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· I partida e o de chegada; esse fato não ocorre alhures, como na germanística ou na eslavísrica, por exemplo. Desse modo, o campo românico se torna um laboratório em que se experimenta a eficiência de novas metodologias; essa situação privilegiada levou Leo Spitzer a considerar a rornanistica como a praeceptrix linguisticae. A farta documentação disponível dispensa o recurso a hipóteses e suposições. Dispõe-se de fatos que levam o pesquisador do concreto para o abstrato, do singular para o con- junto e para o geral, ou "do microscópio para o rnacroscópio", na expressão de Schuchardt. Enfim, a Filologia Românica se rege pelos princípios da indução, que se coaduna melhor com a natureza de seu objeto. .r ') -' LÍNGUAS ROMÂNICAS ORIGEM DAS É sabido que as línguas românicas provêm do latim; o termo "latim", porém,- não é univoco.já que existem numerosas variedades. Interessa à Filologia Românica particularmente o chamado "latim vulgar", eminentemente falado e, por isso, de reconstituição árdua, mas a verdadeira fonte das línguas românicas. É preciso tam- bém saber como essa variedade do latim foi levada a todos os recantos do Império Romano, a documentação existente, além de os fatores que propiciaram o apareci- mento de várias línguas a partir desse latim vulgar. o LATIM E SUAS VARIEDADES Originariamente, o latim era apenas o dialeto de Roma, restrito à margem do rio Tibre. Língua de camponeses e pastores, era rude, concreta e sem refinamento de qualquer espécie. Pertence à família indo-européia e, dentro dela, ao grupo Kentum. Juntamente com o osco dos samnitas, o sabélico, o volsco, o umbro e o falisco, o latim forma o grupo chamado itálico (ver mapa 2, p. 354).

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partida e o de chegada; esse fato não ocorre alhures, como na germanística ou naeslavísrica, por exemplo. Desse modo, o campo românico se torna um laboratório emque se experimenta a eficiência de novas metodologias; essa situação privilegiadalevou Leo Spitzer a considerar a rornanistica como a praeceptrix linguisticae. A fartadocumentação disponível dispensa o recurso a hipóteses e suposições. Dispõe-se defatos que levam o pesquisador do concreto para o abstrato, do singular para o con-junto e para o geral, ou "do microscópio para o rnacroscópio", na expressão deSchuchardt. Enfim, a Filologia Românica se rege pelos princípios da indução, que secoaduna melhor com a natureza de seu objeto.

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LÍNGUAS ROMÂNICAS

ORIGEM DAS

É sabido que as línguas românicas provêm do latim; o termo "latim", porém,-não é univoco.já que existem numerosas variedades. Interessa à Filologia Românicaparticularmente o chamado "latim vulgar", eminentemente falado e, por isso, dereconstituição árdua, mas a verdadeira fonte das línguas românicas. É preciso tam-bém saber como essa variedade do latim foi levada a todos os recantos do ImpérioRomano, a documentação existente, além de os fatores que propiciaram o apareci-mento de várias línguas a partir desse latim vulgar.

o LATIM E SUAS VARIEDADES

Originariamente, o latim era apenas o dialeto de Roma, restrito à margem dorio Tibre. Língua de camponeses e pastores, era rude, concreta e sem refinamento dequalquer espécie. Pertence à família indo-européia e, dentro dela, ao grupo Kentum.

Juntamente com o osco dos samnitas, o sabélico, o volsco, o umbro e o falisco, olatim forma o grupo chamado itálico (ver mapa 2, p. 354).

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Quando os romanos começaram a se projetar, a Itália era um mosaico deraças. Os pouco conhecidos etruscos, ao norte de Roma, atingiram elevado grau decivilização e no século VI a.C. dominaram Roma e estenderam seus domínios atéCápua, ao sul. Contudo, por volta do ano 500 a.C, Roma conseguiu expulsar osdominadores etruscos do rei Tarquínio, o Soberbo, e implantou a República. A estra-tégica posição da cidade, no coração do Lácio e de toda a península, facilitou a con-

solidação da cidade como potência emergente; com hábeis alianças, como o FoedusCassianum no princípio do século V, que estabeleceu uma aliança estreita entre Romae os povos itálicos, e também com várias guerras, os romanos venceram as resistên-cias de povos poderosos, como os sarnnitas ao sul e os etruscos ao norte.

Com a vitória sobre Pino, rei do antigo Epiro nos Balcãs, chamado contra aexpansão romana pelos gregos de Taranto, vitória obtida em Benevento, em 275,depois de várias derrotas perante 20.000 mercenários, 3.000 cavaleiros e 26 elefan-tes trazidos por Pirro, encerra-se a primeira fase da expansão de Roma; seu domínioabrange a Itália desde a Sicília até a planície do rio PÓ. Ao mesmo tempo, enfrenta-

va dificuldades internas com a revolta dos plebeus endividados e espoliados de seusdireitos civis contra os patrícios; uma tropa armada dos plebeus ocupou o montesagrado do Aventino, em 494, e só se retiraram depois da criação dos concilia plebistributa, isto é, assembléias do povo por tribos, fato que constitui o primeiro tipo degreve de que se tem notícia. Mas a igualdade de direitos só foi conseguida em 287a.C; com a admissão dos plebeus em todas as magistraturas.

Datam desse época também as primeiras colônias romanas nos territórios con-quistados na Itália, importante fator de latinização da própria península. Em 272, todoo território da Itália faz parte da confederação romana e praticamente todos os povosse submetem ao direito romano, pagando impostos e obrigando-se ao serviço militar.

Quando Cartago se firmou como potência naval, no século 111a.C, os roma-nos fizeram vários tratados de não agressão com os cartagineses, Subjugados ossarnnitas depois de três guerras, bem como os demais povos da Itália, lançaram-seos romanos à guerra contra Cartago. A primeira guerra púnica (269-241 a.C.) ter-minou com o estabelecimento da primeira "província", a Sicília, em 241, e logodepois as da Sardeuha e da Córsega em 238. Apesar das vitórias de Aníbal, a segun-da guerra púnica (218-201) aniquilou o poderio de Cartago depois da batalha deZama, vencida por Cipião, o Africano. Desde então os romanos passaram a chamaro Mediterrâneo de more nos/rum. Mas só depois da terceira guerra púnica (149-146), com a destruição de Cartago, o norte da África se torna província romana(146) (ver mapa I, p. 353).

Expandindo-se em várias frentes, Roma incorpora a Hispânia em 197, oIIIyricum em 167, a Grécia, denominada Achaia, em 146, a Ásia Menor em 129, aGália Narbonensis em 120. A Gália Cisalpina, conquistada em 191, tornou-se pro-

víncia em 81, bem como a região dos vênetos, submetidos em 215. A GáliaTransalpiua, denominada também Coma ta ou Melenuda, foi a grande conquista deCaio Júlio César em 51-50. O Egito tornou-se província em 30 a.C; a Récia e oNórico em 15 aC., a Panônia em 10 d.e., a Capadócia em 17 d.C; a Britânia em43e a Dácia em 107 d.C, sob o imperador Trajano (98-117), que faz as últimas conquis-tas, incorporando também a Arábin cio Norte, a Armêuia, a Assina e a Mesoporâmiaentre 114 e 117. Com isso. o Império Romano atingiu sua extensão máxima, comumtotal de 301 províncias (ver mapa I, p. 353).

Essas datas indicam gerallllente o início da larinização, que não teve, porém.a mesma profundidade em todas as províncias. No Oriente, a latinização foi bastan-te superficial; a Hispânia e a Sardenha exigiram dois séculos para uma romanizaçãoefetiva, enquanto outros territórios. COlllO os Agri Decuniates e a Britânia, nuncaforam totalmente assimilados, embora haja marcas do latim por toda parte.

Dentro desse vasto território, o latim era a língua dos dominadores. Em con-tato com tantos idiomas diversos, o latim influenciou-os e foi por eles influenciado,principalmente no léxico da variedade lingüística denominada latim vulgar, faladapelo povo, como se verá mais adiante. Além disso, o aumento da riqueza, advindo dasconquistas, o crescimento populacional de Roma e o desenvolvimento da culturarefletiram-se no latim, diversificando-o em diversas normas lingüísticas, geralmentebem documentadas.

Procedendo a um rápido retrospecto histórico do latim, enco •.i: .... - pruner-ro documento, a Fíbula de Preneste, aproximadamente do ano 600 a.C: MANIOS

MED FHEFHAKED NVMASIOI (Manius me fecir Numerio). Ainda que seja um docu-mento isolado, essa inscrição é aceita como um ponto de referência inicial para a his-tória do latim, ao lado de outros escritos epigráficos, como os epitáfios dos Cipiões.Nessa fase das origens, o latim devia ser relativamente uniforme, tendo como focoirradiador de influência o sermo urbanus de Roma.

Nas primeiras conquistas, os romanos costumavam destruir as cidades e levarseus habitantes para Roma. Depois abandonaram esse costume; assim meSIl1O,porém, a população da cidade aumentou bastante. Uma das conseqüências foi a acen-tuação das diferenças sociais entre a classe mais alta dos patrícios, oficiais militares,dirigentes etc. e a mais baixa, a plebe, fato que se refletiu na língua; essa diferençaacentua-se ainda mais por volta do século IV comum crescente refinamento culturaldas classes altas. Delineiam-se então duas normas lingüísticas: o sermo urbanus, alinguagem do estrato social mais culto, e o sermo plebeius da massa popular inculta,designação genérica, na qual se distinguem o sermo rusticus, a fala descuidada doscamponeses pastores, o sermo castrensis do importante segmento militar e o sermo

peregrinus, usado pelos estrangeiros em geral, cada vez mais numerosos, e aprendi-do de ouvido, por isso também a mais alterada.

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Aprendeste, pois, que nós não podemos ser semelhantes a Amafinio ou a Rabírio, que sem arte algu-ma discutem sobre as coisas que Ihes caem sob os olhos numa linguagem vulgar.

---> Português---> Galego---> Castelhano---> Catalão-> Provençal-> Francês---> Rético---> Sardo---> Italiano---> Oalmático---> Romeno

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Com a conquista da chamada Magna Graecia, que compreendia boa parte dosul da Itália, muitos gregos foram levados para Roma em 272 a.C; entre eles LivioAndrônico, que viria a ser o iniciador da literatura latina. Em 240, Livio apresentouem Roma sua primeira peça teatral, provavelmente uma tragédia segundo Cícero(Bruf/ls, 72) e Titus Pomponius Atticus (110-32 a.C.) em Liber Annalis; ambos sebasearam nas pesquisas de Varrão, pois a peça se perdeu. Livio fez também limaadaptação da Odisséia de Homero ao mundo romano, sob o nome de Odissia. Nasceuassim a literatura latina, que conta ainda com Névio (poesia épica e dramática), Ênio(épica, dramática e lírica com a introdução do hexâmetro dactilico), Lucílio (sátira),Marcus Publius Cato (prosa) e Plauto (comédia). Desse modo, embora com grandeinfluência grega, começou a formação de outra norma lingüística, escrita e sempremais estilizada, o sermo litterarius ou classicus. O período áureo do latim literáriovai de 81 a.C, com o primeiro discurso de Cícero que cbegou até nós, Pro Quintio,a 14 d.e., ano da morte do imperador Augusro. Essa norma conservou-se uniformepor oito séculos aproximadamente e só com dificuldade se encontram particularida-des regionais, como a patavinitas do historiador Tiro Lívio.

Essas diversas normas lingüísticas não eram desconhecidas pelos autores lati-nos. Cícero (106-43 a.C.] e Quintiliauo (30-95 d.C.) distinguem claramente a urbe-

nitas da rusticitas, respectivamente em De Ora/ore 111, 11, 42 e em Institntio

Oratoriae, XI, 3, 10. Profundo conhecedor do latim, Cícero menciona também emoutras passagens essas variedades, com em Ad Familiares, IX, 2 I:

terarius. Mas é claro que Cícero distingue bem duas modalidades lingüísticas: a usadacostumeira mente nas conversas das pessoas cultas, como o próprio Cícero e os doisautores citados por ele no texto, e a outra. na qual se deve usar arte. A língua coloquialdas classes cultas denomina-se sermo urbanus Oll nrbanitas, sertno usuolis ou IIS/lS.

sermo cotidianus ou cotidionitas, sermo consnetudinarins ou consuetudo, ou ainda,sermo vulgaris. manuda por vários romanistas como sinônimo dos anteriores, que nãodeve. porém, ser confundido com o que normalmente se entende por latim vulgar.

Os dois textos não aludem ao latim falado pela grande massa popular. aliás.ignorado por gramáticos e escritores de modo sistemático. Certamente não se encon-trarão no sermo "li/garis das cartas de Cícero ou nos escritos de Arnafinio e Rabinoas formas rejeitadas superlex (por suppel/ex), im!ifllenullIs (por e!lefninullIs), fi cela

(porfi'igida) e tantas outras documentadas pelo Appendix Probi ou conservadas nastabellae defixionum, nas inscrições tumulares etc. Essa variedade denomina-se sermoplebeius ou nisticus (rusticitosi, peregrinus (peregrinitasv e castrensis ou tnilituris.

Modernameute, a designação mais aceita é latim vulgar.O seguinte gráfico sintetiza a história e os desdobramentos dessas três varie-

dades do lati m:

Que apreço eu a ti nas cartas? N50 pareço tratar contigo na língua do povo .. Pois costumamos tecer

as cartas com as palavras do dia a d:.-;'.

Fíbula de Preneste600a.C

Quid tibi cgo in cpistulis videor? Nonne ptebeio sennone agere teeum .. Epistulas vcro cotidiauisverbis texere solcmus.

Ou ainda com mais clareza em Academica, I, 2:

5 e r m o

tJ'> séc. IV a.C.~'Qo1J1eó

eiusOidicisti enim non posse 1l0S Amafinii aut Rabirii similes esse, qui nulla arte adhibirn de rebus anteoculos positis vulgari sermone disputam [ ...]

N30 se pode supor que Cícero, no primeiro texto, afirmasse estar usando anorma gramaticalmente incorreta da massa inculta; também n30 afirma que Amafinio(filósofo estóico) e Rabino (poeta épico) do segundo texto se expressassem na normapopular: diz apenas faltar-lhes aquela forma artística esmerada, própria do sermo /il-

Resumindo, segundo esse esquema "cacto deitado", a partir de meados do

século 111 a.c., distinguem-se três normas no latim de Roma:

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a. o sermo classicus ou/iflerarius: burilado, artístico, sintético, só escrito, que atin-giu o ápice estilístico no período áureo da literatura latina entre 81 a.C. e 14 d.C..tanto na prosa com Cícero, César e Salústio, como no verso com Virgilio,Horácio, Ovidio, Lucrécio e Catulo, É uma estilização do sermo urbanus.

b. O sermo urbanus: a língua falada pelas classes cultas de Roma, certamente cor-reto do ponto de vista gramatical, mas sem os refinamentos e a estilizacão davariedade literária, denominada vulgaris por Cícero. Os falantes dessa normaeram também os principais detentores da norma literária.

c. O sermo plebeius: essencialmente falado, era a norma da grande massa popularmenos favorecida, analfabeta. Foi metodicamente ignorada pelos gramáticos eescritores romanos, mas era viva e real; apresenta variantes sobretudo no léxico,segundo o modo de vida dos falantes, distinguindo-se o sertno rusticus, o castren-

sis e o peregrinus.

