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Organização de obrigacionistas: algumas notas para reflexão sobre o representante comum DRANA RITA ALMEIDA CAMPOS/MESTRE HUGO MOREDO SANTOS* SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Obrigatoriedade e selecção do representante comum dos obriga- cionistas: 2.1 Uma figura obrigatória?; 2.2 Selecção do representante comum: 2.2.1. Quem pode ser representante comum; 2.2.2.As incompatibilidades. 3. Designação, destituição e renúncia do representante comum. 4. As atribuições e responsabilidades do representante comum. 5. Notas finais. 1. Introdução** I. Durante todo o período de vigência do CdSC, as regras sobre a organi- zação de credores obrigacionistas previstas no CdSC, primeiro e subsidiário ponto de referência dos outros diplomas que conferem atenção a esta matéria – o RJTC e o RJOH –, que surgem incidentalmente no capítulo IV (obriga- ções) do título IV (sociedades anónimas) ombreando com as disposições comuns sobre as obrigações, sofreram alterações pontuais e, quase todas, decor- rentes de modificações incidentes em outras matérias. RDS III (2011), 4, 891-923 * Ana Rita Almeida Campos é Advogada (Vieira de Almeida & Associados – Sociedade de Advogados, R.L.) – [email protected]; Hugo Moredo Santos é Mestre em Direito (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) e Advogado (Vieira de Almeida & Associados – Sociedade de Advogados, R.L.) – [email protected] os autores são membros do Governance LAB. ** Sempre que uma disposição legal for referida sem menção ao diploma ao qual pertence deve entender-se que faz parte do CdSC, salvo se o contexto claramente apontar em sentido contrário. Lista de abreviaturas: CdSC – Código das Sociedades Comerciais; CdVM – Código dos Valores Mobiliários; EMTN – Euro Medium Term Note; Reforma de 2006 – As alterações introduzidas no

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Organização de obrigacionistas: algumas notas para reflexãosobre o representante comum

DR.ª ANA RITA ALMEIDA CAMPOS/MESTRE HUGO MOREDO SANTOS*

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Obrigatoriedade e selecção do representante comum dos obriga-cionistas: 2.1 Uma figura obrigatória?; 2.2 Selecção do representante comum: 2.2.1. Quempode ser representante comum; 2.2.2. As incompatibilidades. 3. Designação, destituição erenúncia do representante comum. 4. As atribuições e responsabilidades do representantecomum. 5. Notas finais.

1. Introdução**

I. Durante todo o período de vigência do CdSC, as regras sobre a organi-zação de credores obrigacionistas previstas no CdSC, primeiro e subsidiárioponto de referência dos outros diplomas que conferem atenção a esta matéria– o RJTC e o RJOH –, que surgem incidentalmente no capítulo IV (obriga-ções) do título IV (sociedades anónimas) ombreando com as disposiçõescomuns sobre as obrigações, sofreram alterações pontuais e, quase todas, decor-rentes de modificações incidentes em outras matérias.

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* Ana Rita Almeida Campos é Advogada (Vieira de Almeida & Associados – Sociedade deAdvogados, R.L.) – [email protected]; Hugo Moredo Santos é Mestre em Direito (Faculdade deDireito da Universidade de Lisboa) e Advogado (Vieira de Almeida & Associados – Sociedade deAdvogados, R.L.) – [email protected] os autores são membros do Governance LAB.** Sempre que uma disposição legal for referida sem menção ao diploma ao qual pertence deveentender-se que faz parte do CdSC, salvo se o contexto claramente apontar em sentido contrário.Lista de abreviaturas: CdSC – Código das Sociedades Comerciais; CdVM – Código dos ValoresMobiliários; EMTN – Euro Medium Term Note; Reforma de 2006 – As alterações introduzidas no

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São cinco artigos que evidenciam desequilíbrios e, por vezes, geram pro-blemas de aplicação1. Desequilíbrios porque o legislador inspirou-se de formaerrática na realidade paralela que parecia evidente – a deliberação dos sócios.Vários são os exemplos que confirmam esta afirmação: opções fragmentárias(como a circunstância de a única concretização expressa para as deliberaçõesdos obrigacionistas ser a assembleia, ficando de fora outras formas de delibera-ção disponíveis para os accionistas), remissões parciais (como a que pode serencontrada no artigo 355.°, n.° 2, que remete para as regras da assembleia geralde accionistas no que respeita à convocatória e esquece todas as demais matérias,incluindo algumas sobre as quais a remissão seria inócua, por dispensar adapta-ções, e muito útil – p.e. inclusão de assuntos na ordem do dia, agendamento dareunião para segunda data, suspensão da assembleia ou actas), ou soluções des-conexas (tal como a que, no artigo 358.°, n.° 4, impõe sempre o registo comer-cial do representante comum, inclusive nos casos em que a respectiva emissãode obrigações, nos termos do artigo 351.°, n.° 1, esteja dispensada de registo, apossibilidade de nomeação de representantes substitutos, sem depois lhes con-ferir utilidade, por exemplo, em sede de convocação de assembleias, ou o nãoreconhecimento expresso da legitimidade da emitente para nomear o re-presentante comum na data da emissão, em contrapartida de lhe atribuir odireito de, a partir desse mesmo dia, poder requerer ao tribunal que nomeie orepresentante comum).

Por outro lado, a experiência tem denunciado alguns problemas de ordemprática: desde logo, a difícil articulação entre a aparente obrigatoriedade denomear um representante comum e a forma escolhida na lei para o fazer – deli-beração dos obrigacionistas; em segundo lugar, o estreitíssimo leque de entida-des que o CdSC reconhece como nomeáveis enquanto representante comum;por último, a inexistência, em sede de assembleias de obrigacionistas, de regrasexpressas que facilitem, ou potenciem, a participação à distância na assembleia.

II.Algumas destas inconsistências foram já reconhecidas e sanadas no RJTCe no RJOH, embora, claro, com aplicação limitada a cada um daqueles regi-

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CdSC pelo Decreto-Lei n.° 76-A/2006, de 29 de Março. RJOH – Decreto-Lei n.° 59/2006, de20 de Março, que aprova o regime jurídico das obrigações hipotecárias e das obrigações sobre osector público; RJTC – Decreto-Lei n.° 453/99, de 5 de Novembro, que aprova o regime jurí-dico da titularização de créditos.1 Talvez por essa razão, alguns programas EMTN estabelecidos por sociedades portuguesas esco-lheram submeter a matéria relativa à organização dos obrigacionistas através de representantecomum ao direito inglês.

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mes.Veja-se, por exemplo, que no RJOH a nomeação inicial do representantecomum compete à entidade emitente e que o RJTC não parece proibir essanomeação que, na prática, tem sido cometida às sociedades de titularização decréditos2; e note-se ainda, por outro lado, que ambos os regimes têm como pos-síveis representantes comuns entidades para as quais a representação de investi-dores é uma actividade profissional e regular3.

Mas continua a haver muito por fazer. A internacionalização das empresasportuguesas, em particular, dos bancos e das grandes sociedades, no mercado deemissão de dívida representada por valores mobiliários permitiu estreitar con-tacto com a figura do trustee anglo-saxónico e com o modelo de organizaçãodos credores obrigacionistas que tal figura concretiza. Daí que regras aplicáveisà organização dos titulares de obrigações sujeitas à lei portuguesa tenham aca-bado, na grande maioria dos casos, por procurar inspiração nessa experiênciaanglo-saxónica.Assim, não surpreende que aquelas regras muitas vezes resultemde uma negociação directa entre a entidade emitente (que, em última instân-cia, será responsável por pagar a remuneração correspondente ao exercício docargo) e o representante comum, sendo o contrato de nomeação do represen-tante comum uma peça chave no preenchimento dos espaços que o regimelegal deixou vazios.

III. Ao longo dos últimos anos, fruto em especial da sua actividade profis-sional, os autores têm sido confrontados em incontáveis ocasiões com as regrasrelativas à organização dos credores obrigacionistas e com as dificuldades deaplicação que as mesmas suscitam. Isto porque, sem prejuízo da cada vez maisrica experiência na emissão de dívida, o regime central de organização dosobrigacionistas constante do CdSC merece ser objecto de uma apreciação crí-tica que afira os seus pontos positivos e respectivas fragilidades.

Assim, através deste texto, procuraremos partilhar reflexões sobre a organi-zação dos obrigacionistas, com especial enfoque no papel assumido nesse con-texto pelo representante comum, procurando adoptar uma perspectiva forte-

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2 Veja-se a este respeito em www.cmvm.pt a informação constante dos prospectos relativos àsemissões realizadas pelas sociedades de titularização de créditos designadas Gama – Sociedade deTitularização de Créditos, S.A., Sagres – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A. e Tagus –Sociedade de Titularização de Créditos, S.A..3 E a verdade é que, na generalidade das operações de titularização de créditos e nos programasde emissão de obrigações hipotecários ou de obrigações sobre o sector público estabelecidospelos bancos portugueses, as entidades nomeadas como representante comum são trustees anglo--saxónicos.

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mente associada à prática e incidindo nos aspectos que nos parecem ser cruciaisno exercício da sua actividade no ordenamento jurídico português.

Na abordagem a que nos propomos, é inevitável o confronto das regras queregem as matérias referidas, constantes do CdSC, quer com as necessidades edesafios inerentes às operações de emissão de dívida genericamente considera-das, quer com as soluções adoptadas pelo legislador português para fazer face àsparticularidades de determinadas operações em concreto, como é o caso dasoperações de titularização de créditos e das emissões de obrigações hipotecá-rias e sobre o sector público, exemplos que denunciam uma versatilidade queparece faltar ao CdSC.

Neste contexto, começaremos por averiguar se a nomeação de represen-tante comum é obrigatória, passando depois a uma análise crítica das opções dolegislador acerca das entidades que podem ser seleccionadas para desempenharaquele cargo. Segue-se uma análise ao processo de nomeação, destituição erenúncia do representante comum,bem como acerca das respectivas atribuiçõese responsabilidades. No final, deixaremos algumas notas conclusivas.

