Operários em construção: As experiências sindicais dos ... · um processo dialogado que deveria sempre ser desenvolvido para ... “colocarem no nosso contracheque o nome da seguradora

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    Operrios em construo: As experincias

    sindicais dos trabalhadores da construo civil de

    Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990

    YURI HOLANDA DA NBREGA

    FORTALEZA DEZEMBRO 2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    Operrios em construo: As experincias

    sindicais dos trabalhadores da construo civil

    de Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990

    YURI HOLANDA DA NBREGA

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de mestre em Histria Social Comisso Julgadora da Universidade Federal do Cear, sob orientao do Prof. Dr. Luigi Biondi

    FORTALEZA DEZEMBRO 2006

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTRIA MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    Operrios em construo: As experincias

    sindicais dos trabalhadores da construo civil

    de Fortaleza entre as dcadas de 1970 e 1990

    YURI HOLANDA DA NBREGA

    Esta dissertao foi julgada e aprovada, em sua forma final, pelo orientador e demais membros da banca examinadora, composta pelos professores:

    _____________________________________________ Prof. Dr. Luigi Biondi (Orientador UFC)

    _____________________________________________ Prof. Dr. Antonio Luigi Negro (UFBA)

    _____________________________________________ Prof. Dr. Frederico Castro Neves (UFC)

    FORTALEZA DEZEMBRO 2006

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    Agradecimentos

    Meus sinceros agradecimentos

    Aos professores do Departamento de Histria da UFC pela dedicao e conhecimentos compartilhados. Ao professor Luigi Biondi pela orientao preciosa durante o desenvolvimento da pesquisa e pacincia histrica com os atrasos nos prazos que estabelecamos. Ao professor Frederico Castro Neves pela orientao fundamental quando ainda tatevamos na constituio do projeto de pesquisa, pela disciplina ministrada no Programa, pelas reflexes feitas na banca de qualificao e ainda por participar da banca de defesa. professora Edilene Toledo pelo incentivo dado no momento da constituio do projeto de pesquisa, pelas disciplinas ministradas no Programa, pela ajuda dada em alguns momentos pessoais difceis, pelo conhecimento e pela gentileza demonstrada no trato pessoal. Aos professores Eurpides Funes e Ruth Needleman, pelas disciplinas ministradas e pelo interesse demonstrado por nossas pesquisas.Ao professor Frank Ribard, por ter gentilmente aceitado em fazer parte da banca de defesa. Ao professor Antonio Luigi Negro por ter aceitado fazer parte da banca de dissertao e compartilhar suas experincias e conhecimentos conosco. Aos companheiros dessa jornada trilhada, particularmente Lindercy, Tcito e Teresa, pelas risadas coletivas e preocupaes compartilhadas diante da presso em desenvolver nossas pesquisas. A todos os funcionrios do Departamento de Histria: sem eles, o desenvolvimento da pesquisa seria impossibilitado. A todos os intelectuais relacionados na dissertao, que nos ajudaram a refletir e expandir a nossa compreenso do mundo em que vivemos. minha famlia querida: Tain (luz de minhalma), Erika (companheira pro que der e vier), meus irmos Marcos, Ana e Jlio e meus sobrinhos: so base de tudo. minha me (mulher extraordinria) e ao meu pai, que nos deixou durante o desenvolvimento da pesquisa, deixando as nossas percepes diferenciadas quanto aos valores que realmente importam nessa vida. Aos trabalhadores da construo civil de Fortaleza, seus exemplos de vida, de lutas e sonhos que nos fazem acreditar nas enormes possibilidades de construirmos uma sociedade diferente. A voc, que est lendo essas linhas. O conhecimento no um fim em si, mas um processo dialogado que deveria sempre ser desenvolvido para transformar e melhorar as vidas das pessoas.

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    Resumo

    Esta dissertao analisa as experincias sindicais dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza no perodo compreendido entre meados da dcada de 70 e 90. Analisando as peculiaridades do mundo do trabalho na construo civil, particularmente o cotidiano operrio nos canteiros de obras, o estudo procura destacar o desenvolvimento da oposio sindical no ano de 1988 com uma proposta de reorganizao das relaes sindicais que eram desenvolvidas pela direo do sindicato desde 1976, e assim refletir sobre o estabelecimento de uma convergncia de interesses em relao aos operrios da categoria. Assim, analisamos como foram construdas as primeiras experincias nessa categoria a partir das concepes poltico-sindicais da nova diretoria: o I congresso dos trabalhadores da construo civil, as primeiras greves gerais, a elaborao do novo estatuto e suas diretrizes poltico-jurdicas, o projeto de educao popular, a construo do jornal operrio, as atividades de lazer e o desenvolvimento de redes de solidariedade nos momentos de agudizao nos embates com os empresrios do setor so algumas dessas experincias que, ao serem construdas pelos operrios, eles acabavam por se construir enquanto agentes protagonistas no seu mundo de trabalho.

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    Abstract

    This composition analyzes the syndical experiences of the workers of the civil construction of Fortaleza in the period between the 70s and the 90s. Analyzing the peculiarities of the world of the work in the civil construction, particularly the daily laborer in the seedbeds of workmanships, the study wants to detach the development of the syndical opposition in 1988 with a proposal of reorganization of the syndical relations that were developed by the direction of the union since 1976, and this way reflect on the establishment of a convergence of interests in relation to the laborers of the category. Thus, we analyze how the first experiences in this category from the politician-syndical conceptions of the new direction had been constructed: the I congress of the workers of the civil construction, the first general strikes, the elaboration of the new statute and its politician-legal lines of direction, the project of popular education, the construction of the laboring journal, the leisure activities and the development of nets of solidarity at the moments when the conflict with the entrepreneurs of the sector became hard are some of these experiences that, when being constructed by the laborers, finished for constructing themselves agents protagonists in their world of work.

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    quem faz a histria da vida com ela rompeu as entranhas no cho quem quer saber do que est escondido procura no fundo dos olhos do povo

    e dentro do seu corao vo com o vento as palavras, so como pombos-correio

    mas esto sempre atrasadas pois o seu vo lento e o meu pensamento ligeiro! (Ednardo Pastora do tempo)

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    Sumrio

    Introduo..................................................................................................... 10

    Captulo I O mundo do trabalho na construo civil: histria,cotidiano e identidade operria................................ 26

    1.1 - Um perfil histrico da indstria da construo e do trabalhador............ 27 1.2 - As (aviltantes e perigosas) condies de trabalho................................. 42 1.3 - As relaes sindicais desenvolvidas na categoria na dcada de

    1970 at 1988.......................................................................................... 59

    Captulo II Novo tempo na construo civil de Fortaleza...................... 83

    2.1 - A formao da oposio sindical: organizao, programas e propostas................................................................................................. 84

    2.2 - As eleies sindicais de 1988: entre manobras e denncias, a disputa... palmo a palmo?........................................................................ 103

    2.3 - Operrios sendo e tornando-se............................................................. 115 2.3.1 - O I Congresso dos Trabalhadores da Construo Civil...................... 116 2.3.2 - As diretrizes poltico-sindicais presentes no novo estatuto................. 122 2.3.3 - As primeiras experincias de campanha salarial e greve geral da

    categoria.................................................................................................. 136 2.3.4 - O Projeto de Educao Popular dos trabalhadores da construo

    civil........................................................................................................... 151 2.3.5 - O jornal A Voz do Peo....................................................................... 160 2.3.6 - Espaos de lazer, espaos de organizao e luta: entre festas,

    jogos, cinema e discursos polticos, o lazer operrio ressignificado....... 171

    Captulo III As relaes extra-muros estabelecidas pelo sindicato..... 178

    3.1. As relaes de alianas e/ou conflitos do sindicato com os partidos polticos.................................................................................................... 187

    3.2 Um mais um sempre mais que dois: a construo de alianas entre trabalhadores e as relaes com a CUT................................................. 209

    3.3 As relaes entre trabalhadores e capitalistas na Construo Civil: concepes e estratgias polticas entre 1990 e 1995............................ 223

    Concluso...................................................................................................... 276

    Arquivos e fontes.......................................................................................... 279

    Bibliografia.................................................................................................... 283

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    Introduo

    Em 2004, o rgo oficial de comunicao do Sindicato dos

    Trabalhadores da Construo Civil de Fortaleza divulgava na primeira pgina

    aos trabalhadores da categoria os resultados do dissdio coletivo julgado pelo

    Tribunal Regional do Trabalho do Cear. Nesse julgamento, a jornada de

    trabalho continua de segunda a sexta, sem os sete sbados, como era

    anteriormente; permaneceria o desconto de um e meio por cento do vale

    transporte e a maioria das clusulas anteriores e obrigava os patres

    colocarem no nosso contracheque o nome da seguradora na qual foi feito o

    nosso seguro de vida. Quanto ao dia do Trabalhador da Construo Civil, esse

    ns vamos comemorar como todos os anos fazemos, independente que seja

    feriado ou no.1 A comemorao seria com um torneio de futebol de campo,

    de domin em dupla, banda de forr, sorteio de brindes e banho de piscina no

    Clube do BIC Banco, em Messejana;2 nessa edio havia tambm outra

    informao: com o ttulo A CUT mudou de lado!, o Sindicato foi desfiliado da

    CUT em assemblia no dia 29 de Setembro de 2004, com a participao de

    mais de 300 trabalhadores presentes.3

    No ano seguinte, durante uma greve da categoria, dois trabalhadores

    foram baleados por seguranas privados ao fazerem piquetes num canteiro de

    obras; a conseqncia foi imediata: os trabalhadores invadiram o canteiro e

    balanaram a obra com vigor, deixando-a em estado desolador.4

    Essas experincias dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza,

    pautadas em disputas judiciais com os empresrios por interesses econmicos

    ou pelo direito de dispor para si o dia do trabalhador da categoria, na busca por

    se organizar com os movimentos sindicais e sociais que consideravam

    combativos e os mtodos de ao direta radicalizados nos conflitos dentro dos

    1 Jornal A Voz do Peo, outubro de 2004. Arquivo do Sindicato dos Trabalhadores na Indstria da Construo Civil de Fortaleza - STICCF. 2 Idem. 3 Idem. 4 Balanar a obra um cdigo utilizado pelos trabalhadores da construo civil de Fortaleza indicando a destruio de equipamentos, instalaes eltricas, paredes, materiais de construo etc.

