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Área de Conhecimento: 7.07.00.00-1 - Psicologia Título: COMPREENDENDO A VOLTA PARA CASA Orientando: JULIA LANDGRAF PUPO Orientadora: MARILDA PIERRÔ DE O. RIBEIRO Parecerista: Maria de Lurdes Trassi Teixeira Palavras chaves: desabrigamento, adolescência e família. RESUMO Com o presente trabalho, buscou-se compreender o que é necessário para que o desabrigamento do adolescente ocorra, isto é, como acontece o retorno para a família, depois de ele já ter passado por uma instituição de abrigamento. Foram estudados três casos, diferentes um do outro, de desabrigamento, envolvendo adolescentes que saíram de suas casas, passaram pela rua, foram para o abrigo e, depois do trabalho desenvolvido pela instituição, voltaram para suas casas. Constitui-se este estudo de: a) pesquisa empírica, com entrevistas realizadas com os agentes envolvidos na problemática do desabrigamento que são os adolescentes, seus familiares e as pessoas que trabalham nas instituições; b) fundamentos teóricos, os quais, sob a luz de literatura lúcida e profundamente humana, explicam qual é a função do abrigo, segundo o ECA, o seu papel como instituição e o desabrigamento; a família, sua função, sua importância na constituição subjetiva do sujeito e como ela se relaciona com o adolescente presente no seu dia a dia; a rua como uma possibilidade de transformação de identidade e um meio de se livrar dos conflitos existentes em casa; e o conceito de resiliência, constructo de estudos atuais, que possibilita olhar e trabalhar tanto com o indivíduo como com um grupo, e acreditar na sua transformação.

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Área de Conhecimento: 7.07.00.00-1 - Psicologia

Título: COMPREENDENDO A VOLTA PARA CASA

Orientando: JULIA LANDGRAF PUPO

Orientadora: MARILDA PIERRÔ DE O. RIBEIRO

Parecerista: Maria de Lurdes Trassi Teixeira

Palavras chaves: desabrigamento, adolescência e família.

RESUMO

Com o presente trabalho, buscou-se compreender o que é necessário para que o

desabrigamento do adolescente ocorra, isto é, como acontece o retorno para a família,

depois de ele já ter passado por uma instituição de abrigamento. Foram estudados três

casos, diferentes um do outro, de desabrigamento, envolvendo adolescentes que saíram

de suas casas, passaram pela rua, foram para o abrigo e, depois do trabalho

desenvolvido pela instituição, voltaram para suas casas. Constitui-se este estudo de: a)

pesquisa empírica, com entrevistas realizadas com os agentes envolvidos na

problemática do desabrigamento que são os adolescentes, seus familiares e as pessoas

que trabalham nas instituições; b) fundamentos teóricos, os quais, sob a luz de literatura

lúcida e profundamente humana, explicam qual é a função do abrigo, segundo o ECA, o

seu papel como instituição e o desabrigamento; a família, sua função, sua importância

na constituição subjetiva do sujeito e como ela se relaciona com o adolescente presente

no seu dia a dia; a rua como uma possibilidade de transformação de identidade e um

meio de se livrar dos conflitos existentes em casa; e o conceito de resiliência, constructo

de estudos atuais, que possibilita olhar e trabalhar tanto com o indivíduo como com um

grupo, e acreditar na sua transformação.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE PSICOLOGIA

COMPREENDENDO A VOLTA PARA CASA

JULIA LANDGRAF PUPO

Trabalho de Conclusão de Curso como exigência parcial para a Graduação no Curso de Psicologia, sob a orientação da Profa. Dra. Marilda Pierrô de O. Ribeiro

SÃO PAULO

2007

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 04

O PAPEL DO ABRIGO........................................................................................ 06 A PASSAGEM PELA RUA ................................................................................. 13 A FAMÍLIA........................................................................................................... 17 A RESILIÊNCIA................................................................................................... 20

A CASA DE ACOLHIDA .................................................................................... 26

A PESQUISA ........................................................................................................ 29

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS............................................................ 33

CONCLUSÃO....................................................................................................... 47

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 50

BIBLIOGRAFIA................................................................................................... 51

ANEXO I............................................................................................................... 52 ANEXO II ............................................................................................................. 55 ANEXO III ............................................................................................................ 57 ANEXO IV............................................................................................................ 59 ANEXO V ............................................................................................................. 61 ANEXO VI ............................................................................................................ 63 ANEXO VII........................................................................................................... 68

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INTRODUÇÃO As questões da infância e da adolescência, e também da desigualdade social e

econômica que atingem a sociedade brasileira, sempre estiveram presentes na minha

vida, antes mesmo da minha entrada na universidade, quando eu ainda era adolescente e

a psicologia tornou-se para mim um caminho possível para poder trabalhar e

transformar essas questões.

No quarto ano da faculdade, quando começamos os estágios obrigatórios, no

Núcleo 3 de Educação e Formação, estagiei em um abrigo de curta permanência,

conhecido por casa de acolhida. Desenvolvi, junto com um colega que compunha a

equipe, um projeto de pesquisa sobre desabrigamento, que significa o retorno dos

adolescentes para casa, depois de terem passado por um abrigo. No caso dessa casa de

acolhida, ela recebe crianças e adolescentes que passaram pela rua, depois que saíram

de casa ou, casos de alguns, que romperam os laços familiares.

Desenvolvemos um projeto piloto que consistiu em uma pesquisa realizada com

três adolescentes que haviam saído do abrigo há pouco tempo e ainda mantinham

vínculo com a instituição. O objetivo do nosso trabalho foi compreender os

acontecimentos e processos que estão em jogo na etapa da volta para casa e, assim,

subsidiar o abrigo no programa de acompanhamento, identificando o auxilio necessário

para a manutenção da criança e do adolescente junto à família. O resultado do trabalho

foram as diretrizes gerais para se pensar em um desabrigamento adequado. Essa havia

sido a demanda do estágio colocada pela equipe técnica do abrigo e do CEDECA,

instituição responsável pela casa de acolhida.

A metodologia usada consistiu de duas entrevistas semidirigidas, uma realizada

com o adolescente e a outra, com o responsável, montadas a partir do levantamento de

aspectos considerados importantes para o entendimento do que é o desabrigamento.

Este projeto de pesquisa foi o trabalho que mais gostei de desenvolver na

faculdade e que me instigou a pensar em muitas questões relacionadas às instituições

que permeiam a vida dos jovens estudados, ou seja, a FAMÍLIA, a RUA e o ABRIGO.

Fez também com que eu pensasse o porquê de sair de junto da família e como é voltar

para ela depois. Tais instituições, fundamentais na vida desses adolescentes e de muitos

outros da nossa sociedade, são formadoras de subjetividade e influenciam e

transformam tais identidades.

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Outra indagação que me veio foi a questão dos vínculos estabelecidos entre o

adolescente e as instituições pelas quais ele passou, as pessoas nelas presentes e o

rompimento desses vínculos em um momento da vida, adolescência, em que o vínculo é

fundamental e de orientação para o futuro.

Como o trabalho desenvolvido no quarto ano foi apenas uma pesquisa empírica

e sua análise feita através da comparação entre os casos, considerei interessante, pela

riqueza do material, apresentar um embasamento teórico, a partir da bibliografia que

trata do assunto, porque é importante que sejam dadas às vivências práticas a

consistência da instrumentalização teórica, o que torna o trabalho mais profundo e

acadêmico.

O objetivo do presente trabalho foi, portanto, pesquisar a literatura relacionada

ao tema de modo a compreender o que significa voltar para família, depois de ter

decidido deixá-la, de passar pela rua e pelo abrigo. O retorno para casa nessa situação

nunca é fácil, pois, além da instabilidade do vínculo adolescente-família, vêm à tona

conflitos estruturais familiares, os mitos, a revisão de posição de cada sujeito envolvido

na situação, as questões financeiras e de desigualdade social que trazem não só péssimas

condições materiais, o que muitas vezes impossibilita a volta, como também

conseqüências psicológicas consideráveis. A pesquisa teórica teve como questão

norteadora: o que é necessário para que o desabrigamento aconteça?

O trabalho está dividido em três partes:

A primeira parte diz respeito ao capitulo teórico no qual faço uma apresentação:

- do abrigo, segundo o ECA, o seu papel como instituição e o desabrigamento;

- da família, sua função, sua importância na constituição subjetiva do sujeito e

como ela se relaciona com a presença do adolescente;

- a rua como uma possibilidade de transformação de identidade e um meio de se

livrar dos conflitos existentes em casa;

- do conceito de resiliência, constructo de estudos atuais, que nos possibilita

olhar e trabalhar tanto com o indivíduo como com um grupo, de forma que

seja possível acreditar na sua transformação.

Esses temas são permeados pela questão da adolescência na atualidade.

A segunda parte refere-se à apresentação do abrigo em que foi desenvolvida a

pesquisa empírica e, depois, a descrição de como esta foi realizada.

A terceira, e última parte, apresenta a leitura dos dados à luz do embasamento

teórico.

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O PAPEL DO ABRIGO

Em 1990, foi promulgada a Lei Federal 8.069, Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), uma legislação de defesa dos direitos da infância e da juventude e

inaugura uma nova maneira de olhar e tratar as questões dessas etapas da vida. A partir

de sua implantação, a criança e o adolescente passaram a ser vistos pela sociedade como

pessoas de direitos e os responsáveis em garantir saúde, educação e bem estar a eles, são

o Estado, a família, a sociedade civil (Pires, 2006).

O ECA tem como principio norteador superar a política assistencialista de

atendimento à criança e ao adolescente em situação de vulnerabilidade e risco social,

partindo para um novo modelo de atendimento com caráter socioeducativo, baseado em

uma nova concepção de educação.

O ECA impõe uma nova forma de trabalhar e cuidar das crianças e dos

adolescentes em situação de risco pessoal e social, indica no trabalho com essa

população a aplicação de medidas de proteção e medidas sócio-educativas, juntamente

com a implantação de programas que possam dar conta das diferentes demandas e

necessidades de cada caso em particular, singularizando o atendimento. O ECA coloca

também a necessidade do atendimento em instituições pequenas e em pequenos grupos,

personalizando-o, e traz a responsabilidade para os municípios, descentralizando as

funções que antes ficavam principalmente sob responsabilidade do governo estadual

(Guará, 1998).

As medidas sócio-educativas são aplicadas apenas no caso de ato infracional e as

medidas de proteção, em qualquer caso, quando os direitos básicos da criança ou do

adolescente estão sendo violados ou ameaçados. (Guará, 1998). Portanto, o estatuto

diferencia as populações que receberão as medidas de proteção das que receberão as

sócio-educativas, distinção que não existia antes, porque as duas populações recebiam o

mesmo tratamento e pobreza e vulnerabilidade eram sinônimos de delinqüência ( Pires,

2006).

Segundo o artigo 98 do ECA, as medidas de proteção são utilizadas sempre que

os direitos da criança ou do adolescente estão sendo ameaçados ou violados por ação ou

omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou

responsável, ou quando a própria conduta coloca a criança ou o adolescente em situação

de risco. Situações de risco podem ser entendidas genericamente como abandono,

negligência, maus tratos.

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São oito as medidas de proteção que estão indicadas no artigo 101 do ECA: I-

Encaminhamento aos pais ou responsáveis, mediante termo de responsabilidade; II-

Orientação, apoio e acompanhamento temporários; III- Matrícula e freqüência

obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV- Inclusão em

programa comunitário ou oficial de auxilio à família, à criança e ao adolescente; V-

requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou

ambulatorial; VI- Inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e

tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII- Abrigo em entidade; VIII- Colocação em

família substitutiva.

Portanto, o abrigo deveria ser a penúltima medida de proteção aplicada. Porém,

por falta de investimento e políticas públicas, que possibilitem a aplicação das medidas

anteriores que dêem assistência às famílias pobres, as situações de abandono e as

dificuldades de relacionamento do jovem com suas famílias, o abrigo acabou tornando-

se motivo primeiro de proteção, antes de as medidas anteriores serem aplicadas.

A situação de extrema pobreza, o que faz com que muitas famílias não tenham

condições de criar, proteger e educar seus filhos, não deveria, mas ainda é motivo de

abrigamento.

O ECA indica que o abrigo tem um papel de provisoriedade e transitoriedade

definido no artigo 101, item VII, parágrafo único: “O abrigo é medida provisória e

excepcional, utilizável como forma de transição para colocação em família substituta,

não implicando privação de liberdade”.

O artigo 92 do ECA indica quais são os princípios que devem ser seguidos pelos

abrigos e que estão intimamente ligados à função de provisoriedade e transitoriedade do

abrigo. São eles: a preservação dos vínculos familiares; colocação em família

substitutiva, quando a volta para a família original tornou-se impossível; atenção

individual e trabalho em pequenos grupos; desenvolvimento de atividades em regime de

co-educação; preservação do grupo de irmãos; evitar a transferência do sujeito para

outras instituições de abrigo; participação na vida da comunidade local; preparação

gradativa para o desligamento; participação de pessoas da comunidade no processo

educativo.

Ao mesmo tempo em que o abrigo deve ser um lugar de estadia provisória e

transitória, precisa apresentar um clima residencial e familiar; o atendimento deve ser

personalizado, preocupado com a história de vida de cada um e trabalhar juntamente

com o adolescente no seu projeto de vida. O abrigo, a partir do ingresso do adolescente,

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passa a ter sua guarda integral e o responsável pelo abrigo é também responsável (tem a

guarda do) pelo jovem. Portanto, essa guarda é institucional (Guará, 1998).

A partir desses princípios fundamentais apontados pelo ECA, é possível

perceber que o desabrigamento deveria estar presente, desde o início do abrigamento,

em todas as ações desenvolvidas pela instituição responsável.

O desabrigamento começa na chegada da criança/adolescente ao abrigo e

estrutura-se com o desenvolvimento do trabalho realizado com o sujeito no período em

que está abrigado. “É o trabalho, com muita qualidade, de toda a equipe que vai

proporcionar o desabrigamento adequado” (Gulassa, 2007, p. 8)1. “Todo processo de abrigamento-desabrigamento está baseado nos

vínculos que são construídos entre as crianças que chegam e os moradores da casa – crianças e adultos. São construídas novas relações interpessoais e mútuas representações internas” (Gulassa, 2007, p. 8)

A importância de estabelecer e construir um vínculo nos primeiros contatos do

abrigamento, entre os profissionais do abrigo e os outros moradores com o novo

habitante da instituição, é fundamental para que este se sinta parte do lugar, que esse

lugar seja um espaço que vai permitir que ele seja ele mesmo, que vai dar condições

para desenvolver sua personalidade e autonomia. E, a partir dessa construção do eu, o

adolescente pode perceber que existe no mundo um lugar para ele e que depende

somente dele a sua conquista; para que possa ocupar esse seu lugar, é importante que ele

deseje ir para o mundo (Gulassa, 2007). O desejo de ir para o mundo e nele agir só é

possível se a auto-estima e a autoconfiança estiverem bem desenvolvidas.

Para que a criança ou o adolescente sinta-se acolhido e pertencente ao abrigo, é

preciso que a instituição se preocupe em respeitar e entender quem são esse sujeito e sua

família, qual sua história (Gulassa, 2007). É necessário que o investimento da

instituição se dê de forma singular em cada caso, pois, em alguns, a adaptação e a

criação do vínculo dar-se-ão mais rápida e facilmente e, em outros, são mais trabalhosas

e demoradas. Isto indica que há necessidade de a instituição fazer um diagnóstico e um

prognóstico de cada situação para, assim, permitir que cada adolescente, juntamente

com a instituição, comece a criar seu projeto de vida.

O abrigo também se caracteriza por ser um lugar comunitário e coletivo, onde

1 O trabalho de Gulassa é a sistematização de reflexões organizadas pelo Programa Abrigar, em que participaram educadores e equipe técnica de alguns abrigos de São Paulo, que teve como objetivo refletir sobre o processo de desabrigamento com jovens de 18 anos. Os encontros foram realizados no ano de 2006, a organização aconteceu no ano de 2007, ainda não foi publicado oficialmente.

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as relações grupais são a base da organização do espaço, permitindo que o diálogo

aconteça, as diferenças surjam e sejam respeitadas e também questionadas; um espaço

de troca, de partilha e solidariedade (Gulassa, 2007). A partir da construção deste

espaço surgem essas relações que possibilitam que cada sujeito possa construir passo a

passo sua subjetividade, singularizando-se (Gulassa, 2006)2. “O abrigamento de qualidade significa para a criança “estar” no abrigo

intensamente, agir, se vincular verdadeiramente, imaginar, sonhar com uma vida melhor, dar-se a conhecer. Dar-se a conhecer quer dizer mostrar também seus conflitos, raivas, ressentimentos, mágoas, angústias. O importante é a criança/adolescente poder se mostrar. O abrigamento é uma oportunidade de ser, de se expressar, de re-significar sua história, de ser acolhida e contida pelos educadores” (Gulassa, 2007, p. 9).

O trabalho diário do abrigo com a criança/adolescente é possibilitar que o

indivíduo crie condições de independência e autonomia. Para isso, é preciso que seja um

lugar de pertencimento onde os vínculos afetivos possam existir e que permita a

instrumentalização para o conhecimento abrangente, que proporcione a autoconsciência

e a possibilidade de ser e se perceber como único, permitindo a construção de um

projeto de vida inclusivo no qual seja o protagonista.

O segundo momento do projeto de desabrigamento, que o adolescente vivencia

também pelas características desta sua fase da vida, é a necessidade da transgressão e do

questionamento das leis das regras e do estabelecido. Os adolescentes ao chegar no

abrigo impõem aos educadores a reflexão de como lidar e trabalhar com a transgressão.

Nesta fase, o jovem reivindica para si decisões e escolhas em relação a seus horários e

posicionamento perante a vida como, por exemplo, cuidar do seu dinheiro. Também

ocorre a transgressão a regras, e questionamento aos vínculos e aos valores do abrigo. É

um momento de fragilidade da relação, porque a instituição pode se tornar inflexível ou

expulsar o abrigado. Por isso, é preciso que nesse momento de muita criatividade e

rebeldia para o adolescente, ele possa ser instigado a pensar em novas possibilidades,

reorientar-se, abrir novas portas, projetar-se, sonhar, pensar e fazer (Gulassa, 2007). “A transitoriedade comporta e ressalta toda a importância da vinculação

e a busca consistente de fortalecimento da identidade e perspectiva de inclusão da criança. O desabrigamento, pressuposto básico, só é possível, se houver um trabalho efetivo e de qualidade no abrigo” (Gulassa, 2006, p. 9).