Quanto aos numerais, o latim vulgar conhece apenas os cardinais, com osquais expressa todas as relações de número. Dos outros três tipos ~ ordinais iprinms,

seX/IIS. vicesimus, octingentesiniusi, elistributivos (singu/i, seni, viceni, duceni) emultiplicativos iseme}. secies, vicies. ducentiesi - encontram-se poucos vestígiosapenas das primeiras formas dos ordinais. Mesmo com os cardinais ocorre uma uni-formização pela troca da subtraçào. C0l110 em duodeviginti (18), undeviginti (19),pela adição. resultando detem (el ou (fe) octo, decein tet ou ae) novem: o mesmo pro-cesso foi depois aplicado também aos outros números, como decem (er) scx, decetn

leI) se;;/1'.1I1 ele .. simplificação atestada pelas línguas românicas.O gênero neutro, herança do indo-europeu. em uma complicação, já que

semanticamente não se distinguia do masculino e a diferenciação formal era muitopequena: assim os neutros singulares passaram para o masculino, eliminando-se umproblema antigo de palavras de gênero flutuante, como aevus e aevutn ("época"),caseus e caseuiu ("queijo"), collus e CO//1I111 ("pescoço") etc. Os plurais neutros da 2".declinação em -(/ foram considerados nominativo singular da I"., couvsiotio. ligno,

piiu etc. O gênero neutro, entre as línguas românicas, só se encontra no romeno e em

escassos vestígios em outras.Considerável simplificação deu-se nos pronomes demonstrativos e indefini-

dos principalmente. Dos seis demonstrativos (is, hic, iste, ille, ipse e idem) permane-ceram apenas três iiste, ipse e ille), que expressam de modo simples e claro as mes-mas funções das formas amigas, ainda que com o auxílio de partículas ele reforço,como ecc 'isle ou ecell 'iste, também accu'ille. inetipse ou metipsimus (> porto mesmo.cast. niistno, fr. nieme, it. medesimo ete.). Nos pronomes indefinidos, cujo conteúdo,

signi ficativo era vago por natureza, distinções tênues não podiam se manter e muitosforam eliminados; perdeu-se a distinção entre alteri e olius; uter e quis, uterque e

quisoue. entre outros.Na sintaxe, o latim vulgar não faz mais as distinções entre 11011e ne nas nega-

ções, generalizando o non; o uso da preposição de generalizou-se e substituiu ab eex, de dificil distinção sob o aspecto semântico. A maior simplicidade na sintaxe veri-fica-se também na ordem das palavras na oração e na construção do período, atécerto ponto conseqüência da perda dos casos e das declinações.

-=~:

CARACTERÍSTICAS DO LATINl VULGAR

C0l110 as línguas românicas provêm do latim vulgar, obviamente é essa normalingüística que interessa particularmente à Filologia Românica. Para caracterizar olatim vulgar é prático e concludente compará-lo com o literário, muito bem caracte-rizado pelos grarnáticos e escritores. Desse cotejo conclui-se que o latim vulgar, emrelação ao literário, é: y.e>v.. C\ ~ I.," .-,-- ,.. ,~v.

oW,.vY,. t». I", ..l/'_~\·c•..-

b. Mais ANALíTICO

De acordo com sua origem indo-européia, o latim era uma língua essencial-mente sintética, rica em recursos flexionais, com os quais expressava muitas funçõese relações entre os termos da oração. As deficiências desse sistema flexional eramsupridas por torneios analíticos. A perda sempre crescente das flexões no latim vul-gar tornou-o cada mais analítico pelo uso de preposições, advérbios, pronomes e ver-bos auxiliares para expressar funções e relações entre os termos. As preposições

a. Mais SIMPLES em todos os níveisNa fonética, a perda da quantidade vocálica e sua substituição pelo acento

intensivo, por exemplo, trouxe como conseqüência, entre outras, a redução das dezvogais (as cinco longas e as cinco breves) a sete, seis ou cinco apenas, segundo asdiversas regiões da Rornânia, com específicas evoluções posteriores.

Na morfologia, as sutis e pouco claras distinções flexionais das declinaçõesforam reduzidas; as semelhanças fizeram com que a 2".' declinação absorvesse a 4".,que acabou desaparecendo. A 5". declinação detinha um número relativamente peque-no de palavras e se confundia facilmente com a 3". ou teve a flexão -ie substituída por-ia e incorporada à I"., fato de que há muitos exemplos, como materies e materia,luxuries e luxuria.facies efacia, dies e dia, variações encontradas no uso vulgar desdeépoca antiga. Em conseqüência, uma parte das línguas românicas herdou a distribui-ção do léxico nominal em três grupos, decorrentes das três "declinações" do latim vul-gar, como o português, por exemplo, que da I'. declinação tem nomes em -a imensa

> mesa), da 2". em -o (libru > livro) e da 3'. em -e ou consoante (occiden/e > ociden-

te; imagine> imagemiferoce >/eroz;facile >/ácil).

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substituem as flexões casuais. O futuro passa a ser expresso por perífrase com ver-bos auxiliares, como cantare habeo ali cantare v%; emprega-se o indicativo onde oclássico usava o subjuntivo: Quid debeo dicere? por Quid dicam?

Muito clara é a tendência analítica do latim vulgar ao eliminar as formas sin-téticas da voz passiva dos verbos 110 infectum, através da generalização do modeloanalítico do perfectuut, amor ("sou amado"), aniabar ("era amado") e amabor ("sereiamado") foram substituídas por amatus S/l17/, amatus eram e amatus era, criando-se asformas, inexistentes na norma culta, GI1JClIusfui, amatus fueram. amatus [uero. Comisso, eliminou-se a dualidade de formas na expressão da voz passiva, prevalecendo oprocesso analítico, que foi conservado pelas línguas românicas em todas as formaspassivas, formadas pelo particípio + aux ser « esse), ressalvando-se apenas o rome-no, que emprega afi «fieri) em lugar de esse.

Um tipo particular de forma sintética observa-se nos chamados verbosdepoentes, como ulciscor ("vingar-se"), obliviscor ("esquecer-se"), patior ("sofrer"),que tinham forma passiva, mas sentido ativo. Causavam muitas confusões e por issodesapareceram bastante cedo, sendo substituídos por formas ativas, como se pode verna Carta do soldado Rustius Barbarus a seu amigo Pompeu (início do século" d.C.):

~ c. Mais CONCRETO

O caráter concreto do latim vulgar é uma decorrência cio modo de Vida ele seusfalantes e de sua mundividência, voltada sobretudo para os problemas materiais. Esseaspecto tem reflexos em todos os aspectos da lingua, sendo porém mais evidente noléxico e na sintaxe.

Assim, termos abstratos, denotativos de qualidades e de atividades intelec-tuais Oll de generalizações, que pressupõem trabalho de abstração, são praticamentedesconhecidos, ao passo que os nomes ele coisas concretas são muito numerosos . .A

busca dessa concretude se faz sentir no modo claro, analítico e objetivo de expressaros pensamentos através do uso cle artigos. pronomes pessoais, possessivos etc.

A necessidade ele lima melhor caracterização e identificação elos substantivoslevou à criação dos artigos definidos e indefinidos, inexistenres no latim literário.embora haja, desde a fase arcaica, ocorrências de ille e ipse (ou a variante ipsus) comfunção e significação de artigo definido e de 111111.1', indefinido, como o conhecido:

SiClItllJlIIS parcr familins his de rcbus loquor, (Cícero. De Onnore, I, 132)

Falo sobre essas coisas como um pai de familiu.

Si 1<111[sie] cito virdia mi 1101l mines,stati amicitiam (liam obliscere debio? Na VII/gata, os exemplos são ainda mais claros, como o encontrado em Mateus 26.29:

Acccssit ud CIII1l lI11a uncillu.Se não me envias tão logo as verduras,

devo jit esquecer tua amizade?Aproximou-se dele uma empregada.

O latim literário expressava o comparativo de superioridade e o superlativodos adjetivos por sufixos próprios em formas sintéticas: altus - a/tior ("alto" -"mais alto") e altissimus; em casos especiais, como com os adjetivos em -eus, -ius,e -U1lS (magis idoneus, magis dubius e magis arduusi ou por motivos estilísticos, olatim literário lançava mão das formas analíticas com magis ou maxime. O latimvulgar, porém, simplificou o sistema, usando sempre a forma analítica no compara-tivo de superioridade, certamente influenciado analogicamente pelo de igualdade ede inferioridade ("tamquam" e "rninus - quam"), e formando o superlativo analiti-camente C0111 advérbios de intensidade (va/de, maxime). Certo número de compara-tivos sintéticos foi conservado nas línguas românicas, provenientes de maior, minoi,melior e peior. As formas do superlativo absoluto sintético hoje encontradas nas lín-guas românicas, menos no romeno, foram reintroduzidas na época do Re-nascimento, sendo portanto eruditas. Note-se que as formas comparativas conserva-das são muitas vezes confundidas com o superlativo, já nas Glossas de Reichenau:optintos: meliores.

É certo que os artigos se firmaram como tais na fase romance. O fato, porém,de que todas as línguas românicas os têm, permite afirmar a existência deles no latimvulgar.

No léxico, o latim vulgar conservou as tendências das origens, quando asacepções abstratas tinham por base sempre um termo designativo de algo concreto:pulare significava erirnologicamente "podar" e só posteriormente "julgar" (pois para"podar" de modo correto é preciso "julgar" os ramos <1 fim de selecionar os maisviçosos); rivalis era aquele que repartia as águas do rio (rivlIs) para irrigação ou para

o gado e depois "competidor", pela insuficiência da água disponível; versus era osulco deixado pelo arado e posteriormente "linha de escrita"; altus, "alimentado"(part. pass. de afere) e depois "que cresceu pela alimentação", "alto"; sapere, "sabo-rear", "ter gosto", depois "saber", "ser entendido".

Na sintaxe, a ausência do hábito da abstração leva os falantes do latim vulgara preferir as frases não ligadas entre si, sem expressar explicitamente as relações eledependência. Predomina a justaposição, inexistindo a complicada correlação dos

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tempos. São comuns os torneios assi ndéticos do tipo Volofacias ("Quero que faças"),Cave ardas ('Tome cuidado para que não caias"). As inscrições fornecem muitos

exemplos de periodos assindéticos, como os seguintes:

Sarra, non belle facis solum me relinquis. (CIL, IV, 1951)Sarra, não ages amavelmente, tu me deixas sozinho.

I

Vineis: gaudcs, perdis: pioras. (lnscnptiones l.atinoe Selectae, 9453)

Vences: ficas contente, perdes: choras.

Bene labes oze, a (ssem) des: eras graus. (CIL, 8244)Toma um bom banho hoje, pngn um vintém; amanhã é grátis.

Do mesmo modo, poucas são as conjunções empregadas; das coordenativas,apenas o et é encontrado: das várias alternativas (an, aut, sive ou seu, vel) só aut erausada, ao passo que das adversativas, explicativas e conclusivas (sed, ar, inuno,verUIII, quin. en ini , natn, ergo, itaquei não se conservou nenhuma no romance.

Esses aspectos são suficientes para se concluir que de L1tOa língua é um refle-xo da cultura ele seus falantes, uma manifestação ele seu modo de viela regido pelas

imposições concretas das necessidades imediatas.

d. Mais EXPRESSIVO

Considerando-se o caráter eminentemente falado do latim vulgar, deve-sesupor nessa comunicação a ênfase, a espontaneidade e a afetividade, antigas tendên-cias do latim. Essa característica explica as consoantes gemi nadas em nomes bempopulares, como "ptippa ali "atta, "pai", mamma, "mãe", nassus depois l1aS1IS,

"nariz", bucca, "boca", guttur, "garganta", braccüúium Oll bracchiuni, "braço", lip-pus, "ramelento", gibbus, "corcunda",jlacc/ls, "caído", "de orelhas compridas", sic-CUJ', "seco" e outros. Em muitos desses \ ocábulos, a etimologia não explica as gemi-nadas, a não ser em razão da expressividade popular em tais termos correntes deconteúdo concreto>. O mesmo se observa nos nomes de animais domésticos, comovacca (mas sânscr. vaçã), "vaca",.gaflllll1, "galo" e caballus, "cavalo".

A reduplicação é outro recurso expressivo de origem popular: gurgulio oucurculio, "caruncho", populus, de origem itálica (cf. umbro popiuv; "povo", excep-

cional em relação ao tipo indo-europeu.Alguns sufixos verbais e nominais de origem popnlar são carregados de

expressividade; assim os verbos de sentido inicialmente freqüentativo em -tare, for-

mados à base do supino do verbo originário, como *specio - spectare; cano - can-

29. Para outros exemplos e maiores aprofundamentos, vejam-se Meillet. Esquisse dune histoíre de {a JauguC'

latine, p. 166 SS. e Maurer. O Problelllll do Lalilll VlIlgar, p. 184 SS.

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tere, e em -itare - vivo·- victitare. Produtivo foi o sufixo formador de nomes de agen-te em -a, designando pessoa de nível social inferior, como verna ("escravo nascidona casa do senhor"). vopp« ("vinho estragado", "patife"), scurra Ccivil" e "parasi-ta") e o nome próprio Agrippa. Note-se ainda a gemi nada dos três últimos e a cono-

ração pejorativa dos três primeiros.,)( A afetividade transparece de modo particular através de palavras com sufixos

diminutivos, bastante numerosas no latim vulgar, que deram origem a corresponden-tes romànicos, embora com perda do caráter~ill1inut~. Desse modo. de vetus("velho") formou-se o diminutivo afetivo vetulus, registrado no n". 5 do Appendix

Probi sob a forma popular veclus ivetnlns flori vecluss. donde port. velho. casto viejo.

cato vell, provo "iel/I, fI'. vieil, eng. I'egl, friul. viel), it. vecchio, log. vettsu. vegl. vie-

klo, rOI11. l'echil/. A expressividade está em innicuta por auris, também panrornâni-ca: port. arelha. cast. oreju, cat. orella, provo unrelha, fr, oreil!e (> ír anr. oreg!ia),

eng ural 'a, friul. OI'e/ 'e, log. oriva, it. orecchio, vegl. orakla, rem. ureche. O mesmose verifica em acus > acucutc Cagulha"), apis > opicula ("abell18"), ({gnu.\' > ognet-

11/.1' ("cordeiro"). age: > agcllns ("campo cultivado"), sigl1l/l11 > sigithnn ("sinal"),pedi.\' > pedullwfus ("piolho"). O gosto pela forma diminutiva é uma característicada linguagem familiar do povo romano, encontrando-se algumas ocorrências mesmonos escritos mais populares de Cícero e de Horácio. H{I os de caráter realmente dimi-nutivo, denotando mais a pequenez elo objeto, como acucula por acus j"'I',:!ulha"),lenticulu por lens ("lentilha"); mas é evidente a afetividade eml1epliClfí.! por neptis

Cneta" e "sobrinha"), U/I/IW/lI por anus l"velha").Também o sufixo -0/1-, uma das origens do nosso -ão, foi muito produtivo no

latim vulgar, designando geralmente qualidades pouco recomendáveis, como aleo -aleonem ("jogador") de a/ea Co dado"). Outras vezes, tem sentido aurnentativo dereforço, nas duas raizes indo-européias designativas de "homem", guerreiro e macho."ner- e "wiro-: no emprego corrente, o latim conservou só vir, que: se encontra naIbéria "virone > porto burào > varão, cast. boron; ner- ficou na forma sufixada nosobrenome Nem, Neronis. Em nomes de objetos, -0/1- tinha primitivamente sentidopejorativo ou aumentativo como em talum > taloneni ("calcanhar"), conservado noit. tallone, friul. talon, fr. talon, provoe cal. tulo, porto raleio; bostum > bastoneni (port.bastào, fr. báton, it. bastone. prov, basIOJ1,cal. e casto baston). Outros exemplos sãocap(p)ol1eJ1l por capum ("capiio"), coleonem por coleum ("testículo"), ericionem porericium ("ouriço"), corduum > cardum > cardonem ("cardo"), em que também a

supressão do hiato !-l\ll-! revela a origem vulgar do termo.A língua clássica é muito sóbria no emprego de formas expressivas e afetivas.

mantendo sempre um caráter aristocrático e solene. A língua popular, porém, mante-ve os recursos expressivos do latim arcaico, alguns dos quais foram apontados acima.Com a evolução normal da língua, muitos termos expressivos substituíram os primi-

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tivos e com isso perderam a conotação característica, como se verifica na maioria doscorrespondentes românicos.

e. Mais PERMEÁVEL A ELEMENTOS ESTRANGEIROSSão inevitáveis as influências recíprocas entre os idiomas, sobretudo os

empréstimos léxicos. A norma culta latina era refratária a empréstimos, admitindoapenas termos designativos de algo novo ou técnico. A atitude dos detentores danorma culta nos é indicada por Cícero em De Officiis, 21:

Ut enim sermone eo debemus uti qui notus est nobis ne, ut quidam, Graeca verba inculcan-

tcs, iure optimo irridenmur.

