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ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA MESTRADO EM DIREITO PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2009

ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA Mendes... · ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA Dissertação de mestrado apresentada à banca examinadora

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ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO

ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA

MESTRADO EM DIREITO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2009

ANDRÉ MENDES ESPÍRITO SANTO

ORTOTANÁSIA E O DIREITO À VIDA DIGNA

Dissertação de mestrado apresentada à banca

examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência parcial

para obtenção do título de Mestre em Direito,

sob a orientação do Professor Doutor Gabriel

Benedito Issaac Chalita.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2009

Banca Examinadora

_______________________________

_______________________________

_______________________________

À

Celeste Macêdo Mendes

(in memoriam)

Aos meus queridos pais, Álvaro e

Ângela, pelo amor com que criaram

seus filhos e pelo exemplo de vida que

representam.

Agradecimento

Em que pese a dificuldade em listar em poucas

linhas todas as pessoas que de alguma forma

contribuíram para que este trabalho fosse

concluído, não poderia deixar de agradecer ao

professor Gabriel Chalita, pela orientação,

amizade e apoio incondicional.

À professora Márcia Cristina de Souza Alvim, pelo

convívio e aprendizado.

À Maria Lúcia Borba Rolim, bibliotecária

incomparável, cujo amor pela profissão é

contagiante.

À professora Sandra Konrad, companheira de

magistério, pela ajuda e estímulo.

Ao professor Fabiano Albuquerque de Moraes,

estimado amigo, pelas sugestões e cuidadosa

revisão.

A todos os amigos queridos, pelo apoio e carinho.

“Como um instrumento musical, a vida

só vale a pena ser vivida enquanto o

corpo for capaz de produzir música”.

(Rubem Alves)

RESUMO

Esta dissertação propõe-se a estudar a ortotanásia à luz dos

princípios constitucionais do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.

Pretende refletir sobre o conceito de “vida” e tentar demonstrar que a vida

protegida pelo texto constitucional de 1988 não é qualquer vida, mas sim a vida

digna.

O texto apresenta uma reflexão sobre o direito à liberdade e ao

princípio bioético da autonomia e a influência que esses direitos exercem sobre os

pacientes terminais. Discute-se, ainda, a teoria de Ronald Dworkin no tocante à

interação de princípios, regras e valores, e a relação que estes três aspectos

possuem na busca de respostas e soluções para aparentes conflitos entre

princípios constitucionais.

Procura-se demonstrar, ainda, as diferentes classificações

existentes acerca da eutanásia, bem como as convergências e diferenças com

relação à ortotanásia.

Analisa-se também, recentes textos normativos infraconstitucionais,

em especial a nº. 1.085/2006 do Conselho Federal de Medicina, que passou a

determinar, de forma expressa, a permissão do médico em limitar ou suspender

procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal,

acometidos de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou

de seu representante legal. Preocupa-se em apresentar a polêmica surgida na

comunidade jurídica e médica e apresenta-se um posicionamento acerca da

constitucionalidade da Resolução e da ortotanásia.

Por fim, traz-se à reflexão alguns casos reais de pacientes terminais

em outros países e no Brasil, a fim de se analisar, por um lado, qual o tratamento

que é dado ao tema no direito estrangeiro, e por outro, qual tem sido a conduta

adotada por médicos e pacientes brasileiros quando se deparam com o fim da

vida iminente.

ABSTRACT

This dissertation aims at studyi ng ortotanasia according to the

constitutional principles of the right to life and dignity of the human being, with the

intent to reflect on “life” concept and try to show that the life protected by the 1988

Constitution is not any life, but a worthy life.

The text presents a reflection on the right to freedom and the

bioethical principle of autonomy and the influence that such rights exercise over

terminal patients. Further, it is discussed the theory of Ronald Dworkin with regard

to the interaction of principles, rules and values and the relation that these three

aspects have in the search for answers and solutions for apparent conflicts among

constitutional principles.

Furthermore, the different classifications about euthanasia as well as

the convergences and differences with regard to ortotanasia are intended to be

shown.

Recent normative texts below the Constitution are also under

analysis, especially No. 1.085/2006 of t he Medicine Federal Council which

expressly determined the author ization from the physician to restrict or suspend

procedures and treatments extending the life of the terminal patient with a serious

and incurable disease, subject to the will of the person or his/her legal

representative. The concern in this dissertation is to present the debate arisen

amidst the legal and medical communities, with an opinion on the constitutionality

of the Resolution and the ortotanasia.

Finally, some actual cases of termi nal patients in other countries and

in Brazil are presented so as to be analyzed, on the one hand, what is the

treatment given to the subject in foreign law, and on the other hand, which has

been the conduct adopted by Brazilian physi cians and patients when faced with

the imminent end of life.

SUMÁRIO

Introdução

1. A Vida, a Liberdade e a Dignidade no Ordenamento Jurídico

Brasileiro ........................................................................................................

1.1 O princípio constitucional do direito à vida ...........................................

1.1.1 Os princípios jurídicos fundamentais: noção e alcance ............

1.1.2 A vida como direito individual fundamental e a

polêmica em torno de seu marco inicial e final .....................................

1.2 O princípio constitucional do direito à liberdade ...................................

1.2.1 Noção sobre o direito à liberdade e sua relação

com a igualdade ...................................................................................

1.2.3 A autonomia como princípio bioético .........................................

1.3 O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana ...............

1.3.1 Mudança de paradigma: o direito à vida digna ..........................

1.3.2 Direito de morrer com dignidade: a construção da

norma a partir da interpretação do sistema de valores,

princípios e regras: a teoria de Dworkin ...............................................

2. O Problema da Conceituação da Eutanásia “lato sensu” e a

Tentativa de Classificação ...........................................................................

2.1 Ortotanásia, distanásia e mistanásia ....................................................

2.2 Tentativa de classificação: as diferentes “espécies” de eutanásia ......

2.2.1 A eutanásia quanto ao modo de atuação do agente

(ativa e passiva): a relevante distinção entre eutanásia

passiva e ortotanásia ............................................................................

2.2.2 A eutanásia quanto à intenção do agente:

eutanásia de duplo efeito .....................................................................

2.2.3 A eutanásia quanto à vontade do doente/paciente ....................

2.2.4 A eutanásia quanto à finalidade do agente: a classificação

de Jimenez de Asúa .............................................................................

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2.3 Suicídio assistido ..................................................................................

2.4 Aspectos extra-jurídicos da eutanásia: aspecto religioso .....................

3 Eutanásia e Ortotanásia no Direito Estrangeiro .........................................

3.1 Estados Unidos da América e o Polêmico Caso Terri Schiavo ............

3.2 Espanha e a batalha de Ramón Sampedro .........................................

3.3 França e o Pedido de Vincent Humbert ................................................

3.4 Holanda ................................................................................................

4. A Possibilidade da Ortotanásia como Garantia Fundamentada

no Princípio do Direito à Vida Digna ...........................................................

4.1 A interpretação da Resolução nº. 1.805/2006

do Conselho Federal de Medicina ..................................................................

4.2 Ortotanásia: constitucionalidade ou inconstitucionalidade? ................

4.2.1 Análise da esfera infraconstitucional: a ortotanásia

à luz do atual Código Penal brasileiro e os anteprojetos de

1994, 1998 e 1999 ................................................................................

4.2.2 A legalidade e a constitucionalidade da ortotanásia ..................

5 A Ortotanásia como Forma de se Alcançar um Final de

Vida Sereno: Análise de Casos Reais .........................................................

5.1 Em Busca de Um Final Sereno ............................................................

5.2 A recusa de obstinação terapêutica para um bebê de 8 meses,

portador “Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I” – Consagração da

ortotanásia ......................................................................................................

Conclusão .................................................................................................................

Bibliografia ...............................................................................................................

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Anexos

1

INTRODUÇÃO

A bioética tem apresentado uma série de novas realidades e novos

desafios àqueles que se dispõem a estudar o fenômeno jurídico na órbita

constitucional.

Vida, liberdade e dignidade, enquanto direitos fundamentais

protegidos sob o manto da Carta de 1988, têm sido, a todo tempo, chamados a

oferecerem respostas, nem sempre claras, a novas realidades que a evolução da

ciência e da medicina ora apresentam. Aborto de fetos portadores de anencefalia,

possibilidade de pesquisas com células-tronco embrionárias, clonagem humana,

eutanásia, ortotanásia, são alguns temas que estão na pauta de discussão

nacional, dos bancos acadêmicos ao Supremo Tribunal Federal.

São inúmeras as perguntas ainda carentes de respostas

definitivas: afinal, quando começa e quando termina a vida? A vida protegida pela

Constituição de 1988 é qualquer vida humana, em qualquer estágio, em

quaisquer situações?

No tocante à ortotanásia, tema que nos interessa em especial na

presente reflexão, trata-se de medida constitucionalmente possível? Quais suas

implicações e diferenças em relação à eutanásia em seu sentido estrito?

As modernas Cartas Constitucionais possuem como fundamento,

a defesa da dignidade humana, elevando a proteção da vida, da dignidade, da

liberdade e da igualdade como direitos inerentes a todo ser humano. A

Constituição da República Federativa do Brasil, tal como outras constituições

ocidentais contemporâneas, apresentam, de igual forma, amplo repertório no

tocante aos direitos fundamentais e garantias individuais.

Resta saber se a interpretação do chamado superprincípio da

dignidade da pessoa humana, tal como até hoje tem prevalecido, está em

2

consonância com os anseios dos pacientes terminais, ou daqueles que, privados

do gozo de uma vida digna são impedidos – sob o argumento da prevalência da

vida a qualquer custo – de permanecerem na indignidade e no sofrimento.

Os hospitais brasileiros estão lotados de pacientes internados em

Unidades de Terapia Intensiva, acometidos por doenças incuráveis ou em

situações clínicas irreversíveis, sendo a morte uma certeza científica irrefutável.

Presos a farta aparelhagem técnica, fruto do avanço tecnológico galopante,

permanecem dias, meses, anos, presos em uma fria cama de hospital,

aguardando seu fim inevitável.

Será importante analisar casos reais, sejam nacionais ou

estrangeiros, a fim de se verificar como é o processo de tratamento médico, em

que condições são tratados esses pacientes, e tentar precisar em que momento a

vida de alguém deixa de ser digna. Será isso possível?

Na experiência brasileira, tem-se debatido com afinco a Resolução

do Conselho Federal de Medicina nº. 1.085/2006. Publicada em 28 de novembro

de 2006, causou comoção na comunidade jurídica ao estabelecer de forma

objetiva que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e

tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade

grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”.

Trata-se de norma constitucionalmente aceita?

A questão ganhou relevo e impulsionou o Ministério Público

Federal a ingressar com Ação Civil Publica pretendendo, em síntese, revogar

referida resolução, pois, na concepção do parquet, o direito à vida é absoluto e

uma mera resolução não pode ter o condão, mesmo que de forma tangencial, de

relativizar este direito fundamental.

A sociedade, os operadores do Direito, os filósofos e os médicos

se dividem na argumentação: os que defendem a prática da ortotanásia prendem-

se ao argumento de que, na medicina, existem quadros clínicos irreversíveis em

que o paciente, muitas vezes passando por terríveis dores e sofrimentos, almeja a

3

“morte na hora certa”, como é comumente chamada a ortotanásia - como forma

de se livrar do padecimento que se torna viver. Rejeitam o uso de aparato

tecnológico que permite a sobrevida do paciente, quando já não há mais nada a

fazer e a interferência médica muitas vezes só resulta em mais dor e sofrimento.

Os que se opõem à prática da ortotanásia sustentam ser dever do

Estado preservar, a todo custo, a vida humana, que é o bem jurídico supremo. O

poder público estaria obrigado a fomentar o bem-estar dos cidadãos e a evitar

que sejam mortos ou colocados em situações de risco. Eventuais direitos do

paciente estariam, muitas vezes, subordinados aos interesses do Estado, que

obrigaria a adoção de todas as medidas visando ao prolongamento da vida, até

mesmo contra a vontade da pessoa ou de seus familiares.

À luz do direito brasileiro, uma das questões que emergem é a

seguinte: ainda que existam regras específicas sobre o homicídio, poder-se-ia,

diante de casos concretos, proceder a julgamentos com fulcro em princípios

atinentes à situação, a fim de se buscar uma decisão justa, de modo a respeitar a

integridade do Direito, tal como preconiza Dworkin? Vale dizer: há possibilidade

de se construir a norma a partir da interpretação do sistema de valores, princípios

e regras?

Interesses conflitantes estão em xeque: de um lado o princípio da

liberdade, da autonomia; de outro, o princípio da indisponibilidade da vida – ou

inviolabilidade do direito à vida. Mas a vida que se busca e se protege é qualquer

vida? Qual o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana? Será que vida

digna – tal qual aquela defendida em nossa Carta Magna – é aquela segundo a

qual o indivíduo, a despeito de todas as dores e sofrimentos que lhe tenham sido

causados por determinada doença, ainda se mantenha ligado a aparelhos até o

fim? Nessa linha de raciocínio, a vida só deveria prevalecer como direito

fundamental oponível erga omnes enquanto for possível se viver bem. Entende-se

que outros valores deveriam ser repensados a partir do momento em que a saúde

do corpo e da mente já não mais garanta o bem-estar do indivíduo.

4

Não se tem aqui, a pretensão de trazer respostas últimas sobre o

tema, sob pena de, o fazendo, banalizar matéria tão importante. Pretende-se tão

apenas contribuir de alguma forma para o debate da ortotanásia, enquanto tema

central da bioética.

A presente dissertação é um exercício de reflexão que tenta

harmonizar princípios constitucionais, na busca de encontrar alguns caminhos

possíveis para perguntas ainda carentes de respostas.

5

CAPÍTULO 1

A VIDA, A LIBERDADE E A DIGNIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

1.1 O Princípio Constitucional do Direito à Vida

1.1.1 Os princípios constitucionais fundamentais: noção e

alcance

São incontáveis as acepções encontradas para o vocábulo

“princípio”. Desde os dicionários tradicionais, como o Houaiss, a defini-lo como “o

primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou processo; começo,

início; o que serve de base a alguma coisa; causa primeira, raiz, razão;

proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de

conhecimentos; lei de caráter geral com papel fundamental no desenvolvimento

de uma teoria e da qual outras leis podem ser derivadas; proposição lógica

fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio”, até a concepções modernas,

trazidas por ferramentas contemporâneas de pesquisa, como a Wikipédia, a

entender que princípio “pode ser definido como causa primária, ou, o momento,

local ou trecho em que algo tem origem, de uma ação ou de um conhecimento, a

proposição que lhe serve de base, ainda que de modo provisório, e cuja verdade

não é questionada. Sinônimo de início”1.

Aristóteles desdobrou a noção de princípio em sete acepções: ponto

de partida do movimento de algo; ponto de partida de uma ciência; o primeiro

elemento na construção de uma coisa (um navio, ou uma casa, por exemplo), ou

no desenvolvimento de um organismo vivo; aquilo de que se origina algo, como

os pais em relação ao filho, ou a contenda após o insulto; os chefes ou príncipes

nas cidades, assim como os diferentes políticos; as artes ou técnicas, sobretudo

que se sobrepõem às outras, recebendo, por isso, a qualificação de

1 http://pt.wikipedia.org

6

arquitetônicas; o ponto de partida do conhecimento de algo, como as premissas

ou hipóteses, em relação à conclusão de raciocínio ou da pesquisa.2

O elemento comum a todos esses significados, na concepção

aristotélica, é o de princípio ou começo de onde algo provém ou é gerado, ou de

onde emana o conhecimento.

Na idade moderna, enquanto o sentido ontológico e lógico do

vocábulo princípio foi aos poucos sendo abandonado, o seu uso como causa ou

norma de ação tornou-se predominante.

Montesquieu funda suas reflexões políticas na noção de princípio,

como mola mestra do funcionamento dos diferentes sistemas de governo .“Há a

seguinte diferença entre a natureza do governo e o seu princípio: sua natureza é

o que o faz ser o que é, ao passo que o seu princípio, o que o faz agir. Uma é a

sua estrutura particular e a outra, as paixões humanas que o fazem mover-se”. E

acrescenta em nota: “Esta distinção é muito importante, e eu deduzirei dela várias

conseqüências; ela é a chave de uma infinidade de leis”.3

Na seara do direito, os princípios desempenham papel estrutural.

Sobre os princípios jurídicos, De Plácido e Silva assevera que

no sentido jurídico, notadamente no plural, princípio quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa.

E assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica.

Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas.

Princípios jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o alicerce do Direito.

2 ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Leonel Vallandro. Globo, Porto Alegre, 1936, p. 316. 3 MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 104.

7

E, nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos, legalmente instituídos, mas todo o axioma jurídico derivado da cultura jurídica universal. Compreendem, pois, os fundamentos da Ciência Jurídica, onde se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do Direito, que traçam as noções em que se estrutura o próprio Direito.

Assim, nem sempre os princípios se inscrevem nas leis. Mas, porque servem de base ao Direito, são tidos como preceitos fundamentais para a prática do Direito e proteção aos direitos.4

Geraldo Ataliba assevera que “...princípios são linhas mestras, os

grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a

serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos

órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do

querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da

administração e da jurisdição. Por estas não pode ser contrariados; têm que ser

prestigiados até as últimas conseqüências”5.

Na visão de José Afonso da Silva, “a palavra princípio é equívoca.

Aparece a acepção de começo, de início. Norma de princípio (ou disposição de

princípio), por exemplo, significa norma que contém o início ou esquema de um

órgão, entidade ou de programa, como são as normas de princípio institutivo e as

de princípio programático”6. Não é nesse sentido que se acha a palavra princípios

da expressão princípios fundamentais do Título I da Constituição. Princípio aí

exprime a noção de “mandamento nuclear de um sistema”7.

Para o autor, os princípios são ordenações que se irradiam e

imantam os sistemas de normas8, “são núcleos de condensações” nos quais

confluem valores e bens constitucionais. Ou, como observam Gomes Canotilho e

Vital Moreira, “os princípios, que começam por ser a base de normas jurídicas,

4 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico: Rio de Janeiro: Forense, 1961. V3, p. 1220. 5 ATALIBA, Geraldo.Hipótese de Incidência Tributária. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1992. 6 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Melhoramentos, p. 107 e ss.7 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Criação de secretarias municipais, RDP, n. 15, jan/mar 1971 e Curso de direito administrativo. São Paulo: Melhoramentos, p. 450 e 451, onde define o princípio jurídico como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”. 8 Ibidem, p. 92.

8

pode estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-princípio e

constituindo preceitos básicos da organização constitucional”.9

Já Luiz Antônio Rizzato Nunes, entende que os princípios

constitucionais “são verdadeiras vigas mestras, alicerces sobre os quais se

constrói o sistema jurídico. Os princípios constitucionais dão estrutura e coesão

ao edifício jurídico. Assim, devem ser estritamente obedecidos, sob pena de todo

o ordenamento jurídico se corromper”10.

Nessa mesma linha, assevera Gabriel Chalita:

Todo sistema legislativo deve obedecer a princípios que estabeleçam com clareza o tipo de sociedade que se quer construir. Por isso existe uma hierarquia entre essas leis. A Constituição Federal é superior a qualquer legislação infraconstitucional e os seus princípios orientam, norteiam o legislador que resolve inovar o sistema, o executor que precisa de parâmetros para exercer o seu ofício e o julgador que não pode se distanciar do núcleo central do sistema estatal11.

Na ordem constitucional brasileira, os chamados princípios

constitucionais fundamentais representam os pilares do Estado Democrático de

Direito.

É fato, entretanto, que são de natureza variada, e sendo assim, não

é tarefa fácil fixar-lhes um conceito preciso em um enunciado sintético.

Mais uma vez é J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que dão o

norte do conceito:

Os princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a coletividade política e o Estado e enumerar as principais opções político-constitucionais. Revelam a sua importância capital no contexto da constituição e observam que os artigos que os consagram constituem por assim dizer a síntese ou matriz de todas as restantes normas

9 CANOTILHO, J. J. Gomes, e MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 50.10 RIZZATO NUNES, Luiz Antônio. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 37. 11 CHALITA, Gabriel Benedito Issaac. Os dez mandamentos da ética. São Paulo: Nova Fronteira, 2003, p. 110.

9

constitucionais, que àquelas podem ser directa ou indirectamente reconduzidas.12

Por fim, a opinião do constitucionalista Celso Ribeiro Bastos, a ensinar que

Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico. Alcançam os princípios esta meta à proporção que perdem o seu caráter de precisão de conteúdo, isto é, conforme vão perdendo densidade semântica, eles ascendem a uma posição que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que uma norma etabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio perde em carga normativa ganha como força valorativa a espraiar-se por cima de um sem-número de outras normas.13

A partir dos conceitos e reflexões acima destacadas, vê-se que,

embora não seja fácil definir com precisão e síntese o que venha a ser os

chamados “princípios constitucionais fundamentais”, é fato – e quase um

consenso – que constituem o norte de todo o ordenamento jurídico, servindo de

base e referência para aplicação de qualquer norma dentro de um sistema.

A partir da noção de princípios constitucionais fundamentais, pode-

se dar início à análise do principal direito individual fundamental, elevado à

condição de princípio constitucional, dada sua importância enquanto direito

norteador de toda ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito: o

direito à vida.

É verdade que há correntes divergentes, a entender que os direitos

da pessoa humana rigorosamente não seriam princípios, “mas ‘valores supremos’

de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme o preâmbulo

da própria Constituição”14.

Concorda-se em parte com essa opinião. Apesar de se entender

que os direitos da pessoa humana, tal como o direito à vida, são de fato, valores

12 J.J Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. I, p.66.13 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional.São Paulo: Saraiva, p. 143-144.14 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 5ª Ed. São Paulo: Malheiros, p. 28.

10

supremos, isso não significa que não possam constituir, ao mesmo tempo,

princípios constitucionais fundamentais.

1.1.2 A vida como direito individual fundamental e a polêmica

em torno de seu marco inicial e final

Insculpido no caput do art. 5º da Constituição da República

Federativa do Brasil15, dentro do Titulo II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais)

e Capítulo I (Dos Direitos e deveres Individuais e Coletivos), o direito à vida

constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a

Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a

intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses

direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da

pessoa humana16, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o

direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência.

Parece razoavelmente claro que a vida a que se refere e quis

proteger o texto constitucional é a vida humana. Mas o que vem a ser vida?

Na concepção comum é “o estado de atividade funcional, peculiar

aos animais e vegetais; existência; tempo decorrido entre o nascimento e a morte;

origem. Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e

plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantém em

contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo,

o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução e

outras”.17

15 Art. 5º da Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, á igualdade, à segurança, e à propriedade, nos termos seguintes”. 16 De que trataremos em profundidade posteriormente, no item 1.3. 17 BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. MEC; Dicionário básico da língua portuguesa/Aurélio. “Características que têm certos fenômenos de se produzirem ou se regenerarem por si mesmos, ou a totalidade de tais fenômenos. Essa caracterização é aqui dada apenas por ser aquela em torno da qual é mais amplo o acordo entre filósofos e cientistas e a título puramente descritivo, sem que o reconhecimento de uma característica própria dos fenômenos da Vida implique o reconhecimento de um princípio ou de uma causa em si desses fenômenos”.

11

Maria Celeste C. dos Santos assevera que sob o ponto de vista

biológico, o desenvolvimento da vida humana antes de seu aparecimento, até o

fim, constitui um “processo contínuo: o respeito à vida é respeito a todas as

formas de vida humana”18.

Para Alexandre de Moraes, “o direito humano fundamental à vida

deve ser entendido como direito a um nível de vida adequado com a condição

humana, ou seja, direito à alimentação, vestuário, assistência médica-

odontológica, educação, cultura, lazer e demais condições vitais. O Estado deverá

garantir esse direito a um nível de vida adequado com a condição humana

respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa

humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e, ainda, os objetivos

fundamentais da República Federativa do Brasil de construção de uma sociedade

livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando-se a

pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais e

regionais”19.

Quando iniciaria a vida humana? A legislação brasileira como um

todo não apresenta, de forma suficientemente clara, resposta a esta pergunta. A

Constituição de 1988, embora garanta expressa “proteção à vida”, não sinaliza

sobre quando esta começa e termina.

Em geral, tem sido papel dos magistrados, analisando o caso

concreto, determinar se em determinada situação já se poderia ou não falar da

existência de “vida” propriamente dita.

Recentemente, tem-se assistido a polêmicas discussões sobre qual

seria o verdadeiro marco inicial e final da vida humana.

Em 20 de abril de 2007, numa iniciativa inédita, o Supremo Tribunal

Federal realizou audiência pública reunindo 22 especialistas das mais diferentes

18 O equilíbrio do pêndulo. A bioética e a lei. São Paulo: Icone, 1998, p. 152-153. 19 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 176.

12

áreas do conhecimento (médicos, biólogos, sociólogos, antropólogos, juristas etc.)

para que respondessem, entre outras, à seguinte pergunta: “quando começa a

vida e a partir de quando ela deve ser protegida pelo Estado?”.

Durante 7 horas, os 22 especialistas debateram a questão, sem

chegar, entretanto, a um consenso.

O evento aconteceu por iniciativa do Ministro Carlos Ayres Brito,

relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3540 movida pelo antigo

Procurador Geral da República Claudio Fontelles, em que se requeria a

inconstitucionalidade de dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei nº.

11.105/2005), em especial o artigo 5º, relativo às pesquisas relacionadas às

células-tronco embrionárias. Insurgiu-se o nobre jurista contra a permissão de

utilização, para fins de pesquisa e terapia, de células-tronco obtidas de embriões

humanos, produzidos mediante fertilização in vitro, e que não foram transferidos

para o útero materno. A tese central sustentada na ação é a de que a “vida

humana acontece na, e a partir da, fecundação”. Fundado em tal premissa, alega

que a legislação aprovada violaria os preceitos constitucionais que consagram o

direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana.

Analisando com propriedade a questão, o professor Luis Roberto

Barroso assim analisou a questão:

1. As pesquisas com células tronco embrionárias representam uma perspectiva de tratamento eficaz para inúmeras doenças que causam sofrimento e morte de milhões de pessoas. A legislação trata da matéria com moderação e prudência, somente permitindo a utilização de embriões remanescentes dos procedimentos de fertilização in vitro.

2. As células-tronco embrionárias somente podem ser extraídas até o 14º dia após a fertilização, antes do início da formatação do sistema nervoso central ou da existência de qualquer atividade cerebral. De acordo com a maior parte das concepções existentes, ainda não existe vida humana nesse momento. A Lei. 11.105/2005, ademais, veda expressamente a clonagem humana, a engenharia genética e a comercialização de embriões.

3. Não há violação do direito à vida, nem tampouco da dignidade humana, porque embrião não se equipara à pessoa e, antes de ser transferido para o útero materno, não é sequer nascituro. A Lei nº. 11.105/2005 protege, todavia, a dignidade do embrião, impedindo

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sua instrumentalização, ao determinar que só possam ser utilizados em pesquisas embriões inviáveis ou não utilizados no procedimento de fertilização.

4. A questão acerca das pesquisas com células-tronco tem sido debatida em todo o mundo, ensejando visões contrapostas. No Brasil, o Poder legislativo, por votação expressiva, tomou posição na matéria, produzindo disciplina que se harmoniza com mo tratamento dado na maior parte dos países ocidentais. O tem não se situa no espectro dos consensos mínimos protegidos pela Constituição, devendo prevalecer a deliberação.20

A ADIN foi a julgamento em maio de 2008 e por um placar apertado

(6 votos a 5) o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação, decidindo

pelo constitucionalidade do citado artigo 5º da Lei de Biossegurança.

O voto do relator do caso foi emblemático e sua leitura àqueles que

se debruçam sobre a seara da bioética é fundamental21. Mas apesar de histórico,

o julgamento do Supremo Tribunal Federal não definiu, como se esperava, em

que momento começa a vida humana. Se é na fecundação, se é no 14º dia de

gestação, em outro momento de gestação ou no nascimento.

O ministro Celso de Mello em seu voto afirmou que “vários podem

ser os inícios da vida humana, tal seja a opção que se faça por determinada

formulação teórica ou tese”22. Diante disso, os ministros restringiram-se apenas a

concluir que a Constituição brasileira não assegura ao embrião humano mantido

em laboratório a garantia da inviolabilidade à vida e à dignidade.

Outro embate jurídico, ainda pendente de julgamento de mérito pelo

Supremo Tribunal Federal é a constitucionalidade (ou não) de aborto realizado em

fetos portadores de anencefalia.

Trata-se de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

(ADPF) nº. 54, formulada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na

Saúde, através do ilustre advogado Luís Roberto Barroso. O Ministro relator

20 BARROSO, Luís Roberto. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.263. 21 Íntegra do voto do Ministro Carlos Ayres Brito disponível em www.stf.jus.br 22 Íntegra do voto do Ministro Celso de Mello disponível em www.stf.jus.br

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Marco Aurélio Mello, concedeu liminarmente, em 1º de julho de 2004, ad

referendum do Tribunal Pleno, o direito à gestante de optar pela submissão à

operação terapêutica de parto de feto anencéfalo, a partir de laudo médico

confirmatório dessa anomalia. Vale aqui transcrever pequeno trecho do despacho

que concedeu a liminar pleiteada, eis que seus argumentos interessam à presente

reflexão:

Os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza de 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencéfalos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando o período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. (...) A gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é – e ninguém ousa contestar – trata-se de situação concreta que foge à glosa própria do aborto – que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia da vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social.23

Muito embora a decisão liminar ora concedida pelo Ministro Marco

Aurélio Mello tenha sido cassada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, fato é

que suas afirmações e raciocínio lançaram um debate fundamental na ordem

jurídica e social contemporânea ao por em xeque a idolatria que desde sempre se

teve em relação ao direito – “sagrado” - à vida. Além disso, temas como a

possibilidade de se autorizar o aborto em casos de comprovada anencefalia fetal,

trouxe novamente ao debate a polêmica questão sobre o início e o fim da vida.

23 Diário da Justiça, n 147, de 02 de agosto de 2004, p 64/65.

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Ao lado dessas situações que têm provocado discussões

acaloradas, tem-se também a questão da obstinação terapêutica (distanásia)

versus ortotanásia. O avanço tecnológico tornou possível manter uma pessoa

muito doente ou em estágio terminal indefinidamente viva, porém ligada a

aparelhos de sustentação artificial, como a ventilação mecânica. A obstinação

terapêutica (distanásia) se caracteriza por um excesso de medidas terapêuticas

que impõem sofrimento e dor à pessoa doente, cujas ações médicas não são

capazes de modificar o quadro mórbido24. Por outro lado, tem-se a ortotanásia,

entendida como “morte no tempo certo”, e significando a suspensão ou limitação

de tratamento ou suporte terapêutico (que não mais trarão benefício ao paciente

cuja morte é irreversível).25

A obstinação terapêutica é resultado de um ethos irrefletido das

carreiras biomédicas. Os profissionais da saúde são socializados em um ethos

que, erroneamente, associa a morte ao fracasso. O paradoxo dessa associação

moral é que se, por um lado, são os profissionais de saúde os que mais

intensamente lidam com o tema da morte, por outro lado, são também os que

mais resistem a reconhecer a morte como um fato inexorável da existência. Uma

possível explicação para este fenômeno de enfrentamento técnico e ocultamento

moral da morte é a confusão entre sacralidade da vida e santidade da vida26-27. O

direito a se manter vivo é um direito fundamental expresso em nosso

ordenamento e compartilhado por diferentes concepções filosóficas e religiosas.

O pressuposto desse direito é que a existência é um bem individual garantido

publicamente e, em termos éticos, pode ser traduzido pelo princípio da

sacralidade da vida28.

