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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA DA NATUREZA DA TECNOLOGIA: UMA ANÁLISE FILOSÓFICA SOBRE AS DIMENSÕES ONTOLÓGICA, EPISTEMOLÓGICA E AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ANGELA LUZIA MIRANDA Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Tecnologia, área de concentração: Tecnologia & Trabalho, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Domênico Costella. Co-orientador: Prof.º Dr. João Augusto Bastos. CURITIBA 2002

por Angela Luzia Miranda

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CENTRO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO PARANÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA

DA NATUREZA DA TECNOLOGIA:

UMA ANÁLISE FILOSÓFICA SOBRE AS DIMENSÕES ONTOLÓGICA, EPISTEMOLÓGICA E AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

ANGELA LUZIA MIRANDA

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Tecnologia, área de concentração: Tecnologia & Trabalho, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Domênico Costella. Co-orientador: Prof.º Dr. João Augusto Bastos.

CURITIBA 2002

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ANGELA LUZIA MIRANDA

DA NATUREZA DA TECNOLOGIA:

UMA ANÁLISE FILOSÓFICA SOBRE AS DIMENSÕES ONTOLÓGICA, EPISTEMOLÓGICA E AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Tecnologia, área de concentração: Tecnologia & Trabalho, pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologia do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Domênico Costella. Co-orientador: Prof.º Dr. João Augusto Bastos.

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À Divina Providência (de quem falava Van Gogh) Aos meus pais, Cármina e Deolindo. E às mulheres silenciosamente guerreiras, especialmente, Mª Helena, Ivone, Lurdes, Fátima e Vera, minhas irmãs.

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AGRADECIMENTOS

Ao orientador,

Profº Drº Domênico Costella,

que, na condição de professor-colaborador do PPGTE,

generosamente aceitou comigo este desafio.

Agradeço-o ainda por ter me oportunizado uma outra chance de desfrutar de seus

conhecimentos filosóficos e competência acadêmica.

Ao co-orientador e idealizador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia,

Profº Drº João Augusto Bastos

que, mesmo desfrutando de seus merecidos descansos e tendo se afastado das atividades

acadêmicas, ainda assim orientou-me com sua imensa sabedoria e bondade.

À coordenação do PPGTE, na pessoa da

Profª Drª Sonia Ana Leszczynski,

por todo apoio e amparo recebido.

Ao Profº Drº Domingos Leite Lima Filho,

que, mesmo não sabendo, em muito contribuiu para garantir

a continuidade e a credibilidade desta pesquisa.

À Lindamir Salete Casagrande,

pela assessoria administrativa competente e dedicada ao programa.

Ao Nivaldo,

meu irmão, pela comunhão de idéias e ideais.

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SUMÁRIO RESUMO...........................................................................................................................viii ABSTRACT......................................................................................................................... ix RESUMEN ........................................................................................................................... x INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 CAPÍTULO I: A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ... 19

1 PREÂMBULO ............................................................................................................................ 19 2 TECNOLOGIA E VALORAÇÃO SOCIAL: POSICIONAMENTOS ................................. 23

3 CIÊNCIA, TÉCNICA E TECNOLOGIA: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES.... 25

4 A GÊNESE DA TECNOLOGIA MODERNA......................................................................... 32

4.1 HEIDEGGER E A QUESTÃO DA ESSÊNCIA DA TÉCNICA ......................................... 32

4.2 MARX E A TECNOLOGIA COMO (RE) PRODUÇÃO DO CAPITAL............................ 39

4.3 TÉCNICA E CIÊNCIA COMO IDEOLOGIA: A CRÍTICA DA TEORIA CRÍTICA........ 44 5 POR UMA OUTRA ONTOLOGIA DE TECNOLOGIA....................................................... 48

6 SÍNTESE DA DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ................. 51

CAPÍTULO II: A DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA

MODERNA ........................................................................................................................ 57

1 PREÂMBULO ............................................................................................................................ 57

2 EMPIRISMO E TECNOLOGIA MODERNA........................................................................ 61

3 CONHECIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLOGIA MODERNA..................................... 69

3.1 O PARADIGMA CIENTÍFICO DO CONHECIMENTO.................................................... 69

3.1.1 Aspectos Filosóficos da Revolução Científica Moderna.................................................... 69

3.1.2 Galileu, Descartes e Newton e a Visão Mecanicista .......................................................... 71

3.2 O MÉTODO CIENTÍFICO.................................................................................................. 77

4 A CRISE DO PARADIGMA CIENTÍFICO............................................................................ 79

4.1 INTRODUÇÃO AO PROBLEMA....................................................................................... 79

4.2 ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIOLÓGICOS E TEÓRICOS DA CRISE DO

PARADIGMA CIENTÍFICO................................................................................................ 81

4.3 ASPECTOS EPISTEMOLÓGICOS DA CRISE DO PARADIGMA

CIENTÍFICO ......................................................................................................................... 87

4.3.1 A Relação Parte e Todo (A noção do Especialista)............................................................ 87

4.3.2 A Noção do Físico e do Metafísico.................................................................................... 88

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vii

4.3.3 A Noção de Objetividade do Conhecimento Científico ..................................................... 90

4.3.4 Causalidade e Generalização.............................................................................................. 92

4.3.5 Ordem, Desordem e Contradição ...................................................................................... 94

5 POR UMA OUTRA EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA................. 94

6 SÍNTESE DA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA ...... 104

CAPÍTULO III: A DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA

MODERNA .......................................................................................................................109 1 PREÂMBULO .......................................................................................................................... 109 2 ÉTICA E TECNOLOGIA: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS AO DISCURSO

AXIOLÓGICO DA TECNOLOGIA MODERNA................................................................ 111

2.1 CARACTERIZAÇÃO OU MODELOS DE ÉTICA .......................................................... 112

2.2 A EXCLUSÃO DA ÉTICA DO MUNDO CIENTÍFICO MODERNO ............................. 114

2.3 A DIMENSÃO SÓCIO-CULTURAL DA TECNOLOGIA OU PARA UMA

AXIOLOGIA DA TECNOLOGIA MODERNA ................................................................ 117

3 UTILITARISMO ÉTICO E TECNOLOGIA MODERNA.................................................. 120

3.1 A CORRENTE ÉTICA DO UTILITARISMO................................................................... 120

3.2 A RELAÇÃO ENTRE TECNOLOGIA E UTILITARISMO ÉTICO ................................ 125

3.3 O LEGADO DO UTILITARISMO PARA A ÉTICA MODERNA ................................... 128

4 POR UM OUTRO REFERENCIAL AXIOLÓGICO DE TECNOLOGIA........................ 130

5 SÍNTESE DA DIMENSÃO AXIOLÓGICA DATECNOLOGIA MODERNA.................. 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................144 REFERÊNCIAS................................................................................................................153 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ..........................................................................160

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RESUMO Na modernidade (a partir do séc. XVI) a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo, pois, ser confundida com o mero estudo da técnica ou um simples conjunto de técnicas. Uma compreensão mais profunda deste fenômeno social exige uma reflexão mais que semântica ou histórica; exige, antes de tudo, uma reflexão filosófica sobre o caráter ontológico, epistemológico e axiológico da tecnologia moderna. Ou seja, trata-se de elaborar uma Filosofia da Tecnologia que implica, primeiramente, em identificar qual a gênese ou o “ser" da tecnologia (dimensão ontológica), para, em seguida, indagar a que conhecimento se refere a tecnologia (dimensão epistemológica) e, por fim, investigar o referencial ético que permeia a tecnologia (dimensão axiológica). O presente trabalho investiga exatamente estas três dimensões da tecnologia na modernidade, considerando que, em termos filosóficos, o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico. Para tanto, esta pesquisa enfoca a posição de Heidegger, Marx e os teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo Habermas, em vista da análise da dimensão ontológica da tecnologia moderna; em se tratando da dimensão epistemológica, o referencial teórico prioriza o empirismo baconiano e os precursores da revolução científica moderna, especialmente, Galileu, Descartes e Newton e, sobre a dimensão axiológica da tecnologia moderna, o ponto de partida é o enfoque do utilitarismo ético, a partir de Bentham e Mill. Analisando criticamente as implicações e as interfaces desta constatação ante o mundo da tecnosfera no qual estamos inseridos, e, utilizando-se da posição crítica de teóricos, como: Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, entre outros, este estudo aponta também para a possibilidade e a necessidade de conjecturar um outro entorno ou uma outra identidade para a tecnologia na atualidade, a partir das três dimensões referenciadas.

Palavras-chave: Tecnologia Moderna, Filosofia da Tecnologia, Filosofia da Ciência, Empirismo, Utilitarismo Ético.

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ABSTRACT

In Modern Age (after the 16th Century) as technology suffers and causes deep social changes, it can not be taked as a simple study of techniques or a simple collection of techniques. A deeper comprehension of that social phenomenon needs more than a semantic or historical reflection; it must be, mainly, a philosophical reflection about the ontological, epistemological and axiological character of modern technology. In other words, it is related to the elaboration of a Philosophy of Technology that implies, primarily, in identifying the genesis or the “being" of technology (ontological dimension). After that, asking which knowledge is related to technology (epistemological dimension). At last, investigating the ethical model which supports technology (axiological dimension). The present research investigates exactly these three dimensions of technology in Modern Age, considering that, in philosophical terms, Empiricism, scientific knowledge, and Ethical Utilitarianism have molded the genesis of modern technology, in ontological, epistemological, and axiological terms. For that purpose, this research focuses the position of Heidegger, Marx and the theoreticians of the School of Frankfurt, specially Habermas, regarding the analysis of the ontological dimension of modern technology. Regarding the epistemological dimension the theoretical model prioritizes the Baconian Empiricism and the precursors of Modern Scientific Revolution, specially, Galileu, Descartes and Newton. Regarding the axiological dimension of modern technology, the starting point is the Ethical Utilitarianism, after Bentham and Mill. A critical analysis of the implications and interfaces of this evidence in the world of technosphere in which we live, considering the critical position of authors, such as: Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, among others, supports the present research which also points out to the possibility and the necessity of thinking another enviroment or another identity to technology nowadays, regarding the three mentioned dimensions. Key-words: Modern Technology, Philosophy of Technology, Philosophy of Science, Empiricism, Ethical Utilitarianism.

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x

RESUMEN

En la modernidad (a partir del siglo XVI) la tecnología sufre y propicia tansformaciones sociales profundas, no pudiendo, pues, ser confundida con un simple estudio de la técnica o un simple cojunto de técnicas. Una compreensión mas profunda de este fenómeno sociale exige una reflexión mas que semántica o histórica, exige, antes de todo, una reflexión flosófica sobre el carácter ontológico, epistemológico y axiológico de la tecnología moderna. Ou sea, se trata de elaborar uma Filosofía de la Tecnología que, implica, primeramente, em identificar cual la génesis o el “ser” de la tecnología (dimensión ontológica), para, en seguida, indagar a que conocimiento se refere la tecnología (dimensión epistemológica) y, por fin, investigar el referencial ético que permea la tecnología (dimensión axiológica). El presente trabajo investiga exactamente estas tres dimensiones de la tecnología na modernidad, considerando que, en términos filosóficos, el empirismo, el conocimiento científico y el utilitarismo ético plasmaran la génesis de la tecnología moderna en sentido ontolológico, epistemológico y axiológico. Por lo tanto, esta pesquisa enfoca la posición de Heidegger, Marx y los teóricos de la Escuela de Frsnkfurt, sobre todo, Habermas, en vista del análisis de la dimensión ontológica de la tecnología moderna; tratándose de la dimensión epistemológica, el refencial teórico prioriza el empirismo baconiano y los teóricos da revolución científica moderna, como Galileo, Descartes y Newton, y, sobre la dimensión axiológica de la tecnología moderna, el punto de partida es el enfoque del utilitarismo ético, a partir de Bentham y Mill. Analisando criticamente las implicaciones y las interfaces de esta constatación ante el mundo de la tecnosfera en el cual estamos inseridos y se utilizando de la posición crítica de teóricos, como Boaventura Santos, Enrique Dussel, Hans Jonas, entre otros, este estudio apunta también para la possibilidad y la necessidad de conjecturar un otro entorno o una otra identidad para la tecnología en la actualidad, teniendo en vista las tres dimensiones referenciadas. Palabras-llave: Tecnología Moderna, Filosofía de la Tecnología, Filosofía de la Ciencia, Empirismo, Utilitarismo Ètico.

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INTRODUÇÃO

Uma história critica da tecnologia demonstraria seguramente que nenhum invento do século XVIII foi obra de um único indivíduo. [...] A tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o processo imediato de produção de sua vida e assim elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que delas decorrem 1 Uma história crítica da poiética ou uma destruição da dita história é o mesmo. Se trata de demolir as interpretações vulgares, habituais, as tidas como evidentes.2

Na atualidade vivemos no mundo da tecnosfera. Isso significa dizer que a

tecnologia representa o modus vivendi da sociedade atual. Tal constatação não é difícil

perceber, basta olhar as coisas que estão a nossa volta. Tudo que materialmente nos

circunda diz respeito à tecnologia. Ela se tornou inerente à nossa condição de vida, à nossa

condição existencial de estar no mundo. Por isso, a concepção de que a tecnologia

compreende o “estudo da técnica” ou representa o “conjunto das técnicas” é insuficiente

para entender a complexidade deste fenômeno social na atualidade.

Na modernidade (a partir do séc. XVI), devido a fatores históricos, sociais,

culturais, econômicos, políticos (os quais serão aprofundados no decorrer da pesquisa), a

tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas. E, muito além de

simplesmente alterar padrões de comportamento, a tecnologia, a partir da modernidade,

contribui para alterar a relação do ser humano com o mundo que o cerca, implicando no

estabelecimento de uma outra cosmovisão, diferentemente daquela dos gregos ou dos

medievais. Daqui decorre o recorte temporal/histórico que se pretende empregar nesta

análise, qual seja, enfocar a tecnologia a partir do período moderno.

Entendemos que fatores históricos ocorridos a partir do séc. XVI, como: o advento

do empirismo inglês a partir de Bacon (em defesa de um conhecimento operativo e não

contemplativo); aliado às primeiras explicações matemáticas de Galileu acerca do

funcionamento do universo (base do conhecimento científico); o surgimento da visão

cartesiana (marco referencial da constituição do pensamento moderno); o nascimento do

utilitarismo ético desde Bentham (que enfatizava a validade da ação moral baseada nos

1 MARX, Karl. , O capital. Vol. 1, Tomo 1. São Paulo: DIFEL, 1982, p. 425, nota 89. 2 DUSSEL, Enrique D. Filosofía de la producción. Bogotá: Editorial Nueva América, 1994, p. 14.

(Tradução livre).

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seus resultados e na sua utilidade), todos foram fundamentais para a constituição da

tecnologia a partir do período moderno. A apresentação deste quadro panorâmico, bem

como as relações intrínsecas entre estes fatores que propiciaram a configuração da gênese

da tecnologia na modernidade, é o que se pretende demonstrar nesta pesquisa.

Por isso, consideramos que indagar sobre a natureza da tecnologia moderna implica

em avançar numa análise que é antes de tudo, filosófica. Eis a justificativa central desta

pesquisa. Heidegger mesmo dizia que a resposta sobre a essência da técnica não pode ser

técnica. E o recurso metodológico que apela para o sentido etimológico, ainda que levando

em conta a diferenciação conceitual e a arqueologia de termos, como “ciência”, “técnica” e

“tecnologia”, conforme apresentam muitos autores que tratam do assunto, não responde o

que é a tecnologia em sua totalidade. Julgamos que tal análise metodológica é

demasiadamente limitada para a compreensão da natureza da tecnologia diante da

complexidade a qual está revestida e de seu significado na sociedade atual. É por isso, que

o tema aqui será tratado como um problema filosófico. Ademais, consideramos um

“problema filosófico” aquilo que diz respeito a existência humana, vivenciada pela práxis,

isto é, pela condição do ser humano de estar no mundo. É neste contexto que, acreditamos

nós, estar inserida a tecnologia e é neste sentido que será investigada como objeto de

análise.

Encontramos na literatura moderna e atual o esforço de alguns pensadores em tratar

do assunto, ainda que de maneira tangencial. Marx, por exemplo, embora tenha tratado a

tecnologia dentro da ótica do modo de produção social, especialmente o modo de produção

capitalista, já no primeiro volume da sua mais famosa obra O capital, afirmava a

necessidade de se elaborar uma história crítica da tecnologia. História esta, afirmava ele,

que até o século XVIII, ainda não tinha sido objeto de investigação científica. Também

Heidegger se ocupou do tema a partir de uma análise fenomenológica sobre “a questão da

essência da técnica”, título de um dos seus principais escritos sobre o assunto, que será

tratada na primeira parte desta pesquisa. A Teoria Critica frankfurtiniana, procurou

elaborar uma análise sociológica da sociedade industrializada e conseqüentemente, a

tecnologia também se tornou objeto de sua crítica. Destacamos, sobretudo, a visão de visão

de Habermas para quem a ciência e a técnica é analisada como ideologia da sociedade

capitalista. Acrescenta-se aí também a leitura de Marcuse. Mais recentemente pensadores

como Dussel, através do que ele denomina “filosofia de la producción”, bem como

Boaventura Santos, através da análise sobre a crise epistemológica do paradigma

científico, têm se ocupado do assunto, ainda que de modo tangencial.

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No Brasil, destacamos dois pensadores do núcleo de pesquisa científica da USP,

que se ocuparam com o assunto. Ambos desenvolveram seus estudos muito mais

preocupados em descrever a história da técnica e da tecnologia (guardadas as devidas

proporções e diferenciações teóricas entre eles), do que necessariamente em produzir uma

filosofia da tecnologia. Trata-se de Ruy Gama e Milton Vargas, ambos engenheiros de

formação. O primeiro toma o tema da tecnologia a partir da perspectiva histórica, cujo eixo

central de análise é a relação entre tecnologia e trabalho, mas privilegia, ao enfocar

especificamente a natureza da tecnologia, o sentido etimológico e a análise arqueológica,

que, nesta pesquisa será observada como sendo insuficiente para atingir uma análise mais

profunda sobre o significado da tecnologia na modernidade, conforme já fora advertido o

leitor inicialmente. O segundo, prioriza uma análise factual e essencialista da tecnologia

que aqui será tomada como objeto de crítica, podendo ser observada em diversas passagens

de nossa pesquisa descritiva. Sobre Milton Vargas, vale lembrar que uma de suas obras

leva o título exatamente que sugere esta pesquisa. Estamos falando do livro Para uma

filosofia da tecnologia. Mas, consideramos que tal obra não reflete o nosso

posicionamento, posto que pretendemos dar um outro enfoque à questão. Ademais, ainda

sobre a referida obra, supomos que sua elaboração se deu muito mais por uma situação

circunstancial, de compilação de textos esparsos, escritos por Milton Vargas sobre o

assunto, do que necessariamente como sendo fruto de uma pesquisa sistemática e dirigida,

com vistas a alcançar especificamente este fim.

Ainda sobre o último autor acima referido, vale dizer que ele nos sugere sim a

leitura metodológica desta pesquisa. Ou seja, Milton Vargas considera que para fazer uma

filosofia da tecnologia, é necessário levar em conta três aspectos: o ontológico, o

epistemológico e o axiológico. O primeiro, diz respeito à gênese da tecnologia; trata-se de

aprofundar a sua essência; cabe indagar qual o “ser” da tecnologia. O aspecto

epistemológico implica em analisar qual o conhecimento que é subjacente à tecnologia. E o

aspecto axiológico diz respeito à valoração da tecnologia; diz respeito ao sentido ético da

tecnologia; significa atribuir-lhe valor, configurando qual o modelo ético que permeia a

sua ontologia.

Diante deste panorama que configura o estado da arte em que se encontra a

pesquisa acadêmica sobre a reflexão filosófica da tecnologia, entendemos que a temática

objeto desta dissertação faz jus à sua relevância acadêmica. E por estar inserida dentro de

um Programa de Pós-Graduação cujo tema é a Tecnologia, é possível afirmar que a

contribuição filosófica desta análise pode auxiliar numa elaboração posterior, não somente

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de outros filósofos, mas também impulsionar o estudo transdisciplinar de pesquisadores de

outras áreas a fim de aprofundar a complexidade da natureza da tecnologia.

Entendemos ainda que analisar, as implicações ontológicas, epistemológicas e

axiológicas da tecnologia moderna, significa identificar como se constituiu a natureza e

como se construiu a identidade da tecnologia a partir da modernidade. Mas, ao mesmo

tempo, implica também em conjecturar uma outra possibilidade de tecnologia; um outro

entorno, ou uma outra concepção de tecnologia. Ainda que numa esfera de “conjecturas”,

para usar a expressão de Popper, almejamos concluir esta pesquisa oferecendo e

propiciando este espaço de reflexão crítica. Nisso consiste o esforço que se pretende

empregar nesta dissertação. Por isso, elaborar uma filosofia da tecnologia é uma resposta

que a academia pode e deve dar à sociedade, por considerar um “problema filosófico”,

conforme fora salientado anteriormente.

Em nosso caso, o problema filosófico pode ser colocado nos seguintes termos: na

modernidade a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo,

pois, ser confundida com o mero estudo da técnica ou um simples conjunto de técnicas.

Uma compreensão mais profunda deste fenômeno social exige uma reflexão filosófica

sobre seu caráter ontológico, epistemológico e axiológico. Ou seja, trata-se de elaborar

uma Filosofia da Tecnologia que implica, primeiramente, em identificar qual a gênese ou o

“ser" da tecnologia (dimensão ontológica), para, em seguida, indagar a que conhecimento

se refere a tecnologia (dimensão epistemológica) e, por fim, investigar o referencial ético

que permeia à tecnologia moderna (dimensão axiológica). Em termos filosóficos é possível

considerar que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a

gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico? Quais

as implicações desta constatação na elaboração da identidade da tecnologia moderna? É

possível conjecturar um outro entorno para a natureza da tecnologia em sentido ontológico,

epistemológico e ético? Quais são os fundamentos e as perspectivas desta possibilidade?

Disso decorre que nossa principal tese consiste em mostrar que o empirismo, o

conhecimento científico e o utilitarismo ético plasmaram a gênese da tecnologia moderna

em sentido ontológico, epistemológico e axiológico.

Portanto, nosso objetivo geral e principal é analisar a dimensão ontológica,

epistemológica e axiológica da tecnologia moderna, demonstrando que o empirismo, o

conhecimento científico e o utilitarismo ético constituem suas bases de sustentação

filosófica. A partir desta configuração sobre a natureza da tecnologia moderna e,

conjecturando a crise deste modelo paradigmático, contribuir para uma análise crítica,

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apontando para a possibilidade de um outro entorno, ou uma outra “natureza” para a

tecnologia.

Deste objetivo geral, pretendemos alcançar os seguintes objetivos específicos:

(1) Demonstrar que na modernidade, devido a fatores históricos, econômicos,

sociais, políticos, a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, passando

a significar mais que o “mero estudo da técnica” ou o “conjunto de técnicas”. E, que,

portanto, a análise meramente conceitual constitui um limite metodológico na identificação

da tecnologia moderna. A partir de então, identificar as principais características

norteadoras da dimensão ontológica da tecnologia a partir da modernidade, sobretudo

dentro da visão heideggeriana, marxista e frankfurtiniana, e, daqui, apontar para a

necessidade de constituir uma outra ontologia para a tecnologia na atualidade.

(2) Analisar a gênese da tecnologia moderna, demonstrando que o empirismo é a

corrente que filosoficamente sustenta a nova ontologia e epistemologia da tecnologia

surgida com a Modernidade. Demonstrar que além do empirismo, o conhecimento

produzido pela tecnologia moderna está embasado epistemologicamente no paradigma

científico, a partir da aliança entre ciência e técnica.

(2.a) Evidenciar os aspectos teóricos, sociais e epistemológicos da crise do

paradigma científico e suas implicações no âmbito da dimensão epistemológica da

tecnologia, para, então, conjecturar um outro entorno epistemológico para a tecnologia.

(3) Sustentar que, em sentido axiológico, a tecnologia moderna é permeada pelo

modelo de ética utilitarista, e que esta possui relação intrínseca com a sua configuração

ontológica e epistemológica, e, evidenciando a crise ética deste modelo paradigmático,

acenar para a possibilidade de construir uma nova dimensão axiológica para a tecnologia.

(4) Analisar as interfaces entre o empirismo, a crise do paradigma científico e o

utilitarismo ético e suas implicações no âmbito da tecnologia moderna e, tendo em vista

esta análise crítica, fundamentar a necessidade existencial, histórica, social e política de

conjecturar, ainda que enquanto possibilidade, uma outra identidade para a tecnologia na

atualidade novo entorno ontológico, epistemológico e axiológico para a tecnologia

Para tanto, utilizamo-nos das seguintes estratégias metodológicas:

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza descritiva, cuja análise é de

conteúdo filosófico. Sua fundamentação filosófica é essencialmente bibliográfica, cuja

abordagem leva em conta duas categorias de análise metodológica, a saber, a complexidade

e a historicidade do objeto a ser investigado que é a tecnologia moderna.

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Sobre o aspecto qualitativo desta pesquisa, vale dizer que, tendo como objetivo a

análise filosófica da natureza da tecnologia moderna, nossa análise prioriza a descrição e a

avaliação do conteúdo já abordado por autores que tratam do tema, sobretudo no campo da

filosofia, sem, contudo, deixar de levar em conta a relação dinâmica entre o observador (a

autora desta pesquisa) e o observado. Portanto, nossa proposta não é somente a de

apresentar, a partir da pesquisa bibliográfica um rol de dados isolados, conectados

meramente por uma teoria explicativa, dissociável do sujeito-observador. O que queremos

é, enquanto sujeito-observador atribuir um significado próprio a partir da descrição do

objeto a ser investigado, considerando que aquele não é neutro em relação a este e vice-

versa.3

A primazia da análise filosófica tem em vista dois fatores. Primeiro, porque esta é a

formação da autora desta pesquisa, o que credencia e permite ficar mais à vontade para

debater o tema. E o segundo motivo e mais relevante é que a filosofia tem uma importância

capital e uma contribuição fundamental quando o assunto propõe a reflexão sobre a

natureza da tecnologia moderna. O que queremos dizer com isso é que o tema não deve ser

somente objeto de discussão de tecnólogos ou especialistas em ciências experimentais, já

que convencionalmente ele vem sempre atrelado ou restrito a estas áreas.

Entendemos que investigar a identidade, a gênese da tecnologia, sobretudo na

modernidade exige, acima de tudo, um conhecimento que leve em conta a Radicalidade do

problema, no sentido de ir à raiz da questão (do latim radice: ir à raiz), o que possibilita

evitar a priori posicionamentos superficiais e ingênuos sobre o que é a tecnologia; a

Criticidade, no sentido de colocar em crise ou em crivo a questão da tecnologia, o que

possibilita desconfiar das posições de caráter deterministas tão comum nesta discussão, e

um conhecimento que leve em conta a Totalidade do problema, o que possibilita ter uma

visão ampla e abrangente do contexto em que está inserida a tecnologia moderna. Eis

porquê o discurso é filosófico.

No entorno desta visão de totalidade do assunto está situada a categoria

metodológica da complexidade. Isto significa dizer que ao nosso posicionamento produzir

filosofia da tecnologia é antes de tudo, situá-la dentro de um contexto político, social,

econômico, cultural, etc. que compõe um todo complexo. Ou seja, a categoria da

complexidade nos obriga a pensar a tecnologia a partir da tecitura, da rede de relações que

3 Sobre a pesquisa qualitativa, cf. as seguintes obras: CHIZZOTTI, Antonio Pesquisa em ciências

humanas e sociais. São Paulo: Ed. Cortez, 1991, pp. 77-105; TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em Educação. São Paulo: Atlas, 1995, pp. 117-133; DEMO, Pedro. Introdução à metodologia da ciência. São Paulo: Atlas, 1983

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a envolve e não somente pensar a tecnologia dentro de uma visão departamental,

fragmentada, situando o tema num âmbito especificamente tecnicista. Compreender

filosoficamente a identidade da tecnologia moderna é situá-la na esfera das nossas

existências. E isto significa ir além do ambiente técnico ou especializado por excelência.

Significa atribuir-lhe um grau de importância que extrapola a mera decisão técnica, pois,

no âmago desta discussão existe a complexa questão filosófica da nossa condição

existencial de estar-no-mundo.

A outra categoria metodológica diz respeito à historicidade. Graças a ela efetuamos

o recorte histórico da discussão que propomos aqui. Ou seja, o que intentamos discutir é a

identidade ou a natureza da tecnologia na modernidade por considerar que a tecnologia

como fenômeno histórico não se constitui como único no decorrer de toda a história. Na

modernidade a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas. Tais

transformações modificam, inclusive sua identidade. E a compreensão deste fenômeno

torna-se impossível pela análise meramente conceitual ou etimológica da tecnologia. Ela

exige uma análise histórica, contextual. Explicando por outros termos: é por utilizar a

historicidade como categoria de análise que pontuamos como premissa desta pesquisa que

a tecnologia em sentido ontológico, epistemológico e axiológico, não possui o mesmo

significado no decorrer de toda a história da civilização e que, na modernidade, ela adquire

características que lhe são peculiares, modificando, inclusive sua gênese e identidade.

Em síntese, sobre ambas as categorias, instrumentos de análise desta pesquisa,

diríamos que a historicidade permite-nos focalizar o tema na sua relação temporal,

enquanto que a categoria da complexidade permite-nos identificar o tema na sua relação

espacial.

Ainda sobre a metodologia por nós utilizada na elaboração deste trabalho vale dizer

que as dimensões: ontológica, epistemológica e axiológica da tecnologia moderna

(enunciadas já no teor do próprio tema desta dissertação), constituem, para efeitos desta

pesquisa, tanto um aspecto de conteúdo, como também indicam o caminho a ser percorrido

ao analisar filosoficamente a natureza da tecnologia moderna. Portanto, trata-se também de

um aspecto metodológico desta pesquisa. Aliás, em sentido metodológico (e somente

neste, posto que em termos de conteúdo nossa proposta em muito se afasta da visão de

Vargas) tomamos de empréstimo a proposta metodológica sugerida por Milton Vargas,

para quem analisar filosoficamente a tecnologia significa situá-la na sua dimensão

ontológica, epistemológica e axiológica. Seguindo, pois, de perto a recomendação do autor,

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os capítulos que compõem este trabalho sistematicamente seguem a seguinte pretensão

metodológica.

No Primeiro Capítulo a abordagem da tecnologia moderna refere-se à sua

dimensão ontológica. Buscando introduzir o assunto a partir da questão da essência e da

natureza da tecnologia moderna, a referência a autores como, Heidegger, Marx e os

teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo, Habermas, assim como também as

contribuições e críticas de Enrique Dussel são elementares para este propósito.

No Segundo Capítulo, o foco de análise é a dimensão epistemológica da

tecnologia moderna, no sentido de identificar qual conhecimento constitui a gênese da

tecnologia moderna. Aqui, em vista da questão-problema apontada no projeto inicial desta

pesquisa, conjecturamos que a visão empirista trazida por Bacon, no séc. XVI, e as bases

filosóficas e metodológicas do conhecimento científico, sugeridas por Galileu, Bruno,

Newton e atreladas à visão antropocêntrica de Descartes, são fundamentais para a

constituição epistemológica da tecnologia na modernidade. Acrescentamos a esta

compreensão a crise epistemológica do paradigma científico a qual postulamos existir hoje

como resultado deste modelo paradigmático de conhecimento forjado desde os

renascentistas. Para tanto, autores como, Rousseuau, Bachelard, Boventura de Souza

Santos, Edgar Morin, Fritjof Capra, entre outros, são imprescindíveis na elucidação desta

problemática.

O Terceiro Capítulo trata da dimensão axiológica da tecnologia moderna,

apontando que o utilitarismo ético constitui a base ética da tecnologia moderna. Autores

como Jeremy Bentham, S. Mill, considerados fundadores do utilitarismo ético moderno,

bem como as críticas ao utilitarismo de Dussel e Tughendat, auxiliam nesta exposição.

Desta constatação, vista sob uma perspectiva crítica, surge a necessidade de construir um

outro entorno axiológico para a tecnologia, sobretudo a partir da leitura de pensadores da

ética atual como K-O.Appel, H.Jonas, Habermas, Dussel, entre outros.

Nesta mesma direção estão situados os aspectos conclusivos desta pesquisa.

Reforçando a tese de que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético

constituem os pilares de sustentação em sentido ontológico, epistemológico e axiológico da

tecnologia moderna e apontando a necessidade de pensar um novo entorno para a

tecnologia na atualidade, a opção é pela continuidade da pesquisa, sobretudo, no sentido de

alargar o horizonte temático da Filosofia da Tecnologia na contemporaneidade.

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19

CAPÍTULO I

A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico.4

1 PREÂMBULO

Qual é a gênese da tecnologia? Qual sua origem? Qual a sua identidade?

Tecnologia é o mesmo que técnica? No que ela se diferencia da ciência? Estas indagações

que, a princípio parecem simplistas e até impertinentes como propósito de uma pesquisa de

pós-graduação, são elementares para quem deseja se aventurar em conhecer historicamente

a tecnologia. Longe de ser uma preocupação de caráter meramente semântico, conceitual,

estas indagações nos remetem a um problema profundo e filosófico, que é a questão da

natureza da tecnologia.

Este primeiro capítulo pretende, então, fornecer uma reflexão, ainda que

introdutória sobre a identidade da tecnologia moderna.5 Trata-se de elucidar certos

aspectos ontológicos da tecnologia, sem os quais, torna-se inviável a discussão posterior

sobre a dimensão epistemológica e axiológica da tecnologia moderna. Ou seja, antes de

indagarmos sobre o conhecimento a que se refere a tecnologia, ou à sua dimensão ética,

necessário é identificar qual a sua essência. É somente a partir deste questionamento que

podemos compreender a natureza da tecnologia em suas diferentes interfaces ou em sua

complexidade como fenômeno social. A dimensão ontológica fornecerá, pois as bases para

a compreensão das outras dimensões da tecnologia moderna que aqui também serão objeto

de análise e investigação.

Conforme já fora dito inicialmente (na apresentação) a dimensão ontológica da

tecnologia diz respeito ao seu “ser” em sentido metafísico (do grego: τά µετά τά

ϕυσικ ά = o que está além da física)6. A ontologia é a ciência do ser enquanto ser.

4 HEIDEGGER, Martin, A questão da técnica. In: Cadernos de Tradução, n. 2, DF/USP, 1997, p.

42. 5 Parte do que aqui será apresentado fora exposto em comunicação apresentada pela autora desta

pesquisa. Cf. MIRANDA, Angela L. Da natureza da tecnologia: uma análise sobre a gênese da tecnologia moderna, In: Simpósio Internacional: Ciência e Tecnologia como Cultura e Desenvolvimento – Um Enfoque Histórico, 2001, São Paulo. Caderno de Resumos...CIHC/USP, Nov/2001, p. 10.

6 O termo metafísica foi introduzido por um aluno de Aristóteles, Andrônico de Rodes, no Séc. I a.C (Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 665)

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Portanto, a análise ontológica da tecnologia implica em indagar qual o ser da tecnologia;

refere-se à sua gênese, à sua identidade, à sua essência.

No pensamento grego, prevalece a concepção ontológica de que a identidade já está

determinada na natureza de cada ser.7 Um ser será existencialmente aquilo que

previamente estiver contido na sua substância. Aristóteles se refere ao termo, do seguinte

modo: “A substância de cada coisa é a causa primeira do ser desta coisa. Algumas coisas

não são substanciais, porém aquelas que são tais são naturais e estão postas pela natureza, e

de tal maneira é claro que a substância é a natureza mesma e que não é elemento senão

princípio”.8 Então, conhecer a substância dos seres é poder distinguí-los dos demais seres;

é poder atribuir-lhe uma identidade própria. É, pois, pela substância que podemos afirmar

que “um ser não pode não ser”.9 Dessa visão, decorrem os princípios da lógica aristotélica,

como, o princípio da não-contradição, o princípio da identidade e o princípio do terceiro

excluído.

Bem mais tarde, Sartre, um dos precursores do existencialismo (corrente filosófica

predominante no séc. XX) vai inverter tal propositura. Diferentemente de Aristóteles, para

Sartre é a existência que precede a essência10. Ou seja, nós somos o que nossas

circunstâncias indicam. Dizia Ortega e Gasset que “eu sou eu e minhas circunstâncias”.

Portanto, Sartre, influenciado pela visão marxista e diante da visão de dialeticidade do real,

inverte a lógica aristotélica, considerando que a historicidade dos fenômenos é fator

indispensável para a constituição de seu ser.11 A essência, pois, não é algo imutável,

inalterável, mas, também ela, inclusive, se constitui pela existência do ser. Trata-se de uma

concepção aberta e não fechada de ontologia.

A esta altura deve o leitor estar se perguntado qual a relação desta discussão com a

questão da tecnologia. Responde-se dizendo: tudo. A inclusão desta reflexão introdutória

Em verdade, Aristóteles falava de uma prima philosophia para designar a ciência das causas primeiras. Já o termo ontologia foi introduzido por Christian Wolff, discípulo de Leibnitz, e consagrado por Heidegger para designar a nova ontologia moderna. Cf. também ABBAGNANO, Nicola, Diccionario de Filosofia, México: Fondo de la Cultura Econômica, 1996, pp. 793-799.

7 ABBAGNANO, op. cit., p. 794. 8 ARISTÒTELES, Metafísica, VII, 17, 1041b 27. Apud ABBAGNANO, op. cit., p. 795. (tradução

livre) 9 Em sentido inverso tal propositura pode ser exemplificada, considerando que um cachorro nunca

será, pois, um cavalo. Cf. os livros VII, VIII e IX da Metafísica de Aristóteles, citado por ABBAGNANO, op. cit., p. 795.

10 SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. In: OS PENSADORES. São Paulo: Nova Cultural, 1987, pp. 5 e 6.

11 Vale lembrar que o conceito de “historicidade” filosoficamente é introduzido por Hegel na época contemporânea, somente a partir do séc. XIX. Neste sentido, cf. as obras de HEGEL: Lições sobre a filosofia da história e Fenomenologia do espírito, citado por CORBESIER, Roland. Introdução à filosofia. Tomo I, 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 1990, pp. 92 e 93.

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torna-se mister diante da postura que aqui será adotada ao descrever o aspecto ontológico

da tecnologia. Dito de outro modo: ao tratar da essência da tecnologia, não se pretende dar

um enfoque determinista, imutável ou a-histórico sobre a tecnologia. Entende-se que a

tecnologia é um fenômeno social, circunscrita a partir de circunstâncias históricas de cada

época e, por isso mesmo, passível de identidade variável ao longo da história. Portanto,

compreender sua essência significa, inclusive, analisá-la tendo em vista uma perspectiva

conjuntural.

Nisso, justifica-se o recorte temporal que realizamos, pois, entendemos que na

modernidade, devido a fatores econômicos, políticos, sociais, culturais, etc, a tecnologia é

marcada por uma outra identidade que a difere da concepção grega ou medieval, por

exemplo. Esta é, pois, uma das conclusões deste primeiro capítulo. E é esta opção

metodológica de análise que nos credencia a descrever ontologicamente a tecnologia sem

correr o risco de cair em posições de caráter deterministas ou essencialistas, considerando a

tecnologia como um fenômeno único, inerente e intransponível ao ser humano no decorrer

de toda a história. Postura esta, aliás, que será rechaçada logo de início quando abordarmos

o aspecto etimológico e conceitual da tecnologia.

Compreender a identidade da tecnologia significa, então, circunscrever sua

necessidade e função social. Afinal, se a sociedade pode ser denominada de

“industrializada”, ou “pós-industrializada”, ou ainda “informatizada”, assim o é devido,

inclusive, ao fenômeno social da tecnologia. Consideramos ser de fundamental importância

na sociedade em que vivemos pensar sobre este prisma a tecnologia, pois, o mundo que

nos cerca é o da tecnosfera. Cibernética, automação, engenharia genética, computação

eletrônica, eis alguns dos ícones representativos da sociedade tecnológica que nos envolve

quotidianamente. Por isso, refletir sobre a natureza da tecnologia, implica em tomar

posição frente a ela, enquanto valoração deste fenômeno social.

Claro está que nossa pretensão não tem em vista o esgotamento do assunto, até

porque o tema não se nos apresenta de modo tão simples. A reflexão que propomos fazer

mais que uma conotação semântica, pretende ser filosófica; mais que arqueológica,

pretende ser contextual; mais que fenomenológica, pretende ser histórica. Aliás, mais que

histórica, pretende ser ontológica, posto que a tecnologia é, antes de tudo uma categoria

existencial, ou seja, é um fenômeno que diz respeito à condição existencial do homem de

estar-no-mundo. Nisto reside a complexidade do assunto. Mas, acreditamos, que este é

também o desafio, pois, aí está o cerne da questão.

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Por causa da abordagem metodológica que privilegia a análise filosófica, a natureza

da tecnologia será estudada, tendo em vista a seguinte estruturação didática.

Com o propósito de introduzir o assunto e, a título provocativo, introdutório e não

de aprofundamento, destacamos alguns posicionamentos valorativos a respeito da função

social da tecnologia na atual sociedade em que vivemos. Tais posicionamentos foram

explicitados a fim de reforçar a tese de que a valoração ou a função social que atribuímos à

tecnologia está intrinsecamente relacionada com a concepção que temos dela. Ou seja, a

emissão de juízo que atribuo à tecnologia e seu papel na sociedade dependem do conceito

que tenho dela. Daí a importância capital em discutir a natureza deste fenômeno social.

De posse desta problematização que nos impulsiona a aprofundar o assunto,

adentramos propriamente no tema do primeiro capítulo, iniciando com alguns

esclarecimentos de caráter semântico sobre o uso de conceitos, como: ciência, técnica e

tecnologia. Aqui, enfocamos as aproximações e diferenciações conceituais destas

categorias, inclusive, demonstrando os equívocos conceituais mais comuns. Do mesmo

modo que também procuramos resgatar o sentido etimológico originário dado pelo berço

da filosofia grega. Essa análise introdutória, meramente semântica da tecnologia e de

categorias correlatas, será importante para esclarecer ao leitor dos limites desta opção

metodológica ao enfocar o assunto, a qual necessita, pois, do auxílio de uma outra

ferramenta que é a análise filosófica e contextual.

Por isso mesmo, num segundo momento, passamos a aprofundar especificamente a

gênese da tecnologia moderna, sob a perspectiva ontológica. Partimos da concepção

fenomenológica de Heidegger sobre a essência da técnica, que constitui, cremos nós, um

dos pensadores indispensáveis para a compreensão ontológica da tecnologia em nossa

época atual. Destacando suas principais idéias sobre a questão da técnica, observou-se o

empenho do filósofo em desmistificar os conceitos de caráter antropológico e instrumental

dado à técnica pelos contemporâneos. Mas aqui também pontuamos a insuficiência da

análise fenomenológica da tecnologia realizada por Heidegger

O próximo passo, então, foi buscar nos autores modernos uma análise da tecnologia

que privilegiasse o sentido histórico, concreto e dialético da tecnologia moderna.

Encontramo-la em Marx que concebe a tecnologia moderna a partir da produção do

capital.12 Então, para Marx, a tecnologia é o uso da ciência como força produtiva em vista

12Neste sentido justifica-se a inversão histórica por nós utilizada, quando da exposição da gênese da

tecnologia moderna (Cf. tópicos .4.1 e 4.2 deste capítulo). Como se observa, historicamente Marx é anterior a Heidegger. No entanto, a opção metodológica de iniciar o estudo da questão por Heidegger, tem em vista sua análise fenomenológica sobre o assunto, que constitui, em nosso entendimento, ponto de partida, mas não de

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o maior lucro, ou seja, na modernidade a tecnologia surge da aliança entre o saber e o fazer

(ciência e técnica), com vista a maior produção. Ressaltamos a aliança entre ciência e

técnica, como condição sine qua non para o surgimento da tecnologia da forma como a

compreendemos hoje. Desta compreensão, adveio a necessidade de aprofundar a estreita

relação entre tecnologia e ciência na modernidade.

Tal exigência obrigou-nos a dar um outro passo: utilizando-se do contexto histórico

do séc. XVII, enfatizamos o caráter ideológico da aliança entre ciência e técnica, a partir da

visão dos teóricos da Escola de Frankfurt, sobretudo Habermas. Aqui fizemos menção à

Teoria Crítica da Escola de Frankfurt sobre a ciência e a técnica enquanto ideologia, que

tem na tecnologia a realização da fusão entre o conhecimento teórico (ciência) e

conhecimento prático (técnica).

De posse da construção deste referencial teórico sobre a gênese e a identidade da

tecnologia moderna, com base na análise heideggeriana, marxiana e frankfurtiniana, e,

seguindo a sistemática desta pesquisa, passamos a apontar os principais elementos para a

constituição de um “outro entorno” ontológico da tecnologia.

Por fim, a título conclusivo, enfatizamos os principais aspectos apontados neste

capítulo que indicam, segundo nosso critério, o norte para uma compreensão ontológica da

tecnologia na modernidade, em sentido crítico. Neste momento, iniciamos o embate teórico

com algumas concepções sobre o tema assinaladas no decorrer do trabalho, ao mesmo

tempo em que também reforçamos outras posições e vertentes de análise, transcritas no

decorrer do trabalho. Vale lembrar que nesta empreitada foram nossos interlocutores

principais: Heidegger, Marx, os teóricos da Escola de Frankfurt (sobretudo Habermas) Ruy

Gama e Milton Vargas. Além desses, constantemente buscamos auxílio através do

posicionamento crítico do filósofo latinoamericano Enrique Dussel.

Assim, assegurando nossa visão própria, justificamos a necessidade de aprofundar

ainda mais a natureza da tecnologia moderna a partir de seu aspecto epistemológico, objeto

de análise do capítulo próximo.

2. TECNOLOGIA E VALORAÇÃO SOCIAL: ALGUNS POSICIONAMENTOS

Como fora dito anteriormente, a discussão sobre o que é a tecnologia, fatalmente

nos conduz a um posicionamento valorativo frente a ela. E, porque vivemos no mundo da

chegada. A visão de dialeticidade e historicidade do real empregada por Marx, pode nos auxiliar, cremos nós, a dar um passo adiante na compreensão da identidade da tecnologia moderna.

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tecnosfera, seja para negar, para confirmar ou para exaltar a tecnologia, muitos são os

autores que apresentam suas avaliações e posições a cerca da valoração social da

tecnologia. Assim, com o intuito de problematizar o assunto e julgando ser esta a melhor

opção didático-metodológica, optamos por iniciar a análise ontológica sobre a tecnologia,

apresentando alguns posicionamentos existentes atualmente na doutrina a respeito da

função social da tecnologia. Destacamos aqui, três desses diferentes posicionamentos,

classificando-os como sendo representativos respectivamente da corrente otimista, da

corrente pessimista e da corrente moderada.

O primeiro deles, refere-se a um dos pensadores mais importantes da atualidade a

refletir sobre a sociedade informática, que tem uma visão otimista sobre a tecnologia.

Trata-se de Adam Schaff, para quem

A sociedade informática proporcionará os pressupostos para uma vida humana mais feliz; eliminará aquilo que tem sido a principal fonte da má qualidade de vida das massas na ordenação do quotidiano: a miséria ou, pelo menos, a privação. Abrirá possibilidades para a plena auto-realização da personalidade humana, seja liberando o homem do árduo trabalho manual e do monótono e repetitivo trabalho intelectual, seja lhe oferecendo tempo livre necessário e um imenso progresso do conhecimento disponível, suficientes para garantir o desenvolvimento. Desse modo, o homem receberá tudo o que constitui o fundamento de uma vida mais feliz. Todo o restante dependerá dele, de sua atividade individual e social. 13 Na previsão de Schaff encontramos algumas idéias característica daqueles que

defendem incondicionalmente a tecnologia, inclusive nos moldes em que ela se encontra

hoje. Argumentos como: “garantia de bem-estar para o homem”; “desoneração do trabalho

pesado”; “necessidade básica para o progresso e o desenvolvimento”; “curso natural do

desenvolvimento e do progresso científico” são comuns nesta corrente.

Uma outra corrente se opõe frontalmente aos “otimistas”, porque considera que na

gênese da tecnologia está a destruição da vida e do planeta. Para os pessimistas, não há

que se falar sequer em possibilidade de reversão do quadro de destruição, a permanecer a

natureza da tecnologia tal como a concebemos hoje. Citemos a observação de Enguita:

A tecnologia continua sendo o resultado ‘natural’ da ciência em uma sociedade orientada pela busca do lucro empresarial. Sua aplicação é também, em certo sentido, inevitável, devido aos mercados competitivos. Seus efeitos, contudo, não são já positivos, mas negativos: ela destrói lugares de trabalho, condena os trabalhadores a empregos desqualificados, monótonos e rotineiros, induz ao consumismo, desumaniza as relações sociais e, enfim, nos conduz ao holocausto universal. Os trabalhadores, o movimento operário, a esquerda tradicional e o marxismo não souberam responder à civilização

13SCHAFF, Adam. A sociedade informática. São Paulo: Brasiliense, 1993 , p. 154 e 155.