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    canteiros de obras, so desenvolvidas desde o final da dcada de 1980,

    perodo caracterizado pela pujana dos movimentos sociais e sindicais no pas,

    constituindo-se um novo cenrio por onde os sujeitos engendravam suas

    concepes polticas e buscavam reorganizar-se para encontrar estratgias

    profcuas para a realizao de suas demandas.

    Este contexto histrico, no entanto, possui suas razes na

    reorganizao e ascenso dos movimentos sociais e sindicais brasileiros no

    final da dcada de 70, perodo de transio poltica e redemocratizao da

    sociedade brasileira aps dcadas de represso estatal. O movimento de

    reorganizao do sindicalismo brasileiro deste perodo ficou conhecido como

    novo sindicalismo ou sindicalismo autntico, termos cujo sentido contm

    uma idia de ruptura com algumas prticas e concepes que, segundo Eder

    Sader,5 para estes novos personagens que entravam em cena vinham

    marcando pejorativamente a estrutura sindical no pas durante a segunda

    metade do sculo XX.

    As propostas desses sujeitos histrico-sociais esto centradas na

    construo pela base de um instrumento forte, capaz de satisfazer os anseios

    dos trabalhadores no que diz respeito s suas demandas trabalhistas atravs

    de poderosas mobilizaes de sua categoria - condenando o assistencialismo

    de suas entidades e ressaltando a importncia da autonomia operria sindical

    frente ao Estado, burguesia e aos projetos polticos dos partidos numa crtica

    cida s concepes da velha estrutura sindical construda desde o perodo

    do varguismo: todas as experincias sindicais de meio sculo seriam, portanto,

    alocadas neste nico sentido, traduzindo as relaes entre o Estado e os

    sindicatos a partir do conceito de populismo e que, segundo Jorge Ferreira,

    pelo alargamento dos seus significados atribudos as diversas experincias e

    concepes as quais procura dar inteligibilidade, acaba por se constituir num

    conceito a-histrico.6

    As concepes propostas pelo novo sindicalismo e pelas oposies

    sindicais influenciaram profundamente os movimentos sindicais do pas,

    5 Ver SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: experincias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande So Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 6 Ver FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na poltica brasileira. In O populismo e sua histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 2001.

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    fazendo com que surgissem diversas oposies em muitas e diferentes

    categorias de trabalhadores e culminando com a construo, no incio da

    dcada de 80, do Partido dos Trabalhadores, em 1982, e da Central nica dos

    Trabalhadores, em 1983.

    Da mesma forma, o processo de formao da oposio sindical na

    construo civil de Fortaleza encontra elementos que tambm se diferenciam

    da proposta (ao menos inicial) de autonomia frente a partidos polticos.

    Enquanto que a reorganizao dos movimentos sociais e sindicais culminaria

    com a construo do PT e da CUT, a construo da oposio sindical na

    construo civil de Fortaleza desenvolvida a partir do apoio efetivo do

    Coletivo Gregrio Bezerra - CGB.

    Este coletivo tem a sua gnese a partir das divergncias internas do

    PCB no final de 1979: com a volta do exlio dos dirigentes do partido, explodem

    as lutas polticas internas que j existiam, mas que eram abafadas devido a

    sua estrutura clandestina. O tom das divergncias inclua a posio do partido

    sobre as greves do ABC paulista, j que vrios membros do Comit Central

    condenavam essas greves operrias na Voz da Unidade (semanrio legal do

    PCB), defendendo o no acirramento de tenses que poderia ocasionar um

    fechamento do regime, sob o governo do ento presidente Joo Figueiredo.7 O

    momento de ruptura ocorre no incio do ano de 1980, quando Luiz Carlos

    Prestes escreve a sua Carta aos Comunistas, cujo contedo denunciava o

    controle do que chamava de oportunismo, carreirismo e da poltica a reboque

    da burguesia e, portanto, da incapacidade (desta) de compreender a

    realidade brasileira e conclamando a uma mudana na poltica do partido por

    uma nova direo que pusesse fim a estas concepes. A resposta da direo

    teria sido inequvoca, proibindo a discusso do documento e ameaando de

    expulso os militantes que no se submetessem a sua deciso.

    A partir da impossibilidade dessa discusso interna, h um rompimento

    nacional de militantes com a inteno de organizar coletivos estaduais que

    iniciariam uma discusso interna e com outros indivduos e organizaes

    polticas objetivando a construo de um partido revolucionrio, organizado na

    7 A trajetria histrica do CGB, a sua verso sobre a sada do PCB, sua auto-definio poltica e todo o seu programa de tticas e estratgia, aqui mencionadas, so compreenses e citaes das Resolues do II Congresso Estadual do Coletivo Gregrio Bezerra do Rio de Janeiro, sem editora, de 1987.

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    concepo entendida como leninista (de vanguarda, com um rgido controle

    interno atravs do centralismo democrtico) e desenvolvendo uma interveno

    nos movimentos sociais e sindicais defendendo a revoluo proletria socialista

    como a soluo das contradies da sociedade brasileira.

    Assim, surgiriam os Coletivos Gregrio Bezerra, em 1986, de onde

    sairiam trs militantes que iniciariam a construo da oposio no sindicato dos

    trabalhadores da construo civil de Fortaleza, derrotando em 1988 o grupo

    poltico que estava frente da diretoria desde 1975.

    Esse contexto histrico em que ocorreu a reorientao das relaes

    sindicais na construo civil de Fortaleza e o desenvolvimento das suas

    experincias sindicais diferenciado daquela conjuntura poltica em que se

    iniciou o novo sindicalismo. De fato, se no final da dcada de 70 o pas vivia

    um processo de redemocratizao poltica ainda marcado pela violncia do

    Estado ditatorial e pelos grupos paramilitares formados principalmente por

    membros do exrcito e da polcia civil, que tentavam inviabilizar a abertura

    poltica atravs de diversos atos terroristas, o final da dcada de 80 foi

    caracterizado pela consagrao das liberdades polticas e civis (dentro das

    limitaes de um sistema capitalista, como se percebe claramente no episdio

    do massacre dos operrios da siderrgica de Volta Redonda, em 1988, e o

    assassinato sistemtico de trabalhadores no campo, alm de esquadres da

    morte, tortura contra presos comuns nas delegacias etc.), cujo marco simblico

    a Constituio de 1988 e o recrudescimento dos conflitos promovidos pelos

    trabalhadores do campo e da cidade contra a burguesia.

    Nesse perodo, h tambm outros elementos que condicionam as

    experincias dos operrios da construo civil de Fortaleza: a queda dos

    regimes socialistas no Leste Europeu e o final da experincia de um modelo de

    sociedade, as dificuldades de reproduo do capital no mbito da produo,

    provocando o redirecionamento cada vez maior dos investimentos para o

    mercado financeiro e atingindo o poder de presso dos sindicatos, explicitando

    as contradies dessas instituies, a fragilizao crescente das instituies

    estatais com o fim do perodo entendido por Hobsbawm como a poca de

    ouro do capitalismo (1946-1973), e assim as dificuldades dos capitalistas em

    realizar as condies para o movimento de auto-valorizao do capital,

    provocando um recrudescimento da explorao sobre os trabalhadores: todos

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    esses elementos que fazem parte do processo de recomposio orgnica do

    capitalismo mundializado, demandando uma reflexo maior dos movimentos

    sociais e sindicais nesse processo.

    As experincias sindicais desenvolvidas pelos operrios da construo

    civil so condicionadas por todos esses elementos acima expostos, e assim, o

    nosso tema ser a reconstituio das experincias sindicais dos trabalhadores

    da construo civil de Fortaleza entre meados da dcada de 1970, quando se

    inicia a redemocratizao do pas, at o ano de 1995, quando a aprendizagem

    obtida por meio das tais experincias desenvolvidas culminaria na organizao

    de uma greve geral que se tornaria um marco simblico para toda a categoria.

    Reflexes sobre estudos do movimento

    operrio sindical na histria recente

    A pesquisa realizada possui uma clara inspirao nas tradies da

    historiografia inglesa recente, representada particularmente pelos historiadores

    Edward Thompson e Eric Hobsbawm, e tambm nos historiadores brasileiros

    cujos estudos em histria social do trabalho partem de um esforo em repensar

    algumas interpretaes cristalizadas na historiografia brasileira, tais como

    Alexandre Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Cludio Batalha, e Paulo Fontes,

    entre outros, e tambm da histria poltica, tais como ngela de Castro Gomes

    e Jorge Ferreira, alm de intelectuais na rea de sociologia do trabalho e

    cincia poltica, como Ricardo Antunes e Eder Sader, respectivamente.

    Dos historiadores brasileiros mencionados, seus estudos apresentam a

    necessidade de contextualizaes que envolvam uma interdisciplinaridade, por

    exemplo, entre a histria, a economia poltica e a sociologia, cujo propsito

    seria reconstituir as experincias do movimento sindical brasileiro do sculo XX

    que fujam de explicaes generalizantes e simplificadoras, como por exemplo,

    a influncia da Teoria da Modernizao e o fenmeno do populismo,

    produtores de percepes estruturalistas e fatalistas sobre os sindicatos

    atrelados ao Estado, manipulando-os a seu bel-prazer e padronizando a

    conscincia dos trabalhadores frente a esta situao.

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    Analisando a produo historiogrfica sobre a classe operria brasileira

    dentro do perodo da nossa pesquisa, Cludio Batalha8 identifica mudanas

    significativas na trajetria dessa produo. O final da dcada de 70 e incio de

    80 foi marcado por um grande alento histria operria, devido ao novo

    sindicalismo, a liberdade acadmica, o interesse dos editores, a produo

    historiogrfica vinda do exterior (Thompson, Hobsbawm, Castoriadis etc.), e a

    mudana de enfoques. Uma grande transformao seria a histria operria

    deixando de ser confundida como a do movimento organizado: sindicatos,

    partidos, correntes ideolgicas deixariam de ocupar o primeiro plano dando

    lugar para a classe, momentos excepcionais que cederiam espao para o

    cotidiano operrio, a histria operria, que ultrapassaria os anos 30, e temas

    anteriormente no colocados ou tratados como secundrios ganhariam um

    novo espao, tais como condies de trabalho, de vida do operariado, cultura

    operria, mulheres operrias etc. Entretanto, segundo Batalha, o campo da

    histria operria chegaria ao final dos anos 80 em crise devido a fragmentao

    do seu campo de estudos e sua aproximao com outras reas, conduzindo-a

    para uma crise de identidade, alm da diminuio do interesse acadmico, a

    mudana na conjuntura, com o final das experincias do socialismo-estatista

    do Leste europeu, e o declnio do movimento operrio sindical, com alguns

    intelectuais defendendo inclusive o desaparecimento da classe operria.