24 PESSINI, Leocir. Eutanásia: porque abreviar a vida? São Paulo: Ed. Loyola, 2004 apud DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.295. 25 Tratar-se-á desses conceitos e suas polêmicas no capítulo seguinte. 26 KUHSE, Helga. Should the Baby Live? The Problem of Handicapped Infants, Cambridge: Ashgate Publishing, 1994. 27 SINGER, Peter e Kuhse. Unsanctifying Human Life: Essays on Etics. London: Blacwell, 2002. 28 DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p.296.

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Débora Diniz explica com clareza referido princípio e sua

contraposição ao chamado princípio da “santidade da vida”:

O princípio da sacralidade da vida assegura o valor moral da existência humana e fundamenta diferentes mecanismos sociais que garantem o direito de estar vivo. Esse é um princípio laico, também presente em diferentes códigos religiosos. Mas o princípio da sacralidade da vida não é o mesmo que o princípio da santidade da vida. Reconhecer o valor moral da existência humana não é o mesmo que supor sua intocabilidade. O princípio da santidade da vida é de fundamento dogmático e religioso, pois pressupõe o caráter heterônomo da vida humana. Em um estado laico como é o Brasil o que está expresso em nosso ordenamento jurídico público é o princípio da sacralidade da vida humana e não o princípio da santidade da vida humana. O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável por razões religiosas. A socialização dos profissionais de saúde confunde sacralidade da vida com santidade da vida, o que acaba por sobrepor valores privados e metafísicos sobre o sentido da existência e da morte a princípios coletivos como o da sacralidade da vida e o da autonomia.29

Nenhuma tomada de posição mostra-se adequada se não se partir

de uma consideração básica: vida e morte constituem um processo contínuo,

gradual e complexo, não um episódio isolado e, como processo, tem um

desenrolar encadeado no tempo. Assim sendo, é evidente que o conceito de vida

ou de morte se insere num dado momento desse desenvolvimento biológico, mas

aí não se cuida mais de um conceito de biologia ou de medicina, e sim de algo

que ultrapassa esses limites e chama à colação a filosofia, a ética, a lei e a

própria sociedade. Diego Gracia, citado por Carlos Gherardi, salienta, com

propriedade, que

a morte é um fato cultural, humano. Tanto o critério da morte cardiopulmonar, como o da morte cerebral e o da morte cortical são construções culturais, mas que não se identificam diretamente com a morte natural. Não há morte natural. Toda morte é cultural. E os critérios da morte também o são. É o homem quem diz o que é a vida e o que é a morte. E pode ir mudando sua definição desses termos com o transcurso do tempo. Dito de outro modo: o problema da morte é um tema sempre aberto. É inútil pretender encerrá-lo de uma vez por todas. A única coisa que se pode exigir é que explicitemos as razões das opções e que atuemos com suma prudência. Os critérios da morte podem, devem e têm que ser racionais e prudentes; não podem nunca aspirar que sejam certos.30

29 Ob. Cit., p. 296-297. 30 GHERARDI, Carlos. La muerte cerebral: uma mirada critica y reflexiva, em GARAY, Oscar. Laresponsabilidad Professional de los medicios. Bioética, ética, jurídica civil y penal, Buenos Aires, La Ley, 2001 e http://www.medicoecuador.com , p 10.

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Desde o informe publicado pelo Comitê da Escola de Medicina de

Harvard em 1968 que o coração deixou de ser o órgão central da vida e a falta de

batimentos cardíacos, a representação da morte. Elegeu-se, em substituição, o

cérebro, de forma que a morte passou a ser definida como a abolição total da

função cerebral (whole brain criterion), o que “importa a perda da função

integradora do organismo como um todo, por parte do sistema nervoso central e

inclui o comprometimento de todo o encéfalo, do tronco encefálico e de outras

funções neocorticais”31.

A partir da nova definição de morte, estabeleceu-se um limite na

assistência dada a pacientes propiciando um inquestionável progresso na área

dos transplantes. Na prática, adotou-se a retirada do suporte vital respiratório no

tocante a determinado pacientes em estado crítico, desde o momento em que foi

dado como morto, do ponto de vista cerebral. Entre 1968 e os anos iniciais do

terceiro milênio, as novas tecnologias, na área da biomedicina, demonstraram, de

forma inconteste, que o conceito de morte cerebral ou encefálica não possuía o

nível de segurança desejável e, mais que isso, dava azo a ponderáveis dúvidas

sobre sua legitimidade. Comprovaram-se casos em que, com “a manutenção da

respiração mecânica em pacientes com diagnóstico firme de morte cerebral,

persistiam sinais vitais (circulação, respiração, diurese, concepção materna,

regulação hormonal) durante meses e até anos”32, de sorte que não encontra

sustentação, na atualidade, “uma justificação biológica da morte cerebral sob o

argumento da perda irreversível da função cerebral completa”33. Desfez-se,

então, a plena identificação da morte com a morte cerebral. Essa, em verdade,

serve apenas como um diagnóstico clínico ou mais precisamente, como um

critério a partir do qual se admite a abstenção ou a interrupção de suporte vital

para efeito de transplante. Não é, nem nunca será, um método seguro de

confirmação da morte. “O avanço no conhecimento neurofisiológico não permitiu

encontrar um exame que delimite uma fronteira nítida entre a vida e a morte

31 MARTINEZ, Stella Maris. La incorporación de La reflexión bioética a las decisiones judiciales: um puente al futuro. Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2000, p. 663. 32 GHERARDI, Carlos. La muerte cerebral. Um permanente debate. Reflexiones sobre um simpósio internacional, Cuadernos de Bioética, n. 0. Buenos Aires: Ad Hoc, 1996, p 132. 33 Idem. La muerte cerebral: uma mirada critica y reflexiva, ob. Cit., p. 10.

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neurológica (funções corticais e troncais) de sorte que os testes diagnósticos de

morte cerebral tendem com o passar dos anos a ser mais clínicos do que

instrumentais”34.

Muitos autores fazem distinção entre morte cerebral e encefálica,

entendendo como conceitos distintos. Na lição de Maria Elisa Villas-Bôas

é comum ocorrer a confusão entre as expressões morte cerebral e morte encefálica. É mister, porém, distinguir tecnicamente as expressões: por “cérebro”, a ciência médica entende apenas a porção superior do sistema nervoso central, cuja abertura externa, o córtex, concentra as funções consideradas nobres e caracterizadoras da espécie humana. Já a expressão morte encefálica, denominação atual e mais adequada, abarca também o tronco encefálico e cerebelo, lembrando-se que é no tronco encefálico, situado abaixo do cérebro propriamente dito, que se sediam os controles vitais vegetativos mais primários para a subsistência do organismo em suas atividades basais a exemplo do bulbo raquidiano, onde se encontra o centro respiratório.35

Pelos conceitos, afirmações a análises feitas até então, conclui-se

que, com relação ao “fim da vida” há um entendimento mais sedimentado do que

com relação ao “início da vida”. Conforme se asseverou anteriormente, nem a

ciência, nem o direito, conseguiram chegar a um consenso com relação ao início

da vida. Com relação ao término, contudo, a ciência tem dado melhores

respostas, o que ajuda o operador do direito na análise de casos concretos e ao

magistrado autorizar ou coibir que pacientes em estados terminais sejam

considerados “vivos” ou “mortos”.

A par dessa discussão sobre a primazia do direito à vida, há outros

princípios constitucionais que têm fundamental relevância na análise da

possibilidade (ou autorização) constitucional em relação à ortotanásia. Trata-se

dos princípios do direito à liberdade e da igualdade, que se passa a analisar.

34 GHERARDI, Carlos. Ob cit. O autor relata ainda a controvérsia ocorrida na Inglaterra entre médicos de terapia intensiva e anestesias sobre a aplicação ou não da anestesia ao doador (morto cerebral) para efetuar-se a ablação de órgãos (p. 4). 35 VILLAS-BOAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203.

19

1.2 O Princípio Constitucional do Direito à Liberdade

1.2.1 Noção sobre o direito à liberdade e sua relação com a

igualdade

A liberdade e a igualdade encontram-se enraizadas na consideração

do homem como pessoa. Tanto a liberdade quanto a igualdade servem de

fundamento à democracia e é certo dizer que um regime é mais ou menos

democrático pela maior ou menor liberdade que têm os cidadãos e pela maior ou

menos igualdade existente entre eles.

Ao tratar desses valores, Sartori afirma que “a igualdade pressupõe

a liberdade”, o que não significa dizer que um princípio seja mais importante que o

outro. A consideração feita pelo referido autor é no sentido de indicação de uma

ligação procedimental: a materialização da liberdade no tempo e de fato antes da

igualdade. Sartori ensina que:

A liberdade vem primeiro, então, com base na simples consideração de que a igualdade sem liberdade é algo que não pode sequer ser reivindicado, Existe, claro está, uma igualdade que precede a liberdade e não tem relação com ela; é a igualdade que existe entre escravos, entre indivíduos que são iguais por nada possuírem ou por nada valerem, ou por ambos, iguais em sua completa sujeição. No entanto, a igualdade dos escravos ou dos súditos escravizados não é uma vitória da igualdade e não tem nada a ver, assim espero, com as igualdades que prezamos. É difícil não reconhecer, então, que a liberdade vem primeiro no sentido de que quem não é livre nem seque tem voz na questão36.

Contudo, o mesmo autor alerta para o fato de que quando um

estado de liberdade abre espaço para a igualdade, o primeiro princípio passa à

desvantagem, eis que o apelo de igualdade torna-se mais forte. Segundo Sartori,

a razão disso é que:

Em primeiro lugar, a idéia de igualdade é mais acessível, pois é possível atribuir a ela um significado mais tangível (mesmo que seja enganoso), ao passo que à liberdade, não. Em segundo lugar, a igualdade resulta na concessão de benefícios tangíveis, benefícios materiais, ao passo que os benefícios da liberdade são, enquanto são desfrutados, intangíveis37.

36 SARTORI,Giovanni. A teoria da democracia revisitada. São Paulo: Ática, 1994, v. 2., p. 133. 37 Idem, p. 134.

20

Sartori indaga quando a igualdade realiza a liberdade. Para ele, a

fórmula a ser adotada é aquela que concede “oportunidades iguais para se tornar

desigual”. É que:

Para aquele que busca a liberdade, há tanta injustiça em impor uniformidade àquilo que é diferente, quanto em aceitar desigualdades hereditárias. Equalizar ‘todos em tudo’ é criar um situação tão saturada de privilégios quanto a que aceita desigualdade em tudo. Seu critério é que é preciso opor-se tanto às igualdades injustificadas quanto às desigualdades injustificadas, e exatamente pela mesma razão38.

A menção e proteção da igualdade ganhou destaque principalmente

na modernidade, no contexto da Revolução Francesa. A Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão, de 1979, já afirmava, em seu artigo 1º, que os homens

permanecem livres e iguais em direito.

Outro texto que deu destaque à proteção jurídica da igualdade entre

as pessoas foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que já

em seu artigo I preceitua: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em

dignidades e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em

relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

José Luiz Quadros de Magalhães, estudando a igualdade jurídica,

ensina que

Da mesma forma que as Declarações de direitos afirmam que os homens nascem livres, também afirmam que estes nascem iguais em direitos. Esta igualdade é a base sólida sobre a qual se sustentarão as liberdades individuais. Não haverá jamais a liberdade onde não haja igualdade (...). A igualdade a partir do pensamento de Rousseau e dos filósofos do século XVIII será inseparável da liberdade, pois será condição fundamental para a realização desta39.

Os ecos dos princípios contidos na Declaração surtiram efeito em

praticamente todos os textos constitucionais das sociedades ocidentais.

38 Idem, p. 135. 39 MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, t. 1, p. 89.

21

No Brasil não poderia ser diferente. Eis que no caput do artigo 5º da

carta Magna de 1988, diz-se que

Todos são iguais perante as lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade à igualdade, à segurança e à propriedade. (grifo nosso)

Também no preâmbulo dessa mesma constituição assegura “o

exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar,

o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma

sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”.

O princípio da igualdade, além de base dos direitos individuais,

fundamenta todos os direitos humanos, no momento em que vários são os

preceitos constitucionais que tratam do assunto, podendo-se citar o artigo 3º, IV;

artigo 5º, I, XLII; incisos XXX, XXXI e XXXII do artigo 7º e artigo 14, todos da

Constituição da República.

Mas a garantia da igualdade, muitas vezes, tem como conseqüência

o tratamento desigual em relação às pessoas, assunto que é abordado por

diversos doutrinadores pátrios, dentre eles, Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

O princípio da isonomia oferece na sua aplicação à vida inúmeras e sérias dificuldades. De fato, conduziria a inomináveis injustiças se importasse em tratamento igual aos que se acham em desigualdade de situações. A justiça que proclama tratamento igual para os iguais pressupõe tratamento desigual dos desiguais. Ora, a necessidade de desigualar os homens em certos momentos para estabelecer no plano do fundamental a sua igualdade cria problemas delicados que nem sempre a razão humana resolve adequadamente (...). O legislador há de estabelecer tratamento desigual para situações desiguais, mas se tratar desigualmente situações que não são desiguais, o que sucede quando beneficia desarrazoadamente determinadas categorias, incide em inconstitucionalidade40.

Eis aí um dos pontos fundamentais desta questão: a idéia de

tratamento igual aos iguais, tratando desigualmente os desiguais, entendendo que

aquele que está enfermo, em situação debilitada em demais, sem perspectiva de

40 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 581.

22

recuperação que lhe devolva a sadia qualidade de vida41, pode ter o mesmo

tratamento daquele que desfruta de uma vida plena de dignidade?

À pessoa humana são reconhecidos direitos individuais, sociais,

econômicos e políticos, próprios de um Estado de Direito. São direitos protegidos

tanto no campo internacional - pela Declaração Universal dos Direitos do Homem,

pelo Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, pelo Pacto Internacional dos

Direitos Econômicos Sociais e Culturais – bem como internamente,

precipuamente pela Constituição Federal. Pergunta-se, contudo: de que adianta o

reconhecimento de todos esses direitos se, para muitos, não há possibilidade de

desfrutá-los? Como garantir o princípio da igualdade entre pessoas tão distintas,

especificamente para o caso deste trabalho, entre pessoas sãs e sadias, que têm

a vida atrelada à saúde do corpo e da mente, e aquelas que sofrem as

conseqüências de doenças várias, tendo a vida, nesses casos, se transformado

em dever de sofrimento?

O ponto de convergência entre os dois aspectos, de modo a garantir

igualdade, é que a vida só deve prevalecer como direito fundamental oponível

erga omnes quando for possível viver bem. No momento em que a saúde do

corpo não mais conseguir assegurar o bem-estar da vida que se encontra nele, há

de serem considerados outros direitos, sob pena de infringência ao princípio da

igualdade. É que a vida passará a ser dever para uns e direitos para outros. E a

confirmação desta afirmação é resultado de situações verídicas, que, ao contrário

do que pode parecer, vêm acontecendo de maneira freqüente, principalmente

devido ao grande avanço das ciências biotecnológicas.

A propósito do acima mencionado, é oportuno apresentar trecho

escrito pela Dra. Elisabeth Kubler-Ross, psiquiatra americana, que se dedicou,

por longos anos, ao estudo da morte e ao processo de morrer e que foi acometida

por doença grave que a deixou na cama, minando-lhe o exercício de suas

faculdades mais rudimentares:

41 Conforme previsto no art. 225 da Constituição Federal.

23

A morte em si é uma experiência positiva e maravilhosa, mas o processo de morrer, quando prolongado como o meu, é um pesadelo. Vai minando as nossas faculdades, em especial a paciência, a resistência e a equanimidade. Durante todo o ano de 1996, lutei com as dores constantes e as limitações impostas por minha paralisia. Dependendo de cuidados alheios vinte e quatro horas por dia. Se toca a campainha da porta, não posso atender. E a privacidade? Pertence ao passado. Depois de quinze anos de total independência, é uma lição difícil de aprender. As pessoas entram e saem. Às vezes minha casa parece a Grand Central Station. Outras vezes, fica quieta demais. Que tipo de vida é essa? Uma vida desgraçada42.

Será que a garantia do princípio da igualdade, em casos como esse,

não dependeria da liberdade de escolha de cada um, após acompanhamento

médico e psicoterápico, de acordo com pensamentos e ideologias próprias? No

caso acima citado, a Dra. Elisabeth manifestou-se, em seu livro, contrariamente a

Jack Kevorkian (o famoso Dr. Morte), sob a alegação de que o mesmo tira a vida

das pessoas prematuramente, apenas porque elas estão sentindo dores ou

desconforto. Segundo as convicções da médica, as pessoas não podem ser

privadas de suas últimas lições.

De outro lado, há aqueles que discordam da linha de raciocínio

apresentada pela Dra. Elisabeth. Será que para eles a escolha não garantiria a

igualdade de tratamento, já que têm outras concepções acerca da dignidade da

vida? Vê-se a necessidade de abordar a questão relativa a outro princípio

constitucional, o da liberdade.

Discorrer sobre liberdade não é tarefa fácil, vista ser tema poroso,

que admite uma vasta gama de interpretações. Assim, o emprego do termo

sempre reflete uma teoria específica, sendo certo que a liberdade,

incomensurável, exerce, sem qualquer dúvida, um enorme fascínio em todos os

contextos em que é tratada.

O vocábulo latino líber, do qual deriva “livre”, teve a princípio o

sentido de “pessoa na qual o espírito de procriação se acha naturalmente ativo”,

donde a possibilidade de se chamar líber ao jovem, quando, ao alcançar a

maturidade sexual, se incorpora como homem capaz de assumir

42 KUBLER-ROSS, Elisabeth. A roda da vida. Trad. Maria Luiza Newsland Silveira. 2. ed. Rio de Janeiro: GMT, 1998, p.308.

24

responsabilidades. Recebe, então, a toga virilis ou toga libera. Nesse sentido, o

homem livre é aquele que não é escravo.43

Ser livre é estar disponível para fazer algo por si mesmo. Nesse

sentido, a liberdade afigura-se como a possibilidade de decidir e, ao decidir,

autodeterminar-se. Mas a liberdade pressupõe responsabilidades do indivíduo

para consigo mesmo e ante a comunidade. Os romanos a definiam:

A liberdade é a faculdade natural de fazer cada um o que deseja, se a violência ou o direito lhe não proíbe. Libertas est naturalis facultas ejus quod cuique facere libet, nisi si quid vi aut jure prohibetur.44

Na visão de Gerson Bóson, são duas as maneiras de atuação da

liberdade: “a liberdade natural da existência na marcha da sua temporalização

primordial – a vida em busca de si mesma, construindo-se – e a liberdade

absoluta do espírito”45.

A primeira se desenvolve no campo da natureza, sendo certo que o

homem age através de instintos, emoções e sentimentos. A segunda, a liberdade

absoluta do espírito, tem seu desenvolvimento pela lógica da sua projeção

intencional. E, a partir daí, o espírito elabora as suas idéias, nelas estando

incluída a idéia do Direito. Na opinião de Bóson:

É graças a este seu modo de ser livre que o espírito pode elaborar idéias, dentre as quais as idéias éticas e nestas a idéia do Direito, oferecidas às forças impulsivas da existência, juntamente com os valores jurídicos a fim de que possam realizar, na liberdade de sua temporalização natural, e segundo as formas oferecidas, as valorações do seu interesse – as valorações necessárias à construção da vida – sem os riscos precipitados da morte, os riscos do nada46.

O homem elabora a idéia do Direito através da liberdade absoluta do

espírito e as formas normadas conduzem o comportamento do homem. A título de

exemplo, uma determinada norma proíbe o homicídio; outra limita a validade

desta mesma norma pelo fato de que exclui a condenação de um homem que

agiu em legítima defesa, e assim por diante.

43 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Transplante de órgãos e eutanásia. São Paulo: Saraiva, 1992, p; 5. 44 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. III, p. 84. 45 BOSON, Gerson de Britto Mello. Filosofia do direito. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 280. 46 Idem, p. 281.

25

A liberdade é o fundamento do direito em Kant47, sendo traduzida

em fundamento transcendental, porquanto não pode ser demonstrada por não se

dar na experiência. Somente sob o pressuposto da liberdade é que são possíveis

a moral e o direito.

A moral constitui a legislação interna do homem, na forma de

imperativos categóricos48, enquanto o direito traduz-se na legislação externa,

reguladora do convívio das liberdades individuais através da coação. A partir daí,

tem-se o conceito de direito que é, portanto, a liberdade exteriorizada.

Para Kant, há um único direito natural: a liberdade. O homem deve

sair do estado de natureza com a finalidade de constituir o estado civil, por ser

livre. A liberdade é conditio sine qua non do direito, diversamente da coação, esta

última vista como garantidora do convívio dos arbítrios, dando eficácia ao direito

(conditio per quam).

Ainda segundo Kant, a liberdade é um fim em si mesma, e o direito

aparece como meio capaz de tornar possível o convívio das vontades mediante

uma lei universal de liberdade.

Para Joaquim Carlos Salgado:

Nisto se mostra a importância de Kant: ter sido o pensador que, pela primeira vez, voltou todo o interesse de sua investigação filosófica para a questão da liberdade, enquanto exigência racional da possibilidade da eticidade do homem. Exatamente por isso permanece a atualidade de Kant: porque ainda não foi possível construir uma sociedade racional ou livre. As perguntas fundamentais de sua filosofia do direito ainda

47 Outro é o entendimento do professor Edgar da Mata Machado. Segundo o ilustre mestre, “é freqüente a afirmação de que, para Kant, o fundamento do direito reside na liberdade. Nada mais falso. A conciliação das liberdades não passa de um princípio formal apriorístico. Tudo está em saber como se faz, como se obtém dita conciliação, como se move, se motiva a ação humana na ordem jurídica, como se realiza a lei universal do direito: para o filósofo prussiano só há um meio de realizar-se, de concretizar-se semelhante lei: a coação física, a força, que, em estágio de mais estrita organização será exercida pelo estado”. MATA MACHADO, Edgar. Elementos de teoria geral do direito. 4. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995., p. 109. 48 “Os imperativos categóricos, ao contrário dos hipotéticos, declaram a ação como objetivamente válida sem intenção de qualquer finalidade e valem como princípio apodítico (necessário-prático). O imperativo categórico é, pois, o mandamento da moralidade, que traz consigo a necessidade incondicionada de obediência, mesmo contra as inclinações. São necessários para o homem que, pertencente ao mundo sensível, pode agir em desacordo com a lei universal”, GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 64.

26

perduram: ‘como é possível uma sociedade racional’? ou ‘como é possível uma sociedade livre’?49

Para se entender a ética kantiana, mister se faz pressupor que o

homem é livre e a liberdade vincula o conteúdo do direito.

Segundo Maria Celeste Cordeiro dos Santos, “quando Kant diz que

o fim (a suprema lex) do Estado é a liberdade, entende por tal a liberdade

individual, ou, usando uma contraposição hoje habitual, a liberdade a frente do

estado, a liberdade no Estado”50.

E continua dizendo que:

O ideal de paz que aspira Kant há de alcançar-se mediante a extensão às relações entre estados da constituição legal própria das relações entre indivíduos. Coincide com o ideal da extensão e reforço da liberdade civil, isto é, da liberdade que o direito garanta, em contraposição à liberdade brutal e selvagem do estado de natureza51.

A conceituação mais genérica de liberdade, como atributo do

homem – indivíduo e também ser social, verte, não raro, em duas direções em

que, de um lado, é explicada como a não-sujeição do arbítrio humano ao universo

de circunstâncias e causalidades em que se encontra imersa a pessoa, em si

mesma, e em suas relações; de outro lado, explicam-se os caminhos percorridos

pela escolha humana como não sendo livres, mas balizados ou orientados pela

sanção, pela pena ou por uma recompensa ou quaisquer outros valores que,

existentes no homem ou extrínsecos a ele, impossibilitam, simplesmente por

existirem, a ocorrência de desvinculo, de irresponsabilidade, de liberdade pura e

não, meramente, de intenções orientadas.

Para Hans Kelsen, a ciência jurídica não é uma ciência do “ser” e

não descreve fatos, mas sim uma ciência normativa, ou seja, aquela que

49 SALGADO,K Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 18. 50 SANTOS, 1992, p. 35. 51 Ibidem, p. 36.

27

prescreve normas, através do princípio da imputação – as normas têm caráter

coercitivo52.

Fazendo uso da imputação, o jurista, referindo-se à liberdade do

homem, o faz de forma diversa dos conceitos acima mencionados, apresentando

a idéia de que o que caracteriza a liberdade do homem é o fato de que à sua

conduta corresponda uma conseqüência, ou seja, por se imputar uma pena, uma

recompensa ou uma sanção a um proceder humano, por este motivo mesmo é

que ele é livre.

Portanto, para descrever seu objeto, a ciência jurídica formula

regras de direito, através da norma. E esta norma é o sentido que se dá a um ou

a muitos atos que os homens cumprem no espaço e no tempo,e aos quais se

denomina costume, lei, sentença, ato administrativo etc.

Nas palavras de Kelsen, “não se imputa algo ao homem porque ele

é livre, mas ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo”53.

A liberdade sobre o corpo encontraria co-respectiva imputação? O

livre dispor do corpo existe por que se lhe proíbe algo?

Eis aí a exaustão do modelo kelseniano de liberdade. Na esfera

individual, o homem é livre para dispor de seu corpo, não porque se lhe impute a

proibição ou sanção. É que o sujeito de direito seria livre, mas como não se pune

sequer a forma tentada de suicídio, a sanção não seria a causa eficiente.

Confundidos o sujeito e o objeto do direito, prejudicada a liberdade concertada no

direito subjetivo, que, assim, deixa de ser a única expressão de faculdade ou

poder de ação conforme a norma.

Está-se diante de uma encruzilhada, nascida do conflito de

interesses na dimensão individual (ou de interesses em conflito): o corpo humano

52 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à ciência do direito – temas. Trad. Moisés Nilve. 15 ed. Buenos Aires.: Universitária de Buenos Aires, 1977, p. 140. 53 KELSEN, 1977, p. 148.

28

é um só e há de satisfazer a uma de duas necessidades: a liberdade individual,

egoísta ou altruísta, que consulta ao jusnaturalismo; ou a liberdade social,

coletiva, atrativa ou repulsiva, que vem do positivismo.

A este propósito, há que se trazer à baila novamente as palavras de

Gerson Bóson, citado por Maria de Fátima Freire Sá:

Inventou-se uma controvérsia equívoca entre o Direito Natural e o que, especificamente, chamam de Direito Positivo. E, não raro, os que procuram conhecer os seus lances se deparam com ridículas conclusões de um desses direitos negando o outro. Para negar o que dizem ser o Direito Positivo, normas legisladas pelo estado, chamam-no de Direito Natural, apelidam-no de Direito Ideal, aspiração, quando não o confundem com o próprio valor-justiça.54

Certo é que a dicotomia “direito natural – direito positivo” encontra-

se enfraquecida. Em se tratando de um Estado Democrático de Direito, a

necessidade da ordem jurídica é indiscutível, sendo ela a responsável pelas

garantias individuais e sociais estabelecidas pelo direito positivo. É que em nome

da vida e da liberdade – valores invocados como naturais – muitos abusos foram

cometidos ao longo da história, o que hoje afigura-se inconcebível.55

De qualquer sorte, a “questão da liberdade” é tema central da

bioética. Foi essa a conclusão do médico e professor da faculdade de medicina

da Unesp/Botucatu, Dr. William Saad Hossne, que publicou na internet

interessante trabalho em que procura demonstrar que a Bioética não é

simplesmente a ética com nova roupagem, embora não deixe de ser “na essência

e no fundo, à ética (e das) ciências da vida, da saúde e do meio ambiente”,

54 BOSON, Gerson de Britto Mello apud SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer – eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.93. 55 O tema ‘liberdade’, como há foi dito, é denso e profundo, não havendo qualquer pretensão de nossa parte em esgotar a matéria, mas tão somente buscar embasamento para as proposições que serão feitas ao final desta reflexão. Não obstante, mister se faz a transcrição da conceituação feita por Bobbio sobre a liberdade positiva e negativa: “A liberdade negativa é uma qualificação da ação; a liberdade positiva é uma qualificação da vontade. Quando digo que sou livre no primeiro sentido, quero dizer que uma determinada ação minha não é obstaculizada e , portanto, posso realizá-la; quando digo que sou livre no segundo sentido, quero dizer que o meu querer é livre, ou seja, não é determinado pelo querer do outro, ou sendo, mais geral, por forças estranhas ao meu próprio querer. Mais do que de liberdade negativa e positiva, seria talvez mais apropriado falar de liberdade de agir e liberdade de querer, entendendo-se pela primeira, ação não impedida ou não forçada, e, pela segunda, precisamente a referência á ausência de (...) em ambas as definições serve para explicar, melhor do que a qualificação negativa e positiva, por que tanto a linguagem comum como a linguagem técnica empregam o mesmo termo para as duas diferentes acepções”. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 52.

29

conceito que, entretanto considera insuficiente sem menção a seus diversos

desdobramentos, dos quais os principais seriam:

A Bioética não é mais apenas a análise e a discussão dos dilemas éticos (feita por médicos) relacionados aos avanços da biomedicina. Ela abrange os dilemas de avanços, sim, e também do ‘cotidiano’ (expressão feliz criada por Berlinguer) das ciências da vida, da saúde e do meio ambiente.

A Bioética, enquanto ética, se preocupa com a reflexão crítica sobre valores; um juízo sobre valores diante dos dilemas. Nesse sentido, o advento da Bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção entre moral e ética. A moral diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada sociedade. Daí a origem da palavra moral. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita. Ao passo que a ética é um juízo de valores – é um processo ativo que vem de ‘dentro de cada um de nós para fora’, ao contrário de valores morais que vem ‘de fora para dentro’ de cada um. A ética exige um juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica, cada um de nós vais pôr em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e, também, os valores morais.

A Bioética é ética. Nesse sentido, não se pode dela esperar uma padronização de valores – ela exige uma reflexão sobre os mesmos e, como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há Bioética sem liberdade. Liberdade para quê? Para se poder fazer opção, por mais ‘angustiante’ que possa ser’.56 (grifo nosso)

1.2.2 A autonomia como princípio bioético

Entre as mais distintas correntes que se debruçam ao estudo da

Bioética, acredita-se que a mais aceita seja o Principialismo57, basicamente

refletido na obra “Principles os Biomedical Ethics”58, em que os autores (Tom

Beauchamp e James Childress) apontam alguns princípios básicos que devem

ser levados em conta quando da abordagem de um paciente e nas decisões a

serem tomadas em relação à sua vida. Entre esses princípios está o da

“autonomia”, estreitamente relacionado ao princípio da liberdade.

56 Disponível em <www.comciencia.br>. Acesso em 25.6.2006. 57 Além do principialismo, outros modelos se prestam ao estudo da bioética, a exemplo do modelo casuístico de Jonsen e Toulmin (1988), do modelo libertário ou autonomista de Engelhardt, do modelo do cuidado (dito por isso um modelo feminista), da “bioética dura” de que fala Volnei Garrafa, entre outras correntes. Para um aprofundamento da questão, cf. ARAÚJO, Antônio Fpabio Medrado de. Elementos para a Construção de uma Bioética Fundada no Amor de Amizade. 2003. Dissertação de Mestrado em Ciências da Família – Pontifícia Universidade Lateranense de Roma/Pontifício Instituto João Paulo II (Seção Brasileira). Salvador, 2003. 58 Citado por VILLAS BÔAS, Maria Elisa, 2005, p. 115.

30

A expressão autonomia advém da junção das palavras auto (próprio)

e nomos (norma, regra, lei etc.), relacionando-se com a capacidade de

autodeterminação do indivíduo. Por esse princípio, o paciente é tomado por

alguém apto a decidir acerca de seu próprio corpo e da conveniência de se

submeter ou não a determinados tratamentos, conforme seus valores pessoais e

dentro dos limites legais, após o devido esclarecimento por parte do médico que o

auxilia. A autonomia tem, portanto, íntima ligação com a noção de liberdade e

legalidade, uma vez que o enfermo não estará obrigado a fazer algo ou a

consentir que se lhe faça, se não há lei que o obrigue, podendo autogerir-se

livremente dentro desse espaço juridicamente permitido.