2 O trabalho de Gulassa é a sistematização de mesas de trabalho, organizadas pela Fundação Abrinq (Programa Nossas Crianças) e o Instituto Camargo Correia (Programa Abrigar); foram realizadas cinco mesas de trabalhos no período de agosto a novembro de 2005, que tiveram o objetivo de levantar as conquistas, as contradições e os paradoxos dos abrigos, buscando viabilizar suas superações. Participaram das mesas os trabalhadores dos abrigos. A sistematização desses trabalhos aconteceu em setembro de 2006, mas ainda não teve publicação oficial.

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Um terceiro momento do processo de desabrigamento ocorre quando o

adolescente consegue investir nos seus próprios projetos, escolher entre as

oportunidades que surgem, apropriar-se mais de si mesmo, desenvolver paulatinamente

a capacidade de discernir o que é melhor para si. Estas características demonstram que o

jovem já está pronto para sair do abrigo, é o momento em que ele consegue se perceber

dono do seu projeto de vida e responsável, na medida do possível para o adolescente,

pelas suas escolhas e atitudes.

A partir do ingresso do adolescente no abrigo, este se torna o elo entre o

abrigado e a família, principalmente quando ele saiu de casa e foi para a rua, por não

conseguir lidar com questões presentes em sua fragilizada relação cotidiana familiar.

Um outro aspecto importante é quando a família do adolescente o visita no

abrigo, precisa ser acolhida e compreendida pois, normalmente, é uma família

enfraquecida por sensação de incapacidade e incompetência. É uma família que por

algum motivo não teve condição de dar o suporte necessário para que o filho

permanecesse junto dela, suporte que pode ser econômico, social ou

emocional/psicológico. “As famílias solicitam uma aproximação maior, um interesse para a

particularidade de suas histórias. Querem ser reconhecidas e acreditadas em suas possibilidades” (Gulassa, 2006, p. 19).

No trabalho feito com a família, é preciso criar um laço de confiança entre

abrigo e família, constituir um trabalho em equipe onde cada parte se responsabilize por

uma estratégia do “jogo”. Para que isto aconteça, é necessário que a equipe do abrigo

consiga perceber e lidar com a complexidade de cada situação, integrar a família, criar

vínculo e intimidade com ela. O laço de confiança começa a ser construído no instante

em que o abrigo mostra ter confiança na família e faz um trabalho para que ela se

fortaleça e possa receber seu filho de volta.

É o abrigo que pode favorecer o retorno do adolescente para a família e

possibilitar que as condições sejam favoráveis ou não, pois é a instituição responsável

pelo adolescente nesse período e, pela proximidade tanto com o adolescente quanto com

a família, pode alterar e avaliar como está a relação entre ambos, se as condições de

vida mudaram, se a situação que motivou o adolescente a ir para a rua e ser

institucionalizado se resolveu, se a família tem estrutura (psicológica e financeira) para

recebê-lo, se a comunidade na qual o adolescente se insere tem condições de acolhê-lo.

A proximidade entre abrigo-adolescente-família possibilita que a instituição faça

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inicialmente a manutenção do vínculo do adolescente junto à família.

O abrigo pode fazer essa manutenção pela proximidade que tem com o

adolescente, se obtiver êxito em construir um vinculo de confiança através do qual o

jovem possa se colocar, falar o que sente, quais são seus desejos e o que o incomoda, se

deseja voltar para a família ou não. Ao mesmo tempo, o abrigo também precisa

construir uma relação de confiança com a família para que esta possa colocar seus

conflitos e questões, se mostrar claramente, e mais, se está preparada para receber o

filho de volta ou não.

Após o desabrigamento, o papel do abrigo é acompanhar esse jovem e sua

família, observar como ocorre o seu desenvolvimento e o relacionamento familiar,

nunca romper o vínculo e possibilitar que o jovem vá cada vez mais longe. É o abrigo

que pode fazer o acompanhamento inicial de volta para casa, porque já tem o vinculo, já

conhece as pessoas, e num pequeno contato pode perceber como a situação está, se

existe uma crise instaurada ou se as coisas vão bem.

No entanto, a equipe técnica do abrigo precisa ter claro dois pontos, quanto ao

processo de desabrigamento: o primeiro é perceber que, apesar da provisoriedade do

abrigamento, alguns jovens necessitam de mais tempo de permanência antes da saída e

há casos mais extremos de permanência contínua que podem durar anos, afinal cada

caso é um caso; o segundo ponto é perceber que em alguns casos a família biológica não

é, ou não representa, o melhor lugar para o adolescente; isso ocorre principalmente

quando o jovem passou por experiências traumáticas que geraram muito sofrimento

psicológico e que são principalmente as situações de violência (Guará,1998).

O abrigo é também a instituição que pode dar o auxilio necessário para esse

retorno à família porque, sendo associado aos órgãos públicos, pode monitorar

adolescente e família em relação aos seus direitos, encaminhá-lo para programas

necessários para cada caso e, desta forma, possibilitar que o desabrigamento aconteça

com sucesso. Principalmente porque grande parte dos abrigamentos está ligada a fatores

socioeconômicos, questões de estruturas básicas que acabam por desorganizar a família,

os pais ficam a depender dos recursos que apenas o Estado pode prover, para poderem

receber seus filhos da maneira adequada.

O abrigo é um serviço que está inserido em uma rede de atendimento e só pode

dar conta de sua função, de proteção integral, se fizer parte desta rede. É necessário que

ele mantenha um trabalho integrado com os Conselhos Tutelares, com as Varas da

Infância e da Juventude, com o Ministério Público e com os programas das secretarias

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municipais que cuidam da criança e do adolescente, na área da saúde, educação, esporte,

cultura, lazer, etc., e projetos sociais desenvolvidos pela sociedade civil ligados a essas

áreas (Guará,1998).

A relação com os Conselhos Tutelares e com as Varas da Infância e da

Juventude deve ser constante, buscando proximidade e um bom relacionamento, em que

possa haver discussão dos casos entre as equipes técnicas. São estas instâncias que

encaminham os jovens para o abrigo e cuidam dos processos legais; também são estes

órgãos que fiscalizam a instituição de abrigamento (Guará,1998). É através da parceria

do trabalho com esses órgãos que o retorno para a família pode ser efetivado e,

principalmente, ter sucesso.

O abrigo também precisa estar ligado aos serviços que executam as medidas

sócio-educativas, aos programas de auxílio, proteção e orientação à família e dos

recursos da comunidade na qual o abrigo e a família estão inseridos.

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A PASSAGEM PELA RUA

Antes de desenvolver o item ”A Passagem pela rua”, necessário se faz

esclarecer o conceito adolescência. ”...o adolescente como paradigma do sujeito humano, ou seja, do drama

de sua subjetivação – como colocar-se na rede social mantendo singularidade e autonomia...é por isso que o adolescente incomoda: ele retoma dia a dia nosso conflito essencial. Ele luta, não desiste. ...no processo de subjetivação, a determinação da violência fundamental, em que o adolescente expõe nossa violência negada” (Marin, 2001, p.147).

Ao estudar qualquer fase do desenvolvimento humano, é preciso relacioná-la ao

contexto social em que será observada. A adolescência, como se apresenta hoje é uma

construção da nossa sociedade contemporânea e capitalista. Como são os jovens, o que

se espera deles, os ritos (ou a falta de ritos) de passagem, tudo isso é determinado pelo

momento histórico em que o estudo está sendo desenvolvido.

Atualmente, a adolescência é entendida como um momento de romper com os

ideais narcísicos dos pais, é hora do sujeito tornar-se dono do seu próprio desejo,

compreender os limites sociais a ponto de aceitá-los, respeitá-los ou questioná-los, a

partir do seu ponto de vista, é um momento de transgressão e, por que não, superação. É

a hora de construir novas relações, buscar outros grupos de referência. Ao mesmo

tempo, cobra-se do adolescente que ele seja o mais bonito, com o corpo mais perfeito,

que ele viva uma felicidade plena; a juventude é colocada no lugar de ideal da

sociedade, ser jovem é a melhor fase de se viver na contemporaneidade. Todas as

possibilidades são dadas ao jovem, a sociedade permite que ele escolha livremente o

que deseja e principalmente seja feliz (Marin, 2001).

O adolescente é mais sensível para sentir o mundo, “os afetos e conflitos estão

ampliados” (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p.23), é o momento de rever sua identidade e

seus papéis, colocar em questão sua função no mundo, questionar os posicionamentos,

criar embates, transgredir; é um momento em que seu potencial de resiliência está

pronto para ser trabalhado, até mesmo por todas as instabilidades desse período da vida,

inclusive biológicas (Marin, 2001). Por toda essa instabilidade, é o momento em que o

jovem necessita de referência, precisa de alguém que o ajude a se proteger, a criar

condições para conseguir olhar para si.

Os adolescentes que vão para o abrigo podem ter estado vivendo duas situações.

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Uma, saem diretamente da família para o abrigo, por causa da situação socioeconômica,

maus tratos, violência domestica, desestruturação familiar por sua conduta imprópria ou

falta de limites; a outra, são os adolescente, uma minoria, que saem da família, mas

antes de chegar ao abrigo passam pela rua. São definidos como “meninos em situação

de rua”, cuja principal característica é considerar a rua lugar primário ou secundário do

cotidiano, tirando desse espaço sua sobrevivência e vivência, isto é, usando a rua como

lugar que proporciona moradia e renda, independência e liberdade. Fazem biscates,

pedem esmolas ou exercem atividades ilícitas (Gregori,2000).

O trabalho feito com os adolescentes que passaram pela rua é diferenciado,

principalmente antes de ocorrer o retorno à família. Esses jovens, diferentemente da

população que vive em abrigos, têm como características serem “astutos, maloqueiros,

resistentes, fortes (por fora) e frágeis (por dentro), vividos, sagazes, batalhadores,

transgressores, independentes, sofredores e machucados” (Gulassa, 2007, p. 8 e 9). A

dificuldade dessa população não é a independência e o domínio do mundo, mas

conseguir se vincular, manter os compromissos, respeitar as regras, aceitar os limites

(Gulassa, 2007).

O trabalho de desabrigamento e retorno para casa com essa população precisa

ser feito de forma muito lenta e cuidadosa, para que o abrigo possa perceber todas as

nuances da relação adolescente e família e propiciar que o desabrigamento ocorra com

sucesso, sem correr o risco do retorno do adolescente para rua ou abrigo.

O que leva um adolescente a abandonar sua família e ir para rua, usá-la como

espaço de sobrevivência? Os questionamentos em relação a essa pergunta são muitos e

as respostas, imprecisas.

Existe uma série de fatores que o vulnerabiliza e pode levar o adolescente a

decidir deixar sua família e buscar uma nova opção de vida. No entanto, percebe-se, a

partir dos estudos relacionados ao tema, apresentados em uma pesquisa de revisão de

literatura desenvolvida por Rizzini em 2003, que o jovem sai de sua casa,

principalmente por causa da sua vivência subjetivadiante de determinada experiência,

como a significa e também como essa experiência é significada pelas pessoas que estão

a sua volta, seus familiares e responsáveis, tudo isso somado a fatores sociais e de

relacionamento familiar.

A pesquisa apontou que a situação familiar nas circunstancias em que o

adolescente deixa sua casa precisa ser entendida, uma vez que “as pessoas tendem a

abandonar o grupo quando pertencer a ele não mais preenche suas necessidades. O que

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contribuiu para que os jovens permanecessem junto à família foi a presença do afeto, da

sensação de proteção e segurança, da interdependência, da lealdade e

solidariedade.”(Rizzini, 2003, p.25). Portanto, o adolescente deixa sua casa quando seu

elo de afeto e cuidado já estão rompidos.

Além disso o rompimento do elo afetivo pode se dar por diversas razões e soma-

se a situações concretas, vivenciadas no convívio familiar e social, juntamente com a

oferta da rua como uma perspectiva geradora de novas possibilidades de posse,

relacionamentos e identidade que se apresenta como libertadora dos conflitos familiares.

É importante compreender a condição familiar e sua dinâmica organizacional,

emocional e psicológica, que podem gerar situações de extrema vulnerabilidade. É

necessário entender como se estabelecem as relações na família, se existe algum tipo de

violência física, psicológica e sexual, presente em muitos dos casos.

Existe a ocorrência de um fenômeno denominado casa vazia, na qual o cuidador

está ausente e o adolescente se sente abandonado ou indiferente aos cuidados do seu

responsável. Essa situação apresenta-se ao adolescente pela falta de rotina e rituais

familiares e a impossibilidade de contar com a família para cuidados básicos; é uma

situação de extrema vulnerabilidade na vivência subjetiva do jovem (Rizzini, 2003). “Violenta ou vazia, em muitos casos, a casa representa para a criança

uma perspectiva de servidão ...Esse quadro mostra bem a transformação da casa, que deixa de ser um espaço onde a criança encontra abrigo, cuidado, orientação, ocasiões de sociabilidade e tempo livre para si mesmo, para tornar-se um espaço de conflito, risco, solidão e servidão; um lugar que ao invés de lhe ser dada,infância lhe é tolida.” (Vogal e Mello apud Rizzini ; 2003, p.26)

Importante também é compreender a situação socioeconômica de pobreza dessas

famílias que é causada por questões sociais mais amplas como o desemprego; a falta de

acesso a educação formal; o trabalho precoce e informal do adolescente na rua; a

circulação familiar em busca de um local de moradia e as péssimas condições de

moradia nas favelas; expulsão escolar e a violência existente na comunidade. Essa

situação de pobreza é gerada na nossa sociedade pela desigualdade social,

A sociedade em que vivemos, que tem o consumo e a posse como valor social e

pessoal, age na fantasia e no imaginário dos adolescentes em geral, impondo a

necessidade dos bens de consumo, gerando uma situação conflituosa e delicada para os

que são desprovidos dos recursos para aquisição desses bens.

O contato do adolescente com jovens que estão experenciando a vivência de rua

além de colocá-lo diante da possibilidade de ter mais liberdade, promove também a

construção de novas relações, de uma nova identidade, de conseguir dinheiro para

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atender seus apelos de consumo, sem precisar se sujeitar a questões e imposições

familiares -entre elas, entregar o dinheiro conseguido com os biscates- e, ainda, ter

sobre ele, um olhar preocupado e cuidadoso da sociedade civil e do Estado, os quais

desenvolvem projetos que assistem essa população (Gregori e Silva, 2000). A rua

apresenta-se como solução de conflitos, como um meio capaz de resolver problemas e

também como um novo espaço de lazer e os centros urbanos acabam sendo um atrativo

que traz no seu bojo mil e uma possibilidades.

A saída do adolescente da rua em busca de outras instituições que lhe dêem

condições de sobrevivência se relaciona diretamente à transformação de sua identidade.

Quando o adolescente busca outras instituições de sobrevivência, espaço de

pertencimento, igualmente à sua saída de casa, indica que o lugar que ele está já não o

preenche, não faz mais sentido para sua existência e do que espera de si, já não se

identifica mais com o que é, está buscando outros referenciais que lhe proporcionem

uma reconstrução de sua identidade, uma nova forma de produzir sua subjetividade. Já

não se reconhece mais como sujeito pertencente àquele meio (Rizzini, 2003).

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A FAMÍLIA

A família (ou os cuidadores) é a base da produção de nossa subjetividade. A

partir dela, construímos nossa auto-imagem que é o alicerce da nossa identidade. Ela

nos possibilita nos reconhecermos como indivíduo único. É através da família que

conhecemos e nos relacionamos com o mundo. A família não se organiza

necessariamente pelos laços biológicos; o que a unifica e determina são os

“significantes que criam os elos de sentido nas relações, sem os quais essas relações se

esfacelariam, precisamente pela perda, ou inexistência, de sentido. Se os laços

biológicos unem a família é porque são, em si, significantes” (Sarti, 1999, p.100).

A família é um dos referenciais mais fortes para as pessoas durante toda a vida e,

para a criança e o adolescente ela é o principal norte, mesmo tendo o atravessamento, o

referencial de outras instituições, como por exemplo, a escola. Espera-se que a família

dê suporte afetivo/emocional e supra as necessidades básicas de sobrevivência para que,

assim, o sujeito possa se desenvolver. A família, segundo Sarti (1999), antropóloga que

estuda a família na contemporaneidade é um mundo de relações recíprocas,

complementares e assimétricas. “A família, seja como for composta, vivida e organizada, é o filtro através

do qual se começa a ver e significar o mundo. Este processo que se inicia ao nascer prolonga-se ao longo de toda a vida, a partir dos diferentes lugares que se ocupa na família” (Sarti, 1999, p.100)

O crescer significa questionar e relativizar os valores, as crenças e os costumes

que, até então, haviam sido apenas recebidos da família e que o adolescente introjetava

como algo natural, sem questionamentos e reflexões (Sarti, 1999). Ele vive seu processo

de singularização, que dura a vida inteira, e diferenciação da família, na construção de

seus valores e crenças. Esse processo inicia-se a partir do momento que o sujeito

começa a se perceber como indivíduo único diferenciado da sua mãe, e está sempre

sendo atravessado pelos significantes familiares.

No caso dos jovens, a diferenciação e recusa dos valores familiares é uma forma

de constituir seu processo de subjetivação e individuação. O jovem recusa esses valores,

parte para o mundo em busca de novos referenciais e sendo os grupos com os quais se

identifica são, o principal exemplo. Ao aceitar o novo grupo, a família está aceitando o

jovem; ao negar o grupo, a família está negando o jovem. Por isso, é preciso que,

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durante a adolescência, a família consiga ser um espaço de afeto e segurança, e também

de limites (Sarti, 1999). ”A importância fundamental da família para o jovem está precisamente

nesta possibilidade de manter o eixo de referências estruturantes que a família representa, como lugar de apego, de segurança, como rede de proteção, mas que neste momento – mais radicalmente ainda do que em outros do ciclo da vida – precisa abrir espaço para o outro, juntamente para continuar sendo lugar de acolhimento.” (Sarti, 1999, p.102)

Sarti (1999) coloca que para que, o jovem possa ser autor da sua própria história,

é necessário que ele instaure um conflito entre o apego e autonomia que se daria como

uma experiência estruturante. O adolescente apresenta-se então ao mesmo tempo em

potencial e em vulnerabilidade, criando alternativas e conflitos para si e para a família.