    Essa crena ltima, no entanto, por ele refutada: as modificaes na

    composio orgnica do capital provocam significativas alteraes na classe

    operria, mas nada indica, neste momento, o seu desaparecimento, mas a sua

    reestruturao que desafiaria as prticas e discursos sindicais e polticos.

    De fato, Ricardo Antunes9 tambm analisa que tais modificaes

    tiveram repercusses no apenas na sua materialidade, mas tambm na sua

    subjetividade, no seu construir-se. O grande desenvolvimento cientfico-

    tecnolgico se traduziria tambm em modificaes racionalizantes em prol de

    uma maior produtividade, com conseqncias nefastas para o trabalhador e

    seus direitos trabalhistas. Porm afirma que se poderia presenciar um processo

    8 Ver BATALHA, Cludio. A historiografia da classe operria no Brasil: trajetria e tendncias. In Historiografia brasileira em perspectiva. So Paulo: Editora Contexto, 2003. 9 Ver ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. So Paulo: Editora Boitempo, 1999; e Adeus ao trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. So Paulo: Editora Cortez; Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

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    mltiplo, com uma necessidade de requalificao profissional em alguns ramos

    da indstria e diminuio da classe operria tradicional (trabalho manual), por

    um lado, e sua expressiva terceirizao, concomitante a heterogeneizao

    (trabalho feminino) e subproletarizao (precarizao), do outro.

    Sua anlise nos remete a uma percepo da prpria lgica de

    reproduo capitalista, pois esta s se realiza dentro da esfera trabalho-

    consumo e, portanto, a impossibilidade de se extinguir a classe operria

    enquanto perdurar a lgica do capital.

    Assim, o que nos interessa, a partir das reflexes de Cludio Batalha e

    Ricardo Antunes, seria tentar entender os significados dessas tendncias no

    mundo do trabalho da construo civil em relao atividade produtiva, as

    transformaes de prticas e discursos dos trabalhadores e na

    intersubjetividade das suas relaes sindicais e polticas.

    A tendncia majoritria dos sindicatos diante desse processo, segundo

    Antunes, seria o de abandono das perspectivas de transformao social e

    controle da produo, institucionalizando-se e se distanciando de suas bases,

    aderindo ao sindicalismo de participao e negociao com o Estado e os

    patres, dentro do iderio capitalista.

    Tambm analisando a trajetria terico-conceitual da historiografia dos

    movimentos sindicais, Alexandre Fortes afirma que

    "do final da dcada de 70 e incio da de 80 enfatizou a importncia

    do resgate da autonomia operria, focalizando os processos de

    resistncia explorao e de luta espontnea contraposta s

    orientaes de partidos e sindicatos. No que diz respeito ao

    sindicalismo corporativista, este deixava de ser entendido apenas

    como uma imposio do Estado ao movimento operrio, passando a

    ser tambm encarado como o resultado de contradies internas

    desse movimento, como aquele entre base e direo".10

    O autor enfatiza que na

    10 FORTES, Alexandre. Revendo a legalizao dos sindicatos: metalrgicos de Porto Alegre (1931 1945). In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1999, p. 21.

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    "medida (em) que a dcada de 80 caminhava para o seu final, a

    situao vivenciada no interior do movimento sindical passava a

    colocar em questo as teses que estabeleciam uma associao

    excessivamente estreita entre projetos polticos e caractersticas

    organizacionais dos sindicatos. De um lado, consolidava-se a

    hegemonia das correntes sindicais que pretendiam operar uma

    ruptura radical com o modelo corporativista. De outro, a

    transformao da estrutura sindical esbarrava tanto nos hbitos e

    concepes sedimentados nas rotinas internas como nas

    expectativas e demandas dirigidas pelas prprias categorias

    profissionais s suas entidades".11

    O desenvolvimento do seu raciocnio o leva a problematizar, porm, a

    persistncia de

    "muitas das caractersticas institucionais consagradas na

    Consolidao das Leis Trabalhistas (CLT): unicidade, fornecimento

    de assistncia, sustentao por meio do imposto sindical etc. Estas

    contradies (...) traziam tona os limites das abordagens

    historiogrficas sobre o processo de implantao daquela estrutura.

    medida que bases mobilizadas e direes combativas no

    representavam condies suficientes para a sua superao, difcil

    seria sustentar que sua gnese se devera apenas imposio de um

    poderoso agente heternomo, fosse ele Estado ou partido poltico".12

    Sua concluso, portanto, que se torna necessrio um reexame de

    tais processos "dando nfase na relao entre a formulao de demandas

    sociais pelos trabalhadores e seu impacto na definio da prtica sindical".13

    Assim, dialogando com Hardman,14 a construo e o desenvolvimento

    das instituies da classe operria s podem ser percebidas dentro do sistema

    de significaes culturais dos operrios e que, portanto, a burocratizao do

    11 Idem, p. 22. 12 Idem, pp. 22 e 23.13 Idem, p. 23. 14 Ver HARDMAN, Francisco F. Nem ptria, nem patro!: Memria operria, cultura e literatura no Brasil. So Paulo: Editora da UNESP, 2002.

  • 17

    sindicalismo brasileiro ocorreria de forma complexa e mltipla. Sua anlise o

    leva a problematizar as relaes entre a cultura das classes dominantes e a

    das classes subordinadas, pois a primeira seria o modelo prtico desta, sendo

    a nica que elas conhecem. Esta percepo nos parece extremamente

    estimulante, pois redimensiona os estudos de fenmenos presentes nos

    movimentos sociais, como as contradies de suas prticas e discursos pelo

    condicionamento dos valores dominantes. Assim, a persistncia de

    caractersticas do sindicalismo corporativista, tais como a contribuio sindical

    compulsria e a questo da autonomia sindical podem ser refletidas como

    resultado no somente de uma imposio do Estado, mas de contradies

    internas do prprio movimento operrio sindical, como mentalidades coletivas e

    hbitos cristalizados historicamente atravs da internalizao subjetiva de

    valores da burguesia.

    J o historiador Fernando Teixeira da Silva faz uma anlise crtica da

    chamada "teoria cupulista" de cooptao e manipulao de classe,

    questionando a abordagem de Francisco Weffort, que apesar do mrito de ser

    o pioneiro na desconstruo do modelo interpretativo das teorias da

    "modernizao" e da "dependncia", acabou por deslocar o foco das anlises

    dos eixos econmico e culturalista para o poltico. Assim, se tal perspectiva

    teria acenado para a apresentao da classe operria como sujeito histrico,

    enterrando as anlises deterministas desenvolvidas a partir de "automatismos

    estruturalistas", por outro lado o desempenho dos trabalhadores passava a

    depender fundamentalmente das avaliaes e opes polticas de suas

    lideranas.15

    Essa expectativa estaria dialogando com Eder Sader, cujas reflexes

    sobre os movimentos sociais operrios que surgem no final da dcada de 70

    significam a criao de um novo sujeito social e histrico coletivo e

    descentralizado porque criam e so criados pelos prprios movimentos a partir

    de suas prticas e discursos, sem a moral individualista burguesa ou tutela

    partidria, mas ligados Igreja, aos sindicatos e s esquerdas, instituies

    estas em crise e que procuravam refazer suas ligaes com estes movimentos.

    15 SILVA, Fernando Teixeira. Direitos, poltica e trabalho no Porto de Santos. In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991, p. 56.

  • 18

    Eder Sader utiliza o conceito de sujeito coletivo no sentido de uma coletividade

    protagonista da sua identidade, organizando prticas nas quais seus membros

    defendem seus interesses e expressam suas vontades, constituindo-se nessas

    lutas e recriando espaos polticos novos: a experincia do cotidiano.16

    Por ltimo, algumas reflexes de Hlio Costa nos parecem pertinentes

    para algumas concepes que possumos do novo sindicalismo. Analisando o

    que chama de progressivo processo de enquadramento da memria dos

    trabalhadores no perodo anterior a 1964, ele tece crticas viso

    historiogrfica da era populista: tratar-se-ia de um sindicalismo em que os

    trabalhadores seriam refns da poltica ditada por suas lideranas.17 E,

    referindo-se a Marcelo Badar, argumenta que este

    salienta como a imagem cupulista do sindicalismo no pr-64

    cristalizou-se ainda mais a partir do reaquecimento das lutas

    operrias no final da dcada de 70, que mais tarde desembocaram

    no fortalecimento e na consolidao do chamado novo sindicalismo.

    Conforme o autor, a idia do novo foi cunhada em dois sentidos:

    primeiro, no contraponto ao peleguismo esto predominante no

    movimento sindical e segundo, na oposio ao velho sindicalismo

    vigente at 64. Carregada de juzos de valor, a oposio entre velho

    e novo, foi sendo paulatinamente cristalizada no meio acadmico.18

    Todavia, o chamado novo sindicalismo no teria sido capaz, segundo

    sua anlise, de acabar com muitos dos fundamentos que caracterizam o

    sindicalismo pr-64, preservados at hoje; citando novamente Marcelo Badar,

    este observa que

    as distintas expectativas sobre suas novidades, manifestadas

    sobretudo entre 1978 e meados de 1980, bem como as mais rspidas

    crticas a no efetivao de seu potencial transformador, que

    emergiram nos anos 90, pautaram-se igualmente pela construo de

    16 Ver Sader, Eder. Op. Cit.17 COSTA, Hlio. Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em So Paulo (1943-1953). In Na luta por direitos: leituras recentes em histria social do trabalho. Campinas: Editora da UNICAMP, 1991, p. 90. 18 Idem, ibdem.

  • 19

    uma caracterizao negativa do movimento sindical anterior ao

    golpe. Este era tomado como parmetro, do qual o novo sindicalismo

    primeiro se distanciaria (despertando esperanas), para mais tarde

    se mostrar pouco diferente (gerando decepo).19

    Metodologias, fontes e captulos

    Se a fragmentao do campo de estudo e a aproximao com outras

    reas conduziu a histria operria a uma crise de identidade, por outro lado,

    segundo Cludio Batalha,20 esta se beneficiou da diversificao das fontes

    tradicionais (jornais, textos literrios e outras fontes escritas), com o recurso s

    fontes judiciais, documentao policial, aos arquivos de empresa, histria oral

    etc. e a prpria forma de utiliz-las, em relao abordagem do tema.