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produtivista que acompanha o mito do progresso [...]. O trabalho não será nunca reino de liberdade de forma que se torna necessário falar de uma cultura do ócio e do tempo livre.14

Relacionando com a noção de trabalho, esta corrente considera que a tecnologia é

um mal implacável, posto que trará consigo a eliminação do trabalho humano. Condição

esta, alegam, sobretudo, os marxistas, inerente ao processo de humanização do homem.

Ademais, dizem “os pessimistas”, a tecnologia orientada pelo lucro, existe em função da

maior produção, daí a robotização e, por fim, a destruição do homem.

Uma terceira via, prega a necessidade de repensar a direção dada à tecnologia hoje,

postulando que é necessário minimizar os riscos sem abdicar dos benefícios que a

tecnologia propicia a humanidade. Neste sentido, Kneller assinala:

O caminho mais sensato é almejar um progresso limitado e manter seus inevitáveis custos em nível mínimo. Alguma inovação tecnológica é essencial e desejável. Ela tem sido necessária à modernização de todas as sociedades, e habilitará a nossa a sobreviver e melhorar. O desenvolvimento de novas tecnologias deve ser encorajado e o treinamento de tecnólogos imaginativos promovido. [...] A tecnologia pode criar ou destruir, tornar o homem mais humano ou menos. Mas as civilizações, como os indivíduos, devem correr riscos se quiserem progredir. Se exercermos prudência para minimizar os danos da tecnologia e incentivar o máximo seus benefícios, certamente valerá a pena aceitar o risco.15 Como se observa, a posição dos “moderados” consiste em enfatizar um sistema

tecnológico capaz de se adequar a uma sociedade democrática mais humana. Ao apresentar

a obra de Ruy Gama, Engenho e tecnologia, Motoyama diz: “Por conseguinte, para a

materialização de uma sociedade democrática é insubstituível a evolução tecnológica

adequada às características humanas e regionais”.16

Como se vê, tais posicionamentos confrontam-se entre si. Disso decorre a primeira

observação importante e necessária para o escopo da análise que pretendemos empregar: o

significado, o valor e o papel que atribuímos à tecnologia na sociedade estão

intrinsecamente relacionados com a concepção que temos dela. Daí a importância capital

em discutir a natureza deste fenômeno social. Com o objetivo de aprofundar um pouco

mais o dito acima, começamos pela distinção entre ciência, técnica e tecnologia.

3 CIÊNCIA, TÉCNICA E TECNOLOGIA: APROXIMAÇÕES E DIFERENCIAÇÕES

14ENGUITA, Mariano F. Tecnologia e sociedade; a ideologia da racionalidade técnica, a

organização do trabalho e a educação. In: SILVA, Thomaz T. da. Trabalho, educação e prática social; por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. p. 231.

15KNELLER, , G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980. pp. 269 e 270.

16 GAMA, R. Engenho..., op. cit., p.11.

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Tendo em vista que o foco principal da análise aqui proposta é apontar algumas

reflexões sobre a gênese da tecnologia, inicialmente entendemos que é necessário fazer

algumas distinções entre ciência, técnica e tecnologia, visto que freqüentemente

encontramos referências que utilizam os termos como sinônimo, o que consideramos um

equívoco. É comum, por exemplo, confundir técnica com tecnologia; ciência com

tecnologia ou ciência e técnica.

Inicialmente explicitemos a distinção entre técnica e tecnologia. Para tanto, citemos

o sentido conceitual dos dois termos extraído do Dicionário das Ciências Sociais, citado

por Ruy Gama. Primeiramente o conceito de técnica, depois o de tecnologia:

Técnica: conjunto de regras práticas para fazer coisas determinadas, envolvendo habilidade do executor e transmitidas, verbalmente, pelo exemplo, no uso das mãos, dos instrumentos e ferramentas e das máquinas. Alarga-se freqüentemente o conceito para nele incluir o conjunto de processos de uma ciência, arte ou ofício, para obtenção de um resultado determinado com o melhor rendimento possível. Tecnologia: estudo ou conhecimento científico das operações técnicas ou da técnica. Compreende o estudo sistemático dos instrumentos, ferramentas e das máquinas empregadas nos diversos ramos da técnica, dos gestos e dos tempos de trabalho e dos custos, dos materiais e da energia empregada. A tecnologia implica na aplicação de métodos das ciências físicas e naturais [...].17

Como se verifica na primeira parte do conceito citado acima, a técnica compreende

essencialmente a noção do ‘fazer’, habilidade esta inata ao ser humano, utilizada na

resolução dos problemas fundamentais do homem. Portanto, ela é tão antiga, quanto à

própria linguagem e nasce da relação homem e natureza, em vista da sobrevivência

daquele.18 Já a tecnologia, conforme enseja a afirmativa acima, possui uma amplitude

maior, visto que abrange “o conhecimento científico das operações técnicas”.

E a ciência? No que ela se diferencia da técnica e da tecnologia? Em sentido

etimológico e genealógico, a ciência compreende o saber teórico, explicativo da realidade e

que envolve a natureza e a cultura como um todo. Portanto, a ciência enquanto forma de

conhecimento é mais abrangente que a tecnologia, pois, aquela é o pensamento organizado

racional (o “logos” grego) sobre o mundo, o real; enquanto que a tecnologia é o “logos” da

técnica em específico. Sobre a distinção entre ciência e técnica, é mister salientar que na

Grécia Antiga (séc. VI) havia uma clara diferença entre o saber teórico, contemplativo

17 BIROU, Alain. Dicionário das ciências sociais. Lisboa: Ed. D. Quixote, 1966, citado por

GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo:Edusp, 1987, p. 30 e 31. 18 Esta noção de técnica, será severamente criticada por Heidegger, em seu ensaio sobre A questão

da técnica, o qual apresentamos mais adiante. Segundo Heidegger, trata-se de uma noção instrumental e antropológica de técnica que corresponde ao que é correto, mas não ao que é verdadeiro, sob o ponto de vista filosófico da essência da técnica (Cf. tópico 4.1 deste capítulo).

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promovido pela ciência, do qual tinham acesso somente os filósofos, e o saber prático e

técnico, promovido pelos artesãos e acessível aos escravos.

Mas, esta distinção comumente encontrada na literatura que trata do assunto merece

ainda maior aprofundamento. Recuperemos, então, o sentido originário de técnica, dado

pelos gregos.

O historiador da filosofia Giovanne Reale esclarece que a palavra grega techné

(τέχνη) “implica, ao mesmo tempo, conhecimento do universal e aplicação prática, com a

predominância do primeiro sobre a segunda”.19 Portanto, o sentido de técnica empregado

pelos gregos diz respeito a um conhecimento universal aplicado à prática, donde o possuía

o artesão que, ao produzir um utensílio tinha a dimensão da totalidade do objeto produzido.

Esta distinção nos parece fundamental diante do propósito de nossa análise, pois, em

sentido moderno, a técnica passou a ser um conhecimento eminentemente prático e

específico: diz-se do conhecimento técnico aquele que é especializado. A predominância é

sempre da aplicação prática em detrimento ao conhecimento universal, ao contrário do que

propunha a civilização grega. Ademais, é por isso que se torna incorreto atribuir a palavra

techné o mesmo sentido de “arte” tal como conhecemos hoje. Neste sentido Reale alerta:

A palavra techné tem em grego uma extensão muito mais vasta que a nossa palavra ‘arte’. Com essa se pensa uma atividade profissional qualquer fundada sobre um saber especializado , isto é, não só a pintura, a escultura, a arquitetura e a música, mas também, e mais ainda, a arte sanitária, a arte da guerra e até mesmo a arte do piloto. E dado que a palavra exprime que tal consuetude e ou atividade prática não se apóia só sobre uma rotina, mas sobre regras gerais e sobre conhecimentos seguros, ela chega facilmente ao significado de ‘teoria’, significado que tem correntemente na filosofia de Platão e de Aristóteles, especialmente onde se trata de contrapô-la à pura empiria ou ‘prática’. Por outro lado, techné se distingue de epistéme, a ‘ciência pura’, enquanto a techné é pensada sempre a serviço de uma práxis.20 A “práxis” grega (πραξις), em sentido amplo, indica sempre “o agir e o fazer dos

homens, como atitudes distintas da contemplação”.21 Diferentemente da poiésis (ποιήσις)

que indica “produção”: uma ação que produz fora do sujeito, a práxis é a ação que parte do

sujeito e volta para o sujeito. Portanto, é uma ação moral.

Enrique Dussel, ao elaborar uma Filosofia de la producción, já na parte introdutória

de sua obra chama a atenção para o sentido da questão, quando diz:

Desde já devemos aclarar que prático vem do grego (πραξις: práxis) e indica a relação homem-homem; em especial a relação política, ou as relações sociais de produção.

19 REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol. 1. São Paulo: Loyola, 1995, p. 250. 20 Id. Ibid. 21 REALE, op. cit., p. 211.

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Enquanto que poiésis e poiético vem de outra palavra grega (ποιήσις: fazer, produzir, fabricar) e indica a relação homem-natureza, em especial a relação tecnológica, ou todo o âmbito das forças produtivas, a divisão do trabalho, o processo de trabalho, etc.22

Mas há ainda outro esclarecimento sobre a técnica que aqui é mister expor. Trata-se

da relação entre phronesis e techné, a qual também se ocupou Aristóteles.

O VI livro da Ética a Nicômaco é consagrado à prudência (phronesis) que é a virtude da decisão certa e justa. Para determinar o que esta virtude tem de específico, o filósofo a comparava às virtudes intelectuais, à ciência, à arte (techne) , à sapiência, à inteligência intuitiva. A aproximação entre phronesis e techne se impõe de modo especial porque ambas pertencem à razão prática. Têm em comum que cada uma versa sobre “o que é que pode ser de outro modo”, qual é seu contingente, por oposição ao necessário, que é objeto da ciência propriamente dita. De resto, diferem-se a poiésis, a criação e a práxis, a ação ética. A techne se refere à primeira, phronesis à segunda.23 Nota-se, então, que para Aristóteles a técnica possui uma estreita vinculação com a

prudência. A técnica é a virtude mais puramente intelectual da prudência. Aristóteles fala

na techné como um “habitus poiético segundo a razão certa”; é a razão que dirige a

produção. Por isso, Cottier, prosseguindo na interpretação de Aristóteles, sobre a técnica,

esclarece:

Poiesis pode, em realidade, ser traduzida como produção, fazer, fabricação, criação. Os Latinos dirão ars factiva. A razão certa se refere àquela verdade prática que é a verdade técnica; esta tem competência sobre a forma e a medida que o produtor dá ao objeto produzido. De resto cada arte tem por objeto fazer vir qualquer coisa à existência (gênesis), e a explicação da arte consiste em descobrir (technazein e theorein) os meios (ou, o como) fazer vir à existência uma ou outra das coisas que possam ser ou não ser e, em cujo princípio reside no produtor e não na coisa produzida. Porque a arte não tem por objeto nem as coisas que são ou vêem à existência necessariamente, nem as coisas que são ou vêem a existência por natureza, do momento que aquelas coisas têm seus princípios nelas mesmas.24 Voltaremos a esta questão da técnica como a virtude de dirigir a razão certa, como

prudência, no capítulo sobre a dimensão epistemológica e axiológica da tecnologia. Por

enquanto, vale lembrar que para Aristóteles, a techné, enquanto poiésis, assim como a

phronesis compreendem ambas a parte da razão prática.

Prossigamos com o aclaramento dos termos, tratando agora da tecnologia.

Aristóteles, em seu tratado sobre Política, imaginava a seguinte situação:

Com efeito, se cada instrumento pudesse cumprir a sua função a uma ordem dada ou apenas prevista, conforme diz das estátuas de Dédalo ou das tripeças de Éfeso, as quais, a ouvir o poeta, “entram de próprio impulso na assembléia divina”, assim também se as

22 DUSSEL, Filosofía..., op. cit., p. 13. (Tradução livre). 23 COTTIER, Georges. Criteri di giudizio etico sulla tecnologia. In: BAUSOLA, Adriano et al.

Etica e transformazioni tecnologiche. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 72.(tradução livre) 24 ARISTOTELES, Ética a Nicômaco. 1140a , 10-16. Ib. ibid. (tradução livre)

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lançadeiras tecessem as toalhas por si mesmas e se as palhetas tocassem a cetra, os mestres artesãos não haveriam de precisar de subordinados, nem os patrões de escravos.25 Da situação utopicamente imaginada pelo filósofo que não acreditava poder existir

uma sociedade sem escravos, o que se viu foi a sua realização. A utopia tornou-se

realidade, quando passou a ser real a possibilidade da substituição do trabalho escravo pelo

desenvolvimento técnico, ou seja, através do instrumento que funciona direto por um

comando e que substitui o trabalho servil do homem. Então, agora, o instrumento passou a

significar mais que uma mera ferramenta, porque alberga em si a habilidade da arte, ou

seja, contém em si o conhecimento procedimental que antes pertencia ao homem. Nascia aí

o sentido de tecnologia.

Sobre o uso em sentido histórico do termo “tecnologia”, Ruy Gama alerta que

remonta às origens da civilização ocidental. E diz:

A palavra tecnologia não é nova; apesar das afirmações de que ela foi inventada no séc. XVIII, há fortes argumentos contrários. O Dicionário etimológico da língua portuguesa, de Antenor Nascentes dá como origem a palavra grega Technologia e o Dictionaire grec-français de A. Bailly dá para τεχνολσγια , ας o significado de “tratado ou dissertação de uma arte”. O importante é que Bailly assinala sua presença na obra de Cícero (106 – 43 a.C.), particularmente em Cartas a Alticus,26 Mas, o fato é que a tecnologia em sentido moderno está intrinsecamente

relacionada com a aliança entre ciência e técnica. Milton Vargas, por exemplo, esclarece

que a tecnologia é um fenômeno da modernidade27:

No início do século XVII, dois fatos cooperaram para o aparecimento da tecnologia como uma aproximação da técnica com a ciência moderna. O primeiro foi o aparecimento, na Europa, de uma crença de que tudo que pudesse ser feito pelo homem poderia sê-lo por intermédio de conhecimentos científicos. O segundo foi que a ciência experimental exigia, para seus experimentos, instrumentos de medida precisos que teriam que ser fabricados ou por cientistas com dotes artesanais ou por artesãos, informados pelas teorias científicas. Essa, sem dúvida, foi a origem da tecnologia como utilização das teorias científicas na solução de problemas técnicos [...] Os primeiros sucessos apareceram ao se explicar o funcionamento das máquinas a vapor por meio de teorias científicas para a construção de máquinas elétricas e confirmou-se com a eletrônica; não se sabe exatamente onde termina a ciência e começa a técnica.28

25 ARISTÓTELES, La Política. 1253b, 33 – 1244a , 1. Apud, COTTIER, op. cit., p. 76.(Tradução

livre) 26 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p. 40. 27 Especificamente sobre este aspecto, ou seja, que a tecnologia é um fenômeno estritamente

moderno, vale lembrar que o posicionamento do autor será retomado como objeto de crítica nos aspectos conclusivos deste capítulo (pp. 30 e ss).

28 VARGAS, M. Dupla transferência; o caso da mecânica dos solos. Revista USP. São Paulo, n. 7, p. 3-12, 1990. Apud RIBEIRO DE SOUZA, Sonia Maria. Um outro olhar. São Paulo: FTD, 1995, p. 229. Semelhante posição adota o autor ao discorrer sobre “Tecnologia, técnica e ciência”, in GAMA, Ruy (Org.) Ciência e técnica (ontologia de textos históricos). São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 1984, p. 14 e VARGAS, Milton. Metodologia da pesquisa tecnológica. Rio de janeiro: Globo, 1985, p. 13 e ss.

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A constatação do referido autor sobre o surgimento da tecnologia evidencia

claramente que a tecnologia, em sentido moderno, não pode ser entendida simplesmente

como o estudo da técnica. É mais que isso: a tecnologia implica “na utilização das teorias

científicas na solução de problemas técnicos”.

Para ele, a tecnologia está intrinsecamente relacionada com a aliança entre ciência e

técnica. Portanto, é da aliança entre o saber técnico e o saber científico, a partir da era

moderna, parceria esta inevitável pela visão empirista da ciência e pelo surgimento da

sociedade capitalista, solidificada no processo da Revolução Industrial, que surgirá o

conceito de tecnologia tal como compreendemos hoje.

Sobre o uso do termo a partir da era moderna, em que está explícito a preocupação

de aliar Teoria e Prática, citam-se alguns exemplos extraídos da pesquisa realizada também

por Ruy Gama.

O termo em si foi cunhado pelo alemão Johann Beckmann (1739-1811) que era

professor de Ciências econômicas de Göttingen. Ele se dedicava a explanação científica

das artes dos técnicos e artesãos.29 Nos Estados Unidos, o termo “technology” foi usado

em 1829 por Jacob Bigelon, que, nas suas conferências referia-se ao termo como

“aplicação da ciência às artes úteis” 30. Em 1861, com a fundação do MIT (Massachussets

Institute de Technology) o projeto previa claramente a necessidade de um conhecimento

voltado às finalidades práticas, ao invés de um saber “puro”, meramente teórico.31 A École

Polytechnique, criada na França em 1794, visava, entre outros objetivos, a reunião entre a

teoria e a prática. Os dizeres de um dos pioneiros da criação deste instituto, Gaspar Monge,

expresso logo no prefácio da sua obra Geometria Descritiva, citado por Gama, ilustra a

proposta da escola:

Para tirar a Nação Francesa da condição de dependência da indústria estrangeira em que está mergulhada até o momento, é preciso, em primeiro lugar, estabelecer a instrução baseada no conhecimento dos objetos, para o que é necessário ter precisão – o que até o presente está abandonada – e educar as mãos de nossos técnicos especialistas no manejo dos instrumentos. (grifo nosso)32 Também em Portugal, o uso do termo usado por José Bonifácio, talvez pela

primeira vez naquele país, enfatizava a necessidade de “eliminar a oposição entre teoria e

29 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 9. 30 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 50. 31 GAMA, R. História.da técnica e da tecnologia. São Paulo, 1985, p. 10 e 11. 32 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 42

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prática”. Um senhor de engenho no séc. XIX aqui no Brasil escrevia “com veemência

sobre o uso da ciência para finalidades práticas”.33

Como se vê , todas as situações acima descritas, ainda que geograficamente e

historicamente narradas de maneira isolada e factual, apontam para a mesma necessidade,

qual seja: unir o conhecimento teórico (especialmente dos cientistas) ao conhecimento

prático (sobretudo dos técnicos). Tal necessidade não acontece por acaso ou

aleatoriamente; ela é fruto de um projeto político, econômico, social, enfim de uma nova

cosmovisão, o qual está sendo engendrado neste período: trata-se do surgimento da

sociedade capitalista. Em sentido filosófico , a justificativa de aliar o conhecimento teórico

e o prático, pode ser explicada através do empirismo. Corrente filosófica esta que se

constitui um dos pilares da dimensão epistemológica na modernidade, conforme veremos

no próximo capítulo.

Contudo, também o conceito em sentido etimológico, meramente semântico não é

suficiente para atingir o propósito deste trabalho, posto que entendemos que não existe

significado fora de seu contexto, pois, todo conceito necessariamente nasce de uma

determinada conjuntura e se transforma a partir de outros novos contextos. É por isso,

inclusive, que optamos pelo uso do termo conceito e não definição. O sentido de definição

fecha o significado sob o ponto de vista da dinamicidade da história, o que não é nossa

posição. Portanto, necessário é indagar sobre qual contexto estamos nos referindo à

técnica, à tecnologia e à própria ciência.

Uma demonstração clara de que o conceito sofre variações de acordo com a

dinamicidade da história reside na própria passagem do dicionário da Oxford (The Oxford

English Dictionary), editado em 1895 e 1900, para quem “[...] o sentido que se aproxima

do grego τεχνολσγια registrado em 1683, é dado como obsoleto, em desuso no inglês

moderno”34. Como se percebe, o sentido de tecnologia a partir do séc. XIX não é o mesmo

que o registrado até o séc. XVII.

Assim, entendemos que dar igual significado à tecnologia antes e depois da era

moderna parece-nos um equívoco, posto que, com as transformações advindas, sobretudo,

da ciência na modernidade a tecnologia passou a significar mais que o mero estudo sobre a

técnica. Neste sentido alude Medeiros e Medeiros35 que a tecnologia possui significado

33 GAMA, História...., op. cit., p. 11 34 GAMA, R. Engenho e tecnologia. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1983, p.40 35 MEDEIROS e MEDEIROS. O que é tecnologia. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 7 e ss.

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próprio por ser uma versão mais elaborada da técnica; ela não pode ser confundida com os

produtos que ajuda fabricar.

Ademais, além do aspecto histórico que se deve levar em conta, insistimos que o

perigo dos métodos de estudo que privilegiam a análise semântica meramente conceitual,

advém do fato de desconsiderar o aspecto filosófico que permeia a complexa questão da

tecnologia. E, corroborando com a tese de Laruelle, acrescentamos:

Uma análise filosófica da “tecnologia” e da ‘técnica” não se reduz ao inventário lexical e semântico destas palavras e de suas definições. Mas ela não pode evitá-lo e deve passar, deles se servindo como de um material, por esses jogos polissêmicos, deslizamentos, derrapagens, sobredeterminações de sentido e sedimentações de usos. Eis aí toda uma história e mesmo toda uma filosofia.36 Portanto, um procedimento mais rigoroso sobre o que é tecnologia enfocaria as

definições que comumente encontramos na literatura como sendo simples materiais a

serem utilizados como ponto de partida e não de chegada. Nisso reside o trato filosófico da

questão, pois, uma análise mais profunda sobre a natureza da tecnologia exige uma

reflexão a priori sobre o fenômeno, que não se confunde com a realidade objetiva, dada

pelas máquinas, nem com as representações psicológicas, históricas ou sociológicas dadas

por estas, ao contrário, precede a elas. Também não se confunde com as definições dado

como normais, mas que não são reais. Ou seja, uma análise mais rigorosa sobre o assunto

deve levar em conta o “teor eidético”, ou o “teor de sentido destes fenômenos” 37, que é

adquirido antes de toda experiência técnica. Por isso, é a priori e, dela, deve-se ocupar a

filosofia.

A fim de esclarecer melhor o que queremos dizer, situemos então, histórica e

filosoficamente a gênese e a identidade da tecnologia moderna, a partir da análise de três

grandes pensadores que se ocuparam do tema neste período. Estamos nos referindo

especificamente a Heidegger, a Marx e a Escola de Frankfurt (sobretudo, Habermas).

4 A GÊNESE DA TECNOLOGIA MODERNA

4.1 Heidegger e a Questão da Essência da Técnica

36 LARUELLE. François. Para o conceito de não tecnologia. In: SEILER, Achin et al. Tecnociência

e cultura: ensaio sobre o tempo presente. São Paulo: Estação Liberdade, s/d, p. 209. 37 LARUELLE, op. cit., p. 212.

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Certamente o pensamento de Heidegger constitui o marco referencial para aqueles

que desejam se aventurar em discutir o significado da tecnologia, sobretudo, a partir da

modernidade. Através de uma brilhante conferência, proferida em 1953, em Munique,

intitulada A questão da técnica38, Heidegger lança as bases filosóficas sobre a essência da

técnica em sentido moderno que, para efeito de nossa avaliação e tendo em vista o objetivo

deste trabalho, tornam-se imprescindíveis traduzi-los aqui.39

Heidegger introduz o tema, esclarecendo que “a técnica não é a mesma coisa que a

essência da técnica”.40 Com isso, ele considera que a resposta sobre a questão da técnica

não é uma resposta técnica, mas ela é antes de tudo, filosófica. Assim ele argumenta:

quando procuramos a essência de uma árvore não encontramos na árvore. A essência

transcende o ser em si concreto. Logo, a essência da técnica não é de modo algum algo

técnico. Então, nunca chegaremos a identificar o que é a técnica, falando do que é técnico,

ou referindo-se aos aparatos técnicos.

Uma outra consideração importante é que para Heidegger, somente chegaremos a

ter uma relação livre com a técnica se questionarmos a técnica. Exercício este a que

Heidegger se propõe a realizar e que também é o nosso. Longe daqueles comportamentos

que se entregam à técnica, sobretudo por considerá-la neutra e que, por isso,

apaixonadamente a defendem, ou por aqueles que de modo fictício negam sua existência,

esquecendo a própria factibilidade deste fenômeno, o exercício livre de pensar sobre a

técnica implica em tomá-la como objeto, portanto, existente, materialmente falando, e, a

partir daí estabelecer o pensar livre sobre a técnica.

Também outra consideração que compõe a base do pensamento de Heidegger, e

que é, sem dúvida, a mais importante para a nossa pesquisa, diz respeito ao significado

38 HEIDEGGER op. cit. O original consta da obra em alemão, intitulada Die frage nach der technik.. 39Ao descrever a biografia de Heidegger, Safranski lembra que a conferência sobre A questão da

técnica não é um avanço isolado neste terreno. Heidegger toma a palavra num debate que já estava acontecendo na Europa, sobretudo, com o desconforto do mundo pós-guerra diante da técnica e da necessidade de discutir a relação entre política e tecnologia. Neste cenário, figuravam tanto os apologéticos, quanto os críticos da tecnologia. Por exemplo, do lado dos críticos, encontramos as manifestações em homenagem a Kafka, um homem horrorizado com o “poder do mundo coisificado”; a análise profética de Huxley em Admirável mundo novo; a obra de Weber, O terceiro ou o quarto homem, em que ele descreve o horror de uma civilização técnica e a visão de Friedrich Jünger, para quem a técnica não é só um meio, mas um modo de vida. Do lado dos anticríticos da crítica, figuravam posições, como: o “mal” não reside na técnica, mas no ser humano; “é preciso evitar a demonização da técnica, e em troca analisar melhor a técnica da demonização”, descrevia um artigo publicado no Monat, e que também era a posição de Max Bense. Além desses, vale lembrar ainda que o físico Heisenberg, bem como o filósofo José Ortega y Gasset (com a publicação de sua obra Meditações sobre a técnica) também participavam deste contexto. Ambos, inclusive, faziam-se presentes na referida conferência de Heidegger, a qual fora, “talvez o maior sucesso público de Heidegger na Alemanha do pós-guerra”. Cf. SAFRANSKI, Rüdiger, Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000, pp. 455-472.

40HEIDEGGER, op. cit., p. 41.

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instrumental e antropológico atribuído à técnica com o advento da era moderna. Heidegger

coloca em crise tal concepção e o faz a partir da seguinte análise.

Parafraseando os filósofos clássicos da Antigüidade, Heidegger esclarece que “a

essência de algo vale pelo que algo é”41. Assim, se eu digo que a técnica “é um meio para

fins”, ou que “é um fazer do homem”, estou conferindo à técnica uma determinação

instrumental e antropológica. Esta é a definição moderna de técnica, que segundo

Heidegger, é uma concepção instrumental de técnica, baseada na idéia de “fazer” e de

“meio”. É esta visão moderna de técnica que será exaustivamente questionada por

Heidegger: mesmo sendo tal concepção correta, argumenta o filósofo, ela pode não ser

verdadeira. O correto nem sempre é sinônimo de verdadeiro, pois, aquele pode ocultar a

essência de algo, ou seja, daquilo que é verdadeiro. E acrescenta: somente o que é

verdadeiro nos leva a uma relação livre com o que nos toca a partir de sua essência. Disso

conclui-se que a correta denominação instrumental de técnica não nos revela ainda sua

essência.

Então, para se chegar à descoberta do que é verdadeiro, o caminho a ser percorrido

é o da causalidade dos fenômenos, sugere Heidegger. Para Aristóteles, todo ser se constitui

a partir de quatro diferentes causas, a saber: a causa materialis, que indica do que algo é

feito, refere-se à sua materialidade; a causa formalis, que se refere à forma/figura dada à

matéria; a causa efficiens que indica os efeitos produzidos pelo ser e a causa finalis que

revela a intenção ou finalidade das coisas42. Entretanto, constata Heidegger, que “há muito

tempo temos o costume de representar as causas como o que opera efeito. Efetuar significa

então: visar resultados, efeitos. A causa efficiens, uma das quatro causas, determina de

modo exemplar toda causalidade. Isso vai tão longe que em geral nem mais se considera a

causa finalis, a finalidade como causalidade.43 Assim, quando afirmamos que a técnica é

“um meio para fins”, estamos considerando apenas a determinação instrumental da técnica

e simplesmente reconhecendo nela um tipo de causalidade, qual seja: a causalidade

eficiente.

Para Heidegger, os quatro modos de causalidade são “comprometidos” entre si e

não se realizam separadamente. E somente os quatro modos de comprometimento fazem

41HEIDEGGER, op. cit., p. 43. 42 A título de ilustração, Heidegger utiliza o exemplo da taça: feita de prata (causa material); em

forma oval (causa formal); pelo escultor (causa eficiente); para servir vinho (causa final). Cf. HEIDEGGER, op. cit., p. 45.

43 HEIDEGGER, p. 47. Este aspecto da causalidade será retomado no próximo capítulo, quando analisarmos o conhecimento científico e a causa final.

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35

com que algo apareça.44 A causalidade é o modo de deixar apresentar a coisa. Utilizando-

se do conceito de Platão (Banquete 205 b) sobre poiésis (como todo fazer-chegar à

presença, que passa do não-presente à presença, por meio da produção), Heidegger

esclarece que é através da produção que algo se torna des-velado, aparecido. A isso

chamamos de verdade: é a descoberta de algo; é o “des-abrigar”, no sentido heideggeriano.

Aplicando este conceito de verdade à questão da técnica, diremos, então, que a técnica não

é só um meio, portanto não é meramente um instrumento; “é um modo de desabrigar”,

porque atua no seio do produzir. “O produzir leva do ocultamento para o descobrimento”,

afirma Heidegger.45Portanto, “todo tipo de pro-duzir seria, neste caso, um modo de des-

velamento, um modo da techné que manifesta a verdade”.46

Mas, o desabrigar da técnica moderna possui um sentido diferente daquele

empregado pelos gregos. A técnica moderna “repousa na ciência exata da natureza”47. Por

isso, ela é incomparável com outras técnicas anteriores. Ela é mais que a simples técnica

manual, e o “desabrigar” da técnica moderna assenta num “desafiar”, observa Heidegger.

O desafio consiste em exigir da natureza aquilo que lhe é suscetível de oferecimento ao

homem. Não se trata simplesmente de guardar e cuidar.

Heidegger utiliza o exemplo do camponês: se, antes, seu esforço consistia em

preparar a terra para plantar e colher, no modo de exigir e desafiar da técnica moderna, a

ação do camponês, agora é outra, porque sua exigência para com a natureza também é

outra. Não se trata somente de pôr a semente no solo, e sim desafiar a natureza no sentido

de extrair dela o máximo de proveito e o mínimo de despesas. O campo não é somente o

lugar de guardar a semente; “o campo é agora uma indústria de alimentação motorizada”.48

Portanto, mais que extrair, a intenção e o desafio da técnica moderna é explorar, armazenar

(stock).

Disso decorre que o significado das coisas existentes a priori se altera com a

intervenção humana pela técnica. Um rio que abriga uma hidroelétrica, deixa de ser ele

mesmo e passa a constituir outro significado. Como rio ele é agora a essência da central

elétrica: o rio que tem a pressão da água. Em verdade, não é o rio que abriga a

hidroelétrica, mas é o rio que está construído na central hidroelétrica; a sua existência vale

pela energia que produz e não por ser ele mesmo o rio.

44 HEIDEGGER, op. cit., p. 54. 45 HEIDEGGER, op. cit., p. 53. 46 DUSSEL, Filosofía...,op. cit., p. 66. (Tradução livre) 47 HEIDEGGER, op. cit., p. 57. 48 Id. Ibid.

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A técnica é um desabrigar que desafia exatamente por isso: seu descobrimento é

um “pôr desafiante”. Situação em que Heidegger designa “subsistência”: “ela significa

nada menos do que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo desabrigar desafiante se

essencializa”.49 Através do conceito de subsistência Heidegger argumenta que mesmo uma

máquina não é um instrumento autônomo (contrariando a posição de Hegel, para quem a

máquina possui autonomia)50, pois, ela só existe em função de algo; disso depende sua

essência. Nisto consiste a subsistência.

Obviamente que o “pôr que desafia” será efetuado pelo ser humano. Este, na visão

heideggeriana, não é uma mera “subsistência”, posto que ele cultiva a técnica. Mas

também para Heidegger o “desabrigar”, isto é, o desvelamento da verdade pela técnica não

é um mero “fazer humano”.

Há “uma invocação desafiadora que reúne o homem a requerer o que se descobre

enquanto subsistência”,51 o qual Heidegger denomina Ge-stell, que pode ser entendida

como estruturação, invenção, criação. Não se trata de uma simples armação. Pois esta

indica montagem, estrutura, camadas ou suportes. Porém, “a armação” aqui é entendida

como “aquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo de

requerer enquanto subsistência”.52 Portanto, trata-se de uma estruturação inventiva, í.é. no

bojo da questão do desvelamento da verdade pela técnica reside a criação inventiva, que é

o modo de desabrigar característico da essência da técnica moderna. Nela, não há nada de

técnico, nada de maquinal. Daí Heidegger esclarece que a estruturação inventiva não é

“nem um fazer humano, nem um mero meio no seio de tal fazer”.53

Contudo, mesmo sendo “a armação” a essência da técnica moderna, ela não

surge com o advento desta. De fato, a manifestação da técnica moderna só vai ocorrer dois

séculos após a constituição da sua essência. Pois, para Heidegger a armação, enquanto

descobrimento que desabriga o real, corresponde à postura requerente do homem em tornar

a natureza matematizada. Isso ocorreu no séc. XVII, com o advento da moderna ciência da

natureza, sobretudo através da física experimental. Por meio da representação que põe a

49 HEIDEGGER, op. cit., p. 61. 50 Cf. p. 61 da referida obra. 51 HEIDEGGER, op. cit,. p. 65.. cit., p. 69. 52 HEIDEGGER, op. cit., p. 67. Sobre a tradução do termo Ge-stell, ainda que utilizamos

literalmente a tradução da obra consultada, a qual traduz por “armação”, entendemos que o termo germânico não encerra este sentido. A idéia de “estruturação”, “invenção”, “criação”, parece-nos ser mais coerente. Dussel esclarece ainda que o filósofo atribui-lhe um sentido diferente dos antigos, dando-lhe um significado próximo à “racionalização”, que tem o sentido de “pedir contas”, “exigir sua razão de ser”. Cf. Dussel, Filosofía..., op. cit., p 69.

53 Id. Ibid.

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natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo, a física moderna propiciou o

aparecimento não da técnica, mas da sua essência. O filósofo, esclarece ainda que

a física moderna não é, por isso, experimental porque coloca em ação aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário: porque a física põe a natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia.54 Desta análise histórica, Heidegger conclui que a essência (e não é só a essência da

técnica), sempre permanece oculta por mais tempo; ela é anterior ao aparecimento do

fenômeno. Assim, se as máquinas constituem a materialização da técnica moderna, a partir

do séc. XVIII, a constituição de sua essência, já está sendo “armada” com a moderna

ciência da natureza há, pelo menos, dois séculos antes. Parafraseando os gregos e

utilizando-se de um recurso metafórico, Heidegger, observa que o fenômeno do florescer

torna-se manifesto a nós naquilo que lhe é essencial, somente mais tarde. E acrescenta:

“Aos homens, a madrugada inicial, se mostra apenas no final”.55 Então, a concepção de

que a técnica moderna é uma ciência da natureza aplicada é enganadora, posto que, se a

essência da técnica consiste na armação (que, para tal, utiliza-se da ciência exata da

natureza), ela nada tem de técnico, maquinal, conforme demonstrou Heidegger em

princípio.

Recapitulando a tese central sobre a questão da técnica apresentada por Heidegger

até aqui, diríamos que a essência da técnica moderna se anuncia naquilo que se denomina

“armação”, que consiste na postura requerente do homem. Nela ocorre o “descobrimento”,

que “desabriga” o real enquanto “subsistência”. Mas, em que consiste a posição do homem

neste processo? Em outras palavras: qual é o seu lugar na questão da técnica?

Passemos,agora, a enfocá-lo.

Segundo Heidegger, o homem está situado no âmbito essencial da armação. Mas é

bom esclarecer que sendo a armação o modo pelo qual a realidade se desabriga como

subsistência, ela não acontece somente pelo e no homem. “A essência da técnica conduz o

homem para o caminho daquele desabrigar por onde o real, em todos os lugares mais ou

menos capitável, torna-se subsistência”56, isto é, por onde o real pode ser essencializado

pela técnica.

54 HEIDEGGER, op. cit., p. 69. 55 Id. Ibid. 56HEIDEGGER, op. cit., p. 75.

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Repare que Heidegger utiliza o termo “condução”, que indica o sentido de “levar”.

Deste modo, o homem é levado (conduzido) ao desabrigar, nisto consiste o descobrimento.

Então, a condução deve estar conjugada com o sentido de “destino”. Nestes termos, ele

esclarece “o destino de desabrigar sempre domina os homens”.57 Mas, o sentido de levar

destinadamente apontado por Heidegger, como sendo inerente, ao modo de ser da técnica,

não pode ser confundido com aquele discurso comumente usado de que a técnica é o

destino de nossa época e seu transcurso não pode ser desviado porque inalterável. Ainda

que o destino do desabrigar domine os homens, ele conduz à liberdade, porque a essência

desta reside no des-velamento da verdade. A liberdade domina o que é livre. Então o

aprisionamento do homem pela técnica não é de modo algum uma coação apática. Dito de

outro modo: a essência da técnica moderna repousa na armação; esta pertence ao destino

do desabrigar; o desabrigar implica na liberdade do desvelar a verdade. Portanto, conclui

Heidegger, “se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos

inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora”58, diante da técnica e não de

escravidão por ela.

Daí que para Heidegger o perigo não está na técnica, considerada por muitos como

demoníaca. O que há de perigoso, assegura ele, “é a essência da técnica, enquanto um

destino do desabrigar”. E conclui:

A ameaça dos homens não vem primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica cujo efeito pode causar a morte. A autêntica ameaça já atacou o homem na sua essência. O domínio da armação ameaça com a possibilidade de que a entrada num desabrigar mais originário possa estar impedida para o homem, como também o homem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdade mais originária.59 Mas, paradoxalmente, onde existe o perigo, cresce também a possibilidade de

salvação, assinala Heidegger, parafraseando o poeta Hölderlin, no hino Patmos. Em que

medida? Na medida em que “avistamos a essencialização da técnica e não apenas fitamos a

técnica”, 60 responde o filósofo. Porque a essência da técnica não é nada de técnico, a

salvação do perigo da técnica, vem pelo seu enfrentamento, pelo questionamento do que é

aparentemente técnico por um lado, e por outro lado, daquilo que é totalmente diferente

dela.61

57 Id. Ibid. 58 Id. Ibid. 59 HEIDEGGER, op. cit., p. 81. 60 HEIDEGGER, op. cit., p. 89. 61 HEIDEGGER, op. cit., p. 93

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Embora a análise heideggeriana seja fundamental para a compreensão da técnica

moderna, sobretudo, quando Heidegger esclarece que o sentido moderno de técnica difere

dos gregos porque ela implica num descobrimento da natureza que revela a verdade,

através da produção (poiésis) que agora é desafiadora, posto que a natureza é colocada

numa situação de ter que entregar sua energia a fim de que possa ser extraída e acumulada ,

Dussel observa que a visão do filósofo existencialista ainda é parcial, visto que não chega a

realizar uma crítica ao sistema capitalista, de cujo horizonte vê-se o caráter exploratório da

natureza, do sentido da produção. Em outros termos, a análise fenomenológica de

Heidegger não dá conta da compreensão econômica da técnica que, na modernidade

concebe a natureza a partir dos elementos utilizáveis que serão “transformados para um

uso máximo com o mínimo de gastos”.62 Para Dussel, esta atitude pode ser denominada de

“explorabilidade”, ou seja, é o modo pelo qual o homem (o homem moderno) ultiliza da

natureza como meras mediações exploráveis: ela vale porque pode dar algo de si ante o ato

de exprimir, extrair, sacar, roubar, para o projeto de acumular riqueza. E esta análise

dialética e histórica da tecnologia, acrescenta Dussel, encontramo-la em Marx. Seguindo,

pois, de perto a orientação dusseliana, passemos agora a aprofundar a análise marxista no

tocante à compreensão da gênese da tecnologia moderna a partir do modo de produção, em

específico, o modo de produção capitalista.

4.2 Marx e a Tecnologia como (Re) Produção do Capital

Karl Marx contempla o sentido de tecnologia tanto na sua famosa obra O capital,

sobretudo no Tomo I, como também nos manuscritos de 1851 (Caderno tecnológico-

histórico) e nos manuscritos de 1861 a 1863, intitulados Los Grundrisse ou Capital e

Tecnologia. Nestes escritos, Marx aponta dois modos de análise da tecnologia. Marx fala

do sentido da tecnologia em abstrato, enquanto análise ontológica, teórica do que é

tecnologia, e também enquanto categoria concreta e histórica que, segundo ele, é o

momento do capital. Neste segundo momento, é possível perceber um pensador mais

inspirado e desenvolto. Este sentido metodológico de análise do que é a tecnologia é assim

traduzido por ele: A produção [leia-se tecnologia] é uma abstração, porém uma abstração que tem um sentido, então põe realmente de relevo o comum, o fixo.... O geral ou o comum, extraído por comparação, é algo completamente articulado e se desdobra em diversas determinações... As determinações que valem para a produção [leia-se tecnologia] em geral

62 DUSSEL, op. cit., p. 68.

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são as que devem ser separadas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial.... Um exemplo, nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, ainda que este instrumento seja a mão. Nenhuma é possível sem trabalho passado, acumulado, ainda que este trabalho seja somente a destreza que o exercício repetido tem desenvolvido e concentrado na mão do selvagem.63 Tendo em vista o primeiro momento da análise acima descrita e levando em conta a

concepção antropológica de ser humano como homo-faber, para Marx, a tecnologia se

constitui como mediação da vida humana, que se realiza na produção (poiésis). Buscando

uma história crítica da tecnologia, ele diz: “A tecnologia nos descobre a atitude do homem

ante a natureza, o processo direto de produção de sua vida e, portanto, das condições de

sua vida social e de suas idéias e representações espirituais que delas se derivam.”64

Desta concepção de tecnologia, Marx procura elaborar uma teoria da produção a

partir da categoria de trabalho. Segundo o filósofo, o trabalho é o elemento fundante da

produção. Daí o sentido de ser humano como homo-faber. Este, como sujeito produtor,

realiza na produção a objetivação de sua pessoa. Dito de outro modo: o trabalho, como

atividade abstrata representa, para Marx, a maneira pela qual o homem se humaniza.65

Mas, em sentido concreto, no contexto da sociedade do séc. XIX, já sob os efeitos

da Revolução Industrial e observando A situação da classe operária na Inglaterra66 Engels

constata que o trabalho deixou de ser fonte de humanização para ser alienação, com a

introdução das máquinas. Numa passagem brilhante e comparada com o modo de produção

anterior ao da sociedade capitalista, ele observa:

Antes de introduzir as máquinas, a matéria prima se fiava e se tecia na mesma casa do trabalhador... com estes inventos, aperfeiçoados desde então, ano após ano, se havia assegurado o triunfo do trabalho mecânico sobre o trabalho manual. A divisão do trabalho; o emprego da força hidráulica e, sobretudo, da força a vapor e o mecanismo da maquinaria são os três grandes pilares por meio dos quais a indústria exaspera ao mundo. O tecedor mecânico compete com o tecedor manual e o tecedor manual, sem trabalho, ou mal pago passa a competência ao que tem trabalho ou ganha mais, e procura desprezá-lo. Cada aperfeiçoamento da maquinaria deixa sem pão a muitos operários.67 Portanto, o trabalho na sociedade capitalista torna-se alienado, primeiro, porque

passa a ser desvinculado da natureza; segundo, porque é realizado através de um

conhecimento especializado (daí a divisão do trabalho intelectual do trabalho de execução)

63 MARX, KARL, Los Grundrisse ou manuscritos de 1861-63, citado por DUSSEL, Filosofia...,op

cit.,p. 134. (Tradução livre) 64 MARX, Karl, O capital, I, p. 331, nota 89, Apud, Dussel, Filosofia...op. cit., p. 14. (Tradução

livre) 65 Conferir a reflexão de ENGELS sobre O papel do trabalho na transformação do macaco em

homem, In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos. Vol. 1. São Paulo: Edições Sociais, 1977. 66 Titulo da obra do jovem Engels, em 1844. 67 Citado por DUSSEL, op. cit., p. 119.

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sobre o que se produz em si, donde ocorre a perda substancial do conhecimento do

trabalhador que antes detinha a techné (recuperando o sentido grego do conhecimento

universal, individualizado e autônomo daquilo que se produz, lembremos o artesão

medieval, por exemplo) e, terceiro, porque está vinculado à produção como excedente e

não como modo de subsistência, assim como o era nas sociedades primitivas. Assim, o

trabalhador, por lhe faltarem as condições materiais para a produção (de trabalho), vende a

sua força de trabalho ao capitalista. Nisto consiste a alienação do trabalho.

Além disso, se nas sociedades primitivas, a produção equivalia ao consumo, agora,

a produção equivale ao acúmulo. A produção como acúmulo gera o capital. Este só existe

porque existe o trabalho excedente do trabalhador, que agora produz não para sua

subsistência, mas como excedente. O excedente de produção é adquirido através da

maximização da produção e da minimização do tempo. Este processo é garantido pela

tecnologia, através da maquinaria. Por isso, Marx argumenta que “com o desenvolvimento

da maquinaria as condições de trabalho também surgem como dominando o trabalho do

ponto de vista tecnológico, e ao mesmo tempo o substituem, tornam-no supérfluo em sua

forma autônoma.”, e conclui: “...De fato, separam-se da habilidade e do saber do operário

individual, e, ainda que observadas em sua origem sejam, por sua vez, produto do trabalho,

surgem em toda ocasião em que ingressam no processo de trabalho, como incorporadas ao

capital. O capitalista que utiliza uma máquina, não precisa compreendê-la”.68

Sobre o surgimento das máquinas, Marx observa:

A natureza não constrói máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, selfatinas, etc. São produtos da industriosidade humana; materiais naturais transformados em órgãos da vontade humana sobre a natureza, ou da participação humana na natureza. São órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana; o poder do conhecimento objetivado. O desenvolvimento do capital fixo indica o grau geral em que o conhecimento se tornou força direta da produção, e que grau, conseqüentemente, as próprias condições do processo da vida social tem estado sob o controle do intelecto geral e foram transformados de acordo com ele. A que grau os poderes da produção social têm sido produzidos, não apenas na forma de conhecimento, mas também como órgãos imediatos da prática social, do processo real da vida.69 Esses produtos da “industriosidade humana” que geram o “conhecimento

objetivado”, ou o “trabalho morto”, porque agora é realizado pela máquina e não mais pelo

trabalhador, só foram possíveis graças à aplicação intencional da ciência na produção. A

68 MARX., O capital, Livro I, Capítulo VI, (inédito). São Paulo: Ed. Ciências Humanas, 1978, pp.

86 e 87. Apud, BRYAN, Newton A. P. Educação,trabalho e tecnologia em Marx. In: Revista Educação & Tecnologia, n. 1. Curitiba: CEFET, 1997, p. 53.