O conflito na família é algo intrínseco na diferenciação e crescimento do jovem.

Quando o trabalho é feito com famílias que vivem a pobreza, é necessário que o

olhar e o trabalho sejam feitos de forma diferenciada. A questão social se impõe para

algumas dessas famílias, influenciando na forma como estas vão acolher e se relacionar

com o seu jovem. Portanto, é necessário desenvolver com elas um trabalho de co-

responsabilidade, isto é, “ajudar a família a se ajudar” (Sarti, 1999, p.104), cobrar dela

sua responsabilidade em relação a seu adolescente, mas compreendendo o

atravessamento da desigualdade social que a impossibilita de se responsabilizar por

todas as questões, tendo necessidade de apoio de instituições e projetos externos (Sarti,

1999). “Dizer que não são dadas condições à família para que esta acolha o

jovem significa pressupor que a família está exposta a determinações que escapam a seu controle. A família, portanto, não pode ser desvinculada de seu contexto social, nem pensada isoladamente.” (Sarti, 1999, p.104)

Sarti (1999) aponta que, ao trabalhar com as famílias economicamente

desfavorecidas, é preciso desenvolver um trabalho que não esteja pautado apenas nas

questões de sobrevivência, mas que se consiga perceber que essas pessoas são

indivíduos desejantes que buscam compreender e dar sentido ao mundo em que vivem e

sua própria existência.

Portanto, o trabalho com essas famílias é um trabalho em torno de legitimar suas

potencialidades, dando subsídios para que elas possam transformar sua situação, por

exemplo através de políticas públicas. Afinal são sujeitos de desejo e não apenas de

direitos.

Segundo a autora, a família se constrói dialeticamente (entre o mundo interior

que é o nós, o mundo privado, e o mundo exterior que são os outros, a esfera do

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público); não é apenas a junção de indivíduos, mas a singularização deles, como cada

um vê e fala da sua família, o lugar que nela ocupa. Logo, a imagem que a família

constrói de si está na alteridade entre a forma como os seus membros a vêem e como a

sociedade a vê, a significa (Sarti, 1999). “A família delimita-se pela historia que conta sobre si mesma, ao mesmo

tempo em que se define pelo que se diz sobre ela. As ações são relacionais e os discursos sociais sobre a família definem sua auto-imagem, sempre especular. O discurso sobre a família cria, então, o sentido de ação...Isto significa dizer que a probabilidade de que uma ação com famílias consiga estimular suas potencialidades para superar situações de vulnerabilidade relaciona-se à forma como se fala da família.” (Sarti, 1999, p.106)

Sarti (1999) aponta de forma muito sensível que a família, sendo este lugar que é

ao mesmo tempo pessoal e social, lugar de se perceber como pertencente, mas também

de perceber o outro como relacional e, dessa forma, perceber o mundo, é fundamental

para a existência, um lugar de direitos, desejos ,afeto e cuidado. A família é um espaço

fundamental para a construção da cidadania. Cidadania esta construída a partir do

cuidado e do afeto do cuidador, ser cuidado para aprender a cuidar de si e do outro. Este

zelo é um dever também do Estado que precisa cuidar de seus indivíduos para que

possam cuidar de si e do seu próximo. “Essa formulação diz respeito à construção da cidadania a partir da

subjetividade. A possibilidade do reconhecimento dos direitos, como reivindicação de si e do (s) outros (s), não é uma questão exterior ao sujeito, mas as condições de uma sociedade levar adiante um projeto democrático de relações sociais estão estreitamente vinculadas às possibilidades subjetivas de seus cidadãos. A cidadania é, então, uma questão que diz respeito à construção dos afetos.” (Sarti, 1999, p.108)

Portanto, o afeto e o cuidado são aspectos essenciais na construção do sujeito

para que este possa se tornar um cidadão, agente e transformador social.

Outra questão muito importante a ser identificada e trabalhada em relação à

família com filho em abrigo é o fato de a grande maioria ser chefiada e ter apenas o

referencial feminino dentro de casa. Ter apenas um referencial dentro de casa, ou um se

sobressair, chegando a apagar o outro, é um fato que causa prejuízo à família, privando-

a do convívio com as diferenças de gênero, cuja conseqüência é a dificuldade de lidar

com as diferenças no âmbito social. O problema não é o fato do homem (pai) não estar

presente dentro de casa, mas dele não fazer mais parte do círculo das relações

familiares, a sua completa ausência (Sarti, 1999).

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A RESILIÊNCIA

A resiliência desenvolve-se a partir da possibilidade de a pessoa ser capaz de

conseguir lidar e resolver as situações difíceis, é a capacidade do sujeito re-significar e

re-elaborar essas adversidades. A resiliência aproxima-se do termo superação das

dificuldades, o que não significa que a situação de vulnerabilidade vivida pelo

adolescente não deixará marcas. As marcas poderão ser mais ou menos profundas e o

grau desta profundidade depende de como o adolescente irá elaborar suas experiências.

Para que isso aconteça, é necessário o auxílio da proteção de seus recursos internos,

promovido por alguém em quem o jovem confia. A resiliência não é um potencial que

acontece apenas individualmente, mas desenvolve-se também em grupos e instituições.

A resiliência, não só possui um caráter construtivo, como também não é uma

aquisição que acontece apenas através da vivência externa. Desenvolve-se a partir da

interação da pessoa com o mundo. O potencial de resiliência do bebê começa a se

constituir já na barriga da mãe, um processo que só termina com a morte da pessoa.

Este capítulo é baseado no estudo sobre o tema realizado pelas autoras Assis,

Pesce e Avanci a partir de uma pesquisa, aplicada no município de São Gonçalo (RJ),

com 1923 alunos do ensino fundamental e médio de escolas públicas e particulares, com

idade entre 11 e 19 anos, que responderam um questionário anônimo que possibilitou

compreender o potencial de resiliência deles. “A resiliência está ancorada em dois grandes pólos: o da adversidade,

representado pelos eventos desfavoráveis, e o da proteção, voltado para a compreensão de fatores internos e externos aos indivíduos, mas que levam necessariamente à reconstrução da questão singular diante do sofrimento causado por uma adversidade.” (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p.19).

O potencial de resiliência, construído nessa dinâmica entre os eventos

desfavoráveis, inevitáveis na vida de todos, e a proteção, recursos internos do

adolescente, o cuidado e o acolhimento que são dados principalmente pelos cuidadores,

precisa ser estruturado, portanto, através da participação e acolhimento do outro,

principalmente quando se trata de adolescentes.

Um bom desabrigamento precisa levar em conta o potencial de resiliência não só

do adolescente, como também de sua família. A equipe do abrigo precisa perceber como

esse adolescente está de fato, se tem condições de voltar para a família, se essa volta não

será traumática, se a família tem capacidade de acolhê-lo em suas necessidades e se ele

terá referências significativas que o poderão auxiliar.

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“A noção de resiliência vem complexificando-se, sendo abordada como um processo dinâmico que envolve a interação entre processos sociais e irtrapsíquicos de risco e proteção”. (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p.19).

Resiliência tem caráter construtivo e a vulnerabilidade permeia o processo

interativo entre o sujeito e o meio. Os conceitos de resiliência e de vulnerabilidade

articulam-se a partir de como cada adolescente experiencia e re-significa a experiência

vivida.

Existem eventos desfavoráveis a toda existência humana, como o abuso

psicológico, físico e sexual, a negligência e a separação dos pais, a convivência com a

pobreza que se associa à instabilidade do local de moradia e ao desemprego do principal

provedor da casa. Para o adolescente, as situações que mais o fragilizam são problemas

escolares, a puberdade, problemas no relacionamento amoroso e com os amigos,

mudança do local de moradia, rupturas familiares e ser vítima de violência (Assis, Pesce

e Avanci, 2006).

A vivência de uma situação adversa só tem como conseqüência o estresse no

adolescente se provocar mudanças interiores nele, isto é, precisa modificar seus

componentes de afeto e sobrecarregar seus recursos adaptativos – neuropsicológico,

psicológico e social (Assis, Pesce e Avanci, 2006).

Alguns agentes que geram situação de vulnerabilidade são:

A condição sócio-econômica coloca o adolescente em situações de

vulnerabilidade como privação de recursos sociais (educacional, de saúde, de moradia e

de lazer), desemprego do responsável pela casa, somatória de rompimentos, alcoolismo

e uso de drogas, e pode refletir na sua saúde causando desnutrição. Mesmo assim, o

potencial de resiliência não é reduzido. Um adolescente que vive em situação de

privação econômica tem tanto potencial quanto um que tem mais recursos financeiros

(Assis, Pesce e Avanci, 2006).

Os conflitos e separação dos pais, presenciados pelo adolescente, não indicam,

necessariamente, conseqüências negativas ao longo de sua vida adulta, mas podem

desestabilizá-lo por um tempo, uma vez que são atingidos por fatores importantes como

a idade, período de desenvolvimento pelo qual o adolescente está passando, o

questionamento de seu lugar e seu papel na família. Pode vir a encarar a separação dos

pais como alívio, para uma situação que beirava o insuportável e gerava incômodos

muito grandes, ou prejudicial, porque gerava conflitos em relação à situação

socioeconômica. Pode sentir que há diminuição na capacidade de cuidar dele e o

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afastamento emocional e físico das figuras parentais, principalmente do que não mora

mais com o filho, que normalmente é a figura paterna, ser fator de dor. “Digerido” o

problema, a estabilidade se impõe e, assim, poderá não haver reflexos negativos no

potencial de resiliência. Segundo os autores da pesquisa realizada no Rio de Janeiro,

Assis, Pesce e Avanci (2006), existem outros fatores que reduzem o potencial de

resiliência que vão além da situação de vulnerabilidade. Essa pesquisa apontou que

tanto jovens mais resilientes, quanto os menos resilientes, passaram por situações de

brigas e separação das figuras parentais. O que difere um grupo do outro é como

elaboram a situação e o “tom“ com que narram a situação vivida.

A violência familiar pode ser vivenciada de três maneiras distintas: psicológica,

física e sexual. Assis, Pesce e Avanci (2006) afirmam em seu estudo que vivenciar

qualquer tipo de violência durante o desenvolvimento infanto-juvenil é prejudicial à

saúde e pode causar-lhe danos graves em curto ou longo prazo. A violência é mais grave

e sentida de forma mais dolorosa, quando vem das figuras paternas de quem se espera

afeto, proteção e respeito.

Os jovens que vivenciam a violência psicológica podem ter seu potencial de

resiliência reduzido quando essa violência advém dos pais e acabam sentindo-se

desvalorizados, com auto-estima baixa, nunca reconhecidos por suas atitudes e

conquistas e valorizados pelo que são. O sentimento de desvalorização é um dos únicos

eventos adversos que afeta a capacidade de superação de problemas. Os adolescentes

que mais vivenciam esse tipo de violência apresentam seu nível de proteção pessoal

reduzido (Assis, Pesce e Avanci, 2006).

A violência física, segundo Assis, Pesce e Avanci não indica necessariamente a

redução no potencial de resiliência; existem outros fatores que a ela relacionados

podem interferir neste potencial. Entretanto, essa violência é prejudicial, se o jovem

presencia a agressão entre os pais. A violência sexual reduz o potencial de resiliência,

na medida em que arrasa as fontes de proteção que são necessárias ao jovem, porque

advém dos pais, figuras que deveriam significar cuidado.

A vivência escolar pode ser um inferno ou um paraíso, pois o desempenho

escolar acaba por avaliar as competências acadêmicas e relacionais do adolescente.

Portanto, dificuldades no relacionamento com os colegas e baixo desempenho nas

matérias é uma situação que gera sentimento de incompetência, podendo ser prejudicial

no futuro e deixar como marca a sensação de fracasso. Quanto maior o suporte vindo

dos pais e dos professores para ajudar o jovem a superar tais dificuldades, menores são

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as chances de que essa experiência tenha conseqüências futuras. No entanto, a pesquisa

realizada no Rio de Janeiro identificou que os adolescentes que têm mais dificuldade

escolar são os mais vulneráveis e, na sua maioria, apresentam péssimas relações com

pais e professores; sofrem violência familiar; fazem uso de drogas psicoativas com mais

freqüência, cometem atos infracionais, isto é, são jovens que estão em uma situação de

extrema fragilidade e vulnerabilidade. Mas, dificuldade escolar não apontou para

redução no potencial de resiliência, segundo o estudo.

A violência urbana é principalmente a que o jovem sofre na comunidade em

que vive e relaciona-se diretamente à violência social. Por isso, acaba por estar mais

presente em locais onde faltam os recursos básicos. As relações agressivas vêm

principalmente como forma de solucionar conflitos que têm com freqüência os

criminosos da área como “juiz”. Os jovens que acabam por participar dessa situação são

os que estão mais afastados do convívio familiar e da supervisão dos pais, pois, como

essa situação ocorre fora de casa, os responsáveis muitas vezes acabam por não saber ou

não tem condições de interferir. Essa situação distancia ainda mais pais e filhos. Esses

adolescentes apresentam um grau elevado de vulnerabilidade, maior consumo de

drogas, práticas de atos infracionais, problemas de estresse-pós traumático, e em alguns

momentos apresentam sintomas de depressão, trantornos de aprendizagem e

comportamentos anti-sociais (Assis, Pesce e Avanci, 2006).

A vivência de vulnerabilidade pode influenciar e comprometer o potencial de

resiliência, mas não necessariamente. Essa influencia irá depender de como o

adolescente é acolhido, qual é o grau de proteção que o vai ajudar a elaborar essa

experiência difícil e como ele vai interpretar, significar, sentir e narrar essa vivência. A

narrativa é algo importante a ser percebido, porque indica como o jovem interpreta e

representa a experiência, e como está lidando com ela no momento. “A capacidade de resiliência implica encontrar forças para

transformar intempéries em perspectivas. Sem dúvida, as adversidades são um fator necessário para tecer o amadurecimento do caráter de resiliência, mas isoladamente são insuficientes para promovê-la. Na verdade, poucas são as circunstâncias difíceis associadas diretamente com a resiliência, o que, à primeira vista, causaria estranheza: afinal, apenas aprendem a superar as adversidades aqueles que a viveram.” (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p. 57)

Na pesquisa feita por Assis, Pesce e Avanci, as autoras constataram que os

problemas que isoladamente estão associados à redução do potencial de resiliência

relacionam-se à família. São eles: sofrer violência psicológica ou sexual de pessoa

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significativa ou de um dos pais, o nascimento de um irmão, testemunhar violência física

entre os pais. Na escola existe uma única situação que é a de ser ameaçado por alguém.

As autoras apontam que os mais resilientes colocam que encarar a vida é

também passar por situações difíceis e que, após vivê-las, tentam significá-las e buscam

apoio da família e de amigos para conseguirem superar tais situações. “Os mais resilientes mostram-se significativamente mais capazes de: levar

seus planos até o fim; lidar com os problemas; aceitar os fatos sem maiores preocupações e desligar-se dos problemas depois; ser autoconfiantes, disciplinados, independentes, autônomos, persistentes e determinados; ser pessoa em quem se pode contar e amigo de si mesmos; ser flexíveis e criativos ao enfrentar problemas; ter energia suficiente para fazer o que dizem fazer; sentir orgulho de suas realizações; ter otimismo na vida e encontrar sentido para ela; aprender com experiências difíceis e insistir menos quando se deparam com situações que não podem mudar” (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p. 59)

Já os menos resilientes, segundo as autoras, apresentam dificuldade de elaborar e

re-significar a situação vivida, queixam-se de não terem com quem dividir o sofrimento

e também não conseguem pedir ajuda. Quando esse adolescente relata a experiência

vivida, detém-se no processo penoso da vivência e suas conseqüências negativas. Elas

apontam, no estudo desenvolvido, que os adolescentes menos resilientes provavelmente

têm reduzido esse potencial como conseqüência de privação de cuidados nos primeiros

anos da vida. “Praticamente nenhum sofrimento é irremediável, sendo passível de

transformação, quando o ambiente muda para melhor: “contudo, o problema é que a criança é capaz de mudanças espantosas, ao passo que o adulto que cuida dela começa a se enrijecer em suas aprendizagens e concepções de mundo” ( apud Cyrulnik, 2004, p. 111) (Assis, Pesce e Avanci, 2006, p. 60)

O sofrimento psíquico atinge principalmente os adolescentes menos resilientes,

que acabam por desenvolver sintomas de ansiedade ou depressão, têm baixa auto-

estima, dormem mal, não sentem interesse pelas coisas, têm dificuldade de tomar

decisões e não conseguem lidar com a sensação de inutilidade.

Dois aspectos que são bons sinalizadores de adolescentes mais e menos

resilientes, acusados pela pesquisa e apontados acima, são a presença da família na

rotina deles e o fato de terem amizades consistentes. Os mais resilientes comentam

sobre a presença de sua família na rotina que cobra horário e obrigações, ao mesmo

tempo em que permite o diálogo e a negociação, dá afeto e acolhimento, e relaciona-se

com amizade e confiança. No caso dos menos resilientes, as figuras parentais

apresentam-se ausentes, tanto no âmbito do cuidado, como no do afeto, e esses

adolescentes queixam-se da falta de amigos com quem possam contar.

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O potencial de resiliência pode ser estimulado, a partir de mecanismos de

proteção que o adolescente desenvolve internamente, ou que recebe do meio em que

vive desde o nascimento. São três os mecanismos que atuam desde o começo da vida: o

primeiro é a capacidade de a pessoa tornar-se autônoma, trabalhar a auto-estima que,

quando bem resolvida, é um importante atributo para o desenvolvimento do potencial de

resiliência, e ter como características a flexibilidade e a sensibilidade; o segundo é o

papel da família como agente de estabilidade, respeito entre seus membros e

acolhimento; e o terceiro é o apoio social. (Assis, Pesce e Avanci, 2006)

A energia do potencial de resiliência colocada em funcionamento de forma

positiva proporciona ao sujeito lidar efetivamente com a situação e dela sair fortalecido.