Assim, pois, devemos lisa r aquela linguagem que IlOS e conhecida, para que. como alguns

que introduzem palavras gregas, não sejamos ridicularizados com toda razão.

Cícero cita a maior fonte de empréstimos léxicos em todos os níveis, o grego,A cultura grega, mais elevada que a latina e atuante pela presença de muitos gregosem Roma, desde a conquista da Magna Grécia, em 240 a.C.. de fato forneceu o maiorcontingente de vocábulo (10 léxico latino, mesmo ao literário. Na língua popular,esses empréstimos são muito numerosos, pois não havia entre seus usuários nenhu-ma preocupação purista.

Entre os empréstimos gregos melhor representados nas línguas românicascitam-se: petra por lapis (port. pedra, cast. piedra, cal. pedra, provopeira, fr. pier-re, eng. peidra, friul. piere, log. pedra, it. pietra, vegl. pitra, rorn. piatrã ; (REW6445); chorda porfunis ("corda"), colaphus por ictus ("golpe"), spatha por giadius("espada"), culamus por harundo ("caniço"), cyma por cacumen ("pico") etc. Háainda muitos empréstimos ou decalques antigos, como [lei' ("ar"), apotheca ("des-pensa"), ba/(i)newIJ ("b(1nllO"), comera ("abóboda"), c(h)a/are (ficou em "calado"do navio - "ceder"), corona ("círculo"), ctapula ("bebedeira"), grabatus ("catre"),gubernare ("dirigir"), lampas ("lâmpada"), machina ("invenção", "instrumento"),macellum ("açougue", mercado de carnes e de peixes), oleum ("óleo"), phalanga("estaca "), poena ("castigo"), punire ("punir"), striga ("feiticeira"); outros sãomais tardios, como bursa ("bolsa"), cara ("cabeça", "rosto" - século VI, suplantan-do VU/tu5), encaustum ("tinta", usado por atramentunii, cata ("cad(1"), podium

("estrado", "balcão"), tumba ("túmulo") e outros.Muito antigos são os empréstimos itálicos, sobretudo ascos e umbros, como bos

("boi"), lupus ("lobo"), scrofa ("porca"); influências dialetais explicam formas diver-gentes como bubalus e bufalus ("búfalo", panrornânico), bubulcus e bufuicus ("vaquei-ro" - it. bifolco, "lavrador"), i/ex e elex ("azinheira"),Pllmex epotnex ("pedra pomes"),sibilare e sifitare, das quais há representantes nas línguas românicas: sibilare > rom.

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siuera, mac.vrom. siura esniru, lriul. sivil«, provosiuku: cal. siular e xiulor. cast, si/bar:de si/i/are> Ir. .vi{ller e c1ri{ller, provosi/lar e siblar, cast. chillar, cato xiltar e chiilar,

campo suloi e suilai; também tuber e tu/à ("cogumelo comestível"). Destaque-se o

caráter concreto e cotidiano do conteúdo semântico desses empréstimos.Através da Gália Cisalpina, conquistada em 81 a.C; muitos termos celtas

entraram no latim vulgar, por exemplo: carrus ("carro", panromânico), aluda (> fr.alouette, provo aiausu. cat. 0/01'0 - "cotovia"), betullo ("vidoeiro" - árvore), cervi-si« ("cerveja"), carpentiun CcruTuagem"), marg« ("calcário"), sapo ("sabào"), bec-cus ("bico" - substituiu iustrun: > porto rostov. CrlIII/lJil1l1S ("fogão"), cambiore ("tro-car"), leuca ("légua"), bracue ("calç~"), cuniisiu ("camisa", panromânico), scortun:

("como"). Esses empréstimos celtas foram incorporados pelo latim vulgar antes dagrande expansão do Império: não poucos ascenderam à norma culta, sendo encon-

trados na literatura. sobretudo em obras de caráter mais popular.Os empréstimos ibéricos são mais regiolnis e apenas alguns tiveram difusão

mais ampla, como glll'dlls ("grosseiro", "gordo"). baia (cal. badia, casr. e port. buia,

fr, baic e it. baia). Os gel'l11anismos só se encontram nas línguas românicas ocidentais,menos os que vieram atraves cio celta, como os citados sapo, bracac e camisia. Fonteslatinas documentam alguns, como (J/'jl1gllS ("arenque" - século 111),burgus ("castelo"_ século IV), brutes ("noiva") Do século 111em diante, quando os germanos se torna-ram mais numerosos nas legiões, entram outros empréstimos ou decalques referentesà atividade militar, como werra ("guerra"), he/III ("capacete"), +wamyan ("guarnir","guarnecer"), wartlttn ("guardar"), suppu ("sopa", panrornânico, menos romeno); degah/aiba (gah ["vivo", "alegre"] + laibo ["gr~nde pào"]) formou-se companio [CU/I: +,jJlIl1(is) + io] Ccompanheiro", o que come do mesmo pão).

De outros termos correntes no latim vulgar não se conhece com certeza a ori-gem, corno cattus ("gato", ibérico ou africano), caballus ("cavalo", celta, asiático ou

b(1lcânico), sappinus ("abeto"), busiuni ("beijo"), rocca ("rocha").O fato de se encontrar certo número desses empréstimos léxicos também em

outras obras literárias mostra que as rliversas normas do latim não eram estanques eque havia influências mútuas. Por outro lado, fica muito clara a permeabilidade dolatim vulgar às influências estrangeiras em toda a sua história; assinale-se ainda ocaráter concreto dessa norma: todos os empréstimos designam objetos, animais,

plantas, vestes, ações etc. ~

A LATINIZAÇÀO

A história da língua latina, particularmente do latim vulgar, está intimamenteligada à do Império Romano. À medida que se expandiam as fronteiras do Império

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i»OJo."11rOI-c(j)1)

por meio de conquistas e de hábeis alianças, alargava-se também o espaço territorialdo latim. Crescendo com o Império, decaiu com ele, mas não morreu: em situaçõesgeográficas e em condições sociais, econômicas e culturais diferentes, do latim vul-gar, falado pelas populações deixadas pelo refluxo político de Roma, nasceram aslínguas românicas, que o perpetuam.

Como já se viu, toda a Peninsula Itálica, com exceção apenas da parte ao nortedos rios Macra e Rubicão, fazia parte do Império de Roma. Etnicamente, porém, eraum conglomerado de raças, destacando-se:

a. Os etruscos, entre os rios Arno e Tibre e conhecidos por Tusci, donde o nome deToscana para o território ocupado, e também por Tyrrheni, daí Tirreno, o mar aooeste. Possuidores de elevada civilização no séculovt a.c., chegaram a dominarRoma e a ocupar a costa tirrena ao sul, até a Campanha, fixando-se em Cápua,Nola e Pompéia e, ao norte, até a Emilia e a Valpadana. Dos etruscos vêm prova-velmente os nomes da própria Roma (RlIIlla) e do rio Tibre (etr. Thepre, Iat.Tiberis); o alfabeto latino foi inspirado pelo etrusco, que se baseou, por sua vez,no alfabeto grego. Quanto li origem, discute-se se a língua etrusca era autóctoneou asiática, ligada ao indo-europeu; as muitas inscrições conhecidas, C0l110 a"telha" de Cápua, a placa de chumbo de Magliano, o cipo de Perúgia, são emgeral breves e de natureza funerária e por isso só com nomes próprios; as maislongas são poucas e de interpretação difícil. Os romanos adotaram dos etruscos ouso dos três nomes (praenomen, nomel!. cognomen), como Marcus Tullius Ciceropor exemplo, diversamente de todos os outros povos indo-europeus; tambémalguns nomes romanos correspondem exatamente a semelhantes etruscos, comoetr, Aule = lat. Aulus, etr, Fapi = lat. Fabius, etr. Petrumi = lat, Petronis e outros.Na toponímia, são de origem etrusca Chianti < etr. Clante, Modena < etr. 171 11ta-na ("túmulo"), Vai/e/Ta < etr. Velathri, Todi < etr. tular ("cipo", "coluna com ins-crições"), lat. Tuder. O sufixo -na, com as variantes -ena, -enna, -ina, identificamnomes etruscos como Ravenna, Porse(n)no, Caecina, Maecenas.

b. Os chamados povos itálicos incluíam os umbros, os oscos, os sarnnitas, os volscos,os sabinos, os auruncos e os picenos. Lingüisticamente, dividiam-se em dois gru-pos: latino-falisco, ou seja, o latim e o dialeto de Falerii, cidade situada no territó-rio etrusco, onde hoje se encontra Cività Castellana, na província de Viterbo; e oosco-umbro (ou umbro-sabélico ou itálico propriamente dito) compreendia osseguintes dialetos: I. O asco dos antigos samnitas, falada no Samniurn, Campanha,palie da Lucânia e do Abruzo e em Messina, na Sicília. É conhecido através deaproximadamente 200 inscrições, das quais as mais importantes são a TabulaBantina e o Cippus Abellanus; 2. Os dialetos sabélicos, pouco conhecidos, eramfalados no território entre o Samnium e a Úrnbria; o pelinho, o matrucino, o vesti-

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110, o mársic» e o sabino são variedades dialetais sabélicos. O volsco, falado ao sulda Úmbria na I·egiào costeira. aproxima-se mais do umbro, e é conhecido especial-mente pela inscrição da faliu/a Vellilema: e 3. O umbro era falado na Úrnbria anti-

ga, menor que a atual, situada entre os rios Tibre e Nem, sendo o dialeto mais aonorte dos dialetos itálicos. É bem conhecido graças às famosas "Tábuas lguvinas".

c . Japigios e messápios habitavam nas regiões elo Abruzo e da Apúlia, até 8

Península Salentina. Sua língua, o niessúpico. é indo-européia. próxima do iliri-co: foi implantada nas regiões citadas, ao que tuelo indica, por volta do início doprimeiro milênio a.c.: um número considerável de inscrições elo messápico foirecolhido e publicado por F Ribezzo (1875-1925) em Corpus InscriptionwnMessapiconnn. Encontram-se traços na roponimia (ver mapa 2, p. 354).

d. Os gregos fundaram muitas colônias nas regiões do sul da Itália: segundo Eusébiode Cesaréia. a fundação de Cuma data de 1050 a.C. A colonização mais intensaé elo século VIII a.C. atingindo maior extensão nos dois séculos seguintes. abran-uendo também a Sicilia segundo Tiro LíVIO e Esrrabâo. O conjunto das cidades~regas é conhecido por Graccia Mllgl/o ou Graecia Motor. em grego MEYcX"-11'EÀ,,-éu;, nome mencionado pela primeira vez por Políbio (11,39, I). OS dialetosfalados na tvlagna Grécia eram dóricos: ainda que sejam encontrn.k. "lllprésti-mos antigos ao latim, a latinização do território foi mais lenta e difn:d por causada superioridade da cultura grega; o grego persistiu ali até época tardia. Ainda nostempos de Tácito (55-120 d.C}, Nápolis era considerada urbs quosi Graeca.Ainda hoje se fala grego na região de Bova, ao sul da Calábria, e na "Terrad'Otrauto" ao sul da cidade de Lecce. Discutem os pesquisadores se essas duas'

ilhas do grego são continuaçào da antiga língua da Magna Grécia ou conseqüên-cia da dominação bizantina de 535 a t071. Muitos dos já mencionados emprésti-

mos gregos mais antigos vieram da Magna Grécia.e. Na Sicilia, habitavam dois povos, os sicanos na parte ocidental e os síCII/OS na

oriental, dos quais se encontram vestígios na topouimia. Sobre a língua dos sica-nos há divergências quanto à origem: poderia ter vindo da lbéria e não ser indo-européia, ou pertencer ao grupo itálico. A dos siculos, na qual existem algumasinscrições, glossas e nomes próprios, tem características indo-européiasTambém um povo lígure teria ocupado parte da Sicilia em época muito antiga.Entretanto, as pesquisas elo substrato levaram a supor uma língua ainda mais anti-ga, chamada J/ledilerrâ/lea, comum à Sicilia, à Sardenha, e á Córsega, como tam-bém ao sul da Itália, territórios em que se encontram os íonemas cacuminais e atendência a passar -11-> - dd- (por exemplo: lat, cabal/li> log . kaddu "cavalo")

(ver mapa 2, p. 354).A latinização desses povos, localizados aproximadamente ao sul da linha LaSpezia-Rimini, iniciou-se assim no século III a.C. A posição estratégica de Roma,

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no coração do Lácio.junto à foz do rio Tibre, transformou-a no centro de irradia-ção da Península, facilitando a consolidação das conquistas. Internamente, em509 a.C, foi expulso Tarquinio, o Soberbo, o último rei etrusco, e estabelecida aRepública. Em 390 a.C; Roma foi saqueada pelos gauleses, mas a cidade se refezcom bastante rapidez. Enfrentou depois as lutas internas entre patrícios e plebeus,que só terminaram com a admissão dos plebeus em todos os cargos em 287 a.C ..Para consolidar seu domínio sobre os povos da Itál ia conquistada, os romanosconcederam-lhes a cidadania, ficando assim submetidos ao direito romano e à

obrigação do serviço militar.Com o surgimento de Cartago como potência econômica e militar, empenharam-se os romanos nas chamadas guerras púnicas; a primeira (269-241) terminou coma criação da primeira província romana, a Sicília, em 241, seguidas pela daSardenha e pela da Córsega, em 238. Com a vitória de Cipião, o Africano, emZana (202), termina a segunda guerra púnica (218-20 I) C0111 a capitulação deCartago e <1 cessão elo território ele Siracusa a Roma. Mas só depois da terceiraguerra púnica (149-146), Cartago é destruida por Cipião Emiliano, cognominadopor isso Africanus Minor; o norte da África torna-se província romana e o

Mediterrâneo é chamado niare nostrum pelos romanos.Bem organizada internamente e dominando o Mediterrâneo, depois das guerraspúnicas, Roma expandiu rapidamente seus domínios. Desse modo, quando damorte de Trajano em 117, o Império Romano havia atingido sua extensão máxi-ma com 301 províncias e estados confederados, abrangendo praticamente omundo então conhecido, com exceção do extremo Oriente e dos povos gerrnâni-

cos de alem do Reno (ver mapa I, p. 353).Neste vasto território, foi implantado o latim. Algumas regiões, porém, não che-garam a ser latinizadas, CO:,10 a Grécia, o Egito, a Ásia Menor e os territóriosmais orientais do Império; outras só foram superficialmente, como a Britânia e osAgri Decuntates. Em geral, o processo de latinização foi lento, como a Hispânia,por exemplo, cuja conquista teve início em 218, durante a segunda guerra púni-ca, com desembarque em Ampurias e a posterior ocupação de Sagunto (215),Cartagena (208) e a região da atual Andaluzia; a tomada de Jaca (197) consoli-dou a conquista. Contudo, apenas em 19 d.C. a região dos Montes Cantábricos,ao norte, foi efetivamente romanizada. Outro exemplo é a Sardenha que, emboraincorporada em 238 a.e., somente em meados do século I d.e. estava de fato

romanizada. Sobre as características dos idiomas dos povos incorporados aoImpério Romano, será dito o necessário em tópicos específicos, já que o grau deimportância entre eles, como substrato de uma língua ou de um dialeto români-

cos, varia consideravelmente.