    Alm disso, por se tratar de um tema recente, a enorme variedade de

    fontes por ns verificadas constituiu-se num grande desafio em cruz-las, e

    assim podermos obter o conhecimento pretendido. Dentre essas fontes,

    destacamos aquelas que teriam sido emitidas pelo sindicato dos trabalhadores

    da construo civil, tais como atas de reunio, de assemblia, de eleio

    sindical, relatrio do projeto de educao popular, o jornal do sindicato A Voz

    do Peo, trs estatutos da entidade, feitos nos anos de 1975, 1989 e 1993,

    panfletos informativos por ocasio de greves ou convocao para eventos e

    boletins propagandsticos da oposio sindical nas eleies para a renovao

    da diretoria do sindicato no ano de 1988; tambm utilizamos depoimentos

    transcritos de trabalhadores, diretores e ex-diretores por ocasio do I

    Congresso da categoria, em 1989, e de uma entrevista com o ento diretor

    sindical Jnio Vidal, em 1994, feitas pelo pesquisador Jos Ernandi Mendes,

    que doou esse material para o sindicato dos trabalhadores.

    Outras fontes arquivadas no sindicato seriam aquelas emitidas pela

    Justia do Trabalho, como um processo de expulso de um trabalhador do

    quadro de associados, em 1982, acordos, convenes e dissdios coletivos por

    ocasio de greves e das campanhas salariais da categoria.

    19 MATTOS, Marcelo Badar apud COSTA, Hlio. Op. Cit., p. 91.20 Ver BATALHA, Cludio. Op. Cit.

  • 20

    Pesquisamos tambm na Biblioteca Menezes Pimentel edies de

    jornais da grande imprensa, tais como O Povo, Dirio do Nordeste e Tribuna do

    Cear, compreendidos entre o ano de 1982 a 1995.

    No Instituto de Desenvolvimento do Trabalho - IDT/CE, pesquisamos

    estatsticas de dados econmicos e sociais sobre o setor da construo civil

    em Fortaleza e sobre seu trabalhador. Estas estatsticas versam sobre a

    quantidade de trabalhadores, o gnero, o nmero de trabalhadores divididos

    por funes, idade, escolaridade, a representao perante a economia geral e

    o nmero de desempregados em Fortaleza, no perodo entre 1988 a 1993. E

    por ltimo, do Anurio Estatstico do Brasil, produzido pelo IBGE, pesquisamos

    dados sobre a participao da construo civil no PIB do pas.

    Deste modo, ao reconstituir as experincias dos trabalhadores da

    construo civil de Fortaleza, partimos de sinais e indcios deixados

    intencionalmente ou no por aqueles que vivenciaram o processo sobre o qual

    nos debruamos. Estas fontes tambm so relacionadas a elementos

    subjetivos, como comportamentos, hbitos, rituais, aspiraes etc., exigncias

    protocolares, forma de conduo de reunies, de assemblias, o modo como

    dialoga um diretor com outro, ou com um trabalhador, a construo das

    experincias sindicais, as exigncias de uma conduta a ser obedecida (ou no)

    tornaram-se indcios que proporcionaram um determinado tipo de

    conhecimento histrico.

    Assim procuramos desenvolver cuidados em no cairmos em

    armadilhas que poriam em risco a inteligibilidade do processo histrico; uma

    delas, comum histria do tempo presente segundo Chartier, seria a liberdade

    voluntria de mulheres e homens no fazer-se histrico, desprezando as

    circunstncias e os condicionamentos (em uma palavra, processo e estrutura)

    que limitam as possibilidades de suas escolhas e desejos.

    Tambm nos utilizamos da memria e da histria oral como partes da

    problemtica, e assim percebendo-as como matrizes de significados. A

    importncia delas no estaria necessariamente na veracidade daquilo que os

    sujeitos histricos lembram ou dizem, mas como e porque lembram,

    compreendendo que, mesmo quando as lembranas esto erradas, elas

    esto psicologicamente certas. A construo de mltiplas maneiras de

    record-las em desafio histria, o que de fato teria acontecido, tornando a

  • 21

    memria como um campo de tenses, uma arena de conflitos que envolvem a

    prpria identidade individual e coletiva dos sujeitos.

    Refletindo a partir das consideraes de Alessandro Portelli,21 no se

    trata de esnobar os depoimentos das pessoas porque constroem verses que

    no refletem o que teria acontecido, mas tentar explicar o porqu dessa

    construo, os rituais e os smbolos que emergem desse processo,

    problematizando a memria e extraindo significados da percepo que os

    indivduos possuem de si e da sua histria. Nesse sentido, perceber a memria

    em constante movimento, que constitui processos sociais compartilhados e

    conflituosos e que se assume, portanto, como um fato da histria.

    A construo de memrias, pois, demanda uma escolha de valores,

    uma tomada de posio e a insero poltica do indivduo no mundo. H,

    portanto, um forte componente de identidade pessoal e pertencimento social.

    Quando a memria foi redimensionada como uma arena de lutas

    polticas, a histria oral adquiriu um status de respeitabilidade cada vez maior

    entre a comunidade dos historiadores.

    A utilizao da histria oral se desenvolve na medida em que se

    alargam os objetos e os campos de estudo da histria. A vida cotidiana, a

    histria domstica, das mulheres ou da famlia so exemplos que podem ser

    melhor refletidos com a sua utilizao. Isso no foi feito de maneira pacfica: os

    historiadores sociais que utilizavam fontes orais tiveram que enfrentar a

    desconfiana e as crticas de muitos historiadores, algumas bem pertinentes,

    principalmente quando alguns trabalhos utilizavam-nas de forma no-rigorosa,

    sem o entrecruzamento com outras fontes, ou percebendo-as de maneira

    objetiva, como se os relatos demonstrassem a veracidade dos fatos por si, ou

    quando se perde a viso totalizante do processo histrico, ou ainda como uma

    alternativa histria oficial, como se a mera utilizao das fontes orais

    produzisse uma outra verso necessariamente diferente. Da mesma forma,

    algumas dessas utilizaes careciam de um maior refinamento para o seu

    21 Ver Portelli, Alessandro. O massacre de Civitella Val de Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e poltica, luto e senso comum. In: Usos & abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; As fronteiras da memria: o massacre das fossas ardeatinas. Histria, mito, rituais e smbolos. Revista Histria & Perspectivas. Uberlndia, MG: n 25 e 26, 2001; Sonhos Ucrnicos. Memrias e possveis mundos dos trabalhadores. Revista Projeto Histria, n 10. So Paulo: 1993; Forma e significado na Histria Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Revista Projeto Histria, n 14, 1997.

  • 22

    desenvolvimento plenipotencirio, e os historiadores sociais passaram ento a

    refletir sobre a sua metodologia.

    As fontes orais no devem ser pensadas como alternativas aos

    documentos escritos, mas ambos devem interagir continuamente de forma a

    ampliar os seus significados. Alessandro Portelli reflete que a histria oral nos

    informa menos sobres eventos que sobre significados (o que no quer dizer

    que ela no tenha validade factual). Portanto o man da histria oral est na

    possibilidade de entender a subjetividade das pessoas, no apenas o que elas

    fizeram, mas o que queriam fazer, o que acreditavam estar fazendo e o que

    agora pensam que fez. Dessa forma, as narrativas podem abstrair significados

    que seriam mais difceis de obter nos documentos escritos.

    Seguindo o raciocnio de Walter Benjamin, um dos problemas

    intrnsecos histria oral a tenso entre a narrativa oral, livre e selvagem, e a

    escrita, presa e domada. De fato, o surgimento da narrativa escrita ocorre

    historicamente a partir do advento da civilizao, da perspectiva da construo

    da ordem, do controle das experincias humanas, da administrao das

    relaes de explorao e suas conseqentes diferenciaes sociais.

    Essa reflexo histrico-filosfica pertinente se refletirmos na

    contradio entre os relatos orais e a transcrio escrita. O discurso oral, por

    envolver elementos da tradio e da memria das pessoas, torna-se impossvel

    de ser plenamente captvel quando se torna um texto escrito. Isso ocorre

    simplesmente porque no se pode transcrever plenamente as experincias dos

    narradores. Quando o relato retirado do contexto em que ele foi produzido,

    ele passa a ser responsabilidade do historiador, que ir mold-lo e interpret-lo

    a partir da sua subjetividade (e legtimo que isso seja feito, caso contrrio no

    haveria a produo do conhecimento). No entanto, por possurem lgicas

    dimensionais distintas, a narrativa perde a sua caracterstica selvagem: os

    signos se transformam em sinais, e a narrativa situa-se como um peixe fora

    dgua.

    Isso ainda mais explcito se a transcrio for feita por outra pessoa,

    ou se um historiador utilizar fontes orais de uma outra pesquisa, j que a

    performance, as exaltaes, as entonaes, os lapsos, as divagaes, o que

    dito ou no e com que nfase, a hesitao, enfim, os elementos psicolgicos e

    psicossociais que envolvem o dilogo entre o historiador e os narradores

  • 23

    tambm so de grande importncia. Assim, sabendo da importncia disso,

    percebemos que as entrevistas transcritas de trabalhadores e diretores do

    sindicato da construo civil e citaes que tambm fizemos de outras

    pesquisas possuem estas importantes limitaes.

    Por ltimo, a escolha do historiador em utilizar fontes orais tambm

    uma opo poltica. Como a maior parte dos documentos escritos foi emitida

    por instituies e entidades que mantm o controle em suas sociedades (o que

    no quer dizer que no se possa criar estratgias para perceber os setores

    oprimidos nesses documentos), os relatos podem possibilitar um encontro

    direto com eles. Para Mikhail Bakhtin,22 a perspectiva dialogal da narrativa

    possui uma dimenso social importantssima, pois o prprio trabalhador iria

    pensar sobre si, idia esta que nos remete proposta marxiana de acabar com

    a separao entre o pensar e o trabalhar.

    Nessa perspectiva do materialismo histrico, a fala , portanto, prxis.

    Ela a palavra (sinais) em movimento (signos), adquire um potencial

    subversivo por sua dimenso libertria. Ela prxis porque remete a dimenso

    da vida concreta, pois no trabalho com a histria e a memria orais, estas

    partem de uma atmosfera social concreta.