Os processos de proteção nele envolvidos apresentam algumas funções principais que

são: redução do impacto dos riscos e da exposição do adolescente à situação estressante;

redução das reações negativas que normalmente se desenvolvem como uma reação em

cadeia; trabalhar a auto-estima do indivíduo, através de relações de vinculo afetivo que

alicerçam o desempenho bem sucedido de suas atividades; e a criação das oportunidades

para rever e, por que não, avaliar os efeitos do estresse. (Assis, Pesce e Avanci, 2006)

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A CASA DE ACOLHIDA

A partir da década de noventa, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente –

ECA – entrou em vigência, os movimentos sociais e comunidades organizadas fizeram

dele uma referência para as suas lutas e toda uma rede de serviços foi criada para dar

conta das diretrizes do Estatuto.

A casa de acolhida, onde foi desenvolvida a pesquisa, surgiu como parte dessa

rede de serviços. Ela se caracteriza por ser um abrigo de curta permanência, prestar

serviço de acolhimento às crianças e adolescentes que estão em situação de rua, inseri-

los na rede de serviços sociais da região e buscar viabilizar o retorno deles às suas

famílias. Se o retorno não for possível, a casa de acolhida encaminha a criança ou o

adolescente para outra instituição da rede que pode ser outro abrigo. Isso só ocorre em

caso estritamente necessário, quando, por exemplo, a família não tem condições de

cuidar da criança/adolescente. Além desse objetivo final, a instituição se compromete a

promover a inclusão social das crianças e adolescentes em situação de risco.

Segundo o ECA, as casas de acolhida têm um prazo máximo de quatro meses, a

partir da data de entrada da criança ou adolescente, para realizar o encaminhamento para

a família ou para uma outra instituição, porém há alguns casos que excedem este limite.

Durante o período que estão lá, busca-se garantir os direitos a educação, cultura,

liberdade, convivência comunitária, respeito e dignidade. Isso ocorre através de

oficinas, encontros, cursos profissionalizantes e debates.

Esta casa de acolhida existe há três anos e, apesar de não ser uma instituição

pública, está vinculada ao Centro de Defesa da Criança e Adolescente (CEDECA) e

conveniada à Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Esse

abrigo insere-se nos serviços que, depois da promulgação do ECA, foram

municipalizados, como estipula o estatuto o qual considera que os cuidados

relacionados à criança e ao adolescente devem ser no âmbito municipal e

descentralizado, para que o sujeito possa estar mais próximo da família de origem.

Atende a vinte e cinco crianças e adolescentes, mas pode acolher até trinta

durante a “Operação Frente Fria”. O número de vagas aumenta para dar conta da

demanda no período de inverno. A faixa etária atendida é de zero a dezessete anos. A

Casa recebe crianças e adolescentes vinte e quatro horas por dia. Eles chegam

provenientes de diversos locais, mas principalmente dos distritos de Santa Cecília, Bom

Retiro, Sé, Consolação, República, Cambuci, Liberdade e Bela Vista que fazem parte da

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região central da capital paulista. Normalmente essa população sai da sua região de

origem, que costuma ser a periferia da cidade, para ocupar o centro, um espaço que

apresenta mais oportunidades e onde a criança e o adolescente não são reconhecidos

facilmente.

O abrigo possui dois andares – na parte superior estão os cinco quartos (três para

meninos e dois para meninas e quatro banheiros), e na parte inferior há uma cozinha,

dois escritórios, dois banheiros, uma lavanderia, uma sala e quintal.

A equipe técnica da casa é composta por coordenadora, psicóloga e o assistente

social.

A coordenadora tem a responsabilidade de participar de reuniões de entidades

afins, criar e desenvolver parcerias no entorno e em outras regiões, acompanhar e

assessorar na gestão de atividades, proporcionar as condições para que as crianças e

adolescentes permaneçam na casa, responder pela programação e rotina de

funcionamento. É responsável pelo projeto junto à supervisão da entidade mantenedora

e a ela presta contas.

O assistente social tem a função de organizar e manter os dados dos prontuários

atualizados das crianças e adolescentes na área social, favorece o resgate da história e a

construção do projeto de vida, responde pelos acompanhamentos sociais que forem

necessários, visita as famílias quando for preciso e realiza o trabalho de transição -

preparação das famílias e dos adolescentes para o desabrigamento e sua reinserção na

família ou em outra instituição.

A psicóloga organiza e mantém os dados das crianças e adolescentes atualizados

nos prontuários da área psicológica, realiza os encaminhamentos do diagnóstico

específico e singular de cada um, realiza visitas às famílias acompanhada do assistente

social e assessora a coordenação na orientação e supervisão do trabalho da equipe.

A casa tem dez educadores – três no turno matutino, três no vespertino e três no

noturno, além de um folguista.

Os educadores têm a função de acolher e construir com as crianças e

adolescentes as normas da casa, propiciar as condições para que eles permaneçam na

casa e participem das atividades. Eles orientam na organização e higiene pessoal,

acompanham o processo de retirada de documentação, planejam e desenvolvem

atividades pedagógicas.

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Os responsáveis pela alimentação e limpeza são a cozinheira, que tem a função

de garantir a qualidade, conservação e utilização dos alimentos, e a faxineira, que

realiza a limpeza do ambiente, da louça e dos vestuários.

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A PESQUISA

A casa de acolhida existia há dois anos quando foi desenvolvida a pesquisa e,

nesse período, encaminhou alguns de seus garotos e garotas de volta à família. O abrigo

não acompanhou os retornos e não tinha dados sobre a permanência dos adolescentes

com as famílias, se retornaram para as ruas e os motivos de tais atitudes também eram

desconhecidos.

A equipe técnica, percebendo a necessidade de montar um projeto de

acompanhamento para os adolescentes desabrigados, propôs aos estagiários de

psicologia da PUC que, durante o segundo semestre de 2006 estavam estagiando no

abrigo, que elaborassem um projeto piloto com o objetivo de compreender os

acontecimentos e processos que estão em jogo nesta etapa de volta para casa e, assim,

subsidiar o abrigo no programa de acompanhamento, identificando o auxilio necessário

para a manutenção da criança/adolescente junto à família.

Na nossa primeira reunião realizada no CEDECA, estavam presentes: a

coordenadora do CEDECA, a coordenadora do abrigo e a assistente social do

CEDECA. A pauta da reunião foi o objetivo do nosso estágio.

As profissionais relataram a importância de saber como estavam os adolescentes

que voltaram para suas casas e como essa informação poderia trazer um retorno sobre a

eficiência do trabalho da casa de acolhida; que também a partir de tais informações o

abrigo juntamente com o CEDECA poderia pensar quais seriam as melhores ações para

que o desabrigamento ocorresse com sucesso. Propuseram que o estágio tivesse esse

foco, pois essa era a demanda da instituição no momento – fazer um mapeamento dos

casos que foram desabrigados para a família e acompanhar como o desabrigamento

estava ocorrendo.

No segundo encontro, reunimo-nos no próprio abrigo com a coordenadora, a

psicóloga da instituição e a assistente social do CEDECA, e decidimos que o trabalho

seria feito com três casos. Decidimos também que a metodologia consistia de

entrevistas semi dirigidas, com o levantamento primeiramente dos aspectos importantes

para a compreensão do que é um desabrigamento e, a partir deles, formular as

entrevistas. Elas nos apresentaram os casos que haviam sido encaminhados para a

família no período de abril a julho de 2006 e que ainda tinham contato com a instituição

por causa do pouco tempo que haviam deixado o abrigo. Os três casos foram escolhidos

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porque Alice, Beatriz e Francisco (nomes fictícios), mesmo tendo cada um uma história

diferente, formavam um grupo que chegou junto ao abrigo.

No terceiro encontro com a psicóloga e com uma pequena participação do

assistente social, foram levantados os aspectos importantes para se compreender o que é

um desabrigamento, divididos em três grupos:

A. Determinantes da saída do adolescente para rua;

B. Passagem pela rua e pelo abrigo;

C. Como está sendo o retorno para casa.

Na quarta reunião realizada na casa de acolhida com a psicóloga do abrigo,

foram produzidas, a partir do levantamento dos aspectos importantes para o

desabrigamento, as entrevistas que seriam feitas com os adolescentes e com os seus

responsáveis (anexo I).

O momento seguinte foi o da realização das entrevistas que tiveram o mesmo

procedimento inicial, isto é, a psicóloga do abrigo perguntava se o adolescente e seu

responsável estavam dispostos a participarem do projeto e avisava que iríamos entrar

em contato. A grande maioria das entrevistas ocorreu na casa dos adolescentes e

próximo a ela, nos dois momentos em que os estagiários assim consideraram mais

apropriado.

A primeira entrevista foi com a Lúcia (anexo II), mãe de Francisco, um garoto

de 15 anos, desabrigado em junho de 2006.

Ligamos e combinamos de irmos à sua casa. Lúcia foi receptiva e mostrou-se

interessada. Chegamos lá às 9h, conforme o combinado, e encontramos todos dormindo.

Fomos recebidos e levados para a cozinha, onde conversamos. Francisco apareceu e

pediu para ir comprar pão. Quando voltou, logo depois, já estávamos conversando com

sua mãe. Convidamos Francisco para participar, mas ele disse que não queria e foi ver

televisão com seus irmãos mais novos (uma menina de seis anos e um menino de

cinco). De vez em quando, aparecia na cozinha para pegar alguma coisa. Após a

entrevista, combinamos com o adolescente o dia da nossa conversa, marcada para sexta-

feira, dia 06/10.

Ficamos de ligar um dia antes para confirmar, porém esquecemos de fazê-lo. No

dia marcado, aparecemos em sua casa e não havia ninguém. Deixamos um bilhete para

avisar que tínhamos passado por lá e que ligaríamos para marcar um novo encontro.

Passamos duas semanas tentando falar com Francisco, mas não conseguimos, porque

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ele nunca estava em casa e não retornava nossas ligações. Até que dia 23/10, foi

possível encontrá-lo e marcamos a entrevista para o dia seguinte.

No dia 20/10, tivemos uma reunião com a psicóloga na casa de acolhida,

apresentamos a entrevista com Lúcia e refletimos sobre o que poderia ser melhorado nas

entrevistas.

No dia da entrevista com Francisco, nos atrasamos e ligamos para avisar. Quem

nos atendeu foi Lúcia que nos informou que Francisco não estava querendo participar

do projeto e que ela não tinha entendido porque ele não havia nos avisado disso no dia

anterior, por telefone, quando combinamos a conversa. Decidimos mesmo assim ir até

lá para que ele nos falasse pessoalmente. Durante o caminho, pensamos na melhor

maneira de conversar com Francisco, para que ele ficasse à vontade e decidisse se

queria ou não participar. Optamos por propor a ele irmos até a quadra de basquete, onde

num clima mais informal, poderíamos conversar. A conversa foi difícil. Ele disse que

não queria participar, porque não se sentia à vontade para falar sobre aquele assunto

conosco e, fora isso, sua mãe já tinha falado tudo. No final da conversa, ele topou um

novo encontro para terminarmos o papo (anexo III).

A entrevista seguinte foi realizada com Beatriz (anexo IV) Ligamos e

combinamos com ela, uma adolescente de 16 anos, desabrigada em julho de 2006, que

iria nos buscar no Metrô para irmos à sua casa. Ela foi muito atenciosa e mostrou-se

interessada em participar. Durante o caminho do metrô até sua casa, Beatriz foi nos

relatando sua história, falando sem parar e, quando chegamos, conhecemos sua irmã

Kelly, que é a responsável por ela.

Tivemos então uma reunião na casa de acolhida com a psicóloga e a

coordenadora do abrigo, mesmo não participando ativamente da reunião, como estava

na sala, comentou algumas coisas. Apresentamos um panorama das entrevistas feitas

com Francisco e Beatriz. A psicóloga retomou um pouco o histórico desses adolescentes

quando estavam no abrigo, para podermos, assim, compreendê-los melhor.

Foi realizado nosso segundo encontro com Francisco. Chegamos à sua casa

quando ele estava saindo do banho. Esperamos por volta de quarenta minutos até que

ele ficasse pronto – ele experimentou todos os seus tênis -, mas quando foi conversar

com a gente disse que não teria muito tempo, porque tinha que chegar mais cedo à

escola. Decidimos fazer a entrevista na própria casa para não perdemos tempo. Após a

conversa, demos uma carona para Francisco que ia ficar no caminho. Ele nos contou

que o compromisso que tinha era encontrar uma menina com quem estava ficando.

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Como ele não falou muito durante as duas entrevistas, demos nossos telefones e

deixamos aberta a possibilidade dele ligar, caso quisesse dizer mais algumas coisas; ele

não nos procurou. (anexo III).

Marcamos a entrevista com Alice uma garota de 16 anos, desabrigada em abril,

porém, quando conseguimos chegar (nos perdemos no caminho durante uma hora) ao

ponto de referência perto de sua casa, onde nos encontraríamos, perdemos o contado e o

seu celular só dava caixa postal. Fomos então perguntar no mercado se alguém a

conhecia e, por coincidência, sua mãe Sandra estava fazendo compras ali, com o filho

pequeno de um ano e meio. Durante a entrevista (anexo VII), passaram pela casa o

padrasto e o irmão de Sandra este estava alcoolizado, e um outro homem. Sandra nos

informou que Alice havia ido para o abrigo, onde estava participando de uma atividade.

Após a conversa, passamos no abrigo para conversarmos com Alice e marcarmos um

dia para encontrá-la.

Chegamos à casa de Alice, onde mãe e filha nos aguardavam. Primeiro fizemos

a entrevista com Alice Como a casa tem apenas um cômodo, a mãe esteve presente

durante a conversa. Percebemos que não conseguimos as informações necessárias, por

isso marcamos um retorno duas semanas depois (anexo VI).

Quando chegamos à casa de Alice, estavam todos dormindo. Quando Sandra

abriu a porta, vimos que, além da mãe, da filha e do bebê, havia um outro rapaz que

Sandra disse ser seu amigo. Queríamos conversar com Aline em particular e

propusemos ir a um centro da juventude que é bem próximo à casa. A menina aceitou

(anexo VI). Quando levamos Alice de volta para casa, a mãe ainda dormia e a menina

ficou muito triste em relação à situação que encontrou.

A última entrevista foi realizada com Kelly. Ligamos e combinamos de ir à casa

de Kelly que foi muito atenciosa e disponível. Quando chegamos, estava nos esperando

e estavam em casa Beatriz e Roberto, o irmão mais novos dela. (anexo V).

Depois das entrevistas, fizemos a análise com a comparação entre os casos e a

partir dos três aspectos considerados importantes para se compreender o desabrigamento

que, depois, foi apresentada ao abrigo.

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ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Uma breve apresentação dos três casos que serão analisados:

Alice tinha 15 anos no período entre sua chegada ao abrigo e seu

desabrigamento. Deixou a casa onde vivia com a mãe e o irmão recém nascido, porque

apanhava muito e fazia todos os serviços domésticos. Durante o tempo em que ficou na

casa de uma amiga, apareceu um homem dizendo que a havia comprado da mãe dela (a

veracidade dessa história não foi comprovada). Por isso, a garota fez uma queixa numa

delegacia e disse que não gostaria de ficar mais junto aos pais. Foi encaminhada a um

abrigo provisório, passou por alguns abrigos, até conhecer, num deles, Beatriz que se

tornou sua amiga e Francisco que se tornou seu namorado. Formaram um grupo e, para

permanecerem juntos, fugiram algumas vezes dos abrigos pelos quais passaram.

Quando foi permitido a eles que ficassem juntos, permaneceu na casa de acolhida até

que sua mãe, que a procurava há um ano - período em que a menina ficou desaparecida,

a encontrou. A menina passou a ir aos finais de semana para a casa de Sandra (mãe) e

depois de um mês e meio foi desabrigada. Hoje vivem as duas e o irmãozinho de Alice

em um barraco, numa situação precária.

Francisco morava com a avó no Jaguaré, próximo à casa de Lúcia (mãe) e,

segundo ela, o filho nessa época usava drogas, andava com meninos mais velhos e não

tinha limites. Ele e um amigo foram acusados de um assalto que não cometeram e,

quando o verdadeiro assaltante foi encontrado, como Francisco e seu amigo não

assumiram a responsabilidade, foram ameaçados de morte. Por causa disso, Francisco

teve de deixar o bairro e morar no interior com o pai. Lá ele assaltou uma vídeolocadora

para poder pagar o assaltante que o ameaçava e voltar para o Jaguaré. No entanto, o

primo do dono da locadora, que era o traficante local, ameaçou o garoto de morte. A

mãe levou Francisco ao juizado de menores e depois ao Programa de Proteção a Criança

e do Adolescente. Ameaçado de morte, Francisco foi então encaminhado para um

abrigo de passagem onde conheceu Alice e Beatriz. Durante esse período, fugiram

algumas vezes. Francisco manteve contatos esporádicos com sua mãe, foi para a casa de

acolhida onde permaneceu junto com as meninas por algum tempo; depois foi morar

com a mãe que, com o trabalho na casa de acolhida, conseguiu recursos financeiros para

mudar de bairro e receber o filho, sem que ele corresse risco de vida.

Beatriz, dos treze anos que morou com a mãe adotiva, viveu bem até os dez,

quando começou a ir mal na escola, dar trabalho e saber, pela mãe, que era adotada.

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Depois dessa revelação, tudo mudou: a mãe começou a tratá-la mal, fazia diferença

entre a menina e os outros filhos legítimos, batia muito nela e, por conta dessa situação,

toda a família a maltratava. Quando não agüentou mais, foi procurar as irmãs biológicas

que sabia onde moravam e as encontrou. Permaneceu poucos dias na casa de Kelly,

irmã, e depois retornou à casa da mãe adotiva. Lá, com a sua situação só piorando, a

menina fugiu novamente e, desta vez, o Conselho Tutelar permitiu que ela ficasse na

casa da irmã, aguardando a decisão judicial sobre quem ficaria com a sua guarda. Nesse

período, o Conselho, informado pela mãe adotiva que a irmã não estava conseguindo

controlá-la, mandou-a para um abrigo. Depois de passar cinco dias, foi para uma casa de

passagem onde conheceu Alice e Francisco e de onde Beatriz ligou para a irmã,

avisando que iria fugir. Fugiram daí, viveram na rua mais ou menos dois meses e

chegaram finalmente à casa de acolhida, onde permaneceram. Beatriz foi a última a ser

desabrigada, mesmo a irmã tendo comunicado ao abrigo que ficaria com Beatriz, caso

ela se comprometesse a obedecer as regras. A menina demorou para decidir se de fato

gostaria de ir, pois existiam os vínculos que ela havia construído na instituição. Saiu

quando recebeu uma bolsa auxílio do Projeto Dança Comunidade e houve pressão da

equipe técnica neste sentido, por achar que era hora de a garota morar com a irmã.