A autonomia resulta da própria deferência à dignidade da pessoa59.

Ela se opõe ao paternalismo médico, vigente até o século passado (ou seja, à

premissa de que o paciente é obrigado a sujeitar-se a tudo o que o médico

determinar). Representa o reconhecimento do protagonismo do paciente na

decisão e na assunção de condutas a ele pertinentes. Na autonomia se incluem,

além da liberdade, outras noções, consagradas pela evolução dos direitos

humanos e da deontologia médica, a exemplo do respeito à privacidade e do

direito à confidência, aspectos intimamente relacionados. Violar a autonomia,

segundo Beauchamp e Childress60, em consonância com o pensamento de Kant,

é tratar a pessoa como meio e não como um fim em si mesma.

Luís Salvador de Miranda Sá Júnior distingue autonomia

(autodeterminação) de autarcia (auto-suficiência) e os aponta como sendo “os

dois vetores essenciais do conteúdo significativo da expressão liberdade, que

constitui a essência da idéia de independência na linguagem comum”61. Embora

nem sempre o paciente possa conservar sua autarcia, por limitações físicas,

passando a depender de outros para seu cuidado, sua autonomia deve ser

respeitada, sempre que haja competência para tanto.

59 Conforme será analisado no item seguinte. 60 BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p. 137. 61 SÁ JR. Luís Salvador de Miranda. Autonomia, Autarcia e Consulta Médica. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte Actas do VII Seminário Nacional do Conselho nacional de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 2001, p. 33-57.

31

A expressão de conteúdo ético competência relaciona-se de modo

imperfeito à expressão jurídica capacidade, uma vez que a competência

relaciona-se à potencialidade fática de autodeterminar-se em dadas situações,

enquanto a capacidade legal segue orientações bem mais objetivas. Pode haver

coincidência entre esses conceitos, como em caso de incapacidade

superveniente, decorrente de patologia, mas se observa particular distinção no

que tange ao paciente menor. No Brasil, para fins de amparo legal à conduta

médica, tem-se tendido a dar prevalência à capacidade jurídica, em detrimento da

teoria do menor maduro, adotada em alguns países europeus e nos Estados

Unidos da América, também chamada maioridade sanitária.62

Por essa teoria – indicada pela Associação Americana de Pediatria

desde a década de 80 – o adolescente deve ter sua competência reconhecida e

sua autonomia respeitada sempre que, em caráter pessoal, for considerado apto

a compreender os efeitos de sua decisão, embora não tenha alcançado a

maioridade legal63. É possível verificar alguma influência dessa corrente no

Código de Ética Médica brasileiro, quando, em seu artigo 103, veda ao médico

revelar segredo profissional referente a paciente menor, mesmo a seu

representante, se o menor tiver “capacidade de avaliar seu problema e de

conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não

revelação possa acarretar danos ao paciente”.

A norma inserida no Código de Ética Médica além de ter raízes na

chamada teoria do menor maduro ou maioridade sanitária, possui irrefutável

abrigo no princípio constitucional do direito à intimidade e vida privada64,

62 VILLAS-BÔAS, 2005, p. 119-120. 63 Cf. a respeito RODRIGUES, João Vaz. O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico Português: Elementos para o Estudo da Manifestação da Vontade do Paciente. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 202 e SS. Em 1998, a 50ª Assembléia Geral da Associação Médica Mundical, ocorrida em Ottawa, Canadá, sobre os “Direitos de Cuidados da Saúde da Criança” consagrou, em seu princípio 9, que o paciente criança deve ter sua vontade respeitada, nos limites de sua possibilidade de compreensão, devendo ser informada dos procedimentos a serem realizados e obtido seu consentimento, se considerada “madura”, a juízo do médico que a acompanha. 64 Já tivemos a oportunidade de escrever sobre o assunto em trabalho intitulado “A intimidade e a vida privada da criança e do adolescente”, em monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), sob orientação do Professor Paulo de Barros Carvalho, em 2003.

32

insculpidos no art. 5º, inciso X da Lei Fundamental: “são invioláveis a intimidade, a

vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à

indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A regra, contudo, no país, é que, em se tratando de menores de

idade, como nos demais casos de paciente incapaz, instaure-se a chamada

autonomia por representação, em que se lhes nomeia um representante, ao qual

caberá decidir sobre as condutas a serem adotadas, após o devido

esclarecimento médico. Em geral, supõe-se serem os pais os melhores reflexos

da realidade cultural em que a criança ou o adolescente vive e, portanto, os mais

propensos a saber como a própria criança ou adolescentes, se pudesse, decidiria

dentro daquele contexto.

Essa presunção pode ser desconsiderada nos casos em que existe

divergência importante entre a postura dos pais ou representantes e o que

parece, numa avaliação razoável, ser mais benéfico para o incapaz. Nessas

hipóteses, diante da discrepância incontornável e crucial entre a opinião da

equipe médica e da família, colocando em risco a integridade do paciente,

costuma-se recorrer à via judicial para que se efetue a decisão. Não se trata aqui

do chamado estado de necessidade, em que o médico prescinde mesmo de

autorização familiar ou judicial, inclusive por falta de tempo para tanto, a fim de

salvar a vida do enfermo. Fala-se, in casu, de situações e que a necessidade se

verifica com alguma folga de tempo, quando a discussão detalhada com a família

termina por resultar no impasse. Nesses casos, a Justiça brasileira tem tendido a

suplantar a autonomia por representação decorrente do pátrio poder em nome da

beneficência, ainda que não o diga nestes termos65.

Sendo a autonomia, a liberdade e a própria vida, direitos decorrentes

da própria deferência à dignidade humana, mister a análise desse princípio

constitucional: a dignidade da pessoa humana.

65 Essa foi a solução adotada, por exemplo, na Ação Cautelar Inominada n. 782/02, em que o Juiz da 1ª Vara da infância e da Juventude de Salvador/Bahia, Dr. Emílio Salomão Resedá, autorizou liminarmente, em 14 de junho de 2002, que se realizasse necessária (mas não emergencial) transfusão de sangue em favor de um menor, suprindo o consentimento dos genitores, que se tinham manifestado em contrário ao procedimento, por razões religiosas.

33

1.3 O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

Princípio norteador de todo o ordenamento constitucional é o da

dignidade da pessoa humana. Não é a toa que constitui um dos fundamentos da

República Federativa do Brasil, conforme atesta o artigo 1º da Carta Magna, in

verbis:

Artigo 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos: (...); III – a dignidade da pessoa humana.

E esse fundamento funciona como princípio maior para a

interpretação de todos os direitos e garantias conferidos às pessoas no Texto

Constitucional66.

De um modo geral, a proteção à dignidade humana tal como se

observa nos ordenamentos jurídicos atuais, ganhou força após as atrocidades

cometidas pelo homem na 2ª Guerra Mundial. Foi a partir de eventos como o

holocausto, a perseguição aos judeus, ciganos, negros, homossexuais, marcados

por regimes totalitários como o nazismo e o fascismo, que houve uma

preocupação de se outorgar ao homem à máxima proteção à sua vida e à sua

dignidade. Assim, a única condição para que qualquer indivíduo passasse a ter

direito à dignidade, é o fato dele ser pessoa humana.

Foi essa a orientação contida na Declaração Universal dos Direitos

Humanos promulgada em 1948. Diz o preâmbulo do texto:

Considerando que os povos das nações Unidas reafirmaram, na carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, (...) A Assembléia geral proclama a presente Declaração universal dos Direitos Humanos como o ideal

66 O §7º do art. 226 da Constituição Federal também se refere expressamente à dignidade: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.

34

comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações (...). (grifo nosso)

E o artigo 1º é enfático:

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas ás outras com espírito de fraternidade. (grifo nosso)

Nesse sentido, cabe lembrar que a lógica do Direito dos Direitos

Humanos é uma lógica material, inspirada no valor da dignidade humana. Nas

palavras de Flávia Piovesan, “a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a

concepção contemporânea de direitos humanos, acolhe a dignidade humana

como valor a iluminar o universo de direitos”. E acrescenta:

A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a roupagem do positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana”67.

É fato que foi a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos

de 1948, numa realidade pós-segunda guerra, que a dignidade humana ganhou

status de norma supranacional, a ser respeitada universalmente por todas as

nações e rincões do mundo.

No âmbito do Direito Constitucional ocidental, percebe-se a

elaboração de textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada

carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana. Esta será a marca

das Constituições européias do Pós-Guerra. “Observa-se, desde logo, que, na

experiência brasileira e mesmo latino-americana, a abertura das Constituições a

princípios, e a incorporação do valor da dignidade humana demarcarão a feição

das Constituições promulgadas ao longo do processo de democratização política

– até porque tal feição seria incompatível com a vigência de regimes militares

ditatoriais. A respeito, basta acenar à Constituição Brasileira de 1988, em

67 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, o princípio da dignidade humana e a constituição brasileira de 1988. São Paulo: RT, Ano 94. v. 833, mar. 2005, p. 41-53.

35

particular à previsão inédita de princípios fundamentais, dentre eles o princípio da

dignidade da pessoa humana”68.

É claro perceber que o texto constitucional brasileiro de 1988 sofreu

grande influência da Declaração Universal e das constituições européias. E da

forma como foi inserida na Carta Magna, influenciou toda a gama de direitos

contidos no ordenamento constitucional. “Conclui-se, por conta do estágio em que

se encontra o constitucionalismo brasileiro, motivado que fora pelas

transformações experimentadas pelo contemporâneo Direito Constitucional

ocidental, destacando-se nesse contexto as Cartas alemã, portuguesa e

espanhola, que não há possibilidade de se estudar e aplicar o Direito

Constitucional sem que se confira prevalência à tônica principiológica que este

detém, com especial realce ao princípio da dignidade humana – princípio que

nutre todo o sistema jurídico”69.

A dignidade da pessoa humana “constitui um valor que atrai a

realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões e,

como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade

desses direitos, o que significa dignificar o homem, é ela que se revela como o

seu valor supremo, o valor que a dimensiona e humaniza”70.

A dignidade humana simboliza um verdadeiro superprincípio

constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo,

dotando-lhe especial racionalidade, unidade e sentido71.

Fábio Konder Comparato destaca a importância da dignidade

humana como supremo modelo ético:

(...) Essa teoria medieval nos permite compreender em sua plenitude o contraste entre dignidade transcendente da pessoa humana, enquanto supremo modelo da vida ética, e a individualidade pessoal de cada ser humano, com todas as suas limitações e deficiências. O paradigma da

68 PIOVESAN, mar. 2005, p. 47. 69 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.393. 70 SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo. Abr. Jun 1998, Renovar, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 89-94. 71 PIOVESAN, 2003, p. 393.

36

pessoa humana reúne em si a totalidade dos valores; ela é o supremo critério axiológico a orientar a vida de cada um de nós. Ora, os valores éticos não são visualizados pelo homem uma vez por todas e completamente, mas descobertos pouco a pouco, no curso da História. A pessoa é um modelo, ao mesmo tempo transcendente e imanente à vida humana, um modelo que se perfaz indefinidamente e se concretiza, sem cessar, no desenvolvimento das sucessivas etapas históricas. Ao contrário da noção estóica de natureza, que existe na base ou origem de tudo e não Judá nunca, a concepção dos valores evolui e aponta claramente para o objetivo de constante e ilimitado aperfeiçoamento do ser humano72.

Já Gabriel Chalita, em sua obra “Os dez mandamentos da Ética”,

ensina a verdadeira dimensão do princípio da dignidade da pessoa humana no

ordenamento jurídico brasileiro:

A constituição brasileira tem como superprincípio a dignidade da pessoa humana. Todo e qualquer outro princípio se submete a esse. Toda e qualquer legislação tem de levar em conta essa opção. A dignidade é aparentemente abstrata. Não se trata de uma norma que se explica por si mesma. Mas contém em seu significado tudo aquilo que pode sonhar um Estado. Que todos os seus filhos sejam dignos, que sejam tratados pelo princípio da eqüidade. Que não exista desrespeito aos direitos e garantias fundamentais como a vida e a liberdade. Que se diminuam as desigualdades sociais. Que não haja preconceito ou discriminação. Que todos possam ter acesso à educação, á saúde, ao meio ambiente equilibrado e assim sucessivamente. Esse é o sentido da justiça que conduz à felicidade. Do verdadeiro direito. Não daquele que burocratiza as relações por meio da exacerbação do cumprimento legal. A lei não pode ser cega sob o ponto de vista de se distanciar do conceito de justiça. Mesmo porque o ser humano é heterogêneo e as ações precisam ser analisadas à luz desses princípios maiores. Prender um sertanejo que tira uma lasca de árvore para fazer o chá de sua mulher com base na legislação ambiental é desconhecer a dignidade da pessoa humana. Despejar uma analfabeta que reside em uma casa há 52 anos, com a justificativa de que o comodato pode ser denunciado a qualquer momento é de igual forma não entender de direito. Exigir laudos e mais laudos psiquiátricos de um adolescente interno sob o regime do Estatuto da Criança e do Adolescente, pela descrença, de sua possibilidade de recuperação, é estar longe do sonho de transformar a atuação de quem faz a justiça em uma justa ação73.

Vê-se, pelos ensinamentos do ilustre professor, que a noção do

princípio da dignidade da pessoa humana está intimamente ligado ao conceito e à

efetividade da justiça. E é neste afã de se fazer “justiça”, que o direito brasileiro

contemporâneo tem apresentado interpretações mais próximas dos princípios

72 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.481. 73 CHALITA, Gabriel Benedito Issaac. Os dez mandamentos da ética. São Paulo: Nova Fronteira, 2003, p. 111.

37

constitucionais do que a simples regras de conduta representadas em leis

infraconstitucionais74. Está-se presenciando, já há certo tempo, uma mudança de

se entender, interpretar e aplicar o direito. Abandonando-se aos poucos a

codificação exagerada de todas as condutas humanas (dizendo o que é proibido e

permitido em toda e qualquer situação), para um direito verdadeiramente

principiológico, em que os princípios jurídicos, que outrora serviam apenas para

lançar luzes abstratas e genéricas ao ordenamento, agora possuem aplicação

efetiva, imediata e direta a um sem número de situações.

1.3.1 Mudança de paradigma: o direito à vida digna

Conforme se discutiu anteriormente, a evolução da medicina e os

constantes progressos biotecnológicos deram vazão a várias discussões e o certo

é que há forte corrente que abandonou a idéia de pensar a vida como o simples

respirar, não somente como garantia de sobrevida, ou como garantia da “batida

de um coração”. A discussão que permeia a garantia do direito à vida versa, não

raro, em relação à sua qualidade e dignidade, como construção diária. Daí a

pergunta recorrente: pacientes terminais têm o direito de morrer em paz e com

dignidade? Ou devem sobreviver, mesmo que vegetativamente, até a parada

respiratória ou a morte encefálica? Afinal como se poderia definir “vida digna” à

luz do Direito, notadamente à luz da Constituição da República?

Para se chegar ao paradigma da dignidade da vida, acredita-se

necessário proceder a uma breve abordagem histórica sobre o direito do indivíduo

ao próprio corpo. E é nas disposições inseridas na Lei das XII Tábuas – de

importância histórica indiscutível – que se pode encontrar as disposições mais

antigas acerca do tratamento dispensado ao ser humano.

Àquela época, aproximadamente em 462 a.C., o valor do indivíduo

era reconhecido pelos créditos que possuía, além do poder de que dispunha, e a

74 Será analisado com mais profundidade, no item 1.3.2, a questão da construção da norma a partir da interpretação do sistema de valores, princípios e regras e como essa nova visão tem alterado a aplicação do direito.

38

comprovação de tal assertiva está em algumas disposições da lei

supramencionada que, a par de outros dispositivos, permitia a morte e o

acorrentamento de seres humanos, ao claro objetivo de que fosse feita justiça,

nas situações em que devedores não cumprissem o compromisso de saldar suas

dívidas.

Bem posteriores à Lei das XII Tábuas, têm-se vários fatos ocorridos,

que levam à conclusão de que se dava, em diversos ordenamentos jurídicos,

preeminência ao “bem comum”, “função social”, “felicidade de muitos”, sobre os

bens individuais. Na Índia antiga, por exemplo, os incuráveis de doenças

contagiosas eram conduzidos por seus parentes às margens do Ganges,

asfixiados com barro na boca e nariz e arrojados ao rio sagrado. Napoleão

Bonaparte, ao ser interrogado na Ilha de Elba, sobre a atitude de ordenar que

fosse extirpada a vida de enfermos de peste durante a campanha do Egito,

afirmou que não poderia colocar em risco a vida dos demais homens do seu

exército e determinou que o médico subministrasse aos doentes fortes doses de

ópio.

Ultrapassadas essas fases, manifestou-se a prevalência do

indivíduo, entrevista desde a Revolução Francesa, com o interregno socialista, de

submissão ao interesse comum e agora se volta à origem individualista, com

enfoque de solidariedade. Embora já não mais seja permitida a disposição da vida

das diversas maneiras como aquelas já demonstradas, no Brasil, somente a

Constituição Federal de 1988 garante o direito à vida a qualquer pessoa

individual, como visto.

Vida, no texto constitucional, “não será considerada apenas no seu

sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria

orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza

significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma

incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo

(processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal),

39

transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade,

deixando, então, de ser vida para ser morte”75.

A questão de vida e dignidade provoca debates intermináveis na

bioética tanto quando a discussão é sobre o início da vida quando à chamada

“terminalidade da vida”.

A professora Débora Guzzo expõe, em recente texto, o dilema com

clareza:

O direito à vida está previsto no caput do art. 5º da Constituição brasileira, como integrante do rol de garantias e direitos fundamentais do homem. Sem ele praticamente não há como se falar em quaisquer outros direitos, por faltar o essencial, ou seja, o sujeito de direito. Ainda que se cogite o homem, após sua morte, continue merecendo proteção legal de sua esfera jurídica, basicamente a relativa a seus direitos de personalidade (direitos autorais, direito à imagem, etc.) – direitos esses que serão protegidos por seus herdeiros - , sem uma vida prévia, isto é, sua existência, ele logicamente não desfrutará de qualquer proteção. Assim, a vida em si deve existir e ser preservada acima de tudo. Mas o ponto aqui diz respeito não só ao direito à vida, mas o direito à vidadigna, que amplia aquele conceito. Não basta viver. É necessário que haja dignidade nesse viver, o que implica, em primeiro lugar, que o mínimo existencial esteja disponível. Em segundo, que o ser humano possa autodeterminar-se, de forma plena, acerca de todas as suas potências, desenhando com a máxima precisão, e dentro do que lhe é permitido, ao longo de sua existência, o livre desenvolvimento de sua personalidade.76

As novas questões suscitadas nesse limiar de século XXI referentes

aos seres humanos são, entre outras: Independentemente de sua qualidade, a

vida humana deve ser sempre preservada? Há de serem empregados todos os

recursos biotecnológicos para prolongar um pouco mais a vida de um paciente

terminal? Há de serem utilizados processos terapêuticos cujos efeitos são mais

nocivos do que os efeitos do mal a curar? É lícito sedar a dor se de tal ato a

conseqüência será o encurtamento da vida? O que fazer com os nascituros

portadores de doenças congênitas do sistema nervoso central, cujas vidas, se

75 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 200. 76 GOZZO, Débora. Diagnósticos pré-Implantatório e responsabilidade Civil à luz dos direitos fundamentaisin MARTINS-COSTA, Judith. MÖLLER, Letícia Ludwig. Org. Bioética e Responsabilidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 403.

40

mantidas obstinadamente, significarão a condenação ao sofrimento permanente

ou a estado vegetativo de vida?

Tem-se que não se pode privilegiar apenas a dimensão biológica da

vida humana, negligenciando a qualidade de vida do indivíduo. A obstinação em

prolongar o mais possível o funcionamento do organismo de pacientes terminais

não deve mais encontrar guarida no Estado Democrático de Direito, simplesmente

porque o preço dessa obstinação é uma gama indizível de sofrimentos gratuitos,

seja para o enfermo, seja para os familiares deste. O ser humano tem outras

dimensões77 que não somente a biológica, de forma a aceitar o critério da

qualidade de vida significa estar a serviço não só da vida, mas também da

pessoa. O prolongamento da vida somente pode ser justificado se oferecer às

pessoas algum benefício, ainda assim, se esse benefício não ferir a dignidade do

viver e do morrer.

A liberdade e a dignidade são valores intrínsecos à vida, de modo

que essa última não deve ser considerada bem supremo e absoluto, acima dos

dois primeiros valores, sob pena de o amor natural pela vida se transformar em

idolatria. E a conseqüência do culto idólatra à vida é a luta, a todo custo, contra a

morte.

Entende-se que a vida deva ser encarada no seu ocaso, para que

seja devolvida a dignidade perdida. São muitos os doentes que se encontram

jogados em hospitais, a um sofrimento em perspectiva, muitos em terapias

77 Afonso Garcia Rubio descreve a pessoa e suas dimensões fundamentais e ensina : “O específico da pessoa aparece bem destacado quando se articulam adequadamente os dois aspectos básicos constitutivos do ser pessoal: a interiorização ou imanência e a abertura ou transcendência.” E continua: “A dimensão interiorização ou imanência: A pessoa deve estar centrada em si própria, orientada para a própria interioridade. Esta dimensão pode ser desdobrada da seguinte maneira: Autodepressão: a pessoa se autopertence, possui autonomia própria no nível ôntico (...). Conseqüência: a pessoa não é propriedade de outro. Qualquer tipo de escravidão é um atentado direto contra a dignidade da pessoa. Liberdade e responsabilidade: a pessoa é capaz de escolher determinados valores em si mesma, a partir de si mesma (...). Conseqüência: repugna à dignidade da pessoa todo tipo de manipulação. O respeito real à liberdade e responsabilidade concretas de cada pessoa é indispensável para o crescimento da humanização do homem. Perseidade: a pessoa tem em si mesma a sua própria finalidade. No seu agir, a pessoa, acima de tudo, se auto-realiza como ser pessoal. Conseqüência: a pessoa não é um objeto ou um instrumento para ser usado e depois deixado de lado. Tratar a pessoa como mero instrumento para uma finalidade exterior à própria pessoa é outro grave atentado contra sua dignidade”. RUBIO, Afonso Garcia. Unidade na pluralidade. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 249.

41

intensivas e em emergências. O desdobramento disso? Uma parafernália

tecnológica que os prolonga e os acrescenta.

A dignidade ou indignidade de uma pessoa num leito de hospital que

passa por sofrimentos, dor, angústia, desesperança, pode não ser quantificável,

até porque varia de indivíduo para indivíduo, conforme o grau de tolerabilidade.

Um desejo de vida pode tornar-se, no dia seguinte, uma vontade de morrer. Além

disso, deve ser considerada a hipótese em que a consciência do doente mostra-

se inapta a manifestar vontade.

A visão ética tradicional está baseada no entendimento de que toda

vida humana é sagrada, não podendo ser violada em nenhuma hipótese. Nem

poderia ser diferente, pois essa noção constitui verdadeira herança de uma época

em que no mudo intelectual imperava o sentimento religioso, as normas da Igreja

(notadamente a Católica). A proibição de matar na tradição judaico-cristã ainda é

fundamento da ética contemporânea, tendo o aspecto religioso, assim, grande

influência na discussão sobre a possibilidade de eutanásia e mesmo da

ortotanásia.

De acordo com a tradição judaico-cristã o direito de morrer com

dignidade é parte constitutiva do próprio direito à vida. Assim, a idéia de se

recorrer à eutanásia e ao suicídio assistido é rechaçada pela Igreja, na medida

em que o conceito de morrer com dignidade adquire um significado radicalmente

oposto no sentido religioso. O fenômeno da morte traria implícita uma certa

liberdade do indivíduo, ante a própria inevitabilidade do processo.

É evidente, portanto, que o ato de morrer não cabe ao âmbito de

nossa liberdade, pois é um ato inevitável neste sentido. A questão que se coloca

é a da abreviação do sofrimento, formulada por quem não tem mais esperanças

de “retornar à vida”, muito menos a uma “vida digna”.

De outro lado, o “furor terapêutico, prática desejada por médicos

ofuscados pelas novas máquinas de reanimação às quais têm acesso e por

42

famílias e amigos de doentes que recusam a morte”78, não pode servir de motivo

s afastar-se a reflexão sobre a dignidade da morte.

Faz-se necessário, assim, levantar uma reflexão sobre a utilidade da

manutenção de um estado de saúde crítico, aflitivo, degenerativo, para aquele

que não mais voltará a viver, só por uma opção técnica ou, por assim dizer, por

força de um imperativo tecnológico?

Defende-se, aqui, o entendimento de que não é porque a ciência

põe à disposição do médico computadores e maquinários de alta tecnologia, que

simulam todas as funções do corpo humano, que se deixaria de pensar no lado

humano do ser, da sua personalidade, da sua individualidade, para tratar o corpo

como simples aglomerado de matéria.

É nesse sentido e nesse contexto que se defende que a vida que o

texto constitucional busca proteger e preservar é a vida digna, a sadia qualidade

de vida das pessoas. E é fato que aquele que está num estágio terminal, numa

situação limite entre a vida e morte, este indivíduo carece de dignidade, não está

vivendo, está tentando “sobre” viver muitas vezes através de aparelhos.

Já dizia Cesare Bonesana, o “Marquês de Beccaria”:

É por uma idéia falsa de utilidade que se procura submeter uma infinidade de seres sensíveis à singularidades simétrica que pode receber matéria bruta e sem vida; que se deixam de considerar as razões presentes, únicas capazes de impressionar o espírito humano de modo forte e durável, para utilizar razões remotas, cuja impressão é fraca e passageira, a não ser que uma grande força de imaginação, que apenas se encontra num pequeno número de homens, supra o afastamento do objeto, conservando-o sob relações que o aumentam e o aproximam79.

Seria desejável que a ética contemporânea, ao refletir sobre a

dignidade da pessoa humana, não deixasse de considerar o sofrimento, na

questão da vida e da morte, e dentro dos parâmetros modernos.

78 MEYER, Phillippe. A responsabilidade médica (L’irresonsabilité médicale). Tradução de Maria Leonor Loureiro. São Paulo: Editora UNESP, 2000, P. 119. 79 BONESANA, Cesare (Marquês de Beccaria). Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus editora, 1983, p.86.

43

A dor deve ser destacada, retirada do seu sentido religioso de

fortificação espiritual para encontrar um significado à vida, para que venha a ter

valor por si mesma, quando comparada a outros valores de igual relevância.

Diz-se que a qualidade de vida não pode ter maior valor do que a

vida em si e a autonomia do enfermo não pode ser absoluta quanto à sua vida

mesma. Tampouco a existência do sofrimento por si só justifica autorização para

se proceder com a eutanásia (em qualquer de suas modalidades), muito menos

ao suicídio assistido, categorias que serão analisadas adiante. Entretanto, deve-

se refletir se o tratamento impingido a um corpo, já sem vida “efetiva”, tratado

como se fosse um objeto, não está violando a dignidade humana da pessoa

enferma.

Além disso, merece consideração o princípio moral da razão

proporcionada. Descobriu-se que frente ao valor da vida humana cercado pela

morte, o único valor que pode causar um conflito ético é o de morrer com

dignidade80.

Ecoam na doutrina, entretanto, vozes que defendem outros meios de

se minimizar o sofrimento do enfermo: utilizando-se da “medicina paliativa”.

Em linhas gerais, a chamada medicina paliativa é introduzida

quando o paciente já não mais responde ao tratamento curativo, e assume

importância, neste quadro, quanto ao controle da dor e dos demais sintomas,

como também dos problemas psicológicos, sociais e espirituais. Tem por

finalidade melhorar a qualidade de vida do paciente durante o processo de

morrer81.

80 REICHER, Regina Maria. Eutanásia na visão do garantismo penal. Dissertação de Mestrado apresentada no programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). 2005, p. 38.81 Nos termos do Comitê de expertos da OMS pode-se resumir os objetivos dos cuidados paliativos em: reafirmar a importância da vida, considerando a morte um processo normal do ser humano; estabelecer um processo que não acelere a chegada da morte; proporcionar alívio da dor e dos sintomas angustiantes; integrar os aspectos psicológios e espirituais do tratamento do paciente; oferecer apoio para ajudar os pacientes a levar uma vida mais ativa possível durante o processo; oferecer um sistema de apoio à família para que possa enfrentar a enfermidade do paciente. Conclusões extraídas de: RODRIGUEZ, Paulina Taboada; UGARTE, Alejandra Rodríguez; BERTUCCI, Magda Vercellino. Dimension ética del morrir. Pontifícia Universidad

44

A medicina contemporânea está constantemente submetida à

tentação de considerar que é eticamente exigível tudo o que for tecnicamente

possível. Essa exigência ética a que se tem denominado comumente como

imperativo tecnológico ou obstinação terapêutica (“encarnizamiento

terapêutico”82), pode representar uma violação moral do paciente, na medida em

que o médico, no afã de aplicar toda a técnica disponível, pode estar investindo

em determinados casos extremos, num corpo já “sem vida”, e sem regresso.

É cediço que a expressão “morrer com dignidade” tem levantado

sérias reflexões e polêmicas na sociedade contemporânea.

Na visão de Luís Roberto Barroso, “há um debate que vai marcar a

nossa e as próximas gerações, que é acerca da bioética e do biodireito, os limites

da intervenção humana e médica, da engenharia genética dos processos

patológicos e na criação humana. Na ortotanásia e na eutanásia, o debate

filosófico é sobre a dignidade da pessoa humana e a sacralidade da vida. Quando

a filosofia e o direito protegem a vida, é preciso saber: protegem qualquer vida,

qualquer qualidade de vida e a qualquer preço? Acho que não. Além de

determinado limite de sofrimento, de perda da integridade física, uma pessoa

deve ter o direito de escolher entre a vida e a morte. Mas a morte integra um

espaço desconhecido, e nunca haverá como superar o tipo de debate filosófico

que ela envolve. Sempre que as pessoas estejam diante de uma matéria que

envolva o que se denomina desacordo moral razoável, ou seja, quando pensam

de modo radicalmente oposto, o papel do Estado e do direito deve ser o de

respeitar a autonomia da vontade de cada um”83.

Católica de Chile – Facultad de Medicina. Revista de estúdios Médicos Humanísticos Ars Médica nº 2. Disponível em :<www.escuela.med.puc.cl/publ/ArsMedica>. 82 YUNTA, Eduardo Rodríguez. La eutanásia y suas argumetnos. Reflexión crítica. Chile. Pontifícia Universidad Católica de Chile – Facultad de Medicina. Revista de estúdios Médicos Humanísticos Ars Médica nº 2. Disponível em :<www.escuela.med.puc.cl/publ/ArsMedica>. 83 Trecho de entrevista com o constitucionalista Luís Roberto Barroso publicada no jornal Folha de S. Paulo, no dia 04 de dezembro de 2006.

45

A questão da “moderna” eutanásia e da ortotanásia84 faz surgir a

necessidade de se repensar o sentido da vida e da morte, na busca de uma nova

ética, mais compatível com o conjunto de problemas que a sociedade

contemporânea enfrenta atualmente, fruto dos avanços médicos e tecnológicos

identificados sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

A clássica visão da proteção ao direito à vida também deverá sofrer

mudanças. Trata-se de um novo paradigma em que a vida a ser protegida e

tutelada é a “vida digna”, em todos os seus aspectos e em todas as suas fases.