    O captulo 1 da dissertao procura adentrar o mundo do trabalho na

    construo civil em geral e em Fortaleza, particularmente. Os subsetores da

    construo, a caracterizao manufatureira do subsetor de habitaes e a

    diviso social do trabalho nos canteiros de obras so de grande relevncia para

    a familiarizao das peculiaridades inerentes ao trabalho e ao prprio

    trabalhador da categoria, particularmente a questo da sua rotatividade nesse

    setor produtivo e as frgeis relaes estabelecidas com os empresrios. Assim,

    desenvolvemos um perfil histrico-social dos trabalhadores que compem o

    nosso objeto de estudo: os profissionais e os serventes, cuja maioria formada

    por migrantes com pouco conhecimento escolar, sendo esta caracterstica o

    principal motivo para a sua entrada neste setor de produo, alm do cotidiano

    de trabalho nos canteiros, as condies de trabalho e as relaes dos

    trabalhadores com os engenheiros e mestres de obras. O captulo termina com

    22 Ver BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo: Editora HUCITEC, 1995.

  • 24

    a reconstituio das relaes sindicais desenvolvidas entre a categoria e a sua

    direo sindical a partir de meados da dcada de 1970 a 1988.

    No captulo 2, reconstitumos o contexto histrico da sociedade e a

    formao da oposio sindical na construo civil em 1988, desenvolvendo um

    perfil histrico de alguns membros e suas experincias de vida, os embates

    entre as concepes poltico-sindicais da diretoria e da oposio, as eleies

    sindicais e o desenvolvimento das relaes scio-polticas com os

    trabalhadores da categoria, as primeiras experincias sindicais dos

    trabalhadores, tais como a discusso do novo estatuto da entidade, as

    primeiras experincias de greve geral e os embates contra os empresrios, a

    construo dA Voz do Peo, do projeto de educao popular e os espaos de

    lazer desenvolvidos pela diretoria sindical, compreendendo, portanto, como tais

    experincias teriam sido gestadas, quais as intencionalidades dos sujeitos

    envolvidos e como se desenvolviam as relaes entre a direo e a base.

    E por ltimo, no captulo 3, desenvolvemos uma compreenso sobre as

    relaes estabelecidas pelos membros do sindicato e a categoria com outras

    entidades, instituies e movimentos sociais e sindicais. Assim, analisamos as

    relaes entre foras polticas e o sindicato dos trabalhadores da construo

    civil de Fortaleza e sua categoria, compreendendo as tenses, as influncias e

    o estabelecimento dos espaos sociais entre si. A concepo poltico-sindical

    que os membros do sindicato iriam procurar expressar objetivava o

    desenvolvimento por parte dos trabalhadores de uma conscincia de classe

    anticapitalista e a construo de estratgias de embates que variavam de

    alianas com outros segmentos da sociedade, atravs do estabelecimento de

    redes de solidariedade, imprescindveis nos momentos de embates mais

    agudos, e tambm de manobras, blefes, falsas deferncias e mesmo aes

    diretas radicalizadas; assim, analisamos como os operrios da construo civil

    compreendiam essa concepo norteadora das intencionalidades da sua

    direo e como teriam construdo uma greve que faz parte do seu imaginrio

    poltico: a greve de 1995.

    O incio dos captulos vem acompanhado de citaes musicais do

    perodo por ns refletido e que nos remetem s anlises que sero feitas um

    tributo pela companhia feita durante as madrugadas em que escrevamos a

    pesquisa.

  • 25

    Captulo I

    O mundo do trabalho na construo civil:

    histria, cotidiano e identidade operria

    Quem o trabalhador da construo civil de Fortaleza na segunda

    metade do sculo XX? Como e por que ele entrou para este mundo do

    trabalho? Quais so as peculiaridades deste setor da produo e como elas se

    relacionam com as mentalidades dos operrios, criando e recriando um

    imaginrio psicossocial de si mesmos e do prprio trabalho que realizam?

    Estas so algumas das problematizaes que procuramos explicar

    neste momento. Compreender quem so os trabalhadores, o seu cotidiano de

    trabalho nos canteiros de obras e as relaes de poder dentro deles so

    importantes, j que desejamos saber sobre a identidade operria que

    constroem de si e da categoria que fazem parte.

    Esses elementos so imprescindveis para a compreenso de suas

    demandas relacionadas ao trabalho que executam, tendo assim o seu sindicato

    assumindo um papel estratgico (mas no nico) para a realizao delas.

    Deste modo, entender como os trabalhadores se relacionavam com os

    membros da diretoria da sua entidade no contexto do regime militar e da

    progressiva redemocratizao da sociedade, a percepo que estes possuam

    dos trabalhadores, as concepes poltico-sindicais e os encaminhamentos

    com os quais pretendiam responder s demandas da categoria possibilitou-nos

    entender o contexto e o processo histrico-social desenvolvido nas relaes

    sindicais na categoria e o momento de ruptura verificado nas eleies sindicais

    de 1988.

  • 26

    1.1 Um perfil histrico da indstria da construo e do trabalhador

    (...) chegando de madrugada na chapada de cimento

    procurando com os olhos o que no fingimento

    assustado de ver o medo no olhar do

    companheiro

    procurando saber dos segredos desse curral

    grande de gado sem boiadeiro (...)

    (Ednardo Boi Mandigueiro)

    A partir da segunda metade do sculo anterior a cidade de Fortaleza

    experimentava um rpido processo de crescimento populacional e urbanstico,

    alcanando a condio de regio metropolitana com a incorporao das

    chamadas cidades-dormitrio (Caucaia, Maranguape, Maracana e

    Pacatuba), concentrando 28% da populao do estado, com quase um milho

    e 800 mil habitantes, segundo o censo demogrfico de 199123.

    Nesse processo de crescimento acelerado, a cidade passou por

    inmeras transformaes de sua feio: bairros novos emergiram como que do

    nada - com ou sem o apoio das instncias governamentais, com novas ruas e

    avenidas cortando a cidade, alm do recrudescimento dos problemas infra-

    estruturais, tais como o saneamento pblico, os transportes, a sade e

    educao pblicas, as moradias populares, o sistema de empregos etc.

    Todo esse processo de crescimento urbano foi em grande parte

    estimulado pelas correntes migratrias interioranas do prprio estado,

    fenmeno social cujas razes esto ligadas ao processo de concentrao e

    centralizao urbanas que se verificou no apenas em Fortaleza, mas tambm

    em outras cidades brasileiras da poca, corroborando para o desenvolvimento

    de grandes metrpoles a partir da segunda metade do sculo passado.

    Assim, por demais evidente que tambm em Fortaleza, dentre os

    diversos ramos da produo, a indstria da construo civil torna-se um dos

    23 Censo demogrfico da cidade de Fortaleza. Dados do IBGE de 1991.

  • 27

    setores estratgicos para o crescimento e desenvolvimento do pas. Quando

    verificamos os dados do IBGE para a formao do PIB nacional, temos24:

    ANO Participao da CONST. CIVIL no PIB

    1988 6,92%

    1989 7,38%

    1990 6.89%

    1991 6,53%

    Tabela 1. Fonte: Anurio estatstico do IBGE, Rio de Janeiro, 1992.

    Segundo Marta Farah, este ramo industrial est dividido no Brasil em

    trs subsetores:

    O subsetor construo pesada inclui entre suas atividades a

    construo de infra-estrutura viria, urbana e industrial

    (terraplanagem, pavimentao, obras ligadas construo de

    rodovias, de aeroportos e da infraestrutura ferroviria, vias urbanas

    etc.); a construo de obras estruturais e de arte (pontes, viadutos,

    conteno de encostas, tneis etc.); de obras de saneamento (redes

    de gua e esgoto); de barragens hidroeltricas; a perfurao de

    poos de petrleo etc. O subsetor montagem industrial, por sua vez,

    o responsvel pela montagem de sistemas de gerao,

    transmisso e distribuio de energia eltrica, de sistemas de

    telecomunicaes, pela montagem de sistemas de explorao de

    recursos naturais etc. O subsetor edificaes, finalmente, inclui entre

    suas atividades a construo de edifcios residenciais, comerciais,

    institucionais e industriais; a construo de conjuntos habitacionais; a

    realizao de partes de obras, por especializao, tais como

    fundaes, estruturas e instalaes, e ainda a execuo de servios

    complementares, como reformas.25

    24Alm da construo direta desses valores, este ramo de atividade tambm responsvel pelo desenvolvimento de outros setores, como a indstria de transformao, que fornece matrias primas para a realizao da construo civil. 25 FARAH, Marta F. S. Processo de trabalho na construo habitacional: tradio e mudana. So Paulo: Editora ANNABLUME, 1996, p. 52.

  • 28

    Como a nossa pesquisa tem como objeto de estudo os trabalhadores

    da construo habitacional de Fortaleza, sobretudo este ltimo subsetor que

    assume uma importncia maior de reflexo. Citando Islede Arruda sobre

    algumas especificidades deste:

    A construo de edificaes tem como mercado alvo o setor

    privado, sendo que grande parte destas construes s se torna

    acessvel populao caso haja participao do Estado, mediante

    concesso de financiamentos, atravs da utilizao de recursos

    provenientes de suas fontes de capacitao: cadernetas de

    poupana e FGTS. Este subsetor caracterizado como o segmento

    da construo onde as mudanas no plano tecnolgico e

    organizacional se processam de forma mais lenta. 26

    Esta citao importante porque, como analisaremos posteriormente,

    as polticas governamentais para o setor da construo influenciam

    decisivamente na sua oferta de empregos, alterando fortemente os aspectos

    relacionados ao mundo do trabalho do subsetor da construo habitacional

    inclusive as relaes sindicais.27 Assim, procurando compreender como as

    mudanas tcnicas e organizacionais provocam tais modificaes nas relaes

    de trabalho no setor da construo civil a partir da segunda metade do sculo

    XX, a sociloga faz uma reflexo a partir da anlise de Nilton Vargas sobre

    este subsetor, registrando que neste segmento ocorre

    um processo produtivo onde h o predomnio do trabalho manual,

    configurando-se, assim, como uma base manufatureira. Nesse

    processo de construo convencional no se pode dizer que a base

    tcnica seja artesanal, dado que o ofcio do arteso pressupe a

    fabricao de um objeto como um todo o que exige uma alta

    qualificao, tanto manual quanto intelectual no havendo

    separao entre concepo e execuo. No caso especfico da

    construo, o trabalho j se encontra parcelado, havendo uma 26 ARRUDA, Islede Gomes. A mo que faz a obra: um setor em mudana e um novo cotidiano em discusso. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. Fortaleza: 1993, p. 33. 27 Quando analisarmos as relaes entre os sindicatos dos trabalhadores e o patronal, no contexto do Plano Collor, poderemos apreender melhor essas influncias. Ver o captulo III, ponto 3.

