 89).

Dandy, ingl. Janota, peralta. “Na porta da Havaneza postavam-se irre-preensíveis, tão antigos alguns e parecendo novinhos em folha, os dandiesque lá tínhamos deixado no princípio do verão. . . ” (“No Chiado”, p. 127).

Darling, ingl. Querido, querida. “Darling. (noutro tom) Está claro ela foilogo ao dicionário. . . ” (“Mariquinhas tem ciúmes”. . . , p. 80).

Démodé, fr. Fora de moda, desusado, antiquado. “Mrs. Hill tinha umvestido de veludo, um pouco démodé, que lhe acentuava aquele seu lindo arde figura de leque antigo.” (“As Cartas de Clara”, p. 146).

Diseur, fr. Declamador, recitador. “Dois dias depois, no Palacete da Lapa,diante da mais seleta assistência, Julinho de Paiva, o nosso incomparável di-seur, recitava com ênfase dirigindo-se ora para o lado de Teresa, ora para olado de Joana.” (“Intrigas. . . ”, p. 112).

Drapé, fr. Emprega-se com tecido arranjado de maneira que fique ondu-lado, espesso, estofado. “viera provar um tea gown de veludo cor de cravo eresolvera encomendar mais seis vestidos que, já se vê, eram drapés como astúnicas gregas, sobre o seu corpo perfeito d’estatua.” (“Boatos”, p. 93).

Écharpe, fr. Faixa de tecido; banda. “A gordíssima Lady Stanhope, envoltaem véus, em écharpes, em chiffons, fingia de magra, como sempre.” (“As cartasde Clara”, p. 147).

Éclair, fr. Relâmpago; fecho de correr (por causa da rapidez com que fun-ciona); bolo recheado com creme. “Um éclaire, Sr. Girassol?” (“Crianças”, p.180).

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Édredon, fr. Coberta de cama muito leve. “É a forte tentação, a almofadade penas, com a sua fronha de Bretanha finíssima – um tamanho de luxo delingerie! – o quente édredon, segredando-lhe mil coisas frementes e doidas. . . ”(“Uma escrava do chic”, p. 31).

Égayer, fr. Alegrar. “Detalharam minuciosamente todos os recantos maisíntimos daquele saboroso escândalo de gente conhecida, que viera, com asprimeiras rosas e as primeiras andorinhas, égayer a nova primavera.” (“Umaescrava do chic”, p. 39).

Fauteuil, fr. Cadeira com costas e braços. “Uma sala verde musgo. Con-forto inglês. Fauteuils Maple. Muitas plantas, muitas flores, etc., etc. . . . ” (“Atal pessoa que eu cá sei. . . ”, p. 215).

Filoselle, fr. Bucha separada da seda fina durante a fiagem dos casulos;fio de seda têxtil antes de ser tingido. “Pedimos filoselles. Os filoselles para acélebre colcha, género antigo, que ando a planear há um ano, sem conseguirdecidir-me pelas cores.” (“No Chiado”, p. 131).

Five o’ clock (tea), ingl. Chá das cinco horas. “E, sem nos apressarmos,desfiando as mil pequeninas futilidades que nos interessam, lá fomos a ca-minho da Garret, onde, cada tarde, das seis para as sete, a Lisboa, que temautomóvel e pérolas, paródia com chá morno e bolos d’ovos, o íntimo, o in-comparável five o’ clock tea.” (“No Chiado”, p. 132)

Flirt, ingl. Ato de flirter; brincadeira, partida galanteio, namoro, namo-rada. “E há três anos o flirt escandaloso com a secretária da América, aquelalambisgoia loira, que usava sempre um grande chapéu de plumas. . . ” (“Due-lo”, p. 66).

Fox-terrier, ingl. Tipo de cães de origem inglesa. “Passeiam nas ruasinhasdo jardim. Segue-os Joy, a cadelinha fox-terrier.” (“Gracinha faz as honras”, p.193).

Front, fr. Frente (de combate); linha de combate. “Tanta miséria que vaipor esse mundo, disse Clementina, com uma sombra de tristeza nos olhosbons, e nós a pensarmos em chapéus! O que o Carlos conta do front é horrí-vel. . . ” (“Na loja dos chapéus”, p. 26).

Frou-frou, fr. Delicado ruído de vestuário feminino. “E o visconde quenesta reunião de mulheres elegantes, entre o frou-frou de tantas saias, o per-

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fume de tantos lenços, vai tomando um ar cada vez mais idiota e mais feliz[. . . ]” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 14).

Gaffe, fr. Inépcia, negligência, deslize, lapso. “Percebe que fez uma gaffe,levanta-se um pouco embaraçado, vai até à janela.” (“Porque eles voltam”, p.56).

Galantine, fr. Carne picada e cozida. “Descobrira uma galantine que pa-recia deliciosa, quis prova-la declarou-a digna dos deuses: – Certamente noOlimpo não se comia melhor.” (“As conquistas de João”, p. 88).