Moram as duas e Roberto, o irmão mais novo de quem Kelly tem a guarda há alguns

anos.

Feita a introdução dos casos, a análise e discussão dos dados do presente

trabalho serão realizadas, a partir dos três aspectos que foram considerados importantes

já no trabalho empírico, para a resposta à questão proposta no trabalho, ou seja, o que é

necessário para que o desabrigamento aconteça adequadamente e com sucesso?

Os aspectos são: os determinantes da saída do adolescente da família e ida para

rua; a passagem pela rua; a passagem pelo abrigo e o retorno para casa.

Em seguida à exposição dos aspectos, serão analisadas e discutidas as diretrizes

gerais que foram elaboradas como conclusão do trabalho empírico.

Quanto aos determinantes da saída do adolescente para rua:

A teoria comprova a importância da observação de que a violência pode ou não

ser prejudicial ao desenvolvimento do jovem. No entanto, ela é mais grave e dolorosa

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quando praticada pelos pais, pessoas de quem se espera cuidado e carinho (Assis, Pesce

e Avanci, 2006).

Aparentemente, a questão da violência é a que mais se destaca como fator de

interferência e influência na saída dos três adolescentes de casa, de junto da família.

No caso de Francisco, já não podia mais permanecer junto de sua mãe, no

Jaguaré, porque estava correndo risco de vida. É o único caso em que a saída de casa

ocorreu como conseqüência da violência urbana, vivenciada na comunidade onde

morava, sem que as relações e condições familiares tenham sido o principal fator,

embora chame a atenção o fato de a família não ter conseguido “proteger” o filho e

mantê-lo sob sua responsabilidade, e acabou recorrendo à proteção do Estado.

Segundo Assis, Pesce e Avanci, os jovens envolvidos em situações de violência

na sua comunidade encontram-se mais distantes do convívio e relacionamento familiar.

O caso de Francisco é um bom exemplo dessa situação. A mãe queixava-se de que a avó

com a qual o menino morava não lhe impunha limites, mas ela, como mãe, também não

desempenhava sua função, com sua ausência e distância do garoto. Pode-se inferir que

faltavam referências para Francisco dentro da família.

Nas histórias de Alice e Beatriz, a violência física doméstica sofrida veio

principalmente das figuras paternas e foi, segundo o depoimento delas, o fator que mais

influenciou a saída das duas meninas de casa.

Alice, que antes da separação dos pais, era surrada pelo pai, continuou a sofrer

violência física, quando ficou apenas com sua mãe, com a desculpa de lhe colocar

limites, algo difícil e muito sofrido de ser suportado.

Beatriz em seu relato nos contou que a violência física e psicológica que sofria

era algo insuportável, impossível de conviver. Ela é a única que fala claramente que

sofreu violência psicológica, quando se refere ao descaso da mãe adotiva que a

diferenciava de seus irmãos, filhos legítimos, e às humilhações por que passava.

Nos outros dois casos, Alice e Francisco também vivenciaram a violência

psicológica, mas ela não aparece tão claramente nos seus discursos. No caso de

Francisco, aparece no relato da mãe que fala que o filho, no período em que ficou na

casa do pai, reclamava de se sentir mal tratado e desrespeitado pelo pai e outros parentes

que lá moravam. No caso de Alice, o pai fazia diferença entre ela e a irmã, e é possível

perceber que havia uma rejeição, mas este tipo de agressão também vinha por parte da

mãe que a culpava pela separação.

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A violência psicológica é vivenciada com mais freqüência e a mais difícil de ser

diagnosticada (Assis, Pesce e Avanci, 2006), e isso fica evidente nos depoimentos que

não deixam claro essa vivência. Esse tipo de violência pode ter conseqüências mais

sérias como, por exemplo, no desenvolvimento do potencial de resiliência (analisado

adiante), quando somada ao fato de ser cometida pelos pais e o resultado é o sentimento

de desvalorização e redução da auto-estima.

A violência é uma situação geradora de vulnerabilidade que não necessariamente

faz com que os adolescentes abandonem sua família, idéia desenvolvida abaixo. Mas,

para os jovens analisados, a violência impossibilitou a permanência em casa, segundo

os seus depoimentos.

O adolescente, quando deixa sua casa, porque viver naquele ambiente já não faz

mais sentido, procura outro lugar para viver uma vez que não mais se identifica com o

ambiente em que vive, e aí entra a questão do afeto e do cuidado que são cruciais no

fator de rompimento do vínculo entre o jovem e a família (Rizzini, 2003).

Nos casos de Beatriz e Alice, fica evidente, a partir do discurso delas, que este

vínculo estava rompido ao deixarem suas casas. No caso de Beatriz, isso aparece

claramente no seu relato, quando conta que depois da revelação de que era adotada, as

coisas mudaram, a mãe e o resto da família começaram a tratá-la mal. Essa situação fez

com que Beatriz “aprontasse” (sic) muito mais, porque seu “mundinho” (sic) era a

família e ser maltratada por ela a fazia sofrer muito. Como aprontava e cabulava a aula,

a mãe acabou tirando a garota da escola o que, segundo a menina, piorou muito mais a

situação “ai eu não tinha mais nada para fazer”. A solução foi procurar as irmãs

biológicas, mas, pela falta de vinculo e afeto, não houve a ancoragem para a sua

necessidade.

Ao ficar sob os cuidados do pai, Francisco passou a conviver com pessoas com

as quais tinha menos vínculos, não o tratavam bem, o que fazia o garoto não se sentir

acolhido aonde estava, sem poder voltar para o Jaguaré, acabando por se colocar em

uma situação mais vulnerável que a anterior. Cometeu o assalto de fato.

A historia de Alice aponta para o desgaste da relação mãe e filha. Em seu relato,

Alice aparece com uma vida permeada de situações de extrema vulnerabilidade,

situações de violência física e psicológica, dificuldade no relacionamento dos pais e

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dela com eles, e a situação sócio-econômica de miséria. No momento em que vão morar

apenas a menina e a mãe, Alice coloca em seu discurso que esperava que as coisas

mudassem dentro de casa. Mas a mãe continuou a bater na menina, não deixava a garota

fazer nada e não cuidava da casa. Segundo Alice, ela mesma fazia o serviço doméstico

e, nesse período, a mãe estava grávida “tava grávida, mas não estava morta” (sic). Além

disso, a menina queixava-se que mesmo grávida a mãe só bebia e fumava. A garota

reclamou da culpa que a mãe colocava nela por causa da separação dos pais.

Com esse panorama percebe-se a fragilidade da relação familiar e a dificuldade

do convívio, o rompimento dos laços que mantêm a menina junto da família. Pode-se

pensar que, neste caso, ocorre o fenômeno denominado casa vazia em que o adolescente

se sente abandonado e indiferente em relação aos cuidados dos responsáveis e, dessa

forma, a moradia já não tem mais o seu principal papel de proteção, acolhimento e lazer

(Rizzini, 2003).

Acrescente-se a tal panorama um agravante, ou seja, a condição sócio-

econômica de pobreza, gerada pelo abandono social e colocada também para Alice

como motivo de saída de casa, pois além da privação de recursos sociais, houve situação

de desemprego e alcoolismo da mãe, responsável pela casa, certamente um outro fator

de vulnerabilidade (Assis, Pesce e Avanci, 2006).

Nos três casos, aparece uma falta de controle dos pais em relação aos filhos.

Segundo Sarti (1999), a família exerce o papel de principal referencial do adolescente,

que está na fase de romper com os valores familiares e questioná-los. Ela dá a

continência e o limite, auxiliando o jovem na construção de seus valores. Numa

exposição de aula, Knobloch3 citou que adolescência é um período naturalmente de

crise. Marin (2001) assinala que a adolescência seria um momento de a família se fazer

presente na vida desses sujeitos, ser para eles referência e orientação. E que a

transgressão e o rompimento de alguns laços são inevitáveis e é necessário que a família

esteja atenta para este momento, quando ele procura singularidade e autonomia, para

que os laços não se rompam por completo como aconteceu nos casos estudados.

Tanto no caso de Alice, como no caso de Francisco, apresenta-se uma situação

em que os pais não têm controle sobre os filhos, adolescentes a quem falta a supervisão

dos pais como os responsáveis que colocam limites, como cuidadores. A ausência de 3 Profª Drª Felícia Knobloch , Núcleo 202 de CRISES, Faculdade de Psicologia, PUC – SP, em Maio de 2007.

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cuidados representa para o jovem a falta de proteção, segurança, interdependência,

lealdade e solidariedade, pontos fundamentais para o fortalecimento do vinculo afetivo e

da função familiar em relação ao seu membro. No caso de Beatriz, a mãe adotiva

colocava limites, porém eram tão rígidos e sem sentido para a garota que gerou a mesma

situação de enfraquecimento dos vínculos.

As situações de vulnerabilidade não indicam necessariamente que o adolescente,

ao vivê-las, irá abandonar sua família; o que determina sua saída é a singularidade de

entendimento e significação de suas experiências e como os que estão a sua volta as

compreendem (Rizzini, 2003).

Quanto à passagem pela rua:

Nos três casos, como descrito anteriormente, antes de ter a passagem pela rua, os

adolescentes passaram por outras instituições.

No caso de Francisco, a mãe o encaminhou para um lugar que o protegesse das

ameaças que estava sofrendo por conta de sua conduta.

Alice saiu de casa, ficou um tempo na casa de uma amiga e, quando se sentiu

ameaçada porque havia um homem que dizia tê-la comprado de sua mãe, foi procurar

proteção do Estado através de queixa numa delegacia.

Beatriz, quando saiu de casa, foi atrás das irmãs biológicas como uma alternativa

de sobrevivência e por conta de seu comportamento. O fato de ter ficado quase 13 anos

sem se relacionar com a irmã Kelly, fez com que esta não conseguisse desempenhar a

função familiar de colocar limites e dar continência às atitudes de rebeldia da

adolescente que foi colocada no abrigo como forma de impor limites à menina.

Os três adolescentes acabaram por passar por um abrigo onde se conheceram e

constituíram um vínculo de proteção e amizade, a ponto de Francisco e Alice tornarem-

se namorados. A forte relação entre os três fez com que eles fugissem do abrigo onde

estavam e fossem para a rua como forma de permanecerem juntos. A rua passou, então,

a representar para eles uma nova possibilidade de liberdade, de estarem juntos como um

grupo que tinha um vínculo forte e que se protegia, cuidava-se, além de oferecer lazer e

independência (Rizzini, 2003). E a formação de um grupo é importante na vivência de

rua, pois fortalece os adolescentes, aumenta a segurança e favorece a divisão de

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responsabilidades. Com eles não foi diferente e, em grupo, a rua passou a ser uma

possibilidade viável.

Durante a passagem pela rua, cada adolescente relacionou-se de uma maneira

com a família.

Francisco, segundo sua mãe, manteve alguns contatos esporádicos com ela, o

que a deixava muito nervosa e sentindo-se de mãos atadas, preocupada se ele passava

fome e frio, e acabava por sofrer mais quando tinha noticias. Mesmo quando ele dizia

que estava bem, preferia não vê-lo, o que indica a impossibilidade de continência dela

para com o filho.

Beatriz manteve menos contato com a família do que Francisco. Ligou uma vez

para a irmã para avisar que iria fugir, segundo o relato de sua irmã Kelly.

No caso de Alice, ela não manteve nenhum contato com a família no período em

que esteve na rua e ficou um ano desaparecida. Segundo a mãe, foi um momento de

sofrimento e preocupação que a fez se apegar com Deus.

Porém, a rua gerava muita vulnerabilidade e colocava-os em risco, como foi o

caso de, talvez, os vizinhos terem colocado fogo na casa da Rua Mazzei, onde ficaram

mais ou menos uns três meses. Em alguns momentos, até procuraram a assistência do

Estado e voltaram para o abrigo, entretanto, como acabavam sendo separados ou

ameaçados com a possibilidade da separação, fugiam novamente para poderem

permanecer juntos. Quando conseguiram na casa de acolhida conseguiram o objetivo,

não mais fugiram e, então, começou o trabalho do abrigo de retorno desses adolescentes

para junto de suas famílias.

Outro fator que possibilitou a saída dos jovens da rua (vale ressaltar aqui que

isto ocorre também quando saem de casa) foi uma vontade de mudar de vida, pois já

não mais se identificavam com aquele lugar em que estavam. De acordo com Rizzini,

este comportamento reflete a busca de outros referenciais na transformação de sua

identidade. Para exemplificar, segundo Alice, ela se questionava “vou ficar na rua até

quando?” e incomodava-se com o fato de ver as pessoas acordando cedo para trabalhar.

Ao mesmo tempo, a garota revelava o medo de ir para o abrigo, a mãe encontrá-la e ela

voltar a apanhar.

Quanto a passagem pelo abrigo e o retorno para casa:

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Num primeiro momento da inserção dos adolescentes na casa de acolhida, esta

decidiu separá-los, mas percebendo, compreendendo e respeitando a história do grupo,

que só permaneceria no abrigo se estivesse junto, não o separou, possibilitando assim

um trabalho individual que permitiu a volta de cada um deles para junto de suas

famílias. Segundo Gulassa (2007), é papel do abrigo respeitar e compreender a

necessidade de cada um que ele acolhe e dessa forma construir um vínculo sólido entre

o novo habitante da casa, a equipe que nela trabalha e também os moradores que lá

estão no momento.

O aval do abrigo em deixar os adolescentes juntos possibilitou-lhes perceber que

eram respeitados em sua individualidade e necessidades, e que ali seria um lugar onde

poderiam desenvolver-se a partir de sua personalidade e autonomia que, segundo

Gulassa é o que deve nortear o trabalho do abrigo.

Nos relatos dos adolescentes e seus responsáveis, exclusive os depoimentos de

Alice e sua mãe, discutidos adiante, o abrigo é colocado como tendo desenvolvido um

trabalho fundamental que propiciou o desabrigamento. Este fato aponta que o abrigo

respeita as diretrizes colocadas pelo ECA de ter o papel de transitoriedade e

provisoriedade e o desabrigamento, este seu principal objetivo.

No caso de Francisco, que tinha como principal empecilho para retornar à casa

de sua mãe o fato de ela residir em um lugar onde o garoto estava ameaçado de morte, o

abrigo percebeu não só a existência do vínculo como também que o garoto

permaneceria junto da mãe, se as condições de moradia permitissem. O abrigo

desenvolveu o trabalho de possibilitar a Lucia, mãe de Francisco, trabalhar no abrigo

como educadora e assim ter recursos financeiros para deixar seu barraco na favela do

Jaguaré e mudar-se para um bairro onde o filho não corresse risco na sua integridade.

Percebe-se neste caso que, quando os agentes (a equipe técnica) se conscientizam do

papel social que o abrigo pode desempenhar, eles fazem a diferença, ao se colocar a

serviço da comunidade atendida. Portanto, neste caso a equipe soube perceber os pontos

frágeis da estrutura familiar e trabalhou neles.

Segundo a fala do garoto, o que possibilitou seu retorno para junto da mãe foi

perceber o quanto sua mãe se importava com ele “eu vi que ela gostava de mim, e que

eu não podia deixar mais ela triste” (sic), o que antes ele não percebia. Este caso mostra

a importância do vínculo que é fundamental e estratégico para a volta do adolescente

para casa, porque se o garoto não percebesse que a mãe gostava dele e estava disposta a

fazer tudo para cuidá-lo, provavelmente o desabrigamento não teria ocorrido.

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No caso de Beatriz, quando a menina foi para a casa de acolhida, a irmã Kelly

foi conversar com a assistente social e informou que, se Beatriz quisesse, poderia ir

morar com ela, mas que para isso teria que respeitar os limites impostos. Kelly passou a

visitar Beatriz no abrigo e acolheu-a em sua casa em alguns finais de semana, no Natal e

Ano Novo. No entanto, Beatriz não estava segura de que gostaria de deixar os vínculos

constituídos no abrigo. Aos poucos, seus principais amigos retornaram para casa, ela e a

irmã ficaram mais próximas e houve a “pressão” (termo usado pelos adolescentes) do

abrigo para que ela fosse para a casa da irmã. Esta pressão deveu-se ao fato de Beatriz

estar há um bom tempo no abrigo e ter recebido uma bolsa do Projeto Dança

Comunidade de Ivaldo Bertazzo. Aqui, percebe-se que o abrigo é um serviço que

mantém um trabalho em rede, fazendo parcerias com projetos sociais, como por

exemplo, com um expoente da sociedade civil na área da dança. A rede é fundamental

para que o abrigo consiga desenvolver o trabalho de desabrigamento e para que este

tenha sucesso.

Segundo Beatriz, o abrigo possibilitou que ela se transformasse, permitindo

escolhas, dando a possibilidade de participar de cursos e oficinas. Relata a existência de

um educador que era um “filósofo fazia a gente refletir sobre o que queríamos” (sic). A

irmã também ressalta o papel fundamental que o abrigo teve para o processo de

desabrigamento de Beatriz “O abrigo fez um trabalho muito bom com Beatriz, a cabeça

dela se abriu, a convivência com o diferente, as regras, os limites do lugar, foi uma

maneira de condicioná-la a ter responsabilidade” (sic). A entidade, ao se caracterizar

como um lugar comunitário e coletivo (Gulassa, 2007), permitiu que Beatriz integrasse

as características necessárias para exercer o convívio com o outro de forma saudável.

Alice foi a primeira a ser encaminhada para casa e que também levou menos

tempo na transição. Logo após sua mãe tê-la encontrado, já passou o final de semana em

casa. Depois de um mês visitando a mãe, o retorno foi efetuado. Alice voltou para casa,

porque acreditava que sua mãe tinha mudado (tratá-la-ia melhor e iria fazer algo:

arrumar um emprego, cuidar da casa, pedir pensão para o pai dela e do irmão mais

novo), e o fato de tê-la procurado dizia isto. Contudo, as condições atuais de vida de

Alice na família são precárias e Alice considera que a situação pouco mudou. Refere-se

à negligência da mãe com os cuidados (parece haver um problema de alcoolismo) e a

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diferença significativa que a mantém em casa (o motivo alegado que a fez sair de casa)

é a mãe não voltar a bater nela.