2. Obrigatoriedade e selecção do representante comum

2.1. Uma figura obrigatória?

I. Há uma pergunta que antecede qualquer outra reflexão relativa à orga-nização dos credores obrigacionistas: devem estes ser sempre representados porum representante comum, ou seja, a representação comum é obrigatória? A res-posta negativa situa a representação comum no plano da voluntariedade – osobrigacionistas são livres de nomear ou não um representante comum –,enquanto a resposta positiva desloca a representação comum para o domínio darepresentação legal – os obrigacionistas têm, sempre e em qualquer caso, queser representados por um representante comum.

Apesar de o papel e do núcleo fundamental das funções do representantecomum serem, no essencial, os mesmos no que respeita a obrigações clássicas,obrigações titularizadas e obrigações hipotecárias ou sobre o sector público, oque é vincado pela remissão que pode ser encontrada no artigo 65.°, n.° 7 doRJTC e no artigo 14.°, n.° 1 do RJOH para as disposições sobre esta matériado CdSC, a opção tomada pelo legislador não foi a mesma naqueles três casos.

No RJTC o argumento literal não deixa margem para dúvidas:“(n)as con-dições de cada emissão de obrigações titularizadas, pode ser identificado umrepresentante comum dos obrigacionistas dessa emissão…” (artigo 65.°, n.° 1

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do RJTC). Porém, a prática demonstra que a natureza voluntária da nomeaçãonão tem sido tão profunda quanto a norma parece apontar. Na verdade, porinfluência do exemplo anglo-saxónico, motivado pela necessidade de assegurarestabilidade e maior previsibilidade à actuação dos obrigacionistas, as operaçõesde titularização de créditos envolvendo sociedades de titularização de créditosportuguesas têm sempre, até ao momento, contemplado a nomeação de umrepresentante comum4. Contudo, a recorrente utilização da prerrogativa nãoresulta na sua alteração: a nomeação do representante comum é voluntária, peloque os titulares de obrigações titularizadas emitidas no âmbito de uma opera-ção de titularização de créditos sujeita ao RJTC poderão não ter um represen-tante comum.

No que respeita às obrigações (e, por remissão, no que se refere às obriga-ções hipotecárias e sobre o sector público) o argumento literal não é tão asser-tivo. Na lei podem encontrar-se subsídios em vários sentidos.Apontando paraa resposta negativa encontram-se dois argumentos principais. Por um lado, adificuldade prática de nomeação do representante comum concomitantementecom a emissão e, por outro, a natureza das funções cometidas por lei ao repre-sentante comum. Indiciando uma resposta positiva está, desde logo, o artigo357.°, n.° 1, ao afirmar que para cada emissão de obrigações haverá um repre-sentante comum, e, depois, os artigos 355.°, n.° 2 e 358.°, n.° 2, que apontama inexistência de um representante comum nomeado como uma situação pato-lógica que carece de solução, nomeadamente mediante recurso à via judicial.

II. É difícil combinar a obrigatoriedade do representante comum com oprocesso de nomeação previsto no CdSC. A designação do representantecomum deve ser objecto de deliberação dos obrigacionistas, sendo que a pró-pria lei reconhece que poderá existir um hiato entre a emissão e a nomeação(dificilmente se compreenderia de outra forma a alusão, no artigo 355.°, n.° 2a “enquanto este [o representante comum] não for eleito”).

Para superar esta dificuldade, a prática evidencia que muitas vezes a escolhado representante comum é feita pela entidade emitente e sufragada medianteuma deliberação unânime por escrito tomada pelos obrigacionistas nomomento da subscrição das obrigações. De outro modo, seria impossívelnomear à partida uma entidade, negociar e acordar os termos e condições emque o representante comum exerceria as suas funções; e, dada a tradicional inér-cia dos obrigacionistas (para a qual contribuem, certamente, os custos ineren-

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4 Veja-se a este respeito a informação referida na nota 1.

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tes à presença numa assembleia de obrigacionistas), não seria razoável esperaralguma iniciativa destes no sentido de ser convocada uma assembleia apenaspara eleger o representante comum. Depois, a todo o tempo, os obrigacionis-tas podem substituir o representante comum inicialmente nomeado por outro,se nisso acordarem.

Em todo o caso, este intrincado processo não deixa de suscitar dúvidasquanto à obrigatoriedade, pelo menos no momento inicial, de nomeação deum representante comum.

Se considerarmos as funções atribuídas por lei ao representante comum,verificamos que as mesmas poderiam ser desempenhadas por outras entidades.Salvo se for aprovado um regulamento das funções de representante comum (e é usual que tal regulamento seja vertido no próprio contrato de nomeaçãodo representante comum) contendo funções mais detalhadas, nenhuma dasfunções indicadas no artigo 359.°, n.° 1 (ou, por exemplo, no artigo 355.°,n.° 6 ou no artigo 379.°, n.° 3) exige particulares capacidades.Tratam-se, essen-cialmente, de funções representativas ou operacionais às quais não está asso-ciado um verdadeiro poder decisório: “representar…” [als. a) e b)], “assistir…”[als. c) e e)],“receber e examinar…” [al. d)],“convocar” [al. f)], o que, aliás, é con-firmado pelo elenco de matérias que devem ser submetidas à deliberação dosobrigacionistas (cf. artigo 355.°, n.° 4).

III. Mas também é possível detectar na lei argumentos em sentido contrá-rio. O artigo 357.°, n.° 1 diz que “para cada emissão de obrigações haverá umrepresentante comum dos respectivos titulares”5. O argumento literal indiciaque houve uma compressão da vontade dos obrigacionistas no que respeita àexistência do representante comum: aqueles têm liberdade na escolha, de entreo apertado grupo de representantes elegíveis, mas essa escolha – e respectivanomeação – não pode deixar de ser feita.

Adicionalmente, tanto o artigo 355.°, n.° 2 como o artigo 358.°, n.° 3apontam no sentido de a ausência de representante comum não corresponderà situação normal. De outro modo, será difícil compreender que aquela dispo-sição legal atribua ao presidente da mesa da assembleia geral de accionistascompetência subsidiária para convocar a assembleia de obrigacionistas

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5 Esta é uma das matérias relativamente à qual não vale, para as obrigações hipotecárias e sobreo sector público, a remissão operada para os artigos 355.° a 359.° no artigo 14.°, n.° 1 do RJOH,pois o artigo 14.°, n.° 2, 2.ª parte, derroga a regra do artigo 357.°, n.° 1, ao estabelecer que orepresentante comum “é único para todas as emissões de obrigações hipotecárias ou sobre o sec-tor público emitidas pela mesma entidade”.

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“enquanto este [o representante comum] não for eleito” e que esta última per-mita a qualquer obrigacionista requerer ao tribunal que nomeie um represen-tante comum.

IV. Feito este percurso, a pergunta formulada subsiste. A nomeação dorepresentante comum é obrigatória? Algumas questões podem contribuir paraa resposta: nos casos em que haja um obrigacionista único deve este ser forçadoa nomear um representante, correndo o risco de falha na representação e for-çando a emitente a suportar a respectiva remuneração? Não podem as atribui-ções cometidas ao representante comum ser directamente exercidas pelos obri-gacionistas? Caso os obrigacionistas não cheguem a acordo sobre quem deveráser nomeado representante comum, ou em última instância, nenhuma das pos-síveis entidades elegíveis esteja disponível para actuar como representantecomum, devem os obrigacionistas ficar prejudicados no exercício dos seusdireitos? Qual a sanção aplicável se não houver lugar à nomeação de um repre-sentante comum e, atendendo a que a legitimidade para solicitar a nomeaçãojudicial do representante comum assiste tanto à emitente como a qualquerobrigacionista, qual a entidade que deve sofrer essa sanção?

Em suma: qual a razão de fundo que poderá obrigar os obrigacionistas a serrepresentados, assumindo que estes têm uma natural incapacidade para agirdirectamente?

V.Ainda que dúvidas subsistam, pelas razões acima referidas, parece-nos queo regime previsto no CdSC e, por remissão no RJOH, aponta para a representa-ção comum obrigatória. Então, como conjugar as inconsistências atrás apontadas?

A maior fonte de problemas reside na designação inicial, como detectou olegislador aquando da preparação do RJTC e do RJOH, ao possibilitar a atri-buição ou atribuir à entidade emitente, respectivamente, a legitimidade paraessa nomeação, sem prejuízo de os obrigacionistas poderem a todo o temponomear outro representante.

O CdSC prevê que o representante comum é designado por “deliberaçãodos obrigacionistas”, solução que enfrenta óbvias dificuldades de implementa-ção caso deva ser tomada em assembleia concomitante com a subscrição dasobrigações. Sem prejuízo de algumas referências e remissões, nomeadamentenos artigos 355.° e 356.°, não existem, para as deliberações dos obrigacionistas,regras semelhantes às vertidas no capítulo IV do título I do CdSC, aplicáveis àsdeliberações dos sócios. Significa isto que a lei não se pronuncia sobre as for-mas através das quais os obrigacionistas podem “deliberar”. Por isso, sabemos,com certeza, que os obrigacionistas se podem reunir em assembleia geral, mas

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a lei não dá conforto expresso quanto à possibilidade de deliberarem unanime-mente por escrito ou em assembleias universais.

É certo que o legislador identificou a assembleia como o fórum privile-giado para os obrigacionistas tomarem decisões. Mas não pode daí extrair-se aconclusão de que não é possível aos obrigacionistas deliberar através de formasque são, em geral, admitidas para as deliberações dos accionistas, incluindo atra-vés de deliberações unânimes por escrito e assembleias universais. Nem mesmoo artigo 355.°, n.° 1 obsta a este entendimento, pois ao afirmar que “(o)s cre-dores de uma mesma emissão de obrigações podem reunir-se em assembleia deobrigacionistas” não nega, nem faria sentido fazê-lo, a hipótese de tais credoresvirem a deliberar por outras vias, em particular se as deliberações em causaforem tomadas por unanimidade.

Não sendo viável convocar uma assembleia de obrigacionistas (até porquenem se saberá, antes da data da emissão e com a necessária antecedência, quemestes serão), nem prático reunir todos os potenciais subscritores para que sejatomada uma deliberação unânime, o representante comum poderá sernomeado na data da emissão através de deliberação unânime por escrito noacto de subscrição, podendo inclusive ser utilizado para o efeito o respectivocontrato ou boletim de subscrição. Se tal nomeação não vier a ocorrer na datade emissão, o presidente da assembleia geral assumirá as funções que subsidia-riamente lhe são cometidas pelo artigo 355.°, n.os 2 e 3, tendo nesse períodoqualquer obrigacionista a possibilidade conferida no artigo 358.°, n.° 2; no quediz respeito ao exercício de direitos, os mesmos serão, durante aquele período,exercidos de acordo com o que se encontrar previsto a esse propósito nos ter-mos e condições aplicáveis às obrigações.