69 MARX, Los grundrisse, I, p. 706. Apud BRYAN, op. cit.,, p. 52.

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transformação da ciência em força produtiva, isto é, aplicada à tecnologia, é descrita

historicamente por Marx, nos seguintes termos:

Só no século XVII, muitos cientistas se dedicaram ao estudo minuncioso e assíduo do artesanato, das manufaturas e das fábricas. Alguns fizeram desse campo o objeto de suas pesquisas. Só em épocas relativamente moderna descobriu-se a vinculação que une a mecânica, a física e a química com o artesanato (melhor seria dizer com a indústria). Entre os artesãos as regras e as experiências transmitiam-se dos mestres aos aprendizes e oficiais [...].70 Ou seja, utilizando-se do conhecimento científico para sistematizar o conhecimento

técnico e empregando a ciência como força produtiva (máquinas), a tecnologia moderna

rompe com as práticas artesanais primitivas, posto que separa o saber do trabalhador. O

acúmulo do saber do trabalhador é incorporado à máquina pelo capital. A máquina é,

agora, o instrumento de trabalho como tal. Daí o conceito de Marx de “máquina-

ferramenta”: aquela que executa o trabalho humano, posto que a ferramenta utilizada pelo

homem em seu trabalho é transferida para um mecanismo, a máquina, que toma o lugar da

simples ferramenta.71

Em síntese, na era moderna a tecnologia garante a mais valia e o lucro, base do

funcionamento do capital, pois, o uso do conhecimento científico como força produtiva

produz a máquina que garante a maior lucratividade, já que ela representa a maximização

da produção em detrimento à minimização do tempo. Disso decorre, uma primeira

conclusão importante para entender o sentido de tecnologia dado por Marx: “a tecnologia é

uma mediação necessária dentro do sistema capitalista diretamente ligada a uma maior

rentabilidade”.72

Outra conclusão também fundamental, inclusive para o propósito de nosso trabalho,

sobretudo no tocante ao II capítulo, é que através da tecnologia, retira-se do trabalhador o

conhecimento historicamente acumulado (a tehcné) que passa agora a integrar a máquina.

Na sociedade atual, dita informática, o ship, por exemplo, acumula o conhecimento do

trabalhador adquirido ao longo de sua história de trabalho e da história do trabalho pelo

homo-faber, e que foi expropriado pelo capital. Assim, nos Manuscritos de 1844, Marx

conclui: O operário tem sido reduzido à condição de máquina; a máquina pode opor-se a

ele como competidor”.73 Então, o trabalhador que detinha o conhecimento de seu ofício, ao

70 MARX, Capital y tecnologia. Manuscritos de 1861-1863. p. 93, citado por BRYAN, op. cit.,p.

63. 71 MARX, O capital.., op. cit.,p. 426. 72 DUSSEL, op. cit., p. 231. (Tradução livre). 73 Citado por DUSSEL, op. cit., p.121.

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invés de criador, passa a ser um mero operador ou monitor da máquina e sequer conhece

sua engenhosidade.

A contribuição da análise crítica de Marx sobre a tecnologia moderna em sua

concretude reside em grande parte nesta importante constatação:

Mas, na máquina, a ciência realizada apresenta-se ante os operários como capital. Na realidade, toda essa utilização − fundada no trabalho social – da ciência, das forças naturais e dos produtos em grandes quantidades, não surge ante o trabalho senão como meios de exploração do trabalho, como meios de apropriar-se do trabalho excedente, e, portanto, como forças pertencentes ao capital. O capital, naturalmente, só utiliza esses meios para explorar o trabalho; mas para explorá-lo tem que aplicá-los à produção (leia-se tecnologia). E desse modo, o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho e as condições desse desenvolvimento apresentam-se como obra do capital[...].74 Concluindo a contribuição de Marx para nossa reflexão, vale lembrar que para este

filósofo que se transferiu para a Inglaterra, berço da Sociedade Industrial e germe do

Capitalismo, a fim de compreendê-la in loco, a tecnologia deve ser compreendida a partir

de três níveis: como instrumento de trabalho, como processo de produção e como capital.

No primeiro caso, trata-se da intervenção da tecnologia no processo de trabalho,

como instrumentos objetivos de produção, é o que realiza a máquina-ferramenta, por

exemplo.75. Já como processo de produção, a tecnologia realiza a produtividade crescente,

a partir da mais-valia relativa. E, a tecnologia como capital representa o momento de

transubstanciação da tecnologia em capital. Trata-se da tecnologia como “capital

constante” (isto é, aquela parte do capital que se transforma em meios de produção,

materiais auxiliares e meios de trabalho; como “capital produtivo” (ou seja, o dinheiro

transformado em mercadorias. E, para produzir novas mercadorias, este capital compra o

“trabalho vivo” e as máquinas: é o investimento em tecnologia) e como “capital fixo” que

significa a fixação do capital produtivo como meios de produção, enquanto perdurar a

produção. É a retirada do capital de circulação para incorporá-lo ao processo de produção.

Sem dúvida, é na condição de processo de produção que a tecnologia moderna mais

evidencia sua identidade, pois:

Na maquinaria, a ciência se apresenta ao operário como algo alheio e externo e o trabalho vivo aparece subsumido sob o objetivado que opera de maneira autônoma...O processo constante de produção, contudo, não aparece como subsumido sob a habilidade direta do operário, senão como aplicação tecnológica da ciência. Dar à produção um caráter

74 MARX, O Captal, capítulo inédito, pp 86 e 87, citado por BRYAN, op. cit., p. 53. 75 Vale dizer, que o sentido de instrumento objetivo dado por Marx, não se refere somente à

ferramenta.; a máquina-ferramenta, é mais que ferramenta, à medida que executa a função da força motriz humana. O esclarecimento tem em vista a preocupação semântica da qual se ocupa Ruy Gama. Segundo ele, “instrumento” é diferente de “ferramenta” que é diferente de “máquina”. (Cf. GAMA, Ruy. Meios de trabalho. Téchne. São Paulo, n. 10, maio/junho, 1994, pp. 2; 31-35).

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científico é, portanto, a tendência do capital, e se reduz o trabalho a mero momento deste processo.76 Este processo é revelador do problema ético do conhecimento tecnológico, pois, no

cerne da questão epistemológica da tecnologia está o predomínio do conhecimento

científico que contribui para a alienação do trabalho, à medida que sua utilização é

requerida como necessária à transformação do trabalho vivo em trabalho objetivado (ou

“trabalho morto”). Retomaremos esta questão nos aspectos conclusivos deste capítulo e

nos capítulos seguintes, quando aprofundaremos a dimensão epistemológica e axiológica

da tecnologia moderna.

Por enquanto, resta ainda esclarecer que sob o ponto de vista histórico a tecnologia

moderna possui uma estreita relação com a ciência, conforme demonstrou Marx, em

diversas passagens ao revelar o processo de produção capitalista. Desse modo, não é

possível deixar de lado, ao tratar do aspecto ontológico da tecnologia moderna, a estreita

vinculação da tecnologia com a chamada “Ciência Moderna”, a qual passou a ser objeto de

crítica dos teóricos da Escola de Frankfurt no séc XX. Por isso, ocupemo-nos um pouco

mais do tema.

4.3 Técnica e Ciência como Ideologia: A Crítica da Teoria Crítica

A história do surgimento da tecnologia moderna confunde-se com a história da

ciência em termos de modernidade. Régis de Morais, ao descrever o contexto tecnológico

do séc. XVII, constata que “de Galileu em diante a ciência e a técnica nunca puderam, de

fato, desenvolver-se apartadamente”.77 Também Engels, ao descrever o processo da

revolução Industrial no séc. XIX considera que “o mundo industrial tirou partido da ciência

e da técnica”78.

Estes dados, além daqueles apresentados por Marx que transcrevemos acima, nos

parecem elementares para entender a gênese da tecnologia moderna, pois, sem a inclusão

da questão do surgimento da ciência moderna no cenário da discussão que aqui propomos

fazer, dificilmente teremos uma compreensão mais profunda sobre o significado da

tecnologia hoje, a partir da modernidade. Semelhante à tecnologia, também a ciência, com

o advento da modernidade, passou a ter um outro significado, diferente daquele dado pelos

76 MARX, Los Grundrisse, II, p.221, citado por DUSSEL, op. cit., p.141. (tradução livre) 77 REGIS DE MORAIS, J. F. Ciência e tecnologia: introdução metodológica e crítica. São Paulo:

Cortez & Morais, 1977, p. 105. 78 Citado por JAPIASSU, H. As paixões da ciência. São Paulo: Letras & Letras, 1999, p. 157.

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gregos, por exemplo. Vejamos o que diz o relato de estudos de história da ciência

realizado por Japiassu:

A ciência moderna nasceu com o advento da sociedade mercantilista. Não surgiu como uma atividade pura e desinteressada, como uma aventura espiritual ou intelectual. Mas dentro de um contexto histórico, separável de um movimento visando à racionalização da existência. E é todo desenvolvimento da sociedade comercial “industrial”, técnica e científica que se inscreve no programa prático da racionalidade burguesa: não se faz comércio empiricamente, pois ele é um negócio de cálculo, deve ser feito racionalmente. Assim, a burguesia nascente, que logo se instala no poder, tem necessidade de um sistema de produção permitindo-lhe uma exploração sempre maior e mais eficaz da Natureza. E tal sistema não tarda a fazer apelo a um novo tipo de trabalhador: o cientista. Doravante cabe-lhe a responsabilidade de detectar as leis gerais da Natureza. Quanto ao trabalho propriamente produtivo [...], é da alçada de engenheiros, que utilizam as descobertas dos cientistas em termos de aplicações particulares.79 É com esta tese que corroboramos. A ciência na era moderna não se constitui como

um saber livre e desinteressado, teórico e especulativo. Na modernidade, ela se tornou um

saber pragmático, necessário para dar garantia à aplicabilidade da técnica.

Ideologicamente, muitas vezes, converteu-se em tecnologia, porque se aliou à técnica.

Dussel, analisando geopoliticamente o contexto social da história da tecnologia, considera

que a ciência ocupa um papel de mediação privilegiada para o alcance da produtividade do

desenvolvimento tecnológico, sobretudo nos países centrais, chamados “desenvolvidos”.

Sua argumentação ajuda-nos a entender o papel político da ciência e sua relação com a

tecnologia:

A ciência, então, encontra-se crescentemente acoplada instrumentalmente à tecnologia; a tecnologia não é uma mera aplicação da ciência, senão que o conjunto tecnológico responde às necessidades de gerenciamento e controle, o que introduz-se obrigatoriamente no debate sobre a tecnologia, os problemas globais da organização econômica, da segurança e o militarismo. É um fato conhecido que uma altíssima porcentagem dos cientistas e tecnólogos trabalham em tarefas diretamente ligadas ao avanço da produção bélica.80 O físico alemão Heisenberg, em 1976 já observava:

Em todo este processo evolutivo que se estende ao longo dos últimos duzentos anos, a técnica tem sido ao mesmo tempo condição prévia e conseqüência da ciência. É sua condição prévia, porque amiúde uma expansão e aprofundamento da ciência só são possíveis graças a um aperfeiçoamento dos instrumentos de observação, recorde-se a invenção do telescópio e do microscópio e da descoberta de raio X. É, por outro lado, conseqüência porque, em geral, a exploração da técnica das forças da natureza só se torna possível graças a um profundo conhecimento do respectivo campo da experiência.81

79 Id. Ibid. 80 DUSSEL, op. cit.,, p. 231. (tradução livre) 81 Citado por SOUZA, S. M. R de. Um outro olhar. São Paulo: FTD, 1995, p. 230.

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A interdependência entre ciência e técnica é visto por muitos como proveitosa, daí

o prestígio profissional do técnico que é aquele capaz de adaptar a ciência à prática. É no

interior da valorização do conhecimento pragmático que se insere a tecnologia. Segundo

Kneller,

A tecnologia é essencialmente uma atividade prática, a qual consiste mais em alterar do que em compreender o mundo. Onde a ciência procura formular as leis a que a natureza obedece, a tecnologia utiliza essas formulações para criar implementos e aparelhos que façam a natureza obedecer ao homem. Tal como a ciência, entretanto, a tecnologia é uma entidade imensamente complexa que consiste em fenômenos de muitas espécies – agentes, instituições, produtos, conhecimentos, técnicas, etc.82 Mas os teóricos da Escola de Frankfurt vêem nesta aliança um perigo para a razão

emancipadora, pois, com a tecnologia a razão passou a ser um mero instrumento de

dominação, atrelando a ciência à técnica. É o que Habermas denomina o agir-racional-

com-respeito-a-fins, ou seja, uma razão instrumental que tem em vista o progresso

científico e técnico. A razão tornou-se pragmática e através da ciência e da técnica

matematizou o real e mecanizou a natureza, dissociando-a do homem. Parafraseando

Marcuse, o filósofo acrescenta:

Os princípios da ciência moderna foram estruturados a priori de modo a poderem servir de instrumentos conceituais para um universo de controle produtivo que se perfaz automaticamente; o operacionalismo técnico passou a corresponder ao operacionalismo prático. O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza passou a fornecer tanto os conceitos puros, como os instrumentos da dominação cada vez mais eficaz do homem pelo Homem, através da dominação da natureza [...]. Hoje a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas enquanto tecnologia, e esta garante a formidável legitimação do poder político em expansão que absorve todas as esferas da cultura.[...]83

Tomando de empréstimo o conceito de “racionalização” usado por Max Weber,

Habermas considera que esta é progressiva na sociedade à medida da institucionalização

do progresso científico e técnico nos setores sociais, que faz coincidir o direito privado

burguês de dominação burocrática, com o papel do Estado de racionalização técnico-

científica. Nisso reside a “racionalidade tecnológica”, que faz diferir as sociedades

modernas das sociedades tradicionais. Naquelas, observa Habermas, a intenção

tecnocrática “serve como ideologia para uma nova política orientada para tarefas técnicas”

e a “dominação manifesta do Estado autoritário (típica das sociedades tradicionais) cede às

coações manipulativas da administração técnico-operativa”. Além disso, prossegue

82 KNELLER, G. F. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 245 e 246. 83 HABERMAS, J. Técnica e ciência enquanto ideologia. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril

Cultural, 1983, p. 305. O significado de razão instrumental será retomado no próximo capítulo quando abordarmos o conhecimento da tecnologia.

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constatando Habermas, “as grandes organizações como tais se submetem cada vez mais à

estrutura do agir racional-com-respeito-a-fins”.84

Habermas, analisando ainda a visão positivista de ciência e de técnica, considera

que esta produziu o tecnicismo: “ideologia que consiste na tentativa de fazer funcionar na

prática, e a qualquer custo, o saber cientifico e a técnica que dele possa resultar. Nesse

sentido pode-se falar de um imbricamento entre ciência e técnica, pois esta, embora

dependa da primeira, retroage sobre ela, determinando seus rumos”.85

Ainda sobre a cientifização da técnica, termo usado pelo próprio filósofo,

Habermas, acrescenta:

No capitalismo, a pressão institucional para aumentar a produtividade do trabalho pela introdução de novas técnicas sempre existiu. Todavia, as inovações dependiam de invenções esporádicas que, por sua vez, podiam ter sido induzidas economicamente, tendo, entretanto, ainda o caráter de um crescimento natural. Isso mudou [a partir do século XIX], na medida em que o progresso técnico entrou em circuito retroativo com o progresso da ciência moderna. Com a pesquisa industrial em grande escala, ciência, técnica e valorização foram inseridas no mesmo sistema. Ao mesmo tempo, a industrialização liga-se a uma pesquisa encomendada pelo Estado que favorece, em primeira linha, o progresso científico e técnico do setor militar. De lá as informações voltam para os setores de bens civis. Assim, técnica e ciência tornam-se a principal força produtiva, com o que caem por terra as condições de aplicação da teoria do valor do trabalho de Marx.86 Repare que Habermas considera a cientifização da técnica como uma nova força

produtiva, posto que o “progresso técnico-científico tornou-se uma fonte independente de

mais-valia”. Segundo o filósofo frankfutiano, isso só ocorreu graças à produção em grande

escala, que exigiu pesquisa industrial que aliasse ciência e técnica, donde ambas foram

inseridas no mesmo sistema. Habermas observa que até o séc. XIX não havia

interdependência entre ciência e técnica. É com Galileu (séc. XVII) que as ciências passam

a gerir um saber tecnicamente aproveitável, mas que só terá reais chances de aplicação

concreta a partir do séc. XIX, com a pesquisa em grande escala, oriunda da Revolução

Industrial.

Deste modo, a tecnologia confere à ciência precisão e controle nos resultados de

suas descobertas e a prerrogativa não somente de um saber destinado a facilitar a relação

do homem com o mundo, mas destinado a dominar, controlar e transformar o mundo. “O

caso da biologia genética revela como a tecnologia da física, da química, da cibernética

84 HABERMAS, Jünger. Técnica e ciência enquanto ideologia. In: OS PENSADORES. São Paulo:

Abril Cultural, 1983, p. 323. 85 In: OS PENSADORES, Benjamim, Habermas, Horkheimer e Adorno – Vida e Obra. São Paulo:

Abril Cultural, 1983, p. XVII. 86 HABERMAS, Técnica..., op. cit., pp. 330 e 331.

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determinaram uma atividade interdisciplinar que resultou em descobertas e mudanças na

biologia”.87

Em síntese, a Teoria Crítica dos frankfurtianos considera que a ciência moderna

instrumentalizou a razão e escravizou o homem através do controle lógico-tecnológico,

criando a tecnocracia, onde toda a vida humana é conduzida e determinada pelos padrões

técnicos impostos pela ciência. Tudo se submete às regras da produção tecnológica. E

Marcuse acrescenta: “A dinâmica do progresso técnico está sempre impregnada de

conteúdo político. O logos da técnica tornou-se o logos da servidão. A força da tecnologia

que poderia ser libertadora _ pela instrumentalização das coisas _ tornou-se um entrave à

libertação _ pela instrumentalização dos homens [...]”88

Hoje quem dirige e controla a pesquisa científica é o poder tecnológico, situado

fora, inclusive, dos grandes centros de pesquisa, como as universidades. Estas perderam,

em grande parte, o senso de ciência como pesquisa livre e com autonomia e se tornaram

referência de pesquisas encomendadas por centros de tecnologia, feitas, inclusive, sem que

os cientistas jamais saibam de sua finalidade. Vale dizer aqui que, quando Habermas

realiza a leitura acima descrita sobre a dimensão ideológica da técnica e da ciência, era a

década de 70, período em que o contexto geo-político é marcado pela chamada “guerra-

fria”, cuja hegemonia política é americana, espaço situado das pesquisas de Habermas e o

lugar privilegiado de onde o filósofo observa a realidade, sobretudo, com a subordinação

das pesquisas científicas no processo de militarização dos EUA. É o que Habermas

denomina de “complexo ciência-técnica-indústria-exército-administração”.

5 POR UMA OUTRA ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA

Do tecido aqui construído sobre a dimensão ontológica da tecnologia, retomemos

alguns aspectos em vista do propósito em âmbito geral desta pesquisa, qual seja, analisar a

natureza da tecnologia moderna, considerando a possibilidade de propor outra perspectiva

ontológica.

Numa sociedade em que o conhecimento especializado e tecnicista tornou-se

hegemônico, o qual representa o predomínio do fazer sobre o saber, da aplicação sobre a

reflexão, fundamental é retomar e resgatar o sentido originário de técnica atribuído aos

gregos. Vimos que a techné na Grécia Antiga consistia no conhecimento universal aplicado

87 Exemplo citado por CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1998, p. 279. 88 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 257.

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à prática, com vistas à predominância daquele sobre este.89 Dela era possuidor o artífice ou

artesão que ao fabricar os produtos manufaturados (prática) detinha o conhecimento da

constituição de todo o processo de produção (conhecimento universal).90

Ao contrário, ser possuidor da técnica hoje (ser técnico) significa tão somente ter a

habilidade de operar, monitorar a máquina, sem que seja necessário conhecer

integralmente seu processo de funcionamento. A máquina, sim! Esta detém o

conhecimento acumulado do trabalhador. Portanto, a techné, que fora adquirida no

decorrer de toda história do trabalho humano, tornou-se trabalho objetivo da máquina,

reservando-se ao homem somente a função de operar (a máquina) e não mais a função de

criar. Por isso, segundo a visão marxista, o modo de produção capitalista representa a

perda qualitativa do trabalho humano.91

Assim sendo, pensar um novo entorno para a tecnologia, significa conferir um

outro logos para a técnica; significa recuperar o sentido esquecido e pervertido da techné

em tempos modernos. Isto implica em ao invés de incentivar a polivalência (discurso tão

empreendido pela nova linguagem das relações capitalistas de trabalho) − que trata de

delegar ao trabalhador o controle de todo o processo da produção, mas sem que ele saiba

seus mecanismos de criação, porque sua função é meramente operar −, incentivar a

politecnia (visão de trabalho defendida pelo modo de produção socialista), pois, trata-se de

devolver ao trabalhador o controle e a criação da produção, no sentido da sua integralidade

e totalidade.92. Nisto consiste um novo entorno do aspecto ético da tecnologia, conforme o

dizer de Dussel:

89 Cf. p. 25 neste capítulo. 90 O trabalho do artesão foi possível ser visto até o século XIX, quando do início da Revolução

Industrial. Bravermann descreve o artesão, nesta época, como aquele que “estava ligado ao conhecimento técnico e científico de seu tempo na prática diária de seu ofício”. E acrescenta: “Estes artesãos eram uma parte importante do público científico de sua época e, como norma, mostravam um interesse pela ciência e pela cultura que ia além do diretamente relacionado com o seu trabalho”. Neste mesmo sentido, encontramos a leitura de Landes sobre os primeiros artesãos a ocupar a função de maquinistas. Ele constata: “Ainda mais impressionante era a preparação teórica desses homens [...]. Mesmo os maquinistas (Millwright) ordinários, como faz notar Fairbain, eram, em geral, ‘um bom aritmético, sabia algo de geometria, nivelamento e medição, e, em alguns casos, possuía conhecimento muito preciso de matemática prática. Podia calcular a velocidade, resistência e potência das máquinas, podia desenhar em plano e em seção...’ Grande parte desses ‘feitos e potencialidades intelectuais elevados’ refletiam as abundantes oportunidades para a educação técnica em ‘povoados’ como Manchester, que iam desde as academias dissidentes e sociedades ilustradas até os conferencistas locais e visitantes, as escolas privadas ‘matemáticas e comerciais’ com aulas vespertinas e uma ampla circulação de manuais práticos e publicações periódicas e enciclopédicas”. Citado por ENGUITA, Mariano F. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, pp. 119 e 120.

91 MARX, Los Grundrisse..., op.cit., pp. 497 e 498. Neste sentido conferir a análise sobre o desenvolvimento capitalista e apropriação de saber, in: BRYAN, op. cit., p. 42.

92 Sobre a politecnia, voltaremos ao assunto no próximo capítulo, quando trataremos da dimensão do conhecimento da tecnologia.

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À medida que a tecnologia se autonomiza e se transforma em fim, que subsome como um momento seu o trabalho vivo, é imoral, destruidora do homem, um novo fetiche: o tecnologismo, o cientificismo, o positivismo lógico. Temos que tratar, indicativamente, também a questão, que abre a totalidade do sistema à transcendência de trabalho vivo, à exterioridade de sujeito de trabalho que nunca poderá ser subsumido de todo por nenhum sistema, menos ainda pelo capital.93 Um outro aspecto fundamental a título de conclusão deste capítulo sobre a

dimensão ontológica da tecnologia diz respeito à crítica de Heidegger sobre o conceito

instrumental e antropológico da técnica, quando afirmamos que a técnica é um “meio

para” ou um “fim”. Como vimos, no item 4.1 deste capítulo, Heidegger rechaça tal posição

por considerar que a esta conceituação diz respeito à técnica, mas ainda não é a essência da

técnica. Argumenta ele que a técnica, enquanto produção, é o modo de des-velamento da

verdade. Nisso consiste sua essência, pois, através do ato de produzir, o homem descobre o

mundo. Desse modo, a técnica não pode ser confundida como instrumentum. Ora, esta

nova dimensão da técnica abre também uma nova visão para a tecnologia, porque significa

destituir também da tecnologia seu caráter meramente instrumental e utilitarista. Se a

técnica é o modo de desvelamento da verdade ou de descoberta do mundo pelo homem,

também a tecnologia, enquanto logos da técnica, representa o momento hermenêutico desta

descoberta, que não encerra na dimensão do produzir em si.

Analisando outros escritos posteriores de Heidegger − além daquele que

especificamente foi o objeto de nossa investigação aqui −, sobretudo, os escritos depois

dos primeiros movimentos ambientalistas que ganham força na Europa a partir da segunda

metade do século XX (cita-se a realização do Clube de Roma, por exemplo), Dussel

acrescenta:

A técnica contemporânea não seria um mero produzir. É verdade que ela tem um modo novo de relacionar-se com respeito à totalidade das coisas. É verdade que as coisas são vistas como “existenciais” (Bestande), como reservas de um stock, porém não são como o que se pode criar segundo minha vontade: elas, as coisas, me im-põe suas condições. Por isso elas não são meras re-presentações com as quais jogo a vontade.; elas estão-já-postas [...]; ser não apresentado pela re-presentação; ser que chama ao des-velamento pela técnica para alcançar o “acontecer de co-apropriação” (Er-eigns) do homem e do ser; ser que se manifesta ao descobrimento do lógos [...]. 94 Aliando à reflexão anteriormente feita sobre o sentido de techné, com a visão

heideggeriana que questiona o sentido meramente instrumental da técnica, talvez possamos

entender porque Heidegger considera que na técnica reside a salvação, quando ele diz: “a

93 DUSSEL, op. cit., p. 141. (Tradução livre) 94 DUSSEL, op. cit., p. 70. (Tradução livre)

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essência da técnica abriga em si o crescimento do que salva”95. Pois, se como disse o

filósofo, a técnica é o modo de des-velar a verdade que se manifesta através da produção

(na relação homem e natureza), por isso, “a técnica está na potência da verdade da

natureza” e o técnico “está a serviço desse movimento de revelação da natureza”96,

Então, a técnica é, pois uma modalidade de verdade que nos convida a revelar os aspectos

escondidos da natureza que vivemos. Buzzi, referindo-se à Heidegger diz: “Pensemos um

pouco na essência da técnica que faz aparecer o oculto da natureza. Não só faz aparecer!

Convida-nos também a morar na lareira do novo aparecer, na companhia do novo mundo

de tantos objetos de uso, com que entendemos melhor nossa convivência.”97 É o que

Dussel denomina de “momento de co-apropriação do homem e do ser....”.

6 SÍNTESE DA DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Vimos que, afora a discussão sobre o uso do termo, o fato é que nunca chegaremos

à essência da técnica ou da tecnologia, falando do que é técnico ou do aparato tecnológico,

conforme também nos alertou Heidegger. Este é, para nós o primeiro aspecto importante

como conclusão desta primeira parte.

Disso decorre a necessidade de elaborar uma reflexão filosófica sobre o que é a

tecnologia, e, ao fazê-la, conclui-se que não podemos atribuir o mesmo significado à

tecnologia antes e depois da era moderna. Semelhante à história da ciência na

modernidade, a tecnologia sofre e propicia transformações profundas de caráter político,

econômico, social, filosófico, na história do séc. XVII em diante. Por isso mesmo, a

tecnologia moderna não pode ser considerada o mero estudo da técnica. Ela representa

mais que isso, pois, quando a ciência, a partir do renascimento, aliou-se à técnica,

(aproximação esta fundada nos princípios da filosofia empirista conforme veremos no

capítulo a seguir), com o fim de promover a junção entre o saber e o fazer (teoria e

prática), nascia aí a tecnologia tal como a conhecemos hoje.

A tecnologia é fruto da aliança entre ciência e técnica, a qual produziu a razão

instrumental, como no dizer da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Esta aliança

propiciou o agir-racional-com-respeito-a-fins, conforme assinala Habermas, a serviço do

poder político e econômico da sociedade baseada no modo de produção capitalista (séc.

95 HEIDEGGER, op. cit., p. 82 96 BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 84 e 85. 97 BUZZI, op. cit., p. 85.

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XVIII), que tem como mola propulsora o lucro, advindo da produção e da expropriação da

natureza. Então, se antes a razão tinha caráter contemplativo, com o advento da

modernidade, ela passou a ser instrumental. É neste contexto que deve ser pensada a

tecnologia moderna; ela não pode ser analisada fora do modo de produção, conforme

observou Marx98. Já alertamos para este fato, mas vale ainda lembrar os dizeres de Bastos,

que aqui serve como síntese do que afirmamos anteriormente:

A tecnologia é um modo de produção, utilizando a totalidade dos instrumentos, dispositivos, invenções e artifícios. Por isso, é também, uma maneira de organizar e perpetuar as relações sociais no âmbito das forças produtivas. Assim, é tempo, é espaço, custo e venda; pois não é apenas fabricada no recinto dos laboratórios e usinas, mas reinventada pela maneira como for aplicada e metodologicamente organizada.(grifo nosso)99

Seguindo esta mesma análise, encontramos a leitura de David Noble que, apoiado

na visão de Marcuse (este influenciado pelo pensamento marxista), assim se refere: “a

tecnologia moderna, como modo de produção específico do capitalismo industrial

avançado, foi, ao mesmo tempo, um produto e um meio de desenvolvimento capitalista.”100

Embora a critica contundente de Rui Gama acerca destes posicionamentos,

considerando ser “discursos antitecnológicos” e que reduzem a tecnologia ao modo de

produção101, este esclarecimento nos parece fundamental, visto que conforme tomamos o

conceito, será também nossa postura frente à tecnologia, em termos de valoração, emissão

de juízo. Isto é, o valor que atribuímos à tecnologia necessariamente está vinculado à

noção histórica que temos dela.

Deste modo, se concebemos que a tecnologia é meramente o estudo da técnica,

existente desde os primórdios, com o surgimento do ser humano102, com certeza, tê-la-

emos como um instituto indispensável para a sociedade, porque instransponível pelo

98 Cf item .4.2 deste capítulo. 99 BASTOS, João Augusto S. L. A. de. (Org.) Tecnologia e interação. Curitiba: CEFET-PR, 1998,

p. 13. 100 NOBLE, D. América by design. New York, Oxford University Press, 1980, p.33. Apud: GAMA,

R. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 19 101 Ibid. A crítica do referido autor é assim explicitada: Colocada a questão em termos marcusianos,

a crítica da sociedade burguesa cede lugar à crítica da tecnologia e da ciência; o responsável historicamente não é o capitalismo, mas a máquina, a tecnologia, a ciência. É fácil constatar a freqüência com que essa formulação aparece, explícita ou implicitamente nos discurso antitecnológicos de diversos matizes. Diferentemente da posição de Ruy Gama, consideramos que a posição de Noble não encerra a responsabilidade somente na tecnologia, pois ele afirma que a tecnologia não é só meio, mas também produto da sociedade capitalista. Portanto, ele admite uma relação recíproca entre capitalismo e tecnologia, enquanto forma de subsistência histórica. Em outros termos, corroboramos com Noble, colocando a seguinte questão: tendo em vista que a mola propulsora do sistema capitalista é o lucro, é possível pensar a sociedade capitalista sem o desenvolvimento tecnológico nos moldes do que aí está, advindo do atrelamento entre ciência e técnica a partir da época moderna?

102 A compreensão que “a tecnologia é tão antiga quanto o próprio homem” (FORBES) é analisada por GAMA, R. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 14 e ss.

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homem. Porém, se considerarmos que a tecnologia em sentido moderno está inserida e se

produziu num contexto social, político e econômico determinado, qual seja, o surgimento

da sociedade capitalista, então, nossa visão sobre a tecnologia e seu papel na sociedade,

certamente será outro. Primeiro, porque assim, desmitifica-se aquele discurso em que a

tecnologia é tida como um “mal necessário”, porque existe intrinsecamente com a

existência humana. Ora, pelo argumento meramente da anterioridade histórica, neste caso,

dilui-se esta concepção. Visto que se a tecnologia da forma como a concebemos hoje

surgiu em certo período histórico, logo, dado a sua historicidade ela não se constitui como

inerente à condição humana desde sempre. Se assim o é, é historicamente e não essencial

ou substancialmente.

Parece-nos que este ponto de partida configura-se elementar para o nosso propósito,

pois, consideramos que na gênese da discussão sobre a natureza da tecnologia a utilização

de conceitos meramente semânticos não nos garante a propriedade de argumentação

acerca do assunto. Por isso, entendemos que tal postura metodológica é insuficiente para

elucidar o que realmente significa tecnologia, pois necessário é identificar a que tecnologia

estamos nos referindo.

Aqui fazemos uma ressalva: muito embora utilizamo-nos como fonte de pesquisa

das obras de Ruy Gama, porque consideramos que o seu trabalho arqueológico e de

levantamentos de dados historiográficos é fundamental para a história da técnica e da

tecnologia, sobretudo no Brasil, julgamo-las carecedoras de uma maior fundamentação

filosófica, no sentido de elucidar os aspectos ontológicos, epistemológicos e axiológicos

que configuraram esta ou aquela visão sobre tecnologia. Entendemos que este

esclarecimento de caráter mais filosófico, do que propriamente semântico ou arqueológico

é mister para compreender o significado de tecnologia e o mundo da tecnosfera que nos

envolve no presente.

Mas, se por um lado consideramos a leitura arqueológica de Ruy Gama carecedora

de fundamentação sob o ponto de vista metodológico, dado a complexidade que envolve o

fenômeno social da tecnologia, por outro lado, avaliamos também que a posição de Milton

Vargas sobre a filosofia da tecnologia suscita questionamentos. Expliquemos melhor,

situando a posição de Vargas.

Segundo ele, só se pode falar em tecnologia, com o advento da modernidade. Numa

passagem em que o autor analisa as técnicas indígenas na época das descobertas, ele diz:

“Não me referirei aqui as tecnologias. Prefiro usar o termo técnicas, deixando o termo

tecnologias para significar as aplicações e utilizações das ciências na solução de problemas

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técnicos, o que é totalmente estranha às culturas ameríndias.”103 Vargas, portanto, não

reconhece distinção entre tecnologia antes e depois da era moderna, pois, segundo ele,

sendo a tecnologia a aplicação e utilização das ciências na solução de problemas técnicos,

este acontecimento só foi possível depois da era moderna, daí considerar que a cultura

ameríndia não possuía tecnologia e sim técnica. É neste sentido que Vargas descreve a

evolução da tecnologia no Brasil, pois, para ele a tecnologia adentrou no Brasil somente no

séc. XIX, através das Escolas de Engenharia. O engenheiro é, então, “o homem que projeta

o ato técnico e dirige o operário na fabricação dos instrumentos, utensílios, ou na

construção da obra.”104

Com base nestas colocações de Milton Vargas é que pontuamos nossa crítica ao

autor. Entendemos que enfocar a tecnologia somente sob a perspectiva da modernidade

(como aliança entre ciência e técnica) é também um reducionismo, por desconsiderar o

“logos” da técnica (a tecnologia) que existia antes do séc. XVII. Não reconhecer a

existência da tecnologia antes da modernidade é incorrer num erro de análise histórica,

julgamos. Por exemplo, será que não é possível reconhecer o logos da técnica das

sociedades ameríndias, constituídas bem antes do processo de revolução industrial?

Reiteramos, então, o que conjecturamos já desde o início desta exposição:

identificar a natureza da tecnologia, não significa desconsiderar a existência da tecnologia

antes da modernidade, mas sim perceber conceituações e significações diferenciadas a

partir de cada contexto histórico. No caso específico da tecnologia moderna, é preciso ter

em vista o entorno histórico no qual ela está inserida. Nisto percebe-se sua transformação

de identidade, de natureza ao longo da história. Daí que nossa pretensão filosófica consiste

em revelar que plasmou o empirismo105, o conhecimento científico e o utilitarismo ético a

gênese da tecnologia moderna, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico.Por

isso mesmo, a tecnologia na modernidade passou a significar mais que o mero estudo da

técnica.

103 VARGAS, M. O significado da técnica entre os índios brasileiros na época das descobertas. In:

Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega, 1994, p. 192 e 193. 104 VARGAS, op. cit., p. 202 e 206. A “obra” a qual se refere o autor, diz respeito às primeiras

estradas de ferro, surgidas no Brasil, no final do séc. XIX. Daí porque o autor denomina “tecnologia implícita na engenharia”.

105 Vale esclarecer aqui que, embora Ruy Gama tenha dedicado um capítulo exclusivo de sua obra Engenho e tecnologia (1983, p.31-52) a este tema, não nos parece que esta tenha sido a opção metodológica adotada pelo referido autor ao abordar o assunto. Em diversas passagens, sobretudo introdutórias em que Ruy Gama esclarece a metodologia utilizada para análise deste assunto, ele aponta a análise arqueológica como sendo predominante. Cf. p. 21 do livro Tecnologia e engenho (1983); a Apresentação da obra História da técnica e da tecnologia (1985); parte introdutória da obra A tecnologia e o trabalho na história (1987).

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55

É neste sentido que pontuamos os limites metodológicos da análise semântica que

privilegia o aspecto arqueológico ao tratar da história da tecnologia. Mas, a análise

meramente fenomenológica também não é suficiente para elucidar a complexidade que

envolve a identidade da tecnologia em sentido moderno.

Aporfundemos um pouco mais esta questão do método de análise para a tecnologia,

situemos a reflexão de Dussel, que em sua obra Filosofia de la producción, dedica parte

dela para elucidar o “método para uma teoria geral da tecnologia”. Parafraseando Marx,

que descreve a possibilidade de estudar a tecnologia “em abstrato, independentemente de

suas formas históricas, como um processo entre o homem e a natureza”106, Dussel, alerta:

Isto significa que a relação tecnológica homem-natureza tem um sentido próprio fora de toda consideração concreta em formações sociais históricas ou em diversas relações de produção. Antes que relações sociais de produção, existe já produção, tecnologia. Se pode, então, cair em dois extremos. Ou negar o condicionamento concreto, ou as determinações econômicas, políticas ou ideológicas, que se exercem sobre a tecnologia, em sua autonomia (seria pensar que a tecnologia tem autonomia absoluta: tecnologismos, tão freqüentes em universidades tecnológicas, de engenharia, desenho, etc); ou negar a existência de uma instância tecnológica autônoma ou a existência de um âmbito de técnico enquanto tal independente (seria negar a existência da tecnologia em sua autonomia: economicismo, tão freqüentes entre marxistas). Neste último sentido abstrato, não há que duvidar que o mesmo Marx diz claramente que “a economia política não é tecnologia ((technologie)”107. Por isso, se pode “desenvolver em outro lugar (mais adiante, diz Marx) a relação das determinações gerais da produção [leia-se tecnologia], em um estágio social dado’108. Tratar-se-ia aqui de descrever a essência, todavia em abstrato, da tecnologia. 109

Seguindo, pois, de perto a visão dusseliana, ancorada na perspectiva do método

marxista para o estudo da tecnologia, enfatizamos, então que a opção pela análise

filosófica, que não se trata simplesmente de produzir história da tecnologia cremos nós,

pode nos conduzir a uma avaliação crítica sobre o que é a tecnologia, sua constituição

histórica e sua função social, no sentido não só de compreender o sentido de tecnologia, as

também de repensar e redimensionar o papel da tecnologia na sociedade. Apontamos

algumas razões desta premissa.

Tal entendimento, desmistifica a concepção (de caráter essencialista) de que a

tecnologia é um fenômeno inerente à condição humana, tão antiga quanto à técnica. A

segunda motivação, é que nos faz perceber a necessidade de dirigir a razão (o pensar) para

a emancipação do homem e não para sua escravidão, como ocorre na razão instrumental,

106 MARX, O capital, I, op. cit., p.14. 107 Neste sentido Dussel, está se referindo à obra de MARX, Los grundrisse,I, p. 7, referenciado por

ele nas p. 183 da obra citada. 108 Aqui Dussel está se referindo à mesma obra de Marx, anteriormente citada, p. 8. Id. Ibid. 109 DUSSEL, op. cit., pp. 142 e 143. (Tradução livre)

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conforme a avaliação dos frankfurtianos. O terceiro motivo é conseqüência do anterior,

pois, conduzir a razão para a emancipação, significa postular a autonomia da ciência, que

nos tempos modernos tornou-se escrava da tecnologia. A produção do pensamento livre e

autônomo (sem querer aqui pretender neutralidade científica), é condição sine qua non

para redefinir qual a função social da ciência, da técnica e da tecnologia.

O panorama da sociedade tecnológica na atualidade nos credencia a postular tais

razões e necessidades. Passados mais de três séculos, já temos condições históricas

suficientes para avaliar as significações da tecnologia moderna que plasmou a sociedade

como industrial, pós-industrial e, agora, diz-se da sociedade informática. Os símbolos

semióticos criados cinematograficamente como representação social estão aí através de

Blade Runner, Matrix, Inteligência Artificial, dentre outros. E, segundo a avaliação de

alguns pensadores da atualidade como: Robert Kurz, Arrighi, Ramonet, Boaventura

Santos110, vivemos hoje o “colapso da modernização”.111 A começar pela própria confiança

absoluta na ciência que emanciparia o homem de toda escravidão, obscurantismos e medo.

De fato, isso não ocorreu. O que constatamos hoje é a escravidão do próprio homem pelas

suas invenções e descobertas tecnológicas, só possíveis graças à aliança entre ciência e

técnica. Outro fato ajuda-nos a ilustrar o que avaliam estes autores. Nunca na história da

humanidade tantas pessoas morreram de fome, na miséria ou pela violência. A constatação

está nos dados apontados por Boaventura112. O próprio Hobsbawn, ao tecer a história do

século XX, considera que vivemos a era dos extremos,113 devido aos paradoxos que se nos

apresentam. A começar pela próprio avanço tecnológico de um lado e o extermínio de

culturas e povos (seja pela miséria, seja pela guerra) de outro lado.

Disso tudo concluímos que a tecnologia não é neutra. Ela é atividade transitiva e

não imanente. E sua identidade depende desta avaliação. E porque é um fenômeno

histórico, outro pode ser o entorno ou a “natureza” que podemos dar a ela.

110 A referência destes autores está no final deste trabalho. 111 A expressão constitui o próprio título da obra de Robert Kurz (Cf. referência no final deste

trabalho) 112 SANTOS, B. S de. Crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo:

Cortez, 2000, p. 22 e ss. 113 HOBSBAWN, E. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

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CAPÍTULO II

A DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Le mere scienze di fatti creano meri uomini di fatto114

1 PREÂMBULO

Considerando que o objetivo desta pesquisa consiste na compreensão da natureza

da tecnologia moderna, passemos agora a aprofundar seu aspecto epistemológico, pois,

assim como em sentido ontológico, com o advento da modernidade, a tecnologia adquire

características peculiares e específicas também em sentido epistemológico. Conforme já

dissemos na apresentação, referir-se à dimensão epistemológica da tecnologia significa

indagar qual conhecimento é subjacente a ela. A tese central aqui apresentada é a de que a

tecnologia moderna é moldada pela visão empirista de realidade e pelo conhecimento

científico moderno. Ambos constituem seus pilares de sustentação epistemológica.

Já apontávamos para a existência histórica destes fatores quando analisamos a

dimensão ontológica da tecnologia moderna, até porque tanto o empirismo quanto o

conhecimento científico são também determinantes na constituição de uma nova ontologia

da tecnologia na modernidade. Mas, nesta segunda parte, vamos aprofundá-los ainda mais.

Por isso, certamente o leitor encontrará aqui o desdobramento de alguns pontos já

enunciados no capítulo anterior, só que agora sob o enfoque da epistemologia da

tecnologia.

Por exemplo: afirmávamos que para entender a gênese da tecnologia moderna é

necessário ter em vista a estreita aproximação entre ciência e técnica. Pois bem, a

justificativa desta aliança deveu-se a fatores históricos, conforme já descrevemos

anteriormente, e, em sentido filosófico, tal aliança tornou-se possível graças ao surgimento

do empirismo baconiano, e com o advento da chamada Ciência Moderna no séc. XVI,

inaugurando uma nova compreensão do mundo e da realidade. Ora, a visão empirista de

realidade e o paradigma científico moderno fundamentaram também uma outra

compreensão de tecnologia, do ponto de vista epistemológico.

114 HUSSERL, Edmund. La crisi delle scienze europee e la fenomenologia transcendentale.

Milano: Il Saggiatore, 1961, p. 35. As meras ciências de fatos produzem meros homens de fato.(Tradução livre)

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Porém, antes mesmo de adentrarmos neste ponto que é a questão central a ser

abordada neste capítulo, necessário é, para facilitar a compreensão do leitor, inicialmente

esclarecermos o sentido de epistemologia. A palavra tem suas raízes do grego (episteme),

que significa teoria. Usada para diferenciar da dóxa que indica opinião, ou um

conhecimento baseado simplesmente na opinião, a episteme diz-se do conhecimento

fundamentado teoricamente, enquanto a dóxa refere-se ao conhecimento opinativo,

característico do senso comum.115 Em sentido amplo, o termo indica a teoria filosófica do

conhecimento em geral, sendo muitas vezes utilizado como sinônimo de gnoseologia.

Atualmente, o termo é mais difundido no sentido da filosofia da ciência. Para Richard

Rorty, por exemplo, epistemologia indica o programa filosófico prevalente na filosofia

ocidental de Descartes em diante e que concentra sobre o problema da fundamentação do

conhecimento.116

Entendida, para muitos, como a fundação filosófica da ciência, a partir do corte

epistemológico instaurado com a revolução científica moderna,117 o fato é que, em sentido

moderno, a epistemologia sofre variações de significado, de acordo com as correntes

filosóficas. Os positivistas, por exemplo, reivindicam-na como estatuto próprio da ciência,

por entender que a epistemologia é a ciência que estuda o conhecimento científico. Por isso

mesmo, consideram-na a “ciência da ciência”. É neste sentido que Habermas avalia que “o

Positivismo assinala o fim da teoria do conhecimento”118, pois, ao adotar a auto-

compreensão cientificista da ciência, os positivistas caíram naquilo que Habermas

denomina de “cientismo”: “significa a fé da ciência nela mesma, a saber, a convicção de

que não mais podemos entender a ciência como uma forma possível de conhecimento, mas

que esta deva identificar-se com aquela”.119 Deste modo, outros autores entendem que a

epistemologia não pode estar enclausurada à ciência e, partindo de uma outra análise sobre

o tema, entendem-na como sendo o estudo do conhecimento a partir de sua origem,

estrutura, métodos e validade.120

115 A propósito, vale dizer que Aristóteles classificava o conhecimento fundamentado filosoficamente (epistéme) em três categorias: a THEORÉSIS que compreendia a Prima Philosophia, a Fsica e a Matemática; a PRÁXIS, que compreendia a Política, a Ética e a Economia e a POIÉSIS, que compreendia a Arte e a Técnica (Cf. REALE, História da filosofia antiga...op. cit.)

116 VATTIMO, Gianni, et al. Enciclopedia Garzanti di Filosofia. Ítália: Garzanti, 1999, p.319. 117 Sobre a natureza e a necessidade das revoluções científicas que ocasionam mudanças de

paradigmas, cf. a obra de KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989.

118 HABERMAS, Jünger. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p.89. 119 HABERMAS, Conhecimento..., op. cit., p.27. 120 In RUNES, citado por SANTOS, Introdução..., op. cit., p. 19. Sobre as diversas correntes que

analisam o assunto, conferir a obra de SANTOS, Um discurso..., op. cit, pp. 18-30.

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Como em sentido moderno, o conhecimento científico tem sido hegemônico,

conforme vamos demonstrar no decorrer deste capitulo, adotamos o termo como sendo

equivalente à filosofia da ciência. Ou seja, entendemos que a reflexão epistemológica na

atualidade, necessariamente recai sobre a análise filosófica da ciência. Contudo, vale dizer

que longe de adotarmos a visão positivista de epistemologia, o que defendemos é que ao

propormos uma análise filosófica sobre a dimensão epistemológica da tecnologia,

estaremos nos reportando a um conhecimento, que, na modernidade, é permeado pelo

conhecimento científico, em vista da sua hegemonia. Ademais, nossa análise

epistemológica não se encerra na ciência, e sim é o ponto de partida para aprofundar sua

crítica e sua crise, conforme veremos no decorrer da exposição. Portanto, é neste sentido

que deve o leitor tomar o conceito de epistemologia que aqui será utilizado.

Em outros termos: o objetivo específico deste capítulo é demonstrar as implicações

desta forma de conhecimento (ou seja, do Empirismo e do conhecimento científico) na

constituição da natureza da tecnologia moderna. Mais que apontar qual o conhecimento

subjacente à tecnologia, propomos elaborar uma reflexão hermenêutica sobre o

conhecimento em que assenta a tecnologia moderna. Parafraseando Gadamer em sua obra

“Verdade e Método”, Habermas considera que a tarefa da hermenêutica com relação à

ciência consiste numa “força subversiva que se infiltra em toda abordagem sistemática”.121

Guardadas as devidas proporções em relação ao aprofundamento do assunto dado pelo

filósofo, consideramos que também esta será nossa tarefa. Ao traçar um panorama sobre a

condição epistemológica da ciência na atualidade e suas implicações no campo da

tecnologia, pretendemos refletir, a partir de alguns aspectos que configuram o que

denominamos de crise do paradigma científico, a abordagem sistemática dada pela ciência

na relação homem e mundo.