FATORES DA LATlNrZAÇAO

Lntinizaçâo ou rornanizaçáo é a assimilação cultural e lingüística dos povos

incorporados ao universo da civilização latina. O fato de tantos povos de língua, raça ecultura diferentes terem adotado a língua e, pelo menos em parte, a civilização dos ven-cedores é um fenômeno único na história da humanidade. Essa aceitação. porém, nãose deveu a imposições diretas. As conquistas romanas tinham caráter político e econô-mico: não houve por parte de Roma pretensão de impor aos conquistados sua língua ousua religião: ao contrário, considerava o uso da língua latina como uma honra. Se osdruidas foram perseguidos na G~lia. isso aconteceu porque o uso de vítimas humanasnos sacrifícios feria o direito romano, ao qual se dava grande valor e importância. ONovo Testamento mostra que os romanos não eliminavam instituições políticas, religio-sas ou juridicas, obviamente desde que não conilitantes, dos povos incorporados: opovo judeu manteve a religiào, o sinéclrio, o sumo sacerdote, os levitas e os saduceus:ate a casa real de I-1erodes continuou a existir. Deviam pagar os impostos, enquanto aslegiões cuidavam da segurança e ,10 governador romano era reservada a palavra final

em questões Jurídicas específicas, como no caso da condenação <i morte.De modo geral, a política foi de aproximação a Roma dos povos conquista-

dos. Depois da destruição de Alba Longa, os romanos compreenderam que o sistemade arrasar as cidades e levar seus habitantes para Roma não podia continuar; passa-ram então a deixar que as comunidades subjugadas continuassem a existir. Habil-mente procuraram fórmulas jurídicas que lisonjeavam o amor próprio e patriótico dosvencidos, embora tais fórmulas sempre fossem mais favoráveis a Roma, quer pro-;pondo-Ihes alianças de diversos tipos, como o Foedus Cassianum (século V a.C.),que uniu estreitamente a Roma os povos itálicos, quer pela concessão da tão cobiça-da cidadania romana, mas raramente a "plena" (com iura. honores e 1II//lIem) e, comcerta facilidade, a "menor", ciuitas sine .\·/tffi-agio, a cidadania sem direito a voto.

Se Roma não impunha sua língua nem cerceava o livre uso dos idiomas nati-

vos, a latinização só poderia concretizar-se indiretamente. Os principais fatores desse

processo são descritos a seguir.

EXÉRCITO ROMANO

As legiões foram, sem dúvida, a base do Império e de sua expansão. Comoponta de lança, o exercito era o primeiro a entrar em contato com os outros povos, tantona conquista como na subseqüente ocupação. O exército era composto por legiões de6.000 homens, com várias subdivisões, C0l110 os II/Wlipllli (Césnr, De Betlo Gallico,

2,25,2), a trigésima parte de uma legião ou cerca de 200 homens, e as cenruriae (Livio,

1,13,8),60 por legião com 100 soldados cada, sob o comando de um centurião.

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Com isso, a latinização da Dácia foi tão rápida e profunda que em aproximadamen-te cinqüenta anos estava definitivamente integrada ao Império, conservando a latini-

dade mesmo quando abandonada por Roma e invadida pelos bárbaros.O peso e a importância das colônias civis no processo de latinizaçâo é eviden-

te; eram milhares e milhares de pessoas falando o latim em contato direto e constau-

O soldado era inicialmente recrutado na Itália, dentre a plebe; com a expansão,porém, a Península não dispunha de contingentes suficientes para suprir todas asnecessidades do serviço militar. Por isso passou a ser recrutado nas províncias járornanizadas, cuja língua usual era obviamente o latim vulgar. Políbio nos dó umaidéia da movimentação de soldados ao citar um documento de 22S aC.. que conta paraaquela época, antes da segunda guerra púuica, 423.000 soldados aliados para 325.000de cidadãos romanos. Dadas as crescentes necessidades, o serviço militar passou a serobrigatório para todos os itálicos em 89 a.e.. Antes da guerra civil, César e Pornpeupassaram a recrutar provincianos não cidadãos; César recrutou sobretudo nas GáliasCisalpiua e Transalpina. O imperador Augusto (63 a.C-14 d.C.) dava preferência aosoldado da Itália, mas permitia o recrutamento nas províncias mais romanizadas, prin-cipalmente nas cidades. As tropas ditas "auxiliares" (auxilia) eram constituídas só deestrangeiros, muitas vezes homens incultos do campo; constituíam metade de umexército de aproximadamente 300.000 homens no inicio do século 1 d.e.. No fimdesse século, a Itália não fornece mais legionários, como se deduz da ausência denomes itálicos no cemitério de Carnuntuiu, na Panônia; eles provêm de fato das pro-víncias mais romanizadas e as tropas auxiliares, das menos integradas.

Esses dados mostram a importância do exército como fator de difusão dolatim vulgar sob a forma usada nas províncias de origem ou aprendida no exército, osermo militaris ou castrensis, variante do latim vulgar. Em contato permanente coma população subjuga da, eram milhares de indivíduos latinizando, difundindo a cultu-ra e a língua latinas, sem que o percebessem.

zavam profundamente, sob o comando de oficiais que certamente usavam o sermo

urbanus, Quanto ao número desses veteranos. qualquer estimativa é difícil, mas sabe-se que, apenas durante os anos da guerra civil. receberam terra nesse tipo de colônia

cerca de 500.000. ESShS considerações mostram bem a importância das colônias deveteranos como um ponderável fator de latinização (ver mapa 3, p 355).

COLÔNIAS CIVIS

COLÔNIAS lUTARES

Desde as primeiras conquistas. quando os romanos removiam a populaçãovenci da, eram instaladas colônias civis para atender às demandas de terras por partedos plebeus. Com a expansão do Império, essas colônias se multiplicaram em todasas províncias. Podiam ser "romanas", constituídas por cidadãos com todos os direi-tos (ius sl/{fj-agii e ius /1O/10rl1ll1) ou "latinas", daqueles que só tinham o ius latinuni.

As colônias romanas eram menores, constituídas por cerca de 300 pessoas, isentasdos tributos pelo ius itulicum, enquanto as latinas chegavam a vários milhares. Eramestabelecidas em territórios subjugados paru garantir a ordem, !mp? f:liões e,obviamente, produzir alimentos e outros bens: quando sua finalidade 1,1·~upua era aprodução de bens de consumo, denominavam-se "colônias agrárias" e foram instituí-

das pelos Gracos (séculos 111-11 a.C.).Como recurso pam manter a paz e a coesão do Império, as colônias civis esta-

vam espalhadas por todas as províncias, sobretudo na África, Península Ibérica, Gáli~l,Panônia, Nórico e Dácia. Suetônio, em De Vira Caesarutn (flllills Caesur. 42), relataque César assentou 80.000 cidadãos em colônias transmariuns, ao mesmo tempo emque proibia a saída da Itália de qualquer cidadão entre vinte e sessenta anos, a não serem casos especificos, revelando que todo o processo era bem controlado. Conhecidoé o caso da Dácia conquistada, segundo relata o historiador Eutrópio (século IV de.):O imperador Augusto, no ano 16 a.e., fixou o tempo de serviço militar em 16

campanhas; no ano 5 d.C; elevou esse tempo para 20; cumprido esse regulamento,os soldados eram aposentados. Augusto regulamentou esse costume já antigo; naépoca de Mário (157-86 a.C.) e Silas (138-78 a.e.) foram estabeleci das as colôniasmilitares. Generais e magistrados recompensavam seus soldados, após a aposentado-ria, com terras produtivas, confiscadas a seus proprietários. Formavam-se, assim,colônias de militares veteranos, localizadas em todo o Império à escolha dos interes-sados; freqüentemente situavam-se as colônias militares nas proximidades das fron-teiras, buscando reforçar a defesa com a presença desses ex-ccmbatentes.

Recrutados muito cedo, ao término do serviço militar eram adultos; caso aindanão a tivessem, recebiam a cidadania romana. Nas colônias, contraíam matrimôniocom mulheres autóctones e a família falava latim. Mesmo os que tivessem vindo dasprovíncias, permaneciam tantos anos no ambiente romano do exército que se rornani-

Traianus, vicia Dacia, cx toto orbe Romano infinitas co copias hominum transtulcrut ad agros ct

urbes colcndas. (Breviarium ub urhe COlidi/li, Vtll, 6)

vcncidaa Dúci •.,. Trajuno havia transferido para lú imensas quanridadcs de homens de todo o mundo

romano, paru que habitassem os campos c as cidades.

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te com a população autóctone. A rede de relações, que inevitavelmente se estabele-ciam, levava a uma uniformização lingüística e cultural (ver mapa 3, p. 355).

ADMINISTRAÇÃO ROMA A

Concluída a conquista, distribuíam-se adequada e estrategicamente as legiõese instalava-se a administração romana. Foi nesse contexto que surgiu a "província",de início o território que um magistrado com imperium administrava; impenum erao supremo poder administrativo, com o comando na guerra, a interpretação e a apli-cação das leis, até a pena de morte. No início de cada ano, normalmente as provín-cias eram atribuídas aos cônsules pelo senado. Até a primeira guerra púnica, todas asprovíncias estavam na Itália; fora da Península, as primeiras foram, como já se notouacima, a Sicília (24J a.c.) e a Sardenha (238 a.c.); em 197 a.C., criou-se a daHispânia, logo dividida em duas, a Hispânia Citerior e a Hispânia Ulterior, governa-das por dois pretores adrede criados, com imperium especial: essas duas serviriam demodelo para as subseqüentes.

A administração das províncias evoluiu bastante com o tempo. Incumbia-lhemantê-Ias fiéis a Roma, promover sua defesa interna e externa, coletar os impostos(como o tributum soli, espécie de imposto territorial, o tributum capitis, soma fixa,denominado também stipendium, ou um dizimo em espécie, as decumae, muitas vezescoletado pelo publicani por delegação dos censores), e ministrar os serviços de aten-dimento jurídico, encargo geralmente exercido pelo praetor. Com algumas alterações,esse sistema foi aplicado a todas as províncias. Pelo ano 14 d.C., entretanto, as provín-cias foram classificadas em dois tipos: as senatoriais e as imperiais. As senatoriais(Narbonensis, Baetica, Numídia, África Proconsularis, Cyrene, Macedônia, Epirus,Achaia, Bithinia, Pontus) eram mais antigas e mais romanizadas, nas quais o exércitose fazia menos necessário; as imperiais (Aquitânia, Gália Lugdunensis, Lusitânia,Tarraconensis, Dácia, Illyricurn) foram instituídas por Augusto. O Egito foi a primei-ra província a ser declarada "sujeita ao Povo Romano", com exclusão da ingerênciados senadores e governada por um prefeito eqüesrre, comandante também do exérci-to. Províncias menores, como a Judéia e o Nórico, eram entregues a prefeitos e, pos-teriormente, a procuradores, apenas com um destacamento, mas sem exército.

Por essas resumidas informações sobre a organização da administração dasprovíncias, percebe-se que os responsáveis pela gerência dos territórios pertenciam àaristocracia romana; conseqüentemente, falavam o sermo urbanus, como também osfuncionários mais graduados. Os contatos permanentes com Roma e a duração rela-tivamente curta das gestões da alta burocracia favoreciam a unidade lingüística dosermo urbanus por toda parte. Por outro lado, com o relacionamento constante com

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I

a comunidade da região, pode-se supor uma influência considerável da norma faladaculta, ele maior prestígio. dos administradores sobre o latim vulgar. Esse contato per-manente era um obstáculo a que a norma vulgar se modificasse de maneira mais rápi-da regionalmente, mantendo-se mais ou menos uniforme nas diversas províncias.Algo semelhante devia acontecer também com o sermo castrensis, pelo relaciona-mento dos oficiais com os legionários.

Contudo. ~ certo que o latim usado pela administraçâo das províncias foi umponderável fator ele lnrinização, já que era veículo de comunicação nos contatos coma população. latina e nâo-larina, e a língua de todos os documentos. Acentue-se que oprestígio do idioma dos vencedores se impunha e atraia sobretudo as elites conquista-das, os que buscavam títulos e cargos e todos quantos quisessem prestar serviço dequalquer espécie à administração, como os publicani por exemplo. Começavam apren-dendo latim, tendo como primeiro pon to de referência o idioma da administração.

OBRAS PÚBLlC;.\S

Com o exercito, com as colônias civis e militares e a administração, os roma-nos espalhavam pelas províncias sua cultura, sua língua e seu estilo de vida.Buscando integração e coesão entre as panes do Império, construíam obras' públicasque serviam a seus intentos, mas beneficiavam a toda a população. Dentre essasobras, destacam-se:

J. EstradasComo instrumento de acesso rápido entre as regiões pelo exército, pelos men-

sageiros, comerciantes e pela população em geral, as estradas tiveram grande impor-tância na consolidação do Império e no processo de larinização. Conhece-se bem ahistória de dezenove viae. algo realmente excepcional para a época, como a famosaVia Appia, que data de 312 a.C. principal ligação pavimentada com o sul da Itália atéBrundisium, com 234 milhas (337 km): a Aemiliu. construida em 187 a.c. e fatorfundamental da rápida romnnização da Gália Cisalpina; a Aemilia Scauri (107 a.C}:a Annia (153 a.c.), no norte da Itália; a Aurélin, na Etrúria, rumo ao norte; a Cássio

e a Clodio, ambas na Etrúria: a Domitia, do Ródano na Gália até a Hispânia; a

Egnatia (130 a.C), da costa do Adriático até Bizâucio; a Flaminia (220 a.C.), deRoma ao mar Adriático com várias ramificações; ,I Latina, antiga via irradiadora emdireção ao sul da Itália; a Popilia, norte e sul até Rhegiurn; a Postumia (148 a.c.),direção norte da Iralia ,1Ié Gênova e Provença atual e para o leste até Aquilea eBálcãs: a Clodia Augustu , na Raetia e na Germânia, e outras.

As estradas sempre merecem muita atenção de imperadores, cônsules, censo-res e questores, que as pavimentavam com pedras e mantinham um serviço constan-te de manutenção tanto que trechos delas ainda hoje existem.

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b. Abastecimento de águaOs aquedutos são com justiça considerados a principal contribuição de Roma

para a arquitetura e a higiene. Os primeiros serviços de água foram os de Aquae Appiade 312 a.C. e de Anio Véflls de 272 a.c.. Os romanos acumularam considerável acervotécnico, desde a captação até a distribuição da água através de canais, túneis, pontes,sifões invertidos etc. Gastavam somas enormes nesse serviço. como no de Aqua Marcia,em Roma, em que foram aplicados 180 milhões de sestércios e no de Nicomedia, naBitínia, 3 229 000. A distribuição era feita através de reservatórios tcastella) para fontespúblicas, termas, banhos, saunas e consumidores particulares. Não se cobravam taxas ea manutenção era da responsabilidade da comunidade. Na República, esses serviçoseram encargo dos censores ou edis, que tinham a "cura urbis"; Augusto instituiu os car-

gos de "curatores aquarum" sob o comando geral de um cônsul (ver mapa 3, p. 355).Os principais centros urbanos de todo o Império dispunham desse serviço,

encontrado até em regiões onde a latinização não chegou a ser profunda, como naBritânia (Aquae Sulis, Londinium e Ci/UrI7l1171bem ao norte) e na Síria (Dora-Europus,na fronteira com a Mesopotâmia). Obviamente, esse benefício público captava a simpa-tia da população, dispondo-a a assimilar a cultura romana e com ela a língua latina.

c. TeatrosO conhecido interesse dos romanos pelo teatro e representações levou-os a

construir prédios para esse fim em todo o império. Embora baseados em modelosgregos, os teatros romanos evoluíram e, na época imperial, os arquitetos chegaram amodificar detalhes importantes dos protótipos gregos, com a columnatio. Desde oprimeiro construído em Roma por Pornpeu, em 55 a.c., muitos teatros foram ergui-dos em cidades de alguma importância em todas as províncias, como por exemploTermesso na Pisídia, Nicópolis no Epiro, Bostra, Es-Suhba e Gérasa na África, Arles,Orange e Lion na Gália, Mérida e Sagunto na Ibéria. Representavam-se comédias,

patominas, exibições de mimos, de saltimbancos e espetáculos circenses.Não há informações precisas sobre o idioma usado nesses espetáculos; supõe-

se que as línguas locais fossem ocasionalmente empregadas, mas o latim, em normasvariáveis segundo o tipo de espetáculo, teve papel preponderante. Desse modo é pos-sível avaliar o peso dos teatros no processo de latinização.

d. Outros edifíciosA presença romana se fazia sentir ainda através de outros edifícios públicos, como

o fórum, templos, basílicas, monumentos (arcos, colunas) e bibliotecas, sobretudo nascidades maiores. Marcavam o grau de cultura e civilização de Roma e difundiam o latim.Quanto a escolas públicas, o Império não teve uma organização especial, embora o impe-rador ordinariamente pudesse conferir títulos e imunidade a professores; as escolas eram

particulares e o poder público agia como benfeitor. César atraiu professores gregos aRoma, ofertando-Ihes a cidadania romana e Augusto os excluiu do decreto de expulsão(Suetôuio. Caesar. 42,2; Divus AlIgllstllS, 42, 3); Vespasiano criou a primeira cadeira deretórica latina e grega em Roma, cujo último indicado foi Quintiliano. Trajano deu oIlIl/IlUS educationis a 5.000 crianças pobres; as intervenções do Estado nas escolas torna-ram-se mais comuns na época tardia do Império, em pontos como escolha dos professo-res e fixação de escalas salariais. Em todo caso, um sistema educacional próprio nuncafoi desenvolvido e o número de escolas era reduzido, atendendo sobretudo às classesmais altas. Centros ele cultura importantes eram raros, citando-se, lias séculos 11 e I a.c.,Massilia (Marseille) na Gália, Alexandria no Egito. Antioquia na Siria, Tarso na Cilícia,Éfeso e Pérgamo na Ásia Menor, nos quais a influência grega sempre lei preponder<1nle.