VI. Os pontos anteriores procuraram demonstrar que a nomeação dorepresentante comum parece ser obrigatória relativamente a emissões de obri-gações, obrigações hipotecárias e obrigações sobre o sector público e faculta-tiva quanto a emissões de obrigações titularizadas. No entanto, não se conseguedescortinar uma razão de fundo que obrigue os obrigacionistas, sempre e emqualquer caso, a nomear um representante comum em vez de poderem agirdirectamente como quaisquer outros credores da emitente se essa for, tendo ematenção os termos e condições da emissão em causa, a forma que melhor pro-tege os seus interesses. Por um lado, não parece possível afirmar que os obriga-cionistas deveriam ser privados de exercer os seus direitos sem a intervençãodaquele, o que deslocaria a discussão para a incapacidade de exercício; poroutro lado, tal como o emitente define as condições da emissão – remunera-ção, datas de pagamento de juros e amortização de capital, existência ou não de

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garantias – poderá impor aos obrigacionistas que se organizem e sejam repre-sentados, nas suas relações com o emitente, através de uma única entidade; porúltimo, a própria lei não prevê nenhuma sanção aplicável à falta de nomeaçãodo representante comum, cuja principal consequência acaba por ser, nos termosdo artigo 358.°, n.° 2, a possibilidade de a emitente ou qualquer obrigacionistarequerer a respectiva nomeação judicial.

Para o emitente poderá ser totalmente decisivo assegurar que os seus cre-dores obrigacionistas são representados por um representante único – porexemplo, em emissões muito complexas ou colocadas através de oferta pública– ou irrelevante – se, por exemplo, a emissão for subscrita por um reduzidonúmero de entidades. Em conformidade, seria mais adequado proporcionar umregime facultativo, que permitisse ao emitente impor aos obrigacionistas arepresentação comum ou apenas deixar essa matéria entregue à decisão dosinvestidores.

2.2. Selecção do representante comum

2.2.1. Quem pode ser representante comum

I. O artigo 357.°, n.° 2 indica, pela positiva, as entidades que podem sernomeadas como representante comum, seguindo o método da enumeraçãotaxativa: sociedades de advogados, sociedades de revisores oficiais de contas epessoas singulares. O grupo de elegíveis é estreito, no sentido em que é muito(diríamos mesmo, demasiado) circunscrito, e heterogéneo.

A estreiteza do artigo 357.°, n.° 2, que permanece inalterado desde a suaentrada em vigor, é evidenciada pelo disposto a este propósito no RJTC e noRJOH. Nestes regimes, o legislador reconhece que poderão actuar comorepresentantes comuns, para além das entidades referidas no CdSC, as institui-ções de crédito e entidades autorizadas a prestar serviços de representação deinvestidores em algum Estado-Membro da União Europeia (veja-se o artigo65.°, n.° 1 do RJTC e o artigo 14.°, n.° 3 do RJOH).

No entanto, o CdSC fica-se por aquelas três entidades.Assim, a representa-ção comum pode ser assegurada por uma sociedade de advogados ou por umasociedade de revisores oficiais de contas, sendo que não pode ser assegurada pornenhuma outra pessoa colectiva; mas também pode ser assegurada por advoga-dos ou revisores oficiais de contas, actuando na qualidade de pessoas singularesdotadas de capacidade jurídica, tal como quaisquer outras. Ou seja: o legisladorcomprimiu enormemente o leque de pessoas colectivas – diríamos, as mais

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vocacionadas para esta tarefa – elegíveis como representante comum, parado-xalmente abrindo na maior medida possível a porta para a representaçãocomum por pessoas singulares…

Com esta afirmação não se pretende fazer um juízo de mérito sobre a qua-lidade das pessoas colectivas e das pessoas singulares como representantescomuns. No entanto, é inegável que uma pessoa colectiva tenderá a estar dotadade meios técnicos e humanos mais aptos para esta função: pode estar presenteem duas assembleias ao mesmo tempo em locais diferentes se tal for necessário,não adoece, não marca férias, etc…

II.A heterogeneidade parece-nos que tem vindo a ser aceite mais por res-peito à escolha original do que por concordância com a mesma. Não parecehaver nenhum óbvio denominador comum entre sociedades de advogados,sociedades de revisores oficiais de contas e pessoas singulares. E também não secompreende porque razão ficaram de fora – tanto na versão original do CdSC,como após a alteração ao RJTC através do Decreto-Lei n.° 303/2003, de 5 deDezembro (que veio admitir a existência de um representante comum dos titu-lares das obrigações titularizadas) e a entrada em vigor da RJOH – entidadesvocacionadas e profissionalmente orientadas para a representação comum detitulares de valores mobiliários. E a prática demonstra que, regra geral, em ope-rações de titularização de créditos e programas de obrigações hipotecárias ousobre o sector público, a representação comum é assegurada por esse tipo deentidades.

A opção no CdSC poderia – e talvez devesse – ter sido outra.A identifica-ção de concretas entidades traz à norma certeza na respectiva interpretação eaplicação. O cuidado – porventura excessivo, como vimos – do legislador naelaboração da lista das entidades susceptíveis de desempenhar as funções derepresentante comum dos obrigacionistas confirma a preocupação em assegu-rar a respectiva independência e aptidões profissionais. Porém, a identificaçãodas características que uma entidade deveria reunir para poder ser designadacomo representante comum, cercada depois pela lista de incompatibilidades,teria o mérito de não circunscrever em excesso a lista de potenciais elegíveis,sem comprometer a necessária independência. Para mais, numa matéria em quedeveria ser soberana a decisão dos obrigacionistas, que deveriam ter a liberdadede escolher ser representados por quem a título profissional representa interes-ses alheios em lugar de verem a sua escolha limitada a entidades para as quais arepresentação de obrigacionistas não é, de todo, a sua principal vocação.

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2.2.2. As incompatibilidades

Para além da dimensão positiva – entidades que podem ser nomeadas comorepresentante comum –, o CdSC cura também de identificar as situações quetornam inelegíveis as entidades que não podem ser nomeadas em virtude deestarem expostas a uma incompatibilidade. Esta delimitação cumulativa apenasparece poder ser interpretada num sentido: a circunscrição pela negativa(incompatibilidade) sobrepõe-se e comprime a identificação pela positiva (ele-gibilidade), ou seja, uma entidade potencialmente nomeável deixa de o ser casoesteja sujeita a alguma incompatibilidade.

As incompatibilidades dividem-se em dois grandes grupos: uma incompa-tibilidade geral, que se encontra prevista no artigo 357.°, n.° 2, in fine, e asincompatibilidades pontuais, que estão listadas no artigo 414.°-A, n.° 1, als. a)a g) e j), ex vi artigo 357.°, n.° 46.Ambas as incompatibilidades podem ser ori-ginárias ou supervenientes: naquele caso, uma entidade, por se encontrar emdeterminada situação na data de emissão e subscrição das obrigações ou na datade nomeação aplicável, não pode ser designado representante comum; neste, aentidade que exerce funções como representante comum deixará de ser elegí-vel, devendo ser substituída, caso passe a estar exposta a uma incompatibilidade.

(a) Incompatibilidade geral

Não pode ser designado como representante comum quem for obrigacio-nista.A intenção do legislador é clara: evitar que uma entidade esteja exposta aum conflito entre os seus deveres como representante comum e os seus direi-tos como obrigacionista. As duas situações não são sempre necessariamenteinconciliáveis e poderão mesmo ser convergentes, em especial no caso de exis-tir um número reduzido de obrigacionistas que tenham alinhado as suas posi-

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6 O artigo 414.°-A alberga as incompatibilidades às quais estão sujeitas as entidades a designarcomo membros do conselho fiscal, fiscal único ou revisor oficial de contas no modelo monista[cf. artigo 278.°, n.° 1, al. a) e artigo 413.° e seguintes]. Porém, aquela disposição acaba por serconvocada em inúmeros casos, e não só a respeito das entidades potencialmente designáveiscomo representante comum: é o que sucede, por exemplo, quanto ao revisor oficial de contasencarregue de emitir o parecer relativo aos lucros a considerar para efeito do artigo 362.°, quantoaos membros da mesa da assembleia geral (cf. artigo 374.°, n.° 1), em caso de nomeação oficiosado revisor oficial de contas (cf. artigo 416.°), relativamente aos membros da comissão de audito-ria, no sistema anglo-saxónico (cf. artigo 423.°-B), ou aos do conselho geral e de supervisão, nosistema dualista (cf. artigo 434.°).

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ções ou, situação que é frequente em certo tipo de emissões de obrigações(nomeadamente, titularizadas, hipotecárias e com garantia de Estado), no casode obrigacionista único. Aliás, neste caso, e como já realçámos, é muito discu-tível que haja algum interesse relevante que obrigue à representação do obri-gacionista por terceiro e, por outro lado, que force a emitente a suportar essecusto. De facto, quando as obrigações estiverem concentradas na titularidade deum obrigacionista único não vemos inconveniente algum em que seja dispen-sada a intervenção do respectivo representante comum (na verdade, não have-ria nessa situação “interesses comuns”, mas um só interesse, o do único obriga-cionista), que exerceria de forma directa os seus interesses.

Mas foi a possibilidade de conflito, e os efeitos adversos que daí poderiamdecorrer para o colégio de obrigacionistas, que certamente motivaram o legis-lador a decidir neste sentido.Poderia ter sido outra a opção legislativa,mais sen-sível às situações potencialmente perigosas, dado que esta parece evidenciar umexcessivo paternalismo, em especial tendo em consideração, com atrás foi men-cionado, as atribuições marcadamente representativas ou operacionais cometi-das pela lei ao representante comum. Se faz parte dos direitos essenciais dosócio ser designado para um órgão de administração [cf. artigo 21.°, al. d)] e,inclusive, em situações previstas na lei, ser o administrador único (cf. artigo 390.°,n.° 2), gerindo e representando a sociedade, porque razão não poderá um obri-gacionista representar os demais se estes nisso acordarem? Por outro lado, nadaimpede que um obrigacionista que detenha a maioria das obrigações nomeie,em assembleia para o efeito, uma pessoa singular da sua confiança que não seencontre em qualquer das situações que estão identificadas no artigo 414.°-A.E, seja como for, os obrigacionistas têm sempre a possibilidade de circunscre-ver o âmbito de actuação do representante comum, pelo que o espaço de actua-ção deste poderá ser ainda mais reduzido do que o previsto na lei, se as condi-ções aplicáveis à nomeação do representante comum apontarem nesse sentido.