Portanto, o enunciado supra em destaque, certamente será o tom da análise

epistemológica que aqui queremos empregar. Pretendemos evidenciar a crise

paradigmática desta visão epistemológica baseada na objetividade científica, na qual

também se insere a tecnologia, e suas implicações não somente epistemológicas, mas

também sociais e até mesmo existenciais, pois, a condição epistemológica da ciência

reflete-se na condição do ser humano de estar no mundo.

121 HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense,

1989, p.37.

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Com base nesta perspectiva sobre a dimensão epistemológica da tecnologia

moderna, este capítulo será estruturado do seguinte modo. Em sentido introdutório, vamos

enfocar o empirismo moderno e sua estreita vinculação com a constituição da gênese da

tecnologia na modernidade, partindo, sobretudo, da visão baconiana. Do mesmo modo que

também apontaremos a importância da visão empirista no surgimento da ciência moderna.

De posse desta constatação, passaremos a analisar o conhecimento científico como

também sendo componente da dimensão epistemológica da tecnologia moderna. Neste

ponto, o destaque será o surgimento em sentido histórico do conhecimento científico,

sobretudo, a partir de Galileu Galilei, Descartes, Newton, entre outros. Feitas tais

considerações, o passo seguinte será o de identificar as principais características do método

científico.

Antes, porém, considerando que toda forma de conhecimento sobre o mundo e a

realidade pressupõe um método, levando-se em conta que a ciência constitui uma dentre

outras formas de saber do homem e tendo em vista que o foco de nossa análise é a

investigação sobre que conhecimento permeia a tecnologia moderna, vamos analisar qual é

o sentido do método e suas implicações sobre a visão de mundo que carrega consigo.

Entendemos que a análise (ainda que fenomenológica) do que é o método, ou pelo menos o

sentido que aqui queremos dar, é mister para assegurar o que propomos dizer a seguir, qual

seja: analisar alguns aspectos característicos do método científico para, então, postular a

crise do paradigma científico. Ademais, cremos que a adoção deste ou daquele método,

não é meramente uma escolha desta ou daquela ferramenta com vistas a um objetivo. O

método pressupõe uma visão de mundo e, portanto, carrega em si um modelo

paradigmático de cada sociedade em cada tempo.

Por isso mesmo, num segundo momento, nossa pretensão será tecer considerações

acerca do método científico, partindo de suas características elementares para, em seguida,

apontar certas provocações sobre sua constituição enquanto paradigma vigente e

dominante do modo como concebemos o mundo e a realidade. Aqui, vamos esboçar

algumas críticas sobre o paradigma científico, postulando sua crise, primeiramente em seus

aspectos históricos, sociológicos e teóricos, e, posteriormente, em seus aspectos

epistemológicos.

Tal crítica é o ponto de partida de uma análise que pretende meramente ser uma

reflexão introdutória, visto a complexidade do assunto e do estágio ainda embrionário em

que se encontra. Mais que explicar, queremos indagar; mais que descrever, propomos

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conjecturar sobre a crise do paradigma científico. Afinal, afirma Boaventura, vivemos

numa sociedade intervalar, uma sociedade de transição paradigmática.122 Assim sendo,

deve o leitor tomar este texto como uma reflexão preliminar, característica daqueles

tempos em que se vivem períodos de transição, que é, cremos nós, o momento histórico,

em sentido epistemológico, no qual estamos inseridos e conforme assinala Morin:

Creio estarmos numa época em que temos um velho paradigma, um velho paradigma que nos obriga a disjuntar, a simplificar, a reduzir, a formalizar sem poder comunicar aquilo que está disjunto e sem poder conceber os conjuntos ou a complexidade do real. Estamos num período “entre dois mundos”; um que está prestes a morrer, mas que não morreu ainda, e outro, que quer nascer, mas que não nasceu ainda.[...].123 Em vista deste quadro é que pretendemos acenar para a necessidade de repensar

uma outra identidade para a tecnologia moderna. Aqui, vamos elencar, inclusive, algumas

práticas que carregam em si um outro olhar epistemológico sobre a tecnologia.

Entendemos que a análise epistemológica da tecnologia pode contribuir para apontar novas

perspectivas sobre o conhecimento, baseada num outro olhar sobre a realidade, cujas

práticas tecnológicas deve levar em conta a complexidade, a intersubjetividade e a

intencionalidade na dinâmica dos fenômenos; deve priorizar o local em detrimento do

global. Enfim, uma outra dimensão epistemológica da tecnologia que leve em conta o

conhecimento historicamente acumulado de uma dada comunidade. Conhecimento este

que não é só científico, mas que nasce colado às experiências do cotidiano de uma dada

cultura e que se perfaz por múltiplas formas de conhecimento e de produção material.

Seguindo a mesma perspectiva de análise, nas considerações finais deste capítulo,

apontaremos a necessidade de repensar a própria visão de mundo e de realidade

característica do paradigma científico e da visão empirista de realidade, partindo da

condição epistemológica do tempo presente e da condição existencial do ser humano. Ou

seja, a crise epistemológica se reflete também na nossa condição existencial de estar no

mundo. Portanto, não é somente uma crise de conhecimento sobre as coisas, mas,

sobretudo, de autoconhecimento do homem consigo mesmo. Neste contexto é que deve ser

pensada a dimensão epistemológica da tecnologia.

2. EMPIRISMO E TECNOLOGIA MODERNA

122 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 41. 123 MORIN, Edgar. A inteligência da complexidade. São Paulo, 1999, p. 40 e 41.

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Vimos que a aliança entre ciência e técnica, a partir da modernidade é fator

indispensável para a compreensão da ontologia da tecnologia. Afora as referências que

fizemos no capítulo anterior, vale a pena, a fim de retomarmos a compreensão deste

consórcio, citar ainda mais uma afirmação sobre o que é tecnologia em que está presente

este novo contexto da tecnologia:

Escolho um significado de ‘tecnologia’ que a distingue da ‘técnica’, permitindo contrastar o homem tecnológico moderno com o homem técnico de sempre e caracterizar de modo específico a situação contemporânea. Será tecnologia aquela técnica que não se limita a escogitar maquinarias úteis com método empírico, mas procede pari passu com a ciência, ora (sem dúvida mais freqüente) solicitando-na, ora aplicando-na as descobertas teóricas. E com ciência entendo aquele fato moderno, nascido da época galileana, a ciência que eliminando a qualidade e a essência reduz o cognoscível ao mensurável e à estrutura do mensurável, atravessando as fases (ideais mais que históricas) do materialismo (ser = matéria), do fisicalismo (ser = matéria + energia), do reducionismo (ser = matéria + energia + informação). A tecnologia se distingue como espécie entre o gênero técnica, enquanto técnica solidária da ciência moderna e em particular da sua fase madura, aquela reducionista. 124 Pois bem, esta aliança que delineia o caráter ontológico da tecnologia moderna,

além dos fatores históricos que lhe deram sustentação, conforme já enunciamos no capítulo

anterior, só se tornou possível em sentido filosófico, graças ao Empirismo. Pensamento

que ganha forças, sobretudo, no séc. XVI, com Bacon. Expliquemos melhor tal premissa

situando histórica e epistemologicamente o Empirismo Moderno.

Podemos considerar que três são as questões fundamentais da Teoria do

Conhecimento: “o que se conhece”, “como se conhece” e “quem conhece”. Sobre “como

se conhece”, duas são as correntes predominantes em termos de história da filosofia

moderna, a saber: o racionalismo e o empirismo. O Empirismo é uma corrente filosófica

que tem na experiência o fundamento da verdade. Opõe-se ao Racionalismo que vê na

razão a base do conhecimento. A razão como critério de verdade pode ser falível, enquanto

que na experiência reside a possibilidade e a condição da verdade ser colocada à prova,

alegam os empiristas.

O Diccionário de Filosofía de Nicola Abbagnano acrescenta: “a atitude empirista

consiste em supervalorizar a importância dos fatos, dos dados, das condições que

possibilitam a comprovação de uma verdade qualquer, já que a verdade não é tal se não é

comprovada como tal e o único meio de comprovação se refere a coisas reis [...].125

124 O conceito é citado por VALLAURI, Luigi Lombardi. L’impatto della tecnologia sulla vita e

sulla autopercezione dell’uomo. In: BAUSOLA, Adriano et al. Etica e transformazioni tecnologiche. Milano: Vita e Pensiero, 1987, p. 40 (Tradução livre).

125 ABBAGNANO, op.cit., p.399 (Tradução livre).

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63

Na modernidade Bacon (1561 – 1626) tornou-se um dos principais representantes

desta corrente filosófica. Considerado por muitos como o “profeta da revolução

tecnológica moderna”,126 o filósofo inglês, no séc. XVII (período em que a Inglaterra

ocupava a vanguarda européia nos setores de mineração e indústria), defendia uma ciência

operativa e não contemplativa. Para ele, os filósofos escolásticos e platônicos são

comparados às aranhas que tecem teias maravilhosas, mas permanecem alheias à realidade.

Por isso, Bacon defendia que o saber sobre a natureza deveria ser um saber ativo e fecundo

de resultados práticos. Analisando outros feitos do filósofo empirista, Paulo Rossi avalia

que Bacon foi na modernidade o arauto da indagação sobre a função social da ciência; foi

um crítico severo da utilização da magia na pesquisa científica tão comum em seu tempo;

um defensor da técnica e da valorização do progresso científico e o mentor de uma nova

técnica de abordagem da natureza.127

Em sua obra Novum Organum, ele propõe o método das ciências naturais baseado

na experiência como fundamento da verdade.128 E a verdade representa o domínio da

natureza. Eis como se anuncia o tratado de Bacon, exposto logo no III aforismo: “Ciência e

poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito”.129

Portanto, para Bacon, a verdade é poder (“veritas est possum”).

Na referida obra, todo o empenho de Bacon consiste em destruir os pressupostos

ou postulados da ciência existentes até então, e, em seguida, dedica-se a construir as novas

bases de sua “instauração”. Na parte “destrutiva da instauração”, como ele mesmo assim

costumava denominar130, Bacon se ocupa em refutar o racionalismo filosófico dos antigos

a partir de três pontos.

A primeira refutação consiste em considerar a “razão humana natural” como modo

de conhecimento. Para Bacon a confiança somente na razão como meio para se chegar ao

conhecimento é insuficiente, e pode nos levar a conclusões equivocadas sobre as coisas,

pois, os sentidos do homem são enganadores e não nos garante o que, de fato, é a natureza.

Daí a necessidade de realizar experimentos a fim de comprovar as descobertas científicas.

Providência esta que Francis Bacon não vê em Aristóteles. A lógica aristotélica, dizia

freqüentemente Bacon, “estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a

126 Cf. REALE, op. cit., Vol. II, pp. 322 e 323. 127 Citado por REALE, op. cit., Vol. II, p.328. 128 BACON, Francis. Novum organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da

natureza. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril Cultural, 1984. Vale lembrar que o título desta obra deveu-se às severas críticas de Bacon à obra aristotélica Organum.

129 BACON, op. cit., p. 13. 130 BACON, op. cit., p. 75.

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experiência para o experimento de suas relações e axiomas”.131Por isso ela é equivocada,

fundada em noções vulgares e inúteis para o incremento das ciências.

O segundo aspecto a ser amplamente criticado por Bacon, diz respeito às

demonstrações lógicas da ciência fundada pelos antigos. Para ele as demonstrações

advindas da lógica de Aristóteles são falsas. Nestes termos, ele diz:

As demonstrações, na verdade, são como que filosofias e ciências em potência, porque, conforme sejam estabelecidas, mal ou corretamente instituídas, assim também serão as filosofias e as especulações. Errados e incompetentes são os que seguem o processo que vai dos sentidos e das coisas diretamente aos axiomas e às conclusões. Esse processo consiste em quatro partes e quatro igualmente são os seus defeitos. Em primeiro lugar, as próprias impressões dos sentidos são viciosas; os sentidos não só desencaminham como levam a erro. É pois necessário que se retifiquem os descaminhos e se corrijam os erros. Em segundo lugar, as noções são mal abstraídas das impressões dos sentidos, ficando indeterminadas e confusas, quando deveriam ser bem delimitadas e bem definidas. Em terceiro lugar, é imprópria a indução que estabelece os princípios das ciências por simples enumeração, sem o cuidado de proceder àquelas exclusões, resoluções ou separações que são exigidas pela natureza. Por último, esse método de invenção e de prova, que consiste em primeiro se determinarem os princípios gerais e, a partir destes, aplicar e provar os princípios intermediários, é a matriz de todos os erros e de todas as calamidades que recaem sobre as ciências [...].132 Sem dúvida, a melhor forma de demonstração, reitera Bacon, é a experiência. E,

ainda assim, aquela deve ficar adstrita ao experimento.133Mas não basta a experiência. Esta

deve ser precedida de leis seguras e de forma gradual e constante. Nota-se que tais noções

defendidas por Bacon constituir-se-ão, mais tarde, as bases do método experimental da

ciência moderna, como veremos ainda neste capítulo, quando tratarmos do conhecimento

científico como um dos elementos também constitutivos da dimensão epistemológica da

tecnologia moderna.

Ainda quanto à questão do método, vale dizer que se Bacon rechaça a dedução −

considerando-a incompetente enquanto processo demonstração, utilizado pela filosofia

tradicional −, em seu lugar ele propõe a indução. Diz que é melhor dividir em partes a

natureza do que abstraí-la.134 E acrescenta: “muito se poderá esperar das ciências [...] se

souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas menores, desde aos médios, os quais se

elevam acima dos outros e, finalmente aos mais gerais”.135

131 BACON, op. cit., p. 33. 132 BACON, op. cit., p. 38. 133 Aqui Bacon, está se referindo, sobretudo, as experiências dos alquimistas, que, segundo ele, são

eivadas de supertições e, portanto, são viciosas. Para ele, os alquimistas são “azarões da experiência”, não sabendo ao certo, se devemos rir ou chorar diante de suas descobertas. Cf, BACON, op. cit., pp. 53-54 e 34.

134 BACON, op. cit., p. 26. 135 BACON, op. cit., p. 68.

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Também Bacon não admite qualquer finalismo nos seres da natureza. A exemplo

de Aristóteles que concebia a existência dos seres a partir das quatro causas (já

referenciadas aqui na página – Ver I Cap.), Bacon considera que “a causa final longe está

de fazer avançar as ciências, pois, na verdade as corrompe, mas pode ser de interesse para

as ações humanas”.136 Vale dizer que para ele a causa formal é a que resulta na efetiva

verdade na investigação e na descoberta da operação, pois, é através das formas que se

abarca a unidade da natureza como um todo, em todas as suas matérias. Portanto, esta é a

forma causal que interessa à ciência ativa. E conclui: “o que é mais útil na prática é mais

verdadeiro no saber”.137

A terceira refutação diz respeito às próprias teorias filosóficas, que, segundo Bacon,

por serem embasadas numa lógica equivocada, em poucos experimentos e em superstições,

têm provocado em nossas mentes a geração de idolatrias, os quais, ele classifica como

sendo de quatro tipos: os ídolos da tribo (denominado por Bacon para designar os ídolos

produzidos pela idéia de que os sentidos do homem são as medida das coisas); os ídolos da

caverna (que se referem a forma como produzimos o conhecimento); os ídolos do foro

(trata-se do uso das palavras que, se impostas de modo inadequado e inepto, bloqueiam o

intelecto) e os ídolos do teatro (que diz respeito aos ídolos produzidos pelas doutrinas

filosóficas e suas formas de demonstração). Tais doutrinas filosóficas se referem,

especialmente, aos gregos e aos medievais.

Sobre a filosofia e a ciência dos gregos, Bacon diz: “os gregos, com efeito,

possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos a tagarelar, mas são incapazes

de gerar, pois, a sua sabedoria é forte em palavras, mas estéril em obras”.138 E sobre os

medievais, ele avalia que esta foi uma época infeliz para a ciência, posto que, tanto árabes,

quanto escolásticos mais “atravancaram as ciências que concorreram para aumentar-lhes

peso.”139

Mas, se por um lado, Bacon é um severo crítico do modo como se fazia ciência até

seu tempo, por outro lado, ele mesmo tornou-se um defensor incansável de um novo

organum que pudesse criar uma “filosofia natural pura” e reconduzir a ciência a trilhar

caminhos mais seguros e úteis do ponto de vista da necessidade da vida humana. Por isso,

136 BACON, op. cit., p. 94. Com relação aos outros modos de causalidade (a saber: a causa formal, a

material e a eficiente), a concordância de Bacon com Aristóteles é meramente no plano terminológico. Mas a extinção baconiana da causa final, representa, sem dúvida, a grande perda do aristotelismo enquanto interpretação do mundo natural.

137 BACON, op. cit., pp. 96 e 97. 138 BACON, op. cit., p. 41. 139 BACON, op. cit., p. 42.

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anunciava orgulhosamente o impacto das descobertas científicas de seu tempo sobre o

homem.

É preciso considerar ainda a força, a virtude e os efeitos das coisas descobertas, que não se apresentam tão claramente em outras coisas quanto nestas três invenções, que eram desconhecidas para os antigos e cuja origem, embora recente, é obscura e inglória: a arte da impressão, a pólvora e a bússola. Com efeito, essas três coisas mudaram a situação do mundo todo, a primeira nas letras, a segunda na arte militar, a terceira na navegação: provocaram mudanças tão infinitas que nenhum império, nem seita, nem estrela parece se exercido maior influência com mais eficácia sobre a humanidade que estas três invenções.140

Ele preconizava a urgência de se produzir uma História Natural e Experimental,

cuja idéia central é que “não se deve inventar ou imaginar o que a natureza produz, mas

descobri-lo”.141 Depositava confiança suprema na ciência; era ela a razão da esperança

num futuro melhor, 142que aconteceria, segundo ele, quando ocorresse “a aliança estreita e

sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experimental e a

racional”.143 Sobre tal exigência, Bacon faz a seguinte avaliação histórica:

Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmo extraem o que lhes servem para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. Não é diferente do labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservando intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. 144 Neste sentido, Ruy Gama afirma: “Bacon rejeitou a separação e a oposição vigentes

nas filosofias tradicionais [...] entre teoria e prática; entre lógica e operações reais, entre

verdade e utilidade”.145 Sobre a dicotomia entre teoria e prática Ruy Gama esclarece que

Bacon:

Interpretou essa oposição como oriunda de condições históricas e sociais bem determinadas que valorizavam a contemplação _ a verdade em sua pureza _ e que desprezavam tudo que fosse ligado a atividades materiais. [...] E a partir daí sustenta a identidade entre verdade e utilidade, teoria e atividade operativa, conhecer e fazer e afirma

140 BACON, citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 323. Vale lembrar que para Reale, Bacon foi o

“profeta da revolução tecnológica moderna” (Cf. REALE, op. cit., Vol. II, p. 322) 141 BACON, op. cit., p. 102. 142 Vale lembrar que o resultado do imaginário baconiano de uma sociedade regida pela ciência está

descrito em Nova Atlântida, título de uma outra obra de Bacon que reflete o sentido utópico da ciência para o filósofo.

143 BACON, op. cit., p. 63. 144 Id. Ibid. 145 GAMA, R. Engenho..., op. cit., p. 33

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que qualquer separação e contraposição entre esses termos cria obstáculos intransponíveis à construção de teorias verdadeiras e à consecução de resultados efetivos e eficientes.146 Em síntese, Bacon exalta a experiência como verdadeira forma de demonstração e a

indução como caminho seguro do conhecimento; exclui o finalismo do processo natural e

rechaça a verdade como contemplação, teoria especulativa, enaltecendo a verdade como

dado da experiência, das atividades práticas e materiais. A exaltação da prática, para os

empiristas, tem em vista uma utilidade, o resultado efetivo, pragmático. Bacon, por

exemplo, repudiando a ociosidade da Aristocracia da época, ressalta o trabalho como a arte

do fazer. Em palavras textuais ele conclui suas indicações acerca da interpretação da

natureza: “Comerás do pão com o suor de tua fonte147 por meio de diversos trabalhos

(certamente não pelas disputas ou pelas ociosas cerimônias mágicas), chega, enfim, ao

homem, de alguma parte, o pão que é destinado aos usos da vida humana.” 148

Posição esta que também será adotada pela burguesia − nova classe social em

ascensão − para quem o saber não pode estar desligado da produção.149 Conclui, então,

Gama que “a literatura técnica e as sociedades científicas experimentais têm no empirismo

seu suporte filosófico e tentam romper as barreiras entre o Pensar e o Fazer”. 150

Ora, este é o contexto filosófico do surgimento da tecnologia moderna. Esta (a

tecnologia) é exatamente o resultado da aliança entre teoria e prática. A primeira

representada pela ciência, a segunda pela técnica. Daí afirmar, em princípio que a

tecnologia, em sentido moderno, implica num conhecimento racional (portanto, científico)

com vistas a uma utilidade prática, instrumental (portanto, técnica).

Conforme já salientamos anteriormente (I capítulo), a valorização do conhecimento

prático, garantido pela tecnologia, e sustentado ideologicamente pela visão filosófica do

Empirismo não aconteceu de modo aleatório, nem foi por acaso. Ela obedece a um projeto

político, social, econômico que ultrapassa as fronteiras dos Estados e que estava sendo

gestado neste período, que é o surgimento da sociedade capitalista. Por isso, considera-se

que, em sentido moderno, não há que separar a tecnologia do modo de produção

capitalista, pois sem a aliança entre ciência e técnica (= tecnologia) não seria possível o

146 Id. Ibid., p. 33 e 34. A interpretação de Gama é baseada na obra ROSSI, Paolo. Los filósofos e lás

máquinas. Barcelona: Editorial Labor, 1966. 147 A citação refere-se à leitura bíblica do Gênesis, 3, 19. 148 BACON, op. cit., p. 231. 149 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 37. 150 GAMA, Engenho..., op. cit., p. 34 e 35. Vale lembrar ainda que para Ruy Gama a preocupação de

aliar teoria e prática já estava presente no conceito de trabalho aplicado pelas corporações medievais dos séculos XI e XII. Cf. GAMA, Ruy. O trabalho nas cidades medievais. In: A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Edusp, 1987, p. 83-109.

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mercantilismo (fator histórico decisivo para o surgimento do capitalismo), nem o

desencadeamento da Revolução Industrial (filha primogênita do capitalismo).

A seguir, tem-se a ilustração dos dois fatores históricos acima mencionados a título

argumentativo do que se conjectura. A primeira passagem é extraída do livro História

social de la ciência, vol. 1, p. 305-306, citado por Gama:

As grandes navegações foram fruto da primeira aplicação consciente da ciência astronômica e geográfica a serviço da glória e do lucro. Foi natural que as cidades alemãs e italianas [...] com seu vasto comércio tomassem a dianteira nos aspectos teóricos do problema. O aspecto prático foi desenvolvido principalmente pelos navegadores portugueses e espanhóis, que combinaram os últimos esforços das cruzadas com a noção prática acerca das ‘plantations’ de açúcar, dos escravos e do ouro. Teoria e prática confluíram na corte do príncipe Henrique, o navegador (1415-1460), em Sagres, onde técnicos mouros, judeus, alemães e italianos discutiam novas viagens com os capitães que já haviam navegado o Atlântico. (grifo nosso)151 Relatando o processo das grandes navegações mercantilistas, o historiador da

ciência John Bernal deixa claro dois aspectos importantes para o propósito de nossa

reflexão. O primeiro, diz respeito à combinação entre teoria e prática como elementar para

garantir o projeto de navegação. Sabe-se que até a Idade Média, a ciência é uma atividade

de caráter especulativa, dissociada da atividade prática, técnica. Portanto, esta aliança é

fato inédito na história mundial. O segundo aspecto refere-se ao fator econômico, pois

graças à “aplicação consciente da ciência” foi possível o lucro e a glória, eis os primórdios

da sociedade capitalista.152

O relato seguinte nos dá a idéia de como a tecnologia moderna está imbricada no

processo de industrialização. Referindo-se à tecnologia e à indústria, Marx escreve no vol.

1 do livro I, p.567 de O Capital, citado por Gama:

Criou a moderna ciência da tecnologia o princípio de considerar em si mesmo cada processo de produção e de decompô-lo, sem levar em conta qualquer intervenção da mão humana, em seus elementos constitutivos. As formas multifárias, aparentemente desconexas e petrificadas do processo social de produção se decompõem em aplicações da ciência conscientemente planejadas e sistematicamente especializadas segundo o efeito útil requerido. (grifo nosso)153 Repare que Marx caracteriza o processo de industrialização a partir da aplicação

planejada e consciente da ciência com vistas a um fim útil, ao que ele denomina de

151 GAMA, R. Engenho..., op cit., p. 49. 152 Acrescenta-se ainda que neste relato histórico encontramos claramente a fecundação dos ideais

de Bacon, afinal, como observou B. Farrington, nenhum outro filósofo nos últimos trezentos anos se preocupou tanto com a “influência das descobertas científicas sobre a vida humana”. Citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 323.

153 GAMA, R. op. cit., p. 50.

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“moderna ciência da tecnologia”. A máquina que incorpora o trabalho objetivado do

trabalhador, separando este de seu saber, é fruto do empenho da ciência moderna que

garante um conhecimento científico como força produtiva. É na maximização da produção

e minimização do tempo como garantia do lucro (operacionalizado pela máquina) que

reside a aplicação prática e útil da ciência. Por isso, que (como vimos no capítulo anterior)

para Marx, a tecnologia tornou-se uma mediação necessária ao sistema capitalista: ela

molda o novo momento histórico do processo de produção, instaurado com a modernidade,

quando a ciência instrumentalmente acoplou-se à técnica.

3 CONHECIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLOGIA MODERNA

Vimos até aqui como o Empirismo sustentou histórica e filosoficamente a aliança

entre teoria e prática, a qual desembocou na assim chamada “moderna ciência da

tecnologia”, conforme a pertinente observação de Marx, quando esta passou a utilizar a

aplicação dos conhecimentos científicos na solução dos problemas práticos. Mas, ainda nos

resta salientar que, a aliança entre técnica e ciência somente tornou-se possível graças ao

surgimento de uma nova concepção de conhecimento que passou a vigorar a partir da era

moderna. Em outros termos, o que queremos ressaltar é que ao lado do empirismo, também

o conhecimento científico passou a ser um dos pilares epistemológicos que garantiu o

conhecimento presente na tecnologia. Aprofundemos, então, o que enunciamos.

3.1 O Paradigma Científico de Conhecimento:

3.1.1 Aspectos Filosóficos da Revolução Científica Moderna

Conforme já fora salientado anteriormente, em sentido filosófico e epistemológico,

diríamos que a Modernidade é marcada pelo paradigma da cientificidade.154 Isto significa

dizer que na época moderna a ciência e junto com ela o método científico passaram a ser a

forma de conhecimento predominante e hegemônico na sociedade. E equivale a dizer ainda

154 Dado a amplitude que adquiriu o conceito nos últimos tempos, alertamos o leitor que por

paradigma considera-se aqui a seguinte noção: trata-se de um modelo de visão de mundo característico de certa época; é a cosmovisão predominante em certo período histórico, que possui implicações não só científicas, mas também culturais, políticas, econômicas, sociais, etc. Cf. MARGARET, Mastern. A natureza de um paradigma. In: LAKATOS e MUSGRAVE (Org.) A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 72 – 109.

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que na modernidade, assim como o sentido de técnica e tecnologia, a ciência também

adquire características que lhes serão peculiares em termos históricos.

(1) Assim, por exemplo, no lugar de uma ciência contemplativa, racional,

especulativa e dedutiva como eram a dos antigos, gradativamente toma seu lugar uma outra

concepção de ciência: experimental, prática, operativa, ativa e indutiva, assim como

preconizava Bacon.

(2) Outra característica marcante da revolução científica moderna é a valorização

de um novo conceito de “cientista”. O “novo douto” não é mais o filósofo medieval, ou o

humanista catedrático, o mago, ou astrólogo, ou até mesmo o artesão e o artista do

Renascimento, e sim aquele que é capaz de validar seu saber pelo controle da pesquisa

experimental.

(3) Deste novo conceito surge outra característica marcante da ciência moderna: a

instrumentação científica. Se o novo cientista é agora o homem rigoroso que produz saber

através da pesquisa experimental, esta exige instrumentos de medida cada vez mais

precisos. Ora, a introdução de instrumentos como auxílio das descobertas científicas,

tornam-se eles mesmos, parte do saber científico. Ou seja, os instrumentos de medida não

estão fora do invento, mas compõe a própria teoria científica. Em suma: “os instrumentos

entram na ciência com função cognoscitiva” e não meramente instrumental. Deste modo, a

ciência moderna “sanciona a legalidade dos instrumentos científicos”.155

(4) Mas, a mudança mais significativa que ocorreu no processo da revolução

científica foi a transformação filosófica da imagem do mundo, da ciência e do próprio

homem. Com as descobertas científicas de Copérnico (1473 – 1543), criou-se um novo

paradigma em torno da Teoria Heliocêntrica: a terra deixa de ser o centro do Universo e,

conseqüentemente, o homem moderno é levado a desconfiar do posto privilegiado da

Criação auferido pelas Escrituras, segundo a interpretação dos medievais. Tal desconfiança

só fez aumentar quando das descobertas dos “Selvagens” com as grandes navegações

além-mares, que colocou em questionamento as teses antropológicas e antropocêntricas do

velho continente europeu. Os limites do mundo rompido com a teoria do Universo Infinito

de Giordano Bruno (1548- 1600), então veio consumar tal desconfiança. A transformação

da imagem do mundo e do homem atingiu gradativamente a ciência, pois, se para o

pensamento clássico a ciência é um saber sobre a essência das coisas elaborado por teorias

e conceitos definitivos, para o homem moderno, a ciência passa a ser um saber que busca a

155 REALE, op. cit., Vol. II, pp. 196 e 198.

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qualidade das coisas, do mundo material e objetivo. “Não é mais o que, mas o como; não é

mais a substância, mas sim a função, que a ciência galileana e pós-galileana passariam a

indagar”.156

Em suma:

Com efeito, o advento da ciência moderna veio desintegrar por completo tudo o que se acreditava saber sobre o mundo físico. Este saber se reduzia à cosmologia ensinada nas escolas, impregnada de aristotelismo, reunindo e exprimindo uma espécie de familiaridade concreta (intelectual, estética, moral e religiosa) do homem e do universo. A física científica veio substituir essa cosmologia por um jogo de representações “claras e distintas”, elementares e quantitativas, doravante manejadas matematicamente. A qualidade antiga é posta sob suspeita, sendo acusada de “qualidade oculta”. Os antigos “princípios” são recusados. A matemática passa a ser compreendida de forma inteiramente diversa. A idéia de ‘forma substancial”é proscrita. A figuração do conjunto do universo é derrubada. E é dilacerado o pacto das antigas familiaridades do homem com a natureza.. tudo é substituído por um empirismo intelectual mais adulto e, praticamente, mais eficaz e agressivo. A antiga “filosofia natural”, sobrevivendo aos manuais oficiais de cosmologia, é atingida por um golpe mortal. A nova “filosofia natural” passa a ser doravante a ciência física. Não pode mais haver uma filosofia coerente da natureza. O que sobra da pretensa cosmologia filosófica na escolástica de Worlf, será destruído por Kant.157 Mas além de Bacon, Copérnico e Bruno outros pensadores contemporâneos a eles

forneceram as bases da constituição filosófica de uma nova epistemologia, sendo, portanto,

os séculos XVI e XVII o período marcante desta transição paradigmática. Dentre eles

destacamos, Galileu Galileu (1564-1642), Descartes (1596-1650) e Newton (1642-1727).

A seguir, apresentamos os aspectos mais relevantes de suas teorias em vista do propósito

deste trabalho.158

3.1.2 Galileu, Descartes e Newton e a Visão Mecanicista

Se por um lado Bacon (1620) na Inglaterra inaugurou o Empirismo em sentido

moderno, na Itália, Galileu Galileu já havia realizado seus experimentos científicos na área

da astronomia. Em verdade, foi Galileu quem inaugurou o “método experimental” e

científico por excelência. Suas descobertas ocupavam-se em explicar “como” as coisas

156 REALE, op. cit., Vol. II p. 188. 157 JAPIASSU, op. cit., pp. 54 e 55. 158 A esta altura, é mister esclarecer ao leitor que, em vista do nosso propósito, o que será exposto a

seguir não é um estudo minuncioso dos legados destes grandes pensadores modernos, senão uma exposição suscinta e objetiva capaz de fornecer os instrumentais teóricos que nos auxiliem a compreender como suas idéias fundamentaram uma outra epistemologia, inclusive da tecnologia, no período moderno. Com esta exposição também não pretendemos fornecer uma leitura inusitada destes filósofos, o que propomos é tão somente situar os aspectos elementares de suas teorias como ponto de partida, que nos conduzirá a legitimar uma das teses centrais desta pesquisa que é a de que no período moderno a tecnologia sofre e propicia transformações sociais profundas, não podendo ser confundida com o mero estudo da técnica e que ela é um fenômeno social contingencial e não necessário historicamente.

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funcionam no Universo e consistia em partir de uma hipótese, baseada na experiência, e na

formulação de uma lei, baseada na comprovação empírica, explicada através de um modelo

matemático. Portanto, Galileu promoveu a união da Física como processo indutivo e da

Matemática como processo dedutivo na elaboração de suas descobertas científicas. Desse

modo, ele instaurou o que há de mais elementar no processo de construção do

conhecimento científico moderno, ou seja, “a experiência científica é feita de teorias que

instituem e de fatos que controlam teorias”.159 Nisso consiste a revolução epistemológica

iniciada por Galileu, que é avaliada por Gusdorf nos seguintes termos:

Galileu é o autor da revolução copernicana ou, pelo menos, seu herói, confessor e mártir, não devendo a revolução ser entendida como um episódio na história da astronomia, mas como uma reavaliação de todos os valores [...] A destruição galileana do Cosmos é a peripécia capital da história do saber no Ocidente, porque todas as revoluções epistemológicas, ao lado da revolução galileana, não passam de revolução de palácio, enquanto o aparecimento da inteligibilidade mecanicista não transforma este ou aquele modo de pensar, esta ou aquela maneira de ver: impõe um novo pensamento do pensamento. Já nada é igual, porque “tudo mudou”.160 Por isso, Galileu é considerado o “fundador da ciência moderna” 161; pela

instituição de seu método científico, ele forneceu as provas empíricas da teoria

copernicana.162 Ademais, Galileu, ainda que membro da Igreja, tornou-se um defensor

incansável da autonomia da ciência em relação à fé. Dizia ele que ambas são

incomensuráveis e, por isso mesmo, compatíveis; a Fé explica “como se vai ao céu”, a

Ciência explica “como é o céu”.163 Mas, sendo Galileu um defensor da ciência autônoma e

independente, sua posição revelou-se também eivada de um certo dualismo acerca do

assunto, posto que “a ciência é cega para o mundo dos valores e do sentido da vida,

enquanto a fé é incompetente sobre questões factuais”.164

Acreditava também que a ciência poderia nos dar uma descrição verdadeira e

objetiva da realidade, afinal a ciência deveria se ocupar dos aspectos quantificáveis e

159 REALE, op. cit., Vol II, p. 267. 160 JAPIASSU, op. cit., p. 53 161 REALE, op. cit., Vol. II, p. 252. 162 Neste sentido, Japiassu esclarece porque a postura de Galileu oferecia tanto “perigo” às

autoridades eclesiásticas: Diferentemente de Copérnico, que jamais foi censurado, posto que seu livro De Revolutionibus (1543), escrito em latim, só acessível a um pequeno grupo letrado, não constituía um perigo para os costumes, Galileu escreveu seus livros-chave, II Saggiatore e o Diálogo, em italiano, língua conhecida pelo grande público. [...] Enquanto Copérnico foi lido por uns poucos “doutos”, Galileu foi lido por muita gente. O pior é que ele veio trazer provas físicas às teses metafísicas de Copérnico. De repente, seu ensinamento entra em contradição com a ordem estabelecida. Sua demonstração científica torna o heliocentrismo especulativo copernicano muito mais subversivo e explosivo. Donde a reação imediata do cardeal Belarmino (1542-1621) contra a nova astronomia e em favor da ortodoxia tridentina. Cf. JAPIASSU, op. cit., pp. 60 e 61

163 REALE, op. cit., Vol II, pp. 266 e 278. 164 REALE, op. cit., Vol II, p. 266.

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mensuráveis que são iguais para todos e não dos aspectos subjetivos (como dor, odor,

sabor) que variam de homem para homem. Deste modo, Galileu elimina a investigação

qualitativa do bojo da ciência em benefício da investigação quantitativa. E, assim como

Bacon, exclui a causalidade final em favor da causalidade mecânica (formal) e eficiente da

natureza. Nisso reside uma das principais diferenças entre o “mundo” de Galileu e o

“mundo” de Aristóteles.165

Se Galileu tornou-se o fundador da Ciência Moderna, Descartes na França, anos

depois, tornou-se “o fundador da Filosofia Moderna”, inaugurando a visão antropocêntrica

de realidade, base de todo pensamento ocidental na modernidade.166 Em sua obra,

intitulada Discurso do método, Descartes dizia que o método deveria conduzir “a própria

razão e procurar a verdade das Ciências”. Isto significa dizer que a partir de Descartes, o

homem conheceu uma nova postura epistemológica frente ao ato de conhecer, baseada na

“dúvida metódica”. Diferentemente da visão medieval em que o conhecimento é revelação

divina, portanto um dado de fé (o modelo é teocêntrico), a visão cartesiana postulou a idéia

de que nosso conhecimento sobre o real tanto mais será verdadeiro, quanto mais

duvidarmos e indagarmos sobre sua veracidade, portanto, ele é um dado de razão (o

modelo é antropocêntrico). Assim, Descartes instaura, no plano do conhecimento a

subjetividade humana: quem conhece é o homem, através da razão (cogito ergo sum:

penso, logo sou), e não Deus, que transmite o conhecimento ao homem, através da

revelação.

Segundo Descartes, o cogito, enquanto coisa pensante, é a única realidade do qual

não podemos duvidar: “Tudo aquilo que pensa existe; eu penso, logo existo”.167 Eis a única

certeza que temos. Então, a natureza de nossa existência é que somos pensantes (res

cogitans). E o que é apreendido pelo “ser pensante”, no mundo material, nada mais do que

sua extensão. Ou seja, o que é essencial ao mundo material é a propriedade da extensão: só

ela é concebível de modo claro e distinto da outras. É o que ele denomina a res extensa,

nos seguintes termos:

Com efeito, toda outra coisa que se pode atribuir ao corpo pressupõe a extensão, sendo apenas algum modo da própria coisa extensa como também todas as coisas que

165 REALE, op. cit., Vol II, pp. 280 e 281. 166 O posto é atribuído por Russel para quem Descartes foi o primeiro pensador de alta capacidade

filosófica cujo modo de ver foi profundamente influenciado pela física e pela astronomia. É bem verdade que ele conserva muito de escolástico, observa Russel, entretanto, não aceita os fundamentos postos por seus antecessores, esforçando-se por construir ex novo um edifício filosófico completo. Isso não acontecia desde Aristóteles, sendo um sintoma da nova confiança dos homens em si mesmos, gerada pelo progresso científico[...]. citado por REALE, op. cit., Vol II, p. 350.

167 REALE, op. cit., Vol. II, p. 367.

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encontramos na mente são somente modos diversos de pensar. Assim, por exemplo, não se pode entender a figura senão na própria coisa extensa, nem movimento senão no espaço extenso, como a imaginação, o sentido ou a vontade não se pode estender senão na coisa pensante. Mas, ao contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento, como fica manifesto para quem atente para isso.168 É deste modo que vamos encontrar também no pensamento cartesiano a visão

dualista de realidade e de homem. Para Descartes, Homem e Natureza são realidades

excludentes. O mundo espiritual é a res cogitans, enquanto que o mundo material é a res

extensa, e não há intermediação entre ambas. Com isso, Descarte reduz o mundo material à

forma, à extensão, sendo a consciência atributo específico do homem. Dá-se, então, a

separação entre Homem e Natureza, contrapondo-se assim às teorias animistas da época

que afirmavam a existência do espírito da vida, o qual possuíam, inclusive, os fenômenos

naturais.

A concepção destas duas realidades distintas e excludentes é o tom, ou a dinâmica

empregada pela civilização ocidental no trato com a natureza depois de Descartes, constata

hoje o pensamento ecológico. Se o mundo natural é desprovido da consciência, sua

existência é funcional, mecânica. Os objetos e os corpos nada mais são do que máquinas,

“autômatos”, que funcionam com base em princípios mecânicos; neles não há nada de

força vital, como pregava Aristóteles.

O historiador da filosofia, Giovanni Reale, analisando os feitos de Descartes e

comparando-os com outros pensadores de seu tempo, conclui:

Por fim, a construção do modelo mecânico de interpretação, com elementos teóricos simples, facilita a construção de instrumentos técnicos para realizar a passagem do conhecimento teórico para a transformação prática do mundo. E esse é o ponto de partida para a efetiva conversão do espírito humano da theoria à práxis, da scientia contemplativa à scientia activa. O projeto programático de Bacon, enunciado, mas não realizado, de conhecer o mundo para dominá-lo, encaminha-se então para a sua realização, primeiro com Galileu e depois com Descartes.169 Newton fará a sistematização definitiva desta visão de mundo. Vejamos por que.

No final do século XVII o físico Isaac Newton consolidou a visão mecanicista de

funcionamento do Universo, anunciada desde Galileu e Descartes, ao promulgar a teoria

gravitacional descrita em Philosophiae naturalis principia mathemática (1687). A teoria

newtoniana da atração dos corpos representa o triunfo epistemológico da inteligibilidade

mecanicista, pois, para Newton o Universo é formado por partículas de matéria e energia

que funciona como forças entre elas, causando o movimento ordenado. Portanto o

168 REALE, op cit., Vol II, p.376. 169 REALE, op. cit., Vol II, p. 381.

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Universo é visto como um grande mecanismo em movimento e que contem leis primeiras.

Estava criada a mecânica de Newton, que só será refutada três séculos depois.

Ele fez a síntese da visão cosmológica galileana, consolidando em definitivo a

verdade objetiva em oposição ao subjetivismo cartesiano. Argumentava que toda dedução

não advinda dos fenômenos deveria ser considerada hipótese e não deveria ter lugar na

filosofia experimental. Na filosofia experimental, as proposições particulares são inferidas

dos fenômenos para somente depois se tornarem leis gerais pelo processo da indução.

Estava criada a nova metodologia das ciências naturais que passou a vigorar desde então.

Em suma: a concepção mecanicista de mundo, que ganha forças com os pensadores

do séc. XVII, sobretudo, com Galileu, Descartes e, posteriormente Newton, é elementar

para entender o significado do conhecimento científico e , conseqüentemente a visão

epistemológica da tecnologia moderna. Pois, a visão do mundo como uma grande

engrenagem semelhante a uma máquina, constituído da matéria em movimento, doravante

será o modelo cosmológico de referência. A natureza, então, passa a ser vista como uma

máquina complexa que pode ser explicada através de constituintes de matéria e energia. A

ciência agora não se ocupa mais em explicar os princípios das almas e a essência das

coisas, mas sim em descobrir as engrenagens deste mecanismo que é a grande máquina do

universo.170 É na metáfora do relógio (ícone representativo da grande invenção dos

medievais) que a ciência encontra sua base explicativa para a nova cosmologia.

No século XVI, Boyle compara o mundo ao relógio da catedral de Strasburgo. A filosofia mecanicista vinha culminar a prática mecanicista. Newton percebeu essa gênese e sua significação. No início de seus Principia, escreve: “A geometria se funda sobre a prática mecânica e é somente esta parte da mecânica universal que propõe e demonstra exatamente a arte de medir”. Assim o relógio representa “a melhor parábola do sistema-mundo”. O modelo epistemológico da máquina se impõe como um esquema para a percepção do mundo e do homem, do real e do irreal, do presente e do futuro. Ele inspira a relação mecanicista com o mundo, fornecendo-lhe e pressupondo articulações racionais. O arquétipo da máquina desempenha o princípio regulador para a ciência e para a sabedoria, para a teoria e a prática. O lugar de honra conferido à máquina é anterior ao desenvolvimento da era industrial. O relógio é a primeira e mais decisiva das máquinas. Porque o cronômetro é o instrumento de toda racionalização da existência humana [...].171 O mundo, visto como máquina, é desprovido de sensibilidade e de consciência; é

despojado de vontade imanente; é um mundo sem mistério e sem vida, passível de ser

conhecido por vias mecânicas do raciocínio humano e não mais por intermédio das forças

170 O mecanicismo tem na ciência experimental sua base explicativa e despreza toda forma de magia

natural. É por isso que a química substituirá a alquimia, por exemplo. A crença na magia e em toda forma de bruxaria ou feitiçaria sucumbirá diante da hegemonia da filosofia mecanicista no séc. XVIII.

171 JAPIASSU, op. cit., pp. 120 e 121, n. 14.

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mágicas e imagéticas da magia natural. E se estas forças ocultas não existem, se os

demônios ou deuses não habitam o universo, a contemplação do mundo não faz mais

sentido. O que tem sentido agora é a exploração do universo: a condição antropocêntrica

do homem de estar no mundo (legado cartesiano) garante-lhe a atitude de dominação do

universo por meios mecânicos.

É em vista desta nova concepção de ciência que se dissolve a tradicional dicotomia,

herdada desde os gregos, entre os considerados “teóricos”, cuja atividade era glorificada

por pertencerem às “artes liberais”, e os “práticos”, cuja atividade era menosprezada por

pertencerem às “artes mecânicas”. Doravante, o “mecânico”, o “engenheiro” eleva-se ao

grau de reconhecimento pela sociedade, porque é o homem astuto, que possui o domínio da

engenhosidade das coisas, capaz de manipular e dominar a natureza. O trabalho manual

passa a ser parte integrante do processo de construção da teoria. E porque o mundo é visto

como máquina é no processo prático e mecânico de seu desmantelamento que podemos

conhecê-lo.

Mas, a máquina que produz também é produzida, e porque pode ser construída é

conhecida. Eis o contexto da Revolução Industrial. Este período representa, pois, o

coroamento do pensamento mecanicista em sentido epistemológico. Em sentido

sociológico, a era industrial indica o resultado histórico da fetichização da máquina,

advindo da aplicação do conhecimento científico para fins práticos, em vista da maior

produção. Então, a idéia da máquina, precede à realidade da máquina.

Neste sentido, vale recordar o entendimento ontológico de técnica para Heidegger,

transcrito no I capítulo. Segundo ele, a essência de algo é anterior historicamente ao seu

processo de aparecimento. Aplicando-o ao caso em questão, diríamos que a essência da

técnica, manifestada a partir da Revolução Industrial (séc. XVIII), começa a se constituir

desde o princípio do séc. XVI, com o advento da modernidade. Assim, enquanto a técnica

antes do processo de industrialização era uma técnica de adaptação às coisas, na era

industrial ela passou a ser de exploração e construção das coisas (lembremos o exemplo do

camponês citado por Heidegger - Cf. p. do I capítulo), em vista da nova cosmovisão e da

ciência experimental.

Em síntese: da visão empirista baconicana, aliada ao pensamento antropocêntrico

e dualista cartesiano e à revolução científica, sobretudo galileana, tem-se a criação do

paradigma científico na modernidade, que, por conseguinte instituiu o método

experimental como a nova postura frente ao ato de conhecer, consolidado por Newton.

Desse modo e como resposta à crise epistemológica medieval, o método experimental

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resgatou a possibilidade de o homem “verdadeiramente” conhecer as coisas172, através da

comprovação, da experiência, portanto da realidade empírica. Inaugura-se assim a nova

postura epistemológica do homem moderno frente ao ato de conhecer a realidade, baseada

no método científico. A seguir, um comentário sucinto sobre suas principais características.

3.2 O Método Científico:

Inicialmente, vale dizer que método é mais que um mero instrumental; ele implica e

carrega consigo uma visão de mundo e de realidade. Portanto, o método, enquanto uma

categoria, representa a concepção de mundo de uma dada sociedade na qual ele (o método)

se institui ou se internaliza. Sob esta perspectiva as palavras de Camus nos é esclarecedora.

Diz ele que “métodos contêm sempre uma metafísica; inconscientemente eles revelam

conclusões que, freqüentemente, afirmam ainda não conhecer”.173

Portanto, o método experimental nos revela o modelo de sociedade e qual a visão

de mundo, subjacente à ciência moderna. E qual é este modelo? Na modernidade, trata-se

do paradigma científico. Já explicitamos seu sentido histórico e filosófico, passemos agora

a compreendê-lo sistematicamente a partir de suas características peculiares.

A primeira característica é a noção de especificidade. Ou seja, dada a

complexidade o real, um conhecimento seguro advém da decomposição do todo em partes.