A primeira biblioteca pública foi fundada em 39 a.C. por Gaius Asinius Pollio(76 a.C.-4.cl.C.), com o espólio da guerra contra os partinos ela lIíria. No século 11

d.C; hav.a bibliotecas públicas em Thamugadi e Cartugo na África, em Nemausus naGália, Dyrrhachium lia lliria, Phillipi na Macedónia e outras mais numerosas naGrécia e Ásia Menor. Obviamente, eram freqüentadas pelas classes mais altas erepresentnvam centros de irradiação da cultura latina, ainda que mesclada com mui-tos elementos assimilados dos gregos. Assim, latiuizando a elite d' .,,' +e. esco-las e bibliotecas muito contribuíram para a consolidaçào do Império. lU i-ifluên-

cia das elites sobre a massa popular (ver mapa 3, p. 355).

COMÉRCIO

A localização geográfica de Roma transformou a cidade também em grandecentro comercial. desde o início de sua história, primeiramente de toda a Itália edepois de todo o Império. De início, o comércio era livre, movimentado por váriascategorias de profissionais: os lIIercafores ("negociantes"), os caupones ("tabernei-ros"), os naviculurii ("armadores") e os negotiatores ("negociadores"): esses últimoseram a um só tempo comerciantes, banqueiros, industriais e donos dos entrepostos.Até a época de César, eles tomaram conta do comércio com todas as províncias,incluindo depois a Britânia e a Dácia, movimentando um volume de cargas realmen-te grande. Comerciantes elo Mediterrâneo visitavam a Germâuia, o sul da Rússia atual,a Sibéria ocidental e chegaram à China, mantendo um contato com os chineses atra-

vés das províncias orientais e do 11'5, pelo oceano ou pelas rotas das caravanas.A difusão do latim por meio dessas atividades comerciais foi bastante apre-

ciável, tanto que se encontram palavras latinas e gregas desse campo semântico noirlandês, no germ8nico, no pálavi (língua persa do período dos Sassânidas - 224-652

d.C.), no semita e iraniano e algumas até nas línguas indianas e mongólicas.

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o comércio externo das províncias era controlado por co/legia de negocian-tes, organizações particulares só oficializadas pelo imperador Adriano, cujos emissá-rios percorriam o Império em todas as direções. Tornaram-se importante fator de lati-nização, difundindo o latim até em regiões não pertencentes ao Império. Emborautilizassem uma terminologia própria e técnica, os comerciantes usavam normalmen-te o latim vulgar.

FONTES DO LATIM VULGAR

Os fatores indicados da latinização do Império Romano deixam claro que anorma vulgar foi preponderante no processo de difusão e fixação do latim nas pro-víncias, uma vez que era falada pelo exército, pelos colonos civis e militares e peloscomerciantes - que mautiuham contato direto e permanente com as populaçõesautóctones; os outros fatores sem dúvida foram importantes indiretamente.

Contudo, o latim vulgar era uma língua falada, não havendo nenhum docu-mento escrito só nessa variedade lingüística. Os grarnáticos latinos o ignoram, a nãoser em rápidas alusões, pouco esclarecedoras. Por isso, a documentação de que dis-pomos é indireta, além de incoerente e incompleta, estando aí a maior dificuldadeencontrada na recoustiruição do latim vulgar. Só escreve quem aprendeu a fazê-lo eesse aprendizado, naturalmente, é calcado na norma culta. Assim, quem escreve, cor-rige, reduzindo ainda mais a possibilidade de serem documentadas as formas de fatousados na fala corrente, mas muito importantes para a Filologia Românica.já que sãoa raiz das correspondentes nas línguas românicas. Mesmo assim, a reduzida culturaortográfica, a distração, a negligência e até a busca de possíveis efeitos estilísticos doescrevente, nos legaram uma considerável quantidade de informações que permitemuma reconstituição razoável do latim vulgar falado.

Essa documentação, portanto, é incidental e por isso incoerente, pois, em geral,o escrevente não se dá conta de que está misturando níveis lingüísticos diferentes; amesma expressão pode ocorrer em um só documento grafada de duas ou mais manei-ras diversas. Assim, por exemplo, a carta de um recruta, escrita em papiro tiO início doséculo Ii d.e. e encontrada em Karauis, no Egito, escreve COl1 matreni tneam ("comminha mãe") e con tirones ("com recrutas"), indicando a tendência de ~

~bstitllir o ablativo com as Q.reposições todas. ao lado do correto cal! rebus meis

("com minhas coisas"), expressão certamente aprendida na escola. Escreve também,lado a lado, nihit e nil, nuhi e 11Ii, respectivamente a forma literária, escolar e a vulgar,falada, que vai explicar as românicas correspondentes como o port. mim, por exem-plo. Seria fácil multiplicar os exemplos em todos os níveis. Essas incoerências, porém,são providenciais, pois permitem perceber as tendências próprias do latim vulgar,encontradas também em suas continuadoras, as línguas românicas.

Além de incoerentes, essas fontes de documentação são incompletas. Muitosvocábulos e fatos lingüisticos não foram documentados ainda, outros certamentenunca o serão, precisamente pela natureza incidental dessas formas, apesar de suaquantidade e variedade. -luitas dessas lacunas podem ser eliminadas fazendo-se ocaminho inverso. ou seja, partindo das línguas românicas é possível postular, comsegurança, a existência de Ulll vocábulo no latim vulgar, ainda que não documenta-do. Desse modo. as línguas românicas são realmente fontes de valor extraordináriona reconstituição do latim vulgar. principalmente se houver a concordância do rome-no, isolado das demais desde o século III d.C..

O trabalho filológico de reccnstituicão do latim vulgar utiliza-se de fontes dediversos tipos, inscritas e escritas. além da criteriosn comparação dos dados forneci-dos pelas línguas e dialetos românicos. Como fontes cio latim vulgar, destacam-se as

descritas a seguir.

INSCRiÇÕES POPULARES

Volume considerável, ainda que muitas vezes fragmentário, de informaçõeslingüísticas é dado pela epigraí'ia, isto é, a ciência que se ocupa da leitura e interpre-tação das inscrições antigas em "monumentos", ou seja, em material durável, comometal, pedras e madeira. Para a Romanistica são importantes:

a. Inscrições purietuis

Essas inscrições foram gravadas com estilere, menos comurnente a carvão, emmuros, paredes, monumentos, banheiros etc.; são conhecidas como "graffiti". Existeum tipo considerado oficial, formas mais ou menos fixas e estereotipadas, contendolouvores aos deuses, elogios fúnebres, ioas a figuras nobres ou proeminentes. ataspúblicas ou particulares e outros assuntos semelhantes; essas são de pouco interessepara a Filologia Românica, a não ser as da época final do lmpério. As que interessamsão populares, por seu caráter alirerário e de expressão clara da linguagem correntedas classes incultas. Todas essas inscrições foram reunidas por Th. Mornmsen, sobauspicios da Academia de Berlirn, no Corpus lnscriptionuni Latinanun e conhecidopela sigla CII., a partir de 1862, em 16 volumes, subdivididos em várias partes; cadavolume contém as Inscrições duma cidade ou região. Coletâneas posteriores foramcompletando, por regiões correspondentes às antigas províncias romanas, as inscri-ções recolhidas pelo C/L; estão disponíveis as da Algéria, Tunisia, antiga ÁfricaProconsular, Marrocos, Gália Narbonense, Espanha (latina e visigoda), Itália, Síria,Panônia, Dácia, Astúrias, Galícia e outras. Paralelamente, foram publicadas outrascoletâneas mais específicas, como a lnscriptioncs Latinae Christianae Vetares, de E.Diehl (1924-1930) e a Inscriptiones l.atinae Selectae, de H. Dessau (1892- I9 I6).

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o material epigráfico disponível é, portanto, muito abundante. De particularinteresse filológico são as inscrições de Pompéia e de Herculano, cidades soterradaspela erupção violenta do Vesúvio em 79 d.C; as escavações encontraram inscrições

muito bem conservadas pelas cinzas, que nos permitem uma visão do modo de vida deuma cidade da província. Relatam a ração alimentar dos escravos, os resultados dosjogos de dados, a data de nascimento de um burrinho, declarações de amor ou de ódio,de inveja, de alegria, erotismo etc. Só as recolhidas em Pompéia são cerca de 15.000:os próprios pornpeanos julgavam exagerada tanta pichação, segundo se vê na inscrição:

Admirar, paries, te non cecidisse ruinis, qui tot scriprorum taedia sustineas. (c/L, IV, 19041

Admiro-me, parede, não leres caído em rui nas, tu que agüentas o tédio de tantos escritores.

'Em geral, esses escritos denotam a precária escolaridade dos escreventes pela abun-dância de vulgarismos, ausentes na epigrafia oficial. Um exemplo:

Quisquis I ama, valia, Iperia qu i n I osci amare !

Bis [IJ auti pe I ria quisqu I isamare vala. (CIL, IV, 1173)

Viva todo aquele que ama, morra aquele que não sabe amar! Morra duas vezes lodo aquele que proí-

be ':1Il1Clf.

São bem perceptíveis algumas tendências do latim vulgar: a apócope de certas con-soantes finais, como o I-ti nas formas verbais (ama[tj, valia]t], peria]t], vOla[I)); em

valia há a fuga do hiato, transformado em ditongo (valia por valea), preparando afutura paiatalização (cf. porto valha); a força da analogia na linguagem corrente em

nOI! scit pelo tradicional e clássico nescit; o hiperurbanismo no uso do genitivo depreço bis tanti pelo usual bis tanto; e o arcaísmo vota por veta.

Ontro exemplo (C/L, IV, 3948):

Talia te fallant urinam mendacia, copo:tu vedes acuam et bibes ipse merum.

Oxalá tais mentiras te enganem, taberneiro:vendes água c bebes tu mesmo vinho puro.

No aspecto fonético, note-se a redução do ditongo laul a 101 em caupo > copo("tabemeiro"), fenômeno de origem rústica e bastante difundido tCluudius >Clodius, cauda> cada, paupere > popere, fauce > face), embora o ditongo laul setenha mantido em algumas línguas românicas, como no provençal e no romeno. Asíncope da nasal em vedes por vendes verifica-se também em algumas línguas româ-nicas, como no português e no gascão. A indistinção entre lil e leI átonos em vendes

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por vendis e em bibes por bibis é bastante comum nesses documentos e indica clara-mente que as formas do futuro não eram usadas, pois essa indistinção entre vendis ebibis, formas do presente indicativo, e vendes e bibes, do futuro, suprimia o elemen-to distintivo; é uma das razões por que nenhuma língua românica herdou essa formado futuro. Em acuam por aquani há sem dúvida um caso de hiperurbanismo, já quea tendência vulgar era substituir a lábio-velar Iqu-I pela velar simples /c-I com somde Ik-I, como em anticus por antiquvs, ecus por equus, como por quomo (do) etc.Reforça essa suposição a escolaridade relativa do escrevente, revelada pela melodiae construção dos períodos e pela manutenção das consoantes finais, sobretudo o l-m/dos acusativos.

b. Tabellae defixionumSão inscrições, também conhecidas como "plaquinhas de execração", geral-

mente de metal (chumbo, estanho, bronze), havendo-as também de mármore ou deterracota. Gravavam-se nelas fórmulas cabalísticas, entregando aos deuses do infer-no os inimigos ou rivais, ou tentando neutralizar malefícios e maldições. Foram

encontradas em toda parte do Império, principalmente no norte da África; !êm cará-ter eminentemente popular, da autoria de escravos, gladiadores, soldados e libertos.Inscrevia-se o nome do amaldiçoado, mas nunca o do amaldiçoante, São freqüentesas descrições pormenorizadas da pessoa, as repetições e as palavras cabalísticas, ascombinações de letras latinas e gregas com finalidade mágica e in\0_':!' -ria, comoeste início de uma tabella do século lIl, encontrada em Hadrumentum:

I ~ //1 -I c-, 0, r __ .l.v'f (,~~'L'_L>- '2. .. L- -,

Alimbeucolumbeupetalimbeu [...]

As plaquinhas de execração eram depositadas nas sepulturas, em poços, sobos edifícios ou simplesmente enterradas. A linguagem é bem vulgar, pesada, repeti-tiva, cheia de pleonasmos e anacolutos; os vulgarisrnos e os termos chulos são abun-dantes. Vejamos um exemplo:

Te rogo qui infer Inales partes tenes, con [mendo tibi lulia Fauslil lia, Marii filia, ut eamceie I rins abducas infernalis partibus in num I eru tu abias,

Rogo a ti, que dominas as regiões infernais, encomendo-te Júlia Faustila, filha de Mário,para que a leves para baixo o mais rapidamente possível para as regiões do inferno e a con-serves no número dos teus.

Notáveis são as ausências do l-m/ do acusativo em fulia(m) Faustillatnú,

numerll(m) tU(UI7l),apócope muito comum nas inscrições desse tipo; em (h)abias, a

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falta do Ih-/mostra que as aspiradas não eram mais pronunciadas. Em in(ernafis porinfemaíibus houve confusão de declinações, incluindo-se um adjetivo da Y entre osda 2'. por semelhança de flexão casual.

c. Inscrições tumulores

Essas inscrições são encontradas em todas as regiões do Império e distribuí-das por vários séculos. Trata-se de inscrições de caráter permanente, geralmente empedra ou mármore, e por isso mais cuidadas; daí ser indispensável submeter seusdados a uma sólida crítica. Além de seguirem formulários e modelos, pode havererros cometidos pelo incisor ao copiar o que o ordinator havia escrito no papiro, per-gaminho ou em tabuinha encerada.

A norma lingüística vai desde a literária, em alusões à Eneida de Virgílio atéao mais típico latim falado; apenas na época latina mais tardia, as inscrições tumula-res se nivelam lingüisticamente pelo latim vulgar.

Exemplo, de Colõnia (C!L, XIII, 8481):

111 oh tumolo regiescet in pace bane memorie Lco vixct anuus XXXXXII transict nono Ids.

Ohruberes.

Neste túmulo, Leo descansa 118 paz da boa memória; viveu 52 anos; faleceu no nono dia dos idos deoutubro.