1.3.2 Direito de morrer com dignidade: a construção da norma

a partir da interpretação do sistema de valores, princípios e

regras: a teoria de Dworkin

Como já foi dito na parte introdutória do presente trabalho, não se

pretende apresentar soluções últimas para o julgamento e decisões sobre a

eutanásia e a ortotanásia. Objetiva-se, sim, trazer à baila alternativas

convincentes que possam servir de alavanca a referidas decisões, as quais se

afiguram tão intrincadas quanto multidisciplinares.

Para que se atinja maior clareza na compreensão dos princípios

constitucionais fundamentais, imprescindível é o estudo das concepções,

sobretudo, de Ronald Dworkin e Robert Alexy, pioneiros que foram na tratativa

dos princípios que ora se impõem como a pertinente, em vista dos princípios

constitucionais aqui abordados, com destaque para o princípio da dignidade

humana.

A partir de seu clássico “Taking Rights Seriously”85, publicado 1977

(1ª edição), o professor americano Ronald Dworkin, em crítica ao que nomeou de

“modelo de regras”, pontificou que a “norma” (norm) em seu sentido lato, alberga

como espécies suas tanto “regras” (rules), quanto os “princípios” (principles). Isso

84 As distinções entre os dois termos serão analisados do capítulo seguinte. 85 DWORKIN, Ronald. Harvard University Press, Cambridge, Massachusets, 1997.

46

porque, em sua concepção, com a qual se concorda, dentro do esquema das

normas, a regra segue o sistema do “tudo-ou-nada” (all or nothing fashion), sendo

que a sua incidência ou não a cada caso concreto liga-se puramente a uma

questão de vigência. Com isso, a incidência de uma dada regra ao caso concreto,

por si, exclui a de outras, que não se amoldam perfeitamente àquela situação.

Com os princípios, por outro lado, normas que também ele são, a dimensão é já

de valor, de peso, donde a incidência de um deles não necessariamente afasta a

incidência de outro86.

Explica Piovesan, que “por tal diversidade, é que se solidifica a

noção de que enquanto a convivência de regras é antinômica, a de princípios é

necessariamente conflitual; enquanto as regras se auto-excluem, os princípios

coexistem; enquanto no modelo estrito das regras, há relação de exclusão total de

uma, em face da incidência de uma outra, com os princípios ocorre algo diverso,

pois que se configura um balanceamento, uma harmonização entre ambos, um

juízo de ponderação”87.

De sua parte, Roberto Alexy, em seu “Teoria de los Direitos

Fundamentales” não só confirmou a lição de Dworkin, corroborando o aspecto

deontológico dos princípios, como também contribuiu para a diferenciação destes,

em face dos valores. Assim, num primeiro momento: “tanto las reglas como los

pricipios son normas porque ambos dicen lo que debe ser. Ambos pueden ser

formulados com La ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la

permisión y La prohibición. Los principios, al igual que las reglas, son razones

para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de um tiop muy

diferente. Las distinción entre reglas y princípios es pues uma distinción entre dos

tipo de normas” 88.

Habermas89 afirma que Dworkin, através da Teoria do Direito,

oferece opções convincentes para falhas apresentadas pela hermenêutica, pelo

86 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, p. 382. 87 Ob cit., p.383. 88 ALEXY, Robert. Teoria de los direitos fundamentales. Centro de estúdios Constitucionales: Madrid, 1997. 89 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I, p. 315.

47

realismo e também pelo positivismo jurídico, no julgamento de questões. É que

Dworkin chama atenção para o fato de que, nos processos judiciais, três tipos de

questões fatalmente vêm à tona: questões de fato (o que ocorreu?), questões de

direito (qual a lei aplicável ao caso?) e questões ligadas à moralidade (qual o

procedimento justo ou correto a ser tomado?)90.

Lembra o autor que a maioria dos advogados e juízes não divergem

apenas de forma empírica sobre qual lei a ser aplicada ao caso concreto. Na

verdade, há muitas divergências quanto ao fundamento dessa lei, ou seja, seu

sentido. Assim, a lei não é mero fato, mas sim objeto de interpretação. O direito é

conceito interpretativo. Os operadores do direito divergem sobre qual a sua

melhor interpretação e não quanto aos critérios semânticos para seu uso.

Feitas essas considerações, há que se dizer que Dworkin afirma que

as concepções sobre o que seja o direito sempre procuram responder três

questões básicas: justifica-se o elo entre direito e coerção? Se tal sentido existe,

qual é ele? Que noção de coerência com decisões precedentes é mais

apropriada?

Criticando o pragmatismo e o convencionalismo, Dworkin apresenta

uma alternativa - o direito como integridade – meio lúcido para a racionalidade da

tutela jurisdicional. Uma decisão é justa (ou seja, respeita a integridade do direito)

se fornece a resposta correta (mesmo que esta não se baseie na estrita

legalidade) para o caso.

Assim, a tarefa consiste em encontrar uma norma, prima facie, que

melhor se adapte, de acordo com todos os pontos de vista relevantes, à situação

prevista, do modo mais completo possível, afastando-se a compreensão dos

princípios como mandados de otimização.

O direito como integridade pressupõe uma personificação da

comunidade ou do Estado. Este deve ser concebido como agente moral que, da

90 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad, Jedderson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 5.

48

mesma forma que os indivíduos, tem suas próprias convicções. Obviamente,

Dworkin não faz tal afirmação no sentido metafísico. O que ele demonstra é que

uma comunidade tem seus princípios que diferem daqueles da maioria dos

indivíduos dessa mesma comunidade. A comunidade torna-se uma espécie de

entidade, distinta dos seres reais que a compõem.

Mas o que seriam esses princípios e qual seria o seu conteúdo? O

conteúdo desses princípios é a moral que transcende as diversas morais

individuais, por isso trata-se de moral objetiva. Daí a concepção de Dworkin do

ordenamento jurídico como sistema aberto de regras e princípios. Estes últimos

têm o poder de impor deveres e criar direitos, devendo ser aplicados

deontologicamente. Entendimento contrário a este, ou seja, o direito visto como

sistema fechado de regras enfrenta alguns problemas. Regras são aplicadas na

base do tudo ou nada. No caso de conflitos, como resolver qual regra a ser

aplicada?

Para Dworkin, os direitos indisponíveis manifestam caráter

deontológico que formam um peso maior que os bens coletivos ou objetivos

políticos.

O certo é que, diante deste entendimento, o juiz da comunidade de

princípios possui tarefa difícil a desempenhar. Segundo o autor, a decisão deve

partir do caso concreto e, através de processo reconstrutivo, atingir alto grau de

abstração de forma a revelar o princípio referente ao caso. As regras devem ser

interpretadas à luz de princípios. E mais, podem ser afastadas se não atenderem

ao princípio referente à situação. Todo caso é um “hard case”, único e irrepetível,

só havendo uma decisão correta a ser aplicada.

Flávia Piovesan analisa com propriedade a matéria ao afirmar que

“através de estudos sobretudo de Ronald Dworkin, parece haver se solidificado

definitivamente a noção de que, nos casos de vagueza da lei, de conceitos

indeterminados, de colidência de normas de igual hierarquia, particularmente em

questões constitucionais – os chamados ‘hard cases’ - , não se soluciona a

49

questão com base na ‘discricionariedade judicial’, e sim, com supedâneo nos

princípios elencados no texto constitucional”91.

Veja-se que, na concepção de Dworkin, cada decisão é única, e

deve ser analisada de acordo com regras e princípios. Esta poderia afigurar

alternativa plausível para o julgamento de questões relacionadas à eutanásia, à

ortotanásia e ao direito de morrer? Embora seja quase impossível a existência de

“Hercúles”, regras fechadas sobre o tema não seriam aconselháveis, eis que

poderiam interferir em situações em que o fim da vida fosse o mais aconselhável,

de acordo com as provas e evidências do caso concreto. Uma crítica recorrente à

legalização da eutanásia e do suicídio assistido é a facilidade que teriam as

pessoas de lançar mão deste mecanismo, muitas vezes em estado de pânico,

portanto, diante de manifesta vulnerabilidade.

Obviamente que não há como esgotar questões dessa natureza em

um catálogo de regras, como já disse Dworkin. Assim sendo, os problemas

deverão ser analisados nas suas particularidades, de acordo com a relevância

das questões trazidas à baila, aplicando-se o princípio que melhor convenha à

situação.

Tomando-se os princípios bioéticos92, tal como são hoje entendidos,

é possível utilizá-los com muita adequação na análise de situações práticas, como

referenciais de conduta, de maneira semelhante ao modo como funcionam os

princípios gerais do direito, ou seja, na lição de Alexy93, devem ser tomados como

“mandados de otimização”, em que a aplicação de um não exclui absolutamente a

do outro, buscando-se, sim, a melhor solução possível, mediante a aplicação

ótima dos princípios, em adequação com o caso concreto. Eles devem ser

91 Ob. Cit., p. 386. 92 Muitos autores destacam que há pelo menos quatro princípios bioéticos, a saber: beneficência; não maleficência; autonomia; e justiça. 93 Ob. Cit. O autor expressa essa opinião também no artigo “Direito Constitucional e Direito Ordinário. Jurisdição Constitucional e Jurisdição Especializada”. São Paulo: RT/Fasc.Civ., ano 91, vol. 799, p. 33-51, maio 2002). Nesse texto, o autor aproxima os direitos fundamentais dos princípios, entendendo aplicável, em ambos os casos, o princípio da proporcionalidade e a solução de conflitos mediante ponderação, sempre que possível fazê-lo, atribuindo também aos direitos fundamentais a condição de “mandados de otimização”.

50

ponderados, sopesados, priorizados, não se lhes aplicando a solução inflexível do

“tudo ou nada”, válida para as normas-regra.94

Assim é que, sobretudo com relação ao final da vida e à conduta

diante de pacientes que sofrem de forma irremediável, os princípios bioéticos,

como ocorrem com as normas jurídicas em geral, entram em aparente conflito,

tornando-se necessário escolher a qual dar primazia e como equilibrá-los, por

exemplo, entre o desejo do paciente tetraplégico que pede para morrer por

entender intolerável sua situação e a opinião do médico de que suas condições

clínicas são estáveis, permitindo-lhe viver por muito tempo ainda, embora sem

melhora física95; ou a insistência da família por um tratamento, em contraposição

ao parecer da equipe profissional de que se trata de terapêutica inútil. Daí a

importância de lançar mão dos princípios bioéticos para a solução dessas

colisões, em busca da decisão mais justa, uma vez que o Direito em si não dispõe

de armas próprias adequadas ou suficientes para prover todas as saídas,

dogmaticamente.

94 Sobre a possibilidade de ponderação também de normas-regras, cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003.95 Sobre este “conflito”, destacou-se, no terceiro capítulo, o caso do espanhol Ramón Sampedro que, tendo ficado tetraplégico aos 26 anos, solicitou à justiça de seu país o direito de morrer, por não mais suportar viver em decorrência de suas limitações físicas.

51

CAPÍTULO 2

O PROBLEMA DA CONCEITUAÇÃO DA EUTANÁSIA “LATO SENSU” E A

TENTATIVA DE CLASSIFICAÇÃO

O termo eutanásia deriva de uma palavra composta de origem

grega, sendo eu (bem) e thanatos (morte), significando “boa morte”, ou morte

tranqüila, doce, sem sofrimentos, sem dor.

A expressão eutanásia tal como é conhecida no mundo moderno é

atribuída ao filósofo e político inglês Francis Bacon. Foi ele quem, no século XVII,

ao estudar o “tratamento de doentes incuráveis”, um dos capítulos de sua obra

Historia vitae et mortis, de 1623, designava a ação do médico que “fornece ao

doente, quando já não há esperança, um morte doce e pacífica”.92 Bem antes de

Bacon, outros escritores, como Thomas More, já mencionavam uma prática

semelhante à eutanásia conforme a entendemos hoje, porém com forte caráter

economicista, defendendo sua adoção em um país ideal 93. Suetônio94, ao

descrever a morte do imperador Augusto, dizia que “sua morte foi doce e tal como

ele sempre a desejara, porque, quando ouvia dizer que alguém morrera

prontamente e sem dor, desejava para ele e para os seus um fim semelhante,

servindo-se da expressão grega euthanasia”.95 Veja-se que, nesta última

acepção, utilizou-se a expressão para indicar uma morte suave, sem maiores

dores ou padecimentos, não necessariamente provocada, e por todos desejada

92 HOTTOIS, Gilbert; PARIZEAU, Marie-Hélène. Dicionário da Bioética. Trad. Maria de Carvalho. Lisboa: Piaget, 1998, p. 226. 93 “Quanto aos doentes, já referi os cuidados afetuosos que por eles têm, nada poupando que possa auxiliar a sua cura, quer quanto a remédios, quer quanto a alimentos. Os que sofrem de males incuráveis, consolam-vos visitando-os assiduamente, falando-lhes, em suma, proporcionando-lhes todo o auxílio possível. No caso de a doença não só ser incurável, mas originar também dores incessantes e atrozes, os sacerdotes e magistrados exortam o doente, fazendo-lhe ver que se encontra incapacitado para a vida, que sobrevive apenas à própria morte, tornando-se um empecilho e um encargo para os outros e fonte de sofrimento para si próprio e que deve decidir não mais alimentar o mel doloroso que o devora. E já que a sua vida é agora um tormento, que não se importe com a morte, antes a considere um alívio, e consista em libertar-se dela como de uma prisão ou de uma tortura, ou que então permita que outros o libertem dela”. MORE, Thomas. Utopia. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, p. 86-87.94 SUETÔNIO. A vida dos doze césares. Tradução de Sady-garibaldi. 2ª edição. São Paulo: prestígio Editoria, 2002. 95 HOTTOIS; PARIZEAU, 1998, p. 226

52

como modo ideal de encerrar a vida: cercados pelos entes queridos, num ritual de

despedida então muito valorizado.

Ao longo do tempo, consagrou-se o uso do termo para indicar a

morte provocada, antecipada, por compaixão, diante do sofrimento daquele que

se encontra irremediavelmente enfermo e fadado a um fim lento e doloroso.

A partir de Bacon, entretanto, o termo eutanásia recebeu, dos mais

variados autores, os mais diferentes conceitos. Alguns autores restringem seu

sentido apenas à agonia boa ou suave. Morache conceitua:

A agonia que se desenrola sem dores, na qual as funções sensoriais vão se extinguindo pouco a pouco, pode ser chamada de agonia tranqüila, de eutanásia, sendo distanásia as situações nas quais o agônico, em plena lucidez, sofre dores físicas e morais, considerando como libertadora a morte que se aproxima em passos lentíssimos. 96

Morselli97, entretanto, apresenta conceito mais amplo, incorporando

igualmente um aspecto eugenésico e selecionador.

Ricardo Royo-Vilanova, considerando restrito o conceito formulado

por Morselli, diz que a eutanásia é

a morte suave e tranqüila, sem dores físicas nem torturas morais, que pode sobrevir de modo natural nas idades mais avançadas da vida, de um modo sobrenatural, como graça divina ou sugerida por uma exaltação de virtudes estóicas, e que pode ser provocada artificialmente, tanto por motivos eugênicos quanto para fins terapêuticos, para suprimir ou abreviar uma inevitável, longa e dolorosa agonia; porém, sempre com prévia regulamentação legal ou consentimento do enfermo98.

Luís Jiménez de Asúa arremata:

Eutanásia significa ‘boa morte’, mas em sentimento mais próprio e estrito e a que outro proporciona a uma pessoa que padece de uma enfermidade incurável ou muito penosa, e a que tende a truncar a agonia excessivamente cruel ou prolongada (...)

Não duvido que a expressão ‘morte boa’ (eutanásia) admite todas essas acepções; porém para mim, jurista, o termo é mais limitado e consiste tão-só na morte tranqüila e sem dor, com fins libertadores de

96 MORACHE. Naissance et mort. Paris, 1904. 97 MORSELLI. L’uccisione pietosa, 1933. 98 ROYO-VILLANOVA, Ricardo. O direito de morrer sem dor. Madrid, 1929.

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padecimentos intoleráveis e sem cura, a pedido do paciente, ou com o objetivo eliminador de seres desprovidos de valor vital, que importa por sua vez em um resultado econômico, prévio diagnóstico e execução oficial99.

Numa simples análise dos conceitos ora apresentados, vê-se que

todos coincidem em um ponto: eutanásia significa morte tranqüila, sem dor, uma

“boa morte”.

Mesmo assim, é fato que o tema em questão sempre gerou

infindáveis discussões polêmicas, inclusive no tocante à tentativa de uma

classificação “definitiva” para as diferentes variantes possíveis e pontos de vista

distintos quando o assunto é “boa morte”.

2.1 Ortotanásia, distanásia e mistanásia

Ao lado da definição de eutanásia, outros termos relativos à

intervenção humana no momento da morte surgiram com o passar do tempo. São

termos que conseguiram superar o problema da “melhor” classificação e hoje são

de fundamental importância para uma tomada de posição coerente e de bom

senso, no que tange às condutas médicas no final da vida. Assim sendo, se de

um modo geral costuma-se dizer que eutanásia é a morte antes de seu tempo, a

distanásia é, por sua vez, a morte depois do tempo; e ambas se contrapõe à

ortotanásia: a morte no tempo certo.

A ortotanásia tem seu nome proveniente dos radicais gregos: orthos

(reto, correto) e thanatos (morte). Indica, assim, a morte a seu tempo, ou a morte

no tempo correto, nem antes nem depois da hora. Na ortotanásia, o médico não

interfere no momento do desfecho letal, nem para antecipá-lo nem para adiá-lo.

Diz-se que não há encurtamento do período vital, uma vez que este já se

encontra em inevitável esgotamento. Tampouco se recorrem a medidas que, sem

terem o condão de reverter o quadro terminal, apenas resultariam em prolongar o

processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família. Mantêm-se os

99 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Liberdade de amar e direito a morrer, Tomo II, eutanásia e endocrinologia. Belo Horizonte: Melhoramentos, 2003, p.30.

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cuidados básicos (paliativos), tão somente para diminuir as dores físicas que a

doença acarreta.100

Em virtude da posição de não interferência médica, é comum existir

a confusão entre ortotanásia e eutanásia passiva. Muitos são os autores que as

apontam como sinônimas, mas esse não é o entendimento mais preciso, uma vez

que a eutanásia passiva é a eutanásia (antecipação, portanto) praticada sob a

forma de omissão. Nem todo paciente em uso de suporte artificial de vida é

terminal ou não tem indicação da medida. A eutanásia passiva consiste na

suspensão ou omissão deliberada de medidas que seriam indicadas naquele

caso, enquanto na ortotanásia há omissão ou suspensão de medidas que

perderam sua indicação, por resultarem inúteis para aquele indivíduo, no grau de

doença em que se encontra.

Em item próprio, mais adiante, explicar-se-á melhor a distinção entre

eutanásia passiva e ortotanásia. Por ora, basta saber que são absolutamente

distintas, embora existam posições divergentes.

A ortotanásia se efetiva mediante as condutas médicas restritivas,

em que se limita o uso de certos recursos, por serem medicamente inadequados

e não indicados em determinado caso concreto. Mais do que uma atitude, a

ortotanásia é um ideal101 a ser buscado pela Medicina e pelo Direito, dentro da

inegabilidade da condição de mortalidade humana. Na lição de Guilherme

Nucci102, tem-se ortotanásia quando “deixa o médico de ministrar remédios que

prolonguem artificialmente a vida da vítima (sic), portador de enfermidade

incurável, em estado terminal e irremediável, já desenganada pela medicina”, ao

que acrescenta-se: quando esses remédios ou medidas já não representam

benefício ao paciente. Por tudo isso, Verspieren103 critica firmemente a confusão

com o termo eutanásia passiva, o que, segundo o autor, colocaria no mesmo

100 VILLAS BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.73. 101 Cf. PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética. 5ª ed. São Paulo: Loyola/Centro Universitário São Camilo, 2000, p. 315. 102 NUCCI, Guilherme. Código Penal Comentado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 370-371. 103 VERSPIEREN, Patrick. L’Assitence Médicale au Suicide. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte: Actasdo VII Seminário Nacional do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 2001, 9. 93-106.

55

plano uma conduta direcionada para matar e a interrupção ou abstenção de um

tratamento de manutenção da vida que se mostra desproporcionado.

Em verdade, a prática da ortotanásia visa a evitar a distanásia que

é, por sua vez, a morte lenta e sofrida, prolongada, distanciada pelos recursos

médicos, à revelia do conforto e da vontade do indivíduo que morre. Decorre de

um abuso na utilização desses recursos, mesmo quando infrutíferos para o

paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento, ao

lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso.

Quando isso se faz à revelia do paciente ou como forma de obter

vantagens econômicas pela utilização de medidas dispendiosas e

desnecessárias, pela manutenção inútil em UTI, ou simplesmente para que, por

vaidade profissional, não se admita o fracasso das tentativas terapêuticas e a

evidente iminência da morte, defende-se que essas condutas podem encontrar

enquadramento típico, uma vez que representam lesão à integridade física do

paciente, pelo intervencionismo desnecessário, além do cerceamento de sua

liberdade 104, ao mantê-lo indevidamente no isolamento de uma UTI, mediante,

quiçá, o estímulo a falsas esperanças, quando se sabe tratar de um doente

irrecuperável, cujos momentos finais poderiam ser melhor e mais tranquilamente

vividos ao lado da família, constrangendo-o a passar por um sofrimento a que a

lei não o obriga.105 Frise-se: o direito à vida não inclui o dever de adiar

indefinidamente a morte natural pelo uso de todos os recursos protelatórios

existentes, sobretudo quando sumamente cruentos e contra-indicados.

A distanásia corresponde à obstinação ou encarniçamento

terapêutico. Suspender tratamentos fúteis não é encurtar o tempo de vida, é

deixar de alongá-lo artificial e indevidamente, maltratando o paciente, sem lhe

gerar benefício com isso. O só acréscimo de dias ou horas, por vezes contra a

vontade do indivíduo, a uma existência que se tornou um ônus e uma tortura para

104 Conforme destacou-se no capítulo 1 quando se tratou do princípio constitucional do direito à liberdade. 105 Nesse sentido, é peremptória a lição de Michael Palmer (Problemas morais em Medicina: curso prático.Trad. Bárbara Theoto Lambert. São Paulo: Loyola, 2002, p. 57), a saber: “submeter o paciente a uma degeneração antinatural, lenta e muitas vezes dolorosa, apenas por ser tecnicamente possível, não só é incivilizado e sem compaixão para o paciente e sua família, mas também violação da liberdade individual”.

56

ele, quando o organismo já se encontra em falência global e irremediável, não

pode ser visto como um benefício nem como um dever médico.

O terceiro conceito diferencial necessário diz respeito à mistanásia.

O termo tem origem divergente e imprecisa; para uns, provém do grego mis (que

significa “infeliz”), para outros, do radical também grego mys (“rato”). Em qualquer

das hipóteses, a expressão tem aplicabilidade perfeita ao seu sentido, que remete

a uma morte miserável, transcendendo o contexto médico-hospitalar para atingir

aqueles que nem sequer chegam a ter um atendimento médico adequado, por

carência sócio-econômica, por falta de condições e de oportunidades econômicas

e políticas, que se refletem numa falta de acesso ao judiciário e na deficiente

proteção mesmo aos direito fundamentais a que fazem jus todos os serem

humanos, de forma que eles passam a configurar, desde o nascimento106,

espécies de “sub-cidadãos” e “sub-indivíduos”, na dura realidade fática em que

sobrevivem. Refere-se aos “que morrem de fome, a morte do empobrecido, os

mortos nas torturas de regimes políticos... morte de rato no esgoto”107. É morte

comum nos países subdesenvolvidos, já tendo sido bem comparada àquela

descrita pelo poeta nordestino João Cabral de Melo Neto, ao falar de sua “morte

severina”108.

Na visão de alguns autores, a mistanásia equivale a uma eutanásia

social e abrangeria também as vítimas de erro médico109, os condenados a pena

de morte e as vítimas de eutanásia nazista110. Há quem defenda existir

mistanásia, ainda, quando se abandona o paciente moribundo a sua própria dor,

já que a omissão de suporte artificial de vida não deve representar descuido com

o enfermo, nem interrupção dos cuidados básicos (alimentação, hidratação,

106 Ou mesmo antes dele, conforme assevera o texto da professora Eliane Elisa de Souza e Azevêdo: Odireito de vir a ser após o nascimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 107 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de, ob. cit., p. 300. 108 E se somos Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, da mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/é que a morte severina/ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 30. 109 SÁ, Maria de Fátima Freire. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 68. 110 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 315.

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asseio, controle dos sintomas)111. Destaque-se, todavia, que a mistanásia, na

maior parte das vezes, não chega a alcançar atenções hospitalares tão

avançadas; ela não habita Unidades de Tratamento Intensivo (UTI’s), mas as

macas e o chão de corredores lotados de hospitais, carentes como seus

pacientes. A mistanásia não chega até o erro médico, pois lhe falta para tanto o

cuidado médico. Mas, de fato, pode-se considerar como tendo havido mistanásia

quando o erro médico é seguido de descaso, piorando a angústia do enfermo.

A pena de morte é questão de política criminal, não representando

necessariamente uma morte miserável ou desasistida. Já para Villas-Boas, “a

morte nos campos de concentração nazistas poderia ser classificada como

mistanásia, por decorrer das péssimas condições de vida a que eram submetidos

os prisioneiros. O fato, entretanto, de terem sido locais deliberadamente

projetados para tanto, torna-os, mais que descaso social, verdadeiros delitos de

muito maior gravidade”112.

Os que admitem a existência de várias modalidades de eutanásia

classificam a morte nos campos de concentração como hipótese de eutanásia

eliminadora, eugênica 113 ou econômica, causas de homicídio qualificado ou

mesmo de genocídio.

111 CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos Jurídico-penais da Eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001, p. 70. Cf. também Leonardo Martin (Eutanásia e Distanásia. In: COSTA, Sérgio I. F.; GARRAFA, Volney; OSELKA, Gabriel. Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998., p. 171.), que defende a existência de três tipos de mistanásia: por erro médico (mediante negligência, como no moribundo deixado sem analgesia; imprudência, como no doente medicado à distância, sem exame, nos hospitais superlotados; ou imperícia, por condições inadequadas de preparo dos médicos). Por má-prática (quando a Medicina deixa de ser usada em prol do paciente para atender a outros interesses, resultando em um mal propositadamente causado ao enfermo) a e mistanásia dos “doentes que não chegam a ser pacientes”, a que se reporta mais comumente. Ele discorda da denominação alternativa “eutanásia social”, pois alega que a eutanásia traz em si uma noção tradicional de “morte boa, tranqüila” e a morte da mistanásia nada tem de boa ou de suave. Por esse prisma abrangente, caberia acrescentar também aos exemplos de mistanásia, a morte das vítimas de violência nos grandes centros urbanos, decorrentes de balas perdidas; os menores chacinados por grupos de extermínio no Rio de Janeiro; os mais de cem presos mortos por policiais no complexo presidiário do Carandiru etc. Prefere-se relacionar a mistanásia ao descaso social, aos desassistidos da Medicina e da sociedade. A morte provocada por crime é uma morte violenta e terrível, mas parece que não se ajusta ao sentido de morte ignominiosa, que equipara o ser humano a um animal inferior, a um “rato no esgoto”, despojado de seu valor moral, como se não fizesse parte do grupo social. 112 Ob. Cit., p. 76. 113 Eugenia: “teoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas”. HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. Versão eletrônica, 2006.

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Sobre a questão da eugenia vale a pena a transcrição de artigo

intitulado “A Eugenia de Hitler e o racismo da Ciência”114:

A idéia de eugenia nasceu na Inglaterra, prosperou nos EUA e teve seu ponto alto na Alemanha nazista. Com nova roupagem e outros nomes, ela sobrevive até hoje.

Quando em The origin of species, de 1859, Darwin propôs que a seleção natural fosse o processo de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos, importantes pensadores passaram a destilar suas idéias num conceito novo – o darwinismo social.

"Devemos suportar o efeito, indubitavelmente mau, do fato de que os fracos sobrevivem e propagam o próprio gênero, mas pelo menos se deveria deter a sua ação constante, impedindo os membros mais débeis e inferiores de se casarem livremente com os sadios". Darwin acreditava que os criminosos, por sua vida mais breve e a dificuldade de se casarem, naturalmente livrariam as raças superiores de sua má influencia. Além disso, com o predomínio dos casamentos entre os mais fortes, sábios e moralmente superiores - e evitando a miscigenação com as "raças inferiores" - Darwin acreditava na evolução física, moral e intelectual das "raças superiores" pela seleção natural.

Esse conceito, de que na luta pela sobrevivência muitos seres humanos eram não só menos valiosos, mas destinados a desaparecer, culminou em uma nova ideologia de melhoria da raça humana por meio da ciência. Por trás dessa ideologia estava sir Francis J. Galton, que era parente de Darwin, cujo nome é associado ao surgimento da genética humana e da eugenia.

Galton tinha a proposta de esterilizar os humanos fracos de corpo e mente, e de raças inferiores.

Convencido de que era a natureza, não o ambiente, quem determinava as habilidades humanas, Galton dedicou sua carreira científica à melhoria da humanidade por meio de casamentos seletivos. No livro Inquiries into human faculty and its development, de 1883, criou um termo para designar essa nova ciência: eugenia (bem nascer), que nada mais é do que a ciência que estuda as possibilidades de apurar a espécie humana sob o ângulo genético.

No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra, havia grande preocupação quanto à "degeneração biológica" do país, pois o declínio na taxa de nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que na classe baixa. Para muitos parecia lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada por proibição de uniões indesejáveis e promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário, apenas, que homens como Galton popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparentemente sólidos.

As propostas de Galton ficaram conhecidas como "eugenia positiva". Nos EUA, porém, elas foram modificadas, na direção da chamada "eugenia negativa", de eliminação das futuras gerações de

114 GONÇALVES, Antonio Baptista. A eugenia de Hitler e o racismo da ciência. Jus Navigandi. Disponível em < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8358>

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"geneticamente incapazes" – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise, extermínio.

A eugenia pode ser dividida em: eugenia positiva, que busca o aprimoramento da raça humana através da seleção individual por meio de casamentos convenientes, para se produzir indivíduos "melhores" geneticamente; e eugenia negativa, que prega que a melhoria da raça só pode acontecer eliminando-se os indivíduos geneticamente "inferiores" ou impedindo-os que se reproduzam. Tendo a eugenia positiva se mostrado impraticável, a maioria dos eugenistas ao redor do mundo acabou por adotar a eugenia negativa.

O líder do movimento eugenista dos EUA foi Charles Davenport, que dirigia o laboratório de biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor. Em 1903, obteve da Carnegie Institution o estabelecimento de uma Estação Biológica Experimental no local, onde a eugenia seria abordada como ciência genuína.

O próximo passo de Davenport foi identificar os que deveriam ser impedidos de se reproduzir. Em 1909 criou o Eugenics Record Office para registrar os antecedentes genéticos dos norte-americanos e pressionar por legislação que permitisse a prevenção obrigatória de linhagens indesejáveis. Para isso, o grupo concluiu que o melhor método seria a esterilização, e o estado de Indiana foi a primeira jurisdição do mundo a introduzir lei de esterilização coercitiva, logo seguido por vários outros estados. Desde o início, porém, o uso de câmaras de gás estava entre as estratégias discutidas para eliminação daqueles considerados indignos de viver.

O movimento cativou tanto a elite americana da época que, a partir de 1924, leis que impunham a esterilização compulsória foram promulgadas em 27 Estados americanos, para impedir que determinados grupos tivessem descendentes.

O modo de ação preferido da eugenia estadunidense foi a esterilização compulsória. Houve também isolamentos – para que os "débeis mentais", conceito que nunca foi explicitado com clareza, não se reproduzissem – e restrição a casamentos, principalmente entre brancos e negros, mas a grande vitória do movimento eugenista dos Estados Unidos foi conseguir aprovar leis estaduais que permitiam a médicos esterilizar seus pacientes.