  • 29

    diviso tcnica do trabalho bastante complexa. Nesse sentido, h

    uma desqualificao operria, onde o exerccio da funo se d por

    determinao de outrem, ao mesmo tempo em que a dependncia

    do setor fora de trabalho humana faz com que esta categoria seja

    a mola propulsora do processo produtivo.28

    Portanto, o trabalhador dispe de uma importncia que lhe

    potencializaria um relativo poder dentro dos canteiros de obras. Afinal, o

    trabalho braal, trao fortemente peculiar deste setor ainda na segunda metade

    do sculo XX, no pde ser facilmente substitudo por mquinas, fazendo-se

    necessrio por parte dos empresrios e seus lugares-tenentes nos canteiros o

    desenvolvimento de estratgias de domnio para fazer frente a estas

    perspectivas, como veremos adiante.

    Outro predicado deste setor possibilitar a gerao de renda com a

    criao de empregos para setores sociais com pouca qualificao profissional,

    a ponto de representar, sozinha, cerca de 5% da populao economicamente

    ativa de Fortaleza, que no incio da dcada de 1990 situava-se em torno de

    pouco mais de 500 mil habitantes29.

    Quando percebemos os indicadores mdios anuais de ocupao por

    setores de atividades, entre os anos de 1988 e 1991, temos:

    ANO SUBSETOR DE

    ATIVIDADE 1988 1989 1990 1991

    Indstria de

    transformao 16,52 18,17 17,71 16,09

    Construo Civil 4,96 5,01 4,64 4,75

    Comrcio 21,10 20,48 23,44 25,56

    Servios 42,00 43,93 45,34 44,65

    Outros 15,42 12,42 8,87 8,95

    Total 100,00 100,00 100,00 100,00

    Tabela 2. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.

    28 VARGAS, Nilton. Organizao do trabalho e capital um estudo da construo habitacional. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1979. Apud ARRUDA, Islede G., op. cit., p. 35. 29 Destes, cerca de 52% eram de empregos informais, e 48%, formais. Dados emitidos em 2005, pelo Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT/CE). Este rgo, criado em 1998, uma organizao social no-governamental qualificada para a realizao de polticas pblicas na rea do trabalho, a partir das aes do programa SINE (Sistema Nacional de Emprego).

  • 30

    Adentrando o mundo do trabalho na construo civil, percebe-se a

    imensa variedade de funes desempenhadas: desde engenheiros, arquitetos,

    pessoal de escritrio (praticamente a nica funo desempenhada pela mo de

    obra feminina), mestres de obras, encarregados, e aqueles que compem o

    nosso objeto de estudo pedreiros, carpinteiros, pintores, armadores,

    eletricistas, estucadores, serventes etc. Cada uma dessas funes exercida

    por um dos trabalhadores atravs de etapas, onde o trabalho de um s pode

    ser iniciado aps a realizao anterior do trabalho de outrem. Assim, o

    servente, por exemplo, carrega a matria prima para o estucador, que prepara

    a massa feita com gesso, gua e cola que ser utilizada pelo pedreiro na

    construo das paredes, mas isso aps o ferreiro-armador erguer a infra-

    estrutura de metal, sob a qual a parede ser erigida.

    Este ramo da produo cresceu tanto em novas empresas do setor,

    como tambm em operrios que nelas trabalhavam, a ponto de, em 1988,

    aproximadamente vinte mil operrios trabalharem formalmente na indstria da

    construo civil em Fortaleza, recebendo uma baixa remunerao pelos seus

    esforos em erguer a cidade, alm de cerca de seis mil trabalhadores, que

    trabalhavam informalmente. Os dados oficiais atentam para a imensa

    rotatividade dos trabalhadores nos canteiros de obra, o que confere a esta

    categoria condies especiais prprias de organizao.

    Esse trabalho dirio executado, portanto, em troca de um pagamento

    em mdia de 1,72 do salrio mnimo em 198830, mas esta estatstica leva em

    considerao os salrios maiores recebidos por funes tcnicas ou de

    gerenciamento nos canteiros de obras, como a dos desenhistas, encarregados

    ou mestres de obras, por exemplo. De fato, como veremos adiante, o salrio

    mdio dos principais profissionais que compem o nosso universo reflexivo se

    situa numa mdia pouco maior de um salrio mnimo, e isso sem contar com os

    serventes, cuja renumerao quase sempre no chega a ser de um salrio

    mnimo. 31

    30 Dados fornecidos pelo Instituto de Desenvolvimento do Trabalho IDT/CE em 2005. 31 Os serventes so trabalhadores que normalmente no possuem nenhum saber especfico das diversas funes neste ramo. Seriam basicamente aqueles trabalhadores recm chegados do interior, ou de outras profisses, ou ainda aqueles que se iniciam no mundo do trabalho. O

  • 31

    Da mdia de idade dos operrios, reproduzimos abaixo uma tabela

    com as suas especificaes:

    Faixa Etria Construo Civil

    10 a 14 anos 09

    15 a 17 anos 112

    18 a 24 anos 4.436

    25 a 29 anos 3.805

    30 a 39 anos 5.805

    40 a 49 anos 3.066

    50 a 64 anos 1.747

    65 anos ou mais 69

    Ignorado 249

    Total 19.298

    Tabela 3. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.

    Podemos perceber, portanto, que o maior nmero de trabalhadores

    est situado entre aqueles que acabam de deixar a adolescncia e aqueles que

    j esto na faixa dos trinta anos, e assim j enfrentam problemas para se

    empregarem em outros ramos de atividade:

    (...) Eu sou de Jaguaribe, e antes de vir pra c, eu tinha trabalhado

    na Cione (fbrica de leo de castanha), ali perto de Quixad, no

    Tringulo. L foi o meu primeiro trabalho com carteira assinada, eu

    comecei a trabalhar com carteira muito tarde, antes eu trabalhava,

    mas sem carteira. E isso ruim pra gente se aposentar, n? A eu

    vim pra Fortaleza. 32

    Desta forma, a construo civil seria uma porta de entrada para os

    jovens trabalhadores no mundo do trabalho, sendo assim uma oportunidade

    para aqueles que procuram por um primeiro emprego, como tambm para

    servio executado o de carregar as ferramentas, as matrias primas, ou faz-las chegar aos outros profissionais etc. 32Depoimento de Eluizito Alves, carpinteiro e ex-diretor sindical entre 1988-1991, dado em 2006.

  • 32

    aqueles que, devido sua idade mais elevada para os padres do mercado,

    teriam dificuldades suplementares de arranj-lo em outro ramo de atividade

    industrial e contando com proteo dos direitos da carteira de trabalho.

    Essa caracterstica est relacionada com o fato de que a experincia

    nesse ramo pode influir menos na obteno de um emprego em relao a

    outras atividades industriais principalmente na funo dos serventes, que

    compem cerca de um quarto dos trabalhadores33, configurando-se no maior

    grupo neste setor.

    Porm, uma das caractersticas mais intensas do perfil humano desta

    categoria seria a de trabalhadores advindos das correntes migratrias rurais,

    absorvidos pela necessidade de um grande nmero de trabalhadores para a

    execuo das obras. Esta caracterstica pode ser aproveitada pelos

    empresrios para aumentar a explorao sobre estes trabalhadores, cuja

    grande maioria se emprega como serventes:

    Eu vim do interior, peguei um nibus. Um empreiteiro, o cara fez o

    que quis comigo, trabalhei 22 dias, um ms, eu no estou bem

    lembrado, e me mandou embora, me mandou procurar meus direitos

    trabalhistas. Eu nem sei andar, onde ser o lugar que a gente

    procura a lei?. 34

    Percebe-se, na fala do trabalhador, que a sua inexperincia para a

    realizao do trabalho na categoria e tambm no estranhamento com a

    realidade com a qual se depara nesse ambiente urbano constitui-se num

    empecilho para a busca dos seus direitos, e que tal fato se constitui tambm

    numa oportunidade de abuso dos empresrios. No estamos querendo afirmar

    que os trabalhadores no conseguem se organizar devido a uma pretensa

    ingenuidade em se deparar com um meio que lhes um tanto estranho, como

    expressaram diversos cientistas sociais que se propuseram a analisar a

    organizao dos trabalhadores provenientes de migraes dentro ou entre os

    estados, durante a segunda metade do sculo passado. Como j refletimos na

    33 Segundo Islede Arruda, em Fortaleza o percentual mdio desta funo situa-se em 27% na dcada de 1980. 34 Depoimento de um operrio que trabalhava como servente. Apud Mendes, Jos Ernandi. Trabalhadores da construo civil de Fortaleza: uma histria de luta e aprendizado. Dissertao de Mestrado em Educao, UFC. Fortaleza: 1994, p. 129.

  • 33

    introduo da pesquisa, queremos apenas afirmar que esta situao confere

    caracteres prprios nas relaes desenvolvidas entre capitalistas e

    trabalhadores, contribuindo para a constituio do cenrio aonde se

    desenvolve a nossa histria, e condicionando as maneiras com as quais os

    sujeitos coletivos construiro as suas estratgias para obter aquilo que

    intencionam. O historiador Paulo Fontes afirma que

    a influncia da origem rural como fator explicativo estrutural para

    uma suposta passividade e ausncia de iniciativa poltica dos

    trabalhadores nos pases de acelerada industrializao e

    urbanizao da Amrica Latina atravessou fronteiras e tornou-se um

    paradigma analtico largamente influente, particularmente aps a

    derrota do movimento operrio com o golpe militar de 1964 no Brasil

    e os que o seguiram seus passos nos anos seguintes na Amrica

    Latina (...) Os novos trabalhadores urbanos recm sados do campo,

    em matria de ao poltica, entenderiam apenas a liderana pessoal

    e o paternalismo. Seus laos familiares e comunitrios seriam teis

    para sua mudana e instalao na grande cidade, transferindo

    tradies camponesas de ajuda para o mundo urbano, mas

    certamente no os auxiliariam como um guia poltico35

    Assim, tambm queremos corroborar com a problematizao das

    matrizes interpretativas que simplificam as aes e relaes poltico-sociais dos

    trabalhadores com a burguesia e o Estado brasileiros, partindo ento de uma

    perspectiva onde os trabalhadores, mesmo possuindo uma origem rural e com

    a possibilidade de no terem um saber escolar desenvolvido, constroem com

    inteligibilidades os mecanismos que os orientam dentro do novo contexto com

    o qual se deparam, e assim tais caractersticas no so impeditivas para o

    desenvolvimento de conscincias de classe que possam ter uma lgica de

    confrontao.