Quando o desabrigamento é trabalhado, a questão da resiliência é fundamental

para nortear este processo, para que o adolescente e/ou sua família consigam rever sua

situação, aceitar as adversidades vividas e o jovem tenha o auxilio da proteção de seus

recursos internos, promovido por alguém em quem o jovem confia, seja do abrigo ou da

própria família.

Segundo os parâmetros da pesquisa desenvolvida por Assis, Pesce e Avanci, o

potencial de resiliência de Beatriz apresenta um grau elevado, podendo ser observado

desde o momento em que sai da casa da mãe adotiva, porque não suporta mais viver lá,

e procura as irmãs biológicas como possibilidade de solucionar o seu conflito. Isso fica

provado, quando ela diz que “a minha vida começou quando eu saí de casa”, sem negar

a experiência vivida. O tom da sua voz durante a narrativa é tranqüilo, suave, indicando

que lida bem com a sua experiência de ter estado vulnerável. A irmã Kelly apresenta-se

como um agente resiliente.

O que se percebe em relação ao potencial de resiliência de Alice, é que ela o

desenvolve até certo ponto, isto é, procura solucionar seus conflitos na medida em que

pode fazê-lo sozinha, demonstrando com isso possuir razoável auto-estima, mesmo não

possuindo a ancoragem na família e o abrigo não tendo conseguido lidar com a

dinâmica para auxiliá-la. Considere-se como ilustração o fato de ela ter procurado a

polícia quando resolveu abandonar os pais, ou quando diz que está difícil ficar com a

mãe porque a situação apresenta-se sofrida. O que se percebe neste caso é que o

potencial de resiliência de Alice não possui o respaldo de um agente externo.

Francisco dos três é o que se apresenta mais vulnerável, usando na sua narrativa

um tom agressivo, e adotando uma postura envergonhada com o que viveu, muito

preocupado com a opinião dos outros, com o parecer/ter e não com o ser. Para ilustrar,

diz que não conta para ninguém do novo bairro onde está vivendo o que aconteceu,

porque “fica marcado, todo mundo olha para você e pensa: ó é ele que morou na rua”

(sic). Apresenta uma atitude de negação diante do que viveu. A par disso, infere-se pelo

seu relato e na descrição do relato de sua mãe que ele questiona tudo e todos, tem

dificuldade de se relacionar e demonstra uma baixa auto-estima. Segundo a pesquisa já

citada, esses aspectos indicam que o potencial de resiliência está pouco desenvolvido.

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Ao mesmo tempo, enfrenta um amigo que continua na situação que abomina: Amigo: “e

ai Francisco não vem mais pra cá (Jaguaré)... Tá com medo de tomar tiro?”. Francisco:

“que nada você ainda ta nessa? Eu já evoluí já não estou mais nessa não.” Isso sinaliza

que, se bem trabalhado, assistido, Francisco pode desenvolver seus recursos internos

como forma de superação de suas dificuldades.

As diretrizes gerais já anunciadas anteriormente mostram qual deveria ser o

trabalho do abrigo no processo de desabrigamento da população que atende, visando o

retorno para casa da maneira mais adequada. São nove:

• Conhecer a história de vida do adolescente e os determinantes de sua saída

da família (para a rua) para alterar estas condições. Esta havia sido considerada a

diretriz mais importante, porque havíamos entendido que, enquanto o conflito que

causou a saída do adolescente não fosse resolvido, esse não voltaria para casa ou, se

voltasse, permaneceria pouco tempo. A teoria mostrou que o que faz, de fato, o

adolescente sair de casa não é necessariamente a vivência de uma situação de

vulnerabilidade, mas, segundo Rizzini (2003), é como ele vai entendê-la e,

principalmente, quando essas experiências chegam a romper com os vínculos que ligam

o adolescente à família e, a partir desse momento, não existe mais sentido para que

permaneça junto à família, uma vez que não há mais identificação com o ambiente.

Portanto, o trabalho do abrigo deve ser trabalhar com a historia singular de cada

adolescente e sua família, na busca de fortalecer os vínculos, aproximá-los, em muitos

casos, restabelecê-los, e a partir daí intervir nas condições concretas, que são as

vivências de vulnerabilidade, que influenciaram para que o jovem não permanecesse

junto de sua família.

• Realizar um trabalho junto à família ou grupo familiar que irá receber o

adolescente que, segundo Sarti (1999) é um trabalho de co-responsabilidade em que a

equipe técnica dá subsídios para que a família consiga desenvolver suas potencialidades

e encontre suas próprias soluções para poder receber, cuidar e permanecer com seu

filho. O trabalho com a família deveria focar dois pontos principais.

A - Conhecer e encaminhar questões relativas a saúde (alcoolismo, outras

dependências químicas), moradia, condições materiais e financeiras, agressões

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físicas, cuidados (comprometimento da família). Portanto, a equipe do abrigo deve

compreender a família, sua situação atual, seus recursos e suas necessidades, e a partir

desse levantamento, acionar sua rede de contatos e então subsidiar esta família,

inserindo-a em projetos e programas mais adequados para cada caso.

B - Discutir e auxiliar o adolescente e a família a compreender os motivos

que resultaram na saída do adolescente (impasse/conflito), para enfatizar a

importância deste aspecto com a família e pensar as estratégias de intervenção

nessa área. A ser destacada neste item a importância de se pensar em intervenções que

de fato transformem as situações que fragilizam a relação familiar, criar-se uma relação

de muita confiança entre abrigo e família.(Gulassa, 2007)

• Conhecer suas vivências na rua (grupo de pertencimento, compromissos,

vínculos) para auxiliar o adolescente no desligamento. Essa diretriz coloca a

importância de deixar que o adolescente seja ele mesmo, que se possa expor, contar suas

experiências e, dessa forma, criar um elo de afeto e de confiança com os trabalhadores

do abrigo. (Gulassa, 2007) Quando se entende o adolescente e compreende-se sua

satisfação em estar na rua, também se compreende o motivo de ele “ter precisado” sair

de casa. Assim, o abrigo pode desenvolver um trabalho para que o adolescente consiga

suprir suas necessidades, sem precisar ir para a rua. Essa compreensão é importante,

mesmo para os casos que não estão em processo de desabrigamento, para que o jovem

não volte para a rua depois de estar no abrigo.

• Inserir o adolescente em redes e projetos sociais que darão suporte para o

seu desenvolvimento pleno. Inserir o jovem em programas que o estimule na sua

conquista do mundo, no momento em que é desabrigado, faz o diferencial, porque é

mais um lugar de referência para ele, onde tem vínculos, pode desenvolver suas

habilidades e independência. É o abrigo que pode possibilitar isso ao desenvolver um

trabalho adequado com o jovem no período em que este está abrigado, ao permitir que o

adolescente descubra o que lhe é prazeroso e possa fazer escolhas entre as atividades

apresentadas, ajudando-o a se conhecer, desenvolver potencialidades, criar

responsabilidades e também ao permitir-se olhar para o jovem de forma singular o que,

segundo Gulassa, é um dos objetivos da instituição.

A partir dessa diretriz, percebe-se a necessidade do desenvolvimento de políticas

públicas que permitam parcerias do abrigo com outras instituições governamentais ou

não governamentais. Um “bom exemplo” é o projeto de dança desenvolvido por Ivaldo

Bertazzo que, além de dar a prática, dá assistência à saúde física e psicológica.

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• Desenvolver atividades que proporcionem a tomada de consciência dos

adolescentes em relação à sua situação de vida, influenciando seu comportamento

na volta para casa. O trabalho de tomada de consciência é fundamental para o

desenvolvimento da auto estima e auto confiança no jovem, requisitos importantes para

que se possa projetar no mundo e também aplicar seu potencial de resiliência.

•Avaliar as condições objetivas e subjetivas tanto do adolescente como de

sua família, e respeitar o tempo necessário de ambos para a saída, sem acelerar

este processo (“pressão”). Quando identificar que o adolescente se sente

pressionado, entender o porquê dele se sentir assim (pode ser indicativo de que

algo não está pronto para o retorno). Essa diretriz busca, principalmente, perceber as

particularidades de cada caso. Aparentemente as coisas podem estar bem, no entanto,

alguns aspectos mal elaborados podem prejudicar o desabrigamento. Aqui também

enfatiza-se a necessidade de compreender-se que, em alguns casos, a permanência

prolongada no abrigo seja necessária, por não ser o momento ideal para o jovem sair de

lá, e que, em outros, a família biológica não seja o lugar ideal para esse jovem (Guará,

2008). Além dessa pressão que os adolescentes “reclamam” sofrer, é preciso

compreender que o abrigo também é pressionado por instâncias superiores para que as

vagas sejam liberadas. Portanto, é necessário que se tenha um trabalho de comunicação

entre essas instâncias e o abrigo, para que possam compreender a necessidade real de

cada caso.

• Serem cuidadosos quanto às promessas e compromissos que o abrigo

assume com os adolescentes e suas famílias. Percebe-se que eles esperam por isso e o

não cumprimento do combinado cinde, às vezes sutilmente, às vezes radicalmente, o

vínculo de confiança entre o adolescente/família e a rede de serviço, perdendo-se a

âncora de segurança externa.

• Preocupar-se com o acolhimento que a comunidade poderá oferecer ao

adolescente. Quando este volta para casa, sente-se naturalmente distante da população

que habita a sua comunidade, ou porque perdeu o vinculo, ou porque nunca fez parte

dela. Segundo Marin (2001), o adolescente necessita de pessoas para referência e

interação. Isso indica também uma boa adaptação social. Um olhar cuidadoso do abrigo

para o lugar onde o jovem vai, pode possibilitar sua socialização e atividades de lazer na

sua comunidade, como forma de ocupar o espaço do qual passa a fazer parte.

• Desenvolver o acompanhamento sistemático dos adolescentes que

voltaram à família, para averiguar se o desabrigamento está ocorrendo

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adequadamente. O abrigo, pela proximidade e vínculo que tem com o adolescente e

com a família, pode compreender com mais propriedade e rapidamente a real situação e

interferir no que for necessário para solucionar eventuais conflitos familiares.

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CONCLUSÃO

A partir dos dados levantados e das entrevistas realizadas, a questão do

desabrigamento pode ser entendida como uma construção coletiva que tem como

essência a participação de, no mínimo, três partes que precisam estar interessadas para

que o retorno para casa aconteça: o adolescente, a família e o abrigo.

Através dos casos estudados, percebe-se que cada um desses agentes

desempenha um papel importante complementado pelo do outro. Em relação à

participação do abrigo, entende-se que em cada caso ele desempenhou um papel

diferente e contribuiu com maior ou menor participação para o desabrigamento e seu

sucesso. Em relação a Beatriz, o abrigo ofereceu um suporte adequado ao proporcionar

primeiramente a inserção da menina no curso de dança profissionalizante,

desempenhando o papel de auxiliar a garota a investir em si mesma. O segundo papel

foi o encaminhamento dela à casa de Kelly, quando houve condições para isso. No caso

de Francisco, o papel do abrigo, fundamental, foi empregar sua mãe e, assim,

possibilitar a mudança de bairro para que o garoto pudesse morar com ela. No entanto,

percebe-se que falta ao adolescente sua inserção em uma rede social e de serviços, que o

deixa sem alternativas de sociabilização, uma preocupação importante a ser considerada

por parte do abrigo, porque o menino apresenta dificuldade no relacionamento social e a

mãe mostrou–se sem muitas condições de auxiliá-lo nesse aspecto. Já no caso de Alice,

o desabrigamento rápido revelou-se precoce ou mal planejado, pois o abrigo não

considerou se o conflito da saída havia sido resolvido, no sentido de sua mãe poder de

fato, oferecer moradia e cuidar da filha, além de não ter considerado a possibilidade da

inserção de Alice, em rede social ou de serviços. É sob este ponto de vista que os

adolescentes se referem, de modo crítico, à “pressão do abrigo” pelo desabrigamento.

Esse caso era, desde o início, o que demandava um processo investigativo maior, pois

os elementos para sua análise eram pinçados de histórias “mal contadas” cuja

veracidade não pode ser determinada.

O trabalho realizado pelo abrigo mostra também a abertura de possibilidade ao

adolescente de fazer escolhas e tomar decisões, como escolher entre os vários cursos

que a instituição oferece e comprometer-se com o projeto, porque sempre corre o risco

de perder a vaga se “vacilar”.

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Segundo os relatos, nos três casos, o ponto comum que possibilitou o retorno

para casa foi uma tomada de consciência, como “uma ficha que cai”. E, neste aspecto, é

possível também considerar que o trabalho do abrigo influenciou na mudança de

perspectiva dos jovens. Todos perceberam que a vida na rua não levaria “a nada”, “não

garantiria futuro algum”. A conscientização aconteceu a partir das experiências dos

jovens e do trabalho que o abrigo desenvolve com a criança e o adolescente em relação

a seus direitos, deveres e responsabilidades. Portanto, o abrigo conseguiu um de seus

objetivos que é mostrar ao adolescente que ele pode desejar o mundo, querer ocupá-lo e

transformá-lo a partir do desenvolvimento de sua auto-confiança e auto-estima e aplicar

seu potencial de agente resiliente.

A tomada de consciência ajudou os adolescentes a querer construir seus projetos

de vida e poder sair do abrigo. Cada um deles fez o seu movimento neste sentido;

Beatriz precisava de mais tempo, Alice voltou logo para casa ao achar que as coisas

haviam mudado, Francisco, percebendo que a mãe o amava e que aquela situação a

fazia sofrer, desejou ficar junto dela.

Nos três casos, percebeu-se o interesse da família em receber o jovem. A mãe de

Francisco esteve presente no período em que ele estava no abrigo e mudou de casa

quando teve possibilidade de fazê-lo. Kelly, desde que a irmã Beatriz foi para o abrigo,

mostrou-se interessada em ficar com ela e respeitar o seu tempo. Ao mesmo tempo,

Kelly deixava claro o que esperava da irmã. Quanto à Alice, sua mãe foi a sua procura,

indicando interesse e preocupação com ela, estando sempre presente e desejando o

retorno da filha para casa, mesmo que Alice continuasse reclamando da postura da mãe.

No entanto, Francisco ele parece sem muitas perspectivas futuras - não está

trabalhando e a escola não lhe parece fazer muito sentido. Está envolvido apenas na

prática do basquete como atividade na comunidade, mas não parece estar inserido nem

pertencer a ela, além de não ter muitos amigos neste novo bairro.

Beatriz parece ser o caso mais bem sucedido de desabrigamento. Ela encontrou

alguém (sua irmã) com quem estabeleceu um vínculo afetivo significativo, que pode

cuidar dela, proporcionando-lhe moradia e alimentação. Enquanto esteve no abrigo,

conseguiu uma vaga num curso de dança (que também dá retaguarda social e

psicológica para adolescentes), o que parece estar contribuindo para sua formação e

auto-estima. Além disso, está na escola e não reclama da falta de vínculos, apenas que

sente falta dos amigos do abrigo.

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Alice é quem está tendo mais dificuldades de permanecer em casa dentre os três

casos. Dos fatores que a fizeram sair de casa, talvez o mais importante - o fato de

apanhar - foi resolvido, mas a questão na sua totalidade não o foi. Por isso, mostra-se

insatisfeita em casa. Segundo Alice, a falta de comprometimento e atitude da mãe em

arrumar trabalho, cuidar da casa, parar de beber e colocar os pais dela e de seu irmão

“na justiça” para conseguir pensão, faz com que ela pense em deixar a família

novamente. As condições materiais, bastante precárias, da casa onde mora são um fator

que a perturba muito e não vislumbra mudanças com a atitude atual da mãe. Acrescente-

se a isso não haver uma rede social presente que possa dar a retaguarda necessária para

ancorar mãe e filha.

Outro elemento crucial é a existência de um vínculo afetivo significativo –

alguém em quem o adolescente confie e que o faça ter vontade de ir para casa e lá

permanecer. No caso de Francisco e Alice, é a mãe; no caso de Beatriz, é a irmã mais

velha, que pode ser vista como substituta da mãe. Pode-se entender que o vínculo é o

elemento que, quando presente, possibilita a estadia junto com a família e seu

rompimento, a saída.

Tomando esses pontos como referencia para o desabrigamento, percebe-se,

então, o vínculo afetivo como fundamental para o crescimento e desenvolvimento do ser

humano e, a conscientização de si mesmo e das questões sociais só pode ser construída,

se o sujeito tiver referencias em que confiar e que permitam a apreensão e incorporação

de tais questões. A problemática apresentada por Sarti (1999) é profundamente séria,

quando relaciona o afeto e o cuidado na construção do cidadão, porque para poder

cuidar de si, do outro e da sociedade é preciso que o indivíduo tenha vivido,

experienciado o afeto.

O governo, de sua parte precisa compreender a necessidade de dar elementos

para que a população possa cuidar de si mesma e do lugar onde vive. Portanto, o

governo precisa desenvolver políticas públicas que possibilitem qualidade de vida e não

uma política assistencialista. Políticas que impliquem que o sujeito se sinta responsável

pelo que recebe. Como bem coloca Sarti (1999), é necessário que este seja um trabalho

de co-responsabilidade, em que todas as partes estejam envolvidas e, mais que isso,

comprometidas com a política de desenvolvimento do cidadão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A riqueza singular de cada caso faz com que pensemos na possibilidade de

explorar as entrevistas para diversos fins e fica claro que delas foi usado somente o que

foi considerado relevante para o entendimento da questão de desabrigamento.

O presente trabalho é apenas um dos pontos de partida para refletir sobre a

questão do desabrigamento. Ao pesquisar a bibliografia, pude perceber que esse é um

tema que ainda não é muito estudado, porém leva as pessoas a cada vez mais se

interessar por ele e indagar-se sobre essa questão. Entendo isso também sob o prisma do

momento pelo qual passamos em que o ECA está em vigor há 17 anos e praticamente

completou sua primeira fase, isto é, a municipalização, a mudança dos serviços, os

abrigos começando a existir e se organizar. Acredito que, ao mesmo tempo, entrou em

um segundo momento com os abrigos que já funcionam há algum tempo, inseridos em

uma rede(é o que se espera) para favorecer o desabrigamento que, apesar da dificuldade

que os abrigos enfrentam, é uma realidade.

Por isso, este é o momento de pensar nas ações que os abrigos já desenvolvem e,

a partir do concreto, aprimorar aquelas que são positivas e enfrentar as negativas,

corrigindo-as e, depois, realizando-as da maneira mais adequada.