Confrontada com tamanha violação dos princípios da Constituição americana, a Suprema Corte fez o pior, dando sua bênção à eliminação dos mais fracos. "Em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, a sociedade deve se prevenir contra aqueles que são manifestadamente incapazes de procriar sua espécie", disse o juiz Oliver Wendell. Entre os anos 1920 e 1960, pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente - a maioria mulheres. ´´Os esforços americanos para criar uma super-raça nórdica chamaram a atenção de Hitler´´

A maior lição sobre o tema nos Estados Unidos pode ser acompanhada nos relatos de Edwin Black no livro A guerra contra os fracos.

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Apesar de a Alemanha ter desenvolvido, ao longo dos primeiros vinte anos do século XX, seu próprio conhecimento eugenista, tendo suas próprias publicações a respeito do assunto, os adeptos alemães da eugenia ainda seguiam como modelo os feitos eugenistas americanos, como os tribunais biológicos, a esterilização forçada, a detenção dos socialmente inadequados, e os debates sobre a eutanásia. "Enquanto a elite americana descrevia os socialmente indignos e os ancestralmente incapazes como "bactérias", "vermes", "retardados", "mestiços" e "subumanos", uma raça superior de nórdicos era progressivamente considerada a solução final para os problemas eugenistas do mundo." (Um tribunal Biológico: Tratando a Causa, Eugenical News, v. IX, 1924, p. 92, apud Edwin Black, op. cit., p. 419).

Os Estados Unidos também foram responsáveis pela criação e desenvolvimento do amplamente conhecido teste de QI, popular até hoje. O aludido teste nada mais é do que uma derivação direta dessas teses. Ninguém dirá que uma pessoa com resultado baixo pode ser considerada tão "inteligente" quanto a outra de resultado acima da média.

As atrocidades cometidas pelo nazismo em nome da construção de uma Alemanha exclusivamente para a "raça ariana" foram tão grandes e tão chocantes que tiveram como efeito misturar o nazismo e a eugenia considerando a mesma coisa. Após o fim da Segunda Grande Guerra, o sentimento de repulsa e revolta com a revelação das torturas e mortes nos campos de concentração talvez tenha sido uma das razões que levaram a opinião pública em geral a se "esquecer" de que a idéia de higiene racial não foi uma invenção original de Hitler e de seus companheiros de partido.

Entretanto, infelizmente, este malefício não pode ser atribuído ao nazismo, porque as teorias de superioridade racial, de anti-semitismo, de seleção da espécie já se encontravam largamente difundidas, especialmente entre as elites científicas e acadêmicas, bem antes de Adolf Hitler assumir o poder.

Na Alemanha, a eugenia norte-americana inspirou nacionalistas defensores da supremacia racial, entre os quais Hitler, que nunca se afastou das doutrinas eugenistas de identificação, segregação, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis, e legitimou seu ódio fanático pelos judeus envolvendo-o numa fachada médica e pseudocientífica.

Mesmo com o final da Segunda Guerra Mundial a eugenia ainda continua cada vez mais presente em nossos dias. Muitos dizem que a morte de Hitler também sepultou os dias de loucura e insensatez.

Entretanto, o que a humanidade presenciou nos cinqüenta anos posteriores a existência do Führer, novamente pelas mãos da ciência?

Para sermos sucintos, dentre tantas outras coisas, duas de relevante importância: o Projeto Genoma e a experiência em células-tronco, como meio regenerativo.

E, em ambos os casos as teorias cientistas envolvidas foram as de melhoria da vida humana, eliminação de doenças, correção de imperfeições. Frases amplamente utilizadas e difundidas por Darwin há 150 anos atrás.

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Com o avanço desenfreado da tecnologia os eugenistas tiveram uma gama enorme de recursos para ampliar seu campo de pesquisa, sem nunca, desviar de seus propósitos.

O Projeto Genoma visa um mapeamento com a seqüência dos genes humanos e verificar em que série do código genético existe um gene defeituoso e então substituí-lo.

Porque, desta feita, os genes defeituosos responsáveis por defeitos congênitos, transmissões hereditárias de características indesejáveis ou doenças, simplesmente deixariam de existir, uma vez que seriam substituídos.

Estaríamos loucos ou seria uma derivação mais aperfeiçoada da raça ariana pura defendida por Hitler?

O líder nazista ordenou que milhões de judeus fossem dizimados em nome da chamada "raça pura" idealizada por ele; e que portadores de deficiências físicas e mentais servissem de cobaias para experimentos genéticos realizados por Josef Mengele, "médico" de confiança do Füher (PEDROSA, 2005).

Os atos de Adolf Hitler refletem a aversão em se conviver com a condição da fragilidade humana, inclusive no medo que tange a si próprio de gerar um filho "fraco" ou "imperfeito".

No entanto, este temor não era exclusividade de um dos maiores genocidas da história, porque esta aversão às fraquezas do homem está presente na humanidade desde épocas ancestrais. E perdura nos dias de hoje sobre o pretexto de uma melhora significativa da qualidade de vida da humanidade.

Agora entre um pensamento que deixamos mais para o final, não seria então a ciência racista?

Este procurar incansável de uma raça melhor, mais forte e perfeita, denota um profundo preconceito com os cidadãos portadores de deficiências.

Não que seja um racismo dirigido, mas, se trata de uma espécie de vergonha dos cientistas de "permitirem" que existam pessoas tidas como fora dos padrões de normalidade.

O Projeto genoma apenas nos mostra a profunda intolerância que a ciência tem com os menos favorecidos. E fortalece este pensamento na medida em que anuncia a proximidade de erradicação de doenças e deficiências.

E como se desenvolverá tal processo? Primeiro identificando os genes causadores dos defeitos e doenças, e na seqüência, os alterando ou erradicando dos embriões, para evitar que uma pessoa desenvolva a deformidade.

O mais simples será eliminar o embrião que apresentar alguma doença séria, como já é feito em muitos países, mas se os pais objetarem por motivos éticos ou religiosos, poderá ser feita uma intervenção visando modificar o gene e retorná-lo à codificação de normalidade, antes de permitir o desenvolvimento posterior em feto.

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O segundo passo será "tratar" das pessoas já vivas, numa substituição das seqüências defeituosas por outras "corrigidas".

E muitos podem pensar que isso nunca irá acontecer, mas o que dizer das experiências com as células-tronco? Até agora tem apresentado resultados bastante polêmicos e restritos.

Em termos comparativos, os resultados obtidos até agora são muito mais significativos que antigamente. É apenas uma questão de tempo para que as pesquisas avancem e se aperfeiçoem a tal ponto que num futuro se tornem procedimentos de rotina, realizados em consultório.

Nada mais é do que uma correção de problemas para pessoas que já os possui. A diferença é que agora essas pessoas não eram mortas como há dois séculos atrás.

A correção dos "defeitos" pode ser encarada apenas como uma etapa inicial, porque num futuro, ainda que muito distante de nossa realidade, poderá, com base no próprio mapeamento genético desenvolver um ser humano "ideal", sem defeitos, forte e virtuoso.

E, neste ponto, as pessoas ainda não enxergaram os riscos. Por que, se no futuro será possível eliminar as doenças e tornar a vida das pessoas mais saudáveis, o que impedirá a ciência de alteraras funções e estruturas normais do corpo?

E não estamos falando de corrigir problemas de saúde. Poderão os pais escolher a cor dos olhos de seu filho? Da pele? Do cabelo? Ou mudar tendências genéticas de temperamento, personalidade, preferências sexuais, etc.

Pode ser uma profetização, e Oxalá estejamos errados, mas de que impede que a ciência proporcione que as pessoas fiquem mais inteligentes com as alterações dos genes, e por fim, queiram brincar de serem Deus e prolongar a longevidade de um ser humano?

Pode ser que a diferença esteja no contexto de brutalidade em que Hitler idealizou sua "melhoria da raça", mas, de qualquer forma, o cerne da questão continua sendo o mesmo: trata-se de eugenia.

E não criticamos em momento algum as conquistas obtidas pela ciência até o presente momento, mas Hitler nos deixou um legado que não pode ser esquecido.

A eugenia tem de ser tratada com muito cuidado, porque tende a se tornar um racismo exacerbado e incontrolável, a busca por uma perfeição imperfeita.

Será a transformação da humanidade num padrão, e porque não, numa robotização.

O nazismo nos ensinou que a eugenia pode trazer muitos benefícios, mas que os seus malefícios podem causar estragos numa escala muito mais devastadora. A missão da ciência é inglória: aperfeiçoar o homem, que não se percam os pesquisadores.

63

A questão do holocausto é bastante controvertida e matéria muito

rica para se refletir em poucas linhas. Entretanto, vale a pena a citação de alguns

trechos da obra “Modernidade e Holocausto”, de Zygmunt Bauman:

As motivações homicidas em geral, e as do extermínio em massa em especial, têm sido muitas e variadas. Vão do puro cálculo a sangue-frio de um lucro competitivo até o ódio igualmente puro e desinteressado, quer dizer, a heterofobia. A maioria das rivalidades comunitárias e campanhas genocidas contra aborígenes está seguramente entre esses dois pólos. Se acompanhada de uma ideologia, a heterofobia não vai muito além de uma visão de mundo que se resume na fórmula “ou eles ou nós” e no preceito “não há lugar para os dois”, ou “índio bom é índio morto”. Espera-se que o adversário siga princípios-modelo apenas se isso lhe for permitido. A maioria das ideologias genocidas assenta-se numa simetria tortuosa de falsas intenções e ações.

O genocídio realmente moderno é diferente. É genocídio com um propósito. Livrar-se do adversário não é um fim em si. É um meio para atingir determinado fim, uma necessidade que decorre do objetivo último, um passo que se deve dar caso se queira chegar um dia à meta final. Ofim em si mesmo é a visão grandiosa de uma sociedade melhor e radicalmente diferente. O genocídio moderno é um elemento de engenharia social, que visa a produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita.115

Analisando-se o pensamento de Bauman, em contraposição ao de

Villas-Boas anteriormente citado, não parece confortável afirmar que o genocídio

ocorrido na Segunda Guerra Mundial possa ser classificado como um tipo de

eutanásia (em sua modalidade chamada de mistanásia). Acredita-se que a ação

aproxime-se mais de um verdadeiro homicídio doloso, e não de algo que

procurava diminuir a dor e sofrimento de determinado grupo de pessoas.

Em síntese, a mistanásia não equivale à antecipação proposital da

morte que ocorre na eutanásia, nem chega a conhecer a distanásia dos recursos

excessivos no modernos hospitais. Ela não deixa espaço para a ortotanásia, pois

a morte virá sempre fora do tempo, ainda que sob o manto de uma morte natural,

como se fosse natural morrer de doenças evitáveis, por falta de assistência, de

remédios, de cuidados,de alimentos. O direito penal passa ao largo da vaga

115 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 114.

64

tentativa de prevenção, ao se vedar a omissão de socorro,116 mas, em verdade, a

mistanásia é questão muito mais de políticas públicas do que propriamente de

tipo penais.

2.2 Tentativa de classificação: As diferentes “espécies” de

eutanásia

Desde que Francis Bacon “cunhou” o termo eutanásia, cientistas e

estudiosos das mais diferentes áreas tentam imprimir uma classificação definitiva

para as diferentes “espécies” de eutanásia.

Fato é que a expressão tem sofrido modificações em seu sentido ao

longo da evolução histórica, em face de novas formas de implementá-la e de

novas realidades a que ela se presta. Assinalem-se também as mudanças

havidas quanto a sua aceitabilidade social, que varia desde uma prática

naturalmente incorporada à cultura local até uma conduta alvo de profundo

repúdio, sobretudo institucional. Diz-se “sobretudo institucional” porque se

observa que a população em geral, ainda quando se opõe à franca legalização da

eutanásia, costuma apresentar notável condescendência para com aqueles que

abreviam a vida de indivíduos acometidos por sofrimentos irremediáveis, donde

se observa o escasso numerário de casos que chegam aos tribunais e, dentre

estes, o relevante número de absolvições pelo júri.117

O apelo maior da eutanásia diz respeito à inafastável condição da

finitude humana, ao temor da impotência diante do sofrimento e à percepção de

que a evolução médica e científica em geral tornou possível a elevação da

expectativa da vida em muitas doenças antes rapidamente mortais, mas que essa

116 Artigo 135 do Código Penal Brasileiro: “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro às autoridade pública. Pena – detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte”. 117 Jimenez de Asúa, na obra clássica Libertad de Amar y Derecho a Morrir: Ensaios de um Criminalista sobre Eugenesia y Eutanasia. 7ª Ed. Buenos Aires: Depalma, 1992, que data originalmente de 1928, cita às PP. 343 a 362, vasta quantidade de casos concretos ocorridos em todo o mundo, nos quais se observa essa tendência e que, à leitura, convencem o próprio leitor de que sua morte foi, de fato, “a melhor solução”.

65

evolução não é sempre suficiente para aplacar as dores causadas por tais males,

de modo que o prolongamento torna-se, algumas vezes, um ônus mais grave do

que a morte rápida. Os julgadores se colocam no lugar de vítima e de algoz e

pensam que agiriam da mesma maneira 118 diante de um ente querido em

condições semelhantes e que gostariam também de contar com que o fizesse em

relação a si mesmos, caso se achassem em estado tão infeliz. A conduta, quando

obedecidos certos critérios, acaba perdendo muito de sua reprovação social.

Nem por isso se deve generalizar a aceitação, o que poderia dar

margem a abusos, a pressões sociais sobre o moribundo, a interesses outros,

camuflados sob a capa da piedade. Daí a importância de se distinguirem as

“espécies” de eutanásia ou as espécies de conduta tangentes, paralelas à

eutanásia, a fim de se esclarecerem quais dessas condutas devem ser acolhidas

pelo Direito e quais devem continuar sendo reprimidas. Além disso, é mister

definir, ainda, os critérios a serem obedecidos para se alcançar a consonância

legal.

Roxana Borges119 lembra que, em sua origem, a eutanásia

enquanto sinônimo de morte suave, não indicava necessariamente uma morte

provocada, de modo que, em algumas classificações, observa-se a referência a

eutanásia onde se tem simples analgesia (como na eutanásia lenitiva, solutiva,

ajuda para morrer pura etc.). Atualmente o conceito mais prevalente relaciona o

termo com a antecipação da morte de paciente incurável, geralmente terminal e

em grande sofrimento, movido por compaixão para com ele. A necessidade de

que a conduta eutanásica seja precedida por um pedido do interessado é questão

polêmica e bastante relevante nos tempos atuais, em razão da crescente

valorização da autonomia e da liberdade individual 120.

118 Cf. VAINSENCHER, Semira A.; FARIAS, Ângela S. de. Condenar ou absolver: a tendência do júri popular. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 62. 119 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito de morrer Dignamente: Eutanásia, Ortotanásia, Consentimento Informado, Testamento Vital, Análise Constitucional e Penal e Direito Comparado. In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite dos. Biodireito: ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 283-305. 120 Conforme se expôs no capítulo antecedente.

66

Em relação ao sofrimento incontrolável e à condição de

terminalidade, é preconizado algumas vezes que esse sofrimento não precisa ser

físico, admitindo-se também o sofrimento moral do tetraplégico, o sofrimento por

antecipação do portador de Alzheimer ou o sofrimento presumido do indivíduo em

estado vegetativo persistente, que declarara previamente preferir a morte a tal

situação. A antecipação da morte que, originalmente, sequer era elemento

essencial para caracterizar a conduta, hoje é um dos aspectos mais lembrados,

servindo para diferenciar a eutanásia da ortotanásia, em que não se antecipa a

morte, deixando-se, sim, de procrastiná-la indevidamente.

O elemento subjetivo do agente, que ensejou a denominação

“homicídio piedoso”, é característica das mais relevantes: quer-nos parecer que

não se pode conceber a eutanásia por motivos egoísticos ou econômicos, embora

haja classificações nesse sentido. A falta do móvel subjetivo da piedade, o qual

tem em vista o interesse do paciente, é que permite afirmar que o auxiliar de

enfermagem que provocou a morte de pacientes terminais no Rio de Janeiro, em

conluio com empresas funerárias, em 1999, não cometeu conduta compatível

com a eutanásia. Seu delito não foi de homicídio privilegiado, mas de homicídio

qualificado por elemento subjetivo (motivo torpe, mediante paga ou recompensa,

nos termos do artigo 121, parágrafo 2º, I do Código Penal brasileiro). Assim foi o

entendimento do Superior Tribunal de Justiça, ao negar provimento, em junho de

2002, habeas corpus impetrado no caso. 121

Também não se admite a eutanásia como política pública ou de

entidade hospitalar privada ou ainda por imposição de planos de saúde (em

especial no que tange à eutanásia passiva, entendida como a omissão ou

suspensão de tratamentos quando ainda têm indicação de benefício para o

paciente). Qualquer decisão referente à eutanásia, nos ordenamentos jurídicos

em que é permitida, deve partir do paciente, se capaz e em condições de

121 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus nº. 12.863, da 5ª Turma, Brasília, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 02 set. 2002, p. 207. Trata-se do caso do auxiliar de enfermagem Edson Isidro Guimarães, que confessou ter matado cinco pessoas internadas na Unidade de Pacientes Traumáticos do Hospital Salgado Filho, no Rio de Janeiro. Embora se tratassem efetivamente de pacientes terminais, o auxiliar não agiu pela compaixão ou atendendo a pedidos das vítimas. Ele mesmo admitiu a motivação econômica, uma vez que recebia comissões de empresas funerárias pelos óbitos ocorridos em seu plantão. Cf. a respeito DINIZ, Débora. Assassinato de Aluguel não é Eutanásia: In: COSTA, Sérgio; DINIZ, Débora, Bioética: Ensaios. Brasília: Letras Livres, 2001, p. 165-167.

67

manifestar vontade, ou de seu representante legal, assim pensado como melhor

guardião dos interesses do enfermo e melhor expressão dos valores por este

abraçados ao longo da vida, os quais se quer ver refletidos no modo e no

momento da morte.

No que tange ao poder de decisão, enquanto as condutas restritivas

de decisões médicas, (embora devam, como toda conduta médica, ser discutidas

com o paciente e com a família), defende-se que, diversamente, a eutanásia é

uma decisão eminentemente familiar, social e jurídica, diante de um parecer

médico. A decisão de interromper a vida não deve e não pode ser uma decisão

médica.122 Efetivamente, a decisão de omitir ou suspender suporte vital fútil é do

médico, que não tem o dever de manter um tratamento não indicado e em nada

benéfico ao paciente.123 Já a opção por abreviar a vida do doente que sofre, não

toca à função médica decidir. É, primeiramente, prerrogativa da sociedade avaliar

a agressão ou não que tal prática lhe provoca, traduzindo-se essa valoração por

meio do Direito e, no particular, é o enfermo que pode avaliar o grau de

insuportabilidade de sua dor, e se ela justifica que se lhe interrompa a existência.

Caso o doente não esteja apto a decidir, haverá algum representante que o faça

em seu nome, mas não é dado ao médico decidir sozinho acerca da antecipação

proposital da morte de seu paciente.

Uma vez que a conduta seja juridicamente aceita e devidamente

solicitada pelo paciente ou, se este não puder decidir, pela família, cabe então ao

médico – e não ao leigo – executá-la. Por ser um ato de absoluta exceção no

quadro da proteção jurídica, a morte por compaixão precisaria ser rigorosamente

normatizada, com o fito de evitar uma indesejável falta de controle e banalização

da medida. Assim ocorre, de certa forma, com a disciplina do aborto legal,

prevista no Código Penal brasileiro, nas hipóteses do artigo 128124, que também

122 Cf. AZEVDO, Marco Antônio Oliveira de. Bioética Fundamental, Porto Alegre: Tomo, 2002, p. 79. 123 Nesse sentido, conforme irá se comentar em capítulo posterior, o Conselho Federal de Medicina expediu Resolução nº. 1.805/2006, publicada no Diário Oficial da União em 28/11/2006, que em síntese determina: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. 124 Art. 128, Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto Necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez

68

constituem exceções à proteção do direito à vida e que, presentes os requisitos

legais, somente por médico podem ser postas em prática125. A atuação do

particular, sem o amparo médico e jurídico, deve continuar sendo caracterizada

como homicídio privilegiado, quando movida efetivamente por piedade. A

interrupção indevidamente provocada por médico, fugindo aos casos das

condutas restritivas, sem o respaldo jurídico e sem a manifestação do interessado

ou de seu representante legal, também deve ser objeto de sanção penal. Em

síntese, a interrupção deve ser facultativa e não obrigatória.

A abordagem ética e jurídica da eutanásia está, portanto,

intimamente relacionada à definição adotada, o que, por sua vez, varia face à

multiplicidade de classificações possíveis, que reúnem, numa só expressão,

situações vastamente distintas. Em contraposição a esse caráter polissêmico, a

professora portuguesa Helena Pereira de Melo126 destaca que autores europeus

têm-se manifestado contra a pluralidade de “eutanásias”, preferido usar o termo

para designar apenas a forma ativa, direta e voluntária, ou seja: aquela exercida

sob a forma de uma ação, com a intenção de suprimir a vida do doente e a

expresso pedido deste.

Pensa-se que a solução não é tão simples, na medida em que, a fim

de poupá-los da carga do nome “eutanásia”, eivado de preconceito – como se a

ausência da expressão os tornasse automaticamente lícitos – os demais atos

restariam inominados. É de se considerar também que, mesmo diante da

simplificação européia, o conteúdo da conduta eutanásica ainda enseja dúvidas.

Há quem considere, por exemplo, que o desligamento de aparelhos consiste

numa conduta ativa e como tal deve ser punido127. Entende-se que não se trata

de abreviar o tempo de vida, vez que a morte iminente está apenas precariamente

resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. 125 A atual disciplina legal brasileira não exige que o homicídio privilegiado por relevante valor moral seja praticado por médico para se aplicar a redução da pena. Correto que não exija. O que se defende é que, caso fosse a conduta descriminada, entre os requisitos de sua licitude, deveria constar a exigência de prática por médico, a fim de facilitar o controle na verificação dos demais requisitos. A conduta praticada por familiar continuaria sendo delito privilegiado, mas não conduta permitida. 126 MELO, Helena Pereira de. Comentário ao tema Direito, Eutanásia e Suicídio Assistido. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte: Actas do VII Seminário Nacional do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros, 2001, p. 131-138. 127 Cf. QUIROZ, Paulo de Souza. Direito Penal: Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 209.

69

sustada pelo uso da medida terapêutica, sem perspectivas de melhora nas

condições gerais e, muitas vezes, contra a vontade do enfermo.

Apesar da tendência européia, é muito freqüente recorrer-se a

classificações de eutanásia, intentando auxiliar no esclarecimento da conduta, de

modo que não há como esquivar-se de conhecê-las.

Em face dessas ponderações, reunindo e sintetizando as mais

variadas classificações realizadas pela doutrina, é possível classificar a eutanásia:

1) quanto ao modo de atuação do agente (eutanásia ativa e passiva); 2) quanto à

intenção que anima a conduta do agente (eutanásia direta e indireta, também

chamada de duplo efeito); 3) quanto à vontade do paciente (voluntária e

involuntária); 4) quanto à finalidade do agente (eutanásia libertadora, eliminadora

e econômica), entre outras classificações menos difundidas. Vê-se, desde já, a

importância de uma legislação específica e clara, caso se pretenda uma

regulação da matéria, uniformizando as definições adotadas. Já não é possível

manter, como na lei penal vigente, a fórmula genérica do homicídio privilegiado

por relevante valor social ou moral, sem se estabelecerem seus limites e critérios.

2.2.1 A eutanásia quanto ao modo de atuação do agente (ativa

e passiva): a relevante distinção entre eutanásia passiva e

ortotanásia

A primeira classificação possível diz respeito à forma de atuação do

agente (ou modo de execução) e divide a eutanásia em ativa, quando decorrente

de uma conduta positiva, comissiva; e passiva, quando o resultado morte é obtido

a partir de uma conduta omissiva. Note-se que as condutas médicas restritivas

não devem ser confundidas com a eutanásia passiva, embora seja praxe

confundi-las. Dá-se que a eutanásia passiva, assim como a forma ativa, tem por

resultado buscado o de promover a morte, a fim de, com ela, pôr termo aos

sofrimentos do paciente. Apenas difere quanto ao meio empregado, que é a ação

numa e a omissão noutra. Nas condutas médicas restritivas, o desejo não é de

70

matar, mas de não prolongar indevidamente a situação de esgotamento físico,

caracterizando, então, a ortotanásia.

Embora sutil, a distinção entre eutanásia passiva e ortotanásia tem

toda relevância, na medida em que responde pela diferença de tratamento jurídico

proposto: a licitude desta e a suposta ilicitude daquela.128 Na eutanásia passiva,

omitem-se ou suspendem-se arbitrariamente condutas que ainda eram indicadas

e proporcionais, que ainda poderiam beneficiar o paciente. Já as condutas

médicas restritivas (ortotanásia) são lastradas em critérios médico-científicos de

indicação ou não indicação de uma medida, conforme a sua utilidade para o

paciente, optando-se conscienciosamente pela abstenção, quando a medida já

não exerce a função que deveria exercer, servindo somente para prolongar

artificialmente, sem melhorar a existência terminal.129

Exemplifique-se: na eutanásia passiva, o médico acredita que ainda

cabem ações clínicas que podem melhorar as condições físicas ou de saúde do

paciente. Entretanto, mesmo ciente disso, ele deixa de ministrar o remédio ou de

praticar essas intervenções clínicas (ato omissivo). Por outro lado, no caso da

ortotanásia, a que grande parte da literatura especializada chama de “condutas

médicas restritivas”, o médico entende que nenhuma intervenção clínica,

nenhuma droga, etc, será capaz de trazer qualquer benefício ao paciente. E

sendo assim, prefere apenas agir no sentido de diminuir a dor do paciente, sem

entretanto ministrar medicamentos inúteis parra aquela situação.

128 Fala-se aqui em “suposta” ilicitude, porque mesmo nos casos de eutanásia passiva, em que há uma ação comissivo-omissiva, poder-se-ia, em tese, obter provimento jurisdicional que autorizasse a conduta omissiva com o intuito de por fim ao sofrimento do paciente. Conforme se defendeu no capítulo precedente, dependendo do caso concreto, entende-se que para a garantia do direito à “vida digna” seria lícita a prática da eutanásia no Brasil. 129 Mesmo sem terem indicação formal, certas medidas podem ser mantidas a pedido do próprio paciente, quando ele deseja tal prolongamento, considerando importante viver esses momentos acrescidos, ainda que representem acréscimos de sofrimento. Em certos casos, quando paciente já não tem capacidade de decidir e quando a falta de indicação deve ser comunicada á família para fins de retirar o suporte, pode ocorrer que esta solicite a manutenção fútil por um tempo determinado, a fim, por exemplo, de aguardar a chegada de um parente que deseja vê-lo antes da morte e que já se encontra a caminho. As medidas não devem ser mantidas indefinidamente a pedido da família, pois isso implicaria uma agressão desnecessária ao paciente, o que não é objetivo nem dever médico. Somente o próprio indivíduo pode fazer a opção pelo sofrimento adicional, considerando-o válido, apesar de medicamente fútil. Cf. VILLAS BOAS, 2005, p. 99.

71

Não há, portanto, que se identificar genericamente eutanásia

passiva e ortotanásia. Os termos não são sinônimos, pelo contrário. A ortotanásia,

aqui configurada pelas condutas médicas restritivas, é o objetivo médico, quando

já não se pode buscar a cura: visa a prover conforto ao paciente, sem interferir no

momento da morte, sem encurtar o tempo natural de vida nem adiá-lo indevida e

artificialmente, para que a morte chegue na hora certa, quando o organismo

efetivamente alcançou um grau de deterioração incontrolável.

Como se disse, entende-se que a diferença é ao mesmo tempo sutil

e clara. Por outro lado, muitos autores utilizando-os como sinônimos, entendendo

ser ortotanásia o mesmo que eutanásia passiva.

José Renato Nalili assevera:

Ortotanásia ou paraeutanásia é a ajuda oferecida pelo médico ao processo natural da morte. Dá-se com a suspensão de medicamentos ou de outras providências que alonguem a vida do paciente. É também chamada eutanásia passiva, ou eutanásia por omissão, enquanto a eutanásia em sentido estrito é a eutanásia ativa.130

Já Maria Helena Diniz entende:

Convém esclarecer que a eutanásia passiva, ou ortotanásia, é a eutanásia por omissão, consistente no ato de suspender medicamentos ou medidas que aliviem a dor, ou de deixar de usar os meios artificiais para prolongar a vida de um paciente em coma irreversível, por ser intolerável o prolongamento de uma vida vegetativa sob o prisma físico, emocional e econômico, acatando solicitação do próprio enfermo ou de seus familiares.

Alexandre de Moraes, por sua vez, em certa passagem afirma que:

o ordenamento jurídico-constitucional não autoriza, portanto, nenhuma das espécies de eutanásia, quais sejam, a ativa ou passiva (ortotanásia). Enquanto a primeira configura o direito subjetivo de exigir-se de terceiros, inclusive do próprio Estado, a provocação da morte (morte doce ou homicídio por piedade), a segunda é o direito de opor-se ao prolongamento artificial da vida, por meio de artifícios médicos, seja em casos de doenças incuráveis e terríveis, seja em caso de acidentes gravíssimos (chamado direito à morte digna)131.

130 NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.192. 131 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 52.

72

Muito embora se reconheça aqui a autoridade dos três autores

acima destacados, prefere-se ainda insistir na tese, ou melhor, na classificação

que considera a tênue distinção entre ortotanásia e eutanásia passiva.

Nessa linha de raciocínio está, além de Villas-Boas, citada

anteriormente, o professor Catedrático da Universidade de Lisboa, José Oliveira

Ascensão, que ensina:

Estaria em causa a limitação ou cessação de tratamentos extraordinários, destinados a prolongar a vida do doente terminal. A conseqüência natural desta omissão seria abreviar a morte do doente. Fala-se em eutanásia passiva, mas a expressão é de rejeitar porque cria nefasta confusão com a figura da eutanásia, que deve ser reservada para uma forma ativa de provocar a morte.

Também se lhe chama ortotanásia, termo que não sofre do mesmo defeito. Contrapõe-se à distanásia, que equivaleria ao encarniçamento terapêutico, que poderá retardar, mas não afasta o percurso anunciado da morte.

A ortotanásia consistiria em suspender os tratamentos extraordinários, mantendo apenas os secundários, a alimentação e os cuidados paliativos – contra a dor, por exemplo.132

É comum, ainda, que, com a intenção de defender a descriminação

da ortotanásia, termine-se por defender que a eutanásia passiva – indicando com

isso qualquer conduta de omissão e suspensão de suporte artificial, mesmo útil –

seja considerada lícita, sem se fazer referência à intenção do agente ou à

indicação médica dos recursos suspensos. Pode-se observar essa tendência na

divisão feita durante a discussão no tema na Holanda, onde, obedecendo à

propensão européia de repudiar as subespécies de eutanásia, reservando o

termo apenas para a forma ativa, voluntária e direta, decidiu-se que as decisões

médicas relacionadas ao fim da vida podem ser agrupadas em quatro áreas,

quais sejam: “a) decisões de não-tratar, que resultam em morte; b) alívio da dor e

do sofrimento, resultando em abreviação da vida; c) eutanásia e suicídio assistido;

d) ações que abreviam a vida da pessoa sem pedido explícito”.133 Correspondem,

respectivamente, às figuras de a) eutanásia passiva e condutas restritivas

132 ASCENSÃO, José de Oliveira. A terminalidade da vida. In MARTINS-COSTA, Judith. MÖLLER, Letícia Ludwig. Org. Bioética e Responsabilidade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

133 Cf. PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 315.

73

(ortotanásia); b) eutanásia de duplo efeito ou indireta; c) eutanásia ativa, direta e

voluntária e suicídio assistido; d) eutanásia involuntária (ou não-voluntária, para

os que aceitam a classificação tripartite quanto à vontade do doente).