Gauche, fr. Esquerdo, o lado esquerdo; acanhado, deslocado, desproposi-tado; desajeitado, sem maneiras. “Entra Anita, uma radiosa rapariga de vinteanos. A frescura das primeiras rosas da primavera. Tímida. Um pouco gau-che. Cora a cada instante.” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 10).

Gavotte, fr. Antiga dança francesa. “Num leque aberto esboça-se, gentil,maneiroso, um passo de gavotte. . . ” (“Velhas”, p. 201).

Habitué, fr. Habitual frequentador (de lugar ou instituição); visitante re-gular, freguês. “Pedro então afirmou que realmente os habitués da Brasileira– gente tão distinta! – tinham travado uma verdadeira batalha, ninguém sa-bia bem porquê.” (“Boatos”, p. 99).

High-life, ingl. Alta vida, alta-roda, a alta sociedade. “As frágeis Princesasde Lamballe, as maliciosas Margaridas de Navarra, etc., etc., voltaram a seras interessantes senhoras do nosso hight-life, que vão todas as tardes ao cháda caridade, envolvidas em peles ricas [. . . ]” (“Velhas”, p. 207).

Home, ingl. O lar, a Pátria. “Sente-se em tudo a elegância, o delicado ar-ranjo de um home perfeito.” (“Duelo”, p. 67).

Khédive, fr. Príncipe, senhor; título de antigos governadores do Egipto.“Matilde precisava um frasco de Tília e eu aquele delicioso Amber, que dá aosmeus khedives um saborsinho oriental.” (“No Chiado”, p. 132).

Lady, ingl. Título dos pares britânicos usado antes do seu nome patroní-mico. “Lady Stanhope, após numerosas e infrutíferas tentativas de sedução,junto do desdenhoso Hill, resignara-se a falar da season, em Londres comMrs. Birch.” (“As cartas de Clara”, p. 148).

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Lingerie, fr. Conjunto das peças de roupa interior, sobretudo de senhora.“É a forte tentação, a almofada de penas, com a sua fronha de Bretanha finís-sima – um tamanho de luxo de lingerie! – o quente édredon, segredando-lhemil coisas frementes e doidas. . . ” (“Uma escrava do chic”, p. 31).

Lorgnon, fr. Pequeno instrumento de ótico com cabo. “Ainda ninguémpercebeu se é realmente míope ou se usa lorgnon como uma arma de guerra,mas Lisboa, em peso, treme diante do seu lorgnon terrível.” (“As quintas-fei-ras de Joana”, p. 9).

Madame, fr. Senhora. “Diana atravessou a sala no seu andar de deusa emadame Martin declarou-se às ordens daquelas senhoras.” (“Boatos”, p. 94).

Mademoiselle, fr. Menina, pessoa do sexo feminino ainda solteira. “Amademoiselle deve ficar com a capeline.” (“Na loja dos chapéus”, p. 23).

Manquée, fr. Defeituoso, errado, falhado, vencido. “Mas, festa em que V.Ex.as não apareçam, é uma festa manqueé.” (“As quintas-feiras de Joana”, p.12).

Manteaux, fr. Manto ou capote. “E falávamos de novembro, na grandecidade, da Palace Vendôme, à hora dos chás elegantes e dos primeiros man-teaux e das primeiras violetas, quando entramos no Pato, o famoso Pato re-troseiro, onde cada carro de linhas custa uma fortuna.” (“No Chiado”, p. 130).

Ménage, fr. Vida comum de homem e de mulher; governo de casa; os ob-jetos necessários à vida doméstica; conjunto de tarefas que exige a manuten-ção na casa. “Nada. Um aparte. E quem é o pomo da discórdia em ménage tãounido?” (“Mariquinhas tem ciúmes. . . ”, p. 77).

Merengue, esp. Tipo de bolo de cor branca. “E enquanto um galego so-turno e mal-humorado lhe serve o chá, declarando que não há pão com man-teiga e que já se acabaram os merengues, a Sr.a Viscondessa impinge ao autordo Jupon da Duquesa a lição estudada de manhã [. . . ]” (“Uma escrava do chic”,p. 37).

Minois, fr. Cara delicada de criança, de jovem rapariga, ou jovem mulher.“Denise, a manequim, flexível, graciosa, com um delicioso minois parisiense,em que tudo é irregular e tudo é encantador.” (“Na costureira francesa”, p.165).

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Miss, ingl. Menina, mulher solteira. “Queria vê-lo doido por miss Mary!”(“As conquistas de João”, p. 88).

Mousseline, fr. Tecido de algodão muito fino e transparente. “Fred, can-sado dos flirts com as bonitas estrangeiras, que passam o inverno no HotelReed e tomam chá, cada tarde, vestidas de leves mousselines, na varanda doCasino Pavão, reparou que Clara é encantadora.” (“As cartas de Clara”, p. 141).

Nuance, fr. Matiz; cambiante, gradação. “Joana recebe com uma amabili-dade encantadora, cheia de nuances, aliás, segundo a importância e categoriade cada convidado.” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 14).