Estes elementos levam-nos a concluir que, atendendo aos interesses dosobrigacionistas e às atribuições do representante comum especificadas na lei,não parecem existir razões decisivas para impedir os obrigacionistas de nomearum dos seus pares como seu representante. Em todo o caso, outra foi a expressaopção do legislador.

(b) Incompatibilidades pontuais

I.Não pode ser nomeado quem estiver numa situação de incompatibilidadenão em virtude da qualidade de obrigacionista, mas antes por se encontrar

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numa situação de potencial conflito. A remissão que constava do artigo 357.°,n.° 4 até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 48/2010, de 19 de Maio, estavaerrada e incompleta: errada porque se referia ao artigo 414.°, n.° 3, desconsi-derando a renumeração causada pela Reforma de 2006; incompleta porque nãomencionava a al. h), sendo evidente que os interditos, os inabilitados, os insol-ventes, os falidos e os condenados a pena que implique a inibição, ainda quetemporária, do exercício de funções públicas [a que alude o artigo 414.°-A,n.° 1, al. j)] também não poderiam ser designados representantes comuns.

II.Várias são as disposições que recorrem à remissão para o artigo 414.°-A7,que prevê um conjunto de incompatibilidades cujo âmbito de aplicação seencontra bem definido: quem se encontrar em alguma das referidas situaçõesnão poderá ser designado membro do conselho fiscal, fiscal único ou revisoroficial de contas da sociedade. Remetendo o artigo 357.°, n.° 3 para o artigo414.°-A, a interpretação mais óbvia seria no sentido de afirmar que é inelegí-vel como representante comum quem se encontrar em algumas destas situaçõesrelativamente à sociedade emitente. Faz sentido que assim seja, dado que, porexemplo, um beneficiário de vantagens especiais concedidas pela sociedadepoderia ter menor empenho no exercício das suas atribuições, atendendo a queao representar e promover os interesses dos obrigacionistas estaria, com proba-bilidade, a contender os interesses da sociedade.

Porém, e como o CdSC impede que um obrigacionista represente osdemais, cabe perguntar se a lista de incompatibilidades constantes do artigo414.°-A não deveria, adicionalmente, reportar-se aos próprios obrigacionistas.Ilustrando com um exemplo: uma sociedade que seja obrigacionista não podenomear um membro do conselho de administração da emitente com repre-sentante comum, mas poderá nomear um membro do seu próprio conselho deadministração? Esta pergunta faz eco à perplexidade manifestada antes sobre aimpossibilidade de um obrigacionista não pode representar os demais, namedida em que a própria lei parece impedir um obrigacionista de representaros seus pares, mas permite-lhe indicar alguém da sua confiança para o efeito,ainda que essa pessoa ou entidade esteja, relativamente a esse obrigacionista, emalguma das situações indicadas no artigo 414.°-A.

III. Para além das entidades referidas no artigo 357.°, n.° 2, o RJTC e oRJOH abrem a porta à nomeação como representante comum a instituições

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7 Cf. nota 6.

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de crédito ou outras entidades autorizadas a prestar serviços de representaçãode investidores em algum Estado-Membro da União Europeia (artigos 65.°,n.° 1 e 14.°, n.° 3, respectivamente).

Tendo em conta que as instituições de crédito são intervenientes naturaiscomo cedentes, no âmbito de operações de titularização de créditos, e comoemitentes ou cedentes, para efeito do RJOH, o legislador criou uma específicasituação de incompatibilidade. Não pode ser representante comum entidadeque se encontre em relação de domínio ou de grupo (conforme definida noartigo 21.° do CdVM, esclarece o artigo 65.°, n.° 1 do RJTC) com o cedente,no âmbito do RJTC, ou com o emitente ou cedente, no âmbito do RJOH.Não é feita nenhuma expressa menção à própria entidade (que, naturalmente,não está nem em relação de domínio nem de grupo consigo mesma), mas nãosendo a representação permitida a outras entidades em relação de domínio oude grupo com o emitente ou cedente, conforme aplicável, sê-lo-á tambémvedada ao próprio emitente ou cedente.

Compreende-se a opção do legislador. Note-se que nestes casos, comomelhor se verá no ponto seguinte, a nomeação inicial do representante comumé feita pela entidade emitente. Sem prejuízo do soberano poder dos obrigacio-nistas para a todo tempo destituir o representante comum, seria inusitado queestes aceitassem ser representados por uma entidade coligada com o emi-tente/cedente e, portanto, a montante, defensora de interesses divergentes,senão mesmo opostos, aos interesses prosseguidos pelos obrigacionistas.

3. A designação, destituição e renúncia do representante comum

3.1. Introdução

I. Os três regimes jurídicos que temos vindo a considerar – CdSC, RJTCe RJOH – propiciam respostas diferentes no que respeita à designação dorepresentante comum. O regime estabelecido no CdSC atribui aos obrigacio-nistas responsabilidade pela designação, quer no momento inicial, entenda-se,emissão das obrigações, quer no decurso da vida das obrigações, relegando paraplano residual a intervenção do tribunal em caso de ausência de nomeação.O regime consignado no RJTC, embora com um texto dúbio, deixa aberta aporta, ainda que sem grande assertividade, para uma interpretação que nãoimpede a designação inicial (da competência do emitente), solução que temvindo a ser implementada na prática, com modificação das condições iniciaisda designação e eventuais nomeações subsequentes (da competência dos obri-

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gacionistas). Por último, o RJOH é claro ao afirmar uma eficiente dicotomiaentre a designação inicial (da competência do emitente, representado pelo seuórgão de administração), e as designações subsequentes (da competência dosobrigacionistas ou, na falta de deliberação, do tribunal).

II. Sobre a designação do representante comum dos obrigacionistas, oCdSC prevê que este é designado por deliberação dos obrigacionistas, a qual deveráespecificar a duração, definida ou indefinida, das suas funções (artigo 358.°).

Caso os obrigacionistas não procedam a esta designação, qualquer obriga-cionista ou a sociedade poderá requerer ao tribunal essa nomeação, até que osobrigacionistas o façam8. Trata-se de uma marca indelével do actual regimeconstante do CdSC no sentido de afirmar que a inexistência de representantecomum é uma patologia que poderá ser resolvida, em última instância,mediante recurso a tribunal.

Outro ponto importante a considerar no que toca à designação do repre-sentante comum dos obrigacionistas é o facto de o CdSC prever expressamenteque aquele representa os credores de uma mesma emissão (artigos 355.°, n.° 1 e357.°, n.° 1). Daqui se depreende que a alusão a uma mesma emissão com-preende quer as emissões efectuadas de uma só vez, quer as emissões que abran-gem duas ou mais séries.

III. No RJTC, o representante comum dos obrigacionistas e a assembleiade obrigacionistas não se encontravam presentes na mente do legislador, que sóveio a contemplá-los nas alterações introduzidas naquele diploma em 20039.Na base dessa modificação estiveram, provavelmente, por um lado a típicaestrutura anglo-saxónica destas operações, que não dispensa o trustee e, poroutro lado, o reconhecimento, e bem, de que a existência de uma figura com-parável no RJTC estimularia a eficiência do regime jurídico em causa, facili-tando a estruturação de operações de titularização através da emissão de obri-gações titularizadas por sociedades de titularização de créditos e a respectivacolocação junto de investidores estrangeiros.

Com efeito, uma vez que as operações de titularização de créditos envol-vem, quase sempre, investidores e intermediários internacionais, exigia-se queas estruturas dessas operações seguissem um modelo com o qual aqueles agen-tes se sentissem confortáveis e minimamente familiarizados. Na falta de trust/

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8 Regra introduzida pelo Decreto-Lei n.° 280/87, de 8 de Julho.9 Cf. Decreto-Lei n.° 303/2003, de 5 de Dezembro.

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/trustee10 como forma de organização dos obrigacionistas no ordenamentojurídico português, a assembleia de obrigacionistas/ representante comum dosobrigacionistas acabou por ser o parente mais próximo e também o mais evi-dente e viável à luz da nossa lei, até porque já tinha assento legislativo noCdSC.

O RJTC não contém uma referência expressa à competência para a desig-nação inicial do representante comum dos obrigacionistas. Limita-se, antes, aaludir à possibilidade de aquele ser identificado nas condições da emissão, bemcomo à competência da assembleia de obrigacionistas para deliberar acerca darespectiva nomeação (artigo 65.°, n.os 1 e 3 do RJTC). Porém, a prática enrai-zada em operações de titularização de créditos realizadas com apoio no RJTCconfirma que a nomeação inicial tem sido assegurada pela própria entidadeemitente.

À semelhança do previsto no CdSC, no RJTC a designação do represen-tante comum dos obrigacionistas está prevista para cada emissão de obrigaçõestitularizadas, efectuada de uma só vez ou em séries (artigo 65.°, n.° 1 do RJTC).

IV. No respeitante à competência para a designação inicial do representantecomum dos obrigacionistas, o RJOH vai mais longe, ao prever expressamenteque o representante comum dos obrigacionistas é inicialmente designado pelo órgão deadministração da entidade emitente (artigo 14.°, n.° 2 do RJOH). À competênciadeste órgão social para a designação inicial segue-se a dos obrigacionistas paraeventuais nomeações subsequentes, bem como para a alteração das condiçõesiniciais daquela designação (artigo 14.°, n.° 5 do RJOH).

O representante comum das obrigações hipotecárias e sobre o sectorpúblico, ao contrário do que sucede nas obrigações ordinárias e nas obrigaçõestitularizadas, é único para todas as emissões de obrigações hipotecárias ou sobre o sectorpúblico emitidas pela mesma entidade (artigo 14.°, n.° 2 do RJOH). Esta opçãoparece estar associada à existência de um único património autónomo que res-ponde pela totalidade das emissões realizadas. Não significa isto que por essefacto os obrigacionistas de uma emissão tenham interesses e posições conver-gentes com os de outras emissões. E talvez por esse motivo, e para evitar des-necessárias confusões, poderia ter sido seguida pelo legislador a opção tomadano CdSC.