    De fato, estas caractersticas estariam presentes na identidade coletiva

    dos trabalhadores da construo civil de Fortaleza. Nos documentos de filiao

    ao sindicato, nos relatos dos atuais dirigentes e de ex-dirigentes, nos trabalhos

    35 FONTES, Paulo R. R. Comunidade operria, migrao nordestina e lutas sociais: So MiguelPaulista (1945-1966). Tese de Doutorado em Histria, UNICAMP. So Paulo: 2002, p. 18.

  • 34

    desenvolvidos nos programas de ps-graduao, nos depoimentos dos

    trabalhadores etc., estes so em sua maioria pessoas vindas do campo,

    fugindo das secas e das difceis condies de vida, ou descendentes daqueles

    migrantes que vieram tempos atrs, em busca de melhores condies de

    sobrevivncia.

    A maioria desses migrantes no possui um grau avanado de

    escolarizao, o que explica sua entrada relativamente fcil na construo civil,

    proporcionada pela dispensabilidade de conhecimentos e diplomas de

    instituies de ensino, como podemos perceber na tabela abaixo relativa ao

    ano de 1988:

    Escolaridade Masculino Feminino

    Analfabeto 2.793 39

    Fundamental menor

    incompleto 9.917 77

    Fundamental menor completo 2.373 28

    Fundamental maior

    incompleto 733 26

    Fundamental maior completo 496 50

    Ensino mdio incompleto 341 72

    Ensino mdio completo 736 364

    Superior incompleto 159 59

    Superior completo 391 92

    Ignorado 577 29

    Total 18.462 836

    Tabela 4. Fonte: IDT/CE, Fortaleza, 2005.

    Se a dispensabilidade de um saber sistematizado de educao

    estimula a entrada de pessoas que no o possuam no subsetor da construo

    civil, isso no quer dizer que elas no tenham nenhum conhecimento

    necessrio para tal trabalho. Primeiro, porque muitos desses migrantes

    construam suas prprias casas nos seus locais de origem, ou mesmo quando

    chegam em Fortaleza, nos bairros da periferia. E assim, mesmo sem um saber

  • 35

    qualificado e formal, em termos proporcionais o trabalhador j opera com

    noes de espao, de equilbrio etc. que o faz ter algum conhecimento do

    trabalho em construo. Ademais, se normalmente eles ingressam como

    serventes, atravs da observao do trabalho dos profissionais que os

    possibilita a aprendizagem de mecanismos mais sofisticados para a construo

    de edifcios, prdios etc., e assim acabam aprendendo empiricamente os

    ofcios de vrias funes nos canteiros de obras.

    E se o operrio j possui alguma experincia de ter participado de uma

    construo, a procura por empregos neste setor lhe facilitada, e dada s

    caractersticas deste - sua imensa rotatividade - isso importante, pois ele est

    sempre procura de se empregar. Esta procura desenvolvida atravs de

    redes de solidariedade familiares e de amizades, construdas desde o

    momento em que se dispe a migrar para Fortaleza, e tambm nos locais de

    moradia e de trabalho nesta cidade:

    Eu me chamo Ednilson de Freitas, sou pedreiro, atualmente sou

    funcionrio da construtora Colmia, n? E t a na categoria h

    quase 26 anos. Eu cheguei do interior, sou natural de Morada Nova.

    Ento eu cheguei em 80, eu tinha colegas meus que j eram da

    categoria. Ento, me chamou pra trabalhar com eles, e eu entrei

    como auxiliar, n, de bombeiro hidrulico. Trabalhei uns anos como

    auxiliar e depois passei a ser profissional. (Entrou na construo civil)

    Porque eu no tenho um grau de leitura, n, e eu acho que dessas

    profisses que no tem estudo, uma das que paga melhor.

    Eu me chamo Srgio Gomes, eu sou de Itapipoca, mas no meu

    documento t como sendo de Pentecoste. Nessa poca os pais no

    se interessavam muito pelo registro... (...) Eu nasci na zona rural (...)

    e vim pr c em 52. Vim de trem, de maria fumaa, (...) e comecei a

    trabalhar no ramo da construo civil em 76. (Por que neste ramo?)

    Porque at por escolaridade, primeiro, n? Eu no tenho

    escolaridade... A fbrica eu achava que era muito ruim pra se

    trabalhar na poca, e eu j entrei na construo civil achando que l

    eu ia ganhar mais, n, porque o salrio era baixo mas a gente

    ganhava por produo. Porque quando eu cheguei aqui eu j tinha

  • 36

    um irmo que era empeleiteiro, n, e ele j me levava diretamente...

    e eu acompanhava ele. E a, com dois ou trs anos que eu tava com

    ele, eu sa e me desliguei pra assinar a carteira, que eu tinha a maior

    vontade de assinar a carteira, a quando eu me desliguei dele eu j

    sabia fazer tudo (...).36

    O pouco saber escolar deste ramo de produo de que dispe a

    maioria dos trabalhadores da construo civil no ir impedi-los de desenvolver

    uma prxis sindical como estratgia de obteno de suas necessidades, de

    seus interesses e desejos, como personagens principais de suas vidas, como

    demonstraremos no decorrer da nossa pesquisa, mas conferiu caractersticas

    prprias neste desenvolvimento.

    Tais caractersticas devem ser percebidas juntamente com as

    transformaes operadas neste setor da produo e sua importncia

    estratgica para o desenvolvimento econmico do pas.

    No Brasil, este ramo foi impulsionado principalmente a partir da dcada

    de 1950, com o programa rodovirio, a construo das grandes usinas

    hidreltricas, a formao das grandes metrpoles e a construo de Braslia.

    A criao da infra-estrutura necessria para a implantao destas

    novas indstrias privilegiou a construo civil ao mesmo tempo em que

    agigantou o endividamento do pas no exterior. Outra ampliao do setor da

    construo civil ocorreu a partir de 1964 com a criao do Banco Nacional de

    Habitao, financiado com recursos do FGTS dos trabalhadores, motivando o

    setor com crditos mais baratos e trazendo a quase total dependncia da

    indstria das construes residenciais para com o Estado.

    Assim, a poltica habitacional serviu como suporte do modelo de

    crescimento econmico implantado pelo Estado, que intencionava a ampliao

    do consumo como necessidade para a estratgia desenvolvimentista do

    capitalismo na segunda metade do sculo XX.

    Esta dinamizao da produo da construo civil, no entanto, no

    teria sido acompanhada por grandes inovaes tecnolgicas incorporadas ao

    processo do trabalho, como aconteceu nas indstrias de transformao

    36 Depoimentos dos trabalhadores Ednilson de Freitas e Srgio Gomes, respectivamente, dados em 2006.

  • 37

    (indstrias onde ocorrem as transformaes das matrias-primas, por meio de

    processos qumicos ou mecnicos, em outros produtos). Refletindo tambm

    sobre a no introduo de novas modalidades tecnolgicas na construo civil

    brasileira, Marta Farah argumenta que o problema se relaciona ao

    papel atribudo construo habitacional na poltica nacional de

    empregos. (...) Assim, at meados dos anos 70, a insero

    macroeconmica da construo habitacional tendeu a articular a

    meta de produo de moradias de absoro de mo-de-obra no-

    qualificada, poltica que contribuiu preservao da base tcnica e

    do padro organizacional tradicionais no setor. Um segundo fator

    interfere tambm para a definio do processo de trabalho no mbito

    da promoo estatal: a instabilidade caracterstica do mercado de

    habitao do pas. Tal instabilidade associa-se, de um lado, forte

    dependncia da construo habitacional com relao ao

    desempenho global da economia, em face das repercusses deste

    sobre a gerao de empregos e de renda, variveis diretamente

    ligadas demanda por moradias e estrutura de financiamento para

    o setor. (...) Finalmente (...) contribui tambm o fato de as iniciativas

    de inovao serem assistemticas, propostas de fora para dentro

    (pelo contratante o Estado), de forma episdica, no chegando a

    constituir uma nova cultura das empresas.37

    Esta caracterizao feita por Farah sobre o desenvolvimento da

    construo civil no pas tambm poderia ser relacionada ao Cear. Segundo

    Furtado, at a dcada de 50 existiam no estado poucas empresas de

    construo civil.

    somente com a interveno do Estado neste subsetor, atravs do

    BNH e do Sistema Financeiro de Habitao, que passa a financiar

    diretamente a produo e o consumo de moradias, que a atividade

    habitacional se expande no Cear. O impulso na produo de

    habitaes no estado se faz sentir no apenas na criao de

    moradias para atender a populao de baixa renda (conjuntos

    37 FARAH, Marta F. S. Op. Cit., pp. 114 a 116.

  • 38

    habitacionais), como tambm para atender as camadas de renda

    mdia e alta, que coincide com o crescimento vertical da cidade de

    Fortaleza, em fins da dcada de 60 e incio da dcada de 70. (...) Na

    realidade o subsetor habitacional absorve uma parcela significativa

    da mo-de-obra no estado do Cear. Para manter relativamente

    razovel as taxas de emprego, o governo incentiva a manuteno de

    processos produtivos manuais, altamente tradicionais na produo

    habitacional.38

    Em sua pesquisa, Furtado entrevistou empresrios que confirmam a

    intencionalidade do poder pblico estadual em no financiar o desenvolvimento

    tecnolgico do subsetor da construo civil como estratgia para amortizar o

    impacto do desemprego.

    Assim, no processo de trabalho no subsetor de edificaes, as

    mudanas ocorriam menos na esfera tcnico-cientfica e de forma mais

    importante na organizao e na velocidade empregada no processo,

    encontrando seu fundamento na habilidade do trabalhador, ao contrrio de

    outros ramos da indstria, que apelam para a tecnologia e a cincia. A

    ausncia de mquinas que aumentem o ritmo de trabalho compensada pelo

    trabalho parcelado e pela jornada coletiva, que divide, combina e complementa

    vrias tarefas individualizadas, simples e semelhantes.