É forte a influência germânica nessa inscrição, marca da pelas aspirações emoh (hoc) e ohtuberes por octobres e pela epêutese de um I-e-I para desfazer o encon-tro semântico Ibr-I; a forma regieseet por requiescet parece ser erro do incisor, comalguma influência do superstrato germânico Em bone memorie verifica-se a redu-ção do ditongo I-ael > I-e/, fartamente documentada. A indistinção entre lil e lei estáem regiescet por requiescit, em vixet por vixit e em transiet por transiit, comprovan-do a perda da noção de futuro nos verbos da 3'. e da 4'. conjugações; indistinção severifica também entre 101 e lul átonos em tuinolo por tumuto e em annus por annos.perdendo-se, nesse último, a distinção entre nominativo e acusativo, exemplo clarodo declínio do sistema das declinações. A pouca cultura do ordinator ou do cinzela-dor revela-se na grafia do numeral XXXXXII por LI I.

A partir de 180 d.e., aparecem as inscrições tumulares cristãs. É sabido queo cristianismo se difunde inicialmente entre as camadas mais pobres das cidadesmaiores, o que explica o nome de paganus, "pagão", ao não batizado; etimologica-mente, é o habitante de um pagus, "vila", "povoado". Por isso, as inscrições cristãsapresentam os mesmos vulgarismos encontrados nas outras, pois seguem os mesmosparâmetros, diferindo apenas no aspecto religioso. Um exemplo (Diebl, ILe, 1464):

Hic quiescit ancilla dei, [qluc de SlI" 0111"'" pcsscdit domum ista. quem amicc dcflcn solaciumqlue]requirunt: pro hunc UIllII" 0I'1l subolem, quem supcrislircrn rc[li]quisti eterna réquiem fclieita[ti]s

CüIlSIII1WIl[e]bis. llllX Kulcndas OtODI15 Cucurb.tinus ct Abumldjantiu. hic gilllul quiescit dei. 1111.

Gratiuno V et Tcodosio A'\lI~g.

Aqui descansa li serva ele Deus, que de todo o seu possuiu CSt8 casa. a quem as amigus choram cestão em busca de consolação; pede por este único descendente que deixaste sobrevivendo; (<I ti)

eterno descanso, c continuarás causa de tcliculadc. Dia 14') das calcndas eleoutubro. Aqui descan-sam tambcn. Cucurbitino c Abundàucio. Sob nossos senhores Graciauo V c Tcodósio Augustos.

NesS8 inscrição tumular, encontrada em Roma e datada ele 380, observa-se aapócope de 1-1'111e l-ti finais: isto por isto 11 r, dejlen por dcilem, eterna por aeterncun:a redução do ditongo I-nel > I-el em ainicc por aniicuc e eterno por aeterna: a epên-tese de um/-tl em snperistitent oc» snperstiten«: a rara troca da sibilante Is/ pela oclu-siva velar sonora IgI em gimul por siuiul; a inversão grHic8 do numeral parece suge-rir uma transcrição do modo de euumerar quuttuor et deceni (IIIIX por XI V): aspreposições regem o acusativo (de suo omnia. fi!O 111111<: 1/111111I subolenú, contraria-mente ao ablativo do latim literário, comprovando a tendência vulgar de substituir osdemais C8S0Spelo acusat.vo, mais encorpado. que se tomou o caso lexicogênico daslínguas românicas ocidentais: no aspecto sintático, observe-se a errônea concordân-cia do verbo no singular com um sujeito composto em Cucnrbitinus et Abundontius ..

quiescit por qnicscunt.

As inscrições populares em geral, como se pode ver, espelham 8S tendênciaslingüisricas do latim vulgar que explicam as caracteristicas das línguas românicas.Denot8111 ainda a pouca cultura gramaticnl dos escreventes sob vários aspectos, des-tacando-se o ortográfico em que hit uma excepcional incoerência, mesmo em ter-mos que sào elementos integrantes de fórmulas e modelos seguidos em roda parte:por exemplo, coniux ("eSIJOSa"), é grafado coiiux. conigi, cOJ1ig(e). cozux, cozucc.

coiucem: para vixit ("viveu") encontram-se grafias como vicsit, vicset, vixxit. vixsit.

visset, viset, vigxit, visit, bixi; bisit, bixsct, bise e outras. Essas variações gráficas

sem dúvida representam também variações de pronúncia.

PAPIROS ANTIGOS

Por ser um material muito frágil, o papiro antigo é raro nas partes ocidentaisdo Império. Mas nas regiões áridas do Egito e Próximo Oriente foram descobertosnumerosos documentos nesse material, a maioria dos quais em grego e cerca de 400

em latim. Cerca de uma centena desses papiros latinos são literários, com textos ele

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Virgilio principalmente ou de conteúdo jurídico; os demais trazem correspondên-cias, glossários, documentos militares e particulares. Os encontrados até 1954

foram reunidos no COIpUS Papyrorunt Latinarum por R. Cavenaile (Wiesbaden,

1956-1958).

Os documentos em latim mostram a vida levada pelos soldados nos destaca-

mentos militares, a organização administrativa e jurídica do Império Romano naque-las regiões, bem como a influência muito grande do grego. O latim era falado peloexército e membros da administração; fora desses quadros, era aprendido nas esco-las ou 1I0S livros; essa situação só se alterou com a reforma de Diocleciano, que deuao Egito o mesmo status das outras províncias e incentivou o uso do latim no leste;o conhecimento do latim e das leis romanas se tornou indispensável para o êxito nacarreira pública. Desde então, o latim aparece no preâmbulo e na subscrição de todosos processos jurídicos do norte do Egito. Mesmo assim, a latinização do Oriente foisuperficial, já que a língua corrente era o grego, tanto que existem papiros escritos

em Iatim mas com caracteres gregos.Contudo, esses documentos nos revelam traços do latim no Oriente; os de

caráter popular, C01110 a correspondência dos soldados, apresentam muitos vulgaris-mos. Por exemplo, uma carta de um certo Rustius Barbarus a seu amigo Pompeu, doséculo 11d.C., encontrada em Ostracon, no Egito (CPL, 304) escreve virdia por viri-

dia ("verduras" de virde por viride, com a síncope da pós-tônica), obliseere por obli-

visei ("esquecer" e indício claro da transformação dos verbos depoentes em comuns);exiut por exivit ou exiit ("saiu"), colidas por cauliculos ("a couve", C0111 a síncope dapós-tônica e a redução do ditongo lau/ a 101, fatos comuns também em documentos

do Ocidente).

GRAMÁTICOS E MESTRES DE RETÓRICA

Os gramáticos e mestres de retórica latinos preocupavam-se quase exclusiva-

mente com a norma culta. Desde Ápio Cláudio (século 11a.C}, passando por Varrão,Cícero, Quintiliano, Donato até Prisciano (século VI d.C}, escrevem sobre vi/ia et

virtutes orationis. Por "vi tia" entendiam erros cometidos por pessoas menos cultasou também vocábulos e construção de uso popular, rejeitados pela língua literária,sobretudo barbarismos e solecismos. Entretanto, não se percebe uma preocupaçãomaior com qualquer outra variedade que não a culta; trata-se sem dúvida de questõespróprias da norma literária, tais como expressões ainda não suficientemente estiliza-das ou cristalizadas. É o que se pode deduzir da afirmação de Cícero, relativa a umaconstrução criticada (De Oratore, 48, 159):

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( l~,-~::>-~ o"", D)

Cousulc veritatem, rcprchcndent; reter ad ames, probabunt.bOV~~CVV~

/'-~~'--~Consulta o f;IIO, rejeitarão; relaciona com o ouvido c aprovarão.

Certamente, não há nesse tópico nenhuma alusão ao latim vulgar, embora o reprova-

do pOSS<1pertencer ao uso popular.O que os uramáticos e reteres atestam é a existência de uma variedade "vul-~ c

gar", "rústica" e "antiga". O ideal da boa linguagem era o latim da Urbs. a urballi-/'

tas: tudo quanto diferisse dessa norma, pertencia à rusticitus, à vulgariuis. como

escreveu Quintiliano (histitutio Oratoriac. XII, 10,40):

N,11l1 Illihi aliam quandam vidctur hubcrc naturam sermo vulgaris, aliam viri cloqucntis oratio.

Pois <l linguagem vulgar parece-me: ter uma certa natureza, enquanto outra é H do discurso de um

orador.

O mesmo QuiuriIiauo "firma (VI, 3, 17) que a rusticitas [denominada barbaries porAulus Gellius (século 11d.C}, citando o gramática Nigidius (século I d.C.)] difere danorma culta dos oradores in verbis et S0/10 et USlI, isto é, no vocabulário, na pronún-cia e na construção. Não dá, porém, exemplos nem detalhes. Algumas informaçõessão fornecidas de modo indireto, como a redução do ditongo lau/ a 101 em Festus(202. 13), considerada alteração característica da rusticitas:

Orara gcnus piscis appellatur <1 colore uuri quod rustici "orum" diccbant, \lt auriculas "orientas".

Denomina-se "orara" (por "aurata") urna espécie ele peixe por causa da cor de ouro, que os campo-

neses pronunciavam "orum" (por "aurum"), da mesma forma que diziam "oriculas" por "auriculus"

('·orcllws"l.

A variedade lingüística era também um fator de distinção social, segundo se conclui dadecisão de Claudius Pulcher, pertencente ao clã dos Claudii e inimigo de Cícero, de pas-S<1ra chamar-se Clodius quando perdeu sua condição de patrício e passou à de plebeuOs gramáticos e reteres latinos, portanto, atestam claramente a existência da varieda-

de comurneute denominada "latim vulgar" pelos romanistas: apontam diferenças nosdiferentes níveis lingüísticas, sem explicitá-las, D<1íser mínima a contribuição clelespara a reconstituiçâo do latim falado pelo povo. Relembre-se aqu i o Appendix Probi,aposto aos Instituto Artium por um desconhecido mestre-escola, que utilizava a obrade Valério Probo (fins do século I d.C.) e corrigia formas vulgares. Mas o próprioProbo não faz qualquer referência ao que se denomina latim vulgar, conforme proce-dimento comum aos "gramáticos'' latinos.

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d. Tratados de CulináriaNeste terreno, destaca-se Apicius, conhecido mestre da gastronomia romana,

com ArtÍ5 Magiricae Libri X ("Dez livros de Arte Culinária"), tratado de receitas quese perdeu. Dispomos apenas de um resumo dele do século I V ou V com o título DeRe Coouinaria, em que foram introduzidos muitos vocábulos populares. No séculoVI, o godo Vinidário, que parece ter conhecido o texto completo de Apicius, fez um

resumo para seu uso pessoal, introduzindo outros vulgarismos ainda mais pesados,denotando completa indiferença pela linguagem.

Também do século VI éAnthimus, médico bizantino que viveu entre os gadose dedicou sua obra De Observatione Ciborum ao rei franco Teodorico (rei em 51]).Não se trata de arte culinária, mas do valor nutritivo e das propriedades dos alimen-tos. Sua linguagem busca a correção, mas de fato reílete o latim da época, já bem dis-tante dos parâmetros clássicos e cheio de vulgarismos, que não consegue evitar:

Agnellinas vero carnes aut ele edis optimae sunt qualiter volueris, aut vaporatas aut elixasin iuscello; criam et assas bonas sunt. (Ed. de l.iechtenhan, 5)

As carnes de cordeiro, porém, ou de cabrito são ótimas como quiseres, cozidas no vapor ou110 molho; assadas também são boas.

o acusativo plural substitui totalmente o nominativo; o genitivo é expresso pela pre-posição de com ablativo (de edis) , embora o mais comum seja o acusativo (de lac-tes, cum petras rotundas [75], CII/11alias species [89]). O plural/actes é masculino,comprovando o desaparecimento do neutro. Vê-se claramente que os casos não maiscorrespondem às respectivas funções sintáticas, em geral indicadas por preposições.

RELATOS DE PEREGRINAÇÕES

Conhecidos pela designação de ltineraria, os relatos de peregrinações, sobre-tudo à Terra Santa, são bastante numerosos; foram reunidos em ItinerariaHierosolimitana Saeculi II/-VIfI por P. Geyer (Viena, 1898). A maior parte consisteem pequenos textos com indicações de distâncias, apontamentos e rápidos informes;sua importância para a Filologia Românica é reduzida, se excetuarmos a Peregrina tioEgheriae.

O Itinerarinm Burdigatensis é da autoria de um peregrino da Aquitânia e data-

do de 333. Apresenta os mesmos vulgarismos de outros textos, conforme se pode ver:

Item ab Hiericho ad mare mortuo milia nevem. Est aqua ipsius valde amarissima, ubi intotumnullius generis piscis est nec aliqua navis, et si qui hominum rniserit se ut natet, ipsa aqua eUI1lversar. (p. 24)

Da mesma forma, de Jerico <10 mar morto nove mil. A água dele é muito amnrgn, onde 11<10

lH1i:lbsolutilll1cntc peixe de espécie nenhuma, nem cmbarcacão alguma c se algum homem se atirarpara nadar.n própri.: ÚgllCl o faz voltar.

Observe-se a falta de concordância em c/c/tuare inortuo por mortuuni ou, pos-sivelmente, o autor considerasse nutre no ablativo; em valde amorissima há um pleo-

nasmo bem 'ao gosto popular.Juntamos neste item outros pequenos relatos: De siru Terrae Sonctuc ele

Teodósio, do inicio do século VI d.e .. Em um período como "per oeto dies ibi mis-sas celebrantur et multa mirabilia ibi domnus facit" ("durante oito dias missas são.celebradas ali e o senhor faz ali muitos milagres") encontra-se o acusativo pelo norni-nativo tniiss..« por I/Iissoe) e Ul11 exemplo de síncope da pós-tônica, em doninus pordominus. Por outro lado, o uso das formas sintéticas da voz passiva nas formas do

"infecrum" é ainda corrente e correto.Do fim elo mesmo século VI é o Itinerurium de Antonino Placentino, do qual

se conservaram duas redações; a mais antiga apresenta maior número de vulgaris-1110S, conforme se pode verificar em "deinde venirnus in civitate Tiberiade in qua sunttermas [... ] salsas" (7) ("depois chegamos à cidade de Tiberíade em que existem ter-mas [...] salgadas"). O acusativo tende realmente a substituir o nominativo: a prepo-sição in conserva apenas a idéia de algo estático, perdendo a noção de movimento

"para dentro de".O ltineratiutn Egheriae (ou Etheriaes é a mais importante das narrativas de

peregrinações à Terra Santa; foi atribuída a Sílvia da Aquitânia, parente do impera-dor 'Ieodósio. pela distinção que lhe é dada ao ser recebida por altos dignatáriose

acompanhada por destacamentos militares. Parece certo, porém, que a autora era daGaliza, com certa cultura literária, revelada pelas alusões bíblicas, históricas e geo-gníficas. Sua linguagem é bastante correta gramaticalmente e por isso esse itineiu-,.iIIIJI não pode ser considerado como documento do latim vulgar: contudo, a autoraescreve com bastante liberdade, recorrendo a expressões da lingua falada sempre quelhe faltem as correspondentes gramaticais; há também as que se podem atribuir à dis-tração Oll ainda a erros dos copistas. O estilo é leve e a expressão das idéias, em geral,

clara. Para a Rornanistica interessa principalmente a estrutura e o aspecto geral do'texto, cujas tendências prenunciam as das línguas românicas, já que o documento édo período do declínio elo latim, pois foi escrito entre 380 e 420. O manuscrito foidescoberto por I. Fr. Gamurrini em 1884; trata-se de lima cópia do século XI, feita

em Monte Cassino, à qual faltam o início e a parte final.Encontram-se incoerências gráficas, C0l110 as variantes eclesia (111, 3), aeccle-

sia (111, 3), ecclesia (111, 4); nichi! por nihil, o que pode denotar pronúncia diferente.O uso da preposição é bastante generalizado, anunciando torneios românicos: CIIIII

grand! lobore (111,2), in ca die (111,2), de contra illum montem (11, 7), per gim (111,

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Nesse tópico fala um liberto, que diz loquere por loqui e toouis por loqueris,transformando um depoente num verbo comum; em outras passagens, porém, encon-tram-se numerosas formas depoentes e literárias, como videor (42,3), morior (57, 6),nascuntur (57,3), persegui (63, 4), negotiari e ntorer (75,3) etc. Fica claro, portan-to, a intenção estilística das formas vulgares. Emplovebat çovplueba: (44,18) há aforma vulgar que dá origem às correspondentes românicas (port. chover, casto ilover,cat. ploure, provoploure, fr. pleuvoir, friul, plovi, eng. plover, log. pioere, it. pio vere,rOI11.a p/oa), enquanto a forma literária pluere não deixou vestígios. Exemplos deformas vulgares de síncope da pós-tônica são tamna por lamina (57, 4), peduclum

por peducuhun (57, 7) etc. Numerosas são as formas diminutivas, uma característica

do latim vulgar: casulas (46,2), seivulus (46,3), Graeculis (46,5), lameltulas (57,

6), misel!a (63, 4), cubiculum (77,4) entre outros. Pronomes reforçados segundo tor-neio popular são freqüentes, como is ipse (57, I); notável é a forma petroniana, nãoencontrada em outros textos, ipsimus (63, 3) no sentido de "amo", base do pronomeromânico de identidade.