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10 Sobre o Trust na organização dos obrigacionistas: cf. FLORBELA DE ALMEIDA PIRES, Direitos eOrganização dos Obrigacionistas em Obrigações Internacionais, Lex (2001) e NUNO BARBOSA, Com-petência das Assembleias de Obrigacionistas,Almedina (2002), 48-51.

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Tanto o RJTC (artigo 65.°, n.° 5) como o RJOH (artigo 14.°, n.° 4) esta-belecem, de forma inovadora e sem equiparação no CdSC, que os termos dadesignação do representente comum são fixados nas condições da emissão deobrigações em causa, designadamente no que respeita à sua remuneração, aoscustos e encargos inerentes ao desenvolvimento das suas funções, às despesas deconvocação e realização de assembleias de obrigacionistas, aos limites aplicáveisà responsabilidade do representante comum e aos termos das responsabilidadesque perante ele são assumidas pela sociedade emitente e demais intervenientesna emissão em causa.

No que se refere à destituição do representante comum dos obrigacionis-tas, os três regimes sob análise prevêem que a aquela é da competência dosobrigacionistas, devendo, por isso, ser deliberada em assembleia de obrigacio-nistas (artigo 358.°, n.° 1 do CdSC, artigo 65.°, n.° 3 do RJTC e artigo 14.°,n.° 5 do RJOH). Curiosamente, nenhum destes regimes prevê regras sobre arenúncia ao cargo, matéria que, usualmente, se encontra disciplinada no con-trato de nomeação do representante comum.

Finalmente, a designação e a destituição do representante comum devem,nos três regimes em causa, ser comunicadas por escrito à sociedade e ser ins-critas no resgisto comercial por iniciativa da sociedade ou do próprio repre-sentante (artigo 358.°, n.° 4, directamente e ex vi artigo 65.°, n.° 7 do RJTC eartigo 14.°, n.° 1 do RJOH).

3.2. Designação do representante comum dos obrigacionistas

I. Chegados à designação do representante comum, defrontamo-nos com aregra do CdSC que estipula que aquela deve ser objecto de deliberação dosobrigacionistas – a qual especificará a duração definida ou indefinida das suasfunções – e, na falta de tal deliberação, de decisão judicial, a requerimento dequalquer obrigacionista ou da sociedade (artigo 358.°, n.os 1 e 2).

Já aqui foi denunciada a dificuldade prática que decorre deste processoelectivo11. A este respeito, não pode deixar de questionar-se porque razão nãopermitiu o legislador que, num momento prévio à emissão ou a qualquer deli-beração dos obrigacionistas, a sociedade emitente, interessada em robustecer aestrutura e estabilidade da sua emissão de obrigações e em dispor de um canaleficiente e ágil de relacionamento com os seus credores obrigacionistas, pro-

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11 Ver 2.1.

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ceda, ela própria, através do seu órgão de administração – à semelhança do quesucede na RJOH – à designação em causa.

Esta solução não teria impactos adversos para os obrigacionistas, que, nãoconcordando com a escolha da emitente poderiam a todo o tempo substituiro representante comum, nem acarretaria qualquer encargo para os obrigacio-nistas, uma vez que a remuneração do representante comum dos obrigacionis-tas é, em qualquer circunstância, da responsabilidade da emitente (artigo 357.°,n.° 5).

Como ficou referido atrás, ainda que os obrigacionistas, por deliberaçãounânime por escrito, simultânea à emissão das obrigações, confirmem a nomea-ção do representante comum, este, na grande maioria dos casos, não deixou deser identificado e escolhido pela emitente em primeira instância. Dada a impos-sibilidade prática de a escolha ser efectuada pelos obrigacionistas, estes limitam-se a manifestar o seu acordo à opção da emitente, que sugeriu que a represen-tação comum fosse assumida por certa entidade. Se assim é, então, em nossoentender, o CdSC poderia adoptar como solução a nomeação pela emitente,agilizando procedimentos em benefício de emitentes e investidores e evitandoos encargos e o tempo que a convocação de uma assembleia ou o recurso aotribunal implicam12.

Contra esta posição poderia argumentar-se que a designação do represen-tante comum dos obrigacionistas pela emitente seria ferida pela parcialidadedesta, pouco independente e viciada à partida, na medida em que os interessese posições dos obrigacionistas podem ser, e são muitas vezes, conflituantes comos da emitente. Porém, entendemos que tal argumento não colhe, por duasrazões: por um lado, a própria lei identifica um conjunto de incompatibilida-des, aplicável qualquer que seja o responsável pela nomeação, originária ou sub-sequente, do representante comum13; por outro lado, os obrigacionistas têmsempre e em qualquer circunstância a soberana opção de substituir o seu repre-sentante comum e alterar, naquilo que entenderem conveniente, os termos econdições dessa designação.

Pelos motivos expostos, não nos parece existir qualquer razão válida paraque a emitente devesse estar impedida de designar inicialmente o representantecomum dos seus obrigacionistas, sem necessidade de recurso ao tribunal nasseguintes circunstâncias: (i) contemporaneamente com a emissão, (ii) após a

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12 Ao contrário do defendido por alguma doutrina (cf. NUNO BARBOSA, Competência das Assem-bleias de Obrigacionistas, cit., 118), não nos parece que o recurso ao tribunal nestes casos constituaum meio expedito para o fim pretendido.13 Ver 2.2.2.

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emissão, na falta de deliberação dos obrigacionistas sobre o assunto ou naausência de requerimento ao tribunal para o efeito por qualquer obrigacionista.

II. Julgamos ser este, precisamente, o racional subjacente ao previsto noRJOH nesta matéria, que estabelece, num primeiro momento, que o represen-tante comum dos obrigacionistas é designado pelo órgão de administração da entidadeemitente e, num segundo momento, que a assembleia de obrigacionistas delibera sobrea nomeação, remuneração e destituição do representante comum dos obrigacionistas, bemcomo sobre a alteração das condições iniciais da respectiva designação.

No caso da titularização de créditos, embora não haja expressa referência àhipótese de designação do representante comum pela sociedade de titulariza-ção de créditos – mas somente a previsão de que a assembleia de obrigacionis-tas delibera sobre a respectiva nomeação, remuneração e destituição, bem comosobre a alteração das condições iniciais da designação –, a verdade é que tam-bém não há um claro impedimento. Daí que, sem quaisquer vozes discordan-tes, a prática no mercado português tenha sido a da designação inicial do repre-sentante comum dos obrigacionistas através de um contrato celebrado entreeste e a emitente (no qual muitas vezes são igualmente parte outros interve-nientes nas operações em questão, como acontece com a contraparte da socie-dade emitente nos contratos de swap (swap counterparty), ao abrigo da liberdadecontratual, princípio informador do nosso sistema jurídico)14.

III. Outra questão que separa os regimes de emissão de obrigações sob aná-lise, e que se relaciona com a anterior, prende-se com a circunstância de oCdSC (artigos 355.°, n.° 6 e 357.°, n.° 1) e o RJTC (artigo 65.°, n.° 1 doRJTC) preverem a existência de um representante comum dos obrigacionistaspara cada emissão de obrigações – ou seja, qualquer entidade elegível pode sernomeada representante comum, independentemente da emissão em causa, peloque para dez emissões de obrigações clássicas ou obrigações titularizadaspodem existir um, dois ou dez representantes comuns, consoante a vontademanifestada pelos respectivos obrigacionistas –, enquanto o RJOH estipula queo representante comum dos obrigacionistas é único para todas as emissões de obri-gações hipotecárias ou sobre o sector público emitidas pela mesma entidade (artigo 14.°,n.° 2 do RJOH) – ou seja, quer haja uma, duas ou dez emissões de obrigaçõeshipotecárias, o representante comum será sempre o mesmo.

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14 Cf. Prospecto de admissão à negociação em mercado regulamentado de obrigações titulari-zadas, emitidas pela Sagres – Sociedade de Titularização de Créditos, S.A. no âmbito da opera-ção de titularização denominada Pelican SME n.° 1, disponível em www.cmvm.pt.

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A dicotomia identificada parece, à partida, enquadrar-se pacificamente nascaracterísticas e natureza subjacentes às emissões de obrigações titularizadas – acada emissão de obrigações realizada pela sociedade de titularização de crédi-tos subjazem créditos cedidos que formam um património autónomo, estanquee autonomizado, que não poderá ser utilizado para satisfazer qualquer direitode crédito emergente de outra emissão – e às obrigações hipotecárias – a todasas emissões da mesma entidade está associado um conjunto de créditos hipote-cários ou sobre o sector público, respondendo esse património autónomo glo-bal por todas as emissões efectuadas pela respectiva entidade emitente. Assim,enquanto o património que garante o cumprimento das obrigações de reem-bolso de capital e pagamento de juros, comissões e despesas inerentes a obriga-ções titularizadas é destacado dos outros patrimónios autónomos associados àsoutras emissões realizadas pela sociedade de titularização de créditos e do patri-mónio geral da sociedade, o património que garante o cumprimento das obri-gações de reembolso de capital e pagamento de juros, comissões e despesas rela-tivas a obrigações hipotecárias ou sobre o sector público, embora também sejaautónomo face ao património geral da sociedade, é partilhado entre todosaqueles obrigacionistas, independentemente da emissão em causa.

Porém, atendendo a que para cada emissão de obrigações hipotecárias esobre o sector público podem estar em causa obrigacionistas distintos, não seentende porque motivo o legislador priva aqueles de seleccionarem represen-tantes também distintos, para salvaguarda dos seus interesses e actuação, comindependência e rigor, sempre que se coloquem situações de conflito de inte-resses entre obrigacionistas de diferentes emissões.

Com efeito, julgamos que seria desejável uma harmonização dos regimesjurídicos em presença, através da possibilidade de os obrigacionistas de qualquertipo de emissão de obrigações seleccionarem diferentes representantes paracada emissão ou o mesmo representante para todas. Adicionalmente, nunca édemais lembrar que, numa eventual situação de conflito posterior à nomeação,e na ausência de deliberação de obrigacionistas sobre o assunto, a qualquerobrigacionista assiste sempre, nos termos previstos no CdSC, a opção de reque-rer ao tribunal a designação de um representante comum alternativo.