Quanto mais dividirmos o todo, mais poderemos conhecer o real pelas partes que o

compõem. A especialização, portanto, é o caminho mais seguro e prático para se chegar ao

conhecimento dos fenômenos.

Uma outra característica deste método refere-se à necessidade das bases empíricas

do conhecimento. Para a ciência moderna a via do conhecimento é a experimentação. O

conhecimento verdadeiro é aquele que pode ser comprovado. Conhecer é demonstrar,

comprovar. Logo, não existe conhecimento científico que não possa ser provado. Portanto,

somente o que é palpável, experienciável, empírico pode ser conhecido. Deste modo, a

ciência moderna rechaçou de seu campo de conhecimento a metafísica, considerando-a

irreal e ilusória, porque improvável. Tal preocupação aparece desde os escritos de Bacon

(séc. XVI) para quem a ciência deveria ser operativa e não contemplativa.

172 Tal pretensão refere-se ao posicionamento dos renascentistas, o que não necessariamente é a

posição da autora. 173 Citado por ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. São Paulo: Ars poética, 1996, p. 85.

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Disso decorre uma outra característica marcante da visão moderna de

conhecimento que é a objetividade. Para a ciência moderna um conhecimento tanto mais

será verdadeiro quanto mais for objetivo. Isto é,

uma das regras do método científico é o preceito de que as hipóteses científicas devem ser aprovadas ou refutadas mediante a prova da experiência. Entretanto, sua aplicação depende do tipo de objeto, do tipo da formulação da hipótese e dos meios de experimentação disponíveis. É por este motivo que as ciências requerem uma grande variedade de técnicas de verificação empírica. A verificabilidade consiste na essência do conhecimento científico, pois, se assim não fosse, não se poderia afirmar que os cientistas buscam obter conhecimento objetivo. 174 A objetividade consiste na separação dos elementos subjetivos e objetivos ao

analisar os fenômenos. Um conhecimento objetivo (“verdadeiro”) é aquele que não sofre

interferências subjetivas do sujeito (cientista) no processo de investigação do objeto (o

fenômeno: aquilo que aparece). Somente assim é possível criar “um conjunto sistemático de

conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência,

identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado”175. A

isso a ciência denomina de teorias científicas.Trata-se da possibilidade de estabelecer

padrões universais para a identificação dos fenômenos; é a configuração das leis

gerais para o funcionamento da matéria. A generalização ocorre quando o cientista busca

identificar as estruturas únicas e regulares dos fenômenos. Esta postura do observador (o

cientista) só é possível graças a uma outra característica peculiar do método científico que é

a noção de causalidade. Esta noção permite “demonstrar e provar os resultados obtidos

durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a

demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas

também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados [...].176

Se, como afirmamos há pouco o método trás, ainda que de modo implícito, um

modelo de realidade ou certa visão de mundo (weltanschauung), no caso em questão,

podemos inferir que o método científico compreende que o real é fragmentado, empírico,

objetivo, universal, generalizante e causal enquanto manifestação dos fenômenos. É desta

forma que nos últimos três séculos temos produzido o conhecimento, tendo o método

científico como o modelo hegemônico de compreensão da realidade177. E o mundo da

174 LAKATOS, Eva Mª & MARCONE, Marina de Andrade. Metodologia Científica. São Paulo:

Atlas, 1989. p.33. 175 CHAUÍ, M. Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 112 176 CHAUÍ, op. cit., p. 112. 177 Dizemos que a ciência é o “modelo hegemônico” , posto que também é possível constatar como

presentes na sociedade outros modos de compreensão da realidade que não o científico. Assim, por exemplo, tem-se o senso comum, a própria visão mítica, etc.

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tecnosfera ao qual estamos inseridos é fruto desta compreensão do mundo. A tecnologia

moderna fora concebida neste panorama epistemológico que tem suas raízes no final do

séc. XVI, atinge seus pontos altos em fins do séc. XIX, que é o período da grande

emergência e consolidação da sociedade industrial, culminando com o desenvolvimento

fantástico da ciência e da técnica.178

4 A CRISE DO PARADIGMA CIENTÍFICO

4.1 Introdução ao Problema

Mas, será que o real é exatamente assim, conforme descreve a ciência? E será que a

ciência efetivamente tem contribuído para o conhecimento do homem sobre o mundo?

Estas perguntas também haviam sido feitas por Rousseau há mais de duzentos anos

atrás, em seu célebre Discurso sobre as ciências e as artes, na Academia de Dijon. Era o

ano de 1750, portanto, ainda o tempo de efervescência da ciência (com Copérnico, Galileu,

Newton), e Jean-Jacques Rousseau já introduzia a polêmica no mundo da academia.

Optando pelo método simples que, segundo ele, “é o que convém à verdade”,179

suscintamente seu questionamento é apresentado nos seguintes termos: De fato, há alguma

razão consistente que nos faça substituir o conhecimento vulgar, partilhado por todos, que

temos da natureza e da vida, pelo conhecimento científico produzido por poucos e

inacessível para muitos? Contribuirá efetivamente a ciência para minimizar a relação entre

o que são as coisas e o que elas aparentam ser, entre o saber e o fazer, entre a teoria e a

prática? Será que nossas ciências não são inúteis em vista do objeto que se propõe e será

que não são ainda mais perigosas em relação aos efeitos que produzem?180Além dos

aspectos epistemológicos, Rousseau ainda apontava questionamentos de caráter axiológicos

da ciência (que serão oportunamente retomados no capítulo III): Há alguma relação entre

virtude e ciência? A ciência contribuirá para purificar ou para corromper os nossos

costumes?181

178 SANTOS., Uma introdução..., op. cit., p. 17. 179 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. In: OS PENSADORES. São

Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 419. 180 ROUSSEAU, op. cit., p.343. 181 ROUSSEAU, op. cit. 333 e ss. Essa passagem de Rousseau também é transcrita por SANTOS,

Um discurso..., op. cit., p. 47; SANTOS, A crítica..., op. cit., pp. 59 e 60.

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As perguntas “simplórias” de Rousseau, expostas num cenário cuja confiança

epistemológica era total na ciência, do mesmo modo podem ser perfeitamente repetidas

hoje. Só que agora, num contexto em que se vive a desconfiança epistemológica do

paradigma dominante. E num contexto em que se as perguntas são simples, as respostas

fatalmente não serão, porque “estamos no fim de um ciclo de hegemonia de uma certa

ordem científica”, responde Boaventura Santos.182

Então, as indagações de Rousseau desembocam naquilo que hoje denominamos a

crise do paradigma científico. Para Boaventura Santos é uma “crise de degenerância” e não

meramente uma “crise de crescimento”, porque significa colocar em “crivo” o modelo

paradigmático de compreensão de mundo instalado pela ciência. Significa “o pôr em causa

a própria forma de inteligibilidade do real” e não somente os instrumentos metodológicos e

conceituais oferecidos pelo paradigma científico. 183

No começo do séc. XX, Edmund Husserl, enfocara exatamente este sentido, ao

tratar da “crise das ciências européias”: “Existe verdadeiramente uma crise das ciências,

malgrado os seus contínuos sucessos?”184, indagava ele.. É com base nesta questão que

Husserl instaura o assunto e dela vai se ocupar o filósofo já na parte introdutória de sua

obra, fruto de suas conferências proferidas entre anos de 1935-37. Em outro trecho de seus

escritos sobre a crise da ciência como expressão da crise radical de vida da humanidade

européia, Husserl volta a indagar: “Mas como é possível falar em geral e seriamente de

uma crise das ciências, assim também das ciências positivas, da matemática pura, das

ciências naturais exatas, que não cessaremos mais de admirá-las como exemplos de uma

cientificidade rigorosa e destinada a contínuos sucessos?” 185

Tal como o enunciado de Boaventura citado acima de que tal crise não se trata

somente do “crescimento” da ciência, Husserl antecipa a situação, respondendo que a crise

da ciência não está na sua exatidão ou na sua cientificidade. O problema desta crise,

responde Husserl, reside no enigma da subjetividade. Ou seja, o mundo da ciência é

caracterizado pela objetividade, desobrigando-se da subjetividade, e a preocupação do

filósofo não reside somente no mundo-em-si (representado pela ciência), mas com a

ontologia do mundo-da-vida (representado pela subjetividade humana).186 Neste sentido,

182 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 47. 183 SANTOS., Uma introdução..., op. cit., p. 18. 184 HUSSERL, op. cit., p. 33 (Tradução livre). 185 Id. Ibid. 186 Vale dizer que, para Husserl a relação entre o objetivismo e o subjetismo é o problema central da

crise das ciências européias. Segundo ele, a resolução desta crise virá pelo desdobramento desta dicotomia pela fenomenologia transcendental. O desenvolvimento da metafísica moderna, explica Husserl, é uma fase

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ele assegura que o positivismo reduziu a ciência ao mundo dos fatos. O que temos hoje é a

idéia de “ciência de fato”. Daí ele é enfático em constatar: “As meras ciências de fatos

criam meros homens de fato”.187 Portanto, a crise da ciência é também uma crise da

humanidade.

E num período entre guerras, o qual vivia Husserl, ele observa:

Na miséria de nossa vida _ ouve-se dizer_ esta ciência não tem nada a nos dizer. Essa exclui dos seus princípios próprios aqueles problemas que são os mais graves para o homem, os quais, nestes tempos atormentados, ouve-se o domínio do destino; os problemas do senso ou do não-senso da existência humana no seu complexo. Estes problemas, na sua generalidade e necessidade, não exigem porventura, para todos os homens, também considerações gerais e uma solução racionalmente fundada?188 Em defintivo, prossegue Husserl, estes problemas dizem respeito ao homem em seu

comportamento diante do mundo circunstanciado pelo humano e extra-humano; ao homem

que deve livremente escolher e ao homem que é livre para moldar a si mesmo e ao mundo

que o circunda. Evidente que a mera ciência de fato, conclui o autor, nada tem a dizer sobre

este propósito.

Elucidando ainda mais o que fora dito em sentido introdutório, passemos agora a

identificar os aspectos históricos, sociológicos, teóricos e epistemológicos desta “crise de

degenerância” porque passa a ciência moderna.189

4.2 Aspectos Históricos, Sociológicos e Teóricos da Crise do Paradigma Científico:

A visão cartesiana do conhecimento e a atitude epistemológica baseada no método

experimental, deram sustentação ao projeto Iluminista da modernidade (sobretudo, a partir

do séc. XVIII) fundado na crença absoluta da razão humana e, portanto, no racionalismo

científico. Para se ter uma noção do espírito deste período, expomos aqui a narrativa

magistral de Rousseau, descrita na primeira parte de seu “Discurso”, que, de modo hábil,

antes mesmo de estabelecer as críticas à ciência (conforme vimos há pouco) presta uma

homenagem às “luzes”:

do desdobramento desta fenomenologia. Daí o título de sua obra: “A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental”.

187 HUSSERL, op. cit., p. 35. (Tradução livre) 188 Id. ibid. 189 Parte do que aqui será exposto, fora apresentado em forma de comunicação em Congresso

Científico. Cf. MIRANDA, Angela L. et al Epistemologia e a Crise do Paradigma Científico. In: III Encontro de Filosofia e História da Ciência do Cone Sul, 2002, São Paulo. Caderno de Resumos...AFHIC, 2002.

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É um espetáculo grandioso e belo ver o homem sair, por seu próprio esforço, a bem dizer do nada; dissipar por meio das luzes de sua razão, as trevas das quais o envolveu a natureza; elevar-se acima de si mesmo; lançar-se pelo espírito, às regiões celestes; percorrer com passos de gigante, como o sol, a vasta extensão do universo; e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mesmo para estudar o homem e conhecer a natureza, seus deveres e seu fim. Todas essas maravilhas se renovam, há poucas gerações.190 O Iluminismo representa a valorização da Razão, em detrimento à visão

teocêntrica, resquícios ainda da era medieval. Significa iluminação pela razão do homem

moderno emancipado e livre de toda forma de consciência mítica que, outrora, era-lhe

subjulgada pelo medo e pelos obscurantismos da existência na relação homem e natureza.

Através do desencantamento do mundo, o homem iluminado se liberta do medo de uma

natureza desconhecida, à qual atribuiu poderes ocultos para explicar seu desamparo em

face dela. O homem iluminista é o vencedor das trevas da ignorância e do preconceito; é

aquele que atinge, segundo Kant, a maioridade e, como dono de si mesmo, confia na sua

capacidade racional, recusa qualquer arbítrio, exalta a ciência e deposita suas esperanças na

técnica, instrumento capaz de dominar a natureza. Segundo Kant,

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung]. 191 Porém, o projeto iluminista da modernidade, sustentado no uso da razão

instrumental como garantia da emancipação do homem, porque poria fim a toda forma de

ignorância e obscurantismos humanos; sustentado ainda nos ideários do desenvolvimento e

progresso tecnológico como fim da miséria e da fome; sustentado também na crença do

Estado de Direito, como garantia do poder democrático e do pleno exercício político da

liberdade humana; enfim, sustentado na tríplice aliança dos anseios iluministas, quais

sejam: a Liberdade, a Fraternidade e a Igualdade, entrou em crise a partir do século XIX e

XX, quando se constatou o seu fracasso192.

O século XX é talvez, a maior evidência histórica e representativa das promessas

fracassadas do projeto iluminista da modernidade. Pois quanto à crença na superação da

190 ROUSSEAU, op. cit., p. 333. 191 KANT, Immanuel. Textos seletos. Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? (Aufklarung).

Petrópolis: Vozes, 1974, p.100. 192 Corrobora nesta tese: BOAVENTURA SANTOS. Além de outros teóricos como: R. KURZ, G.

ARRIGHI. Cf. referências no final deste trabalho.

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fome e da miséria pelo desenvolvimento tecnológico, nunca na história da humanidade se

constatou tantos miseráveis abaixo da linha de pobreza. E Boaventura Santos acrescenta:

No que respeita à promessa da igualdade os países capitalistas avançados com 21% da população mundial controlam 78% da população mundial de bens e serviços e consomem 75% de toda energia produzida. Os trabalhadores do terceiro mundo do setor têxtil ou da eletrônica ganham 20 vezes menos que os trabalhadores da Europa e da América do Norte na realização das mesmas tarefas e com a mesma produtividade [...]. Mais pessoas morreram de fome no nosso século que em qualquer dos séculos precedentes [...].193 Quanto ao exercício do poder democrático pela garantia do Estado de Direito, da

liberdade e da paz, o mesmo autor afirma que “enquanto no século XVIII morreram 4,4

milhões de pessoas em 68 guerras, no nosso século morreram 99 milhões de pessoas em

237 guerras”.194 É, como bem disse Hobsbawm, “a era dos extremos”. Outro exemplo da

fracassada promessa de Liberdade e do Estado de Direito reside nos efeitos nefastos da

economia na era da Globalização que desmantela qualquer soberania e autonomia estatal

em nome da transnacionalização e do livre mercado.

Quanto aos ideais de “progresso”, este é permeado pela destruição ambiental, numa

relação paradoxal descrita com perfeição e sensatez por Capra:

Podemos controlar os pousos suaves de espaçonaves em planetas distantes, mas não somos capazes de controlar a fumaça poluente expelida por nossos automóveis e nossas fábricas. Propomos a instalação de comunidades utópicas em gigantescas colônias espaciais, mas não podemos administrar nossas cidades. O mundo dos negócios faz-nos acreditar que o fato de gigantescas indústrias produzirem alimentos especiais para cachorros e cosméticos é um sinal de nosso elevado padrão de vida, enquanto os economistas tentam dizer-nos que não dispomos de recursos para enfrentar os custos de uma adequada assistência à saúde, os gastos com educação e os transportes públicos. A ciência médica e a farmacologia estão pondo em perigo nossa saúde, e o Departamento de Defesa tornou-se a maior ameaça à segurança nacional. 195

A promessa de domínio da natureza, então, é proporcional à destruição ambiental,

gerando uma verdadeira esquizofrenia quanto ao sentido de progresso; a visão de

desenvolvimento tornou-se uma idéia subdesenvolvida. Os dados oferecidos por

Boaventura ilustram o que queremos dizer:

Nos últimos 50 anos o mundo perdeu cerca de um terço de sua cobertura florestal. Apesar de a floresta tropical fornecer 42% da biomassa vegetal e do oxigênio, 600.000 hectares de floresta mexicana são destruídos anualmente. As empresas multinacionais detêm hoje direitos de abate de árvores em 12 milhões de hectares da floresta amazônica. A desertificação e a falta de água são os problemas que mais vão afetar os países do Terceiro Mundo na próxima década. Um quinto da humanidade já não tem acesso a água potável.196

193 SANTOS, A crítica..., op. cit. , pp. 23 e 24. 194 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 24. 195 CAPRA, F. O Ponto de Mutação . São Paulo: Cultrix, 1986, p. 19. 196 SANTOS, A crítica..., op. cit., p. 24. Cf. ainda p. 56 da referida obra.

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Portanto, o projeto iluminista da modernidade, que tem como um dos pilares de

sustentação a própria aliança entre a ciência e a técnica a partir da Revolução Industrial,

tem em vista uma forma de conhecimento que historicamente pode ser assim identificada:

“de meados do século XIX até hoje a ciência adquiriu total hegemonia no pensamento

ocidental e passou a ser socialmente reconhecida pelas virtualidades instrumentais da sua

racionalidade, ou seja, pelo desenvolvimento tecnológico que tornou possível”.197

É neste sentido que recai a crítica dos teóricos da Escola de Frankfurt (sobretudo,

Horkheimer, Adorno e Habermas), conforme já nos referimos no capítulo anterior, quando

tratamos da “Técnica e Ciência enquanto Ideologia: a Crítica da Teoria Crítica” (I

Capítulo, 1.4.3), mas que aqui, vale a pena retomar tendo em vista esse panorama de sua

contextualização.

Horkheimer, por exemplo, centra seu foco de análise no uso da razão. Segundo ele,

a teoria tradicional, desde Descartes, tornou a razão científica subjetiva, formal e

instrumental. É subjetiva na medida em que se torna abstrata, donde o método é fator

preponderante em detrimento aos fatos que circunstanciam sua aplicação; é formal

exatamente por isso, pois, o maior peso é dado ao aspecto metodológico e não ao conteúdo

cognoscitivo da práxis histórica; é instrumental, porque o critério de verdade da razão é

estabelecido pelo seu valor operativo, que se dá, sobretudo, pela dominação do homem

pela natureza.

Habermas, dando continuidade à análise de Horkheimer, além de postular a

existência da razão instrumental, isto é, um agir racional cuja ação corresponde a uma

finalidade prática, funcional, observa que desde o final do século XIX, a tendência do

capitalismo tardio consiste na cientifização da técnica a partir do imbricamento entre

ciência e técnica como condição de força produtiva, pois, o “progresso técnico-científico

tornou-se uma fonte independente de mais-valia”.198 Disso decorre o tecnicismo que é o

agir instrumental por excelência, donde o sentido de práxis é expropriado de seu sentido

originário e apropriado para designar os efeitos de um agir-racional-com-respeito-a-fins.

Afora os frankfurtinianos, encontramos ainda a posição de Heidegger (também já

contemplada no Capítulo I) para quem, “a ciência e a tecnologia correspondem a uma

compreensão dogmática do ser que pretende reduzir toda existência à sua

instrumentalidade, por essa via conduzindo ao ‘esquecimento do ser’ e à inviabialização de

197 SANTOS, Uma introdução, op.cit., p. 28. 198 HABERMAS, Técnica..., op. cit., p. 331. Para melhor detalhamento da visão habermasiana,

conferir o capítulo I desta pesquisa, item 4.3.

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um projeto humano de existência autêntica”.199 Disso conclui-se que a racionalidade

científica na modernidade, desde Bacon200, pretende conhecer o mundo não para o

contemplar, mas para o dominar, por isso ela é instrumental.

Além destes aspectos históricos e sociológicos, há que salientar ainda os aspectos

teóricos, mais precisamente do ponto de vista da Teoria do Conhecimento, que enfatizam a

crise epistemológica do paradigma científico.

Para Boaventura Santos, Bachelard representa o marco inicial da crise do

paradigma científico. Segundo ele, “a epistemologia bachelardiana representa o máximo de

consciência possível do paradigma científico da modernidade” 201 da mesma forma que ela

representa também o que Boaventura designa a primeira ruptura epistemológica da ciência

moderna, pois, é com Bachelard que a ciência definitivamente procura se separar do senso

comum.

Preocupado com a formação do novo espírito científico, título de uma de suas obras

escritas no início do século XX, o filósofo afirma: “a ciência se opõe absolutamente à

opinião”.202 Ela (a ciência) constrói-se contra o senso comum, pois, este é um

conhecimento fixista e conservador, que pensa o que existe tal como aparece. Disso, não se

satisfaz a ciência, que busca as causas dos fenômenos para além das ideologias. Em ciência

nada é dado, tudo é construído. Por isso que o primeiro passo para fazer emergir o

conhecimento científico é romper com as barreiras do senso comum. Este é, para

Bachelard, o primeiro obstáculo epistemológico do cientista, pois, o abandono do senso

comum é um sacrifício difícil para os cientistas, já que estes conhecem sempre contra um

conhecimento anterior, ou, ao menos, fundam um conhecimento a partir de um outro já

constituído. Bachelard defende, então a vigilância epistemológica. Nas palavras de

Boaventura Santos, este cenário pode ser assim traduzido:

Daí que não seja fácil aos cientistas manterem sempre uma relação realista com sua prática científica (a “filosofia diurna”) e cedem, por vezes, à tentação de aceitar o conforto de idéias vulgares, por vezes recobertas de jargão filosófico, preconceitos idealistas, noções pseudocientíficas, enfim um conjunto de erros tenazes que lhes é muitas vezes proposto pelas várias filosofias da ciência em uso (“filosofia noturna” dos cientistas). Sempre que tal sucede, o cientista entra numa relação imaginária com a sua própria prática científica, e é dessa relação que decorrem os obstáculos epistemológicos.203

199 SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p.20. 200 Cf. Capítulo II, tópico 2 deste trabalho. 201 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p.35. 202 BACHELARD, Gaston. La formation de le sprit scientifique. Paris: J Vrin,1972, p. 14. Apud,

SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p. 31. 203 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 33.

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Em síntese, é com Bachelard que a ciência define sua trajetória emancipatória, que

vai do senso comum ao conhecimento científico, e sua identidade, fundada num paradigma

que se constitui contra o senso comum e recusa as orientações práticas que dele decorrem [...]um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico, cuja validade reside na objetividade de que decorre a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética; um paradigma que tende a reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação (cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática, ou, pelo menos, do que nelas não é redutível, por via de operacionalização, a quantidades; [...]um paradigma que avança pela via da especialização e da profissionalização do conhecimento, com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder, onde não cabem os leigos, que assim se vêem expropriados de suas competências cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem; um paradigma que se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental, irresponsabilizando-se da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que se produz; finalmente, um paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário, sem imagens nem metáforas, analogias outras figuras de retórica,, mas que com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação, incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade.204 Depois de Bachelard, vieram outros autores, como: Popper, que, através do

princípio da refutabilidade, assegurava que uma teoria científica deve ser aceita muito

mais pela possibilidade de ser refutada do que pela possibilidade de ser comprovada,

sendo, pois, o conhecimento científico: conjecturas e refutações; Khun que propunha a

análise da história da ciência a partir de paradigmas, considerando a estrutura das

revoluções científicas.205 Mais recentemente, outros críticos, como: Morin, através da

noção de complexidade; Prigogine, através do princípio da incerteza; Boaventura, através

da visão de um paradigma emergente, corroboram com a tese de que vivemos um período

de transição paradigmática, no sentido de que a visão científica de mundo, de realidade

deve ser posta em crise; ou seja, há uma crise epistemológica do ato de conhecer.

No campo da física, por exemplo, pensadores como Einstein e Capra contribuíram

para explicitar as contradições da ciência moderna. Partindo da relatividade dos

204 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 34 e 35. 205 BACHELARD, G. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense, 1968;

POPPER K. Conjecturas e refutações. Brasília: UNB, 1972; KHUN. T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989. Além destes, outros autores poderiam ser citados aqui, como: Canguilhem, Foucault, Althusser, Feyarabend, A. Koyré, P. Rossi, entre outros, que, guardadas as devidas proporções e diferenças, também se tornaram críticos da ciência. Mas, como nosso objetivo não é elaborar uma história da ciência, para quem deseja ter uma noção geral destes autores, recomendamos a leitura de HORGAR, John. O fim das ciências. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Também um debate interessante entre os críticos do conhecimento como Kuhn, Popper, Feyerabend pode ser encontrado na obra já citada aqui, organizada por LAKATOS & MUSGRAVE. Alguns questionamentos sobre a teoria e a história das ciências de autores como Canguilhem, Bachelard e Foucault podem ser encontrados na publicação da REVISTA TEMPO BRASILEIRO. Epistemologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, n. 28, Jan- Mar, 1972, 95 p. 2ª Edição.

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fenômenos, Einstein demonstrou que o tempo e o espaço não obedecem a uma ordem

mecânica, como na visão newtoniana. À guisa desta concepção tem-se a teoria da mutação

de Capra206, que postula vivermos uma crise de percepção do mundo, posto que a

realidade é dinâmica e que não há determinismo em absoluto, contrariando, assim, a visão

determinista e mecanicista do Universo. Também no campo da microfísica Heisenberg e

Bohr alertaram para o risco do conhecimento seguro e certo advindo do método científico,

o qual analisaremos mais adiante (iten 4.2.3).

Traçamos até aqui o quadro que configura o panorama histórico-social da crise

paradigmática do conhecimento científico. Há que ressaltar ainda os aspectos

epistemológicos desta crise. Para efeito didático, dividimo-los em alguns tópicos,

conforme veremos a seguir.

4.3 Aspectos Epistemológicos da Crise do Paradigma Científico

1) A relação parte e todo (a noção do especialista): Na visão cartesiana conhecer

é ter certeza. Por isso mesmo, a Ciência Moderna compreende que qualquer sistema

complexo tanto mais é entendível e conhecido, quanto maior for sua

compartimentalização. Assim prega a Ciência que dado a complexidade do real, um

conhecimento certo e seguro advém necessariamente da divisão das partes que compõe o

real. A dinâmica do todo só pode ser conhecida a partir da propriedade das partes, como no

Discurso do Método de Descartes: “Dividir cada uma das dificuldades que eu examinaria

igualmente em partes que pudessem e que fossem conveniente resolvê-las”.207

Pautando-se nesta visão epistemológica, o conhecimento científico reduziu o real à

mera soma das partes, considerando ser o todo a simples justaposição das partes. Um

conhecimento é tanto mais rigoroso, quanto maior sua objetividade, logo, a parte tornou-se

mais importante que o todo. Daí a criação do conhecimento especializado. Sobre isso

Boaventura alerta:

É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são, sobretudo, visíveis no domínio das ciências aplicadas. As tecnologias preocupam-se hoje com o seu impacto destrutivo nos ecossistemas: a medicina verifica que a hiperespecialização do saber médico transformou o doente numa quadrícula sem sentido quando, de fato, nunca estamos doente senão no geral [...]; o direito que reduziu a

206 CAPRA, F. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1986. 207 DESCARTES, R. Discurso do método. In: OS PENSADORES, São Paulo, Abril Cultural,

1983, p. 17

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complexidade da vida jurídica à secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida[...].208

O novo enfoque epistemológico considera que não há partes em absoluto, porque a

realidade não é uma mera soma de situações ou de sucessões, mas um conjunto complexo

de relações que a compõe. Portanto, se antes se partia de uma visão disjuntiva (separar para

entender), uma nova epistemologia exige uma visão conjuntiva (ampliar para entender),

pois o complexo de relações é que compõe o todo. Num exemplo ilustrativo diz-se que não

é possível conhecer a rede somente pelos fios que a tecem. Estes, por si só, não dizem o

que é a rede e nem mesmo o amontoado deles. Para conhecer a rede é preciso ter em vista

as inter-relações dos fios que a compõe209. É necessário distinguir, mas não disjuntar: a

maneira de entender a parte é entender a sua relação com o todo. Não se nega a parte; ela

existe, mas só pode ser compreendida na relação com o todo210.

2) A noção do físico e do metafísico: Considerando que conhecer é ter certeza e

que certeza é dado de prova, comprovação, a epistemologia moderna rechaçou, do campo

do conhecimento, a metafísica por considerar que somente se tem comprovação daquilo

que é palpável, quantificável, empírico e físico. Assim, o conhecimento moderno tornou-se

unidimensional porque reduziu o real somente ao que é material: o fenômeno, o que

aparece.

Mesmo as ciências ditas naturais (que tem como objeto a matéria física) tornaram-

se o modelo de ciência porque empírica, provável, palpável; logo, exata. Disso advém a

posição de Comte que, aos moldes das Ciências Naturais, pretendia estudar as ciências

sociais através da chamada Física Social, propondo a redução de fatos sociais a condições

mensuráveis. Assim, “as causas do aumento da taxa de suicídio na Europa do virar do

século não são procuradas nos motivos invocados pelos suicidas e deixados em cartas

como é costume, mas antes a partir da verificação de regularidades em função de

condições de sexo, estado civil, a existência ou não de filhos, a religião do suicida”.211

Um outro olhar sobre o real postula a necessidade de um conhecimento

multidimensional, capaz de levar em conta as diferentes facetas do real. Aquilo que está

além do físico (o meta-físico) também deve ser considerado no ato de conhecer. A título

208 SANTOS, Boaventura de S. Um discurso...., op. cit., p. 64. 209 É deste modo que MORIN se opõe tanto ao holismo (que privilegia o todo em detrimento à

parte), como também à especialidade (que privilegia a parte em detrimento ao todo). 210 Sobre a generalização ou especialização, cf. obra: DEMO, Pedro. Conhecimento moderno –

sobre ética e intervenção do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1997; MORIN, E. A inteligência..., op. cit. 211 SANTOS, um discurso...,.op. cit. p. 52, ao analisar a visão sociológica de DURKHEIM sobre o

suicídio.

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ilustrativo, veja-se a observação de um diretor de centro laboratorial: estuda-se em

laboratório de Biologia o que é a célula, mas esquece-se de investigar o que é a vida212. E a

vida é antes de tudo um conceito substancial, metafísico. Portanto, é um equívoco persistir

na dicotomia entre o físico e o metafísico, separando-os no ato de conhecer.

Além disso, as novas descobertas científicas (em grande parte, elaboradas pelas

próprias Ciências Naturais), dão conta de alertar que também na natureza os fenômenos

nem sempre obedecem a uma causalidade linear e ordenada como na visão determinista e

positivista. Por isso mesmo, conceitos como: “movimento”, “imprevisão”, “caos”, “auto-

organização”, que antes eram característicos das ciências sociais, estão sendo apropriados

também pelas ciências tidas como naturais213. Num exemplo, Boaventura afirma: “[...] Para

não irmos mais longe, quer a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine, quer a teoria

Cinergética de Haken explicam o comportamento das partículas através de conceitos de

revolução social, violência, escravatura, dominação, democracia nuclear, todos eles

originários das ciências sociais [...]”.214

Portanto, a nova epistemologia postula ser as ciências naturais também sociais, na

medida em que aquelas se utilizam de princípios equivalentes destas para explicar o real.

Assim, indaga-se: faz sentido ainda a separação e a própria distinção conceitual entre

ciências naturais e ciências sociais?

Boaventura ousa responder esta questão prevendo que esta “distinção entre natureza

e sociedade tende a ser superada”, e como o paradigma da ciência moderna está fundado

nesta distinção, pensar a sua superação significa romper com este paradigma. E conclui:

Da filosofia grega ao pensamento medieval a natureza e o homem pertencem-se mutuamente enquanto especificação do mesmo ato de criação. A ciência moderna rompe com essa cumplicidade, desantropomorfiza a natureza, e sobre o objeto inserte e passivo assim constituído constrói um edifício intelectual sem precedentes na história da humanidade. Este edifício, como qualquer outro, teve um fim prático, e este foi o de criar um conhecimento que pudesse instrumentalizar e controlar a natureza [...].215 Desta forma o homem moderno provocou uma ruptura ontológica entre o homem e

a natureza que dela decorreram outras rupturas, a saber: a ruptura entre singular e

universal, entre físico e metafísico, entre valor e fato, entre o privado e o público, entre

ciências naturais e sociais e a ruptura entre sujeito e objeto que analisaremos a seguir.

212 MORIN, Edgar. Inteligência..., op. cit., p. 28. 213 Conferir, como exemplo, a Teoria da Relatividade de Einstein, a Teoria da Mutação de Capra, a

Teoria Cinergética de Haken, a Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine, dentre outros, in: SANTOS, Um discurso...,op. cit.

214 SANTOS, Um discurso..., op. cit.,. p. 62. 215 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 66.

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3) A noção de objetividade do conhecimento científico: Tendo em vista a

pretensão de um conhecimento puro e neutro, desprovido de qualquer ideologia e contexto,

o pensamento científico considera que um conhecimento tanto maior será verdadeiro,

quanto maior for o isolamento do objeto de seu meio e do sujeito em relação ao objeto.

Acredita-se assim, que para conhecer é necessário apreender o fenômeno em si, isolando-o

de seu ambiente e de seu contexto. Essa atitude desconsidera a historicidade da matéria,

postulando que o tempo é reversível, único e igual no processo de conhecimento.

Nisso reside a crítica de alguns pensadores de hoje. Prigogine, por exemplo,

assegura que só se pode conhecer um sistema complexo referindo-se à sua história e a seu

percurso216 . A título ilustrativo, Morin dá o seguinte exemplo: estima-se que o sol tenha

aproximadamente 5 bilhões de anos e que, provavelmente, está em sua fase adulta.

Portanto, é esta a concepção de sol que temos hoje, em nosso tempo. Considerando que

daqui a mais 5 bilhões de anos o sol já estará envelhecido, certamente, se vivêssemos neste

tempo, teríamos outro conceito do sol que não este que temos agora217. Aqui, o tempo é

irreversível e necessária é a sua consideração no processo de conhecimento do objeto.

Assim, deve-se levar em conta também a historicidade da matéria, í. é., daquilo que

se conhece ou que está sendo conhecido. Não é possível dizer, então que o sol de hoje terá

o mesmo conceito no futuro (daqui a bilhões de anos). Logo, a legitimidade do

conhecimento tanto mais o será, quanto mais se levar em conta a historicidade e o contexto

do objeto a ser conhecido.

Nisto reside a irreversibilidade do tempo do objeto ou do fenômeno em observação.

Pelo fato de que o tempo ser irreversível e não igual não só sob a perspectiva do

observador, mas também do observado, há que se ter em vista a historicidade do fenômeno

apreendido e o contexto de sua apreensão. As ciências exatas sempre desconsideraram o

tempo da matéria, daí a reversibilidade do tempo. Hoje, considerando que tal categoria não

está presente somente no sujeito que observa, mas também no objeto, tem-se que o tempo é

irreversível também na matéria.

Outra crítica frente à pretensão de objetividade do conhecimento científico consiste

em enfatizar os próprios limites do homem quanto ao modo de conhecer, expresso no

princípio da incerteza de Heisenberg, conforme salienta Boaventura: “Heisenberg e Bohr

demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem

alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá

216 MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 332 217 MORIN, E. A inteligência..., op. cit., p. 57.

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entrou” 218. Uma coisa medida (e a medida é uma das formas de como a ciência conhece,

portanto, é a evidência da limitação do conhecimento humano) é alterada pelo próprio

instrumento da medida. Portanto, o que conhecemos do real nada mais é do que senão a

nossa própria intervenção nele.

Neste mesmo sentido, perpassa a crítica quanto à relação sujeito (aquele que

conhece) e objeto (aquele que é conhecido). Do princípio da objetividade do conhecimento

científico, advém a necessidade de separar o sujeito do objeto a ser conhecido. Assim, a

Ciência Moderna postula que o conhecimento verdadeiro é aquele em que não há

interferência do observador no processo de observação do objeto219. Trata-se da pretensão

da neutralidade científica, reforçada pela seguinte premissa: quanto mais vários

observadores chegam à mesma conclusão sobre um objeto, maior a veracidade do

conhecimento sobre este objeto.

Hoje, um novo modo de conhecer postula que é impossível negar a dimensão

subjetiva do conhecimento. Não há como negar a presença do observador no ato de

conhecer e o conhecimento nada mais é do que a interação entre observador e observado.

Cabe aqui, a inclusão do princípio da interferência estrutural do sujeito no objeto

observado, como no dizer de Boaventura.220

Popper, através do princípio da refutabilidade221, já havia alertado para tal

possibilidade, conforme diz Morin: “não se pode induzir de maneira certa uma lei a partir

de verificações empíricas. As teorias são sistemas lógicos, elaboradas pelo espírito humano

e este os aplica sobre o real”.222

Assim sendo, nem mesmo a verificação empírica é garantia de lei ou de

objetividade do conhecimento. Dado que é produzida pelo espírito humano e este a aplica

sobre o real, o conhecimento nada mais é do que a representação do mundo físico. Aliás, o

conhecimento é mais que representação; é construto humano do mundo, pois, o mundo é

gerado no processo de conhecimento, como no dizer de Maturana e Varela223. Conhecer,

pois, é construir o mundo. Prudente seria, então, ao invés de afirmar que verdade é certeza,

como no dizer de Descartes, considerá-la como mera pretensão de validade, como afirma

Habermas.

218 SANTOS, op. cit., p. 55. 219 Tal postulado já foi explicitado anteriormente no item .3.2 sobre a objetividade do método

científico. 220 SANTOS, U m discurso...,op. cit., p. 55. 221 Tal conceito popperiano, será retomado no próximo item (4 .2.3) para esclarecimento. 222 MORIN, A inteligência..., op. cit.,. p. 38 223 CAPRA e STENDL-RAST. Pertencendo ao universo. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 116.

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Ainda sobre a objetividade, vale lembrar que este ideal é perseguido pelo

conhecimento científico desde o surgimento das ciências modernas. Quando da criação da

Royal Societty of Sciences, em Londres (1662) seus membros já haviam pactuado não

discutir nenhum assunto que fosse estranho ao estatuto aprovado pelo Rei, vale dizer:

questões relacionadas à política e à religião. Para Hannah Arendt tal fato já é o prenúncio

do ideal científico da “objetividade”. E a necessidade de organização dos cientistas, avalia

Arendt, denuncia que desde o princípio a ciência possui muito mais conotação política que

científica. Em palavras textuais ela diz:

É extraordinário que os homens de ciência desde o início, tenham julgado necessário organizar-se em sociedades [...] Uma organização, quer ela agrupe políticos ou cientistas inimigos da política, é sempre uma instituição política; quando homens se organizam, é para agir e se conferir poder. Nenhuma equipe científica faz ciência pura: ou ela quer agir sobre a sociedade, nela assegurando a seus membros certa situação, ou então, como era ou como ainda é o caso da pesquisa organizada em ciências naturais, ela pretende agir de modo concertado a fim de conquistar a natureza. Como declarou Whitehead, “não é por acaso que a era da ciência torna-se a era da organização. Por que o pensamento organizado é o fundamento da ação organizada”; não, acrescentamos, porque o pensamento seja o fundamento da ação, mas porque a ciência moderna, enquanto “organização do pensamento”, nele introduziu um elemento de ação.224 4) Causalidade e generalização: O conhecimento científico é, por excelência, um

conhecimento causal. Isto significa dizer que o método científico trabalha com a noção

causa e efeito, considerando que para todo efeito há uma causa, assim como todo efeito

segue necessariamente uma causa. Tal concepção causal encontra-se expressa na visão

mecanicista e determinista da realidade. A visão mecanicista, por exemplo, pode ser assim

expressa:

Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina, cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via de sua decomposição nos elementos que o constituem.225

A causalidade adotada pelo pensamento científico concebe, pois, o mundo como

uma máquina. Semelhante a um relógio (metáfora cartesiana), onde cada peça obedece a

uma funcionalidade linear, ordenada e pré-existente, a realidade assim o é: funcional,

linear, onde cada fenômeno obedece a uma hierarquia pré-estabelecida226. Essa visão

hierárquica é expressa nas ciências naturais, por exemplo, através da noção de estrutura

que são blocos de construção básicos da matéria que compõe o mundo físico. A Teoria da

224 ARENTD, Hanna. La condition de l´homme moderne. Calmann-Lévy, 1983, pp. 305-306, n. 2.

Citado por JAPIASSU, op. cit., pp. 318-319, n. 13. 225 Interpretação elaborada por. SANTOS, Um diálogo..., op. cit., p. 51 226 A título ilustrativo, conferir o filme baseado na obra de FRITJOF CAPRA, O ponto de mutação.

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Evolução das Espécies (Darwin) pode ser um exemplo dessa visão estrutural, donde

elementos (espécies) primários desencadeiam hierarquicamente novos elementos

secundários e assim sucessivamente.

Atrelada à noção de causalidade, tem-se a noção de generalidade, pois, não há

ciência senão no geral. Em outros termos: a generalização só existe a partir da descoberta

da causalidade funcional dos fenômenos. Deriva daí a concepção de Lei, que em sentido

científico só é válida se aplicada a todas as situações gerais. Daí porque dizer que a Lei

possui caráter genérico.

Ora, segundo Boaventura, a noção causal adotada pelo método científico refere-se

tão somente à causa formal227, que privilegia o “como” as coisas funcionam,

desconsiderando a causa final dos fenômenos que privilegia a intencionalidade das coisas,

ou seja, sua finalidade, ou o “para quê” as coisas existem.

A causalidade científica é: uma noção simples, porque descarta outras formas de

causalidade; uma noção linear, porque considera o real funcional, hierarquicamente

estabelecido por estruturas e tem caráter de generalização e de homogeneidade (é o sentido

de lei), aniquilando o particular, o singular.

Considerando ser o real um jogo complexo e dialógico dos elementos que o

constitui, essa noção de causalidade é, pois, insuficiente. Dito de outro modo: no real

também está presente a auto-organização, o caos, o aleatório e sua causalidade é complexa,

pois há interações entre os fenômenos. Afinal, mais que afirmar que o efeito segue

necessariamente a causa, é mister salientar que o efeito também retroage sobre a causa; há

interação de um sobre o outro228. As noções de termodinâmica da física atual apontam

nessa direção: o frio exterior provoca o calor interior. Daí podemos inferir que há inter-

retroações, interferências, atrasos, desvios, também na natureza.

Uma nova noção de causalidade implica em rever o próprio conceito de lei em

sentido científico. Esta tem caráter probalístico, provisório. Melhor seria falar em

processo, tendo em vista, inclusive, o princípio da refutabilidade de Popper: uma teoria

deve ser considerada científica muito mais pela sua condição de falsificabilidade do que

pela sua condição de verificabilidade.

Se conveniente seria substituir a noção de lei por processo, conveniente também

seria substituir a noção de estrutura por rede, pois não há que se falar em hierarquia, mas

227 Já explicitamos, em outra oportunidade (Cf. p. 32 deste trabalho), os quatro modos de

causalidade aferidos por Aristóteles. Ver também SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 51. 228 Sobre essa noção de causalidade complexa, MORIN denomina endoexocausalidade.

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em inter-relações entre os seres. Exemplificando, Morin diz: “se não houvesse partículas

materiais, não haveria gravitação; a gravitação não existe em si”.229 Logo, a metáfora da

rede melhor condiz com este cenário. Em síntese, Boaventura afirma: “o declínio da

hegemonia da legalidade, é concomitante ao declínio da hegemonia da causalidade”.230

5) Ordem, desordem e contradição: O paradigma científico adota a postura da

ordem mestra, ou seja, o universo obedece a leis determinadas (determinismo mecanicista).

Desse modo, a desordem , a dispersão sempre foram consideradas sinal de erro no método

científico.

Descartes afirmava que clareza e distinção são um sinal de verdade. O erro deve ser

descartado no ato de conhecer, posto que é sinal de ignorância. Desta concepção nasceu a

confiança absoluta na lógica, na ciência certa, coerente, eficiente, infalível, com conceitos

claros, fechados e precisos. A desordem, o aleatório, o dispersivo, enfim o que está fora da

ordem é nada mais do que a insuficiência do nosso conhecimento, existindo somente no

plano da consciência humana. Trata-se, pois, de um discurso monológico.

Hoje, as novas descobertas científicas postulam que tais categorias também existem

no plano da matéria, do mundo objetivo. Boaventura, por exemplo, assim se refere à teoria

das estruturas dissipativas de Prigogine:

A importância dessa teoria está na nova concepção de matéria e da natureza que propõe uma concepção dificilmente compaginada com que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a inter-penetração, a espontaneidade e a auto-organização [...]; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente[...].231

Assim, indaga-se: a contradição é erro? Ou revela as superfícies profundas e

desconhecidas do real? Morin observa, por exemplo, que ordem e desordem cooperam para

se organizar, possuindo uma relação mútua, de complementariedade. E acrescenta: a

degradação e a desordem dizem respeito à vida, pois, na própria origem do universo (teoria

do Big Bang) tem-se primeiro a desintegração, e dela tem-se a organização232. Há dentro da

lógica a própria contradição, conforme já observara Heráclito: “Viver de morte, morrer de

vida”. O discurso é dialógico.

5 POR UMA OUTRA EPISTEMOLOGIA DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA

229 MORIN, A inteligência da..., ob. cit., p. 49. 230 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 57. 231 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 56. 232 MORIN, Introdução ao pensamento complexo. São Paulo: Instituto Piaget, 1997, p. 89.

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Dizia Wittgenstein: “Sentimos que mesmo depois de serem respondidas todas as

questões científicas possíveis, os problemas da vida permanecem completamente

intactos”.233 A constatação do filósofo evidencia que, muito embora, a ciência tenha sido a

forma de conhecimento predominante nos últimos três séculos, o fato é que ela não

responde por si só a todas as questões existenciais do ser humano. Rousseau já havia

desconfiado disso no séc. XVIII quando afirmava: parece que nossas ciências são mais

inúteis em vista do que se propõe e mais perigosas em relação aos efeitos que produzem.

Neste particular, a observação de Husserl é providencial: meras ciências de fatos produzem

meros homens de fato. Ao lado da observação do filósofo contemporâneo, Boaventura

também acrescenta que o prodigioso desenvolvimento científico nos fez acumular

conhecimento sobre o mundo, mas nos fez incapazes de transformar este conhecimento em

sabedoria do mundo, do homem consigo mesmo e com a natureza. E conclui:

Tal fato [...] deveu-se à hegemonia incondicional do saber científico e à conseqüente marginalização de outros saberes vigentes na sociedade, tais como o saber religioso, artístico, literário, mítico, poético e político, que em épocas anteriores tinham em conjunto sido responsáveis pela sabedoria prática (a phronesis) ainda que restrita a camadas privilegiadas da sociedade.234 E, sendo a tecnologia produto da aliança entre ciência e técnica (conforme

evidenciamos aqui desde o primeiro capítulo) é neste contexto que deve ser pensada a

dimensão epistemológica da tecnologia: a tecnologia é a materialização da visão

epistemológica da ciência moderna, ou, a tecnologia moderna é o produto supremo do

agir-raional-com-respeito-a-fins, característico do conhecimento científico, conforme bem

traduz Habermas, ao falar da ciência e da técnica como ideologia. Tendo seus postulados

epistemológicos fincados no empirismo e no conhecimento científico, a tecnologia

moderna tornou-se hegemônica, totalitária, à medida que, do mesmo modo da ciência,

desprezou outras formas de produção material que não a tecnociência. Neste sentido, é

possível explicar epistemologicamente o porquê do massacre de culturas e povos que não

fazem parte do circuito globalizante que o conhecimento técnico e instrumental implantou,

e que hoje designamos por tecnosfera. É esta visão epistemológica do paradigma científico

que hoje se encontra em crise, pelas razões teóricas, históricas, sociológicas e

epistemológicas, conforme anunciamos aqui.

233 Citado por SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p.121. 234 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 148.

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Os crescentes problemas ecológicos são o eco mais profundo desta crise

paradigmática. Já nos referimos a isso noutra oportunidade235, mas vale a pena aqui

retomar o que queremos dizer. Por exemplo: a objetividade da ciência, atrelada à

instrumentalidade da técnica, fez-nos tratar a natureza como um ser passivo e passível de

dominação. Se, para os antigos (e também hoje para as culturas ameríndias) a natureza é

vista como contemplação, para os modernos, ela tornou-se objeto de manipulação.

Portanto, a dominação da natureza pelo homem através dos avanços tecnológicos é um

exemplo característico do paradigma dominante em sentido epistemológico.