Decisões de não-tratamento, de omissão ou de suspensão de

suporte vital fútil não são nem devem ser consideradas atos de eutanásia, mas de

exercício médico regular.

Nesse sentido, PESSINI e BARCHIFONTAINE 134 asseveram:

Iniciar ou continuar um tratamento que é medicamente fútil ou que não preveja um efeito benéfico é considerado prática não profissional. Nenhum médico é obrigado a iniciar um tratamento que é ineficaz ou que resulta somente no prolongamento do processo de morrer. Aliviar a dor e o sofrimento é considerado um dever médico, mesmo quando as intervenções implicam que a vida pode ser abreviada como conseqüência.

Daí a preferência pela expressão condutas médicas restritivas para

indicar atos de ortotanásia, em vez de equipará-los à chamada eutanásia passiva,

negativa ou por omissão, que, juntamente com a forma ativa, abreviam

propositadamente a vida do paciente.

2.2.2 A eutanásia quanto à intenção do agente: eutanásia de

duplo efeito

Há casos em que o paciente, sobretudo o oncológico em fase

terminal, sofre dores lancinantes, somente controláveis em doses cada vez mais

elevadas de drogas analgésicas sedativas. Nesses pacientes, a dose terapêutica

– isto é: a dose necessária para o arrefecimento da dor – aproxima-se cada vez

mais da dose que leva à morte (por paralisação do aparelho respiratório, por

exemplo). Some-se a esse risco o fato de que o uso freqüente dessas

medicações impregna o organismo, enfraquecendo-o, além de reduzir, por seu

próprio efeito, a consciência do paciente durante o tratamento.

134 Ob. Cit., p. 303.

74

Assim, diz-se haver eutanásia de duplo efeito quando a dose

utilizada com o objetivo de dar conforto ao paciente termina por apressar-lhe a

morte, embora a intenção fosse apenas minorar o sofrimento. Note-se que a

vontade do agente, nesse caso, é livrar o doente da dor, mas sem a intenção de

tirar-lhe a vida para esse fim. Dá-se, entretanto, que, em face de se tratar de dor

intensa, requerendo altas doses de medicação analgésica potencialmente letal –

a base de ópio, como a morfina – pode ocorrer que a medicação venha a

provocar a morte mais precocemente do que o curso natural da patologia o faria.

Importante destacar que o consentimento do paciente ou – se ele não puder

manifestar vontade – o de sua família, com a devida informação sobre os riscos

da medicação adotada, é imprescindível, já que a sedação da dor é direito do

paciente, mas pode ele preferir suportar a angústia a sofrer o risco de ver

encurtado o período vital ou de se ver privado de consciência pelo uso de

sedativos em seus momentos finais 135. A dose não deve ser tal que torne a morte

uma certeza imediata, mas a menor dose possível para a produção da analgesia.

A eutanásia de duplo efeito é também chamada eutanásia indireta,

pois a morte é efeito indireto da conduta, resultado colateral, não querido. Sua

intenção precípua é retirar a dor. Distingue-se, então da eutanásia direta praticada

sob a forma da ministração de drogas em doses letais, quando intenção imediata

do agente é a promoção da morte daquele que sofre, como maneira definitiva de

acabar com a dor. Imagine-se que, na eutanásia direta, o pensamento orientador

da ação seja: “é preciso promover a morte do doente para tirar-lhe a dor”, ao

passo que, na eutanásia indireta ou de duplo efeito, a idéia seja diversa: “é

preciso tirar a dor do paciente, ainda que ele venha a morrer mais cedo em

decorrência disso”. A morte é, neste último caso, não a terapêutica em si, mas o

efeito colateral da terapêutica indicada e utilizada na única dose suficiente para a

obtenção do efeito desejado: a analgesia. O evento morte não é querido nessa

135 Excelente texto que analisa este momento delicado é de autoria de Dráuzio Varella, médico oncologista que em seu clássico Por um Fio, conta infindáveis histórias de pacientes terminais acometidos pelo câncer, que preferiram suportar a dor e permanecerem conscientes e vivos por mais tempo a receberem altas doses de morfina e antecipar o desfecho inevitável. VARELLA, Drauzio. Por um Fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

75

circunstância, ainda que conhecido o fato de ser conseqüência possível da droga

em uso.

Em que pese o fato de uma primeira análise jurídico-penal conduzir

à impressão de que a eutanásia de duplo efeito encerra uma conduta de dolo

eventual136 ou, ao menos, de culpa consciente ou com representação137, a

eutanásia de duplo efeito é aceita com relativa tranqüilidade, na doutrina jurídica e

até mesmo pela Igreja Católica138, já que, conhecendo-se o fato de que toda

medicação traz em si algum efeito colateral, não parece devido impor a dor sem

controle ao ser humano no final da vida, quando há medicação apta a aliviá-lo,

ainda que aumentando o risco de apressar-lhe o desfecho letal pela gradativa

intoxicação.

Há autores que considerem a eutanásia de duplo efeito como forma

de ortotanásia. Outros rechaçam o uso do termo eutanásia para essa conduta,

preferindo considerar que a morte dela resultante corresponde a um efeito

indesejável de uma medicação necessária. Manteve-se nesta trabalho a

denominação de eutanásia de duplo efeito, por ser ela já tradicional e de

entendimento corrente. Embora considere-se efetivamente mais próxima da

ortotanásia do que do homicídio piedoso em si, segue-se a corrente majoritária ao

considerar a ortotanásia como consistente em condutas de não intervenção

prolongadora, em que se situam as condutas médicas restritivas. A eutanásia de

duplo efeito, embora ocorrida no âmbito de uma conduta necessária e legítima,

não se enquadra nesse espectro, razão por que não será mais aprofundadamente

discutida.139

136 Dolo eventual: assume-se o risco da morte, a fim de praticar o ato visado de reduzir a dor. 137 Culpa consciente: afasta-se mentalmente a idéia de que o evento indesejado possa ocorrer, embora se o saiba possível. 138 Em seu discurso sobre a anestesia, ocorrido em fevereiro de 1957 o Papa Pio XII (cf. HORTA, Márcio Pallis. Eutanásia: problemas éticos da morte e do morrer. Bioética: Simpósio: Eutanásia, Brasília: Conselho Federal de Medicina, vol. 7, n. 1, p. 27-34, 1999) afirma que “se a administração dos narcóticos causa, por si mesma, dois efeitos distintos, a saber, de um lado, o alívio das dores e, de outro, a abreviação da vida, é lícita” (entenda-se “lícita” no sentido de legitimamente aceita). Lembra Horta, porém, que, no duplo efeito, é necessário considerar se entre os dois efeitos existe proporção razoável, de modo que as vantagens de um (analgesia) compensem os riscos do outro (possível piora da debilidade ou aceleração da morte). 139 Roxin tece pertinentes comentários a respeito da dificuldade na fundamentação jurídica da eutanásia indireta, citando, entre as possíveis soluções, o fato de tratar-se de conduta socialmente adequada, não estando inserida no sentido do tipo relativo ao homicídio. Aponta como dominante, entretanto, em seu ordenamento jurídico, o entendimento do enfermo em fazer uso da medicação apaziguadora de seu

76

Em síntese, tratando-se dessa espécie de eutanásia, há um conflito

de interesses entre o risco da antecipação de morte indesejada e o dever de

aliviar a dor, contribuindo para a dignidade do ser humano que padece de doença

incurável. Ante a ponderação entre a certeza do sofrimento intenso e o risco da

aceleração da morte próxima e inevitável, opte-se pelo bem-estar do doente em

seus momentos finais.140 Assim, em regra, verificada a ausência de animus

necandi141 na prescrição da droga, que se destinava tão somente a aliviar a dor –

direito do paciente e dever do médico – a conduta se mostra não delituosa.

2.2.3 A eutanásia quanto à vontade do doente/paciente

Sob o ponto de vista da vontade do enfermo, a conduta eutanásica

pode ser voluntária, quando solicitada pelo paciente, em gozo pleno de sua

capacidade; ou involuntária, quando realizada por decisão de outra pessoa que

não o próprio interessado, o qual possivelmente não se encontra em condições de

decidir.

Entende-se que, nesta hipótese, a pessoa legitimada a decidir

somente poderia ser o representante legal do paciente, não cabendo considerar a

possibilidade de eutanásia por decisão exclusivamente médica. Difere, portanto,

da conduta médica restritiva, em que a omissão ou a suspensão do tratamento

fútil é decisão eminentemente médica, tomada na esfera da autonomia do

profissional, com lastro em conhecimentos técnicos de indicação ou não indicação

de medidas terapêuticas, quando já não há evidência de utilidade para o

indivíduo, embora deva sempre existir a comunicação prévia à família. Se o

paciente não é capaz de decidir e não há quem por ele se responsabilize, é mister

recorrer à Justiça, para que se lhe nomeie um curador.

sofrimento apesar do risco que ela representa (ROXIN, Claus. A Apreciação Jurídico-Penal da Eutanásia. Trd. Luis Grecco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: RT/IBCCRIM, a. 8., n. 32, p. 09-38, out/dez. 2000). 140 ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Anotações sobre a existência de um excludente constitucional de antijuridicidade. Revista dos Mestrandos em Direito Econômico da UFBA, Salvador, n. 9, p.367-378, jan./dez. 2001. 141 Desejo de consciente e proposital de produzir o óbito.

77

Não se pode conceber a eutanásia realizada contra a vontade do

doente, o que fugiria à definição de eutanásia para configurar verdadeiro ato de

homicídio simples ou qualificado, a depender de sua motivação e modo de

execução, ou agravado pelo fato de se tratar de pessoa enferma 142. Nessa

hipótese, o motivo piedoso estaria de plano descartado, uma vez que o próprio

acometido não considera seu sofrimento insuportável, preferindo preservar sua

existência. Refuta-se, assim, a classificação de alguns autores em eutanásia

voluntária, não-voluntária (que seria aquela realizada sem a manifestação pessoal

do paciente, inapto a consentir, como no caso de bebês e pacientes em estado

vegetativo persistente) e involuntária (então entendida como sendo a morte

promovida contra a vontade do paciente capaz).143

Há também quem entenda que a eutanásia voluntária abrange a

vontade do paciente ou a de seu representante, enquanto a eutanásia involuntária

(no sentido que aqui está-se adotando: de eutanásia perpetrada sem a

manifestação de vontade do interessado, que se encontra incapaz de decidir)

seria decidida por outras pessoas, como médicos e enfermeiros, à revelia daquela

vontade. Esse não é o entendimento majoritário, aqui seguido, e segundo o qual a

voluntariedade então expressada é manifestação personalíssima no enfermo,

sendo considerada involuntária aquela provinda de qualquer outra pessoa. Já a

morte contra a vontade nada tem de piedosa ou de tranqüila. Note-se, contudo,

que o Código Penal brasileiro de 1940 exige apenas a motivação compassiva,

não se cogitando do consentimento autônomo (seja consentimento simples, seja

o consentimento qualificado, é dizer: livre e esclarecido) do doente nem, ao

menos, de sua família.

Ainda que não se equipare a decisão da família à decisão do

paciente quanto à voluntariedade, parece relevante, de fato, distinguir a eutanásia

que, embora involuntária quanto à decisão do paciente, passou pelo crivo da

decisão familiar ou de seu representante – aqueles que melhor podem falar por

ele, durante seu estado de inconsciência – em contraposição à morte que foi

142 Nos termos do artigo 61, inciso II, alínea h do Código Penal brasileiro. 143 SINGER, Peter. Ética Prática. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 188-191. Em prol da divisão dicotômica em voluntária e involuntária apenas, no sentido que aqui se defende, cf. SEGRE, Marcos. Eutanásia: aspectos éticos e legais. Ver. Ass. Med. Brasil, vol. 32, n. 718, p. 141-142, jul./ago. 1986.

78

decidida por outros, os quais não tinham qualquer legitimidade para tal decisão,

ainda quando movidos por compaixão. Caso se optasse, de lege ferenda, pela

licitude da eutanásia involuntária 144, ela somente deveria ser admitida naquele

teor, qual seja: o pedido familiar, substitutivo da vontade do enfermo;

permanecendo a última hipótese, isto é, a decisão tomada por quem não tem

autoridade para decidir pelo doente, como situação de homicídio privilegiado, se

presentes os requisitos para tanto, qual seja, sobretudo, o móvel piedoso, que dá

corpo ao “relevante valor moral” exigido pela lei pátria vigente.145

De um modo geral, considera-se eutanásia a interferência no

momento da morte de um doente incurável, preferencialmente terminal e em

grande sofrimento que não se tem como evitar, antecipando-a, a pedido dele e

motivado por compaixão diante de seu padecimento. A maior parte desses

elementos tem sido questionada em alguma das classificações, ampliando-se ou

restringindo-se, assim, a idéia de eutanásia. Dentre eles, a solicitação do

enfermo, maior indicador da voluntariedade da prática eutanásica, tem sido um

dos mais discutidos.

Assim, no que tange ao pedido, tem-se que, nas legislações que

permitem alguma interferência no momento da morte, no sentido de antecipá-la,

deve ele preencher certos requisitos, a saber: ser feito repetida e

conscientemente, estando o doente em gozo pleno de suas faculdades mentais

etc. Discute-se, ainda, a possibilidade de pedido prévio, por meio de testamentos

vitais, em que se limita o uso de certos recursos, mesmo quando indicados, o que

funcionaria como uma recusa antecipada de tratamento, não se

descaracterizando a voluntariedade da conduta pela anterioridade do pedido, uma

vez que resultante de decisão livre do próprio interessado e passível de

modificação a qualquer tempo, sugerindo-se sua renovação anual ou qüinqüenal.

144 E aqui se fala da eutanásia direta, seja ativa ou passiva, afastando-se, portanto, as condutas médicas restritivas e o duplo efeito. Mesmo nessas hipóteses, contudo, é imprescindível a consulta ao paciente, sempre que possível, como pessoa mais apta a mensurar seu próprio sofrimento, a dimensão da dor física a ser combatida pelas medicações potencialmente letais (observadas na eutanásia de dupli efeito, por exemplo), assim como é quem melhor avalia a agressividade das medias a serem evitadas nas condutas médicas restritivas, com intuito de afastar a distanásia. 145 Artigo 121, parágrafo 1º, Código Penal brasileiro.

79

Ten Have146 sublinha que o pedido pode ter caráter meramente

eventual, como quando o indivíduo toma conhecimento de que é portador de uma

doença fatal. Esse pedido tem um cunho preventivo quanto à degradação e ao

sofrimento finais, podendo nem se efetivar concretamente. Ele funciona como

uma espécie de pacto, para que o doente averigúe a posição do médico sobre o

tema e saiba se pode contar com ele, caso venha a tomar futuramente essa

decisão. Difere, portanto, do pedido específico, feito por paciente que já se

encontra em fase terminal, com sofrimento intenso e incontrolável e que objetiva

realmente a antecipação da morte.

Esse autor destaca, ainda, que, na maioria dos eventos

historicamente arrolados como eutanásia, a autonomia do enfermo na decisão

não era característica das mais relevantes; a ênfase recaía no alívio do sofrimento

(excluídas aí as condutas meramente eugênicas ou econômicas, de eliminação

dos indivíduos inconvenientes ao grupo social). Era a “morte piedosa”, por

compaixão, decidida, em regra, pelo médico ou por quem acompanhava o doente,

quando se entendia que o sofrimento torna-se tão severo que a morte deixara de

ser um mal. Vigia, então, o franco paternalismo médico, em que o paciente tinha

muito pouca voz de decisão a respeito do que seria feito de si mesmo.

Atualmente, vive-se uma era da valorização da autonomia

(verdadeira supremacia do direito à liberdade), somente limitada por interesses

superiores que tenham em vista a proteção da própria coexistência social. Já não

se concebe a exclusão da manifestação do enfermo nesse momento, mas é de se

frisar que o peso não deve ser colocado somente na vontade. Possivelmente, se

assim fosse, haveria muito mais casos de eutanásia, solicitada por pessoas que

alegassem estar simplesmente “cansadas de viver” ou que se sentissem pouco

146 HAVE, Henk A. M. J. Tem. Euthanasia: Moral Paradoxus. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte, ob. Cit., p. 63-76. No que tange ao pedido, Verspirien afirma que a aceitação do médico perante o pedido de eventual poderia deteriorar a confiança, essencial na relação médico-paciente. (L’Assistance Médicale au Suicide. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte, Idem, p. 93-106). Em contrário a isso, citam-se casos de pacientes que, questionados, informaram que a confiança pessoal em seu médico aumentaria se o mesmo lhe asseverasse auxiliá-lo a morrer, quando as dores e sofrimentos se tornassem insuportáveis (BEAUCHAMP, Tom; CHILDRESS, James. Princpipios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002, p. 257, e SCHRAMM, Fermin Roland. A questão da definição da morte na eutanásia e no suicídio assistido. OMundo da Saúde: Bioética, uma Perspectiva Brasileira, São Paulo: São Camilo, ano 26, vol. 26, n. 1, p. 178-183, jan./mar.2002).

80

úteis ao grupo em que vivem. Os critérios, portanto, devem ser bem definidos,

para que não se incorra na esfera da mera subjetividade do médico ou doente,

visto que a defesa à vida é, como se destacou no capítulo antecedente, interesse

de toda a coletividade.

A eutanásia sem a autorização do enfermo (involuntária ou não-

voluntária, conforme a corrente adotada) é defendida por alguns autores, sob o

argumento de que determinados pacientes em estado de inconsciência

irreversível, como nos estados vegetativos persistentes, já não têm qualquer

interesse em serem mantidos vivos, devendo-se priorizar, nesse caso, os

interesses daqueles que zelam por eles, a quem seria dado decidir, com base nos

valores presumidos do doente ou nas resoluções antecipadas dele emanadas,

quando era capaz. Tanto pior é o caso de pacientes terminais, sofrendo dores

severas, mas que já não têm lucidez para solicitar validamente a morte

apaziguadora.

Também na hipótese de recém-nascidos gravemente

comprometidos e incapazes de manifestar sua vontade, defende-se que se

deveriam estabelecer requisitos para que – caso admitida a eutanásia voluntária –

fosse possível franquear a opção da “morte amena” aos pequenos pacientes,

conforme a decisão de seus pais, quando ficasse evidente que eles nunca

chegariam a alcançar uma condição de vida minimamente aceitável, nem seriam

capazes de travar qualquer espécie de relação interpessoal. Se assim não fosse,

recair-se-ia numa condição injusta em que as crianças, por não terem capacidade

de decidir teriam de se sujeitar a dores e sofrimentos pelo quais os adultos não

seriam obrigados a passar.147

Inevitavelmente, tais argumentos recorrem à noção de qualidade de

vida, cuja subjetividade e indeterminação já foi comentada. Não se pode

discordar, por exemplo, do fato de que um paciente terminal que se tornou

incapaz talvez esteja padecendo até mais do que outro enfermo que, por ainda

147 Reza o artigo 18 do Estatuto da criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), in verbis: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-as a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

81

conservar sua autonomia, poderia requerer o fim do sofrimento. Também parece

assente que a vida em estado vegetativo persistente, por anos incalculáveis,

inapta para qualquer contato social, experiência nova ou raciocínio,

absolutamente dependente e sem qualquer esperança de reversão, é realmente

de péssima qualidade: ela perdeu, em essência, as características de uma vida

humana, aproximando a pessoa de um objeto, insensível a manifestações

externas e privado de sua capacidade de pensamento, como “cadáveres

viventes”, na expressão de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos.148

Contra argumenta-se que, apesar de tamanha dissociação de si

mesmo, o indivíduo nessas condições ainda faz parte da espécie humana e como

tal deve ser alvo de proteção legal. Incorre-se aí no temor da “ladeira

escorregadia” (slippery slope), argumento freqüentemente utilizado para afastar

situações que, embora aceitáveis prima facie, abririam caminho, segundo seus

opositores, para outras práticas, consideradas inadmissíveis. Assim, ao entender

possível a eutanásia involuntária de membros da espécie humana que se

encontrassem agonizando, ante a morte iminente, poder-se-iam estar criando

precedentes para a eliminação de indivíduos que não fossem terminais nem

passassem por sofrimentos incontroláveis, mas acerca dos quais, pela gravidade

de seu quadro ou pela falta de quem zele por seus interesses, não se

entendessem compensadores os esforços para mantê-los.

Também no caso do paciente em estado vegetativo persistente,

poderia ocorrer a generalização da antecipação de morte para pessoas

inconscientes que não estivessem em condição irreversível, como no coma; ou

ainda, na hipótese do recém-nascido inviável, passar-se a admitir a morte de

recém-nascidos com malformações que não comprometessem a subsistência.

Observa-se, então, que a eutanásia involuntária remete comumente ao medo de

fundamentos econômicos e eugênicos, temendo-se, com isso, uma excessiva

relativização da proteção ao direito à vida digna.

148 Transplante de Órgãos e Eutanásia: Liberdade e Responsabilidade. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 155.

82

Uma solução possível para esse impasse seria a aceitação de

diretrizes antecipadas, os chamados testamentos vitais, em que, no exercício de

sua autonomia, o indivíduo capaz determinaria como deseja ser tratado,

obedecendo os limites legais, caso se torne incompetente para decidir por si,

respaldando dessa forma as decisões de seu representante. Essa alternativa

deixa em aberto, contudo, a situação de indivíduos que nunca chegaram a se

tornar capazes, como os menores e os portadores de enfermidade mental,

condições em que se deve decidir, no caso concreto, em prol do que se entenda

ser o melhor interesse desses pacientes.

Questiona-se afinal: é possível falar em eutanásia antes de o

sofrimento tornar-se insuportável? A resposta deve ser, via de regra, negativa. A

“insuportabilidade” deve ser um dos requisitos para se falar em ausência de

dignidade, tal como se defendeu outrora. A eutanásia não é solução para falta de

motivação ou de inserção social de doentes crônicos ou de idosos, pela ausência

de estrutura de comunidade ou de instituições que lhes assegurem uma

integração e uma vida relacional adequadas. Ela é a derradeira e extraordinária

opção quando tudo o mais falha na busca do alívio e, ainda assim, sua validade é

discutível. É reação esperada que o indivíduo acometido por enfermidade

potencialmente letal se desespere ante o diagnóstico, com a perspectiva do

sofrimento e da deterioração física e mental, e solicite a “morte boa”, mas não se

pode concordar que se atente contra a vida de alguém (mesmo a pedido seu),

sob a alegação de que, em futuro talvez distante, teme-se uma morte dolorosa. A

dor insuportável é assim – frise-se – elemento imprescindível para que se possa

falar em eutanásia.

A evolução científica nem sempre é rápida o suficiente a fim de

beneficiar o doente terminal; existem trâmites de pesquisa demorados (e assim

deve ser, para uma maior segurança de todos), antes que uma nova medicação

alcance o mercado e o uso habitual e, mesmo quando liberada, ela possivelmente

atenderá a casos mais precoces, e não ao estado avançado, em que já existe

falência de grande parte do organismo. É possível, entretanto, que, no caso de

mal há pouco diagnosticado, a ciência encontre a cura ou importante paliação,

antes que ele venha a se tornar terminal. Se a eutanásia dita terapêutica já é

83

sumamente polêmica, imagine-se o que dizer de uma eutanásia de tal modo

antecipada.

2.2.4 A eutanásia quanto à finalidade do agente: a classificação

de Jimenez de Asúa

Dentre as várias classificações adotadas para a conduta eutanásica,

uma das mais conhecidas advém da década de 40, com a obra de Luis Jimenez

de Asúa, Libertad de Amar y Derecho a Morrir 149. Nesse texto, o autor defende

que só existiriam três formas de eutanásia: libertadora, eliminadora e econômica,

conforme os fins visados pelo agente.

A eutanásia libertadora – também chamada terapêutica – tem por

escopo livrar o doente de um sofrimento insuportável, que de outro modo não

pode ser contido. O autor atribui a função libertadora também à morte dada a

pacientes inconscientes em virtude de acidentes, por exemplo, quando se

presume que, ao despertarem, que sofrerão enormemente com sua situação.

Observa-se, em ambas as hipóteses, a presença importante do móvel

humanitário na conduta do agente, a qual se volta geralmente para pacientes

incuráveis e terminais.

A eutanásia dita eliminadora é chamada por outros autores de

eugênica ou selecionadora e objetiva a supressão de portadores de anomalias

genéticas de expressão física ou mental, de vítimas de doenças contagiosas e

mesmo de criminosos, intentando-se o “melhoramento” da espécie e do grupo

social.

A eutanásia econômica se aproxima muitas vezes da eugênica, ao

promover a morte de doentes mentais, de idosos, de inválidos, de indivíduos em

como ou em estado vegetativo; em suma, daqueles que representem uma carga

149 ASÚA, Luis Jimenez de. Libertad de Amar y Derecho a Morrir: Ensayos de um Criminalista sobre Eugenesia y Eutanasia. 7ª Ed. Buenor Aires: Depalma, 1992, p. 409-411. Cf. também comentários de CARVALHO, Gisele Mendes de. Aspectos Jurídico-penais da Eutanásia. São Paulo: IBCCRIM, 2001, p. 19-22.

84

social. O objetivo aqui é disponibilizar, com a morte desses pacientes, os recursos

materiais e humanos que eles vinham consumindo.

Note-se que essas duas últimas espécies têm cunho marcadamente

involuntário – tanto no sentido que normalmente se adota para a expressão

“involuntário”, qual seja, o da ausência de manifestação de vontade do paciente,

como mesmo no sentido de morte data contra a vontade dele. Ainda quando

decorrente de petição expressa, se a motivação do agente na conduta é

eminentemente utilitarista, descaracteriza-se, assim, o intuito misericordioso que

deu à eutanásia a sinonímia de homicídio piedoso.

Necessário se faz distinguir, ainda, a eutanásia da eugenia. Em

1883, Francis Galton definiu eugenia como sendo o estudo dos meios que, sob o

controle social, podem melhorar ou deteriorar, física ou intelectualmente, a

qualidade da raça nas gerações futuras.150 A eugenia funciona como uma

tentativa humana de interferir na evolução da espécie, em prol de características

mais valorizadas pela sociedade atual (indivíduos mais inteligentes, mais hábeis,

que enxerguem melhor, mais saudáveis etc., ou mesmo características físicas,

como a possibilidade de privilegiar indivíduos mais altos ou de um determinado

grupo racial).

A eugenia é geralmente muito debatida quando se discute a

reprodução humana assistida, mas ela também pode ter sede em uma discussão

acerca do final da vida, quando a motivação eugênica se torna subsídio para a

antecipação da morte de indivíduos socialmente desprestigiados por suas

características físicas ou mentais. Assim é que a morte dada a um paciente

portador de esclerose lateral amiotrófica.151 pode ser considerada libertadora,

quando movida pela compaixão diante da angústia e dos apelos do acometido;

como pode revelar-se eugênica, quando é realizada até sem o conhecimento do

doente, visando a eliminar um portador de genes “inadequados”. Ou ainda pode

150 ASÚA. Libertad de Amar y Derecho a Morrir, 1992, p. 4. 151 Doença neuromuscular progressiva, de natureza genética, em que o doente termina por perder totalmente a capacidade de automobilização, tornando-se absolutamente inválido, embora com lucidez preservada, dependendo de aparelhos para respirar e podendo ocorrer que, na fase final, comunique-se apenas pelo piscar de olhos.

85

ser caracterizada como eutanásia econômica, se objetiva a desocupação do leito

ou dos aparelhos para serem utilizados em outro paciente, liberando a família da

carga financeira que representa manter aquele enfermo.

Pelo conceito até então adotado para eutanásia – qual seja, o da

morte dada a pedido do doente em sofrimento incontrolável e movido por

compaixão ante esse sofrimento – não se pode considerar que as formas

eliminadora e econômica sejam efetivamente formas de eutanásia. Não se

vislumbra nelas qualquer motivação nobre que as situe penalmente como delitos

privilegiados, muito pelo contrário: têm motivação torpe e repreensível e são

sempre lembradas como argumentos contrários à eutanásia pelos que temem que

a legalização de condutas antecipatórias da morte de doentes terminais em

grande sofrimento abra caminho à legalização da eliminação de paciente que não

se encontram à morte, contra ou sem a sua vontade, motivada por interesses

eugênicos ou econômicos.

Nesta mesma linha de pensamento, são merecedoras de crítica

expressões geralmente utilizadas nessa classificação, como “indivíduos

desprovidos de valor vital”. Somente o morto é desprovido de valor vital e da

proteção devida a todo ser humano vivente. Tanto é assim que, mesmo onde a

eutanásia é aceita, não se devem admitir formas cruéis de seu exercício. Além

disso, é impossível rotular objetivamente a importância da vida alheia, a exemplo

do que ocorria no regime nazista. Não se trata de dizer que a existência daquele

indivíduo não tem valor; o fato a se investigar é se essa existência se tornou

menos valiosa para seu titular do que valores outros que também lhe são caros,

como a dignidade no processo de morrer.

A eutanásia eugênica e a econômica ferem os direitos mais básicos

do ser humano, dentre os quais se destacam: a vida, a liberdade e a igualdade –

segundo a qual todos os seres humanos devem ser tratados de maneira

equânime, e o enfermo, mesmo grave e incurável, tem tanto direito a cuidados

como todos os demais. Assim, qualquer decisão concernente a ele somente pode

ser tomada em seu melhor interesse, o qual deve ser por ele mesmo indicado ou

por quem tenha autoridade legal para, na sua impossibilidade, falar em seu nome.

86

2.3 Suicídio Assistido

Muito embora não se trate rigorosamente de uma espécie de

eutanásia, o suicídio assistido (por médico) é normalmente abordado em estudo

sobre o tema. Diz-se que ele pode ter por substrato uma situação bastante similar

àquela a que se dirigiria à eutanásia, qual seja, a do paciente em grande

sofrimento, por conta de uma doença incurável.152 A distinção é que, no suicídio

assistido, a morte seria provocada pelo próprio indivíduo enfermo, cabendo ao

terceiro – geralmente o médico – apenas ajudá-lo materialmente em seu intento,

comovido com a situação desesperada em que se encontra o doente.

Para Tem Have153, essa distinção responde precisamente pela

justificação moral do suicídio assistido, com fulcro no princípio da autonomia, já

que, se o médico apenas receita o necessário para pôr termo à vida, e o doente

mesmo o faz, em última análise,a responsabilidade moral estaria nas mãos do

próprio doente, tornando mais segura a aferição da voluntariedade da decisão.

A noção de assistir o suicida advém da idéia de auxílio, de ajuda

material, de provisão dos meios ou dos conhecimentos necessários para que o

suicida chegue a cabo em seu propósito. A indução ou a instigação feririam, in

casu, a voluntariedade da conduta, descaracterizando a autonomia da decisão,

por configurarem uma influência a alguém que já se encontra em difícil situação,

física e psicológica. É possível conceber que, por compaixão, ajude-se alguém

que deseja por fim à própria vida em face dos motivos citados, mas crê-se ser

duvidoso vislumbrar boa intenção em quem instiga o indeciso ou induz à idéia o

enfermo que não pretendia morrer, revelando-se tais condutas como

absolutamente indesculpáveis. Como já sobredito, é o doente que conhece a

intolerabilidade de seu estado, não sendo cabível que outro o encoraje a pôr

152 Observe-se que, em regra, os enfermos que se valem do suicídio assistido não são terminais, eles geralmente recorrem ao suicídio exatamente temendo a conjuntura da terminalidade, quando, então, talvez já não tenham condição de fazê-lo. Por esse prisma, também são movidos mais vezes pelo temor do sofrimento intenso do que pelo sofrimento em si; ou ainda objetivam subtrair-se a uma forma de vida que consideram intolerável, mas que, embora irreversível, não produz necessariamente a morte, como nos caso dos inválidos e dos que se encontram em fases iniciais de doenças neurodegenerativas. 153 HAVE. Euthanasia: Moral Paradoxus. In Tempo de Vida e tempo de Morte, p. 93-106.