No léxico, bellus substitui pulcher e, devido à convergência homonimica,acaba determinando o desaparecimento também de belluni ("guerra"), substituídopor lermo gerrnânico ou eslavo. Há também curiosos compostos populares, como addOJ/1I1Sionel17 « dOI11U + usionem) ("para uso doméstico"), lacticulosus, derivaçãoduplamente popular ("desmamado há pouco") e monuciohnn ("punhado de palhas").

tos e pessoas, tópicos que deixam entrever a cultura, o ambiente e as modal idades lin-

güísticas correntes.Examinando a Tabella XIV como exemplo, lê-se um documento de venda de

uma propriedade COIll olival, datado possivelmente de fevereiro de 496. Redigidodentro dos parâmetros cartoriais da época, não distingue os fonemas Ibl e Ivl (1'()CC!-

vIIIIS, benderent, botnerit, biso e viso, ao lado de venditor, dever! por deberi, si vi por

sibi etc.). Algumas expressões são curiosamente fundidas numa só palavra: iuris-

queonun < iurisoue eoruni, ("e do direito deles"), eredesveonun < lieredesve eorunt

("ou os herdeiros deles"). Sistematicamente se reduz lael a lei iolive por olivac. pecu-

nie por pecuniaei: duodecinto reduz-se a dodecimo, forma suposta pelas línguasromânicas. Algumas grafi<1s chamam a atenção, como a já encontrada alhures nichil

por nihil, e a estranha queperit por ceperit, indicando a conservação do valor velardo lei. A parte final atesta suscrissi e subscribsi por subscripsi, apontando possivel

Ilutuação de formas ou subscritores de origens diferentes.

TEXTOS CRISTÃOS

TESTM,IENTUM PORC[Lll

A língua da Igreja primitiva foi o grego da "koiné", variedade em que foramredigidos os livros do Novo Testamento, inclusive a carta de Paulo, ,. 11anos. Aprimeira comunidade cristã foi fundada entre <1Sclasses mais baixas das grandes

cidades, particularmente entre elementos de origem oriental e judia. Com a expan:iiodo cristianismo, passou-se a latinizar termos hebraicos e gregos, formando-se limalíngua religiosa técnica. Trazendo uma nOV<1visão do mundo, o cristianismo deviaadequar o léxico a essa visão diferente; assim, muitos 550 os empréstimos ou decal-ques gregos: onatheiua, angelus. apostara. apostolus. baptismus. baptizo. catechu-menus, charisma, diuconus. eleemosvna, ecclesi«. episcopus. evangelium, martvi:neophytus e presbyter entre muitos outros. Na busca da expressão de novos valores,dá-se nova acepção a vocábulos comuns latinos: peccare significa "transgredir a leide Deus" e não "tropeçar";fides é "fé" religiosa e n50 "fidelidade"; luvacrum desig-

na o sacramento do batismo e não mais simplesmente "banho" etc.'Quando a comunidade cristã aumentou, foi necessário adequar os textos à lín-

gua que a maioria conhecia, o latim vulgar. Surgiram assim várias traduções da Bíblia,em linguagem adaptada aos destinatários, cristãos latinos incultos. As primeiras datamda segunda metade do século li, com muitos vulgarismos, induzidos até certo pontopela própria "koiné" do original grego. Note-se que não se trata de tradução em latimvulgar, mas que procura aproximar-se da fala corrente. Mais tarde surgiu o latim ecle-siástico, de caráter culto, dos chamados Padres da Igreja, que não deve ser confundi-do com o latim cristão antigo, encontrado nessas traduções bíblicas.

Antiga paródia de caráterjurídico, o Testamento do Porquinho já era conheci-do por São Jerônimo; foi escrito por volta de 350. Seu autor conhecia muito bem aterminologia técnica do Direito Romano e sua linguagem é gramaticalmente correta.Os vulgarisrnos usados procuram efeitos cômicos, por conotação com significadospopulares, como capitinae ("cerdas da cabeça"), cymae ("brotos"), popia ("colher"),soliversator ("fuçador do solo"), vasce/la ("vasilhas") entre outros.

TABELAS ALBERTlNAS

Dentre outros documentos tardios (séculos V-VI), destacam-se as chamadasTabelloe Albenini, encontradas em Túnis em 1928. Trata-se de documentação parti-

cular, em45 tabelas de madeira, com 34 documentos escritos a tinta, várias das quaisindubitáveis palirnpsestos. Contêm relatos de dotes, assentamentos de compra evenda, operações comerciais em geral; trazem a assinatura dos autores e procedemde lugares diferentes, desconhecendo-se a razão de terem sido reunidas num só lugar.Seguem fórmulas fixas, mas são originais quando enumeram bens e descrevem obje-

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A Ve/us 'latina de fato abrange um conjunto de traduções anteriores a S.Jerônirno (348-420), entre as quais se destacam a Ítala, literalmente fiel ao texto

. grego, com muitos plebeismos, e a A(ra, literalmente melhor. A Vulgata, como éconhecida a tradução de S, Jerônirno, só em parte é uma nova tradução, pois mantémo caráter literal da Ítalo, além de não ter modificado nada dos livros da Sabedoria,Eclesiastes, Baruc e Macabeus I e 11; o Atos dos Apóstolos, o Apocalipse e asEpístolas foram apenas retocados.'

Na Ítala, não são raros os casos de confusão com as desinências casuais; porexemplo, Marc. 15, I: 'l..]curn senioribus et scribis et totum concilium [.. .]"; ou 15,7: "Erat autem in carcerem [... ]" - em que o acusativo substitui o ablativo, tendênciatantas vezes comprovada, Em 10,2,21: "Ille autem dicebat de templo corporis sui",

o ille tem a função do pronome pessoal românico "ele", Destaca-se na Vefus Latinaa estrutura das orações, com li colocação dos termos em ordem lógica, muito próxi-ma da encontrada nas línguas românicas, como em Marc, 15,4:

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, , lterum Pilatus interrogavit eUI11dicens: NOIl respondes eis quicquarn? Ecce quanta te accusaut.

De novo Pilatos interrogou-o dizendo: Nào llies respondes alguma coisa? Eis de quantas coisas teacusam.

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Algumas construções da Vulgota, estranhas à primeira vista, se devem ao Iite-ralismo da tradução, que procura manter a construção grega, tanto quanto possível,por respeito à Bíblia. Isso se verifica na ordem das palavras, característica do gregoe mantida no latim: Luc. 15, 8, "drachmas decem", com a posposição do numeralcorrespondente ao grego 8pa.;:(J,uiç 8ÉKa.; mas "duos filios'', conforme 8'00uioíx; em 16, I: oç E'lXEV OlKOVÓ/lOV é traduzido por "qui habebat vilicurn". Porcausa do grande respeito pelo texto sagrado, não se pode exagerar a contribuiçãodesse texto bíblico para a reconstituição do latim vulgar.

Outros textos cristãos são importantes para a Filologia Românica, como osescritos de Santo Agostinho (354-430) ou de Izidoro de Sevilha (602-636), por suasobservações sobre fatos lingüisticos. De particular interesse filológico é a RegulaMonachorum de S, Bento de Núrsia, com a qual teve pleno êxito a primeira tentati-va de implantar no Ocidente as regras monásticas do Oriente cristão, Há duas ediçõesdessa Regra, a segunda das quais é mais ampla e melhor. Revela a pouca cultura ereduzido conhecimento literário de seu autor. Como reflexo do latim daquela época,dá interessantes informes sobretudo na sintaxe, As preposições vêm sistematicamen-te com o acusativo, substituindo o ablativo: "mox OIlU1es de sedilia sua surgant"("logo todos se levantem de seus assentos") (9); "cum responsoria sua" (16); "Dequarum rerum omnium colorem et grossitatem.." (55) ("Sobre a cor e grossura detodas essas coisas" ."} ete.

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GLOSSÁRIOS

Glossários s50 elencos de palavras ao lado das quais é aposta outra, que a tra--duz ou explica, da língua do leitor ao qual se destina, Originaram-se das anotaçõesmarginais ou inrerlinenres em passagens menos claras; essas anotações foram depoisreunidas e ordenadas por critérios diversos. O termo "glossário" tem como base otermo grego "(ÀrJXj0a. ("palavra", "língua"); já em Aristóteles (ReflÍ/'iw, 1410 b 12e Poéticu, 1457 b 4) tem também o significado de "palavra rara ou estrangeira queprecisa de explicação", Edições de referência são a de G, Lówe e G, Gôtz, CO/'jJIIS -D G CLGlossario/'llll/ Lutinorum, em cinco volumes (Leipzig, 1889-1923), aos quais foramdepois juntados os dois volumes complementares do Thesaurus gtossorum emenda-

tanun, como os volumes VI e VII da coleção; complementar é ainda <1edição de W,M, Lindsay (Paris, 1926-1931) dos Glossaria Latino iussu Academiae Britonnicae

edita em cinco volumes,P<11'aa Fi.lologia Românica nem todos os dados dessas fontes têm .o mesmo

valor; muitos.' porém, são extremamente valiosos para o estudo do léxico, Note-se

que foram escritos por pessoas cultas, que liam os textos, refletindo COI11isso o nível

cultural da época, relativamente baixo,

O GLOSSÁRIODE REICllENilU

Conhecido igualmente como Glossas de Reichenau, é originário do sul 'd<1Franca: data do final do século VIII. Reichenau é uma pequena ilha do lago deConstança, na Suíça, na qual há um mosteiro beueditiuo fundado em 724; esse mos-teiro foi um dos principais centros de cultura da época carolíngea. Atualmente nabiblioteca de Karlsruhe, esse glossário contém de fato dois, um bíblico e outro bibli-co-patristico; muitas glossas provêm de outros glossários e de escritores tardios eapontam tendências léxicas do latim da Gália dos séculos IV e V Procuram explicarexpressões da Vulgata com palavras ou torneios mais populares; o segundo traz ainda

outras palavras em ordem alfabética.Exemplos da parte bíblica:

743 - excubent: vigilent ("vigiem")749 - uva passa: uva sicca ("uva passa")767 - luxit: tlevit, ploravir ("chorou")80 I - ulciscere: vindicare ("vingar")810 - ictus: colpus ("golpe")1557 - pueros: infantes ("meninos")

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2471 - articulos: digitos ("dedos")3012 - dilexi: arnavi ("amei").

Do glossário alfabético:

22 - arena: sabulonem ("ar-eia")45 - atrarn: nigram ("negra")

483 - detegere: discooperire ("descobrir")723 - Gallia: Francia ("França")732 - hiems: ibernus ("inverno")1031 - novacula: rasoriurn ("navalha")1238 - pulernpta: farina ("farinha torrada de cevada")1569 - sus: poreus

1640 - vespertiliones: calves sorices ("morcego")1708 - utere: usitare ("usar")_

Vê-se que os termos explicativos, em sua maioria, representam os corres-pondentes românicos modernos, C0l110 de ibernus (tempus) > rom. iarná, vegl.inviarno, it. inverno (verno no sul), log. ierru, sobres. unviern. eng. iviern, friul.inviarn, fr. hiver, prol'. ivern, cal. ivern, cast. invierno, gal. iverno e port. inverno.De hiems não ficaram vestígios românicos. Em outros casos, algumas línguasromânicas mantiveram uma, enquanto as outras optaram pelo sinônimo: assim,arena continua no port. areia, cast. arena, cal. arena, prov arena, log. rena, r0111.crina (ao lado do esl. nisip); mas sabulonem (ou sabulum) deu it. sabbia, fr. sablee prov sable (e também arena).

Acontece também que as línguas românicas modernas tenham formas diver-gentes das apresentadas no glossário. Um exemplo é o 1640 do alfabético. No it. ant,havia vipistrello e vepistrello C01110continuadores de vespertilio (semanticamenteligado a vespertinus: daí, "animal que sai ao cair da noite"). Em toda a Itália há mui-tas variantes com base etimológica popular, como friul. barbasttrsin, romagn. bal-bastrel, pisopilustrello, ernil. palpastrel etc. No francês ficou a forma indicada peloglossário chauve souris ("rato calvo"), de uma palavra vulgar *soricius ("rato"); osdialetos franceses apresentam variantes, como norm. suri gok e kaksuri, champ. surishod. Nas línguas da Península Ibérica, porém, não se conservou nenhum dos ter-mos contidos no glossário, pois todas têm por base mus, muris: port. morcego, castomurciego, do qual cal. morisek ou misirek, burisek e milisek, partindo de muremcaecunt ("rato cego"). Apenas o galego, com espertello se relaciona com vesperti-

lio. O romeno emprestou liliac do búlgaro, enquanto o alemão o denominaFledermaus, "rato voador".

As glossas ele Reichenau atestam ainda a perda completa elos verbos depoen-tes: ulciesccrc por ulcisc! (80 I), utere por uti (1708); por outro lado, os muitos vocá-bulos no acusarivo denotam que esse caso já havia substituído a maioria dos outros.

AS GLOSS!\S DI: K,\SSI'L (~é) Ú' ).-J .. ·J'i C.:.. " \" i L ~""", .

As Glossas de Kassel s50 assim denominadas por serem conservadas na biblio- .teca de Kassel. centro-norte da Alemanha, ao sul de Góttingen. É um glossário latim- alemão. tematicamente organizado, isto é, agrupa expressões relativas a um deter-minado assunto, como partes elo corpo, casa, vestuário, animais domésticos etc. Traztambém períodos inteiros. típicos da conversação. A parte latina ainda l1S0 é romance,embora bem próxima: as glossas gerrnânicas representam certamente o alemão da

Baviera, região sul da Alemanha, anele teria sido exarado em 802. Alguns exemplos:

17 - tundi meo capilli: skir min Iahs18 - radi me meo colli: skir ruinan hals19 - radi meo parba: skir minam part53 - Iigido: lepara (al. mod. ieber)131 - implenus esr: foi isr (Voll isr)163 - Aio turt.: Wela alle (Wohl alie).