Hoje, as novas descobertas científicas caminham em direção oposta àquela que

considera a natureza mero objeto, postulando que na esfera dos fenômenos naturais,

também há dinamicidade, contradições, auto-organização, retroações236. O mundo é um

sistema vivo, possui sua própria inteligência, então o conhecimento sobre, não se dá mais

pela dominação e pelo controle, e sim pelo diálogo. Sobre isso, Habermas propõe:

[...] Em vez de tratar a natureza como objeto passivo de uma possível manipulação técnica, podemos dirigir-nos a ela como um parceiro numa possível interação. Em vez da natureza explorada, podemos ir em busca da natureza fraterna. Ao nível de uma intersubjetividade ainda incompleta, podemos atribuir a subjetividade dos animais, às plantas e até mesmo às pedras e comunicar-nos com a natureza, em vez de limitarmos a trabalhá-la, quebrando a comunicação [...].237 Logo, há que se considerar que efetivamente não há “objeto” no processo do

conhecimento, mas sim um “outro sujeito”238. Daí fica evidenciado porque Boaventura

insiste em dizer que o ato de conhecer, mais que ser uma atitude de dominação e de

intervenção, como o é na Ciência Moderna, constitui-se como ato de contemplação239.

Outro exemplo que configura as implicações epistemológicas do paradigma

científico na ecologia, diz respeito à visão departamentalizada e fragmentada do

conhecimento científico, que, por conseguinte, exige soluções tecnológicas também

departamentalizadas e fragmentadas.

Citemos ilustrativamente o problema da água. Bem sabemos que aqui no Brasil o

abastecimento de água às populações urbanas, sobretudo, das grandes metrópoles, constitui

235 Cf. MIRANDA, Ângela L. e BASTOS, João Augusto S. L. A. As interfaces entre epistemologia,

ética e ecologia. In: Coletânea Educação e Meio Ambiente. Curitiba: CEFET-PR (no prelo). 236 A Teoria das Estruturas Dissipativas de Prigogine, a Teoria Sinergítca de Haken podem ser

consideradas exemplos desta nova compreensão da natureza. Citado por SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 62 e por CAPRA, F. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1996.

237 HABERMAS, J. Técnica..., op. cit., p. 308. 238 Ibid. 239 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 68. O autor adverte que não se trata da visão medieval de

uma contemplação hostil, mas o sentido de contemplação aqui é sugerido em virtude da relação dialogal do ato de conhecer.

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um problema ambiental, devido ao processo de urbanização inadequado em regiões

pertencentes às áreas de mananciais (o caso da Região Metropolitana de Curitiba nos

parece emblemático)240. Este processo de urbanização inadequado, remete-nos ao projeto

político e econômico da industrialização do Brasil, a partir da década de 50, tendo como

conseqüência o fenômeno do êxodo rural, que produziu o crescimento desordenado das

grandes cidades, principalmente em áreas metropolitanas de mananciais, comprometendo o

abastecimento e a qualidade da água a ser consumida pela população. Ora, conclui-se,

então (ainda que com este breve olhar sobre a questão), que o problema do abastecimento

da água não pode ser observado de modo isolado. Não é um problema meramente

ambiental; ele está inserido numa dimensão mais ampla que envolve a esfera do político,

do social, do econômico. Portanto, o problema ambiental é também social, porque é

político, é econômico e assim o é transdisciplinariamente.241

Já no início do século XX, Bachelard observava: “na realidade, não há fenômeno

simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não há natureza simples, nem substância

simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há idéia simples, porque uma

idéia simples [...] deve ser inserida para ser compreendida, num sistema complexo de

pensamentos e experiências.”242 Portanto, ao invés de uma epistemologia que tende à

simplificação, fala-se numa epistemologia da complexidade243: a maneira de entender a

parte é entender a sua relação com o todo. Não se nega a parte; ela existe. Mas, só pode ser

compreendida na relação com o todo. Desse modo, é preciso entender a dinâmica do todo

para entender a propriedade das partes.

Ora, esta nova visão epistemológica, tornou-se possível, sobretudo, graças ao

surgimento do pensamento ecológico e, por conseguinte, à introdução da nova ciência

chamada ecologia, no final do século XIX. Levando-se em conta que a ecologia “é o

estudo das relações que interligam todos os membros do Lar Terra”244, pode-se inferir que

o pensamento ecológico é, ao mesmo tempo, fruto e termômetro da própria crise

engendrada pela visão particularizada e especializada da ciência moderna. Fruto, porque os

problemas ambientais vivenciados hoje pelo homem são decorrentes (dentre outros fatores)

240 Um estudo mais detalhado sobre a situação, encontra-se nos capítulos 1 e 2 da tese de LIMA,

Cristina A. A ocupação de áreas de mananciais e os limites dos recursos hídricos na RMC: do planejamento à gestão ambiental urbana – metropolitana. 2000. 392 f. Tese (Doutorado). Desenvolvimento e Meio Ambiente (DEMA), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2000.

241 O conceito de transdisciplinariedade pode ser aprofundado na obra de BASATAB, Nicolescu. Manifesto da transdisciplinariedade. São Paulo: Trion, 1999.

242 BACHELARD, op. cit., p. 130. 243 O conceito é sugerido por Edgar Morin, conforme bibliografia indicada no final deste trabalho. 244 CAPRA, F. A teia..., op. cit., p.43.

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das medidas imediatistas, particularizadas e fragmentadas quando da intervenção do

homem sobre a natureza. Termômetro no sentido de que o crescimento dos problemas

ambientais enuncia a necessidade de repensar a relação homem e natureza. O que antes era

uma ação local, hoje passou a ter implicações globais. A análise filosófica de Michel

Serres nos ajuda a entender a mudança paradigmática: “O que está em risco é a terra em

sua totalidade, os homens em seu conjunto. A história global entra na natureza, a natureza

global entra na história; e isto é inédito na filosofia”.245

Portanto, a ecologia enquanto ciência implica numa atitude epistemológica que leve

em conta a complexidade dos seres que compõe a natureza. Assim, termos, como:

ecossistema, biosfera, próprios da ecologia, sugerem a perspectiva de compreensão da

dinâmica do todo, numa visão sistêmica, e, por outro lado, rechaça a visão analítica,

particularizada e fragmentada do real. Isto significa dizer que, se antes as nossas ações

junto à natureza eram medidas imediatistas, locais, particularizadas e fragmentadas, hoje a

própria compreensão da ciência ecologia clama por medidas que leve em conta o mediato,

o global, a transdisciplinariedade, as inter-relações ou a teia das relações que envolvem

todo o ambiente.

Em suma, retomando Wittgenstein, se os “problemas da vida permanecem

completamente intactos”, é porque a forma ou o método que elegemos para conhecê-los,

tem sido insuficiente. E como o método carrega em si uma visão de mundo, conforme já

alertamos no decorrer deste capítulo, necessário é re-dimensionar a visão de mundo

adotada pela ciência desde a modernidade, e, conseqüentemente também, o modelo de

tecnologia decorrente desta cosmovisão. Ou seja, necessário é redimensionar a própria

história da produção material do ser humano, que, no fundo, significa a história da

condição “ex-sistir” (condição de estar-aí) do ser humano no mundo.

Disso decorre que é possível pensar um outro entorno epistemológico para a ciência

e conseqüentemente para a tecnologia. A constatação de Boaventura Santos ao anunciar

que estamos diante de uma segunda ruptura epistemológica, qual seja, o reencontro da

ciência com o senso comum pode ser este novo entorno epistemológico. A seguir,

detalhemos um pouco mais esta proposta.

A primeira ruptura epistemológica ocorreu, segundo Boaventura e conforme o que

fora dito anteriormente, quando Bachelard anunciou o novo espírito científico,

reivindicando um estatuto próprio para a ciência, separando-a do senso comum e

245 SERRES, Michel. O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.

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constituindo-se, inclusive, contra este. Ora, os aspectos teóricos, sociais e epistemológicos

da crise paradigmática os quais analisamos acima, constituem para Boaventura as

condições necessárias para a realização da segunda ruptura epistemológica, perfazendo

agora um caminho inverso: ao invés da ciência separar-se do senso comum deve-se ir ao

encontro dele, não para voltar ao status do senso comum e sim transformá-lo com base na

ciência. Seria a inauguração de uma outra forma de conhecimento: um conhecimento

prudente para uma vida descente, como no dizer de Boaventura., pois, se na primeira

ruptura a pergunta latente a ser respondida era “como se faz a ciência”, na segunda, a

pergunta crucial é “para que serve a ciência”.

Para entender a tese do autor, necessário é adentrar na sua concepção de senso

comum. O exercício primeiro é o de des-dizer aquilo que a ciência apregoa como sendo o

senso comum. Ou seja, trata-se num primeiro momento de compreender o que não é o

senso comum. Assim, Boaventura enumera alguns equívocos os quais consideramos

importantes traduzí-los aqui.

O primeiro diz respeito ao seu nascedouro. O senso comum nasce daquilo que se

torna comumente razoável, universal e prudente para um determinado grupo social; “é o

menor denominador comum daquilo que um grupo ou um povo coletivamente acredita”.246

Por isso mesmo lhe é atribuído um aspecto conservador (1) no sentido de reproduzir, por

exemplo, como um grupo social vive a sua subordinação numa sociedade de classes. Ora,

se isto é verdade, também poderá sê-lo como forma de resistência, pois, o senso comum,

tem uma vocação solidarista e transclassista.247 Do mesmo modo que é um equívoco

atribuir-lhe uma concepção fixista (2), por ser ilusório, preconceituoso. Diz Boaventura

tais atribuições dependem do contexto em que está inserida a comunidade do nascedouro

do senso comum: “uma sociedade democrática com desigualdades sociais pouco

acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de

emancipação e solidariedade, por certo, ‘produzirá’ um senso comum diferente de uma

sociedade autoritária, mais desigual e mais ignorante”.248

Um outro aspecto refere-se à classificação ingênua de considerar que o senso

comum representa as trevas, enquanto a ciência representa a luz (3). Se os preconceitos, os

246 SANTOS, Uma introdução, op. cit., p. 37 247 O autor cita como exemplo ilustrativo, a sua própria investigação realizada com os moradores da

favela do Rio de Janeiro e como se institui o senso comum jurídico destes habitantes. A experiência encontra-se publicada com o título O discurso e o poder; ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1987.

248 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 38.

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pré-juízos representam as trevas, são sinais de irracionalidade e de imaginação, vale

lembrar que tais também estão presentes na ciência. Equívoco seria eximir a ciência desta

situação. Em segundo lugar, vale dizer que o irracional o imaginário é parte constitutiva

daquilo que hoje a própria ciência reconhece como necessária ao processo de

conhecimento. Basta lembrar a valorização do erro no descobrimento da verdade ressaltado

por Foucault; a positividade dos pré-juízos e preconceitos para a constituição do estar no

mundo, ressaltada por Gadamer.249

Afora a posição científica etnocêntrica sobre o que representa o senso comum, é

possível atribuir-lhe uma outra caracterização alternativa. Aqui transcrevemos as palavras

de Boaventura:

O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão de mundo assente na ação e no princípio de criatividade e das responsabilidades individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e da segurança. O senso comum é transparente e evidente; desconfia das opacidades dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para produzir; reproduz-se espontaneamente no cotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade.250 A configuração do senso comum apresentada por Boaventura torna-se elementar

para pensar um novo entorno epistemológico que inclui também a tecnologia. Quando o

autor afirma que no senso comum a prática é orientada para o cotidiano da vida e não para

a produção (e o sentido que o autor está atribuindo à produção aqui, é o sentido moderno,

de exploração e lucro), inferimos neste processo o papel da técnica.

A existência da técnica como um processo disciplinar de produção redunda na sua

aliança com o modo de produção capitalista. Todavia, a crítica a este processo não

significa a negação da técnica, mas a sua re-orientação a partir de uma outra proposta

espelhada no próprio conhecimento produzido pelo senso comum, ou seja, um

conhecimento “colado às trajetórias e experiências de vida de um grupo social”, conforme

bem disse Boaventura, um conhecimento que surge da prática cotidiana da vida. Isso

possibilita a preservação da liberdade humana diante das escolhas e das opções

tecnológicas, e não como ocorre hoje em dia em que a produção tecnológica é um processo

249 Verificar outros exemplos em SANTOS, Uma introdução...,op. cit., p. 38. 250 SANTOS, Um discurso, op.cit.,p. 56 e ss

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pronto, importado, alheio à realidade da comunidade e sua adequação é condição sine qua

non para a sobrevivência econômica de grupos sociais ou nações no mundo globalizado. A

adaptação torna-se superior à criatividade e disso resulta a crescente relação de

dependência e conseqüentemente a perda de identidade destes grupos sociais.

Marx, já previa este movimento “natural” da tecnologia em vista das forças

produtivas. Em palavras textuais, ele dizia:

Um crescimento geral e contínuo das forças produtivas [por exemplo, a entrada de uma transnacional em um país subdesenvolvido, hoje] desvalorizaria relativamente todos os valores existentes objetivados pelo trabalho de um estado inferior das forças produtivas, e, por conseguinte, destruiria (vernichten: aniquilaria) capital existente, assim como a capacidade de trabalho existente.251 Para Marx, a tecnologia mais desenvolvida, concebida dentro dos moldes de

produção capitalista, seguindo sua mesma lógica, tal como este, destrói tecnologias ditas

“menos desenvolvidas”. E Dussel acrescenta:

destrói o trabalho subjetivado e objetivado, riqueza. Esta aniquilação continua a produzir pobreza relativa, subdesenvolvimento, tecnologia dependente. É neste nível concreto, real, mundial, em que a tecnologia alcança seu mais alto grau de objetividade efetiva. A questão de autodeterminação tecnológica toca o núcleo mesmo do capitalismo periférico e explica seu “eterno” atraso, a importação tecnológica e a falta de invenções produtivas.252 A destruição da relação formal da tecnologia com o capital, significaria, pois, para

Dussel, a efetiva emancipação tecnológica do ser humano perante o capital. Neste caso, a

tecnologia deixaria de ser um momento do processo de valorização do capital (que

representa sempre mais-valia e ganância) e passaria a ser essencialmente produção material

do homem. Mais ainda: a tecnologia assim vista, seria a efetiva possibilidade da construção

do “humano” na história, através do processo de produção material. Portanto, a tecnologia

deixaria de ter um caráter simplesmente econômico e adquiriria um sentido, antes de tudo,

antropológico.

Pensar, pois, uma dimensão epistemológica da tecnologia, cujo conhecimento

esteja orientado para beneficiar o cotidiano da vida e não a produção em sentido

expropriatório (como falava Heidegger e Marx) é garantir o equilíbrio entre adaptação e

criatividade; entre custo e benefício; entre o que pode fazer e o que deve ser feito.

Delegação esta que pertence originariamente ao espaço da comunidade. Nisto reside a

251 MARX, Los Grundrisse I, pp. 406-407. Apud DUSSEL, Filosofia...op. cit., p.140 (Tradução

livre). 252 DUSSEL, Filosofia..., op. cit., p. 140 (Tradução livre).

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possibilidade de criar condições tecnológicas de invenção e não de dependência e

dominação tecnológicas.

Isto implica, ainda, na necessidade de fazer coincidir no processo de conhecimento

causa e intenção. Ou seja, se a ciência moderna ocupou-se em investigar “como” as coisas

acontecem, um novo conhecimento deve avançar no sentido de se preocupar “para quê” as

coisas acontecem; qual sua finalidade.253 A propósito, vale dizer que este caminho é o

processo inverso do que propôs Bacon, ao instaurar o Empirismo. Criticando a

compreensão de causalidade dos fenômenos, estipuladas por Aristóteles, Bacon propôs o

descolamento da causa final do processo de conhecimento causal da ciência empírica.254

Disso tudo conclui-se que algumas experiências têm evidenciado a possibilidade de

trilhar um outro caminho epistemológico para a tecnologia. Por exemplo, a implantação de

“tecnologias apropriadas” (TA’s) que leva em conta a necessidade e as circunstâncias

locais, ou a concepção de tecnologia baseada no Small is beautiful, 255 que se opõe à

tecnologia de grande-escala. Referindo-se aos aspectos críticos daquele modelo de

tecnologia em relação a este, Krüger acrescenta:

Cita-se, por exemplo, o fato de esse tipo de tecnologia [a de grande-escala] proporcionar uma economia do tipo robber-economy, que usa recursos naturais em abundãncia e com rapidez, provenientes muitas vezes de regiões mais pobres, para transformá-los em bens de consumo de curta vida útil e repassá-los a um alto custo às mesmas regiões de onde saem esses recursos. Dentre outras críticas, poderíamos ainda citar as seguintes: - A tecnologia de grande-escala atua contra a natureza e não a seu favor. - A tecnologia de grande-escala favorece uma exclusão econômica. - A tecnologia de grande-escala demanda altos custos energéticos e econômicos em sua

aplicação. - A tecnologia em grande-escala prova o homem do trabalho criativo e produtivo, no

qual ele usaria cérebro e mãos. O trabalho produtivo na sociedade industrial desumaniza, é fragmentado e monótono, tendo pouco significado para o trabalhador e diminuto prestígio social.256

Vale lembrar ainda que no campo da pesquisa científica e acadêmica também estão

acontecendo movimentos neste mesmo sentido. Lembramos aqui que um dos grupos de

estudo que constituem a linha de pesquisa “Tecnologia e Trabalho” do Programa de Pós-

Graduação em Tecnologia (PPGTE) do Centro Federal de Educação Tecnológica do

253 Também esta problemática diz respeito ao caráter ético da tecnologia, que será tratada no

próximo capítulo: “A dimensão axiológica da tecnologia moderna”. 254 Cf. p. 63, sobretudo, a nota 136 deste capítulo. 255 Citamos aqui a obra referencial do assunto: SCHUMACHER, E. F. Small is beautiful. Reino

Unido: Vintage, 1993. 256 KRÜGER, Eduardo L. Engenharia, construção civil e sociedade. Revista de Ensino de

Engenharia, v. 20, n. 1, p. 32, 2001. Eduardo Krüger é professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), CEFET-PR.

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Paraná (do qual faz parte esta dissertação de mestrado), tem como temática “A

Apropriação do Conhecimento Tecnológico”, cujo objetivo consiste em investigar o

processo de apropriação do conhecimento tecnológico na sociedade, através do ensino

formal e através da prática profissional de trabalhadores, que se dá no campo da

informalidade. Tendo como eixo central a interdisciplinariedade, o projeto visa resgatar o

processo de aquisição do conhecimento através do trabalhar, do criar e do aprender, que

muitas vezes, realiza-se no âmbito da informalidade, assim chamado “conhecimento

tácito”, existente nos diversos setores da sociedade.257

A dupla ruptura epistemológica, pois, compreende um trabalho de transformação

tanto da ciência quanto do senso comum, que configura um saber prático que dá sentido à

existência e cria as condições para decidir com prudência. Boaventura chega a dizer que tal

conhecimento se aproxima da phronesis aristotélica258: um saber prático esclarecido, mas

que diferentemente da visão aristotélica (que restringia a phronesis aos esclarecidos), está

democraticamente distribuído. Aqui entra o papel da tecnologia, pois, segundo Boaventura,

a democratização deste novo saber só é possível pelo “desenvolvimento tecnológico da

comunicação que a ciência moderna produziu”.259 A tecnologia seria a responsável pelo

desenvolvimento da competência cognitiva e comunicativa em vista de um saber prático

que traga sentido à existência.

O saber prático é aqui entendido como a superação da dicotomia

contemplação/ação. Se de um lado, na Grécia Antiga tem-se a verdade da ciência pela

ciência, (a ciência em si), de outro lado, na modernidade, tem-se a verdade social da

ciência (a tecnologia) a ponto de pretender separar a ciência pura da ciência aplicada. Ora,

essa dualidade ou visão maniqueísta de conhecimento deixa de ter sentido diante da práxis,

onde a técnica torna-se uma dimensão da prática e não como hoje acontece onde a prática

se converteu numa dimensão da técnica.260 Trata-se de uma concepção pragmática de

conhecimento: “Só existe ciência enquanto crítica da realidade a partir da realidade que

existe e com vista à sua transformação em uma outra realidade”,261 argumenta Boaventura.

257 Uma análise mais aprofundada da proposta deste grupo de pesquisa, encontra-se disponível no

site: www.ppgte.cefetpr.br. Cf. ainda BASTOS, João Augusto S. L. A. (Coord.) Desafios da apropriação do conhecimento tecnológico. Coleção Educação & Tecnologia, Curitiba: CEFET-PR, 2000, p. 7-22.

258 Lembremos que a análise aristotélica da relação phronesis e techné já fora tratada no I Cap., tópico 3 deste trabalho.

259 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 42. 260 SANTOS, Uma introdução..., op.cit., p. 44. 261 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 48.

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Neste sentido, citemos também, a proposta da Politecnia, ou mais precisamente, a

proposta de educação tecnológica fundada na educação politécnica. Diferentemente da

polivalência, a politecnia tem em vista o pluralismo do saber que é prático e também

teórico. É prático porque nasce da experiência da produção (da poiésis); é teórico, porque

significa obter e ter a posse de como se dá o processo prático. Ou seja, o trabalhador que

efetivamente produz, detém o conhecimento do que produz. Portanto, é um saber

politécnico, porque diz respeito à aquisição da totalidade daquele produto pelo trabalhador,

e não somente de parte dele (como é o caso do modelo rígido fordista e taylorista, cuja

produção é em série), ou de suas partes (como é o caso do modelo flexível toyotista, ou

Modelo Japonês de Produção Industrial – MJPI), que ainda assim não permite a visão do

todo, porque o conhecimento proporcionado ao trabalhador é o da composição ou soma das

partes e não o da complexidade que envolve todo o processo da produção ou do produto.262

6 SÍNTESE DA DIMENSÃO EPISTEMOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Neste capítulo, vimos como o Empirismo e juntamente com ele o conhecimento

científico, baseado no método experimental, surgidos a partir do século XVI, plasmaram

em sentido epistemológico a tecnologia, conferindo-lhe, pois, aquilo que desde o princípio

desta pesquisa estamos designando por “gênese” ou “identidade”, própria da tecnologia

moderna.

Assim ao enunciar o surgimento da corrente filosófica do Empirismo (Bacon), e o

nascimento das assim chamadas Ciências Modernas (Descartes, Galileu, Newton) baseadas

no método experimental e, portanto num outro modo de conhecer, qual seja o método

científico procuramos evidenciar como e porque este contexto filosófico contribuiu para a

configuração da gênese da tecnologia moderna. Enfatizamos, por exemplo, que os

principais postulados anunciados por Bacon, assentados, inclusive, na oposição à uma

ciência especulativa e em defesa de uma ciência operativa, prática, e que tem como

finalidade o domínio da natureza, é o prenúncio não somente de uma nova constituição

epistemológica da ciência, fundada na experiência, na realidade empírica, palpável,

provável, observável, como também é o prenúncio de uma nova epistemologia da técnica e

da tecnologia a partir da era moderna. Desses fatores, decorre a necessidade histórica de

262 Para maior aprofundamento da politecnia, conferir a obra de KRUPSKAYA, N. La educación

laboral y la enseñanza. Editorial Progreso, 1986; MACHADO, Lucília R. de Souza. Politecnia, escola unitária e trabalho. São Paulo: Cortez, 1989.

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atrelar a ciência e a técnica.263 Fato este elementar para a constituição da ontologia da

tecnologia na modernidade, conforme já demonstramos no primeiro capítulo.

Enunciamos ainda que o método não representa somente uma ferramenta que nos

auxilia na compreensão da realidade. Por isso mesmo que a opção por este ou aquele

método não é somente uma escolha de caráter instrumental; ela é antes de tudo, uma

escolha de caráter epistemológico, porque reflete a maneira como concebemos o mundo e a

realidade. Vimos também que o referencial desta concepção na modernidade é o método

científico, daí porque considerarmos que o paradigma científico é o modelo vigente em

sentido epistemológico atualmente.

Disso decorre o predomínio de um conhecimento objetivo, fragmentado,

departamentalizado, formalista (no sentido de que não leva em conta a intencionalidade

dos fenômenos), legalista e totalitário (posto que não dialoga e sim aniquila outras formas

de saber). Tais características também, dizem respeito à dimensão epistemológica da

tecnologia, que, na modernidade, cientificizou a técnica e transformou a ciência num modo

de razão instrumental dirigida e controlada pela tecnocracia, movimento globalizante que

aniquila diferenças, destrói etnias e impõe uma única via de produção material para o ser

humano, qual seja; o da dominação e controle da natureza.

Contudo, bem sabemos também que cada época produziu formas diferenciadas de

compreensão de mundo que passaram a ser hegemônicas em cada período da história e que

foram se alterando em face de transformações econômicas, políticas, sociais, etc. Tais

transformações se efetivaram em meio às crises epistemológicas.

Atualmente, defendemos que estamos diante de um desses momentos de transição

paradigmática. Desse modo, a questão que se coloca é em que medida o método científico

e junto com ele a visão paradigmática empregada pela ciência na modernidade,

corresponde efetivamente à dinamicidade do real ou à logicidade dos fenômenos?

Destacamos aqui algumas noções paradoxais deste problema epistemológico, quais sejam:

a noção de especificidade x complexidade; objetividade x subjetividade; causalidade

formal e causalidade final; ordem e contradição; verdade como certeza x verdade como

263 Claro está que estes fatores não foram os únicos na constituição do novo contexto da época

moderna. Estes (os que apresentamos) são de ordem filosófica. Contudo, bem sabemos que o conhecimento científico-natural também passa a ser interesse da burguesia nascente. Ou seja, a necessidade da produção material e, portanto, da transformação da natureza pelo conhecimento científico, é uma necessidade social e econômica, que ganha forças com a ascensão da nova classe social que é a burguesia, interessada muito mais em transformar a natureza, do que em adquirir conhecimentos especulativos e teoréticos sobre ela, como faziam os homens de ciência gregos e medievais. Sobre o assunto conferir também VAZQUEZ, Adolfo S. Filosofia da práxis. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986, pp. 216 e ss.

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106

pretensão de validade. Tudo isso nos leva a conjecturar sobre a possível crise do paradigma

científico.

Além disso, à esteira do que fizera Rousseau há aproximadamente duzentos e

cinqüenta anos atrás, conforme já observamos há pouco, outras indagações nos parecem

pertinentes: será que somente o método científico corresponde ao que é a verdade?

Somente a ciência pode nos levar ao conhecimento? As palavras sábias do Professor João

Augusto nos ajudam a entender melhor a questão:

É questionável que o método científico seja considerado como único para se gerar conhecimento. A verdade é muito mais ampla e complexa e não deve ser reduzida a um único caminho a ser percorrido. Muitas são as implicações para a construção do conhecimento na modernidade tomando como base o método científico. A mais perigosa concentra-se no reducionismo de modelos e paradigmas. Outra seria adotar um tipo exclusivo de racionalidade que conduziria a dimensões puramente abstratas e instrumentais. Portanto, é preciso construir e reconstruir o conhecimento a partir do todo, não concebido só racionalmente e em partes, mas vivido e circunstanciado pelas "razões" outras na existência que está sempre acontecendo.264 Relembremos ainda a constatação de Wittgenstein para quem a ciência, embora

diante de tantos avanços tecnológicos, não respondeu ainda as questões mais elementares

da vida. A partir desta constatação, conjecturamos a possibilidade de se constituir um outro

entorno epistemológico para a ciência e a tecnologia A proposta de Boaventura, que

assenta num “conhecimento pragmático”, parece responder a este desafio. Os “problemas

da vida” são a fonte de onde surge o senso comum; este “nasce colado às experiências do

cotidiano” (já tratamos deste tema quando aludimos para a possibilidade de um novo

entorno epistemológico para a tecnologia – Cf. tópico 5). Portanto, promover o encontro da

ciência com o senso comum, o que Boaventura designa como sendo “a segunda ruptura”

da ciência, aponta a saída diante da constatação de Wittgenstein. Significa promover

um “conhecimento prudente para uma vida decente”, ou um “senso comum

esclarecido”, com mais sentido, porque conferido pelo conhecimento causal referendado

pela ciência. É a possibilidade de realização da phronesis, empregada pelos gregos, que

indica “sabedoria de vida”, só que agora com a possibilidade de ser mais democrático,

graças ao aumento da distribuição de competências cognitivas proporcionadas pela

tecnologia, como, por exemplo, através do aumento de comunicação.

Neste sentido, o discurso epistemológico será também sociológico, posto que deve

levar em conta as concepções pragmáticas e retóricas da ciência que substituem as teorias

264 BASTOS, João Augusto S. L. A. Epistemologia e a crise do paradigma científico. Curitiba,

2001. Entrevista concedida a autora deste trabalho, em Abril de 2001.

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107

positivistas da ciência; deve ter o consenso como medida da objetividade, estabelecidas a

partir de valores de justiça e emancipação social. Nisto reside a inserção de um novo

entorno epistemológico da tecnologia. Por exemplo: ter a verdade como consenso é

propiciar a criação e implantação de novas tecnologias, submetidas e mantidas pelo

consenso do auditório da comunidade a qual está inserida e não como comumente hoje

acontece, onde a implantação de novas tecnologias obedece a uma lógica global, totalitária

e hierárquica, cujos interesses locais são irrelevantes e insignificantes.

Por fim, é mister esclarecer que a atual crise epistemológica da ciência, incluindo aí

também a tecnologia, deve ser a alavanca para atingir um conhecimento capaz de

“aumentar a nossa compreensão do mundo e do estar no mundo”.265 Até porque o ser

humano é sempre o sujeito e o objeto desta reflexão hermenêutica.

Ademais, entendemos que a aventura do conhecimento constitui a sua própria

natureza. Conhecer é, por si só, um processo de des-construção e re-construção constante

a partir do já estabelecido. E a transição do tempo presente em sentido epistemológico é

também a condição existencial do homem em tempos futuros. Ou seja, a análise da crise

epistemológica do paradigma científico é talvez condição necessária à sobrevivência

humana no futuro. Por isso mesmo que ela não é somente uma atitude epistemológica, mas

também uma postura política. Ilustrando o dito acima, Boaventura afirma:

Duvidamos suficientemente do passado para imaginar o futuro, mas vivemos demasiadamente o presente para podermos realizar nele o futuro. Estamos divididos e fragmentados. Sabemos o caminho, mas não sabemos exatamente onde estamos na jornada. A condição epistemológica da ciência repercute-se na condição existencial dos cientistas. Afinal, se todo conhecimento é autoconhecimento, também todo desconhecimento é autodesconhecimento.266 Dela extraem-se três aspectos conclusivos elementares. O primeiro diz respeito ao

próprio limite da condição existencial humana: se somos capazes de duvidar o suficiente

do passado para projetar o futuro, este é incerto elo próprio limite temporal da nossa

existência. Condição esta que se reflete na crise epistemológica. O segundo aspecto refere-

se ao tempo presente como lugar privilegiado da crise epistemológica, daí estarmos

divididos e fragmentados. E o terceiro aspecto conclusivo que vale aqui ser ressaltado é o

fato de que não se trata somente de uma crise de caráter epistemológico; ela é também

existencial, porque diz respeito á própria condição da nossa existência. Afinal, se a

265 SANTOS, Uma introdução..., op. cit., p. 150. 266 SANTOS, Um discurso..., op. cit., p. 71

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epistemologia é a forma organizada da existência do homem no mundo, a crise do

conhecimento é, pois, também uma crise de autoconhecimento, da própria condição do

homem de estar no mundo.

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109

CAPÍTULO III

A DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Pouco sei a respeito dos deuses; mas parece-me ser o rio Um forte deus pardo-sombrio, indômito e intratável,

Paciente até certo ponto; reconhecido a princípio como fronteira Útil, indigno de confiança como via comercial;

Depois, apenas um problema para os construtores de pontes. Uma vez resolvido o problema o deus pardo é quase esquecido

Pelos moradores da cidade.267

1 PREÂMBULO

A descrição do poeta traduz com propriedade nossa intenção ante o propósito de

analisar a dimensão axiológica da tecnologia moderna: o olhar utilitarista do ser humano

sobre o mundo e a realidade, o qual tem na tecnologia a sua mais autêntica representação, é

a narrativa tanto do autor do texto, assim como é a perspectiva que se pretende empregar a

esta análise.

Se, em princípio, a natureza era concebida como possuída de deuses e temida pelos

homens, donde travava-se a luta da desconfiança e do medo pela sobrevivência diante das

obscurecidas manifestações naturais, para o homem moderno a natureza tornou-se pura e

simplesmente meio de subsistência, sinônimo de utilidade. Sem mais nenhum mistério, o

deus pardo e sombrio - o rio - tornou-se meramente um fenômeno natural, utilitário como

via comercial (depois da construção da ponte) e esquecido pelos moradores da cidade, diz

o poeta. Afinal, bradam os modernos, “saber é poder” (Bacon), e o domínio da natureza

nada mais é do que a adequação entre o conhecimento teórico da ciência e o conhecimento

prático da técnica, eis o princípio da tecnologia em sentido moderno. A descrição do poeta

denuncia ainda o panorama do comportamento humano diante do mundo (das coisas), que

aqui será tomado como sugestão para a inclusão da ética no âmbito da discussão sobre

tecnologia.

Para tanto, vimos até aqui que em sentido moderno, a tecnologia é plasmada

ontologicamente por um modelo de razão instrumental, cujo agir-racional-com-respeito-

a-fins fez conjugar e coincidir ciência e técnica, em vista da sociedade industrializada e

267 ELIOT, T. S., Quatro Quartetos. Citado por VARGAS, Milton. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo: Alfa Omega, 1984, p. 20.

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pós-industrializada. Tal razão é justificada epistemologicamente pela visão empirista,

preconizada desde Bacon, donde o saber devesse ser operativo e não contemplativo e a

ciência um saber prático e pragmático e não especulativo, cuja garantia foi outorgada pela

revolução científica moderna que instaurou o método experimental e científico por

excelência.

A partir daqui vamos nos ocupar da descrição axiológica deste panorama da

tecnologia moderna. E, considerando o propósito inicial de nossa pesquisa de que para

fazer uma filosofia da tecnologia, é necessário levar em conta também o aspecto

axiológico, além dos outros dois aspectos (ontológico e epistemológico) a que já nos

aludimos nos capítulos anteriores, este capítulo propõe não somente analisar qual o modelo

axiológico da tecnologia moderna, mas também avaliar valorativamente tal modelo

axiológico de tecnologia. Portanto, propomos indicar, mas também avaliar, no sentido de

atribuir valores, de emitir juízos, os fundamentos éticos do comportamento humano diante

deste fenômeno, com o advento da modernidade.268

A reflexão sobre o caráter axiológico da tecnologia tem como ponto de partida a

concepção de que a tecnologia é, antes de tudo um fenômeno social, com dimensão sócio-

cultural e, como tal, é passível de atribuição valorativa. Ou seja, por ser a tecnologia um

fenômeno social, que sofre e propicia comportamentos sociais e culturais, confere-se a ela

uma dimensão também ética. Portanto, a relação entre Ética e Tecnologia é a primeira

abordagem significativa na qual está estruturado este capítulo. Ainda neste primeiro tópico,

pretendemos fazer algumas considerações gerais e introdutórias sobre os fundamentos da

ética, no sentido de fornecer as bases preliminares da discussão posterior em torno do

modelo de ética que fundamenta axiologicamente a tecnologia moderna.

É, pois, em torno desta discussão que será desenvolvido o tópico seguinte, cujo

objeto central de investigação é a indagação sobre qual fundamento ético reverencia a

tecnologia na modernidade. Ou seja, considerando que a tecnologia se move num ambiente

ético, a questão que se nos impõe é: a que referencial de ética obedece a lógica da

tecnologia moderna?

Partindo, pois, das fundamentações filosóficas anunciadas nos capítulos anteriores,

sobretudo da interdependência entre ciência e técnica; do domínio da razão instrumental;

da relação entre Empirismo e Tecnologia, é que sustentamos, porquê é o utilitarismo o

268 VARGAS, op. cit., p. 181 e ss. É mister esclarecer que a citação do referido autor não implica

necessariamente em acordo com suas teses. Aliás, como se observará, a posição adotada pelo autor diante destes aspectos será objeto de indagação e crítica ao longo desta exposição.

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modelo de ética que propicia política e ideologicamente a tecnologia moderna. Traçando

um panorama do utilitarismo ético, tem-se o contexto de seu surgimento e as principais

características desta corrente ética e sua relação com a tecnologia na modernidade, bem

como suas principais críticas. Ao situar historicamente o utilitarismo ético, utilizamos

como referencial teórico os próprios fundadores: J.Bentham e S. Mill. A leitura destes

autores é auxiliada por outros teóricos que analisam o assunto, como Tugendhat, Dussel,

entre outros. Ao elucidar a relação entre Tecnologia e Utilitarismo, a visão utilitarista (ao

nosso entendimento) de Milton Vargas é utilizada como objeto de ilustração e crítica, ao

mesmo tempo também em que autores como, Tugendhat e Dussel são imprescindíveis para

tal propósito.

Em vista da possibilidade de apontar um outro referencial axiológico para a

tecnologia, indicamos a proposta de Hans Jonas, baseada numa ética cujo princípio é a

responsabilidade, como objeto de discussão central do penúltimo tópico deste capítulo.

Como a leitura da dimensão axiológica da tecnologia moderna está direcionada

muito mais em constatar a situação dada do que intencionar propor alternativas ou outros

referenciais de ética, limitamo-nos, nas considerações finais, em reforçar as idéias centrais

que supostamente conferiram embasamento teórico à argüição feita, acenando, enfim, para

a necessidade de retomar o assunto em estudos posteriores. Inclusive com o propósito de

alargar o horizonte da discussão e do debate sobre um novo entorno axiológico para a

tecnologia com outros filósofos da ética contemporânea, como Habermas e Dussel.

2 ÉTICA E TECNOLOGIA: ASPECTOS INTRODUTÓRIOS AO DISCURSO

AXIOLÓGICO DA TECNOLOGIA MODERNA

Antes mesmo de adentrar na questão central de que trata este capítulo, qual seja:

por que e como o utilitarismo tornou-se o modelo de ética preponderante no âmbito da

tecnologia moderna, faz-se necessário introduzirmos o assunto a partir de algumas

considerações que circundam a relação entre ética e tecnologia.

A primeira delas diz respeito à própria fundamentação e caracterização da ética em

seu sentido mais amplo, enquanto ciência do valor. Trata-se de esclarecer os principais

elementos de classificação da ética a partir dos princípios fundamentais norteadores das

diversas correntes da ética. Em outros termos, a questão pode ser assim colocada: quando

fazemos menção à dimensão axiológica da tecnologia, de que modelo de ética estamos a

nos referir? Quais são seus elementos fundantes?

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112

O segundo ponto que merece algumas considerações introdutórias diz respeito à

fundamentação do discurso axiológico em torno da tecnologia; trata-se da relação

propriamente dita entre tecnologia e ética que pode ser assim questionada: é admissível ou

não uma estreita vinculação da tecnologia com a ética? Como acontece (ou não) tal

aproximação com o advento da modernidade?

Por fim, é mister clarear nosso posicionamento sobre a situação da ética no âmbito

da tecnologia moderna. Em forma interrogativa, o problema pode ser colocado nos

seguintes termos: qual o papel da ética na esfera da tecnologia moderna? Que referencial

axiológico fundamenta eticamente a tecnologia moderna? Como justificar seu lugar no

mundo da tecnosfera?

2.1 Caracterização ou Modelos de Ética

Tugendhat, analisa que “diferentes conceitos de moral são caracterizados por

diferentes conceitos de bem, os quais permitem, então, juízos de que algo é bom ou

mal”.269 Isto significa dizer que a questão da ética recai sempre na sua fundamentação e

tais diferenças desembocam nas diversas concepções de ética, posto que, diferentemente da

ontologia medieval, por exemplo, não existe mais na modernidade um conceito de “bem” e

“mal”; ou seja, não há que se falar num modelo único de ética e sim nas éticas possíveis,

fundamentadas a partir de procedimentos formais.

Portanto, antes mesmo de analisarmos a relação entre ética e tecnologia faz-se

necessário tecer algumas considerações filosóficas sobre as diferentes concepções ou

modelos de ética, pois, quando tratamos da dimensão axiológica da tecnologia a questão

primeira que se coloca é: que fundamento referencia nosso discurso ético em torno da

tecnologia?

Ainda que parte dos filósofos atuais da ética, principalmente os anglo-saxões, como

John Rawls considerem que “a pergunta pela fundamentação de nossos juízos morais não

possui nenhum sentido” entendemos, em conformidade com Tugendhat, que o conflito

moral fundamental o qual vivenciamos hoje, além de seus aspectos práticos, assenta em

seu aspecto teórico e filosófico, qual seja, o enfrentamento dos fundamentos entre as

diferentes concepções de moral. Fundamentar uma concepção de moral significa

269 TUGENDHAT, Lições de ética. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 30.

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113

fundamentá-la, sobretudo, diante de outras concepções de moral, afirma Tugendhat,270 e

este parece ser um dos desafios crucias do tempo presente em sentido ético.

É por isso que temos as éticas formais em oposição às materiais, donde aquelas,

priorizando a forma, defendem que os juízos morais são normativos, designados por

normas e regras (é a posição adotada por Kant ou por Habermas, por exemplo); enquanto

as éticas materiais priorizam o conteúdo, a verdade material dada pela situação histórica (é

a posição dos utilitaristas e de Dussel, por exemplo).

Também podemos falar na distinção entre o racionalismo ético e no emotivismo

ético. No primeiro caso, tem-se o fundamento da ética baseado na razão: uma ação ética se

constitui a partir de juízos morais que são racionais (é o caso, por exemplo, da ética

kantiana, habermasiana, hegeliana, etc); já no emotismo ético o fundamento da ação moral

reside na emoção: o fundamento da ação moral está respaldado na vontade e no desejo e

não na razão (É o que defendia Nietzsche, Schopenhauer, entre outros).

Outra distinção fundamental diz respeito ao universalismo e ao relativismo ético.

No primeiro caso tem-se a defesa do princípio ético universal: uma regra moral só será

moralmente válida se assim for para todos. Nesta visão o princípio de validade da ética

reside na sua universalidade: o que for moralmente válido para todos, pode ser considerado

eticamente bom (o exemplo clássico vem de Kant: “age de tal modo que a máxima de tua

vontade possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de legislação universal”)271.

Já no relativismo ético tem-se que a validade da ação moral reside na adequação às

situações específicas

Mas, em se tratando da classificação dos diversos modelos de éticas em vista da

diferenciação de seus fundamentos, em especial, interessa-nos a oposição entre as éticas

consideradas deontológicas e as teleológicas. No primeiro caso tem-se que o agir moral é

concebido a partir das regras morais existentes a priori, como “dever ser” (do grego:

deón). O conceito de bem é previamente estabelecido (é um ente). Kant, por exemplo, dizia

que o princípio da boa vontade não reside em seu objetivo, mas no princípio formal da

vontade em geral. O “bem”, então, é um conceito metafísico de dever: uma lei para ser

moral precisa implicar nela mesma necessidade absoluta. Daí que para Kant, a lei moral é

um conceito de razão pura. A máxima de que “promessas devem ser cumpridas” é um

exemplo característico deste modelo de ética. A crítica mais comum a este modelo de ética

270 TUGENDHAT, op. cit., p. 26 e ss. 271 Citado por TUGENDHAT, op. cit., p. 148.

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114

vem dos opositores do formalismo que vêem-na como um perigo para a fetichização da

regra: quem faz o bem não o faz pelo outro, mas pela regra.

Já nas éticas teleológicas o agir moral depende da sua finalidade (a posteriori).

Uma ação é boa quando promove um determinado fim (do grego télos: fim). Portanto, o

bem é uma regra prática, não existindo a priori. A validade da ação moral deve ser medida

pela sua aplicabilidade prática, pela sua eficácia, e não por ela mesma. O fundamento da

ação moral reside, então, no seu resultado. Daí que tal modelo de ética também é

denominado de conseqüêncialismo. O bem é um conceito empírico de utilidade; ele existe

não enquanto ente de razão, mas na utilidade da ação moral, posto que a teoria ética deve

levar em conta o bem viver ou o estado de bem-estar social, a qualidade de vida, a

felicidade. O exemplo característico deste modelo de ética é o Utilitarismo Ético,

preconizado desde Bentham e S. Mill, donde a maior felicidade do maior número é a

medida do bem e do mal.272 A crítica a este modelo de ética vem, sobretudo, dos

formalistas, por não considerá-la como doutrina moral, porque o bem não existe enquanto

ente.

Sobre as éticas teleológicas, voltaremos ao assunto quando aprofundarmos os

principais aspectos do utilitarismo ético e sua relação com a tecnologia.273 Passemos agora

a aprofundar ainda um outro ponto introdutório que consideramos elementar à análise

axiológica da tecnologia moderna, qual seja, a dicotomia entre ética e ciência ou mais

precisamente a separação da ética do campo da ciência e, por conseguinte, da esfera da

tecnologia na era moderna.

2.2 A Exclusão da Ética do Mundo Científico Moderno

Se a ética até a idade média estava inserida na esfera da “ciência prática” e do

conhecimento através do princípio de causalidade dos fenômenos do qual falava

Aristóteles e, neste caso, estamos nos referindo ao modo da causalidade final que incluía a

intenção e a finalidade das coisas na própria constituição do ser do ente, (ou seja, para que

algo exista ou que seja conhecido necessário é que também se conheça sua finalidade), a

partir da modernidade o que assistimos foi a separação da ética do âmbito da ciência

através da expulsão da causa final na constituição dos fenômenos. Decretada pelos

272 BENTHAM, Fragment, p. 3, citado por DUSSEL, Enrique D. Ética da libertação na idade da

globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 110. 273 Cf. item 3.1 deste capítulo.

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modernos, a partir do século XVI à ciência não importa mais saber o para quê das coisas,

mas o como elas acontecem. (E o para que é uma questão ética porque diz respeito à

finalidade das coisas.) Deste modo, a ética passou a ser confinada à esfera da filosofia,

apartando-se da discussão científica.

Lembremos que em defesa desta separação lançara-se Bacon, ao defender que a

causa final ao invés de fazer avançar as ciências às corrompe, podendo ser de interesse,

todavia, às ações humanas”.274 Analisando os efeitos da visão de Francis Bacon em

seus Estudos de Moral Moderna, Apel reitera: “somente a renúncia à valoração teleológica

dos próprios fenômenos da natureza possibilita uma ciência, cujos resultados são

experimentalmente comprováveis e, desta forma, em princípio tecnicamente

valorizáveis”.275 Por isso é que para Bacon, a causa formal é a que efetivamente interessa à

ciência ativa.

Esta nova interpretação do mundo natural, que constitui, sem dúvida, a grande

perda do aristotelismo na era moderna, também será reforçada pela visão galileana de

ciência e de universo. Dela já nos referimos quando tratamos da revolução epistemológica

da ciência moderna276, mas vale recordar que ao defender uma ciência autônoma e

independente, capaz de dar uma descrição objetiva da realidade através dos aspectos

quantificáveis e mensuráveis da realidade que são iguais para todos, Galileu exclui do

âmbito da descoberta científica a causalidade final, propagando em definitivo a visão

mecanicista, donde a causa eficiente e formal tem especial destaque na explicação dos

fenômenos naturais.277 Para ele, a ciência deveria se afastar da investigação qualitativa,

posto que possibilita a interpretação subjetiva da realidade devido à sua variação. Quando

manifesta sua posição sobre a relação entre ciência e fé, vê-se novamente em evidência a

visão dualista e excludente de Galileu sobre ciência e valor: “a ciência é cega para o

mundo dos valores e do sentido da vida, enquanto a fé é incompetente sobre questões

factuais” (grifo nosso).278

A mesma interpretação da causalidade final e, portanto, do dualismo entre ética e

ciência, encontramos também na leitura de Descartes ante a res cogitans e a res extensa. Se

para Descartes do mundo material só podemos aprender sua forma ou extensão, sendo a

consciência atributo exclusivamente humano, enquanto aquele é desprovido deste atributo,

274 BACON, op. cit., p. 94. Cf, ainda Capítulo 1, tópico 2 deste trabalho. 275 APPEL, Karl-Otto. Estudos de moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994, p.96. 276 Cf. Cap. II , tópico 3.1.2. 277 REALE, op. cit., Vol II, pp. 266 e 278. 278 REALE, op. cit., Vol II, p. 266. Cf também p. 70 deste trabalho.

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nada se pode esperar do mundo natural enquanto manifestações de forças vitais ou

intencionais. Em palavras textuais, ele diz: “ [...]Assim, por exemplo, não se pode entender

a figura senão na própria coisa extensa, nem movimento senão no espaço extenso, como a

imaginação, o sentido ou a vontade não se pode estender senão na coisa pensante. Mas, ao

contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento, como fica manifesto

para quem atente para isso.”279 Ao restringir o sentido e a vontade ao âmbito

exclusivamente do ser pensante (cogito) Descartes substitui a visão animista e reafirma o

modelo mecanicista, confirmando, então, a exclusão da causalidade final do mundo

material, do mesmo modo que também separando a natureza humana da matéria.