87

termo em sofrimentos que ele mesmo não está convencido de que não possa

suportar.

O artigo 122 do Código Penal brasileiro tipifica a conduta de induzir,

instigar ou auxiliar o suicídio. Note-se que, em nosso ordenamento, não existe,

quanto ao suicídio assistido, sequer o privilégio do relevante valor moral, existente

no homicídio. A conduta de auxiliar o suicida revela-se indiscutivelmente ilícita em

nosso sistema.

Para Verspieren,154 a postura seguida pelo legislador brasileiro é

das mais adequadas, pois lhe soa altamente questionável incluir entre as funções

do Estado e dos profissionais de saúde o dever de participar de condutas que

visem a abreviar o final da vida, ainda que ela venha pelas mãos do próprio

doente. Dever-se-ia, por acaso, reconhecer um direito subjetivo a tal assistência?

– questiona ele.

É de se ponderar, sem dúvida, que, em grande número de

situações, o suicídio, assim como a solicitação de eutanásia, é motivado por um

quadro de depressão, causada ou piorada pelo estigma de doentes sem

prognóstico ou terminais. Nessas condições, é possível a ilação de que o paciente

em tal condição tornar-se-ia particularmente vulnerável a sugestões claras ou

veladas de que sua vida já não vale ser vivida, de que sua existência representa

um ônus para os que o cercam, de maneira que decisões aparentemente

conscientes não seriam, de fato, autônomas.

Como ferrenho opositor a qualquer forma de interrupção da vida,

Verspieren lembra, ainda, que o suicídio é um grave problema de saúde pública e

que sua admissão para doentes terminais poderia levar a um desestímulo quanto

à evolução dos cuidados paliativos, como se o tratar de pacientes em morte

iminente fosse mero desperdício de recursos materiais e humanos. Para o autor,

trabalhando-se a auto-estima e a minoração dos sofrimentos desses indivíduos,

reduzir-se-iam drasticamente os pedidos de assistência ao suicídio.

154 VERSPIEREN. L’Assitence Médicale au Suicide. In: Tempo de Vida e Tempo de Morte, p. 93-106.

88

É possível argumentar em contrário que a assistência ao suicídio

está voltada, em verdade, exatamente para os pacientes que, após todo o amparo

médico e psicológico adequado, ainda persistem na crença de que a

sobrevivência em tais condições não condiz com a dignidade por ele pretendida

para o final de sua existência. As necessidades das pessoas em fim de vida

devem, sim, ser atendidas com o máximo possível de presteza e eficiência, mas

há casos em que a Medicina não alcançou ainda as respostas, e em que o viver

se torna um peso grande demais. Nessas ocasiões, a morte passa a lhes parecer

não uma opção a mais, como sugere e contesta o autor, mas, no dizer de

Evandro Corrêa de Menezes155, “remédio último” possível.

Em sua conclusão, Corrêa de Menezes interroga se haverá de fato

uma morte boa. A morte, diz ele, é a “tragédia suprema”... É inegável, contudo,

que existem formas mais aceitáveis e formas piores de morrer. Em se

considerando a morte “o remédio último”, mas se os homens não se sentem

infalíveis o bastante para aplicá-lo (e de fato não o são), ao menos que não

retardem sua chegada inevitável, brigando inutilmente contra a Natureza quando

se torna evidente que a batalha está perdida.

2.4 Aspectos extra-jurídicos da eutanásia: o aspecto religioso

A relação da sociedade com a morte tem-se mostrado assaz

variável ao longo da história humana. Reflexamente, altera-se também a

interpretação moral156, social e jurídica conferida à situação em que o indivíduo,

155 MENEZES, Evandro Corrêa de. Direito de Matar: Eutanásia. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Freitas bastos, 1977, p. 132. 156 Acerca da distinção entre moral e ética, bem como sua relação com o mundo jurídico, é de se destacar que, embora ética e moral sejam usados frequentemente como sinônimos, a moral deriva do radical latino mores, que significa costumes, implicando importante influência do meio e configurando hipótese de imposição externa à conduta do indivíduo. O juízo de reprovação pelo descumprimento de uma regra moral é expresso de modo difuso, somente tomando caráter de sanção organizada e com a chancela estatal se essa norma moral se revela tão relevante para a organização social que se juridiciza, isto é: ganha status de norma jurídica. A ética, por sua vez, relaciona-se com o ethos grego, que indica o local em que se vive (donde a confusão com a moral, também relacionada com a moradia, a praxe local), mas pode ainda ser traduzido como caráter. Este último entendimento confere à ética uma índole interna, associada ao modo peculiar de agir do indivíduo, segundo sua avaliação de bem e de mal. Leonardo Boff, no texto “Daimon e Ethos” (Jornal

89

geralmente o médico, vem a interferir no momento da morte, em nome do bem

estar do paciente, a fim de libertá-lo de um estado de dor e sofrimento.

“Tema profundamente humano, a que não falta o acento trágico”, no

dizer de Salgado Martins157, é incontroverso, da mesma forma, trata-se de tema

que exerce grande interesse, verdadeiro fascínio, desde as mais remotas eras,

haja vista compor o seu arquétipo, aquele que é o único e inarredável destino de

todos os seres vivos, que a todos alcança sem conhecer padrões, privilégios,

classes ou posições. A única certeza de todo ser vivo a partir de seu nascimento:

a morte.

A certeza da morte sempre fascinou o homem. A incerteza da

continuidade, o medo do desconhecido, a definitividade da ausência outorgaram à

morte o respeito e a reverência que ainda hoje lhe defere a humanidade.

Dentro deste contexto, fato é que existem vários ângulos ou várias

facetas a serem devidamente analisados quando o assunto é eutanásia. São

A tarde, Salvador, p. 02, 27 jun. 03) cita Heráclito, que definiu o ethos como sendo “o anjo bom do ser humano”. Esses juízos de bem e de mal naturalmente sofrem influência cultural, temporal e espacial e podem ser também convertidos em normas jurídicas, o que ocorre com os denominados Códigos de Ética profissional, pacificamente entendidos como normas legais e não mais exclusivamente éticas. Marcos Segre e Cláudio Cohen, no texto “Definição de valores, Moral, Eticidade e Ética” (In SEGRE, marcos: COHEN, Cláudio (Org.). Bioética.São Paulo: Edusp, 1995, p. 18. Cf. também SEGRE, marcos. Eutanásia: aspectos éticos e legais. Ver Ass. Méd. Brasil, vol 32, n. 718, p. 141-142, jul./ago. 1986), resumiram a questão dizendo que a moral vem de fora, a ética vem de dentro (embora influenciada indubitavelmente pela axiologia do meio). O Direito também é heterônimo e, em sua confecção, reflete os valores éticos e morais que irrigam determinada sociedade. A professora portuguesa Maria do Céu Patrão Neves, em seu texto “introdução: A bioética como reflexão e como prática” (In: Neves, M. Patrão. Comissões de Ética: Das Bases Teóricas à Actividade Quotidiana. 2ª ed. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2002, p. 29-36., aponta o termo “moral” como a tradução latina do éthos grego, reportando a uma “ciência dos costumes”, “modo de ser”, “caráter”; ao passo que “ética” estaria mais relacionada com o sentido originário de êthos (observe-se a distinção entre as grafias feitas por essa autora), qual seja, “lugar próprio do homem”, morada”, destacando-se o aspecto cultural, numa relação tempo-espaço. Em sentido semelhante, posiciona-se Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos (O equilíbrio do Pêndulo: A Bioética e a Lei. Implicações Médico Legais. São Paulo: Ícone, 1998, p. 30), para quem o ethos indicava os costumes passados de geração a geração, designando a expressão como indicativa de “lugar onde se habita, morada”. Já a filósofa Marilena Chauí (Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994, p. 340) aproxima a noção de ethos da moral, relacionando-as com o caráter, a índole pessoal, controladores das ações praticadas. Perelman (PERELMAN, Chaïn. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 298-299) afirma: “o direito enfatiza o comportamento externo, a moral rege a intenção”. E interroga, acerca da eutanásia (p. 306): “Deverão as regras jurídicas ser a tal ponto diferentes das regras morais que obriguem a condenar, como culpadas de homicídio, pessoas de que a opinião pública tenha sobretudo piedade e cujo comportamento pareceu, a muita gente, não ser imoral?”.157 MARTINS, Salgado. Sistema de Direito Penal Brasileiro – O Problema Humano e Jurídico da Eutanásia – Do Chamado crime eutanásico. José Konfino Editor, 1957, p. 449.

90

aspectos extra-jurídicos tais como o aspecto histórico, econômico, sociológico,

psicológico, biológico, religioso entre outros.

Interessa, no presente trabalho, dar destaque ao aspecto religioso,

mesmo que seja em breves linhas.

Sejam quais forem os motivos, o certo é que a prática da eutanásia

não encontra qualquer abrigo perante às comunidades religiosas.

A religião católica é incisiva e expressamente contrária à eutanásia

em geral – posição esta reafirmada recentemente por ocasião da divulgação da

encíclica papal “Evangelho e Vida”158, de 1995. Admite, contudo, a renúncia de

alguns tratamentos destinados tão-somente a prolongar inutilmente uma

existência sofrida (ortotanásia). Cite-se breve trecho:

Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de poder apropriar-se da vida e da morte para decidir delas, quando na realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte irremediavelmente fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até legalizada. Para além do motivo de presunta compaixão diante da dor do paciente, às vezes pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado gravosas para a sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos, sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos é lícito calar frente a outras formas mais astuciosas, mas não menos graves e reais, de eutanásia, como são as que se poderiam verificar, por exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de material para transplantes, se procedesse à extracção dos órgãos sem respeitar os critérios objectivos e adequados de certificação da morte do dador.

Também o Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da

Igreja católica, aberto sob o papado de João XXIII no dia 11 de outubro de 1962 e

terminado sob o papado de Paulo VI em 8 de dezembro de 1965, discutiu e

regulamentou vários temas da Igreja católica. Em determinado trecho do

documento final, diz-se que:

158 EVANGELIUM VITAE, 1995, obtido em http://www.vatican.va

91

(...) nada nem ninguém pode autorizar a morte de um ser humano inocente. Porém, diante de uma morte inevitável, apesar dos meios empregados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a alguns tratamentos que procurariam unicamente uma prolongação precária e penosa da existência, sem interromper, entretanto, as curas normais devidas ao enfermo em casos similares. Por isso, o médico não tem motivo de angústia, como se não houvesse prestado assistência a uma pessoa em perigo.159

O papa Pio XII, em 24 de novembro de 1957, já afirmava que

ninguém é obrigado a curar-se com terapias arriscadas, excepcionais, onerosas,

repulsivas, temíveis ou dolorosas. Esse mesmo Papa e João Paulo II deram

mensagens no sentido de que “um não pode impor ao outro o dever de utilizar

recursos que mesmo de uso corrente possam causar-lhe riscos ou sofrimento.

Essa recusa não equivale a suicídio, pelo contrário, pode ser tida como uma

aceitação de sua condição humana e o desejo de não receber um tratamento

desproporcional aos seus resultados”160.

Ainda o Papa Pio XX chegou a ponderar que “é de incumbência do

médico tomar todas as medidas ordinárias destinadas a restaurar a consciência e

outros fenômenos vitais, e empregar medidas extraordinárias quando estas se

acham ao seu alcance. Não tem, entretanto, a obrigação de continuar de forma

indefinida o uso de medidas em casos irreversíveis. De acordo com o critério da

Igreja Católica, chega um momento em que todo o esforço de ressuscitação deve

suspender-se e não nos opomos mais à morte”161.

O padre francês Hubert Lepagneur, da Ordem dos Camilianos162,

identifica quatro situações em que a eutanásia pode se manifestar.

A primeira é o alívio da dor, que foi permitido e exigido pelo

episcopado francês através de documento datado de julho de 1976, com a

seguinte posição: “nunca é proibido usar analgésico para aliviar o sofrimento,

ainda que indiretamente, o desenlace da morte seja adiantado”.

159 Obtido em http://www.vatican.va160 Congresso para a doutrina da fé: declaração sobre eutanásia, Origins, 1980, 10:154. 161 Pio II, Prolongação da vida, citado por Maria Helena Diniz em O estado atual do biodireito, ob. Cit., p. 349. 162 Citado por NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em defesa da Vida – Aborto-Eutanásia-Pena de Morte-Suicídio-Violência/Linchamento. São Paulo: Saraiva, 1995, p.44.

92

Na segunda, “a eutanásia pode ser provocada pela recusa em lançar

mão de terapias. Para o padre, tal atitude configura-se em ação médica e

legítima, quando a vítima se torna vegetativa. A Igreja não se opõe a isso. O Papa

Pio XII dizia que não há obrigação moral de adotar terapias quando o cérebro não

funciona”.

A terceira, foi intitulada “ato positivo de eutanásia negativa”. Significa

deixar o doente morrer naturalmente, “pois a vida é um processo natural, e a

morte também deve sê-lo”.

A quarta, por fim, na classificação do padre, é a eutanásia ativa que

quase todos os países proíbem. É a aplicação de injeção letal ou por outros meios

com o fim de abreviar a vida e o sofrimento do paciente terminal.

O protestantismo, por seu turno, em tese alberga idêntico

posicionamento. O Pastor presbiteriano Jaime Wright defende ainda a

constituição a priori de um termo onde a pessoa pudesse optar pela não-

preservação da sua vida, por meios artificiais, de forma inclusive a minorar o

sofrimento dos próprios familiares.163

O Judaísmo, de igual modo, adota o mesmo entendimento. A

Halakah distingue entre o prolongamento da vida, obrigatório, do prolongamento

da agonia, que não o é. “Logo, se houver convicção médica de que o paciente

agoniza, podendo falecer dentro de 3 dias, admitidas estão a suspensão das

manobras reanimatórias e a interrupção de tratamento não analgésico. Deveras,

no Torá, livro sagrado dos judeus, acolhida está a idéia da dignidade da morte,

pois assim reza: ‘Todo aquele cuja existência tornou-se miserável está autorizado

a abster-se de fazer algo para prolongá-la”164.

163 SOARES, Ana Raquel Colares dos Santos. Eutanásia: direito de morrer ou direito de viver? In: Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais. Coord. Willis Santiago Guerra Filho. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1997, p.153. 164 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 7ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p.349.

93

Já na concepção do espiritismo, de acordo com a obra “O Evangelho

Segundo o Espiritismo”165, o sofrimento assim gerado pode ser uma graça dada

ao enfermo para, reavaliando seus conceitos de vida, arrepender-se e dessa

forma, minorar seus sofrimentos futuros.

O Budismo, no que se refere à morte, deixa a questão em aberto.

Não ensina fantasias sobre a vida depois da morte. Busca apenas preparar o

homem, de forma que encare a morte como algo natural, que faz parte da própria

vida.

Vê-se que, de um modo geral, as religiões são praticamente

unânimes em afastar, de forma incisiva, a eutanásia no seu conceito clássico.

Exceções existem, contudo, no que diz respeito à ortotanásia. Neste

caso, não haveria nenhuma “arbitrariedade” ou ato contrário às leis religiosas.

Léo Pessini166, discorrendo sobre o tema da ortotanásia, lembra que

o Papa Pio XII apresentou a flexibilidade da doutrina católica sobre o cuidado médico para com os gravemente enfermos ou moribundos ao dizer que ‘a razão natural e a moral cristã fundamentam, ambas, o direito e o dever de, em caso de doença grave, procurar o tratamento para conservar a saúde e a vida’. Não obstante, ‘normalmente alguém está obrigado a empregar apenas os meios ordinários – conforme as circunstâncias de pessoas, tempos e cultura - , isto é, meios que não impliquem ônus extraordinário para si ou para outrem. Obrigação mais severa seria por demais onerosa para a maioria das pessoas e tornaria muito difícil a consecução do bem superior, mais importante. Vida, saúde, todas as atividades temporais estão na realidade subordinadas aos fins espirituais167.

O próprio Papa João Paulo II decidiu, autonomamente, sair do

Hospital Policlínico Universitário Agostino Gemelli, da Universidade Católica do

Sagrado Coração, em Roma – onde seria submetido a esforço terapêutico – para

permanecer em casa até a hora da morte oportuna, sem sofrimento e os efeitos

iatrogênicos inerentes à obstinação terapêutica, ou seja, à distanásia. Entende-se

165 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. São Paulo: FEB, 2008. 166 Ob. Cit. 167 Acta apostolicae Sedis 49, 1957 apud RIBEIRO, Douglas Costa. Suspensão de esforço terapêutico.

94

que esta foi a Encíclica Silenciosa de Karol Wojtyla, a última em favor da

dignidade humana.

95

CAPÍTULO 3

EUTANÁSIA E ORTOTANÁSIA NO DIREITO ESTRANGEIRO

De uma forma geral, vê-se que a limitação do tratamento e o

cuidado paliativo (ortotanásia) são considerados práticas médicas éticas e até

recomendáveis em diferentes partes do mundo. Têm o apoio da Associação

Médica Mundial, do Conselho Europeu, da Corte Européia de Direitos Humanos e

de supremas cortes de diferentes países, entre os quais Canadá, Estados Unidos

e Reino Unido. É uma prática aceita de maneira tão ampla que a própria Igreja

Católica, que tem uma posição conservadora nas questões que envolvem a

preservação da vida, tem uma encíclica, de 1995180, que considera legítima a

suspensão do tratamento. Já o suicídio assistido e a eutanásia são práticas

condenadas na maior parte dos países181.

Interessa na presente reflexão, analisar, mesmo que brevemente,

como a conduta da eutanásia e da ortotanásia são tratadas em alguns Estados

estrangeiros.

3.1 Estados Unidos da América e o Polêmico Caso “Terri Schiavo”

É sabido que nos Estados Unidos da América vige o sistema da

commom law, sendo o direito baseado nos precedentes da experiência ditada

pelos Tribunais. Trata-se de ordenamento experimentado como sendo

socialmente obrigatório182.

Nos EUA, cada Estado tem sua própria legislação penal, ao

contrário do Brasil, no qual o Código Penal é nacional. Assim, verifica-se que em

180 Encíclica “Evangelho e Vida”, de 1995. 181 BARROSO, Luís Roberto. Jornal Folha de São Paulo, 04.12.2006. 182 ROSS, Alf. Direito e justiça. São Paulo: Edipro, 2003, p. 63.

96

alguns (poucos) Estados americanos são permitidas condutas como a eutanásia e

o suicídio assistido, sujeitos sempre à análise do caso concreto.

Recentemente a imprensa mundial acompanhou com grande clamor

o embate jurídico travado entre o marido de uma norte-americana e família de sua

esposa, que se encontrava em situação clínica bastante delicada.

Theresa Marie (Terri) Schindler-Schiavo, de 41 anos, casada com

Michael Schiavo, teve uma parada cardíaca, em 1990, talvez devido a perda

significativa de potássio associada a bulimia (um distúrbio alimentar), tendo

permanecido por cinco minutos sem fluxo sanguíneo cerebral. Devido à grande

lesão no cérebro, Terri Schiavo ficou em estado vegetativo permanente,

alimentada por uma sonda em uma Unidade de Terapia Intensiva.

A partir de então iniciou-se nas cortes americanas uma batalha

judicial entre o marido de Terri e os pais da paciente. O marido desejava que a

sonda de alimentação fosse retirada, enquanto que os pais queriam que a

alimentação e hidratação fossem mantidas. Por três vezes o marido ganhou na

justiça o direito de retirar a sonda. Nas duas primeiras vezes a autorização foi

revertida. Em 19 de março de 2005 a sonda foi retirada pela terceira vez, assim

permanecendo assim até a sua morte.

Abaixo breve cronologia a fim de compreender melhor a evolução

dos fatos:

1990 – Ainda jovem, 26 anos, sofre uma parada cardíaca decorrente da deficiência de potássio no organismo. A falta de oxigênio provoca graves danos cerebrais e Terri entra em estado vegetativo permanente;

1993 – Os pais de Terri requerem a guarda da filha ao Tribunal de Apelação da Flórida, que nega o pedido;

1998 – Sob a alegação de que a mulher lhe teria confessado preferir a morte a viver em estado vegetativo, Michael Sgiavo, seu guardião legal, pode autorização judicial para retirar o equipamento gástrico que a mantém viva;

97

2000 – A justiça da Flórida determina, pela primeira vez, a retirada da sonda. Os pais de Terri recorrem da decisão proferida pelo Juiz Geroge Greer;

2001 – A Suprema Corte decide não intervir no caso e o tudo de alimentação é retirado. Passados dois dias, é recolocado no organismo da paciente por decisão favorável de um outro juiz da Flórida.

2003 – A Corte de Apelação Estadual confirma a decisão de Greer e, no dia 15 de outubro, o equipamento é desligado pela segunda vez. Os pais de Terri recorrem ao governador da Flórida, Jeb Bush, que sanciona uma lei que dá o direito de intervir no caso. Seis dias depois, o tubo é religado.

2004 – A chamada “Lei terri” é tida como inconstitucional pela Suprema Corte da Flórida, por violação ao princípio da separação entre os Poderes;

2005 – Em janeiro, os pais de Terri se deparam com a recusa da Suprema Corte dos Estados Unidos em revisar a decisão da Corte estadual; no dia 18 de março, a sonda é finalmente retirada.

31/03/2005 – Terri Shiavo morre de inanição em um hospital da Flórida.183

Apesar de todo o envolvimento político, que permitiu reabrir o caso

em nível da justiça federal norte-americana, o primeiro juiz federal que foi

chamado a se pronunciar no caso, não autorizou a recolocação da sonda.

Uma das circunstâncias agravantes, foi a divergência de opinião

entre os familiares da paciente. As posições antagônicas da família iniciaram em

1993, com questões que incluem diferentes versões sobre os interesses em

manter ou terminar o uso da alimentação e hidratação por sonda. O marido

alegou várias vezes que a sua esposa havia manifestado verbalmente, quando

ainda estava consciente, que não desejaria permanecer em um estado como o

que se encontrava. Caso esta manifestação estivesse documentada por escrito se

constituiria uma Vontade Antecipada (Living Will), com respaldo legal pela justiça

norte-americana. Mas a ausência de qualquer documento escrito dificultou a

sustentação probatória do pedido de Michael Schiavo. Por seu turno, os pais

alegavam que o marido da sua filha, não defendia os melhores interesses da

paciente, pois, entre outros motivos, queria interromper o tratamento da esposa,

183 Revista Jurídica Consulex. Eutanásia: a vida é sempre inviolável?. 30. Abril/2005, p. 29.

98

visando a sua morte, por desejar legalizar uma relação estável que tinha com

outra mulher, inclusive com filhos, e que fora estabelecida durante esta disputa.

A sociedade americana dividiu-se. Houve posicionamentos

contrários e favoráveis à manutenção dos aparelhos que davam sobrevida a Terri.

Muitos questionavam o direito de uma outra pessoa poder tomar esta decisão tão

importante em nome de outra. Outros discutiam a questão de recursos já gastos

na manutenção de uma paciente sem possibilidade de alterar o seu quadro

neurológico.

Após longa disputa familiar, judicial e política, houve a retirada

definitiva da sonda que a alimentava e hidratava Terri, vindo a falecer em 31 de

março de 2005.

O caso Terri Schiavo foi relatado na imprensa como sendo uma

situação de eutanásia. Ocorre que, pelas descrição dos fatos aqui relatados, trata-

se de suspensão de medida terapêutica. A manutenção da paciente presa a uma

sonda foi considerada como sendo não desejada pela paciente e incapaz,

segundo laudos médicos, de alterar o prognóstico de seu quadro. Não se está

diante, portanto, de um típico caso de eutanásia no seu sentido estrito. Trata-se,

em verdade, de situação que muito se aproxima da ortotanásia, já que neste

caso, retirou-se suporte terapêutico com vistas a proporcionar uma morte digna.

3.2 Espanha e a batalha de Ramón Sampedro

Ramón Sampedro, nascido em 5 de janeiro de 1943, ficou

paraplégico de 23 de agosto de 1968 a 12 de janeiro de 1998, quando foi

encontrado morto. Durante esses 29 anos, lutou pelo “direito de obter sua

liberdade, aprisionada num corpo morto”, conforme costumava dizer. Pediu,

escreveu cartas, poesias, concedeu entrevistas. Almejava o direito de receber das

mãos de um terceiro, de preferência um médico, duas injeções letais: a primeira

induziria o coma e aliviaria qualquer dor; a segunda provocaria uma parada

cardiorrespiratória.

99

Em 1995, Sampedro requereu à Justiça espanhola que autorizasse

a aplicação de substância necessária para morrer, sem que restasse, ao médico,

o risco de ser processado por homicídio ou instigação e induzimento ao suicídio.

O pedido foi recusado em várias instâncias, inclusive pelo Tribunal Constitucional

Espanhol. Sua vontade também não foi reconhecida pelo Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem, nem concedido pelo Rei da Espanha o salvo-conduto ao

profissional que viesse a realizar o procedimento, conforme Ramón havia pedido.

Por fim, o Comitê de Direitos Humanos da ONU acabou negando autorização

solicitada (após a sua morte).

O grande obstáculo para o insucesso da empreitada de Sampedro é

que na Espanha, o código penal, de 1995, considera a eutanásia e o suicídio

assistido como homicídio. Assim, por mais que as Cortes Espanholas tentassem

de alguma forma encontrar uma saída para os requerimentos de Sampedro,

sempre esbarravam em uma vedação legal clara e objetiva.

Sem ter obtido sucesso pelas vias legais, Ramón Sampedro teve

que lançar mãe de artifício alternativo para colocar em prática seu desejo de

morrer. Conseguiu criar uma rede de pessoas dispostas a ajudá-lo a suicidar-se,

entre elas membros da Associação Direito a Morrer Dignamente (DMD), de

Barcelona. Mas foi Ramona Maneiro, sua namorada nos últimos dois anos, quem

que prestou a ajuda final.184

Ramón Sampedro bebeu, sozinho, com o testemunho de uma

câmera filmadora ligada por Ramona, o cianureto de potássio posto em um copo

e deixado à cabeceira de sua cama.

Escreveu Sampedro:

É um grave erro negar a uma pessoa o direito a dispor de sua vida porque é negar-lhe o direito a corrigir o erro da dor irracional. Como bem disseram os juízes da Audiência de Barcelona: viver é um direito mas

184 MANEIRO, Ramona (com colaboração de Xabier r. Blanco). Querido Ramón: un testimonio de amor. Ediciones Temas de Hoy. Madrid, 2005, 261 p.

100

não uma obrigação. Todavia, não o corrigiram, nem ninguém parece responsável para corrigi-lo.

Aqueles que esgrimem o direito como protetor indiscutível da vida humana, considerando-a como algo abstrato e acima da vontade pessoal, sem exceção alguma, são os mais imorais. Poderão disfarçar-se de doutores em filosofias jurídicas, médicas, políticas ou metafísico-teológicas, mas desde o momento em que justifiquem o absurdo, transformam-se em hipócritas.

A razão pode entender a imoralidade, mas não pode nunca justificá-la. Quando o direito à vida se impõe como um dever, quando se penaliza o direito á libertação da dor absurda que implica a existência de uma vida absolutamente deteriorada, o direito transformou-se em absurdo, e as vontades pessoais que o fundamentaram, normativizam e impõem, em tiranias.

Dizem que não se pode tolerar a morte decidida como um ato de vontade pessoal. Eu penso que é a única das mortes que a Humanidade poderia justificar ética e moralmente.

Os juízes argumentaram erro de forma quando eu lhes perguntava se era justo que se castigasse quem me prestasse ajuda que quero que me seja prestada.

Diz-se que essa ajuda me causará a morte. Basta que a razão entenda que às vezes a morte é menos espantosa que a dor que é preciso suportar para viver, para que seja humana e justa essa liberdade.

Parece que todos podem dispor da minha consciência. Menos eu!185

O caso de Ramón Sampedro configura nítido suicídio assistido – e

não eutanásia como muitas vezes a imprensa noticiou à época.

Analisando sob a ótica do direito brasileiro, o caso representa uma

situação um pouco mais difícil de ser sustentada à luz dos princípios

constitucionais brasileiros. Sim porque apesar de paraplégico, com uma série de

limitações e dores corporais diárias, sua situação estava longe de ser

caracterizada como “terminal”.

Como já se afirmou em outra passagem deste trabalho, entende-se

que o princípio constitucional do direito à liberdade e mesmo o princípio bioético

da autonomia encontram limites no direito à vida e no princípio da dignidade da

pessoa humana. Passar a autorizar que toda pessoa portadora de grave

deficiência física, condenada a viver numa cama, o direito a cometer suicídio

185 SAMPEDRO, Ramón. Cartas do Inferno. São Paulo, 2005.

101

assistido, é conduta a ser vista com cautela e, acredita-se, ainda não encontra

respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.

3.3 França e o Pedido de Vincent Humbert

O artigo 20 do Código Francês de Deontologia Médica afasta a

possibilidade da eutanásia. In verbis:

Artigo 20: O médico deve esforçar-se para apaziguar os sofrimentos de seu doente. Ele não tem o direito de provocar deliberadamente a sua morte.

Assim, na França “tanto a eutanásia ativa é criminosa, quanto a

eutanásia de acompanhamento é um dever para o médico. Ela se inscreve no

dever de assistência e de filantropia do médico. É uma etapa terminal, a qual é

precedida por um período de tentativa terapêutica, o que evita o erro trágico de

prognóstico que todo médico pode cometer. Uma eutanásia de assassinato não

protege naturalmente do que seria um atroz deslize”.186

Desde 14 de abril de 1999, está em trâmite no Senado Francês

projeto de lei nº. 166, que estabelece a descriminalização da eutanásia, muito

embora o governo francês em geral demonstre sua contrariedade à aprovação da

lei.187 Pelo texto do projeto, haveria o implemento de avançadas diretrizes, como

o reconhecimento do juízo de qualidade e de dignidade da vida pela própria

pessoa quanto à oportunidade de por fim à existência, além da possibilidade do

paciente deixar por escrito sua vontade na condução de um caso terminal.188

186 MEYER, Philippe. A irresponsabilidade médica. (L’irresonsabilité médicale). Trad. Maria Leonor Loureiro. São Paulo. Ed. UNESP, 2000, p. 122. 187 JO SÉNAT. Position Du gouvernement à l’egard d l’euthasie, publiée du 21.6.2001, Page 2065. Disponível em: <www.senat.fr> Acesso em 20.5.2006. 188 Texto integral do projeto de lei (versão original): Article un: “Toute personne en mesure d'apprécier les conséquences de ses choix et de ses actes est seule juge de la qualité et de la dignité de sa vie ainsi que de l'opportunité d'y mettre fin”. Article 2: “Lorsqu'elle refuse un acharnement thérapeutique, le médecin doit s'y conformer, sous réserve d'invoquer son cas de conscience dans les conditions prévues par l'article 8”. Article 3: “Elle peut obtenir une aide active à mourir lorsqu'elle estime que l'altération effective ou imminente de cette dignité ou de cette qualité de vie la place dans une situation telle qu'elle ne désire pas pour-suivre son existence.”; Article 4: “Sa volonté,

102

A França tem acompanhado de perto o caso do estudante francês

Vincent Humbert. Vincent escreveu o “Je Vous Demandale Le Droit de Mourir”

(“Peço o Direito de Morrer”) que conta, na primeira pessoa, o drama do jovem

francês que pediu ao Presidente Jacques Chirac, em 30 de novembro de 2002

que concedesse, antecipadamente, indulto da pena a quem o ajudasse a por fim

ao sofrimento que se tornou viver.