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BIBLIOGRAFIA ASSIS,S. G., PESCE,R. P., AVANCI, J. Q. Resiliência- enfatizando a proteção dos adolescentes. Porto Alegre: Artimed, 2006. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei Federal 8069, 1990 FILME, Geraldo, Garoto de Pobre. In: Geraldo Filme. [CD]. São Paulo, Eldorado, 1980. GULASSA, Maria Lúcia Carr Ribeiro (org). O abrigo como possibilidade - sistematização de mesas de trabalho.Realização: Fundação Abrinque (Programa Nossas Crianças) e Instituto Camargo Correia (Programa Abrigar), São Paulo, 2006 GULASSA, Maria Lúcia Carr Ribeiro (org). Imaginar para encontrar a realidade -reflexões e propostas para o trabalho com jovens nos abrigos. Realização: Programa Abrigar,São Paulo, 2007 GUARÁ, I.M. F.R. et al. Trabalhando Abrigos/ Série Programas e Serviços de Assistência Social. São Paulo: IEE/PUC-SP. Brasília: SAS/MPAS, 1998. GREGORI, M. F., SILVA, C. A. Meninos de Rua e instituições tramas, disputas e desmanche. São Paulo: Contexto,2000. MARIN, I. K. Violências.São Paulo: Escuta, 2001 MEDEIROS, Elton; DUARTE, Mauro, Maioria sem nenhum. In: Samba na Madrugada, Paulinho da Viola, [CD]. Rio de Janeiro, RGE, 1966. PINHEIRO, Paulo César e NOGUEIRA, João, Espelho. In: Parceria. [CD]. Rio de Janeiro, Velas, 1994. PIRES, M.L. Um olhar para o abrigo: Reflexões sobre a prática do educador e mãe social e sua influência na vida das crianças e dos adolescentes adrigado. Trabalho de Conclusão de Curso, Faculdade de Psicologia,PUC-SP, São Paulo, 2006. ROSA, Noel e PEPE, Kid, O Orvalho Vem Caindo. In: Noel Rosa, Aracy de ALMEIDA, [CD]. Rio de Janeiro, Warner, 2002. RIZZINI,I. Criança e adolescentes que vivem e trabalham nas ruas: revistando a literatura. In: RIZZINI,I. (org). Vidas nas ruas- crianças e adolescentes nas ruas: trajetórias inevitáveis? Rio de Janeiro:Editora PUC-RIO. 2003.p.17-44 SARTI, C.A. Família e jovens: no horizonte das ações.Revista Brasileira de Educação: São Paulo, n.11,p.99-109, Mai/Jun/Jul/Ago. 1999. VANZOLINI, Paulo, Volta por Cima. In: Onze sambas e uma capoeira. [LP]. São Paulo, Marcus Pereira Discos, 1967.

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ANEXO I

Roteiro de Entrevista com o ADOLESCENTE

A) SAÍDA DO ADOLESCENTE PARA A RUA

Quem morava em sua casa antes?

Como vocês se relacionavam? Se “davam” bem?

E as “coisas” ficaram diferentes?

Como você acha que uma família tem de ser?

Como você participava da família (vida familiar)?

O que você acha que fez você sair de casa?

Como você se sentiu saindo de casa?

B) A RUA E O ABRIGO

O que você fazia na rua? Tinha uma rotina?

Você andava com um grupo? Em que situação você fez este grupo (antes de sair de

casa, já estava na rua)? Como você via (entendia) este grupo?

Você pensava em sua família? EM quais momentos?

Você manteve contato com sua família?

Como você chegou ao abrigo? E como foi lá?

Você passou por outros abrigos?

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C) O RETORNO PARA CASA

Como foi a reaproximação com sua família? E o abrigo, contribuiu?

E hoje sua visão de família como é? Mudou?

Vocês tiveram alguma conversa sobre o que deveria ser feito para melhorar?

Como estão as “coisas” hoje? Trabalho? Estudo? Como são as rotinas?

Roteiro de entrevistas FAMÍLIA

A) A SAÍDA DO ADOLESCENTE PARA A RUA

Como foi a infância de X?

Quem fazia parte da família (morava na casa)? Como era a relação entre vocês?

Como era X em casa?

Quando X era criança, como vocês esperavam que ele fosse quando crescesse?

Como estava a relação de vocês antes de X ir para rua?

O que vocês acham que aconteceu para que X saísse?

B) A RUA E O ABRIGO

Como vocês se sentiram quando X partiu?

Enquanto ele(a) estava na rua o que vocês pensavam (imaginavam)? Algo os

preocupava?

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Como vocês entendem a passagem dele(a) pelo abrigo? Acham que algo deveria ter

sido diferente?

E a reaproximação como aconteceu? O abrigo contribuiu?

C) O RETORNO PARA CASA

Vocês conversaram sobre o que era necessário ser feito para facilitar o retorno de X

para casa?

Como vocês acham que X está hoje?

Como estão as coisas entre vocês hoje?

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ANEXO II

Entrevista com Lúcia, mãe de Francisco

Segundo Lúcia, o filho foi criado por ela e pela avó. Moravam todos juntos, até

que Lúcia engravidou pela primeira vez do atual marido e foi morar com ele. Francisco

acabou ficando com a avó. A avó “deixava tudo, não dava castigo e não proibia nada”

(sic). Foi nesse período que Francisco começou a usar drogas e a chegar tarde em casa.

Essa situação gerava conflito entre a mãe e a avó. Lúcia fala que Francisco, por ser

muito grande e parecer mais velho, sempre teve amigos maiores que ele, o que não era

boa influência, porque faziam coisas que não eram para meninos da idade de Francisco.

“Dia histórico que a chuva parou a marginal, teve um assalto e ele foi acusado

de ser o culpado” (sic). Porém, acharam o verdadeiro assaltante que ameaçou Francisco

e mais dois colegas de morte por não terem assumido a responsabilidade do crime. Por

este motivo, não podia mais viver com a mãe no Jaguaré e precisou passar dois meses

na casa da avó paterna. Ele nunca havia tido muito contato com essa família e nem se

dava muito bem com eles. Dizia se sentir desrespeitado, mal tratado pelo pai, tio e

primo, as pessoas que moravam na casa.

Nesse período assaltou uma vídeo-locadora cujo dono era primo de um traficante

e foi novamente ameaçado de morte. O pai ligou desesperado para a mãe, exigindo que

ela desse um jeito na situação.

Lúcia pegou Francisco e o levou à Vara da Infância e Adolescência, onde a

assistente social falou “colégio interno de pobre é a FEBEM”, porque Lúcia queria

colocar Francisco em um colégio interno. Os dois saíram de lá e foram para o Programa

de Proteção a Criança e Adolescente Ameaçado de Morte que é vinculado a Comissão

de Direitos Humanos do município. Francisco foi então encaminhado para uma Casa de

Passagem. Foi nesse abrigo que conheceu a namorada Alice e a amiga Beatriz.

Os três fugiram do abrigo “a menina (namorada) sabia viver na rua, na rua não

se passa fome. Francisco era muito centralizado em Alice que tinha um poder de

persuasão forte nele” (sic).

No período em que Francisco estava na rua, ele ligava algumas vezes. Essas

ligações deixavam Lúcia muito nervosa, porque se sentia de mãos atadas, achava que o

filho estava passando fome e frio, mesmo quando ele falava que estava bem. Preferia

não vê-lo, pois sofria mais.

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Segundo Lúcia, Francisco foi para a Casa de Acolhida , após passar dois meses

na rua com as meninas, quando então decidiram pedir ajuda e acabaram no mesmo

abrigo porque, se ficassem separados, iriam fugir novamente.

Desde o primeiro momento em que Francisco foi para o abrigo, Lúcia visitou-o

semanalmente. Ele queria voltar para casa e ela queria recebê-lo, mas tinha primeiro de

mudar de bairro e, quando isso aconteceu, ele voltou a morar com a mãe.

Para poder receber Francisco, Lúcia foi trabalhar no abrigo onde está desde

agosto de 2006. Essa foi a maneira que a equipe técnica encontrou para encaminhar

Francisco para casa, já que ele estava sendo ameaçado de morte no Jaguaré, bairro em

que a mãe morava. Quando ela foi trabalhar no abrigo, teve condições de sair de sua

casa e morar de aluguel em outro bairro da zona norte.

A mudança de bairro demorou um pouco, pois Lúcia estava fazendo um curso

profissionalizante no Jaguaré e decidiu terminá-lo antes de mudar. Havia também o

medo de mudar de bairro, porque “Na favela onde eu morava já conhecia as pessoas e

sabia que estava segura, eu nem precisava trancar a porta de casa” (sic).

Lúcia afirma estar mais feliz e tranqüila. “Francisco ainda dá umas pisadas de

bola, foi expulso do curso. Ele também está mais revolucionário, exige seus direitos”

(sic).

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ANEXO III

Entrevista com Francisco

Inicialmente, ao dizermos que gostaríamos de sair de casa para conversar,

Francisco disse que não tinha nenhuma diferença entre o que sua mãe nos contou e

sobre o que ele contaria, pois já havia relatado tudo para ela.

Disse que não gosta de tocar neste assunto, que não se sente à vontade para

conversar sobre ele conosco, que para isso é necessário que se tenha um vínculo. Falou

que na Casa de Acolhida sempre o ficavam pressionando para que falasse e que não

gosta, que só se sentia bem de conversar com a psicóloga e que a coordenadora era uma

falsa “ela sempre pedia para que eu falasse com ela ou com uma assistente social que eu

nem conhecia”.

Disse também que não fala para ninguém da região (novo bairro em que está morando

com a mãe) o que houve, porque “fica marcado”, “todo mundo olha e pensa: ó é ele que

morou na rua”. Diz não ter nada para se orgulhar do que viveu e relata a conversa que

teve por telefone com um amigo, que continua na mesma situação que atualmente

abomina: “Amigo: e aí, Francisco, não vem mais pra cá (Jaguaré)... tá com medo de

tomar tiro? Francisco: que nada, você ainda tá nessa? Eu já evoluí, já não tô mais nessa

não.”

Francisco conta do episódio em que a polícia o pegou, quando um outro rapaz

praticou em assalto na rua debaixo. Para não ser preso, Francisco contou quem

realmente tinha realizado o assalto e foi jurado de morte por isso. Para pagar sua dívida

com o ladrão, chegou a roubar uma locadora de vídeo (quando estava na casa da avó

paterna), só que o assalto não deu certo, o que gerou mais dor de cabeça: o dono da

locadora era primo de um traficante, que passou a procurá-lo. Depois disso, não quis

mais falar sobre o assunto, quando perguntamos do período em que passou na casa do

pai e depois na rua. Disse que sua mãe já havia falado tudo e que ele não gostava muito

de lembrar dessa parte da vida.

Sempre com um tom questionador, Francisco não concorda com muitas das

situações vividas na Casa de Acolhida: “Vocês acham que sabem alguma coisa dos

direitos da criança e do adolescente? O que vocês sabem de verdade?”. Reclama do fato

da equipe do abrigo pressionar os adolescentes para que estes retornem para suas

famílias, sem de fato saberem qual é a situação familiar e se o adolescente quer mesmo

retornar.

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Diz também da convivência com os adolescentes na rua: “Se você chega com

um pano novo, todo mundo fica perto, vem falar com você; agora se você tá com um

pano velho, ninguém nem olha na sua cara, tá todo mundo interessado em alguma

coisa”.

Diz que dava para escrever um livro sobre a história que viveu, junto com os

outros, e assim acaba por não entrar em muitos detalhes. Acha que o que possibilitou o

retorno para sua casa foi o sentimento pela mãe: “eu vi que ela gostava de mim e que eu

não podia deixar ela mais triste”.

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ANEXO IV

Entrevista com Beatriz

Beatriz morou com a mãe adotiva até os treze anos. Disse que viveu bem até os

dez, quando começou a ir mal na escola; nessa época, ficou sabendo que era adotada e

que em todas as brigas a mãe batia nela e “jogava na cara” que era adotada. Nessa fase

da vida o “mundinho” da Beatriz era a família.

Disse que começou a aprontar, cabular aula e por isso foi tirada da escola pela

mãe, “aí eu não tinha mais nada para fazer”. Depois que a mãe lhe disse que era

adotada, tudo mudou; passou a tratá-la diferente dos outros irmãos, a agredia muito, “

eu tentava fazer tudo para agradá-la, mas ela sempre ficava brava e eu com 12 anos já

tinha que lavar minha roupa o que era diferente com os outros filhos”. Como

conseqüência desse conflito entre as duas, o resto da família, os irmãos e o pai, também

começaram a tratá-la mal, já não mais se sentia bem naquele lugar.

Foi quando começou a procurar as irmãs e descobriu onde elas moravam. Passou

três dias na casa da Kelly (irmã com quem mora hoje), até que a mãe adotiva apareceu

com o Conselho Tutelar e a levou para casa. Beatriz foi avisada que a próxima vez que

fugisse iria para um abrigo. Mas as coisas só pioraram... então, ela fugiu de novo e

passou dois meses na casa de uma amiga. A mãe a encontrou novamente e o Conselho

Tutelar quis encaminhá-la a um abrigo. Beatriz contou para eles que tinha a irmã Kelly

e que gostaria de ir morar com ela. Passou na casa de Kelly dois meses e então foi para

o abrigo Criança Cidadã, onde permaneceu por cinco dias e depois foi encaminhada

para uma Casa de Passagem , onde conheceu Alice e Francisco.

No abrigo, por mais que tivesse uma família, sentia-se muito só, o que a fazia

apegar-se fácil às pessoas, o vínculo do grupo (Beatriz, Alice, Francisco e Luís) se

cristalizou no período em que passaram na rua. Quando fugiram, foram para um lugar

que um amigo que conheceram na Casa de Passagem, sabia ser uma casa abandonada na

rua Mazzei. Moraram uma semana por lá e recebiam comida dos vizinhos. Depois disso,

ficaram sete dias na rua e acabaram indo para a delegacia.

Alice, Beatriz e Luís foram para o Criança Cidadã e Francisco foi para a Casa

de Acolhida. Uma semana depois, Beatriz foi encaminhada para um outro abrigo, mas

ficou pouco tempo, porque, ao saber que Francisco e Alice tinham fugido, imaginou que

eles estivessem na rua Mazzei. Ela os encontrou e passaram mais três semanas por lá e

depois foram para a Casa de Acolhida. Eles fugiram algumas vezes, mas voltavam, “a

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gente fugia porque queria ficar junto e o povo falava que ia separar”.

“O Luís fugiu antes de voltar para casa. Alice voltou para casa e no começo

vinha visitar, uns três meses depois, parou de aparecer”.

A Beatriz foi encaminhada para casa porque já estava há muito tempo no abrigo,

“eu não queria muito ir embora, pois havia feito vários vínculos, mas a vida no abrigo

não é muito boa também, tem hora para tudo. Tem coisas ruins e boas”.

Beatriz já estava mais calma e consciente, a irmã estava disposta a ficar com sua

guarda. “Teve uma vez que eu fugi do e que depois conversei com a Kelly e ela me

perguntou se eu voltasse para casa e tivesse algum imprevisto se eu iria fugir, respondi

que não”. Foi nesse período que o abrigo arranjou para ela um curso de dança

profissionalizante onde ganharia uma bolsa.

Segundo ela, o trabalho do abrigo contribuiu muito para que mudasse, as

possibilidades de escolha que eles davam, os cursos, as oficinas. As rodas de conversa

com o tio Bento. “ele é um filósofo que fazia a gente refletir sobre o que queríamos”.O

que ajudou também a mudança em seu comportamento foi perceber que ficar na rua não

ia levar a nada.

Segundo ela, a pressão da equipe técnica para que eles retornem para casa é

muito ruim e tem como conseqüência o rompimento dos vínculos com os outros

adolescentes, “fiz os meus amigos lá e gostaria de vê-los”.

Hoje ela procura esquecer o que aconteceu antes de fugir da casa da mãe

adotiva, esquecer o que passou com a mãe. A vida mudou para melhor depois que

conheceu a Kelly. “A minha vida começou quando eu saí de casa”.

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ANEXO V

Entrevista com Kelly, irmã de Beatriz

“Eu tive contato com a Beatriz até ela ter mais ou menos um ano, quando foi

adotada. Minha mãe era alcoólatra e a Beatriz chegava todos os dias muito suja na

creche, a diretora ficou indignada, deu queixa no Conselho Tutelar e depois a adotou”.

Kelly sabia que a irmã morava perto, mas não ia procurá-la para não arrumar

confusão com a mãe adotiva. Em 2004 elas se reencontraram. Estava trabalhando e

quando chegou na casa de seu pai a Beatriz estava lá. A menina ficou um dia e a mãe

apareceu com o Conselho Tutelar. Beatriz voltou para casa e as duas irmãs ficaram

proibidas de terem contato. Segundo a mãe adotiva, Beatriz estava muito rebelde e a

relação entre as irmãs poderia piorar a situação.

Beatriz ficou menos de um mês na casa da mãe, fugiu e desapareceu durante

dois meses. Certo dia foi para a casa de Kelly que, ao saber que ela havia fugido, avisou

o Conselho Tutelar que permitiu que a menina ficasse na casa da irmã, até que saísse a

resposta final em julho, decidindo com quem ficaria a guarda de Beatriz. Mas “Beatriz

tinha um probleminha: gostava muito de sair sem hora para voltar, voltava tarde, a gente

conversava, mas ela não mudava nada”.

“Eu tentava impor limites, mas não dava. Um dia a Beatriz não voltava e decidi

ir procurá-la na casa de um rapaz, em seguida fui na casa de uma amiga e ela também

não estava. Depois disso, tivemos uma conversa e falei para ela que eu ia avisar o

Conselho Tutelar sobre o seu comportamento e que provavelmente ela iria para um

abrigo. Eu também disse para ela que achava bom para ela ficar um período em um

abrigo porque iria aprender algumas coisas como limite, iria precisar se relacionar com

muitas pessoas diferentes e enquanto isso sairia a resposta da guarda. Quando avisei a

assistente social sobre a situação, ela me disse que já sabia que a Beatriz estava

desrespeitando as regras e que eu não estava conseguindo dar conta, por isso eu ia

perder a guarda provisória”.