O mundo dado como expressão de fatos isentos de valoração não mais implica,

pois, no conceito de bem e do dever ser, contrariando assim a “ontologia teleológica de

Aristóteles”.280 Essa visão predomina e acompanha toda a história do pensamento

científico moderno. Eis um dos pontos cruciais da diferença entre o mundo dos antigos e o

mundo dos modernos. Hume, por exemplo, mais tarde, vai dizer que “de fatos não se pode

deduzir normas”, ou seja, em sentenças descritivas não se pode extrair sentenças

prescritivas e, tratando a ciência de fatos, dela não se pode exigir dimensão teleológica,

assim como é impossível tratar de uma fundamentação científica da normatividade ética.281

Em suma, o conhecimento científico produziu, ainda que aparentemente, “uma

visão de dualidade entre fatos e valores, com a implicação de que o conhecimento empírico

é logicamente discrepante do prosseguimento dos objetos morais ou da observação de

regras éticas”. 282

Ora, Boaventura Santos constata que foi excluindo a causalidade final de sua esfera

que a ciência apartou-se do senso comum, pois, este, ao invés daquela, faz coincidir causa

(leia-se aqui o aspecto formal, material e eficiente da causalidade de que falava Aristóteles)

e intenção, o que lhe garante um conhecimento mais prudente, em vista da observância

teleológica dos fenômenos. Por isso mesmo, avalia Boaventura, a ciência hoje deve

percorrer um caminho inverso ao daquele preconizado por Bachelard: ao invés de apartar-

279 REALE, op cit., Vol II, p.376. (grifo nosso). Cf. também pp. 71 e 72 deste trabalho. 280 APEL, op. cit.,p.96. 281 Cf. APEL, op. cit., p. 94. Sobre “o problema de uma fundamentação racional da ética na era da

ciência”, colocado nos termos da impossibilidade da fundamentação racional de uma ética normativa e defendida pelo argumento de que dada a objetividade da ciência, esta por si só já pressupõe a validade intersubjetiva e que, portanto uma fundamentação intersubjetivamente válida de uma ética normativa é absolutamente impossível, consultar especificamente o capítulo II da obra supra citada de Apel, p. 71-162.

282 SANTOS, Uma introdução..., op . cit., p. 52.

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117

se do senso comum, deve a ciência seguir em direção a ele. Um conhecimento esclarecido

só será possível, quando for prudente, em vista de uma vida decente.

Também no segundo capítulo observamos que para Heidegger (e não somente para

ele, mas para os antigos) a verdade, enquanto revelação do ser, ocorre a partir dos quatro

modos de causalidade, sendo a técnica o modo de des-velamento desta verdade, através do

desabrigar da natureza; a técnica é modo do fazer-se revelar a verdade oculta da natureza.

Deste modo, o conceito antropológico e instrumental de técnica (que prioriza a causa

efficiens, como no dizer de Heidegger, por considerar a técnica como um meio ou um fazer

humano) pode ser correto, mas não verdadeiro. E não é verdadeiro exatamente por não

considerar os quatro modos de causalidade, incluindo aí a causalidade final, avalia

Heidegger.

Ainda voltaremos a este ponto quando descrevermos os aspectos conclusivos da

dimensão axiológica da tecnologia moderna. Por ora, resta compreender por que a relação

entre ética e ciência, na modernidade, tornou-se dicotômica e que o desprezo da causa

finalis do âmbito do conhecimento científico, custou o apartamento da ética tanto no

exercício da produção científica, quanto no da produção tecnológica. Explicitemos um

pouco mais este último aspecto que trata da separação entre ética e tecnologia.

2.3 A Dimensão Sócio-Cultural da Tecnologia ou para uma Axiologia da Tecnologia

Em se tratando da relação entre ética e tecnologia, que são os dois eixos temáticos

deste capítulo, tem-se que a tecnologia não se refere somente a um conjunto de aparatos

técnicos e instrumentais os quais utilizamos para garantir nossa subsistência e bem-estar

social; nem que a tecnologia é um fenômeno de manifestação “natural” que se impõe,

sendo incondicional e intransponível ao ser humano, porque é auto-sustentável e segue um

curso único. Ou ainda que a tecnologia é neutra, e como tal em nada pode ser

responsabilizada dependendo, pois, seus resultados exclusivamente da maneira como o ser

humano se relaciona com ela.

Desde início deste trabalho, temos insistido que a tecnologia é, antes de tudo, um

fenômeno social, historicamente constituída em vista de fatores econômicos, sociais,

políticos, etc, que se alteram e se modificam de acordo com cada época, cada período da

história ou cada cultura. Portanto, evitar posicionamentos de caráter deterministas,

conforme o enunciado acima, é o primeiro passo para a compreensão do tema em questão.

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118

Ao elaborar um ensaio de Sociologia da Tecnologia, Vilma Figueiredo, parafraseando

Souza e Singer alerta:

Definir tecnologia como mera “coisa” é enfatizar um lado a-histórico ou um aspecto exclusivamente material da tecnologia. Somente através de uma investigação dos aspectos sociais da tecnologia _ como ela é produzida e usada _ é que nós poderemos desmistificar as mudanças “progressivas” e “inevitáveis” que são imputadas à tecnologia. O conhecimento do social _ isto é, daquilo que é sujeito à mudança e que é historicamente contingente a diferentes forças sociais_ é aquele capaz de informar práticas sociais e políticas. Após estudar o impacto da economia sobre a tecnologia, Melman (1975:71) comprova esta perspectiva quando afirma:... “se queremos alterar nossas tecnologias, o lugar para olhar não está na estrutura molecular, mas a estrutura social...”.283 Portanto, o processo de produção e consumo de tecnologias é antes de tudo um

processo social; ele é condicionado pela estrutura social, que se dá num campo de conflitos

sociais e de relações de poder de interesses e disputas, donde, pois, tem-se a possibilidade

de criar situações de permanência ou de transformações desta estrutura. Daí que tecnologia

não é, conforme já mencionado anteriormente, um fenômeno inevitável e intransponível à

condição humana; ela é um “produto social”.284 E, como tal, é passível de valoração social,

de emissão de juízo. Vista sob este ângulo, é possível sim afirmar a relação intrínseca

existente entre ética e tecnologia.

Este esclarecimento se torna imprescindível porque freqüentemente encontramos na

literatura sobre o assunto posições que, julgamos, ingênuas e equivocadas. Eis uma delas:

Procurar encontrar juízos de valor ou regras morais na ciência, na tecnologia ou na técnica é um contra-senso; pois tais juízos e regras não podem, de forma alguma, ser científicos ou técnicos. Por outro lado, esperar das ciências ou técnicas que se auto-limitem, diante de juízos ou regras estranhas a elas é utopia. Deixar de utilizar as tecnologias, relacionadas com energia nuclear, computação eletrônica ou genética, por serem julgadas “perigosas” para a humanidade, é renunciar a viver no mundo contemporâneo. Por outro lado, todos os problemas relacionados com poluição e degradação do ambiente só podem ser resolvidos pela própria tecnologia e não pela ética.285 (grifo nosso) Ora, como se observa, a posição adotada por Vargas incorre em equívocos cruciais

tanto do ponto de vista teórico, como também do ponto de vista das implicações sociais e

políticas do mundo da tecnosfera, no qual estamos inseridos. O primeiro equívoco é o de

tentar isentar da esfera da tecnologia (e assim ele o faz também com a ciência e a técnica

283 SOUZA e SINGER, Tecnologia e pesquisa agropecuárias: considerações preliminares sobre a

geração de tecnologia. Cadernos de Difusão de Tecnologia 1 (1), 1984. Apud, FIGUEIREDO, Vilma. Produção social da tecnologia. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1989, p. 6 e 7. 284 FIGUEIREDO, op. cit., p. 11.

285 VARGAS, op. cit., p. 185.

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119

na referida obra) a emissão de juízos de valor, separando a tecnologia da ética e atribuindo

um valor absoluto àquela a ponto de afirmar que os dilemas éticos que enfrentamos hoje, _

a poluição, por exemplo _, só podem ser solucionados “pela própria tecnologia e não pela

ética”. Se, como foi demonstrado anteriormente, a tecnologia “tanto modifica o meio

natural, como transforma profundamente o homem e a sociedade”286 (isto é, ela não pode

ser vista como “coisa”), não se pode, pois, excluí-la do campo da ética. E defender que as

tecnologias devem se “restringir às suas finalidades”, deixando “os julgamentos éticos aos

homens”,287 é postular uma visão ontológica da tecnologia determinista, a-histórica,

considerando que a tecnologia é um fenômeno único no decorrer de toda a história. É este

aspecto que já confrontamos no capítulo primeiro, quando tratamos da natureza da

tecnologia moderna em seu sentido ontológico e que será agora ainda mais aprofundado

quando tratarmos dos efeitos de tais posicionamentos sob uma perspectiva axiológica da

tecnologia, especificamente na modernidade.

Um outro equívoco refere-se à concepção de juízos ou regras “estranhas” à técnica,

à ciência e à tecnologia. Quando Milton Vargas afirma que esperar que as ciências ou as

técnicas se auto-limitem diante de regras ou juízos morais “estranhas” a elas é uma utopia,

ele está partindo da concepção de que a regra moral que rege a dinâmica destes fenômenos

é uma só. Novamente cai-se numa posição determinista. Será que a tecnologia só pode ser

encarada sob uma única perspectiva ética? A que fundamento de ética e, por conseguinte, a

que visão de tecnologia está se referindo o autor, quando exclui qualquer outra

possibilidade de reflexão ética da tecnologia (por ser “estranha” a ela) que não o seu

caráter utilitário? Em outros termos e de modo afirmativo, dizer que a tecnologia ao invés

de se preocupar com julgamentos éticos deve se ocupar com a sua finalidade é confirmar

que o ethos da ação tecnológica está unicamente na sua utilização, no “servir para”, como

nos próprios dizeres de Milton Vargas. (Daqui avistamos o cenário de onde nasce nossa

desconfiança do por que o utilitarismo é o modelo de ética predominante no âmbito da

tecnologia moderna.)

Mas, se por um lado, este é o modelo predominante, por outro lado, não significa

que seja necessariamente o único. Se o utilitarismo é o modelo de ética vigente na

tecnologia moderna, seu predomínio deve-se a fatores históricos, sociológicos e, sobretudo,

ideológicos, conforme veremos a seguir, e não por uma condição “natural” ou essencial da

286 FRIEMANN, G. Sept études sur l`homme et la technique. Paris: Ed. Gonthier, 1966. Apud,

FIGUEIREDO, op. cit., p. 9. 287 VARGAS, op. cit., p. 185

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120

tecnologia. Disso, concluímos que o referencial axiológico da tecnologia necessariamente

está vinculado ao seu referencial ontológico e epistemológico. Ou seja, ao modelo de ética

predominante no âmbito da tecnologia, depende o conceito de tecnologia a que está se

referindo. O conceito, ou seja, a natureza da tecnologia em sentido moderno já

explicitamos nos capítulos anteriores, passemos agora, pois, a elucidar o seu caráter

axiológico.

3 UTILITARISMO ÉTICO E TECNOLOGIA MODERNA

Muito embora tenhamos insistido até aqui288 na ausência da ética do campo

científico a partir da modernidade, vale dizer que tal “ausência” é somente aparente. Ela é

própria de um discurso cientificista consciente da necessidade de fundar um conhecimento

objetivista, neutral e departamental que implica necessariamente (pelo menos idealmente)

na exclusão da ética, sem o qual assim não poderia sê-lo.

Semelhante posição, encontramos também no campo da tecnologia; o discurso do

progresso técnico como um processo autônomo, gerador e portador por si mesmo dos

valores da humanidade é um exemplo característico desta visão. Entretanto, na prática, é

possível perceber com clareza o enraigamento de um certo modelo de ética que garantiu

legitimidade ideológica a esta nova concepção de ciência e de tecnologia. Estamos falando

do utilitarismo ético, pois que se a tecnologia é um saber essencialmente prático que se

cumpre na obra realizada, “a questão dos juízos éticos é, por primeiro, uma questão sobre a

moralidade dos fins, que são intrínsecos à técnica mesma”.289 Daí a exigência de um

referencial ético que cumprisse tais requisitos. Tal exigência seria referendada pelo

princípio utilitarista de ética. Analisemos melhor a situação, enfocando a corrente ética do

utilitarismo e, posteriormente, sua estreita vinculação com a tecnologia.

3.1 A Corrente Ética do Utilitarismo

Inicialmente é mister esclarecer que o princípio ético baseado na felicidade, já

houvera sido estimado desde os epicuristas, na Grécia Antiga. Mais tarde também Hobbes

em O leviatâ, bem como Locke em seu Ensaio sobre o entendimento humano, fizeram

referência ao prazer como instituinte do que é bom e a dor como a medida do que é mal.

288 Veja-se, por exemplo, o tópico 2.2 deste capítulo. 289 VALLAURI, op. cit., p. 80 (Tradução livre). O argumento do autor, ao nosso ver, parece ser o

que encerra sua posição sobre o assunto, não o nosso, conforme veremos a seguir.

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121

Mas, é com Bentham e Stuart Mill, no período moderno, que esta doutrina ganha forças a

partir da instituição do utilitarismo.290

O utilitarismo surge no séc. XVIII na Inglaterra como crítica da filosofia empirista

(de Bacon, Locke e Berkley) ao racionalismo (de Descartes, Espinoza e Leibniz), tendo

como um de seus principais representantes a figura de Jeremy Bentham (1748-1832).291

Opositor também do formalismo ético de Kant (1724 – 1804), o ponto de partida da tese

deste filósofo defensor do utilitarismo reside nos seus estudos sobre a ciência do direito,

especialmente a teoria do direito natural. Em sua famosa obra Princípios da Moral e da

Legislação, Bentham expõe sua doutrina filosófica de caráter utilitarista, contrapondo-se às

ideais institucionais conservadoras da sociedade inglesa de seu tempo.

O cidadão, segundo Bentham, deveria obedecer ao Estado na medida em que a obediência contribui mais para a felicidade geral do que a desobediência. A felicidade geral, ou o interesse da comunidade em geral, deve ser entendida como o resultado de um cálculo hedonístico, isto é, a soma dos prazeres e dores dos indivíduos. Assim Bentham substitui a teoria do direito natural pela teoria da utilidade, afirmando que o principal significado dessa transformação está na passagem de um mundo de ficções para um mundo de fatos. Somente a experiência afirma, Bentham, pode provar se um instiuição é útil ou não.292 (grifo nosso) Do exposto acima, extrai-se três características fundamentais na elucidação da ética

utilitarista. A primeira é a de que, o utilitarismo pertence às chamadas éticas teleológicas,

donde o agir moral é válido pela sua finalidade, eficácia e resultado. Portanto a regra ética

é sempre a posteriori, diferentemente das éticas deontológicas, que estabelecem o agir

moral a partir das regras morais existentes a priori, como “dever ser”. O utilitarismo,

então, defende que o bem é uma prática, inexistente anteriormente à ação, posto que o bem

não pode ser um conceito abstrato de razão (como afirmava Kant _ um dos representantes

das éticas deontológicas_ para quem o princípio da boa vontade não reside em seu

objetivo, mas no princípio formal da vontade em geral293). Uma ação é boa, argumentam

os utilitaristas, quando promove um determinado fim.

290 A título explicativo, vale dizer que o termo “utilitarismo” não é devido a Bentham e sim a S.

Mill, seu discípulo. 291 Sabemos que o utilitarismo desde o seu surgimento sofreu inúmeras variações. Assim, fala-se no

utilitarismo de regras, no utilitarismo de atos, no utilitarismo seletivo, no utilitarismo negativo, não maximizador, no utilitarismo atenuado, etc. Como nosso objetivo não é estudar o utilitarismo em si, mas esclarecer sua estreita aproximação com a gênese da tecnologia moderna, o leitor encontrará aqui tão somente a descrição das características elementares do utilitarismo clássico, suficientes para atender ao nosso propósito. Para um estudo mais aprofundado sobre as diversas correntes do utilitarismo, recomendamos a leitura, sobretudo, do terceiro capítulo da obra de FARRELL, Martín D. Métodos de la ética. Buenos Aires: Abeledo Perrot, s/d, pp. 181-283.

292 OS PENSADORES, Bentham: vida e obra. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1984, p. IX. 293 Daí Kant defender que o agir moral é sempre um Imperativo Categórico, ou seja, o bem é um

conceito metafísico, transcendental à realidade empírica, porque representa sempre um “dever ser”

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O segundo aspecto importante a ser destacado para o escopo desta análise,

referenda o que já foi dito anteriormente. Trata-se do caráter empirista desta visão de ética.

O utilitarismo ético pertence às chamadas éticas de conteúdo material que, diferentemente

das éticas formalistas (como a kantiana, por exemplo, que aloja a ética numa dimensão

racional, pertencente à verdade formal294) parte de um princípio de verdade material cuja

fundamentação do agir moral reside na experiência, na realidade empírica. Daí a alegação

de Bentham de que somente a experiência pode conferir se uma ação é boa ou não.

Uma outra característica para compreender o que é o utilitarismo enquanto modelo

de ética reside no princípio da utilidade. Para os utilitaristas o fundamento de toda ação

moral está na promoção da felicidade e do bem-estar dos seres humanos, mediada pelo

princípio da utilidade que pode ser assim traduzido: “uma regra ou ação será moralmente

boa, na medida em que o saldo decorrente de sua realização for maior que o resultante de

qualquer ação (ou regra) alternativa disponível ao agente”.295 Sobre o que é a utilidade em

sentido ético, Bentham trata de explicar já no primeiro capítulo de sua famosa obra:

O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude do qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta: se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da comunidade , ao passo que, em se tratando de um indivíduo em particular, estará em jogo a felicidade do indivíduo.296 O fundamento da assertiva do filósofo reside no fato de considerar que, na base do

gênero humano está “o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer” 297, sendo

nossas ações governadas por estes senhorios da natureza humana. Outrora, também Locke

havia afirmado que “o bem e o mal [...] não são outra coisa senão o prazer ou a dor, ou

aquilo que nos provoca prazer ou dor”.298 Maximizar o prazer e minimizar a dor, eis,

(imperativo categórico) e não um “pode ser” (imperativo hipotético). Disso decorre o princípio do universalismo ético kantiano: “Age de tal modo que a máxima de tua ação possa sempre ao mesmo tempo valer como princípio de legislação universal”. KANT, Imamnuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In: OS PENSADORES. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 129.

294 Kant, por exemplo, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, assim esclarece: “praticamente bom, contudo, é o que determina a vontade por intermédio da razão, portanto, não por causas subjetivas, mas objetivamente, í. é., por razões que são válidas para todo o ser racional como tal”. Citado por TUGENDHAT, Lições de ética. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 143.

295 CARVALHO, M. C. M. de. Por uma ética ilustrada e progressista: uma defesa do utilitarismo. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p.100.

296 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. In: OS PENSADORES, São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 4.

297 Id. Ibid, p. 3. 298 Apud DUSSEL, op. cit., p. 109.

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123

portanto, o fundamento último de toda ação moral para o utilitarismo. Bentham, por

exemplo, esclarece que “a maior felicidade do maior número é a medida do bem e do

mal”.299

Ainda sobre o conceito de utilidade vale lembrar que para Bentham “por utilidade

se entende aquela propriedade em qualquer objeto, mediante a qual tende a produzir

benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade, (tudo isto no caso presente é a mesma

coisa) a prevenir que ocorra um dano, dor, mal ou infelicidade à parte cujo interesse é

considerado”,300 Stuart Mill entende a utilidade e a felicidade como um fim a ser buscado.

Na utilidade, esclarece Mill, reside o fundamento de toda ética, pois, “é somente a utilidade

de uma regra moral a que constitui sua obrigação”.301

Assim, para as éticas utilitaristas o bem-estar das pessoas, a qualidade de vida, a

felicidade dos indivíduos e da comunidade não pode ser indiferente à ética. Neste sentido,

Garcia avalia que o conceito de utilidade tem em vista “a avaliação moral das ações, gestos

de caráter, instituições, códigos éticos ou jurídicos, etc., que se realizam em termos de seu

impacto com o bem-estar em geral”.302 Ou seja, no cerne da ação moral deve estar

embutido o cálculo da felicidade: avaliação do quantun da utilidade da ação resultante da

maximização do prazer e minimização da dor. A regra moral é sempre uma ação de

resultado, auferida pelo grau de sua utilidade.303 Bom, pois, para os utilitaristas é o que é

útil, funcional, pragmático, no sentido de trazer felicidade ao maior número de pessoas.

Mas o que é a felicidade? Segundo um outro precursor do utilitarismo e seguidor de

Bentham, o filósofo Stuart Mill, a felicidade é “o único fim da ação humana e seu impulso

é a prova mediante a qual se julga toda conduta humana; disto se deduz necessariamente

que ela deve ser o critério de moralidade”,304 calculada utilitariamente. Aliás, em se

tratando deste aspecto, é necessário lembrar que o utilitarismo é a busca de uma análise

ética da economia, ciência que ganha corpo, sobretudo no século XVIII. Portanto, a

corrente do utilitarismo surge como reflexão (ela é produto da) ética dos economistas

sociais da época. O próprio Adam Smith que, no ano de 1764 visita a França e descobre a

299 BENTHAM, Fragment, prefácio, p. 3, Apud DUSSEL, op. cit., p. 110. 300 FARELL, op. cit., p. 182 e 211, citando BENTHAM, J. Introduction to the principles of morals

and legislation. Oxford: Basil Blackwell, 1967, p. 125. (Tradução livre) 301 PALEY, citado por FARRELL, op. cit., p. 195. (Tradução livre) 302 GARCIA, Jesus Ignácio. La teoria da justiça em John Rawls. Madrid: Centro de Estudos

Constitucionais, 1985, p. 54. (Tradução livre) 303 Daí tratar-se de uma ética de caráter conseqüêncialista: o que é correto resulta do que é bom para

as pessoas; a qualidade moral das ações depende das conseqüências produzidas. Já nas éticas deontológicas, as ações morais em si mesmas são moralmente boas ou más, independentemente das conseqüências que acarretam. Cf. CARVALHO, op. cit., p. 105.

304 MILL, S. Utilitarismo, 1957, p. 49. Apud DUSSEL, op. cit., p. 111.

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nascente ciência econômica francesa, é um destes moralistas que se dedica a pensar os

fundamentos morais da economia, publicados em 1759, em sua obra intitulada A teoria dos

sentimentos morais.

Desse modo e levando-se em conta que o contexto no qual surge o utilitarismo

ético, que coincide (não por acaso!) com o nascimento da sociedade capitalista, sendo a

Inglaterra simultaneamente o espaço geo-político do nascedouro de ambos os fatores,305

para os utilitaristas a felicidade traduz-se na posse de bens como: (1) a propriedade

privada, que torna a sociedade estável e em paz, em vista do bem-estar social. Em sua obra

A psicologia do homem econômico, por exemplo, Bentham esclarece que seu conceito de

ser humano é “a de um ser que anseia pela felicidade, tanto no êxito como no fracasso, e

em todos os seus atos continuará fazendo isto enquanto for homem”306 e a felicidade,

prossegue Bentham, é usufruir a riqueza econômica; (2) representa ainda o amor a si

mesmo (self love), portanto, trata-se de uma moral individualista, onde o espaço da ética

reduz-se à esfera privada e não pública (esta pertencente, sobretudo, ao mundo grego),

posto que a riqueza de uma comunidade nada mais é do que a soma da riqueza dos

indivíduos que a compõe307; (3) e a benevolência altruísta defendida por Adam Smith.308

Mas, o cálculo da felicidade proposto por Bentham no séc. XVIII, ainda que

extremamente sedutor, trouxe alguns problemas no que diz respeito às comparações

interpessoais de utilidade. Assim, quando se trata de avaliar o cálculo produzido por

diferentes ações, levando-se em conta a que produz mais resultados quando são vários os

indivíduos envolvidos, a viabilidade do utilitarismo não parece ser tão simples. Este é um

dos pontos polêmicos para a corrente do utilitarismo ético.309

É neste sentido que situa a contribuição de Karl Popper, que propôs o utilitarismo

negativo a partir da análise profunda que fez sobre os inimigos da política liberal no século

XX, sobretudo às doutrinas políticas totalitárias, sejam de direita ou de esquerda. Para

Popper, ao invés de maximizar a felicidade, devêssemos, ao menos, minimizar a dor. Em

palavras textuais, ele argumenta:

Sugiro, por essa razão, substituir a fórmula utilitária “aspiremos a maior quantidade de felicidade para o maior número de pessoas”, ou mais sinteticamente “felicidade ao

305 Como bem disse Jesus Garcia o utilitarismo tem sido a teoria ética e a prática predominante no

mundo anglo-saxão desde os séculos passados. Cf. GARCIA, op. cit., p. 53. (Tradução livre) 306 BENTHAM, 1978, p. 3, apud DUSSEL, op. cit., nota 135, p. 157. 307 Id. Ibid. 308 DUSSEL, op. cit., p. 109 309 Como o objetivo aqui não é aprofundar doutrinariamente a corrente ética do utilitarismo e sim

demonstrar a sua vinculação axiológica com a tecnologia moderna, um maior detalhamento desta polêmica pode ser encontrado no trabalho de CARVALHO, op. cit., p.106 e ss.

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máximo”, pela fórmula: “a menor quantidade possível de dor”, ou, em resumo, “dor ao mínimo”. Esta fórmula tão simples pode-se converter, creio, num dos princípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública. (O princípio da “felicidade ao máximo”, parece tender, pelo contrário, a produzir ditaduras benevolentes.) É mister compreender, além disso, que do ponto de vista moral, não podemos tratar simetricamente a dor e a felicidade; isto é, que a promoção da felicidade é, em todo caso, muito menos urgente que a ajuda àqueles que padecem e a tentativa de prevenir sua dor.310 A razão da substituição da fórmula utilitária proposta por Popper deve-se ao fato de

que para Popper não há simetria entre felicidade e sofrimento, entre dor e prazer. Assim ele

explica:

(Outra crítica da fórmula utilitária “levar ao máximo o prazer” é que ela admite, em princípio, uma escala contínua prazer-dor, que nos permite tratar os graus de dor como graus negativos de prazer. Mas, do ponto de vista moral, a dor não pode ser pesada pelo prazer e, especialmente, não a dor de uma pessoa pelo prazer de outra pessoa. Em vez de maior felicidade para o maior número, dever-se-ia mais modestamente reclamar o menor quinhão de sofrimento evitável para todos; e, mais, que o sofrimento inevitável - tal como a fome em épocas de inevitável carência de alimentos - seja distribuído tão igualmente quanto possível.) [...] Será mais claro, no campo da ética, formularmos nossas exigência em forma negativa, isto é, reclamando a eliminação de sofrimentos, em vez da promoção de felicidade.311

3.2 A Relação entre Tecnologia e Utilitarismo Ético

Afora as várias tendências das éticas utilitárias o fato é que o utilitarismo, em

sentido ético, é o arcabouço ideológico da tecnologia moderna. Eis o que conjecturamos

neste capítulo ao demonstrar como o utilitarismo ético, surgido no seio do mundo anglo-

saxão (Inglaterra) e, juntamente com ele, o advento da sociedade baseada no modo de

produção capitalista possui uma estreita vinculação com a tecnologia em sentido moderno.

Dussel, por exemplo, analisando criticamente as dificuldades do utilitarismo,

conclui que o conceito de felicidade utilitarista é um cálculo econômico por excelência.

Assim ele observa que

a felicidade, que é o fim visado pelo cálculo da razão instrumental, é alcançada pelo consumo ou a satisfação das preferências do comprador do mercado, graças à distribuição capitalista _ sempre pressuposta nos utilitaristas _ dos bens. Existe, então um cálculo abstrato e perverso: o capital é condição a priori absoluta do cumprimento do fim ético (a felicidade). Não se analisa suficientemente o horizonte a partir do qual o critério de felicidade cobra sentido. Para o utilitarismo, a felicidade (ou o prazer) não tem relação com o critério universal objetivo e material de produção e reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano. As mediações objetivas possuídas para o uso (uma casa) ou o consumo (um pedaço de pão) são condições de possibilidade do cumprimento das preferências subjetivas (a felicidade). Mas a existência dessas mediações, enquanto são

310 POPPER, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. Vol. 2. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo, 1987, Cap. 5, nota 6, p. 256. 311 POPPER, A sociedade…op. cit., Cap. 9, nota 2, p. 311.

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“mercadorias”, têm uma lógica que o utilitarismo ignora. Isto fica claro no fato de que a ética utilitarista sempre conta com uma economia distribucionista, onde o “valor” do produto (mercadoria) é exclusivamente constituído pelo “desejo” ou pelas “preferências” do comprador (potencial consumidor, se é solvente), esquecendo-se sempre que o “produto” já foi produzido por um “produtor” (o operário) cuja “felicidade” [...] significa cumprimento de “necessidades” (relativamente ao “valor de uso” do produto), não só preferências que nunca puderam ser descobertas pelo utilitarismo. Isto é, o utilitarismo se move num círculo abstrato da razão instrumental, onde o fim é a felicidade e onde os meios para alcançá-la são calculados formalmente, mas sempre dentro do mercado capitalista como horizonte. 312 É mister esclarecer que a crítica de Dussel fundamenta-se na visão marxista, donde

o critério de análise é o da materialidade objetiva do sistema produtivo capitalista. Neste

sentido, ele argumenta:

O utilitarismo é uma ética subjetivo-material não suficientemente material (pensa a “felicidade” só como consumo, a partir do mercado) e esquece a lógica da produção dos “bens objetivos”; e ainda subjetivamente não considera que, em primeiro lugar o “infeliz” é o trabalhador produtor (a partir da própria fábrica) que não recupera sua vida objetivada em seu produto, o que envolve um problema de corporalidade ética [...].313 Em defesa de um princípio material de ética, o filósofo da Ética da Libertação,

acrescenta:

Se a ética ‘material’ é material por ser de ‘conteúdos’, o momento mais material de sua materialidade é a objetividade estrutural, institucional, dos bens materiais como “satisfatores”, como “re-produtores” da “sobre-vivência”. Tudo isto é parte de uma ética “material” que as éticas anglo-saxãs posteriormente ao utilitarismo esqueceram (tais como a intuicionista, a emotivista, a analítica, a comunitarista, a neocontratualista, etc.): a ética econômica.314 Para Dussel, os utilitaristas chegam até a pensar na materialidade da ação moral,

sobretudo, quando pregam a “distribuição” dos bens como condição para a felicidade

(Mill), mas são cegos quanto à lógica-ética da produção destes bens.

Também Tugendhat, ao analisar a plausibilidade do princípio de justiça de

Bentham, segundo o qual na soma de felicidade a ser calculada o bem-estar de ninguém

pode valer mais que o bem-estar de outro conclui que:

O utilitarismo é a ideologia do capitalismo, pois ele permite o crescimento da economia como tal, sem dar moralmente conta daquilo que diz respeito a questões de partilha. Se nos perguntarmos como uma idéia em si tão pouco plausível se pôde manter por tanto tempo como aparentemente convincente, então a oculta razão ideológica fornece uma informação significativa. O dito benthamiano eveybody to count for one, nobody for more than one tem sua direção progressiva exclusivamente voltada contra o sistema feudalista, segundo o qual

312 DUSSEL, op. cit., p.112 e 113. 313 DUSSEL, op. cit., p. 157, nota 134. 314 DUSSEL, op.cit., p. 157, nota 137. Cf. também nota 135.

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os indivíduos têm um valor diverso. Por isso também foi ideal, nesta perspectiva, como ideologia da burguesia. 315 Ora, demonstrou-se no capítulo anterior que a tecnologia em sentido moderno, não

pode ser dissociada, enquanto compreensão ontológica e epistemológica, da visão

empirista de realidade surgida a partir do século XVIII e junto com ela o advento do modo

de produção capitalista. Neste sentido, também se pode assegurar a estreita aliança entre a

tecnologia e o utilitarismo ético, pois, se o conhecimento agora é produto da aliança entre

teoria e prática, entre o atrelamento do saber e do fazer, sua manifestação empírica e

histórica se revela neste fenômeno chamado tecnologia moderna, que tem como critério de

definição do que é “bom” tudo o que é utilitário, funcional, prático, pragmático. Daí que o

modelo ético que dá sustentação ideológica à tecnologia moderna é o utilitarismo.

A título ilustrativo de como a tecnologia moderna traz em seu bojo uma visão

utilitarista de realidade, veja-se o relato de Milton Vargas, um dos pensadores da

tecnologia aqui no Brasil, que, ao tratar da distinção entre ciência e técnica, considera que,

enquanto aquela se ocupa da teoria, esta é sempre um saber prático, que tem em vista a

“instrumentalização da natureza”, precedido sempre pela emissão de juízos de valor. Em

palavras textuais, ele argumenta:

Mas, por que há essa instrumentalização da natureza? Porque há capacidade, nos homens, de avaliar as coisas, de julgá-las boas ou más, úteis ou inúteis, verdadeiras ou falsas, belas ou feias. Quando algo se apresenta, aparece imediatamente o julgamento: útil ou inútil, melhor ou pior, feio ou bonito. Desta valoração decorre a atuação do homem. Se uma flor pudesse ser vista, sem ser julgada bela, jamais haveriam jardins. De forma que a presença dos instrumentos, no campo real, prende-se à existência de outros objetos reais: os valores. E entre os valores, um aqui interessa sobremaneira, é o “servir para”. Se algo na natureza foi julgado “servir para” algo, então a instrumentalização está feita. Se um galho da árvore for julgado “servir para” carregar na mão, de apoio ou defesa contra animais e inimigos, o galho de árvore se transformará imediatamente “bastão”, seja cajado ou tacape, e a instrumentalização estará feita. É o caso do rio que, desde o momento em que foi reconhecido “servir para” fronteira, deixou de ser um deus pardo e passou a ser um instrumento. (grifo nosso)316 Prevalece nitidamente neste enfoque o caráter utilitarista do que é valor. Na

descrição citada, o valor tem sempre uma conotação do que é útil, que tem utilidade. Desse

modo, tudo que na natureza “servir para”, expressa o autor, torna-se instrumentalizado pela

ação do homem. Ora, a postura utilitarista do homem sobre a natureza é a pura expressão

da tecnologia nos moldes da sociedade moderna. Por isso, constata Vargas, o olhar do

315 TUGENDHAT, op. cit., p. 353. 316 VARGAS, Para uma...op. cit., p. 22

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128

técnico é como o de uma águia, que somente vê a presa, sem mais nada perceber o que está

a sua volta. Disso resulta o “caráter predatório” da tecnologia atual.317

Mais um exemplo característico da visão utilitarista pode ser encontrado em outra

passagem da mesma obra de Vargas. Ao tratar da essência da tecnologia, ele argumenta: “a

tecnologia mostra-se como uma simbiose entre o saber teórico da ciência _ cuja finalidade

é a procura da verdade _ com a técnica _ cuja finalidade é a utilidade. Resulta dessa

simbiose que a finalidade da tecnologia seria a procura de uma verdade útil.” 318(grifo

nosso). A tese ontológica da “verdade útil” da tecnologia é ainda mais reforçada pelo autor,

quando esclarece que o conceito de verdade que, na ciência “é sempre adequação entre

algo mental e material”, com a tecnologia, foi-lhe acrescentado “a condição de utilidade

comprovada”.319

Como se vê, ao atribuir à tecnologia a busca de uma “verdade útil”, Vargas

antecipa no nível ontológico, qual a sua visão axiológica sobre a tecnologia. Trata-se, pois,

de um critério ético baseado na utilidade.

3.3 O Legado do Utilitarismo para a Ética Moderna.

Por fim, uma ressalva. Amiúde as críticas apontadas sobre o utilitarismo, é preciso

considerar, como bem lembra Dussel, que o utilitarismo historicamente resgatou um

aspecto da ética que havia sido negado pela época medieval e subsumido pelo formalismo

ético kantiano, qual seja: o critério material e hedonista como fundamento do valor moral.

Pois, assim como os estóicos, tanto o modelo de ética medieval, quanto a visão kantiana

rechaçam do campo da ética o prazer como fonte da ação moral. Os estóicos, por exemplo

_ corrente filosófica que surgiu na Grécia Antiga (séc. IV d.C.), inclusive, como oposição

aos epicuristas _, afirmavam que a ética é a busca do bem e da felicidade tendo como

fundamento a dor e não o prazer. Já a posição moderna kantiana considera que nem sequer

a vontade escapa do âmbito da razão, sendo ela pertencente à “razão prática”, para usar a

317 VARGAS, Para uma…op. cit., p. 20. 318 VARGAS, Para uma…op. cit., p. 180 319 VARGAS, Para uma... op. cit., p. 183. A propósito: o conceito de “verdade” utilizado por

Milton Vargas ao propor uma Filosofia da Tecnologia é eminentemente de caráter empirista. Segundo ele, a verdade é “a adequação entre a mente e a coisa” (ibidem). Em texto anterior, introdutório da sua obra, ele esclarece: “o objeto tanto do saber teórico ou experimental quanto de qualquer vivência humana _ ‘aquilo que o homem encontra em sua prática’ _ pertence à realidade” (Cf. p. 21 da referida obra).

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129

expressão do próprio Kant.320 Como se vê, ambos ignoram o aspecto hedonista, baseado no

prazer, como fonte da ética.

Ainda sobre a visão formalista da ética kantiana, baseada no dever ser, Hegel

criticamente observava que tal modelo de ética “arranca as ações e normas problemáticas

dos contextos de eticidade substancial representados pelo mundo da vida, para, em atitude

hipotética, submetê-las a exame sem levar em conta os motivos operantes e as instituições

vigentes.”321

Segundo Dussel, o princípio da materialidade como critério de validade de uma

ação moral é condição sine qua non para a constituição de uma teoria ética crítica, porque,

a partir do resgate do “aspecto material das pulsões de felicidade”,322 é possível colocar em

crise um sistema-mundo que está se globalizando (e a tecnologia assume um papel

fundamental neste processo) e, ao mesmo tempo está excluindo a maioria da população,

negando-lhe a possibilidade de felicidade. Exclusão que é corpórea, material, empírica323.

Isto é, é um problema de vida ou morte. “Vida ... que não é um conceito, uma idéia, nem

um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser... concreto, condição absoluta

da ética...”324.

Portanto, se, por um lado, o utilitarismo ético historicamente recupera o papel do

princípio da materialidade da ética como condição de validade de toda ação moral, por

outro lado, seus pressupostos serviram contextualmente como garantia de manutenção do

sistema capitalista e fundamento moral da razão instrumental, característica própria da

moderna tecnologia, conforme se demonstrou anteriormente. Então, uma proposta

alternativa baseada num novo fundamento ético a partir de um outro referencial ontológico

e epistemológico da tecnologia, devesse resgatar o sentido da materialidade da validade da

ação moral herdada do utilitarismo, mas não seu caráter instrumental, pois, deste último

ocupa-se criticamente boa parte desta dissertação.

320 Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em palavras textuais, Kant diz: Cada coisa

da natureza atua de acordo com leis. Somente um ser racional tem a faculdade de agir de acordo com a representação de leis, í.é., de acordo com os princípios, quer dizer tem uma vontade. Como para a derivação de ações a partir de leis é exigido uma razão, assim a vontade nada mais é do que a própria razão prática (Grifo nosso). Citado por Tugendhat, op. cit., p. 141.

321 Citado por DUSSEL, op. cit., p. 201 322 DUSSEL, op. cit., p. 12 323 [...] lembremos desde já que os 20% mais ricos da terra consomem 82% dos bens produzidos

pela humanidade e os 80% mais pobres só consomem os 18% restantes, e os 20% que vivem em pobreza absoluta só consomem 1,4% desses bens[...]. (DUSSEL, op. cit.,, p.18, nota 8, citando o Human Development Report, 1992, p. 35).

324 DUSSEL, op. cit., p. 11.

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130

4 POR UM OUTRO REFERENCIAL AXIOLÓGICO DE TECNOLOGIA

Afora a observação plausível de Dussel sobre o resgate do princípio da

materialidade como condição de fundamentação da ética, encontramos também a posição

de Hans Jonas e sua fundamentação da ética, baseando-se no princípio da

responsabilidade, que, ao nosso entendimento, muito tem a nos dizer sobre a dimensão

axiológica da tecnologia. Em seu ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, Hans

Jonas busca fundamentar uma ética baseada na responsabilidade, tendo em vista o contexto

atual o qual estamos inseridos que é o mundo da tecnosfera.

Como bem anuncia o próprio título da obra deste filósofo da ética, este constitui

também uma de nossas preocupações centrais ao discorrer sobre a dimensão axiológica da

tecnologia. Por isso, tomamos de empréstimo alguns enunciados da ética da

responsabilidade que surge de um contexto cuja preocupação central é o mundo da

tecnociência. Já nos debruçamos na sua compreensão ontológica e epistemológica nos

capítulos anteriores, acenando para um outro entorno da tecnologia. Agora, nosso esforço

consiste em compreender os argumentos de Jonas, enquanto análise axiológica de tal

contexto, bem como da sua outra proposta de ética, como possibilidade para a constituição

de um outro referencial axiológico para a tecnologia.

Certamente o leitor não encontrará aqui uma análise profunda e abrangente sobre a

Ética da Responsabilidade, enquanto teoria da ética, senão os aspectos que nos interessam

ante as principais questões sugeridas anteriormente sobre a dimensão axiológica da

tecnologia. A escolha deste autor deve-se ao fato de que também seu intento é discutir a

ética sob o contexto do mundo da tecnosfera.

Segundo ele, a superação antropológica do homo sapiens pelo homo faber faz com

que a técnica moderna seja o próprio destino do homem. E, se antes a técnica era um meio

adequado às exigências do homem, hoje ela mesma supera tais exigências e a criação

artificial exige do homem novas capacidades inventivas para sua criação. O homem

tornou-se objeto da técnica. Portanto, é diante deste quadro que está situada a exigência

atual da técnica: “a tecnologia cobra significação ética pelo lugar central que ocupa agora

na vida dos fins subjetivos do homem”.325

325 JONAS, Hans. El princípio de responsabilidad. Ensaio de una ética para la civilización

tecnológica. Barcelona: Herder, 1995, p. 36.

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131

A avaliação de Jonas sobre a sociedade atual nos oferece com clareza alguns

indicativos pelos quais perpassam o princípio da responsabilidade. Em palavras textuais,

ele diz:

Na era da civilização técnica, que tem chegado a ser “onipotente” de modo negativo, o primeiro dever do comportamento humano coletivo é o futuro dos homens. Nele está manifestamente contido o futuro da natureza como condição sine qua non; porém ademais, independentemente disso, o futuro da natureza é de si uma responsabilidade metafísica, uma vez que o homem não se tem convertido em um perigo para si mesmo, senão também para toda a biosfera. Inclusive se pudéssemos dissociar ambas as coisas _isto é, inclusive se fosse possível para nossos descendentes uma vida que pudesse chamar-se humana em um mundo devastado (e em sua maior parte substituído artificialmente)_, a rica vida da Terra, produzida com grande trabalho criativo da natureza e agora encomendada a nós, exigiria nossa proteção. [...] Reduzir o dever unicamente ao homem, desvinculando-o do resto da natureza, representa a diminuição, mais ainda, a desumanização do próprio homem, a atrofia de sua essência (ainda em um caso afortunado de sua consciência biológica), e contradiz assim sua suposta meta, precisamente creditada pela dignidade da essência humana.326 (1) O primeiro indicativo que aparece com clareza na ética proposta por Jonas diz-

se de uma ética da utopia, cuja ação seja orientada para o futuro da humanidade e do

planeta diante da possibilidade real e concreta apresentada hoje pela tecnologia da

destruição da natureza e da vida. Segundo Jonas o dinamismo técnico antecipa o futuro,

numa exigência ético-metodológica que nos faz criar uma ciência com “predição

hipotética” ou uma “futurologia comparada”, para usar seus próprios termos. Ou seja, uma

ciência cuja busca da verdade reside nas condições futuras do homem e do mundo. O saber

fático do mundo exige também um saber ideal sobre o mundo, o qual deve operar com a

projeção hipotética. Pensamos que nisto reside a proposta de Boaventura quando adverte

para a necessidade de um conhecimento prudente para uma vida decente.Aliás, vale

lembrar que para Boaventura, o princípio da ética da responsabilidade de Hans Jonas é o

referencial ético a ser seguido nos dias atuais.

Portanto, e Bacon conclamava ao homem moderno pela descoberta do mundo

(conforme observamos no capítulo II deste trabalho), Jonas conclama ao homem

contemporâneo pela preservação do mundo.

E Jonas vai além, considerando que o elemento fundante de tal exigência está na

“heurística do temor”: “somente a prevista desfiguração do homem nos ajuda a forjar a

idéia de homem que tem que ser preservada de tal desfiguração”.327 E acrescenta:

[...] Enquanto o perigo é desconhecido não se sabe o que é que tem que proteger e por quê; o saber acerca disso procede, contra toda lógica e todo método, “daquilo que tem que

326 JONAS, op. cit., pp. 227 e 228. (Tradução livre) 327 JONAS, op. cit., p. 65. (Tradução livre)

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evitar”. Isto é o que se nos apresenta em primeiro lugar e o que, por meio da expressão do sentimento que antecede o saber, nos ensina a ver o valor daquilo cujo contrário nos afeta tanto. Somente sabemos o que está em jogo quando sabemos que está em jogo.328 Disso decorrem os deveres preliminares de uma ética orientada para o futuro, quais

sejam: procurar a representação dos efeitos remotos, pois, somente o que é temido pode ser

evitado pela sua representação e procurar o temor com apelação a um sentimento

apropriado ao representado. Então um novo saber seria aquele saber para o possível que:

(a) prioriza os fundamentos filosóficos das suas projeções, da previsibilidade e do

prognóstico, não no sentido de apresentar provas, mas ilustrações; (b) seja possível aplicá-

lo politicamente, posto que não se trata de um saber teórico somente, mas também

operativo, com aplicação prático-política; (c) seja prognóstico, no sentido de dar maior

crédito às profecias catastróficas que as profecias otimistas.

(2) Nisto reside o outro indicativo da ética da responsabilidade. Nascendo do

perigo, tem-se que uma ética para a civilização tecnológica deve ser orientada para a

preservação, à custódia e à prevenção e não para o progresso e o desenvolvimento,

conforme pregam as éticas modernas, respaldadas pelo ideal baconiano que consiste em

“colocar o saber a serviço do domínio da natureza e fazer do domínio da natureza algo útil

para o melhoramento da sorte do homem”.329 O passo a ser dado, então, consiste em rever

o conceito de progresso.330 E mais: o ideal utópico assente no progresso técnico deve ser

despedido do horizonte mesmo da utopia. Mas, então, onde reside a utopia da ética da

responsabilidade? Reside “na ética não utópica da responsabilidade”331, responde Jonas.

Pois, ao princípio da esperança assegurada pela tecnologia em seu modo ocidental

(inclusive pelo utopismo marxista) opõe-se o princípio do temor, senão o princípio da

responsabilidade.

328 Id. Ibid. Aristóteles desde os anos 384-322 a.C., também já havia observado tal situação: É claro

que não sente medo aquele que acredita que nada lhe pode acontecer [...] Sentem medo aqueles que acreditam ser provável que alguma coisa lhes aconteça [...] As pessoas não acreditam nisso quando estão, ou pensam estar, no meio de grande prosperidade, e são por isso insolentes, desdenhosas e temerárias [...]. [Mas se] chegarem a sentir a angústia da incerteza, deve haver alguma tênue esperança de salvação. ARISTÓTELES, Retórica, 1382b29, Apud SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões. Reflexões sobre a vida e a morte na virada do milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.130.

329 JONAS, op. cit., p. 233. 330 Conceito este que é criticado por Jonas inclusive aos moldes dos ideais marxistas. Para ele o

marxismo, surgido num contexto cujo horizonte é o processo de produção funda-se na promessa de que a crise do capitalismo só poderá ser superada mediante o ideal progressista de que “somente a técnica moderna possibilita um aumento do produto social tal que sua justa (igual) distribuição não signifique uma generalização da pobreza, que tão somente serviria de remédio para a sensação de injustiça”. Cf. JONAS, op. cit., p. 238. Ainda sobre a visão utópica do progresso e do cultuamento à técnica pelo marxismo, conferir a análise de Jonas exposta em sua obra, especialmente às pp. 233-257.