O reconhecimento expresso pelo ordenamento jurídico português da exis-tência de programas de emissão de dívida (nomeadamente programas EMTNe programas de emissão de obrigações hipotecárias e de obrigações sobre o sec-tor público), documentados por, entre outros documentos, prospectos de basesuscita também a questão sob análise. É, por isso, legítimo questionar se, e emque medida, existe a possibilidade de ser nomeado um só representante comumdos obrigacionistas de emissões de dívida diversas abrangidos por um mesmo

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programa, quando, pese embora muitos dos termos e condições gerais das emis-sões poderem ser comuns15, se verifica, muitas vezes, a coexistência de tipos deobrigações diversos16 e, quase sempre, a sujeição das emissões, a condições espe-cíficas diferenciadas17.

Pelos motivos já enunciados, e atenta a actual redacção sobre a designaçãodo representante comum nos três regimes jurídicos em presença, cremos que aresposta à questão colocada não pode deixar de ser positiva, podendo os obri-gacionistas de diferentes emissões efectuadas ao abrigo de um mesmo programade emissão de dívida nomear um mesmo representante comum.

3.3. Destituição e renúncia do representante comum dos obrigacionistas

I. Os três regimes sob análise – CdSC, RJTC e RJOH – equivalem-se nasolução adoptada acerca da destituição do representante comum dos obriga-cionistas, prevendo que esta compete aos obrigacionistas, reunidos em assem-bleia. Nesta sede, há porém três aspectos sobre os quais julgamos importantereflectir.

O primeiro desses aspectos surge na sequência da posição que defendemossupra18 no sentido de, em certas circunstâncias, poder ser permitido à sociedadeemitente designar o representante comum dos seus obrigacionistas: imaginandoque a sociedade emitente procede à referida designação, sem que os obrigacio-nistas reajam, nomeadamente através da designação de um representante alter-nativo ou pura e simplesmente através da destituição do representante emcausa, pode a sociedade proceder à sua destituição e substituição por outrorepresentante?

Entendemos que a resposta a esta questão não pode deixar de ser negativa.Embora perante o acordo, a inércia ou a não oposição dos obrigacionistas, asociedade emitente devesse poder chamar a si, nos termos e condições aplicá-veis à emissão de obrigações clássicas, a designação inicial do representante

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15 A título de exemplo, regras relativas a eventos de incumprimento, garantias, forma e modali-dade das obrigações e regras relativas à respectiva transmissibilidade, procedimentos relacionadoscom a emissão, amortização e cancelamento das obrigações.16 A título de exemplo, obrigações sénior, obrigações subordinadas, obrigações ligadas a eventosde crédito, obrigações indexadas.17 A título de exemplo, tipo de obrigações, taxa de juro, periodicidade de pagamento de juros erespectivas regras de cálculo, instituições colocadoras.18 Ver 3.2.

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comum dos seus obrigacionistas, já não nos parece possível que a sociedadeemitente pudesse ter a possibilidade de destituir o representante comum. Taldestituição é da competência exclusiva dos obrigacionistas (artigos 355.°, n.° 4e 358.°, n.° 1), sem prejuízo de qualquer obrigacionista a poder requerer ao tri-bunal, com fundamento em justa causa (artigo 358.°, n.° 3), nomeadamente sese verificar uma situação de incompatibilidade.

A razão de ser desta posição é fácil de entender.A emitente não pode des-tituir ou substituir o representante comum, porque tal faculdade abriria a portaa comportamentos abusivos e em claro conflito de interesses, nem mesmo noscasos em que defendemos que deveria ser admissível a nomeação do represen-tante comum pela sociedade. O representante, importa não esquecer, tem a seuencargo a representação dos interesses comuns dos obrigacionistas, pelo que aestes e só a estes deve assistir o controlo sobre a figura do representante comumque resulta da possibilidade de o destituir.

Questão diversa é a de saber se, na ausência de deliberação para o efeitotomada pelos obrigacionistas, a emitente pode, unilateralmente, decidir sobre aalteração dos termos iniciais da designação do representante comum previstosna documentação da emissão.

A este respeito diríamos que, uma vez que aqueles termos são parte inte-grante das condições da emissão, apenas poderão ser alterados em obediênciaao disposto na lei e nas regras de alteração dessas condições, as quais podemimplicar (o que é muito comum) a conivência do representante comum, seexistente e devidamente mandatado para tal, ou uma deliberação favorável dosobrigacionistas.

II. Um segundo aspecto prende-se com a falta de regulamentação sobre oque acontece quando os obrigacionistas destituem o representante comum semfundamento em justa causa. O tribunal, diz-nos o artigo 358.°, n.° 3, pode des-tituir o representante comum a requerimento de algum obrigacionista. Se nãoexistir justa causa, tendo um representante sido nomeado – independentementedo responsável pela nomeação – nenhuma razão haverá para que um tribunalpossa, apenas, substituir o representante comum, interferindo assim na relaçãoentre a emitente e os obrigacionistas, sem que algum interesse relevante devaser protegido.

Tendo em atenção que ao ser nomeado para o cargo o representantecomum terá acordado uma remuneração pelo exercício das suas funções, cum-pre questionar se é possível e legítima a sua destituição, sem justa causa, sem quelhe assista o direito a um ressarcimento pela perda do cargo e da respectivaretribuição.

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Usualmente, esta matéria é objecto de negociação entre as partes no con-trato de nomeação do representante comum, no âmbito do qual podem seracordadas regras relativas ao ressarcimento. Na ausência desse acordo, julgamosque a resposta àquela questão dependerá da duração indefinida ou definida dasfunções em causa.

Assim, caso as funções sejam de duração indefinida, julgamos dever preva-lecer a regra geral aplicável à extinção dos poderes de representação, segundo aqual estes são livremente revogáveis pelo representado, sem que seja previsto odireito a qualquer indemnização. Já se as funções forem de duração definida,entendemos ser defensável que há uma legítima expectativa do representante eque, por este motivo, a sua destituição sem justa causa antes do termo previstopoderá dar origem a uma obrigação de indemnização.19

III. O terceiro aspecto prende-se com o facto de nenhum dos regimes jurí-dicos de emissão de dívida sob análise prever o que acontece se o representantecomum decidir renunciar ao seu cargo.A destituição – cessação de funções dorepresentante comum por iniciativa dos obrigacionistas – merece a atenção dolegislador, mas a renúncia – cessação suscitada pelo impulso do próprio repre-sentante comum – passou inadvertida. E, naturalmente, não pode aceitar-se semmais a ideia de que, não se encontrando prevista na lei, a renúncia pelo repre-sentante comum não tem cabimento. Por um lado, o representante comumpode ter fortes razões para renunciar ao cargo – por exemplo, caso venha a ces-sar a sua actividade – ou dever mesmo fazê-lo – se, depois da sua nomeação,vier a estar exposto a uma incompatibilidade.

Sobre esta matéria, a tendência verificada, e que se saúda, em operações deemissão de dívida clássica (nomeadamente em sede de programas EMTN), titu-larizada, hipotecária e sobre o sector público é a da previsão, nas condições daemissão ou nos contratos celebrados com o representante comum, de regrasespecíficas para a eventual renúncia do representante comum ao seu cargo.

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19 Sobre a indemnização devida em sede de destituição do representante comum dos obriga-cionistas, cf. NUNO BARBOSA, Competência das Assembleias de Obrigacionistas, Almedina (2002),página 129, que defende que, sempre que a matéria em questão não seja objecto do contratocelebrado com o representante comum destituído, fará sentido a aplicação analógica do dispostono artigo 257.°, n.° 7 e no artigo 430.°, n.° 3 do CdSC, sobre a destituição sem justa causa dosgerentes das sociedades por quotas e dos directores das sociedades anónimas, respectivamente, nostermos das quais a destituição em causa dará direito a uma indemnização pelos prejuízos deladecorrentes.

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Disto mesmo são exemplo as regras que fixam um prazo razoável para anotificação prévia pelo representante comum da renúncia pretendida e as queestabelecem a orbigatoriedade de o representante renunciante convocar umaassembleia de obrigacionistas para que seja nomeado o seu substituto, perma-necendo em funções até que tal ocorra, obviando-se, assim, a intermitências noexercício do cargo das quais poderiam decorrer impactos adversos para os obri-gacionistas.

IV. As questões abordadas nos pontos anteriores conduzem-nos ao reco-nhecimento de que a evolução do mercado de emissão de dívida português ea sua crescente sofisticação são factores determinantes da maior importânciadada actualmente às condições da emissão e à documentação acessória, nomea-damente, nos aspectos relativos à organização dos credores obrigacionistas e aopapel do respectivo representante comum.

É neste contexto que verificamos, no RJTC e no RJOH, menções ao factode determinados aspectos relacionados com o representante comum dos obri-gacionistas poderem (note-se, que se trata de uma mera possibilidade e não deuma obrigação) constar das condições da emissão. É o caso dos termos da desig-nação, da remuneração, dos custos e encargos inerentes ao desenvolvimento das suas fun-ções, às despesas de convocação e realização de assembleias de obrigacionistas, aos limitesaplicáveis à sua responsabilidade e aos termos das responsabilidades que perante ele sãoassumidas pela entidade emitente de obrigações e demais intervenientes na emissão emcausa, os poderes de representação dos obrigacionistas que lhe sejam conferidos e a formada sua articulação com a assembleia de obrigacionistas (artigo 65.°, 2 e 5 do RJTC eartigo 14.°, 4 e 7 do RJOH).

Já no CdSC a única alusão que encontramos a um documento autónomoincidente sobre o cargo de representante comum dos obrigacionistas consta doartigo 359.° ao prever que a assembleia de obrigacionistas pode aprovar um regula-mento das funções do representante comum.

Embora o CdSC nunca se refira nesta matéria expressamente a condições daemissão, parece-nos inegável a necessidade de conceber termos e condições deemissão de dívida bem estruturadas e que contemplem, de forma clara e tãocompleta quanto possível, todos os aspectos relacionados com o representantecomum dos obrigacionistas e com o exercício das suas funções, as quais podeme, sempre que oportuno e justificável, devem ir para além dos aspectos previs-tos no CdSC e nos RJTC e RJOH, adaptando-se às especificidades das emis-sões em causa. Nessa perspectiva, os referidos termos e condições podem, aoabrigo da liberdade contratual, ser complementados por documentos que espe-cificamente incidam sobre a figura do representante comum dos obrigacionis-

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tas. É o caso dos contratos de designação do representante comum (CommonRepresentative Appointment Agreements), muito utilizados tanto em sede de emis-sões de dívida autónomas, como em programas de emissão de dívida.