Pedicure, fr. Pessoa que trata dos pés, unhas, calos, etc. “– Ele é os chefes,as criadas, os mordomos, os escudeiros, os calistas. . . – Diga antes pedicure,minha amiga. . . ” (“Chá de novas ricas”, p. 163).

Pendentif, fr. Joia que se usa suspensa por cordão ou cadeia; pingente.“Um anel não, ficava grande de mais, um broche, um pendentif .” (“As con-quistas de João”, p. 89).

Rage, ingl. Raiva. “Houve uma rage de variar da cabeça. Que isto de ter amesma todos os dias.” (“Velhas”, p. 206).

Rendez-vous, fr. Encontro, conversa, entrevista. “Clementina despediu--se, recusando o nosso convite para tomar chá depois no Rendez-vous; umapândega. . . ” (“Na loja dos chapéus”, p. 27).

Robe de chambre, fr. Vestido de quarto, roupão. “E sem ao menos o deixa-rem vestir uma sobrecasaca, lá marchou em robe de chambre, entre baionetas,para o governo civil, onde ficou no segredo.” (“Boatos”, p. 97).

Sandwich, ingl. Sande. “Ponha-me aqui defronte um bom prato desandwiches.” (“As conquistas de João”, p. 88).

Season, ingl. Estação, época; moda. “Acabará a season elegante.” (“As car-tas de Clara”, p. 142).

Shake-hand, ingl. Aperto de mão. “Empurrada por Maria da Luz, Teresaestendeu a mão a Joana, que, empurrada por Maria do Céu, apertou a mão aTeresa. Mas foi ainda frouxo, constrangido este primeiro shake-hands.” (“In-trigas. . . ”, p. 112).

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Shocking, ingl. Repugnante, escandaloso, detestável, muito mau. Pareceimpossível. “Mas diga lá, ponha para aí tudo o que tem feito. . . O que não forshoking. . . já se vê. . . ” (“As quintas-feiras de Joana”, p. 12).

Soirée, fr. Reunião após o jantar; festa, espetáculo, concerto, baile à noite.“Mas por um supremo esforço de vontade consegue dominar-se e arrasta-seainda até à soirée das Morais.” (“Uma escrava do Chic”, p. 40).

Tailleur, fr. Alfaiate; veste de senhora, composta de saia e casaco. “Duasrosas vermelhas alegravam-lhe o tailleur escuro, de talhe impecável.” (“Asconquistas de João”, p. 92).

Toilette, fr. Toalha de toucador; o toucador, móvel; ato de se lavar e se ves-tir; conjunto de roupas com que alguém se apresenta. “A toilette das mulherestornou-se, à imagem do seu coração, desesperadamente enigmática!” (“Umaescrava do chic”, p. 42).

Up to date, ingl. Até esta data; ao corrente, em dia, atualizado; moderno.“Bem-falante, com alguns desmandos de linguagem. Pousa para a mulher domundo up to date.” (“Chá de novas ricas”, p. 160).

Vendeuse, fr. Vendedeira que, no entanto, não traduz exatamente o quese pretende com o francesismo. “E como D. Rosalina, a vendeuse magra, nosperguntasse pela terceira vez: – O que desejam V. Ex.as?” (“Na loja dos cha-péus”, p. 21).

Verve, fr. Entusiasmo, inspiração que anima um autor. “Depois, duranteo jantar, já se vê, foi ela que falou e riu todo o tempo, com aquela sua verveendiabrada, nervosa, que me diverte dois minutos e logo me extenua.” (“Ascartas de Clara”, p. 147).

Vitrine, fr. Já aportuguesado em vitrina, mostruário. “Na vitrine da flo-rista murchava um ramo de crisântemos pálidos”. (“No Chiado”, p. 127).

Whisky, ingl. Forte bebida alcoólica obtida do malte. “Manuel toma o seuwhisky and soda numa xícara rachada”. (“Boatos”, p. 100).

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Anexo 2 – Autores, Obras e Personalidades nos livrosde Luzia(Neste levantamento acrescenta-se uma breve explicação do autor ou personalidadequando possa não ser do conhecimento público dos leitores)

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Anexo 3 – Fotografia de azulejo

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Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT –Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto

“UID/ELT/00077/2013”

e

Esta investigação pretende trazer à atualidade a memória de uma

escritora esquecida no tempo, Luzia. Apresenta-se a vida e obra

desta autora, bem como a sua receção na sociedade da época. É

realizado um relato das crónicas das suas vivências, das suas

viagens, vagabundagens, bem como da busca do “eu” que a autora

enceta, e que nos dá a conhecer através da obra. Faz-se também

um roteiro por todas as suas obras, buscando as imagens mais

significativas, que comprova a existência de um reino mágico, no

qual Luzia por vezes habita.

É também realizada uma recolha de testemunhos da imprensa,

anos depois de Luzia falecer, traçando qual a opinião que público e

literatos tinham de Luzia, ao mesmo tempo que se tenta perceber

os motivos que levaram ao esquecimento da escritora.

São também evidenciados os traços que distinguiam Luzia como

mulher e escritora na sua época.