331 Cf. p. 356 da citada obra do autor.

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133

O temor, assegura Jonas, forma parte tanto da responsabilidade quanto da

esperança. A esperança “é condição de toda ação, pois pressupõe a possibilidade de fazer

algo e aposta por fazê-lo neste caso”.332 E o temor em questão não é aquele que

desaconselha a ação, mas sim que lhe dá ânimo, por assegurar a responsabilidade de tal

ação. Isto é, o temor “forma parte essencial de toda responsabilidade”, porque “teme pelo

objeto da responsabilidade”.333

Responsabilidade é o cuidado, reconhecido como dever, por outro ser, cuidado que, dada a ameaça de sua vulnerabilidade, se converte em “preocupação”. Porém, o temor está já como um potencial na pergunta originária com a que se pode representar inicialmente toda responsabilidade ativa; que lhe sucederá a isso se eu não me ocupo dele? Quanto mais obscura seja a reposta, quanto mais clara será a responsabilidade; e quanto mais distanciado no futuro se encontre o que há de temer-se, quanto mais longe está das próprias alegrias e penas e mais incerto seja, com tanta maior diligências hão de ser mobilizadas há clarividência da fantasia e da sensibilidade do sentimento: se fará preciso uma inquisitiva heurística do temor que não somente se descubra e se ponha de manifesto a este seu novo objeto, senão que inclusive se familiarize com o particular interesse que reclama [...]. A teoria da ética precisa da representação do mal tanto quanto da do bem e mais ainda quando o mal se tem visto pouco claro em nosso olhar e somente pode voltar a fazer-se patente mediante um novo mal antecipado.334 Para a ética da responsabilidade, pois, o temor é o primeiro dever da ação ética; é o

“dever preliminar de uma ética da responsabilidade histórica”,335 conclui Jonas.

(3) Um outro indicativo enunciado nas palavras textuais de Hans Jonas acima

reside no fundamento de sua proposta ética, qual seja, a deontologia, ou o ser no sentido

existencial, de seu ex-sistir. Eis outro aspecto que constitue o afastamento entre uma e

outra ética. No modelo utilitarista, o fundamento é a utilidade ou a instrumentalização do

ser das coisas, posto que a orientação ética reside no fazer, portanto, ela é instrumental e

utilitarista por excelência. Na visão de Jonas o imperativo ético reside no ser, portanto ela

é metafísica e ontológica por excelência. A responsabilidade ontológica para com a idéia

de homem reside no simples fato da existência do homem. Tal idéia gera um imperativo

categórico e não hipotético quanto à afirmação de que haja homens e humanidade. Dela

advém a responsabilidade para com a humanidade futura, cujo dever está orientado para

sua existência e essência. Pela sua existência porque significa a garantia de procriação e

pela sua essência, porque existe certamente um dever dos autores para com as gerações

futuras. Trata-se “dos direitos de futuros sujeitos de direito”.336

332 JONAS, op. cit., p. 356. (Tradução livre). 333 JONAS, op. cit., p. 357. (Tradução livre). 334 JONAS, op. cit., pp. 357 e 358. (Tradução livre). 335 JONAS, op. cit., p. 358. (Tradução livre). 336 JONAS, op. cit., p. 85. (Tradução livre)

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134

O velamento do dever de “conformar uma autêntica humanidade”,337 para dizer as

palavras de Jonas, implica que sua perda para gerações futuras, i. é., “o futuro danificado”

recairia na ausência de acusação, senão na acusação sobre nós mesmos que, obviamente

está vinculada aos feitos utópicos de nossa tecnologia. “Velar por isso, assegura Jonas, é

nosso dever fundamental de imediato ao futuro da humanidade”.338

É deste modo que Jonas anuncia o dever ético para com o futuro. Ao contrário do

que pensa as teorias tradicionais de direitos e deveres, donde há uma reciprocidade mútua,

ou seja, a exigência de deveres é proporcional à condição de direitos, ele entende que não

há reciprocidade na ética orientada para o futuro das gerações. E ante as teorias

tradicionais de que a exigência do ser começa com o ser, Jonas responde: [...] a ética que

buscamos tem que ver precisamente com o que todavia não é, e seu princípio de

responsabilidade terá de ser independente tanto de qualquer idéia de um direito como a

idéia de reciprocidade, de tal modo que em seu marco não pode nunca formular-se a jocosa

pergunta inventada a respeito: “Tem feito o futuro alguma vez algo por mim?”, “acaso

respeita meus direitos?”.339

Tomando este fundamento ontológico da ética podemos inferir uma outra

perspectiva para a constituição da natureza da tecnologia em nosso tempo, não mais

baseada na idéia do mero fazer humano, mas orientada para a constituição do ser humano.

Então, a técnica como vocação humana por excelência (conforme os dizeres de Heidegger,

já confrontados no capítulo primeiro e reforçados agora por H. Jonas, o qual fora discípulo

daquele), produz um outro referencial de homem, de natureza e de mundo. Jonas é enfático

neste sentido: “uma ética orientada para o futuro não está na ética enquanto doutrina do

fazer [...] senão na metafísica enquanto doutrina do ser, de que uma parte é a idéia de

homem.”340

Para o nosso propósito, entendemos que o argumento de Jonas alcança lá onde

reside a limitação das éticas utilitaristas, teleológicas por excelência. Embora o utilitarismo

se constitua no princípio da materialidade, ele reforça o princípio meramente instrumental

desta materialidade, cujo conteúdo reside nos fins. Dela não se pode exigir nada além da

instrumentalização das coisas que toca, seja o homem, a natureza ou a própria razão.

(4) Aliás, este é outro ponto de distanciamento na comparação entre ambos os

modelos de ética. No utilitarismo fim e valor se confundem, uma vez que o valor de uma

337 JONAS, op. cit., p. 86. (Tradução livre) 338 Id. Ibid. (Tradução livre). 339 JONAS, op cit., p. 82. (Tradução livre). 340 JONAS, op. cit., p. 89. (Tradução livre).

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135

ação reside no êxito de sua finalidade. Para Jonas, tal propositura é inconcebível, pois, “o

fim responde à pergunta para quê”,341 avalia Jonas, e a confirmação de que algo serve para

não encerra nenhum juízo de valor de minha parte sobre aquilo. Ou seja, o conhecimento

dos fins das coisas não encerra nenhuma aprovação necessariamente sobre elas.

Os fins dizem respeito àquilo sobre o qual uma coisa existe e para cuja produção e

conservação se realiza um processo, empreende-se uma ação. Já os valores representam

um juízo sobre a adequação ou não dos fins às coisas. É postulando tal diferenciação

fundamental que Jonas indaga sobre o status do valor no campo da ética, considerando ser

necessário e elementar legitimar o aspecto ontológico e epistemológico do valor e não

meramente seu conceito. Por isso, o autor faz uma exaustiva comparação dedicando por

completo um capítulo de sua obra sobre o assunto.342

E conclui que independentemente ser o fim interno ou externo à coisa343, o fato é

que em ambos os casos a resposta à pergunta “de quem são os fins que podemos perceber

nas coisas?”, a resposta é uma só: do homem, assegura Jonas. Todavia, o fim se aloja na

natureza através da vida que é seu principal fim: “com a produção da vida a natureza

proclama ao menos um determinado fim, a vida mesma; isto certamente não significa outra

coisa que a liberação do fim em geral para chegar a fins definidos, também perseguidos e

desfrutados subjetivamente”.344 Assim, pela causalidade da vida o fim atinge a consciência

humana e animal e se estende a todos os seres. Esta demonstração, segundo Jonas, é

suficiente para assegurar que o fim está de fato presente na natureza.

(5) Tal demonstração incorre em outro problema, colocado por Jonas nos seguintes

termos: pode o ser fundamentar um dever? 345 A pergunta de Jonas encerra na tentativa de

estender à ontologia uma parte da axiologia. Assim, se o ser pode fundamentar um dever,

então a ontologia implica nela mesma a dimensão axiológica. Esta certamente é também

uma das questões que permeiam nosso debate até aqui sobre a natureza da tecnologia

moderna. E diferentemente da resposta dada até agora pelo paradigma científico que exclui

conhecimento de causalidade final (como vimos ainda há pouco), Jonas reponde nos

seguintes termos: “à medida que a natureza sustenta fins ou tem metas, como agora

queremos supor, põem também valores; pois no fim atrelado de fato, seja qual seja o modo

341 JONAS, op. cit., p. 101. (Tradução livre). 342 Estamos nos referindo ao capítulo III da obra citada. 343 Sobre tal diferenciação, veja-se o exemplo do martelo e do tribunal citado por Jonas, às pp. 103 e

ss. 344 JONAS, op. cit., p. 134. (Tradução livre). 345 JONAS, op. cit., p 137. (Tradução livre).

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como está dado, sua consecução se converte em um bem, e sua frustração em um mal.

Com esta distinção começa a possibilidade de atribuir valor.”346

Prosseguindo na resposta nosso interlocutor busca esclarecer que também o bem é

distinto do valor. O bem, por exemplo, é algo distinto de nossos valores, enquanto que o

valor se associa aos nossos desejos. E estes estão ligados ao ‘para que”, “para quem”. Ou

seja, refere-se à esfera da taxação. Portanto, conclui Jonas, “o conceito de valor não pode

servir de fundamento a uma doutrina do dever”.347 O homem bom faz o bem pelo bem

mesmo e não para si mesmo, pois que o bem é a coisa no mundo, melhor ainda, é a causa

do mundo.348

(6) Aqui nasce outro indicativo da ética da responsabilidade, qual seja, o próprio

sentido de responsabilidade. Já aludimos a este princípio anteriormente, detalhemo-lo um

pouco mais a seguir. Diferentemente da moral kantiana, Jonas atribui o sentimento da

responsabilidade como fundamento racional e também psicológico de sua proposta de

ética. Para ele, historicamente as éticas têm-se ocupado em justificar racionalmente a sua

validez. Mas, segundo Jonas, “a moralidade não pode ter-se a si mesmo como meta”, 349e a

fundamentação emotiva da ética também é questão da qual deveriam se ocupar os

filósofos.

Para Kant a razão é a fonte da vontade, daí o respeito à lei como imperativo

categórico. Para Jonas o que primeiro importa são as coisas não minha vontade, pois, ao

“comprometer a vontade, as coisas se convertem em fins para mim”.350 Portanto, o respeito

não pela lei, mas pelo ser-em-si. Então, a responsabilidade passa pelo sentimento dela

(subjetivo) e por sua necessidade (objetiva). O exemplo da prole citado por Jonas é

ilustrativo neste sentido: o cuidado com a prole diz-se de uma responsabilidade objetiva e

de um princípio subjetivo de responsabilidade. Nestes termos, o autor observa:

[...] o cuidado com a prole [é] tão espontâneo que não precisa de nenhuma invocação à lei moral, é o protótipo elementar humano da coincidência entre a responsabilidade objetiva e o princípio subjetivo de responsabilidade; mediante este protótipo a natureza nos tem educado de antemão para todas as classes de responsabilidade, que não estão muito asseguradas pelo instinto, e tem preparado nosso sentimento para isso.351

346 JONAS, op. cit., p. 145. (Tradução livre). 347 JONAS, op. cit., p. 359, nota 10. (Tradução livre). 348 JONAS, op. cit., p. 153. (Tradução livre). 349 JONAS, op. cit., p. 153. (Tradução livre). 350 JONAS, op. cit., p. 159. (Tradução livre). 351 JONAS, op cit., p. 160. (Tradução livre).

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O outro aspecto da responsabilidade diz respeito à sua imputação causal. O simples

poder causal, í.é, quando ocorre obviamente a conexão causal com o ato, é condição de

responsabilidade. Tal condição difere (e em muito) das teorias tradicionais da

imputabilidade, sobretudo, a jurídica. Nesta, a condição de imputabilidade deve estar

assegurada pelas condições de materialidade do fato e pela sua realização como ex-post-

facto. Porém, Jonas observa que a responsabilidade não está no meu comportamento ou

nas simples conseqüências de minhas ações, senão na coisa e pela coisa que exige minha

ação. Em palavras textuais ele exemplifica:

[...] a responsabilidade, por exemplo, pelo bem-estar dos outros não examina somente os propósitos dados do ato no que respeita a sua admissibilidade moral, senão que obriga a realizar atos que não têm outro propósito que não esse fim. [...] Aquele “pelo” que sou responsável está fora de mim, porém se acha no campo de ação de meu poder, remetido a ele ou ameaçado por ele. Isso contrapõe ao poder seu direito à existência, partindo do que é e do que pode ser, e, mediante a vontade moral, leva ao poder cumprir seu dever. A coisa é coisa minha porque o poder é meu e tem uma relação causal precisamente com essa coisa.352 Portanto, não se trata de uma responsabilidade formal, extrínseca ao sujeito, e

sujeita ao poder do sujeito. Ela existe de per-si e, por isso mesmo, podemos dizer que ela

está orientada ao futuro e se põe numa relação a qual sua imposição não depende de uma

relação recíproca de meus atos. A imputação da responsabilidade é uma relação não

recíproca, diferente daquilo que freqüentemente ouvimos falar em “responsabilidade

mútua”. Aquela é incondicional, irrevogável. Na essência do sentido de responsabilidade,

auferido por Jonas, o poder não é sobre, mas para os seres.

E a diferença da imputabilidade do homem em relação aos demais seres reside no

simples fato de naquele há a capacidade da responsabilidade. Assim Jonas esclarece: “a

capacidade de responsabilidade é a condição suficiente de sua faticidade”. 353 Nisso reside

a relação intrínseca entre poder e dever. Se, para Kant o poder advém do dever (“podes,

posto que deves”), para Jonas é o oposto: o dever advém do poder (“deves, posto que

podes”). Ou seja, quanto maior o poder, maior o dever, ou quanto maior o poder, maior a

responsabilidade. O poder é, pois, a raiz da responsabilidade do homem no mundo.

Aqui Jonas propõe uma mudança radical no sentido de poder. Para ele o poder

significa liberar efeitos no mundo que se confrontam ao dever assinalado por nossa

responsabilidade.354 Isso defere em muito da proposta baconciana. O famoso princípio de

352 JONAS, op. cit., p. 163. (Tradução livre). 353 JONAS, op. cit., p. 173. (Tradução livre). 354 JONAS, op. cit., p. 213. (Tradução livre)

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que saber é poder representou para o nosso tempo não somente a perda da proteção dos

homens de si mesmos, como também a perda da proteção da natureza dos homens. O poder

se tem feito autônomo, coercitivo frente à natureza e ameaçador aos homens. Este

paradoxo (como bem lembra Jonas, “não suspeitado por Bacon”) que fez coincidir saber e

poder, radicado no domínio sobre a natureza, tem levado ao “submetimento a si mesmo”

deste poder.

5 SÍNTESE DA DIMENSÃO AXIOLÓGICA DA TECNOLOGIA MODERNA

Iniciemos as considerações finais deste capítulo retomando algumas questões em

torno da moral moderna, as quais já revelamos no decorrer deste capítulo, mas que

merecem ainda uma abordagem conclusiva, em vista da possibilidade de pensar um outro

entorno axiológico para a tecnologia.

A primeira situação-problema diz-se da urgência em atribuir à tecnologia uma

dimensão também ética. Entendemos que este é o ponto de partida para uma axiologia da

tecnologia. Quando tratamos da relação entre ética e ciência e da dimensão sócio-cultural

da tecnologia (ver item 3.2.2 e 3.2.3 neste capítulo) abrimos esta discussão, enfocado como

na modernidade o conhecimento científico como também o tecnológico se afastaram da

ética, que passou a ser confinada ao âmbito da filosofia. Agora cumpre-nos reforçar nosso

posicionamento sobre o assunto.

Iniciemo-lo considerando que afora toda a problemática sobre a objetividade e a

neutralidade da ciência e da técnica, o fato é que atualmente os resultados produzidos pela

tecnociência representam um desafio moral para a humanidade. Disso não se pode furtar;

basta conferir os exemplos que nos circundam. Não vamos aqui citá-los, mas situá-los sob

a perspectiva ética, posto que eles representam um “risco procedural”, para utilizar a

expressão de Apel. Risco procedural porque dizem respeito à “ameaça que paira sobre a

vida humana”,355 que possui dimensão planetária e atinge a civilização técnico-científica.

A análise do estudioso da moral moderna, Karl-Otto Apel, é esclarecedora:

Se até pouco tempo atrás a guerra podia ser interpretada como instrumento de seleção biológica e, entre outros aspectos, de expansão espacial da vida humana, através do confinamento dos eventualmente mais fracos em regiões desabitadas, esta concepção hoje definitivamente está superada pela invenção da bomba atômica: desde então o risco destruidor das ações bélicas não se restringe mais à micro ou mesoesfera de possíveis conseqüências, mas ameaça a existência da humanidade no seu todo.356

355 APEL, op. cit., p. 73. 356 APEL, op. cit., p. 73.

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139

A progressiva poluição ambiental, proporcional ao crescimento da pobreza em

escala mundial, é um outro risco proveniente dos efeitos colaterais da técnica industrial. Já

nos referimos à problemática ecológica, para efeitos de ilustração da crise epistemológica

do conhecimento científico no capítulo anterior, agora transpomo-la aqui para exemplificar

o problema ético decorrente do crescimento econômico-tecnológico. Afinal, cremos nós, a

crise epistemológica atual é, por excelência uma crise com implicações éticas. E “o

problema cultural da tecnologia é de per si um problema ético”.357 E mais: é um problema

ético que atinge uma escala planetária; as normas morais de alcance microesférico não

atingem mais aquilo que ganhou proporções de macroesfera, porque o que está em jogo

são os interesses vitais de toda a humanidade. Neste sentido, Apel, analisa:

Essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que os resultados da ciência representam um desafio moral para a humanidade. A civilização técnico-científica confrontou todos os povos, raças e culturas, sem consideração de suas tradições morais grupalmente específicas e culturalmente relativas, com uma problemática comum a todos. Pela primeira vez, na história da espécie humana, os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir a responsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária. Deveríamos ser de opinião de que, a essa compulsão por uma responsabilidade solidária, deveria corresponder a validez intersubjetivadas normas, ou pelo menos do princípio de uma ética da responsabilidade.358 Portanto, do mesmo modo que Apel, entendemos que uma ética que vincule toda a

sociedade humana se tornou indispensável. Mas, o paradoxo reside exatamente aí, avalia

Apel. Pois, ao mesmo tempo em que a universalidade da ética se tornou necessária, tornou-

se também impossível em face da pretensa impossibilidade de uma fundamentação

racional de validade intersubjetiva, argumentada pelo discurso da “neutralidade valorativa”

da ciência moderna. Diante deste discurso argumentativo, toda elaboração teórica “não

isenta de valoração parecem, a partir deste parâmetro, ser meras ideologias”.359

É neste ponto que aparece novamente o problema das implicações do afastamento

da causalidade final do âmbito da ciência e da tecnologia. É aqui que percebemos com

clareza como a visão moderna se afasta da visão aristotélica. A crítica ao mecanicismo

poderia ser empregada a partir da ausência da causalidade final. Já nos referimos a isso

anteriormente, retomemos agora sob a perspectiva de nosso posicionamento.

Para Aristóteles tanto na techné quanto na natura reside a condição de finalidade.

Se as coisas artificiais são produzidas em vista de qualquer fim, as coisas da natureza o são

igualmente, argumenta o filósofo. Tanto nas coisas artificiais, como nas coisas naturais as

357 VALLAURI, op. cit., p. 68. (Tradução livre) 358 APEL, op. cit., p. 74. 359 APEL, op. cit., p. 165.

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140

conseqüências e os antecedentes são neles mesmos referidos.360 A célebre frase de que a

“arte imita a natureza”361 é justificada por Aristóteles nestes termos. A similitude é que em

ambas reside a dimensão teleológica. Outra similitude argumenta o filósofo, é que tanto

numa quanto na outra há a presença do logos: “há uma racionalidade imanente da natura

assim como há uma racionalidade própria da techne. Uma e outra são consideradas em

função do princípio que é o fim”.362

Aqui, vemos novamente com clareza o divisor de águas entre Aristóteles e

Descartes. Há uma nítida diferença entre o conceito de cientista, de técnica e de natureza

entre ambos. Enquanto para Descartes o cientista imita o supremo Arquiteto, construindo o

mundo sob leis mecânicas que nada tem de finalidade, para Aristóteles a imitação se funda

sobre a natureza que possui racionalidade imanente, portanto, possui sapiência derivada do

logos.

Desta diferença entre os antigos e os modernos, chegamos a um outro ponto que

pretendemos retomar em vista dos aspectos conclusivos que compõem este capítulo: trata-

se da aproximação entre prudência e técnica (denominada pelos gregos de phronesis e

techne). Já abrimos esta discussão no I capítulo quando tratamos dos aspectos semânticos

que envolvem o problema ontológico da tecnologia moderna, agora, tendo em vista que o

foco de análise é o problema axiológico da tecnologia moderna, cremos que estão reunidas

as condições metodológicas e teóricas necessárias para justificar nosso posicionamento.

Segundo Aristóteles, ainda que a ação ética seja imanente ao sujeito enquanto que

a ação técnica seja exterior a ele, ainda assim esta deve ter seu uso humano regulado para

o bem do homem, portanto regulado pela virtude moral. Citando a visão aristotélica,

retirada da famosa obra Ética a Nicômaco, Vallauri explica: “é na natureza das coisas que

a técnica está em dependência da ética porque não é direta ao bem do homem enquanto tal,

porém se pode contribuir àquele bem. Tal contribuição pressupõe a mediação da ética. A

virtude moral é requerida para o bom uso da techne, enquanto não se pode estabelecer o

bom uso da prudência”.363 Por isso, “a técnica é a virtude mais puramente intelectual da

prudência”, 364 conclui o autor.

360 ARISTÓTELES, Ética a Nicomachea, 198b, 16-20, citado por VALLAURI, op. cit., pp. 74 e

75. (Tradução livre) 361 ARISTÒTELES, Ética..., op cit., 194a, 21, citado por VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tradução

livre) 362 VALLAURI, op cit., p. 75, citando ARISTÓTELES, Etica... op. cit., 200 a, 34; b, 1-4. (Tradução

livre) 363VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tradução livre) 364 Id. Ibid.

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141

Em síntese, ainda que a técnica seja por natureza uma atividade transitiva e seu fim

reside na obra a ser realizada, que é exterior ao sujeito (portanto, ela comporta sempre uma

dimensão de exterioridade e exteriorização), Aristóteles argumenta que “o fim da produção

(poiésis) é diverso de si mesmo, mas não daquilo da ação (práxis), porque a ação feliz, a

ação boa (eupraxia) mesma, que é fim”.365

É neste sentido que Aristóteles vê uma estreita aproximação entre técnica e

prudência e é nestes termos que corroboramos com a tese do pensador português,

Boventura Santos: somente um conhecimento prudente pode nos levar a uma vida decente.

Portanto, não há que afastar do âmbito da tecnologia o seu aspecto moral, considerando,

sobretudo, a virtude da prudência.

Parece-nos que este aspecto constitui um dos elementos fundantes da ética da

responsabilidade proposta por Hans Jonas para a civilização técnico-científica. Na base da

ação técnica, argumenta Jonas, deve estar implicado a avaliação prognostica de nossas

ações (eis a intrínseca relação com a prudência) que só assim o será se for prudente. Trata-

se, pois, de uma ética não do presente, mas que garante a viabilidade de gerações futuras,

não somente de seres humanos, mas, sobretudo, de preservação da vida nas suas mais

diferentes manifestações.

Eis um dos pontos cruciais de diferenciação entre a proposta ética baseada no

princípio da utilidade (utilitarismo) e a proposta ética baseada no princípio da

responsabilidade (de Hans Jonas). Amiúde ao aspecto da relevância do princípio da

materialidade garantida pelo utilitarismo ético (ressaltado por Dussel e por nós

referendado), a antropologia que subjaz ao utilitarismo diz-se de uma visão economicista

do homem como maximizador da felicidade e de uma visão hedonista que põe a vida na

satisfação de desejos. Portanto, é uma visão antropocêntrica e narcísica por excelência. E,

ainda que se fale da satisfação interpessoal de desejos, trata-se de um referencial ético

antropocêntrico, donde o homem é a medida de todas as coisas. O princípio da ética da

responsabilidade desloca a perspectiva ética para o horizonte mesmo do ser, portanto, ela é

ontológica. Ao invés da visão antropocêntrica, tem-se a visão ontológica como horizonte.

Para efeito de considerações finais, vale, pois, retomar as idéias centrais as quais

serviram de sustentação teórica à hipótese de que é o utilitarismo o modelo de ética vigente

hoje no âmbito da tecnologia.

365 ARISTÓTELES, Ética..., op. cit., 1140b, 6-7, citado por VALLAURI, op. cit., p. 73. (Tadução

livre)

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142

A primeira idéia chave e ponto de partida de toda reflexão que se seguiu

posteriormente, é a de que a tecnologia não pode ser encarada como “coisa”, ou como um

conjunto de técnicas, involuntariamente estabelecida diante da condição do ser humano de

estar no mundo e, por isso mesmo, ela é considerada neutra e a-histórica. A tecnologia é

sim, um fenômeno social e histórico que sofre e propicia transformações sociais profundas,

sobretudo a partir da modernidade (séc. XVI), quando se assistiu a aliança entre a técnica

(saber prático) e a ciência (saber teórico). É, pois, diante desta leitura que se delega à

tecnologia uma dimensão social e cultural e, por conseguinte, ela é passível de atribuição

valorativa. Ou seja, por ser a tecnologia um fenômeno social, podemos apreendê-la sob o

ponto de vista ético, a partir da emissão de juízos de valor.

Daqui decorre outra idéia chave para a compreensão do tema apresentado. Tendo

em vista o contexto anteriormente descrito, o utilitarismo ofereceu as bases de sustentação

ética da tecnologia na modernidade. Nascido no cerne do mundo anglo-saxão, _ sistema-

mundo dominante a partir do século XVIII _ , o utilitarismo ético conferiu sustentação

ideológica ao novo modo de produção capitalista que, coincidentemente surgiu também na

Inglaterra, obtendo através da tecnologia a mola propulsora para o lucro.

Tendo estas idéias como ponto de partida, conclui-se, então, que sendo a tecnologia

ontologicamente um fenômeno social, histórico, mutável, sua identidade não é absoluta,

fechada, única e incondicionalmente constituída em toda a história. Logo, o caráter

utilitário da tecnologia, ao contrário do que pregam muitos autores (cita-se como exemplo

Milton Vargas, sob este aspecto abordado criticamente neste trabalho366), pode não ser

parte constitutiva da ética da tecnologia. Conforme já fora dito anteriormente, se assim o é,

é historicamente e não essencial ou ontologicamente. E por ser histórico, um novo entorno

ético pode ser atribuído à tecnologia. Qual, então, o novo modelo de ética?

Enunciamos aqui a proposta ética de Hans Jonas, mas estamos cientes também que

um estudo mais aprofundado sobre o assunto mereceria, dentre outros afazeres, um estudo

comparativo, confrontando, por exemplo, tal modelo ético com outras propostas surgidas

de outros filósofos contemporâneos, como: Habermas e a ética do discurso, Dussel e a

ética da libertação, para não citar outros teóricos. Acenamos para tal possibilidade, então,

num estudo posterior sobre o assunto.

Para tanto, lançamos algumas indagações. Por exemplo: Basta, para a configuração

de um novo referencial ético, a proposta da ética da responsabilidade conferida por Hans

366 Cf. especialmente item 3.2 do III Cap., pp. 125 e ss.

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143

Jonas? É possível pensar uma nova identidade para a tecnologia baseando-se na ética do

discurso de Habermas? Como pensar a sociedade tecnológica diante da ética da vida (ou

da libertação) proposta por Enrique Dussel? Acredita-se que estes questionamentos podem

futuramente iluminar reflexões sobre um outro entorno axiológico para a tecnologia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pois o questionar é a devoção do pensamento.367

Ante o principal objetivo desta dissertação, qual seja: analisar a natureza da

tecnologia moderna, a partir das dimensões: ontológica, epistemológica e axiológica,

postulando que o empirismo, o conhecimento científico e o utilitarismo ético, constituem

suas bases de sustentação filosófica, apresentamos, então, para efeitos de nossas

considerações finais, as idéias centrais defendidas no decorrer desta pesquisa. A divisão

que se segue obedece à mesma sistemática didática por nós utilizada para o

desenvolvimento do tema, ou seja, iniciemos retomando as idéias centrais da dimensão

ontológica, depois a epistemológica e, por fim, a dimensão axiológica da tecnologia

moderna.

(1) A primeira idéia chave sobre o ser (ontologia) da tecnologia confirma a tese de

que a tecnologia não é neutra; sua essência e existência estão condicionadas a fatores

históricos e circunstanciais a qual está inserida. Com isso, afastamo-nos daqueles

posicionamentos de caráter deterministas que tanto enobrecem os discursos cientificistas e

tecnicistas, conforme já nos alertara Dussel (cf. I capítulo) e nos aproximamos do sentido

de historicidade da tecnologia.

Disso decorre que, ao contrário da posição “instrumental e antropológica” (para

usar a expressão de Heidegger), a tecnologia não é um fenômeno necessário e

instransponível. Sua condição é contingencial. Daí que o modo como concebemos a

tecnologia hoje está adstrito a uma situação histórica recente, cujo recorte temporal

obedece ao paradigma da modernidade, com todas as suas implicações históricas,

conforme já observamos aqui. Ou seja, o nosso olhar sobre a tecnologia está

circunstanciado pelo paradigma da modernidade, que é de onde nos encontramos

Com esta idéia também nos afastamos daqueles que, ainda que tenham como

objetivo estudar o que é a tecnologia, priorizam uma análise meramente semântica ao tratar

do tema. Defendemos aqui que a análise meramente semântica, conceitual não é suficiente

para entender qual é o ser ou o que significa a tecnologia, sobretudo na modernidade. Por

outro lado, com esta concepção, aproximamo-nos da posição de Heidegger para quem “a

367 HEIDEGGER, op. cit., p. 93.

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145

essência da técnica também não é de modo algum algo técnico”. Ou seja, o problema da

tecnologia não é um problema técnico. É, antes de tudo, uma questão existencial. Ou

melhor: os problemas decorrentes da técnica, não serão resolvidos por ela mesma, senão

pelo nosso próprio enfrentamento. Tal enfrentamento depende desta avaliação. Então, por

ser um problema da existência humana, a tecnologia diz respeito ao modo como o ser

humano vive e se relaciona com os demais seres e com o mundo. Mais especificamente diz

respeito à poiésis, enquanto produção do ex-sistir (que aqui tem o sentido de subsistência).

E, ao mesmo tempo que a tecnologia diz respeito ao modo como nos relacionamos com o

mundo, ela também denuncia a nossa condição de estar-no-mundo. Por isso, ela é um

fenômeno eminentemente existencial.

Afinal, a ocidentalização do mundo moderno começa com a técnica, porque a

técnica (moderna) representa o modo escolhido pela civilização (ocidental) do “como” se

dá o desvelamento ou o desocultamento do ser pelo homem. Ou seja, a técnica significa o

modo por nós eleito para descobrir as coisas ou revelar a verdade delas, avalia

Heidegger.368

(2) Sendo um fenômeno existencial e contingencial; por ser “atividade transitiva,

não imanente”369, na modernidade a tecnologia passa a assumir uma outra identidade ou

uma outra natureza. Marcada, sobretudo, pela visão empirista de realidade (preconizada

desde Bacon) que alicerçou filosoficamente a aliança entre a ciência e a técnica, a

tecnologia passou a ser o produto mais bem acabado deste consórcio.

Tal fato, inédito na história mundial, constitui certamente a principal característica,

em sentido ontológico, da tecnologia moderna, posto que representou para efeitos de sua

finalidade histórica a implementação do modo de produção capitalista, com o surgimento

da Revolução Industrial e da maquinaria que, fruto do saber e do fazer, garantiu maior

produtividade em menor tempo, ou seja, o lucro (Marx). E, para efeitos filosóficos, a

instauração da razão instrumental, baseada no agir-instrumental-com-respeito-a-fins (para

usar a expressão habermasiana), que, conforme a leitura dos frankfurtianos, transformou a

ciência e a técnica como ideologia da sociedade industrializada e pós-industrializada

(Horkheimer, Marcuse e Habermas).

(3) Em sentido epistemológico, a tecnologia moderna, fruto da aliança entre ciência

e técnica, é marcada pelo paradigma científico de conhecimento. Assim, no lugar de uma

368 Cf. Ainda a obra sobre Heidegger de BRÜSEKE, Frans J. A técnica e os riscos da modernidade.

Florianópolis: UFSC, 2001. 369 VALLAURI, op. cit., p. 56.

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146

ciência contemplativa, o saber operativo; no lugar da prudência, a descoberta, a exploração

e o domínio da natureza. Francis Bacon, defensor da ciência experimental, portanto, “pai

da tecnologia moderna”; Galileu Galileu, defensor do método científico moderno, portanto

“pai da ciência moderna”; Descartes, defensor da visão antropocêntrica e dualista,

portanto, “pai da filosofia moderna”, tornaram-se os arautos desta revolução

epistemológica na modernidade. A eles soma-se ainda o físico Isaac Newton que

consolidou a visão mecanicista de mundo e realidade anunciada pelos seus antecessores.

O mundo visto como máquina (donde expulsou-se-lhe a causalidade final dos

fenômenos, a marca mais profunda desta nova cosmovisão que se afasta em definitivo do

mundo dos antigos) é o terreno fértil por onde florescerá o novo sentido de conhecimento

baseado na experimentação, na operação e na exploração do mundo natural, afinal, dizia

Bacon, “o que é mais útil na prática e mais verdadeiro no saber”370. Esta nova forma de

conhecimento tem na tecnologia as condições ideais de sua realização, isto é, de sua

materialidade, posto que, se o ser da tecnologia moderna (conforme observamos ao tratar

da dimensão ontológica) se constitui pela aliança entre a teoria e a prática, nascia aí, pela

história da produção material, ou, estava constituída aí a possibilidade de realização do

projeto epistemológico do mundo moderno. Daqui avistamos a estreita aproximação entre

o ser (ontologia) e o conhecer (epistemologia) da tecnologia moderna. Recordemos, pois, a

sua axiologia.

(4) Em sentido axiológico, vale dizer que, sendo a tecnologia plasmada por um

modo de agir funcional, empirista e utilitário, sua justificativa ética encontra-se no

utilitarismo. O utilitarismo ético concebe a ação moral pelo fundamento da sua utilidade,

eficácia e funcionalidade; uma ação boa é aquela que traz maior felicidade ao maior

número de pessoas, alegam os utilitaristas. Portanto, é pelo modo de ser e conhecer da

tecnologia moderna que a sociedade vai conferir a condição de bem-estar-social, conceito

predominante entre os utilitaristas do que seja a felicidade.

(5) Em suma, vimos que a tecnologia é, antes de tudo, um fenômeno social, com

implicações sociais, culturais e no seu entorno também está presente a dimensão da ética.

Assim, juntamente com o modo de produção capitalista e o advento da sociedade

industrial, a tecnologia ofereceu as bases de uma nova visão de mundo, sustentada no

princípio da “verdade útil”, procurando aliar o conhecimento teórico da Ciência (saber)

com o saber prático da Técnica (fazer). Esta compreensão ontológica e epistemológica tem

370 BACON, op. cit., p. 97. citado também à p.63 deste trabalho.

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147

no Empirismo seu fundamento filosófico. Este panorama sobre a natureza da tecnologia

moderna também é legitimado por uma nova compreensão de ética, fundada no

utilitarismo. Portanto, o princípio da utilidade sustentado pela visão utilitarista da ética

conferiu legitimidade moral à tecnologia a partir da modernidade. Disso decorre a tese

central aqui apresentada, que é a de que plasmou, em sentido ontológico e epistemológico,

o empirismo e, o conhecimento científico em sentido axiológico, o utilitarismo, a gênese

da tecnologia moderna.

(6) Da constatação do que é a tecnologia moderna; sua gênese e identidade em

sentido ontológico, epistemológico e axiológico, chegamos ao ponto de acenar para a

possibilidade de pensar um outro referencial de tecnologia ante o posicionamento crítico

que adotamos por opção metodológica de estudo do assunto. Recordemos, pois tais acenos.

Em sentido ontológico, entendemos que uma história crítica da tecnologia (como

bem propusera Marx) não pode conformar-se com os posicionamentos deterministas e

tecnicistas, porque:

Primeiro, a tecnologia não se constitui de um amontoado de aparatos técnicos; ela é

um problema existencial e não meramente técnico. Diz respeito à existência humana, à

condição do homem como ser-aí de estar-no-mundo.

Segundo, à tecnologia não nos cabe negá-la ou afirmá-la, mas enfrentá-la como

destino do homem. Destino não no sentido do que está posto, dado como pronto e acabado,

mas no sentido de que negligenciar a relação com a tecnologia significa abdicar da nossa

condição humana de des-velar o ser das coisas, isto é, abdicar da nossa condição de

descobrir a verdade do ser pela mediação da técnica. Aqui compreendemos o mérito de

Heidegger no sentido de conjecturar um outro entorno para a tecnologia.

Terceiro, a tecnologia não pode ser pensada fora do contexto, como um fenômeno

intransponível e a-histórico, porque diz respeito ao mero fazer humano ou o meio pelo qual

o homem se relaciona com o mundo. Esta, como vimos, é a crítica de Heidegger ao

conceito antropológico e instrumental comumente designado para a técnica. E é também o

triunfo de Heidegger, pois, se, para Marx a essência do Capital não é econômica, também

para Heidegger a essência da Tecnologia não é técnica.371 A tecnologia pensada pelo

contexto, faz-nos compreender também o mérito de Marx, ao enfatizar a técnica a partir

do modo de produção, situado num contexto histórico, que, em seu tempo, diz-se do

371 ELDIED, Michael. The essence of capital and the essence of technology. In: Capital and

Technology 7: Marx and Heidegger. p. 2.. Disponível na Internet. <file://A:\HEIDEGGEReMARX_arquivos\captec07.html > acesso em 17/04/2002.

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148

surgimento da sociedade capitalista, e o mérito dos pensadores da Escola de Frankfurt,

sobretudo Habermas, que foram capazes de situar a discussão sobre a tecnologia para além

da compreensão instrumental, atingindo o âmbito sociológico da problemática.

Em sentido epistemológico, conjecturamos, ante a crise epistemológica do

paradigma científico, a viabilidade de “um conhecimento prudente para uma vida decente”

(conforme os dizeres de Boaventura). Esta outra atitude epistemológica exigirá mais que

intervenção, observância; mais que dominação, contemplação do mundo; mais que

esperança, temeridade; mais que utopias e crenças no progresso, responsabilidade para

com o futuro (Hans Jonas). que seja capaz de trilhar o caminho inverso da ciência

moderna: da ciência para o senso comum.

Nisso se fundamenta o outro referencial axiológico para a tecnologia. Ao invés da

utilidade, o fundamento é a responsabilidade (como propõe Jonas), cuja ação da técnica

mais que a promoção do bem-estar deve ter em conta a garantia de continuidade de futuras

gerações. Trata-se de uma posição ética, cujo fundamento é o ser e não o fazer. Dela

decorre outro modo de poiésis, outro sentido de tecnologia. A atitude axiológica da

tecnologia deve estar direcionada, então, não mais para o presentismo, mas sim para a

perspectiva de futuro de todas as gerações. Dela se afasta a visão antropocêntrica, a qual

tem predominado nestes últimos séculos, cujos efeitos bem sabemos, com o extermínio de

culturas e a real possibilidade de extinção de seres da terra. Nela há lugar para o sentido

metafísico e não meramente instrumental do ser e, neste horizonte, deve estar inserido o

novo modo de ser da tecnologia.

Em síntese: pensar um novo entorno para a tecnologia implica em posicionar-se

frente a ela não numa atitude de confirmação ou negação dela. E sim numa atitude de

questionamento, no sentido de entender que sua essência não encerra nela mesma, senão

está fora dela. Desta posição ontológica avistamos um outro entorno epistemológico para a

tecnologia moderna, posto que diante da crítica da crise do paradigma científico, é possível

redirecionar o conhecimento e que seja prudente para uma vida decente. Nisto reside uma

outra dimensão axiológica para a tecnologia moderna, pois, um conhecimento sábio que

permite e seja capaz de ver a realidade não pela mera via utilitária do sentido de ética, mas

pela via do princípio da responsabilidade.

Resta ainda, para efeitos dessas considerações finais, alertar o leitor que esta

pesquisa é tão somente um ensaio filosófico sobre a identidade da tecnologia. Efetuamos

aqui o recorte temporal, considerando-a a partir da era moderna, que constitui, em nosso

entendimento, o paradigma dominante ainda em nossos dias. Contudo, ainda que o leitor

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149

deva relevar os limites de tempo e da qualidade da pesquisa feita pela autora, entendemos

que outros aspectos poderão ser aprimorados e/ou aprofundados. A seguir, destacamo-los.

A análise desta pesquisa científica em nível de Mestrado, limitou-se à identificar a

gênese ou a natureza da tecnologia a partir da modernidade, tendo em vista a dimensão

ontológica, epistemológica e axiológica. Contudo, uma pesquisa posterior, certamente

devesse continuar a investigação nos desdobramentos da natureza da tecnologia em sentido

também contemporâneo, sobretudo, a partir de teóricos que analisam o problema da

tecnologia em nosso tempo, a partir de seus efeitos atuais, como, a virtualização do real, a

cibernética, a sociedade informática, a sociedade em rede, etc.

Olhando especificamente as três dimensões analisadas, outras sugestões de

pesquisa posterior também poderiam ser incluídas. Vejamos alguma delas.

Ao mencionar o aspecto ontológico da tecnologia moderna, iniciamos nossos

estudos identificando a gênese da tecnologia moderna, utilizando como foco de análise a

leitura de Heidegger, Marx e da Escola de Frankfurt (sobretudo, Habermas). Mas,

pensamos que outros pensadores poderiam enriquecer esta análise. Refirimo-nos aqui,

principalmente, à Ortega y Gasset, que possui um estudo de meditações sobre a técnica.

Também julgamos necessário, tendo em vista um maior aprofundamento do assunto,

apontar as interfaces entre a visão heideggeriana e marxiana sobre a tecnologia moderna.

Quanto ao Empirismo, ativemo-nos em descrever a visão baconiana, procurando

demonstrar como a tecnologia moderna se funda na visão empirista da realidade,

preconizada deste Bacon. Entendemos que a pesquisa poderia avançar no sentido de

contemplar outros autores empiristas, sobretudo, a partir do período contemporâneo, bem

como situá-los dentro de seus desdobramentos históricos.

No aspecto epistemológico, destacamos o paradigma científico da modernidade, a

partir de Galileu, Descartes, Newton, como sendo determinante para a configuração da

tecnologia moderna. Além destes autores, utilizamos como referência a leitura em sentido

filosófico de Boaventura Souza Santos, pensador português que, usando como ponto de

partida a visão de Bachelard sobre a Filosofia da Ciência sustenta a crise epistemológica do

paradigma científico na sociedade atual, além de F. Capra, E. Morin, entre outros. Penso

que o assunto merecia maior aprofundamento, sobretudo no tocante ao contexto histórico

do surgimento da modernidade (aspecto que não priorizamos nesta primeira fase da

pesquisa). Além disso, consideramos que a leitura e a análise de outros autores que tratam

da Epistemologia, a partir da história da ciência, como: Canguilhem, Koyré, Foucault,

Yates, Paolo Rossi, entre outros, certamente enriqueceria ainda mais a pesquisa.

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150

Sobre a dimensão axiológica da tecnologia moderna, priorizamos como foco de

análise, seus precursores, J. Bentham e Stuart Mill, procurando demonstrar como e porquê

o utilitarismo é o modelo de ética que permeia a natureza da tecnologia moderna.Também

utilizamos a leitura e a crítica do utilitarismo de Ernst Tugendhat e Enrique Dussel para

fundamentar tal propositura, além de pensadores da ética moderna e contemporânea, como

K-O Apel e H. Jonas. No entanto, entendemos que em estudo posterior, mereceria

aprofundamento o desdobramento da corrente utilitarista, sobretudo, quanto aos seus

postulados. Refiro-me, por exemplo, à posição de K. Popper que preconizava o

Utilitarismo Negativo, á posição de Farrell, em defesa do Utilitarismo Atenuado, entre

outros.

Desta fase de constatação e identificação sobre a natureza da tecnologia moderna,

avaliamos que há ainda uma outra etapa a ser construída, posto que dela aqui, meramente

fizemos acenos. Trata-se de conjecturar um outro entorno para a tecnologia na sociedade

atual. Ou seja, um outro momento desta pesquisa requer a necessidade de propor novas

alternativas para a tecnologia, em sentido ontológico, epistemológico e axiológico. Assim,

por exemplo, indaga-se:

- Em sentido ontológico como pensar uma outra identidade da tecnologia, afora a

visão empirista da realidade?

- Em termos epistemológicos, como superar a crise epistemológica do paradigma

científico? Ou como produzir um conhecimento de tecnologia que supere o paradigma

científico?

- Em sentido axiológico, afora a visão utilitarista, que modelo de ética deve

fundamentar um outra identidade de tecnologia? A Ética do Discurso proposta por

Habermas dá conta desta perspectiva? Quais suas implicações? A proposta de Hans Jonas,

baseada numa ética cujo princípio é o da responsabilidade, é a saída para uma nova

dimensão axiológica da tecnologia? Ou, a Ética da Libertação proposta por Dussel é o

caminho desta superação?

Isto para dizer do aprofundamento e da continuidade desta pesquisa em sentido

vertical, posto que, em sentido horizontal, levando em conta o alargamento desta discussão

entre outras áreas, entendemos que este estudo também pode propiciar outras novas

reflexões. Já, na parte introdutória, afirmávamos que esta pesquisa visava, entre outros

objetivos, impulsionar o estudo transdisciplinar de pesquisadores de outras áreas, a fim de

aprofundar a complexidade da identidade da tecnologia moderna. Para efeitos das nossas

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151

considerações finais, elencamos aqui algumas possíveis sugestões de inclusão de novas

pesquisas tendo em vista este escopo. Por exemplo:

- Um dos desafios que em nosso entendimento compete aos profissionais da

educação tecnológica a partir do panorama aqui apresentado sobre a identidade da

tecnologia moderna, consiste em pensar o ensino tecnológico à luz desta problemática. Por

exemplo: qual o papel da escola e do educador no âmbito da educação tecnológica? Ou que

espaço deve ocupar na escola a educação tecnológica?

- Em relação aos profissionais das chamadas “ciências naturais e exatas”, a

problemática pode ser colocada nos seguintes termos: como pensar o ensino da ciência, ou

a dita reforma do ensino de ciências diante de um novo referencial epistemológico e

axiológico que leve em conta o paradigma da complexidade e a ética da responsabilidade?

- No âmbito da história, da antropologia e da sociologia a problema pode ser assim

formulado: que outros desafios históricos, sociais, culturais se nos apresentam a tecnologia

na atualidade, em vista do quadro aqui apresentado em sentido filosófico sobre a gênese e a

identidade da tecnologia moderna?

- Em relação à ecologia e os profissionais desta área, quais as implicações deste

estudo na constituição do discurso ambientalista e da educação ambiental?

- Que contribuições pode trazer este estudo aos pesquisadores que discutem a

temática “Ciência, Tecnologia e Sociedade” (CTS)?

Como se observa muito há que se percorrer neste caminho. Ainda mais em se

tratando do contexto de pesquisas científicas sobre o assunto realizadas no Brasil. O

esforço de pesquisadores em realizar estudos que envolvam a temática CTS já pode ser

percebido em alguns centros de pesquisas, inclusive no Brasil (e aqui destacamos o

trabalho do Prof. Walter Bazzo na coordenação do NEPET- Núcleo de Estudos e Pesquisas

em Educação Tecnológica - na Universidade de Santa Catarina)372, mas é preciso alargar

os horizontes desta discussão para outros centros de pesquisas.

Entendemos ser este um dos desafios para nós pesquisadores brasileiros, quando

nos propomos a investigar tal temática de pesquisa. Mas entendemos também, que aí reside

372 Preocupado com as questões epsitemológicas e filosóficas que envolvem o ensino de engenharia,

o Prof. Bazzo, dedica um capítulo exclusivo de uma de suas obras tratando do tema CTS. Cf. BAZZO, Walter A. Ciência, tecnologia e sociedade e o contexto da educação tecnológica. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998, pp. 113-178. Um trabalho mais recente sobre o assunto encontra-se em artigo publicado também pelo referido pesquisador, In: BAZZO, Walter. A pertinência de abordagens CTS na educação tecnológica. Revista Iberoamericana de Educación, OEI, nº 28, Jan – Abr/2002. Disponível na Internet: http://www.campus-pei.org/revista/rie28a03.htm. Acesso em 04/10/2002.

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a justificativa de implementar e enfrentar a reflexão, sobretudo, filosófica da questão,

afinal, como bem dizia Heidegger, questionar é a devoção do pensamento.

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