4. As atribuições e as responsabilidades do representante comum

4.1. Introdução

I. Quando nos debruçamos sobre as atribuições e responsabilidade dorepresentante comum dos obrigacionistas, não podemos perder de vista oobjectivo da respectiva nomeação e este, deve, em nosso entender, desdobrar-se em duas vertentes essenciais. Por um lado, a necessidade de promover a orga-nização dos obrigacionistas como grupo tendencialmente disperso e não ali-nhado de investidores, que importa coordenar e dotar de meios quepossibilitem a defesa efectiva dos respectivos interesses e posições. Por outrolado, a necessidade de potenciar a criação de um canal de relacionamentocomum com o emitente e, assim, evitar os inconvenientes que resultariam paraa sociedade emitente caso esta tivesse de contactar individualmente com cadaum dos obrigacionistas no âmbito de todas as questões e assuntos que venhama colocar-se durante a vida das obrigações.20

Tendo como ponto de partida o CdSC, cujas regras se aplicam a todas asemissões de obrigações, inclusivamente às emissões de obrigações titularizadase hipotecárias e sobre o sector público21, propomo-nos sistematizar neste capí-tulo as atribuições e responsabilidade do representante comum, as quais podemter um carácter abrangente e mais amplo do que o previsto na lei.

II. Sob a epígrafe Atribuições e responsabilidades do representante comum, oartigo 359.°, n.° 1 estabelece que este

(…) deve praticar, em nome de todos os obrigacionistas, os actos de gestão destinados à defesados interesses comuns destes, competindo-lhe nomeadamente:

a) Representar o conjunto dos obrigacionistas nas suas relações com a sociedade;

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20 Cf. CARLOS OSÓRIO DE CASTRO, Valores Mobiliários, Conceito e Espécies, Coimbra Editora(1998), 154.21 O artigo 359.° do CdSC (Atribuições e responsabilidades do representante comum) aplica--se ao representante comum dos obrigacionistas detentores, quer de obrigações titularizadas(artigo 65.° 7 do RJTC), quer de obrigações hipotecárias (artigo 14.°, n.° 1 do RJOH).

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b) Representar em juízo o conjunto dos obrigacionistas, nomeadamente em acções movi-das contra a sociedade e em processos de execução ou de liquidação do património desta;

c) Assistir às assembleias gerais dos accionistas;d) Receber e examinar toda a documentação da sociedade, enviada ou tornada patente

aos accionistas, nas mesmas condições estabelecidos para estes;e) Assistir aos sorteios para reembolso de obrigações;f) Convocar a assembleia de obrigacionistas e assumir a respectiva presidência, nos ter-

mos desta lei.

Às atribuições do representante comum expressamente elencadas na leicomo tal acrescem ainda o direito à informação sobre a sociedade (artigo293.°), o direito de estar presente nas assembleias dos titulares de obrigações deoutras emissões (artigo 355.°, n.° 6) ou de accionistas (artigo 379.°, n.° 3), a sus-ceptibilidade de ser parte em acção declarativa de nulidade e de anulação dedeliberações da assembleia de obrigacionistas, em representação dos obrigacio-nistas que hajam aprovado tais deliberações sempre que a estas não se tenhaoposto (artigo 356.°, n.° 2) e o dever de prestar aos obrigacionistas as infor-mações que lhe forem solicitadas sobre factos relevantes para os interessescomuns (359.°, n.° 2).

Adicionalmente, uma leitura a contrario do artigo 359.°, n.° 5, parece nãoimpedir que o representante comum dos obrigacionistas receba juros ou outrasimportâncias devidas pela sociedade aos obrigacionistas em conjunto.

Às atribuições referidas acima, também aplicáveis no âmbito da emissão deobrigações titularizadas e de obrigações hipotecárias e sobre o sector público22,o RJTC e o RJOH acrescentam expressamente que podem ser atribuídos ao repre-sentante comum dos obrigacionistas poderes para:

a) Executar as deliberações da assembleia de obrigacionistas que tenham decretadoo vencimento antecipado das obrigações em causa;

b) Exercer, em nome e representação dos obrigacionistas, os direitos que lhes sejamconferidos pelo presente decreto-lei ou pelas condições da emissão;

c) Representar os obrigacionistas em juízo, em qualquer tipo de acções.

III. Relativamente aos direitos e às obrigações e à responsabilidade dorepresentante comum, enfrentamos uma escassez de regulação, sendo de salien-tar a alusão no CdSC ao facto de o representante comum responder, nos termos gerais,pelos actos ou omissões violadores da lei e das deliberações da assembleia de obrigacio-

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22 Cf. remissão no artigo 65.°, n.° 7 do RJTC e no artigo 14.°, n.° 1 do RJOH.

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nistas (artigo 359.°, n.° 3) e, tanto o RJTC como o RJOH prevêem que as con-dições da emissão de obrigações devem conter os termos da designação dorepresentante comum, designadamente no que respeita, entre outros, aos limitesaplicáveis à responsabilidade do representante comum e aos termos das responsabilidadesque perante ele são assumidas pelas sociedades emitentes e demais intervenientes nasemissões em causa (artigos 65.°, n.° 2 do RJTC e 14.°, n.° 4 do RJOH).

Do ponto de vista da documentação das emissões, o CdSC deixa ao crité-rio da assembleia de obrigacionistas a aprovação de um regulamento das fun-ções de representante comum, nada prevendo no que respeita ao suporte docu-mental das respectivas responsabilidades. Já a RJTC e a RJOH, mais uma vezem uníssono, remetem o estabelecimento dos aspectos mencionados para ascondições da emissão.

4.2. Atribuições do representante comum dos obrigacionistas

I.A natureza exemplificativa da lista de atribuições do representante comumacima transcrita deixa, também neste aspecto, espaço à liberdade das partesenvolvidas na emissão, permitindo o estabelecimento de atribuições adicionaisadaptadas aos interesses em jogo e às particularidades de cada emissão.

Nesta perspectiva, entendemos ser possível (ou mesmo desejável) prever nadocumentação de emissões de dívida (nomeadamente nos seus termos e con-dições e em contratos de designação do representante comum dos obrigacio-nistas) atribuições que vão para além das expressamente previstas na lei, comosejam, a título de exemplo, (i) a monitorização, pelo representante comum, documprimento de determinadas obrigações da sociedade emitente, (ii) a facul-dade de despoletar de uma forma expedita o vencimento antecipado das obri-gações, verificado que seja algum evento de incumprimento previsto nas con-dições da emissão ou (iii) quaisquer outras atribuições que sejam deliberadasem sede de assembleia de obrigacionistas.

Adicionalmente, e na ausência de documentação da emissão que incidasobre o assunto, nada parece impedir os obrigacionistas de atribuírem ao seurepresentante comum funções que vão para além das estabelecidas na lei. Nessecontexto, as atribuições previstas na lei parecem redundar em poderes que seenquadram no fenómeno da representação legal, uma vez que é a lei que esta-belece a respectiva existência e extensão23, ou seja, no âmbito de tais atribui-

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23 Sobre os poderes de representação legal do representante comum dos obrigacionistas,cf. FLORBELA DE ALMEIDA PIRES, Direitos e Organização dos Obrigacionistas em Obrigações Interna-cionais, cit., 216.

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ções a legitimidade representativa provém da lei. Já no que respeita às atribui-ções que vão para além do previsto na lei, decorrendo a respectiva extensão,quer de um contrato, quer da vontade dos obrigacionistas expressa em delibe-rações da respectiva assembleia, julgamos estar perante poderes de representa-ção voluntária24.

II. Inevitavelmente associada aos poderes de representação voluntária dorepresentante comum dos obrigacionistas surge a dúvida sobre se estes podemdelegar naquele a decisão de matérias que lhes sejam atribuídas por lei, nomea-damente as constantes do artigo 355.°, n.° 4.

Embora a doutrina não seja unânime neste ponto, parece-nos que o factode a lei reservar à assembleia de obrigacionistas (mais correcto seria dizer reser-var à deliberação dos credores obrigacionistas, tomada em assembleia oumediante outro processo decisório, incluindo deliberações unânimes porescrito e assembleias universais) a exclusividade da decisão sobre determinadasmatérias revela que estas não poderão, sem mais e de modo genérico e defini-tivo, ser objecto de delegação no representante comum. Porém, admitimos queos obrigacionistas possam conferir poderes concretos, bem definidos e delimi-tados no tempo, ao representante comum para que este actue no âmbito dealgumas dessas matérias, sem contudo abdicar dos seus poderes relativamente àsmesmas.25

O exposto não retira ao representante comum o poder de livre iniciativa eactuação no respeitante a outras matérias de interesse comum, relativamente àsquais aquele deverá (independentemente de especial indicação da assembleiados obrigacionistas nesse sentido) tomar as decisões e medidas que considereadequadas ao bom desempenho das suas funções e à defesa dos interessescomuns dos seus representados.

4.2. Responsabilidades do representante comum dos obrigacionistas

I.A regra geral, estabelecida no CdSC (artigo 359.° 3), é de que as respon-sabilidades do representante comum dos obrigacionistas decorrem da lei e dasdeliberações da assembleia de obrigacionistas, devendo aquele responder, nos

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24 Cf. artigos 262.° e seguintes do Código Civil. Sobre a distinção entre representação legal e arepresentação voluntária, Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil,3.ª ed., Coimbra Editora (1989), 539.25 Neste sentido, NUNO BARBOSA, Competência das Assembleias de Obrigacionistas, cit., 117 (282).

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termos gerais de direito, pelos erros e omissões que consubstanciem violaçõesdaquelas. Nesta abordagem, da remissão para os termos gerais de direito decorreque as responsabilidades do representante comum dos obrigacionistas podemser de natureza civil (contratuais ou extracontratuais)26 ou criminal27, con-soante as violações que estejam na sua origem.

II. Adicionalmente, as responsabilidades do representante comum podemdecorrer das condições da emissão e até ser limitadas por estas, embora tal liber-dade de estipulação não possa contender ou sobrepor-se aos preceitos legaisreguladores das atribuições do representante comum.