No dia anterior de Beatriz ser levada para o Conselho Tutelar, fugiu. Kelly disse

que foi procurá-la em muitos lugares e que a encontrou na casa de um menino. No dia

seguinte, o conselho a colocou no Criança Cidadã. Ficou cinco dias e depois foi para

uma Casa de Passagem, onde permaneceu por dois meses. Foi quando conheceu

Francisco, Alice e o Luís.

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A primeira vez que eles fugiram do abrigo, Beatriz ligou para a irmã e avisou

que iria fugir no dia seguinte. Eles foram para casa da rua Mazzei, ficaram uma semana

e depois se apresentaram em uma DP que encaminhou a menina para a Casa de

Acolhida, onde passou três dias e fugiu para se encontrar com Francisco e Alice, que

estavam na rua Mazzei. Lá ficaram mais 15 dias e depois foram para a Casa de

Acolhida no início de novembro de 2005.

Kelly foi conversar com o assistente social do abrigo e informou que se Beatriz

quisesse voltar para casa poderia, mas somente se não desse trabalho. Kelly começou a

fazer visitas e em dezembro Beatriz passou o Natal e o Ano Novo na casa da irmã. A

amiga Alice passou o Ano Novo com elas. Depois do Natal a garota passou a ir todos os

finais de semana para a casa da irmã.

Mesmo estando tão próximas e com as visitas mais freqüentes à casa da irmã

mais velha, o desabrigamento demorou a acontecer. Segundo Kelly, foi porque B não

conseguia decidir o que queria realmente. Quando a menina foi selecionada para um

curso de dança com bolsa, a equipe técnica do abrigo achou importante Beatriz estar em

casa, com uma estrutura familiar que pudesse dar suporte e limites, já que agora ela teria

certa independência financeira.

“O abrigo fez um trabalho muito bom com a Beatriz, a cabeça dela se abriu, a

convivência com o diferente, as regras, os limites do lugar, foi uma maneira de

condicioná-la a ter responsabilidade”.

Kelly achou ótimo a irmã morar com ela, a menina ficar todos os dias e não

apenas no final de semana. Foi bom para Roberto,o irmão mais novo das duas, pois um

faz companhia ao outro. Quanto a Roberto, Kelly já tem a guarda dele há alguns anos.

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ANEXO VI

Entrevista com Alice

Alice contou que o pai bateu na mãe com ela no colo, quando tinha um ano. Aos

quatro, ele foi preso e quando tinha cinco ou seis anos o pai bateu nela, “de dar murros,

não de chinelo”. Quando começou a ir para a escola, tinha medo de dormir sozinha e

pedia para dormir com o pai – “Você não tem medo de nada” – dizia ele, que “se

irritava com tudo”.

Segundo Alice, seus pais “brigavam muito, quase não se falavam”. Um dia, o pai

tentou enforcar a mãe: “acho que se não fosse por mim ela estava morta” (sic). Contou

que o pai sempre batia na mãe.

Com onze ou doze anos, falou para o pai que desde que nasceu eles (os pais) só

brigavam, que ela não podia conversar com ninguém, que era repreendida. Alice relatou

que um dia seu pai bateu a cabeça dela contra a parede, que ele sempre trabalhou e nos

finais de semana bebia, mas era agressivo mesmo sem beber. Nessa mesma época, um

dia o pai saiu armado e a mãe tentou evitar, mas não conseguiu. Seu pai foi preso e

Alice presenciou a cena, contou que chorou muito.

Com quatorze anos quando morava com o pai, levou vários socos no olho,

porque ele encontrou uma carta dela para um menino. Diva, a mulher do pai, disse na

ocasião: “bem feito, quem mandou?”. Ygor, filho de Diva, “sempre fazia coisa errada e

jogava pra cima de mim”. O pai dela acreditava nele.

Com relação à separação dos pais, Alice diz que dos treze anos em diante eles se

separavam e voltavam. O motivo: a mãe não gostava do jeito que o pai batia nela, e

“quando ela entrava no meio para separar, ele batia em nós duas – só que ele brigava

como se tivesse brigando com homens”. Quando eles se separaram, Alice ficou com a

mãe na casa de uma tia, mas seu pai sempre ia lá. Logo eles voltaram. Alice não queria

– “ele vai começar tudo de novo”. Logo se separaram novamente e a mãe foi morar “de

favor” na casa de uma amiga. A menina não tinha onde ficar e foi morar com o pai,

embora não quisesse. Passava os finais de semana com a mãe. Um dia seu pai foi onde

sua mãe estava e a ameaçou, dizendo que, se ela não voltasse com ele, ia fazer “um

monte de coisas”.

Alice conta que seu pai tinha convulsão e não podia beber muito. Um dia, ele

passou mal em casa, fechado num quarto. Alice diz que queria deixá-lo morrer, não

queria abrir a porta do quarto – “se fosse eu, ele ia deixar eu morrer”.

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A respeito de seu relacionamento com sua irmã Sabrina., ela diz que o único

fator que atrapalhava o relacionamento delas é que ”ela gosta do meu pai”. Ele batia

nela, depois ela ia dar beijo, abraço nele... eu não”. Ela conta da diferenciação que seu

pai fazia entre elas – ele dava dinheiro para Sabrina comprar doce e não a deixava

dividir com Alice.

Ainda com quatorze anos, ela lembra que não queria mais ficar com o pai e foi

morar com a mãe. Nas palavras dela: “só que ela não deixava eu fazer nada, só ficar em

casa. Ela batia em mim também”. Ficou alguns meses com a mãe, até ela ter neném.

Saiu de casa e ficou dois meses na casa de uma amiga e depois foi à delegacia, dizer que

não queria ficar com a mãe nem com o pai. Na delegacia, foi encaminhada para o

Criança Cidadã, onde ficou por dois meses. Do Criança Cidadã foi para a Casa de

passagem, permanecendo lá por seis meses. Em 12 de setembro, foi encaminhada para

um abrigo só para meninas, no bairro da Brasilândia. Em seguida retornou para o

Criança Cidadã.

Há algo mais na história de Alice que precisa ser retomada para poder ser mais

bem compreendida.

Quando Alice voltou para a casa de sua mãe, passou alguns meses com ela que,

na época, estava grávida – “tava grávida, mas não tava morta”, diz Alice, que completa

dizendo que ela (Alice) fazia tudo em casa, enquanto a mãe fumava e bebia. Além disso,

conta que a mãe a culpava pela separação do marido: “ela enchia o saco, só falava

nisso”. Então, de certa forma, ela esperou o irmão nascer, já que foi ela quem cuidou da

casa, enquanto a mãe estava no hospital.

Nesse momento da conversa, interrompemos para que fosse esclarecido um fato

significativo na história de Alice, a respeito de sua suposta venda, por sua mãe:

“Quando eu tava na rua, pedi pra ficar na casa de uma amiga... aí eu tava lá ... e tinha

um vendedor de frutas... minha amiga me chamou e disse que ele tava me chamando. Aí

eu desci e ele falou que tinha me comprado da minha mãe, que pagou três mil reais por

mim. Eu falei que não ia com ele não, não queria.... falei pra ele, não vou, além do mais

você é velho”. Depois disso, a amiga recomendou que ela fosse à polícia e dissesse que

não queria mais ficar na rua. Foi o que ela fez. Na delegacia, Alice foi encaminhada

para o Criança Cidadã, depois de passar uns três dias esperando no local.

Apenas a título de manter a cronologia: Alice passa dois meses no Criança

Cidadã e é encaminhada para uma Casa de Passagem. Ali conhece Beatriz, um outro

garoto e o Francisco, que se tornou seu namorado. O encontro desse grupo e a amizade

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explicam o extenso trânsito institucional realizado por Alice, já que eles fugiam das

instituições para ficarem juntos.

Depois de ter conhecido o grupo na Casa de Passagem, Alice vai para um abrigo

só para meninas, na Brasilândia. Lá recebe a visita de Francisco e mais dois amigos, e a

coordenadora apenas autoriza cinco minutos de conversa. Passados os cinco minutos,

manda Alice entrar, o que não é cumprido – “a gente nem tinha conversado” diz ela.

Isto resulta na saída de Alice desse abrigo e, segundo ela, foi a coordenadora quem a

mandou embora. Juntos, os quatro foram ao Fórum de Santana, que encaminhou

Francisco para o abrigo e os outros três para o Criança Cidadã. Depois foram todos para

o abrigo.

Questionada se havia ficado na rua de fato, Alice diz que passou uns dois meses

na rua Mazzei, no Jaçanã, perto do Tucuruvi, numa casa abandonada. Perto dessa casa

havia um abrigo, que atendia apenas garotas. Um dos meninos que morava nessa casa

abandonada conhecia a dona do abrigo e com ela conseguiam alimento, banho e

produtos de limpeza para a casa abandonada. O grupo era formado por nove

adolescentes (talvez algumas crianças, pois não se sabe a idade de todos), mas dos nove

havia três que se desencontravam do grupo e acontecia uma espécie de revezamento na

casa. Nessa época, o grupo de Alice já havia fugido da Casa de Acolhida, porque foram

ameaçados de separação. Certo dia,saíram da casa abandonada por algum motivo e, ao

retornarem, a casa havia sido queimada. O grupo até pensou em passar mais uma noite

lá, mas resolveram voltar para a Casa de Acolhida.

Continuando a entrevista, questionamos as razões de sair da rua. Alice diz que

pensava: “vou ficar na rua até quando?”, pois via os outros acordando cedo, indo

trabalhar. Mas por outro lado pensava: “mas e se eu for pro abrigo, minha mãe me achar

e me bater de novo?”.

Depois de seis meses na Casa de Acolhida, sua mãe a encontrou. Primeiramente

falaram por telefone e a mãe apenas chorou. A psicóloga avisou que a mãe iria visitá-la.

Durante a visita, Alice contou de Francisco e que estava fumando. Passou o final de

semana com a mãe, voltou para a Casa de Acolhida e depois de um mês voltou

definitivamente para casa.

Segundo Alice, o abrigo não colaborou em nada para sua volta para casa. O que

possibilitou o retorno foi a mãe ter ido buscá-la. E diz “a coordenadora do abrigo (que

atualmente é a coordenadora do CEDECA) disse que ia ajudar, mas só atrapalhou. Fez

uma reunião no abrigo com os adolescentes e disse que eu e minha mãe estávamos

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passando fome e que fomos pedir ajuda. O pior é que todas as vezes que a vejo, ela diz

que vai ajudar”.

Quando indagada sobre o que aprendeu no abrigo, respondeu “aprendi a dançar

hip-hop, fumar, fazer pão e muito sobre os direitos da criança e do adolescente, que não

são respeitados. O tio Brito sempre dizia para eu não começar a fumar.”

Nesse momento, questionamos o porquê de voltar para casa. Alice disse que

achou que sua mãe tinha mudado, a ponto de procurá-la. Mas contou que a mãe só não

bate mais. Nesse ponto, começaramm as críticas em relação à mãe. Contou que a mãe

prometeu fazer um monte de coisas: “procurar emprego, pôr o pai no pau”. Pensa que os

companheiros que estavam com ela na rua “estão bem, só eu tô me ferrando”. Alice

acha que a mãe devia procurar ajuda – “a cerveja vai te ajuda em quê?” considera “que

a cerveja já tomou conta dela”.

Disse que quando saiu do abrigo, começou a fazer um curso no CEDECA Paulo

Freire, mas que não estava gostando muito “porque só falava dos direitos da criança e

do adolescente e isso eu já aprendi e muito no ***, a moça também falava que a

violência vinha de dentro de casa”. Alice contou que esse curso tinha uma bolsa, mas

que ela não recebeu (acha que foi porque saiu antes), que sempre quando encontra a

coordenadora do CEDECA, ela diz para Alice passar no CEDECA para pegar o

dinheiro.

Com relação à Casa de Acolhida, disse que sempre tem algo para se ocupar, que

quando vai visitar a Casa não tem vontade de sair. A mãe diz que ela vai para lá e volta

outra. Ela discorda; diz que não vai parar de ir pra lá e se quiser vai todo dia.

Então perguntamos por que ela ainda está em casa e Alice revelou já ter dito

para a mãe que vai embora e argumenta com a mãe: “você diz que eu não mudei, mas

você só toma cerveja”. Acha que não tem “uma mãe normal, que trabalha durante a

semana”. Disse que pensa assim: “se eu não for atrás, procurar serviço, a gente vai ficar

aqui até quando?”, revelando grande insatisfação com o local onde mora. Utilizou a

proximidade do Natal para manifestar-se: “sem dinheiro a gente vai onde passar o

Natal?”.

Neste ponto da entrevista, pedimos que ela esclarecesse uma história um tanto

obscura: sobre um suposto estupro que ela teria sofrido, segundo relato da mãe. Alice

contou que tinha doze anos, quando houve uma festa junina e a turma combinou de ir à

quadra no dia seguinte. Alice marcou com um garoto de se encontrarem numa fábrica,

próxima à quadra, para depois seguirem juntos até lá. Só que no dia seguinte apareceu o

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primo do garoto e em seguida chegaram outros, inclusive o garoto em questão. Dentro

da fábrica, os garotos pediram que ela “ficasse” com um deles e ela se negou, queria ir

para casa. Em casa, a mãe foi avisada por um tio que tinha visto Alice com mais garotos

dentro da fábrica. No dia seguinte, elas foram até a fábrica e sua mãe falou com o dono,

encontrou os meninos e discutiram. Dias depois, Alice fez exames e não foi constatada

nenhuma violação. Após esse episódio, toda vez que Alice ia levar sua irmã para a

escola, que ficava próxima da casa dos garotos, eles “mexiam” com ela, até que um dia

os meninos intimaram sua irmã a ir buscá-la em casa, mas não os atendeu. A partir

desse episódio, a mãe passou a levar a irmã para a escola. Segundo Alice, essa história

só acabou, quando saiu da casa do pai, que não fazia nada.

Questionada sobre sua reação à gravidez de sua mãe, diz que achou bom e ruim.

Ruim por causa das condições, que já eram ruins e ficariam mais difíceis, mas não

considera que o nascimento influenciou sua saída de casa.

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ANEXO VII

Entrevista com Sandra, mãe de Alice.

Sandra conta que por volta dos doze anos Alice começou a sair com meninos e

relata um episódio em que Alice marcou um encontro com um garoto numa fábrica e na

hora chegaram mais três que supostamente mantiveram relações sexuais com ela. A mãe

percebeu que Alice estava estranha e perguntou o que havia. Depois de ouvir a história,

Sandra decidiu ir até a fábrica com a garota. Chegando lá, havia alguns meninos que

conheciam Alice e Sandra logo perguntou quem eram e o que tinha acontecido no dia

anterior. Com os nomes dos meninos, Sandra fez uma denúncia (boletim de ocorrência).

Em decorrência desta, Alice realizou um exame para averiguar se a relação sexual havia

sido consumada ou não. O resultado indicou que até o momento do exame Alice era

virgem. Porém, Sandra relata que o rapaz que tinha marcado o encontro com Alice

contou pra todo mundo o que havia acontecido e o resultado foi que Alice ficou

conhecida, “todo mundo queria pegar ela” (sic). A partir daí, Sandra relata uma série de

histórias de envolvimento de Alice com alguns garotos e homens. Não fica claro se

havia consentimento da garota ou se ela era forçada. Essa situação mobilizava muito a

mãe, que era avisada por vizinhas de que a filha estava com vários homens em cima

dela. Isto se tornou um problema dentro de casa.

Sandra fala que o pai de Alice era muito agressivo, “não sabia bater, dava

murro” (sic). Diz que ela e o marido já não estavam bem. O fato de Sandra ter realizado

o boletim de ocorrência foi utilizado pelo pai de Alice para responsabilizar a mãe pelo

que estava ocorrendo pois, segundo Sandra, o pai resolveria do jeito dele, mas como ela

decidiu por a polícia no meio, então ela que cuidasse do caso. Paralelamente a isto,

Alice faltava às aulas e mentia para os pais; às vezes eles descobriam e batiam nela.

Mas isso não a fez parar de cabular aula e, para não apanhar, ela fugia temporariamente.

A mãe relatou que com doze anos Alice passou pelo Conselho Tutelar porque

“pegava”, roubava as coisas e dinheiro; começou roubando da mãe, depois da avó e por

último foram R$ 250,00 do pai. “Quando ela furtava alguma coisa, fugia depois

voltava”.

Como Sandra e seu marido não estavam bem, decidiram se separar e segundo a

mãe “Alice tem 99% de culpa pela separação”. Alice ficou com a mãe e o pai ficou com

a irmã, a filha mais nova. O pai não auxilia em nada. Com a separação, Sandra foi

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morar na casa do padrasto e levou Alice junto. Depois de um tempo, Sandra se mudou e

Alice foi morar com o pai, com quem ficou alguns meses, até voltar dizendo que queria

morar com a mãe.

Pouco tempo depois da separação, Sandra engravidou e, segundo ela, este foi um

fator que a afastou da outra filha, que estava morando com o pai. A gravidez foi bem

complicada para Sandra que não queria ter o filho e tentou abortar do primeiro até o

sexto mês. Um primo ajudou financeiramente e como conhecia uma mulher que tinha

dinheiro e não podia ter filhos, sugeriu a Sandra vender o filho, pois não teria condições

de criá-lo. Sandra concordou. Alice achava estranho e questionava o que a mãe ia fazer.

Durante e após o parto, Sandra não queria nem ver o filho para não se apegar. Mas não

teve jeito, quando abraçou o bebê, diz ter sentido uma emoção muito forte e decidiu

então ficar com o bebê. Depois de uns dez dias do nascimento do irmão, Alice fugiu e

não deu notícias por um ano.

Durante o período em que a filha esteve desaparecida, Sandra diz ter se apegado

a Deus. Passou a freqüentar a igreja e um dia recebeu uma mensagem que deveria

procurar a filha. Foi seguindo seu coração, diz ter mentido na delegacia à procura de

notícias e disseram que Alice estava no S.O.S. Criança. Foi até lá e falaram que ela

tinha sido encaminhada. A partir daí, ela procurou em vários lugares, até dizerem que a

menina estava na Casa de Acolhida, onde a mãe finalmente a encontrou.

Após o reencontro, Alice passou a visitar a mãe, ficando com ela nos finais de

semana. Sandra diz que não pediu para Alice voltar a morar com ela, “que ela tinha que

querer” (sic). Quando perguntou se ela queria e recebeu resposta afirmativa, Sandra

disse que, então, seria do seu jeito, que não iria prendê-la, mas que haveria limites.