10 ~ ~ D cx;~J'0)

~D,y ;t) tÍjJ .fi

~é) S-.XcJ c)

Exemplo de frase inteira:

181 - Indica mih quomodo nornen haber hemo iste: Sage mir uueo nat11UI11habet deser mano ("Dize-me que nome tem este hornern",)

A parte latina tem elementos de várias regiões (Itália, Récia e Gália) e repre-sento o chamado baixo latim, mesclado com vulgarismos, mais numerosos que osencontro dos no glossário de Reichenau. O uso das surdas pelas sonoras, COl1l0emparba por barba, mostra que a língua materna do autor era o gerrnânico; note-se tam-bém o barbarismo na ausência de concordância nominal em meo capilli, nieo co!!i emeu purba e o desaparecimento completo das declinações.

o GLOSS.~RIO DO VATICINO

O Glossário do Vaticano data do século VII; de procedência ibérica, é conser-

vado na bibl ioteca do Vaticano (códice 3321). Dele procedem outros quatro de menor

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importância; há quem o atribua a Izidoro de Sevilha, mas não se tem certeza de suaautoria. Exemplos:

52, 252, 1076, 18

77, 677,877,17

95,21

dernonizationes: subprestitiones- demolire: dissipare- fimum: stercus animalium- flagrat: ardet- flagitat: rogar, petit- fallere: mentire- inlustrem: gloriosum vel novilern- inrnitis: non placavilis

125,32 - non dubium: verum nonnulli:- aliquanti vel aliqui.

Também nesse glossário se verifica que as formas glosadas desaparecem (fla-

gitat, .fallere) ou representam formas eruditas nas línguas românicas (demolire),enquanto as explicativas, de modo geral, foram conservadas e incorporadas ao léxi-co românico: assim, lat. ardere> port. arder, cast. arder, cat. ardter, provo ardre, fr.ant. ardre e ardoir, eng. árder, friul. ardi e ardé, it. ardere, vegl. ardár, r0111.arde.

Outros exemplos são rogat, petit, mentire. Documenta-se mais uma vez a flutuaçãodos fonemas /b/ e Ivl e a não assimilação do /nl em inlustreni e inmitis.

GLOSSÁRIO PSEUDO-IZIDORIANO

o Glossário Pseudo-Izidoriano foi atribuído durante muitos séculos a Izidorode Sevilha, mas trata-se de uma compilação de vários outros mais antigos, dos quaisalguns nos são desconhecidos. É possível que seja originário da lbéria, já que muitasglosas eram conhecidas na península na época dos visigodos. Alguns exemplos:

590, 35 - augumentum: profectus591, 60 - bassus: crassus

- bostar: locus ubi stant boves595, 3 - cusire: consuere597,50 - enulurn: caldarium604, 6 - manubiare: vigilare, pernoctare

- mansionarius: ostiarius

Entre os vocábulos desse glossário, alguns não são comuns, como bastar oubastare, "curral", "cocheira", encontrado no porto ant, bosta/ e no cast, ant. bostar

(REW [228). Mas enuluni ("panela") e monubiare (literalmente "ter à mão", no glos-sário "vigiar" e "pernoitar") são raros e não deixaram vestígios românicos.Mansionarius substitui ostiarins, ambos significando "porteiro". Ostiarius. de ostiutn- suplantado em toda a românia por poria - ficou no fr, huissicr, de onde passou parao it. usciere e para o casr. ant. uxier; o Ir. huissier supõe uma variante "ustiorius emoderna mente significa "recepcionista", "bedel" e "oficial de justiça". Mansio. nolatim literário, significa "morada" e "habitação" além de "hospedaria". Nas línguasromânicas, essa acepção continua no 1'1'.niuison. donde passou para o it. ant. magionee port. ant. nutisotu ("casa"): o port. mansão é semi-erudito no significado de "habi-tação suntuosa". Nas demais línguas e dialetos românicos, assumiu sentidos diversos:no dalrn, mochuna significa "redil", "abrigo para ovelhas": nos dialetos italianos ber-

gam., trent. e veron. /!UDfIl é "galinheiro": na região de C0I110, na Itália, 1110:::0/1 desig-na um tipo de "cabana alpina"; no Vale Sassina, iuazon é "estábulo com piso de feno";no log. e no campid. niasoni é "estábulo de cabras ou de ovelhas" e "chiqueiro": noeng. maschun designa o "poleiro". O cast. lI1eSÓI1 ainda hoje conserva UI11 dos signifi-cados clássicos de "hospedaria", sendo uma das razões para se supor a origem ibéri-ca do documento. Note-se que as palavras românicas partem de niasione com sínco-pe do fone ma In/, enquanto o port. 11I011.\'(10 o mantém por ser semi-erudiro.

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As GIO:>.\'if:> Emilianenses estão em um manuscrito do século X, conservado 110

?As GLOSSAS EMllIANENSr:S

convento de San Millán, situado ao oeste da província espanhola de Logroüo. São tex-tos religiosos, reunidos numa espécie de tlorilégio de exemplo selecionados das VitaePatrum; de escritos litúrgicos e sermões atribuídos a Santo Agostinho. Por volta demeados do século X, os textos foram glosados marginal ou interlinearmente: como asde Silos, as Glossas Emiliunenses parecem supor um outro glossário anterior; ao con-trário do de Reichenau, este glossário usa conscientemente a língua vulgar, primeiroexemplo do ibero-rornance, com suas características bem definidas. Reflete tambémo chamado latim visigótico, que perdurou na Ibéria até o século XI, e que explica asformas latinas não atribuíveis a uma relatinização das correspondentes românicas.

Exemplos de item alius sermo:

incurrit [kaderar]on se circurnveniat qui talis est [non se cuempetet elo uarnne en sivi]

implere dissimulant [tardarsan por irnplire]ralia plura conmittunt [tales muitos fazen]alicoriens [alquaudas beces]

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litigare non erubescunt [non se bergu(n)diant tramare]criminis [peccatos]exacturus [e Ia probatione] usuram [ela legem]

[Como aiutorio de nuestro dueno Christo, [ ] e qual dueno salbatore [...] e qualduenno tienet ela mandatione cono Padre, [ ] enos sieculos delo(s) sieculos].

As explicações, indicadas acima pelos colcheres, documentam várias caracte-rísticas do romance castelhano: o futuro expresso através da locução infinitivo +

habere está em kaderat (cader + at < cadete habet], ainda sem a síncope da sonoraIdl intervocálica, modo caerà; também em tardarsan, ou seja, tardar se han corres-pondente ao modo se tardaràn. O desconhecimento dos casos se percebem em crimi-nis [pecca/os], em que um genitívo singular é traduzido por um (acusativo) plural,embora se possa supor a intenção de traduzir apenas o sentido da palavra. O demons-trativo latino illu, i/la aparece com clareza usado como artigo definido em elo uamne,de Ia probatione, ela legem, cone, ela mandatione, enos sieculos de/os siecu/os. Noaspecto fonético, há vários exemplos da ditongação do leI e do 101 breves, C01110

cuempetet, de computet, cast. modo cuente; uatnne, de homine, modo hombre; 1/1Ies-

Ira, de nostru; dueno, de dominu, modo dueiio: tienet, de tenet; sieculos, de saeculu> seculu, cast, modo siglo. Observa-se ainda a flutuação dos fonemas /bl e lvl, no lati-

nismo sivi por sibi e em beces por veces. Note-se também a vocalização do 11/emmultos > muitos, sem a qual não se explicaria o cast. modo muchos.

Os HERMENEUMAT;/ ( /111 ()V--J"-<"" ai p CI---"- c·

./~_ ~u t )

Os chamados hermeneumata (lit. "interpretações") são glossários bilíngües,mais freqüentemente com o texto grego em primeiro lugar. Assenldha-s~ a manuaisescolares ou de conversação; os vocábulos ou orações curtas são dispostos em ordemalfabética ou temática. Foram conservados em várias recensões e denominadossegundo o nome do lugar que se acham os respectivos manuscritos. Apenas das difi-culdades de datação, pode-se situá-los no século 111ou IV. São geralmente atribuídosa Dositeu, cognominado Magister (século IV), cuja Ars Grammatica, também bilín-güe, destinou-se aos gregos que queriam aprender latim; o texto em latim era origi-nalmente interlinear. O conjunto desses glossários é conhecido por Pseudo-

Dositheana Hermeneumata no CGL de G. Gôtz e constituem ovo!. 111.

a. Hermeneumata MontepessulanaSão conservados em Montpellier, no sul da França, donde lhe advém o nome;

alguns dados dó texto levam a afirmar que foram escritos na Itália. O manuscrito data

284 42 n:OpEUOU n:EOaplOv vade puer'S:

Kat ayyLÀov et uuntiassr

oti EpKO[l.at quoniam venio?~~! 001:a.l uoi urroOl1wx1C1- date mihi calciamenta

285, 19 uõaç n:ou ~lEVCH seis ubi manet.:·--l

o <plÂ.OÇuou arnicus meus-I285, 3J ayCú~l!::v lW.EtÇ eamus nos

TIpOe;10Ue; o:Â.Â.oue; <plÀ.ouç ad alias amicos

42 TICúÇ10: TIatOlO: quomodo infantes

ÇCúCHV vivunt

287,12 1:pl<pOVue frica me

288, 2 ooç ll~lElV mv da nobis bibere

50 11011O\jlE E01:LV iam sero est

ayCú[l.cv ElÇ OlKOV eamus in domum

54 EKOCú[l.EV1l 011TIV110at habemus quid cenare?

289,4 ooe; KElpo[l.aylov da rnappa ad manus

do século IX; a parte grega vem em primeiro lugar eem caracteres gregos, mas sem _

nenhum acento ou sinal de aspiraçâo ("spiritus"). Alguns exemplos:

O caráter mais coloquial elas formas latinas é notado em diversos tópicos:vade (284,42), imperativo ele vado ("caminhar", "dirigir-se") substitui as form~smonossilábicas de eo, ire ("ir") demasiado curtas e por isso sem destaque no fluxofrasal, além dos freqüentes choques homonimicos; de ire persistiram as formas arri-zotônicas, mais encorpadas como eanius (285,33 e 288,50). Esses fatos explicam aconjugação românica de ire, nas línguas que o conservaram, e empregam raizes for-malmente diversas. como por!. 1'011- inios (ou vamos), cast. vo)' - vamos. prov vali_ anatu, fr. vais - allons. eng. vegn - giain, it. vado - andiamo etc. A expansão douso das preposições é clara em eumus in doinuni por domunt eantus e em nuippa ad/II({)1LIS. Em calciamenta por calceonienta ("sapatos") há a transformação do hiato emditongo (-ea- > -ia-v. além da forma popular sufixada culceus > colceumentum.Tendo sido escrito por um professor de línguas, o texto em geral é gramaticalmentecorreto; assim, a apócope do 1m! em nuippa ("toalha") pode ter sido erro do copista.

b. Hermeneuniatu MonacensiaConstam em dois manuscritos conservados em Munique, na Alemanha. O arqué-

tipo data talvez do século IX e as duas cópias são do século XII, feitas na própriaAlemanha. Os termos gregos glosados estão escritos em caracteres latinos e a translite-

ração nem sempre é muito fiel. Alguns exemplos:

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175,24 cili: laviaule: gengiveonuces: unguasadelfos gnesios: germanusrnelimela: metiana

3358

181,44185,21186,61196, 59213,46

octapus: polupuscapilion: coponiumerotison auton: interroga iluumidinametha iseltin: si possumus intrareideichis peperation: vide si habes piperatumdos sycoton: da ficatummetatroximon: cum scarias.

218,3337

219,6

Esses exemplos mostram que se trata de um glossário temático. O grego tam-bém tem caráter bastante popular, com freqüentes reduções de ditongos, comoX.êÍ.ÀOl > cili ("lábios"), EtcrEÂ.l3-cLli > iseltin. Nesses exemplos, ocorrem apenas

dois casos, o nominativo e o acusativo, mesmo onde deveria haver o ablativo, comoCIIlI1 scorias ("com escarolas"). Em 213, 46, o demonstrativo il/e substitui o clássicois (ellnJ no texto), apontando para as múltiplas funções que ille (fila, illlld) haveria deter nas línguas românicas. Para o estudo do léxico românico, esse glossário oferecesubsídios interessantes. O gr. adel(os é traduzido por germanus (181, 48) e não por[rater, este conservado em quase toda a România, com exceção na Ibéria, onde ger-manus > porto irmão, cast. hermano, emprestado ao logo ermanu ("hipócrita"), bearn.yirmà, enquanto frater se especializou semanticamente na acepção de "membro deordem religiosa", de modo semelhante ao gr. á&?cipóç e IPpá'l:T)p, este "membro deuma <ppm:pí.a" ("irmandade"). Metiana (185, 21), forma dissimilada de mattiana, éneutro plural da segunda declinação imattianum pomumi que na linguagem vulgarpassou para a primeira e como singular. Conservou-se só na Península Ibérica, port.maçã, casto manzana (cast. ant. l11açana), denominação advinda de C. Matius (sécu-lo I a.c. ou d.C.), especialista romano em arboricultura. Polupus, variante ée polypus

« gr. no?cíJ7wvç, "de muitos pés"), é mais antiga que octopus (óKrónovç, "de oitopés"); polypus originou port. polvo, cast. pulpo, cat. pop, provo purpre e pourpre, fr,poulpe e pieuvre, it. polpo (REW 6641). Note-se ainda a difusão ôeficatum, decal-

~ue do gr. (JvKwrólI, que substitui totalmente tanto iecur ("fígado") em latim, C01110

l']1Wp no grego (Cf. p. 75).

C. Hermeneumata de MonzaConstam em um códice conservado na Biblioteca Capitular de Monza, na Itália;

trata-se de um glossário italiano-grego do século X. A parte grega é atribuída a um

monge do sul da Itália, enquanto os esclarecimentos apostos foram escritos em umacidade da planície do rio PÓ, ao norte. Não e documento do latim vulgar; contudo, inte-ressa à Filologia Românica por fornecer dados que ajudam a compreender a evoluçãode uma língua românica. Traz palavras isoladas e poucas frases. Alguns exemplos:

51 gallo - aleiora (àÂ.i::K'wpa)

59 dominica - curiaci (KuplaK~)31 de mandegare - desmetiunosefaimo (DÓÇ ~LE'Ú lia 'ioo; qxi[y lÚ)~E[li [).

Algumas palavras têm características nitidamente vulgares duma região pro-vavelmente entre as cidades de Pavia e Bobbio. Outras apresentam urna relatinizacãoclara (ollriel/lo, ungulu, digiro), em seu todo fonético: em ainda outro grupo de ter-mos, o aspecto erudito se nota pela reconstituiçâo das surdas intervocálicas como emvestito. broca. htpo. lepore Falta, portanto, uma separação mais visível entre o latim

e o romance,Os romauistas enumeram ainda muitos outros documentos que são fontes do

latim vulgar. Entre tantos, mencionem-se (I Histeria Franconun. Vitae POII'UIII e DeGloria Confessonnn de Gregório de Tours (538-594); as coleções de leis, conhecidascomo Legex Barharonnn, como as várias redações da Lex Salica, a mais antiga dasquais remonta ao rei franco Clóvis (482-511), «Lex Ribuariu. Lex Romana RaeticaCuriensis (ou Utintensisi; os Chronicarum Libri IV de Fredegarius e as Continuationes

Fredegarii (século VIII), o Liber Historiae Froncorum. de 727 (publicado em MOI1I1-

nienta Germanioe Historicu por B. Krusch); as Vitae Sanctonun Merovingicae (sécu-los VI-VII); as Formulue, modelos de documentos legais (séculosvü-lx); os Diplomata

Saeclllorlllll VII-VIII, coletânea de documentos notariais, mais numerosos da Françaque da Itália e da Espanha. Destaque especial merece o Appendix Probi ou Ad Probuni,

já citado, por sua excepcional contribuição para a reconstituição do latim vulgar.

AS LíNGUAS ROMÂNICAS COMO FONTES DO LATIM VULGAR

Todos os dados recolhidos das fontes acima citadas não são suficientes para areconstrução completa do latim vulgar. Não existindo nenhum escrito totalmente emlatim vulgar, por ter sido apenas falado, essas fontes indiretas, além ele incoerentes,não conseguem cobrir seu universo. Certamente essa norma falada utilizava umvocabulário seguramente mais extenso em relação àquele que ficou registrado oca-sionalmente em documentos. Entretanto, as línguas românicas herdaram e usam mui-tos vocábulos ainda não documentados por aquelas fontes. Assim, havendo consen-so entre as línguas românicas em relação a um determinado vocábulo não

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