    Portanto, a explorao dos trabalhadores se configuraria num aumento

    da jornada e do ritmo de trabalho, alm de uma superexplorao salarial dos

    mesmos e facilitada pela enorme quantidade de mo-de-obra disponvel devido

    s levas de migrantes do campo e dos trabalhadores desempregados dos

    outros ramos de produo.

    Contudo, existem outras questes relacionadas ao mundo do trabalho

    na construo civil que seriam de extrema importncia para a nossa reflexo, a

    comear pela rotatividade dos trabalhadores nos locais de trabalho e a

    fragmentao destes. Assim, a entrada e sada dos trabalhadores durante a

    construo ou ao final desta dificulta a organizao da categoria; se pensarmos

    38 FURTADO, Maria J. de A. A construo da misria: um estudo sobre trabalhadores da construo habitacional de Fortaleza. Dissertao de Mestrado em Sociologia, UFC. Fortaleza, 1985, pp. 50 e 51.

  • 39

    nas dezenas de canteiros de obras39 em que se espalham os trabalhadores,

    que num momento trabalham numa obra e meses depois trabalham em outra,

    possivelmente numa outra construtora, ou mesmo abandonando a categoria

    por um trabalho em outro setor de produo, percebemos que tudo isso se

    configura num desafio enorme para a organizao dos trabalhadores.

    Diferentemente do trabalho fabril, por exemplo, os locais de trabalho se

    modificam com imensa rapidez no tempo e no espao urbano, exigindo

    estratgias para lidar com tais caractersticas.

    Contudo, dialeticamente elas corroborariam tambm em algumas

    vantagens para os trabalhadores, pois parecem contribuir para o

    desenvolvimento de matizes psicolgicos e polticos coletivos interessantes

    para os membros da categoria. Fernando Teixeira da Silva nos oferece uma

    perspectiva importante das potencialidades de organizao e combatividade

    dessa categoria:

    Empregados sob contrato em diferentes canteiros de obras, os

    operrios da construo encontravam-se em condies mais ou

    menos semelhantes s de outros trabalhadores ocasionais. Assim,

    em primeiro lugar, trocavam freqentemente de trabalho e no

    estavam ligados a qualquer tipo de emprego bem definido. Segundo,

    por no estarem engajados nos servios por contratos de longo

    prazo e vinculados a um empregador especfico, viam-se livres de

    constrangimentos que caracterizavam os trabalhadores com fortes e

    permanentes vnculos empregatcios. Terceiro, as reivindicaes

    esbarravam no problema do curto espao de tempo dos contratos

    para o trmino das obras, o que levava os operrios a agirem

    rapidamente se quisessem ver satisfeitas suas demandas. Era-lhes

    mais difcil organizar a sustentao de uma ao coletiva de longa

    durao, devendo evitar a perda de tempo em interminveis

    procedimentos de mediao e arbitragem. Em sntese, suas

    condies de emprego no podiam seno encorajar o recurso

    paralisao quase imediata como arma contra os patres. Assim, a

    39 Segundo os dados que obtivemos no sindicato dos trabalhadores da construo civil, no final da dcada de 1980 e incio de 1990 havia um nmero estimado entre 150 a 200 canteiros de obras espalhados na cidade de Fortaleza, onde trabalham cerca de 15 a 20 mil trabalhadores.

  • 40

    ttica da ao direta tinha entre eles incontestvel eco, alimentando

    a idia de um trabalho livre e a luta para eliminar a tirania patronal.40

    Fernando Teixeira argumenta sobre a combatividade dos operrios da

    construo civil da cidade de Santos e sua propenso em utilizar mtodos de

    ao direta no perodo entreguerras e, portanto, num contexto histrico

    diferente do nosso, mas os elementos por ele refletidos podem ser

    perfeitamente relacionados nossa pesquisa, pois tais elementos tambm

    estariam presentes, caracterizando o mundo do trabalho na construo civil de

    Fortaleza no contexto por ns compreendido.

    Assim, teremos oportunidades para aprofundarmos todas essas

    peculiaridades que personalizam o mundo do trabalho na construo civil, e

    que sero de extrema importncia para compreendermos as experincias

    sindicais desenvolvidas pelos seus sujeitos histrico-coletivos em Fortaleza.

    40 SILVA, Fernando Teixeira da. Operrios sem patres: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, So Paulo: Editora da UNICAMP, 2003, pp. 61 e 62.

  • 41

    1.2 - As (aviltantes e perigosas) condies de trabalho.

    (...) e tropeou no cu como se ouvisse

    msica

    e flutuou no ar como se fosse sbado

    e se acabou no cho como um pacote tmido

    agonizou no meio do passeio nufrago

    morreu na contramo atrapalhando o pblico (...)

    (Chico Buarque Construo)

    Como j expusemos, a caracterstica manufatureira no setor da

    construo civil possibilita que o trabalhador alargue sua importncia na

    produo por deter o conhecimento prtico do ofcio, em comparao com

    outros setores de produo em que o nmero de trabalhadores foi

    sistematicamente diminudo com o processo de implementao de novas

    tecnologias produtivas. Para anular esta particularidade, a sociloga Islede

    Arruda sugere duas estratgias patronais: por um lado,

    (...) exige uma forma de controle extremamente rgida, dominada por

    fortes estruturas hierrquicas que comandam o trabalhador sob

    coero direta. Junto ao uso da disciplina, a empresa oferece

    incentivos econmicos que motivam o operrio a trabalhar mais,

    intensificando a extrao de excedente de capital. 41

    Estas duas estratgias agem conjuntamente para produzir uma

    realidade sinistra nos locais aonde so erguidas s construes, quando se

    percebe um perigoso jogo de vida e morte para os operrios diariamente,

    sujeitados a realizarem tarefas arriscadas e se acidentarem devido falta de

    equipamentos de segurana, alm de aleijamentos e doenas que so prprias

    a esse ofcio.

    comum, pois, deparar-se com diversas fontes que retratam esse

    quadro tenebroso sobre as condies de trabalho do operrio da construo

    civil. Dois exemplos citados por jornais da grande imprensa podem ilustrar bem

    41 ARRUDA, Islede G. Op. Cit., p.36.

  • 42

    uma espcie de guerra silenciosa e surda, travada entre o capital e o

    trabalho:

    O operrio Jos Maria Pereira, 32 anos, casado, natural de

    Pacatuba, que residia rua Delmiro Jnior, n 100, Pajuara, teve

    morte violenta quando despencou do dcimo andar de um prdio em

    construo, fato acontecido s 10 hs, de ontem, prximo a

    Assemblia Legislativa. Jos Maria se encontrava desempregado e

    um amigo o convidou para trabalhar sem carteira de trabalho

    assinada, com o mestre de obra. A vtima topou e ao executar as

    tarefas determinadas pelo mestre de obras, desequilibrou-se e caiu,

    tendo morte imediata. No local ningum quis dar informaes mas

    ficou patenteado que todos que trabalhavam na obra no tinham as

    mnimas condies de segurana e os parentes da vtima, bastante

    revoltados, contaram que vo exigir os direitos trabalhistas junto ao

    Tribunal Regional do Trabalho.42

    E diante de denncias de insegurana dos trabalhadores da construo

    civil de Fortaleza e a despeito de verificar as condies de trabalho neste

    ofcio, com o ttulo A morte continua rondando as construes, uma

    reportagem de um outro jornal da grande imprensa da cidade noticia que

    completamente desprovido de qualquer material de proteo (botas,

    capacetes e principalmente cintos de segurana), o operrio

    desafiava sua prpria sorte, erguendo-se entre armaes de madeira

    at atingir o topo da placa de concreto, num autntico jogo de

    cintura para no perder o equilbrio e projetar-se no vazio, como

    aconteceu aos carpinteiros Miguel de Abreu Lopes, Edmar de Sousa

    e Ananias Francisco da Silva mortos quando despencaram de um

    andaime do 20 andar do prdio da Caixa Econmica Federal.43

    A precarizao das condies de trabalho tambm denunciada pelo

    jornal do sindicato. Em 1991, com a manchete Construo Civil: roleta da

    morte, este denuncia que

    42 Jornal Tribuna do Cear, 30 de agosto de 1988. 43 Jornal O Povo, 28 de junho de 1991.

  • 43

    no final do ms de junho e comeo de julho aconteceram quatro

    acidentes com morte na construo civil de Fortaleza. No dia 22 de

    junho, Otaclio Ferreira Gomes, pintor, 31 anos, casado, caiu do

    stimo andar por causa do rompimento de uma balana com

    parafuso enferrujado. Otaclio trabalhava na Construtora Estrela. Dia

    27 de junho morreram de choque eltrico Ccero Alexandre da Silva,

    33 anos, e Joo Oliveira Alves, 30 anos. Eles trabalhavam na

    reforma da agncia Central do Banco do Brasil, da Construtora

    Barma. E, no dia primeiro de julho faleceu Antnio Maciel da Costa,

    carpinteiro da damo Construtora por falta de bandeja de

    proteo.44

    Mas as mortes por despencarem dos prdios no so as nicas a

    contriburem para a estatstica que d construo civil o triste ttulo de

    campe de acidentes de trabalho: a falta de equipamentos de segurana seria

    responsvel tambm por doenas tpicas desse ofcio, como as respiratrias, e

    dentre elas destaca-se a silicose, doena obtida pela absoro de poeira de

    cimento, pois que o trabalho sem as mscaras necessrias para lidar com este

    material acaba por provocar o entupimento de seus pulmes, dificultando a

    respirao e levando-o a morte, alm de doenas de pele causadas por esta

    mesma matria-prima. Uma outra doena familiar aos trabalhadores o ttano,

    provocada pela ausncia de botas, luvas e capacetes adequados para um

    trabalho que envolve materiais perfurantes (eu mesmo, ao entrar num canteiro

    de obras desprovido de material de segurana, tive a experincia de receber na

    minha cabea uma carrada de cimento, mas que por sorte ainda estava

    fresco).

    Num artigo sobre a construo de um conjunto de casas populares no

    Conjunto So Cristvo, este continha denncias em relao segurana no

    trabalho:

    No geral, as construtoras no fornecem material de segurana para