É também neste sentido que o RJTC e o RJOH prevêem expressamenteque os limites aplicáveis à responsabilidade do representante comum dos obri-gacionistas são estabelecidos nas condições da emissão de obrigações e que aprática na documentação das emissões de obrigações titularizadas e de obriga-ções hipotecárias e sobre o sector público têm vindo a consagrar, de modovariável, aqueles limites28.

Do ponto de vista do suporte documental da emissão de dívida o CdSC éomisso no que se refere à responsabilidade do representante comum dos obri-gacionistas e à sua eventual limitação, deixando espaço para que aquelas possamlivremente ser, ou não, expressamente contempladas nos documentos da emis-são.Também neste aspecto, seria bem acolhida uma harmonização dos regimesjurídicos em presença, através da contemplação no CdSC de uma previsãoidêntica à que a este respeito existe já no RJTC e no RJOH.

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26 Responsabilidade contratual: quando originada pela violação de um direito de crédito ou obrigação emsentido técnico. É a responsabilidade do devedor perante o credor pelo não cumprimento da obrigação. Res-ponsabilidade extracontratual: quando resultante da violação de um dever geral de abstenção contrapostoa um dever absoluto. Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed.,Coimbra Editora (1989), 123 e ss.27 Enquanto a responsabilidade civil se dirige à restauração, específica ou por equivalente, dosinteresses individuais lesados, a responsabilidade criminal visa satisfazer interesses da comunidade,ofendida pelo facto ilícito criminal. A responsabilidade criminal manifesta-se na aplicação dapena ao autor do facto criminoso. Cf. CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do DireitoCivil, cit., 116 e 117.28 Cf. Prospecto do Programa de Obrigações Hipotecárias do Banco BPI, S.A., 78, disponívelem www.cmvm.pt.

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5. Notas finais

I. As regras relativas ao representante comum dos obrigacionistas previstasno CdSC suscitam algumas inconsistências, contradições e dificuldades de apli-cação prática. Neste contexto, é inevitável confrontar tais regras quer com asnecessidades e desafios inerentes às operações de emissão de dívida generica-mente consideradas, quer com as soluções adoptadas pelo legislador portuguêspara fazer face às particularidades de determinadas operações em concreto,como é o caso das operações de titularização de créditos e de emissão de obri-gações hipotecárias e sobre o sector público.

Embora algumas das inconsistências, contradições e dificuldades detectadasno regime do CdSC tenham já sido reconhecidas, e sanadas, no âmbito doRJTC e do RJOH, continua a haver bastante por fazer, ainda que muitas vezesa nomeação do representante comum e as regras aplicáveis ao exercício darepresentação comum acabem por ser acordadas inter-partes, passando o con-trato de nomeação do representante comum a desempenhar um papel chave nopreenchimento das lacunas que a lei não preencheu.

A verdade é que, sem prejuízo das diferenças entre obrigações clássicas,obrigações titularizadas e obrigações hipotecárias e sobre o sector público, nãonos parece existir uma distinção fundamental entre a posição na qual estão oscredores obrigacionistas titulares dessas obrigações que determine a existênciade três regimes jurídicos distintos e com significativas particularidades.

II. Uma das principais dificuldades – e a questão inicial que se coloca aoanalisar o regime jurídico aplicável à organização de obrigacionistas – respeitaà nomeação do representante comum. Seria desejável que o CdSC permitisseque, num momento contemporâneo à emissão ou posterior a este, a sociedadeemitente pudesse – à semelhança do que sucede já no RJOH e é admitido aoabrigo do RJTC – designar o representante comum dos seus obrigacionistas.Com efeito, ainda que os obrigacionistas tenham a faculdade de, através de deli-beração unânime por escrito, simultânea à emissão das obrigações, confirmar anomeação do representante comum, este, na grande maioria dos casos, não dei-xou de ser identificado e escolhido pela emitente em primeira instância: dadaa impossibilidade prática de a escolha ser efectuada pelos obrigacionistas, o quemuitas vezes acaba por acontecer é estes limitarem-se a manifestar o seu acordoà opção da emitente. Esta solução teria ainda o mérito de flexibilizar as opçõescom que se deparam emitentes e investidores, agilizando procedimentos e evi-tando os encargos e o tempo que a convocação de uma assembleia ou o recursoao tribunal implicam, sem que da mesma resultassem impactos adversos para os

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obrigacionistas – que, mediante a verificação de um conflito de interesses ouem caso de discordância com a escolha da emitente, poderiam a todo o temposubstituir o representante comum –, nem acarretaria qualquer encargo paraaqueles, uma vez que a remuneração do representante comum constituiencargo da sociedade emitente.

III.Atendendo a que para cada emissão de obrigações hipotecárias e sobreo sector público podem estar em causa obrigacionistas distintos, não se entendeporque motivo o legislador priva aqueles de seleccionar representantes tambémdistintos, para salvaguarda dos seus interesses, quando o possibilita nas emissõesao abrigo do CdSC e do RJTC.

Seria desejável uma harmonização dos regimes jurídicos em presença, per-mitindo a obrigacionistas de qualquer tipo de emissão de obrigações – e àsociedade emitente, caso aqueles renunciem a qualquer actuação a este respeito– escolher representantes diferentes para cada emissão ou o mesmo represen-tante para todas elas.

IV. No caso do representante comum designado pela sociedade emitente aoabrigo do RJTC ou do RJOH, a sociedade emitente que designe o represen-tante comum dos obrigacionistas não poderá proceder à sua destituição, por-quanto esta é da competência exclusiva dos obrigacionistas. Na ausência dedeliberação para o efeito, tomada pela assembleia de obrigacionistas, a sociedadeemitente não pode, unilateralmente, decidir sobre a alteração dos termos ini-ciais da designação do representante comum dos seus obrigacionistas: uma vezque aqueles termos são parte integrante das condições da emissão, apenas pode-rão ser alterados em obediência ao disposto na lei e nas regras de alteração des-sas condições, que podem implicar a conivência do representante comum ouuma deliberação favorável dos obrigacionistas.

Perante o vazio legislativo sobre quais as consequências da destituição dorepresentante comum sem justa causa, entendemos que, não sendo a matériaobjecto de acordo prévio com o representante comum, o direito deste a umeventual ressarcimento por essa destituição dependerá da duração indefinida oudefinida das funções em causa: no primeiro caso não haverá direito a qualquerindemnização; no segundo caso, e perante a destituição antes do termo previsto,é defensável a verificação de uma legítima expectativa do representante, origi-nadora de uma obrigação de indemnizar;

Por outro lado, nenhum dos regimes jurídicos de emissão de dívida sobanálise regula a renúncia pelo representante comum às suas funções. Na ausên-cia, quer de estipulação em contrário, quer de deliberação pelos obrigacionis-

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tas a este respeito, deve recorrer-se às regras gerais previstas no CdSC, sendoreconhecida legitimidade aos obrigacionistas para designar um novo represen-tante. Sobre esta matéria, a tendência verificada é a da previsão, nas condiçõesda emissão ou nos contratos celebrados ou a celebrar com o representantecomum, de regras específicas para a eventual renúncia ao seu cargo.Tais regrasprevêem um prazo de notificação prévio para a renúncia pretendida e/ou esta-belecem que o representante renunciante deverá convocar uma assembleia deobrigacionistas para que seja nomeado o seu substituto, permanecendo em fun-ções até que tal ocorra.

V. As atribuições do representante comum dos obrigacionistas previstas nalei têm uma natureza exemplificativa, deixando espaço às partes envolvidas naemissão para estabelecer atribuições adicionais às ali previstas, e parecem redun-dar em poderes de representação legal, uma vez que é a lei que estabelece a res-pectiva existência e extensão. Já no que respeita às atribuições que se situamalém do previsto na lei, decorrendo a respectiva extensão, quer de um contrato,quer da vontade dos obrigacionistas, julgamos estar perante poderes de repre-sentação voluntária.

O facto de a lei reservar à assembleia de obrigacionistas a exclusividade paradecidir sobre certas matérias revela que estas não poderão, de modo genérico edefinitivo, ser objecto de delegação no representante comum. Porém, nadaparece impedir que a assembleia de obrigacionistas confira poderes concretos,bem definidos e delimitados no tempo, ao representante comum para actuar noâmbito de algumas dessas matérias, sem, contudo, abdicar dos seus poderes rela-tivamente às mesmas. Naturalmente que o representante comum continua a tero poder de livre iniciativa e actuação em matérias de interesse comum que nãosejam da competência exclusiva do colégio de obrigacionistas, relativamente àsquais aquele deverá tomar as decisões e medidas que considere adequadas aobom desempenho das suas funções e à defesa dos interesses comuns dos seusrepresentados.

VI. Nos termos gerais de direito, as responsabilidades do representantecomum dos obrigacionistas podem ser de natureza civil (contratuais ou extra-contratuais) ou criminal, consoante as violações que estejam na sua origem.Adicionalmente, as responsabilidades do representante comum dos obrigacio-nistas podem decorrer das condições da emissão e até ser limitadas por estas.

VII. A evolução do mercado de emissão de dívida português e a sua cres-cente sofisticação constituem factores determinantes na maior importância

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dada actualmente às condições da emissão de dívida e documentação acessória.O RJTC e o RJOH contêm menções ao facto de determinados aspectos rela-cionados com o representante comum dos obrigacionistas poderem constar dascondições da emissão, mas no CdSC a única alusão a um documento autónomoincidente sobre o cargo de representante comum dos obrigacionistas diz res-peito a um eventual regulamento das funções do representante comum.

É importante conceber termos e condições de emissão de dívida bemestruturadas e que contemplem, de forma clara e tão completa quanto possível,todos os aspectos relacionados com a representação comum dos obrigacionis-tas e com o exercício das funções do representante comum, as quais podem e,sempre que oportuno e justificável, devem ir para além dos aspectos previstosno CdSC e nos RJTC e RJOH, adaptando-se às especificidades das emissõese produtos que estejam em causa.Adicionalmente, e acompanhando aquela quejá vem sendo a prática do mercado, seria desejável uma flexibilização e harmo-nização das disposições em causa, nomeadamente através da contemplação noCdSC das remissões e terminologia respeitantes às condições da emissão, jáadoptadas no RJTC e do RJOH.

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