Vítima de um acidente de carro ocorrido em 24 de setembro de

2000, quando tinha 19 anos, Vincent passou nove meses em coma. Perdeu todos

os sentidos, exceto a audição e a inteligência. Movimentava muito ligeiramente a

mão direita com uma pressão do polegar a cada letra do alfabeto que lhe era

recitado pela mãe, inventora desse método de comunicação, por uma terapeuta e

finalmente por Frédéric Veille, escritor do livro que virou Best Seller. As letras

formavam palavras e depois frases. Era seu único meio de comunicação. E foi

assim que escreveu o seu “testamento” com três planos para morrer: Plano A –

um pedido aos médicos para que pratiquem a eutanásia clandestinamente; Plano

B – o pedido ao Presidente da República para a realização da eutanásia; Plano C

– que, diante da falha dos dois primeiros, foi executado por sua mãe.

Com exatos três anos após o acidente, em 24 de setembro de 2003,

a mãe de Vincent administrou-lhe uma overdose de sedativos por meio de uma

sonda instalada para nutrição. A equipe médica identificou de pronto a

révocable à tout moment, de mettre un terme à son existence est établie par un testament de fin de vie signé de deux personnes en présence d'un officier de police judiciaire requis par un médecin qui atteste du souhait conscient du patient”; Article 5: “Elle peut charger un représentant ad hoc de faire connaître son souhait d'exercer la faculté prévue aux articles 2 et 3 et d'en requérir l'exécution au cas où elle ne serait plus en état de le faire elle-même; Article 6: “Toute personne admise dans un établissement de soins public ou privé est informée des facultés prévues aux articles 2 et 3. Il lui est en outre demandé si elle a rédigé un testament de fin de vie et si elle a désigné un représentant ad hoc. Une copie de son testament de fin de vie et une copie de la désignation de son représentant ad hoc sont déposées, contre récépissé, auprès de l'établissement de soins”. Article 7: “Le médecin qui fait droit à la volonté du patient dans les conditions prévues par la présente loi déclare l'acte accompli au Conseil de l'ordre des médecins, qui le mentionne dans un registre spécial. Il n'encourt aucune sanction; Article 8: “Si un médecin n'entend pas, en conscience, donner suite à une demande présentée en application des articles 2 ou 3, il doit en aviser La personne concernée. Il le fait dès le premier entretien, si celle-ci a déposé une déclaration écrite conformément à l'article 6, et dès qu'il a connaissance de sa volonté, si celle-ci est exprimée postérieurement à l'hospitalisation. Il est alors tenu, si aucun médecin dans l'établissement ne souhaite accéder à la demande du patient, de pourvoir dans les meilleurs délais au transfert de celui-ci dans un autre établissement; Article 9: “L'article 221-l du code pénal est complété par un alinéa ainsi rédigé: Toutefois, l'aide active à mourir pratiquée dans les conditions prévues par la loi n'est pas considérée comme un meurtre; Article10 ; “L'article 221-5 du code pénal est complété par un alinéa ainsi redige”: « Toutefois, l'aide active à mourir pratiquée dans les conditions prévues par la loi n'est pas considérée comme un empoisonnement.

103

deterioração do quadro de saúde de Vincent, iniciando manobras de reanimação.

Ele entrou em coma profundo e faleceu em 26 de setembro de 2003. O chefe da

equipe médica, assumiu haver desligado o respirador de Vincent, considerando

ser esse um procedimento comum que habitualmente não é assumido pelos

médicos, que preferem dizer que o paciente teve uma complicação, uma parada

cardiorrespiratória.

Assim afirma Vincent no livro:

A eutanásia é a solução extrema, aquela que escolhemos quando o sofrimento é insuportável e quando se pede a morte com insistência. Desejo mais. O que eu queria é que diretivas (médicas) fossem tomadas no meio hospitalar para que finalmente se aceite deixar morrer a pessoas quando nos apercebemos de que nunca mais voltarão a ser o que eram. Que deixem de reanimar as pessoas que, como eu, quase mergulharam na morte e que se transformaram, após horas de obstinação, horas e dias de reanimação, numa planta verde, num vegetal. Apenas um corpo inerte que perdeu toda as suas funções, que já não obedece ao cérebro quem muitas vezes, sofreu seqüelas irreversíveis.189

O caso de Vincent Humbert gerou comoção em todo o mundo. Sua

angústia teve reflexos também no Brasil e provocou debates, textos, polêmicas.

Reproduz-se aqui artigo de Rubem Alves verdadeira reflexão ética

motivada pelo caso, publicada no jornal Folha de S. Paulo em 12 de outubro de

2003:

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas

189 HUMBERT, Vincent. Peço o direito de morrer. Trad. Natalie Pereira. Lisboa: Civilização, 2005, p164-5.

104

companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto..."

Dona Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...".

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que frequentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

105

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelângelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo. 190,

3.4 Holanda

A Eutanásia vem sendo debatida na Holanda desde a década de

1970. Inúmeras situações ocorridas com pacientes e seus médicos geraram

questionamentos quanto aos seus aspectos morais e legais. Os casos de

eutanásia stricto sensu eram comuns nas décadas que antecederam a sua

legalização. Esse foi, inclusive, o principal motivo que levou os juristas a querem

enquadrá-la como crime de homicídio qualificado. Até a aprovação final da nova

lei de Eutanásia, os artigos do Código Penal continuaram tendo validade

Após pressão de médicos holandeses que explicaram ao

Parlamento de seu país que a eutanásia era uma prática médica comum e traria

benefícios à população em geral a lei foi aprovada em 10 de abril de 2001, tendo

entrado em vigor em abril de 2002. A lei torna a morte assistida (eutanásia stricto

sensu ou suicídio assistido) um procedimento legalizado nos Países Baixos,

alterando os artigos 293 e 294 da lei criminal holandesa.

190 RUBEM ALVES, 70, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e colunista do caderno Sinapse. Texto publicado em: Folha de s. Paulo. São Paulo, 12 de outubro de 2003.

106

É fato, entretanto, que desde 1990 o Ministério da Justiça e a Real

Associação Médica Holandesa (RDMA) concordaram em um procedimento de

notificação de eutanásia. Desta forma, o médico ficava imune de ser acusado,

apesar de ter realizado um ato ilegal.

A Lei Funeral (Burial Act) de 1993 incorporou os 5 critérios para

eutanásia e os 3 elementos de notificação do procedimento. Isto tornou a

eutanásia um procedimento aceito, porém não legal. Estas condições, contudo,

eximiam o médico da acusação de homicídio.

Os cinco critérios, propostos em 1973, durante o julgamento do caso

Postma, e estabelecidos pela Corte de Rotterdam, em 1981, para a ajuda à morte

não penalizável, por um médico, eram os seguintes: 1) A solicitação para morrer

deve ser uma decisão voluntária feita por um paciente informado;

2) A solicitação deve ser bem considerada por uma pessoa que tenha uma

compreensão clara e correta de sua condição e de outras possibilidades. A

pessoa deve ser capaz de ponderar estas opções, e deve ter feito tal ponderação;

3) O desejo de morrer deve ter alguma duração; 4) Deve haver sofrimento físico

ou mental que seja inaceitável ou insuportável; 5) A consultoria com um colega é

obrigatória.

O acordo entre o Ministério da Justiça e a Real Associação Médica

da Holanda, estabelecia 3 elementos para notificação: 1) O médico que realizar a

eutanásia ou suicídio assistido não deve dar um atestado de óbito por morte

natural. Ele deve informar a autoridade médica local utilizando um extenso

questionário; 2) A autoridade médica local relatará a morte ao promotor do distrito;

3) O promotor do distrito decidirá se haverá ou não acusação contra o médico.

Seguindo o médico seguir as 5 recomendações acima apontadas, o

promotor deixava de fazer a acusação.

Em um estudo publicado em fevereiro de 2000, foi apresentado um

levantamento de 649 casos de eutanásia (535) e de suicídio assistido (114).

Muitas solicitações de suicídio assistido acabaram tornando-se eutanásia pela

107

necessidade do médico intervir diretamente na administração da droga em dose

letal, devido a inabilidade dos pacientes em executar o procedimento ou intervalo

de tempo muito longo entre a administração do medicamento e a morte. Em 3%

dos casos de eutanásia e em 6% dos casos de suicídio assistido ocorreram

complicações com os pacientes antes de sua morte.

A nova lei, aprovada com 104 votos favoráveis e 40 contrários, em

28 de novembro de 2000, incorpora algumas novas questões, tais como a

possibilidade de realizar este tipo de procedimento em menores de idade, a partir

dos 12 anos. Dos 12 aos 16 anos a solicitação do paciente deve ser

acompanhada pela autorização dos pais. Além dos critérios (acima apontados),

já previamente em vigor, mais um foi incluído, o que estabelece que o término da

vida deva ser feito de uma maneira medicamente apropriada. Em 11 de abril de

2001 o senado aprovou esta mesma lei. Houve protestos populares contra esta

medida, apesar de haver uma maioria expressiva da população manifestando-se

favoravelmente a este respeito em pesquisas de opinião pública. Os novos

critérios legais estabelecem que a eutanásia só pode ser realizada: 1) Quando o

paciente tiver uma doença incurável e estiver com dores insuportáveis; 2) O

paciente deve ter pedido, voluntariamente, para morrer; 3) Depois que um

segundo médico tiver emitido sua opinião sobre o caso. 191

Em um país cuja prática da eutanásia em sentido estrito e de

suicídio assistido está perfeitamente de acordo com o ordenamento jurídico local,

não se tem notícias de que haja algum problema na conduta da ortotanásia. Muito

embora a lei não faça menção expressa a esta modalidade, muito menos utilize

esta terminologia, entende-se que a ortotanásia é perfeitamente aplicável ao

ordenamento holandês.

A seguir transcrevemos interessante artigo de autoria de Maurice T.

Maschino, publicado na rede mundial de computadores (internet)192 sobre o

191 Cf. artigo de José Roberto Goldim, disponível em <http://www.ufrgs.br/bioetica/eutanhol.htm> Acesso em 30.11.2006. 192 Disponível em <http://diplo.uol.com.br/2006> Acesso em 30.11.2006

108

movimento que tem ocorrido na Europa, a partir da legalização da eutanásia na

Holanda.

A Europa já aceita a morte digna

Holanda, Bélgica, Suíça, Espanha... Os bons resultados nos países que reconhecem (e regulamentam) a eutanásia contrariam previsões catastrofistas, rompem preconceitos, arrefecem a própria oposição das igrejas. No lugar de um tabu, surge um direito.

Maurice T. Maschino

Cada vez mais países europeus reconhecem a seus cidadãos o direito de morrer dignamente. Um reconhecimento que, na maior parte das vezes, se faz sem drama, sem invectivas raivosas, sem previsões catastróficas, como as do professor Bernard Debré193 na França. Uma parcela cada vez mais ampla dos cidadãos associa-se ao debate — público e divulgado pela mídia.

Os holandeses foram os primeiros na Europa a reconhecer o direito à eutanásia e a modificar, ao mesmo tempo — por enquanto, um caso únicos — seu código penal. A lei de 12 de abril de 2001 não abre caminho à arbitrariedade. Estipula, em seu artigo 293, que "a ação de pôr fim à vida de outrem não é passível de pena na medida em que for realizada por um médico que satisfaça os critérios de minúcia mencionados no artigo 2 (...) e que comunique ao médico legista do município".

Esses "critérios de minúcia" são seis. Considera-se que foram respeitados quando o médico "adquiriu a convicção de que o paciente formulou seu pedido livremente, (...) que seus sofrimentos eram sem perspectivas de melhora e insuportáveis, (...), que ele informou ao paciente sobre sua situação e suas perspectivas, (...) que ele chegou, em acordo com o paciente, à convicção de que nenhuma outra solução era possível (...) que ele consultou pelo menos um outro médico independente". Somente aí ele pratica a interrupção da vida "com todo o rigor médico exigido" e depois preenche um formulário completo.

Esta última formalidade é bem complicada: o médico tem de responder a mais de cinqüenta perguntas. Alguns não o fazem ou fazem depressa demais (esses recebem um chamado à ordem), mas a maioria cumpre suas obrigações e manda o formulário ao delegado de polícia do município, que o comunica a uma comissão regional. Esta comissão examina se os critérios de minúcia foram bem observados. Pode acontecer que encaminhe o dossiê à justiça194. No conjunto, o sistema funciona bem. O número de eutanásias, que chega a 90% dos doentes de câncer em fase terminal, aumentou ligeiramente (estima-se em 4 mil por ano), sem ultrapassar as previsões e sem preocupar as autoridades.

193 Em Nous t’avons tant aimé, l’impossible loi(Le Cherche Midi, Paris, 2004), Bernard Debré estima que a legalização da eutanásia abriria caminho para todos os excessos, e que depois dos trissômicos (pessoas portadoras de trissomia, como a síndrome de Down), seriam eliminados os gordos e também os feios. E depois, os "deficientes físicos", os "deficientes mentais" (sic).194 L’euthanasie, Os documentos de trabalho do Senado, no. LC109, julho de 2002.

109

Holanda: eutanásia também em casos de doenças psíquicas

Melhor ainda: os holandeses admitem agora que os problemas psíquicos, ou simplesmente um cansaço existencial muito grande podem justificar um ato de eutanásia: "Diversos casos julgados em ultima instância abriram caminho para a eutanásia de pacientes acometidos de uma doença psíquica e não física", escreve o correspondente do Le Monde em Haia195. Um psiquiatra que ajudou uma de suas pacientes a findar-se quando estava acometida de grave depressão foi solto. "Um médico foi absolvido por ter feito a mesma coisa com uma pessoa de 86 anos que se dizia cansada de sua vida de velho."

Os belgas não vão (ainda ?) tão longe, mas desde 16 de maio de 2002, são o segundo país europeu a haver autorizado a eutanásia, sob certas condições. Em projeto há vários anos, a legalização só foi possível depois das eleições de 1999, da derrota dos partidos católicos e da formação de um governo resolutamente laico. "Foi uma grande abertura", diz Jacqueline Herremans, presidente da ADMD belga, "uma verdadeira lufada de ar". "Até então interrompidas, as pesquisas sobre o embrião e a clonagem terapêutica foram retomadas, o casamento dos homossexuais tornou-se possível — eles não demorarão a ter reconhecido seu direito de adotar filhos — e a lei da eutanásia, promulgada", diz.

‘A lei foi aprovada depois de um ano de amplo debate público’, esclarece o doutor Marc Englert. "Toda semana, uma comissão da qual participavam representantes dos ministérios da Saúde e da Justiça ouvia pessoas diretamente envolvidas (médicos, enfermeiros, juristas). Estas audiências eram transmitidas integralmente pela televisão e publicadas nos jornais. Houve também várias pesquisas de opinião."

Amplamente aprovado pela maioria dos belgas, o projeto de lei não encontrou oposição forte: ‘A Igreja era contra, claro’, diz o doutor Marc Englert, ‘mas não tomou posição muito militante’. Contentou-se em lembrar seus princípios. E ela não tem mais o poder que desfruta na França. Quanto ao Conselho da Ordem, foi bem discreto. Ainda por cima, os "medalhões" apoiavam o projeto de lei e isso uniu muitos médicos. Quase 1500 assinaram um abaixo-assinado em favor de sua adoção."

Uma lei avançada, sem oposição religiosa

Submetida às mesmas condições de minúcia que na Holanda - "uma doença incurável, um sofrimento insuportável, um pedido claro, a consulta de um segundo médico", lembra o doutor Marc Englert, a eutanásia aplica-se essencialmente aos doentes de câncer (80% dos pedidos) e aos pacientes acometidos de doenças degenerativas (10 a 15%). Em 90% dos casos, é feita por injeção de pentotal, mas pode também tomar a forma de um suicídio assistido (o próprio paciente toma o remédio), já que a lei não especifica de que modo a eutanásia deve ser praticada.

Os adversários de sua legalização acenavam com todo tipo de riscos, mas não houve nada: a eutanásia continua uma exceção. Contam-se 500 por ano para 100 mil mortes (60% no hospital, 40% em casa).

195 Le Monde, 15 de abril de 2005.

110

‘Muitos médicos não se sentem à vontade, muito menos por razões ideológicas do que por ignorância. Eles não sabem como fazer, nunca aprenderam’, continua o doutor Englert. ‘Ontem mesmo, um deles me perguntou como proceder com um doente inválido de 101 anos, que suplicava a ele que abreviasse seus sofrimentos...’.

Os suíços defrontaram-se com a mesma dificuldade: se a eutanásia é proibida, a assistência ao suicídio é legal, mas muito poucos médicos ajudam um doente a se matar, principalmente porque essa assistência não é considerada um ato médico. Provavelmente, logo o será, já que em novembro de 2005 a Faculdade de Medicina de Lausanne criou um curso para os médicos sobre o acompanhamento do término da vida. E o Centro Hospitalar Universitário do Vaud começou a aceitar que delegados do Exit (a ADMD suíça) tragam seu apoio, no interior do estabelecimento, a pacientes que não estejam mais em condições de voltar para suas casas.

‘É um grande progresso’, assegura o doutor Jérôme Sobel, presidente do Exit, "mas de imediato, a maior parte de nossos acompanhantes, como chamamos aqueles que ’assistem’ um doente em seus últimos momentos, são voluntários (enfermeiros, professores, filósofos) cujo percurso de vida sensibilizou-os para esse problema. Essas pessoas adquiriram uma habilidade. Mas têm, sobretudo, uma sabedoria que lhes permite compreender e tranqüilizar os pacientes que vão acompanhar até o último momento".

Suíça: jurisprudência aceita assistência ao suicídio

Atingidos mais freqüentemente por um câncer, problemas neurológicos ou invalidez para a locomoção devido a problemas ósteo-articulares ou degenerativos, os pacientes que decidem suicidar-se formulam seu pedido por escrito (se são incapazes de escrever, um ato notarial diante de testemunhas confirma o pedido deles). Um acompanhante então os visita, examina a ficha médica, verifica que sofrem de uma doença incurável, que seus sofrimentos são intoleráveis, que seu pedido é sério e repetido, que eles estão completamente lúcidos.

Se todas essas condições são satisfeitas, o Exit concede sua assistência, uma data é marcada, mas até o último momento o paciente pode voltar atrás em sua decisão. Se a mantém, toma ele mesmo a solução mortal. Depois, o acompanhante avisa a justiça, dois policiais e um médico legista constatam o óbito e transmitem o dossiê a um juiz. Depois do exame dos documentos, ele atesta que não houve crime.

Em 2005, o Exit recebeu 202 pedidos de suicídio assistido e 54 foram executados. "Para muitos doentes, saber que serão ajudados se quiserem mesmo partir os acalma, e eles adiam a decisão", diz o doutor Sobel. ‘A possibilidade legal de um suicídio assistido não aumentou a demanda, muito ao contrário — e esse é um dos principais benefícios de uma legislação liberal’.

Essa legislação se inspira, de início, em um caso real: no fim do século 19, um policial empresta seu revólver a um outro que, sentindo-se ferido em sua honra, decide suicidar-se. Os juízes militares o absolvem: ele agiu por compaixão. Apoiados nessa absolvição, os militantes suíços do Exit conseguiram que o suicídio assistido não seja penalizado: "O suicídio não é passível de punição", lembra o doutor Sobel: "ajudar alguém, sem motivo egoísta, a cometer um ato que em si não é passível

111

de punição também não pode ser punido. Do ponto de vista jurídico, esta argumentação é irrepreensível. Todos os juristas concordam e o próprio Parlamento, durante um debate em dezembro de 2001, aceitou-a, dando-lhe assim uma caução política." Segundo as pesquisas, 87% dos suíços aprovam a decisão.

Mudanças libertárias espalham-se pelo mundo

Tanto que as igrejas puseram em surdina sua oposição e a Academia Suíça de Ciências Médicas reconhece que um médico deve levar em conta a vontade de seu paciente — respeitando, por exemplo, sua decisão de morrer e trazendo-lhe ajuda196.

Holanda, Bélgica, Suíça, estado norte-americano de Oregon (que autoriza o suicídio medicamente assistido desde 1994). O exemplo destes Estados, que permitem a seus cidadãos morrer em dignidade estimula outros, cada vez mais numerosos, a liberalizar suas legislações. Pelo menos, reconhecendo aos enfermos o direito de recusar cuidados médicos.

Outros vão mais longe: nos EUA, os Estados da Califórnia e Vermont preparam-se para legalizar o suicídio assistido. No Reino Unido, a Câmara dos Lordes começou a debater, em 2005, a possibilidade de introduzir dispositivo semelhante na legislação. A Espanha não pune mais a eutanásia ativa quando os "critérios de minúcia" são respeitados.

Outros — é o caso da França e Alemanha — persistem em sua resistência e recusa. "Mais cedo ou mais tarde", avalia o Dr. Sobel, o sopro da História e a vontade dos povos os levarão a raeconhecer o direito de todos a decidir sobre sua morte. Exatamente como acabaram legalizando a contracepção e a interrupção voluntária de gravidez. O direito de morrer em dignidade é fundamental, humanamente compreensível, socialmente aceitável, politicamente defensável. Portanto, onde está o problema?"

Em linhas gerais, percebe-se que as sociedades e ordenamentos

jurídicos modernos não vêem qualquer empecilho para a prática da ortotanásia.

Pelo contrário. Percebe-se que há uma compreensão sobre a razoabilidade e

necessidade da medida.

Com relação à prática da eutanásia, entretanto, a questão aparece

um tanto controvertida. Mesmo em países considerados “avançados” nas

questões bioéticas, como a Holanda, sua adoção gerou (e tem gerado até hoje),

debates acalorados, havendo aqueles que entendem ser a conduta eutanásica

196 Só podem se beneficiar da ajuda do Exit os cidadãos suíços, membros da entidade. A associação Dignitas (Zurique) é igualmente aberta aos estrangeiros.

112

um reflexo do direito à liberdade (entre outros) por um lado, e aqueles para os

quais a vida deverá ser preservada a qualquer custo.

É inegável reconhecer, contudo, o avanço que o direito

principalmente europeu tem demandado, na medida em que, no lugar de tabus,

colocou a discussão na pauta de debates dos Estados Democráticos de Direito

contemporâneos.

A experiência estrangeira demonstra, mais uma vez, que o Brasil

não pode fechar os olhos, sob o manto da “santidade da vida”, e deixar de discutir

temas como a ortotanásia e a própria eutanásia.

Da mesma forma que a Declaração Universal dos Direitos do

Humanos de 1948 influenciou as cartas constitucionais pelo mundo afora, espera-

se que a discussão que irradia do velho continente também seja sentida na

sociedade brasileira.

113

CAPÍTULO 4

A POSSIBILIDADE DA ORTOTANÁSIA COMO GARANTIA FUNDAMENTADA

NO PRINCÍPIO DO DIREITO À VIDA DIGNA

4.1 A interpretação da Resolução nº. 1.805/2006 do Conselho

Federal de Medicina

Conforme se discutiu nos capítulos precedentes, pode-se dizer que

a ortotanásia, enquanto “morte no tempo certo”, situa-se, em linhas gerais, entre a

eutanásia stricto sensu (antecipação da morte) e a distanásia (prolongamento da

vida e distenção da morte a qualquer custo e com o uso de qualquer remédio ou

tecnologia mesmo que comprovadamente inútil ao paciente).

Relevante é o pensamento de Leo Pessini sobre a Ortotanásia:

Nosso quinto ponto, trabalhando com o conceito de saúde como bem-estar, procura mostrar que não precisamos apelar nem para a eutanásia nem para a distanásia para garantir a dignidade no morrer. Nossa tese final será a ortotanásia, que procura respeitar o bem-estar global da pessoa, abre pistas para as pessoas de boa vontade garantir para todos dignidade em seu viver e em seu morrer.

Estas reflexões nos levam a perceber que, para os que favorecem uma medicina tecnocientífica ou comercial-empresarial, uma mudança de paradigma se impõe para evitar os excessos da eutanásia e da distanásia. Enquanto o referencial é a medicina predominantemente curativa, é difícil encontrar caminho que não pareça desumano, de um lado, ou descomprometido com o valor da vida humana, de outro. Uma luz importante vem da mudança da compreensão da saúde que vem sendo impulsionada pela redefinição de saúde pela OMS. Em lugar de entender a saúde como a mera ausência de doença, propõe sua compreensão como bem estar global da pessoa: bem estar físico, mental e social. Quando se acrescenta a esses três elementos também a preocupação com o bem estar espiritual, cria-se uma estrutura de pensamento que permite uma revolução em termos de abordagem ao doente crônico terminal.

No horizonte da medicina curativa que entende a saúde, primordialmente, como a ausência de doença, é absurdo falar da saúde do doente crônico ou terminal, porque, por definição, ele não tem nem pode tê-la. Mas, se redimensionarmos nosso conceito de saúde para focalizar suas dimensões positivas, reinterpretando-a como um estado de bem-estar, descobrimos formas de discurso em que há sentido em falar da saúde do doente crônico ou terminal porque há sentido em falar

114

de seu bem-estar físico, metal, social e espiritual, mesmo quando não há a mínima perspectiva de cura.

O compromisso com a promoção do bem-estar do doente crônico e terminal permite-nos não somente falar da saúde dele, mas também desenvolver o conceito de ortotanásia, a arte de bem morrer, que rejeita toda forma de mistanásia sem cair nas ciladas da eutanásia e da distanásia.

A ortotanásia permite ao doente que já entrou na fase final e àqueles que o cercam enfrentar a morte com certa tranqüilidade, porque, nessa perspectiva, a morte não é uma doença a curar, mas sim algo que faz parte da vida. Uma vez aceito esse fato que a cultura ocidental moderna tende a esconder e a negar, abre-se a possibilidade de trabalhar com as pessoas a distinção entre curar e cuidar, entre manter a vida quando isso é o procedimento correto e permitir que a pessoa morra quando sua hora chegou.

O componente ético nesse processo é tão importante quanto o componente técnico. O ideal é integrar conhecimento científico, habilidade técnica e sensibilidade ética numa só abordagem. Quando se entende que a ciência, a técnica e a economia têm sua razão de ser no serviço à pessoa humana individual, comunitária e socialmente, descobre-se no doente crônico e terminal um valor até então escondido ou esquecido. Respeito por sua autonomia: o direito de saber e o direito de decidir; pelo direito de não ser abandonado; pelo direito a tratamento paliativo para amenizar seu sofrimento e sua dor; pelo direito de não ser tratado como mero objeto, cuja vida pode ser encurtada ou prolongada segundo as conveniências da família ou da equipe médica – são todos exigências éticas que procuram promover o bem-estar global do doente terminal e conseqüentemente sua saúde enquanto não morre. No fundo, a ortotanásia é para o doente morrer saudavelmente, cercado de amor e carinho, amando e sendo amado enquanto se preparar para o mergulho final no Amor que não tem medida e que não tem fim.156

Esta reflexão traz com muita clareza o norte investigativo da

presente dissertação. Tentar enxergar a ortotanásia como conceito próprio e

distinto da eutanásia, avaliando sua carga ética e principalmente sua

possibilidade jurídico-constitucional.

Trata-se, a ortotanásia, na visão que aqui se está defendendo, de

procedimento amplamente lícito sob o prisma constitucional, notadamente através

de uma interpretação sistemática da Carta Magna em que o princípio do direito à

vida e da dignidade da pessoa humana nos autoriza concluir que a vida garantida

pela Constituição Federal é a vida digna.

156 PESSINI, Leo. Eutanásia. Por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.225.

115

Entretanto, esse raciocínio e posicionamento está longe de estar

pacificado na rara doutrina nacional sobre o tema. Conforme se verá a seguir, há

pensadores que acreditam ser a ortotanásia uma mera “modalidade” de

eutanásia, devendo ser vedada a todo custo. Outros, como já visto no capítulo

anterior, a equiparam à eutanásia na sua modalidade passiva, pregando aos

quatro cantos que nosso ordenamento veda sua prática.

Mesmo que aparentemente a ortotanásia seja uma “modalidade”

natural de se encarar a terminalidade da vida, muitas são as perguntas e diversas

são as restrições impostas para se concluir pela sua constitucionalidade.

Interessante a intervenção de Maria Helena Diniz sobre o assunto:

Haveria na ortotanásia uma preservação do direito de morrer com dignidade? Não levantaria a interrupção terapêutica, que acaba por levar à morte, a questão da responsabilidade civil do médico, ante o disposto no art. 6º do Código de Ética Médica brasileiro de que: ‘o médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade’? Não se poderia, até mesmo, falar em homicídio voluntário por parte do profissional de saúde? Seria lícito retirar a vida daquele que sofre? Em quais casos? Quando? Como? E sob quais condições? Haveria licitude na conduta do Centro Médico do Condado de Hennepin (Minneapolis), que pediu permissão judicial para desligar, contra a vontade dos parentes, os aparelhos que mantinham a vida vegetativa de um paciente, alegando que mantê-lo vivo seria um prolongamento de seu sofrimento ou de sua vida sem qualquer esperança de recuperação? Será que há direito de matar paciente terminal ou mesmo de tomar decisões sobre a continuação ou interrupção de aparelhos de sustentação vital?157

As perguntas são muitas e não há, ainda, repostas imediatas a todos

esses questionamentos. Contudo, as ponderações feitas pela professora Maria

Helena lançam luzes ao tema e algumas ponderações hão de ser feitas.

Em primeiro lugar, entende-se que a ortotanásia está em completa

sintonia com o artigo 6º do Código de Ética Médico que obriga o médico a

“guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do

paciente” e que “jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico

157O estado atual do biodireito, ob. Cit., p. 348.

116

ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa

contra sua dignidade e integridade”.

Ora, é exatamente esse o objetivo que se busca com a ortotanásia:

impedir o sofrimento físico ou moral desnecessário do ser humano, garantindo

sua dignidade e integridade.

Além disso, não há que se falar em homicídio voluntário do médico.

Pelo contrário. Ele apenas estaria deixando o paciente seguir o seu curso natural,

sem efetuar interferências que não lhe trariam qualquer benefício e só prolongaria

sua dor e sofrimento.

Também não se vislumbra, nessa mesma situação, que o médico

estaria “retirando a vida” daquele que sofre. A vida está sendo retirada pela

enfermidade de que padece o doente. Cabe ao médico tentar curá-la sob todas as

formas disponíveis na medicina ou, na impossibilidade de cura, aliviar o

sofrimento, sem entretanto interferir com tratamentos desumanos que visem a

prolongar a vida do enfermo a qualquer custo.

Ainda na tentativa de encontrar respostas a essas e outras

perguntas no que tange à viabilidade constitucional da ortotanásia, cumpre

analisar neste momento importante norma infraconstitucional que significou passo

importante no debate da ortotanásia e gerou acalorados debates sobre sua

constitucionalidade.

Em 28 de novembro de 2006, o Conselho Federal de Medicina

publicou no Diário Oficial da União, Resolução nº. 1.805/2006 deixando expressa

a possibilidade da ortotanásia nos hospitais do país. À luz desta resolução, na

fase terminal de enfermidades graves ou incuráveis é permitido ao médico – com

autorização do paciente ou de algum responsável – limitar procedimento que

prolongue a vida do doente.

Tratando-se de texto normativo curto, cabe sua inteira reprodução

para uma melhor análise:

117

O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº. 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº. 11.000, de 15 de dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº. 44. 045, de 19 de julho de 1958, e

CONSIDERANDO que os Conselhos de Medicina são ao mesmo tempo julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente;

CONSIDERANDO o art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que elegeu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil;

CONSIDERANDO o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que estabelece que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”;

CONSIDERANDO que cabe ao médico zelar pelo bem-estar dos pacientes;

CONSIDERANDO que o art. 1° da Resolução CFM n° 1.493, de 20.5.98, determina ao diretor clínico adotar as providências cabíveis para que todo paciente hospitalizado tenha o seu médico assistente responsável, desde a internação até a alta;

CONSIDERANDO que incumbe ao médico diagnosticar o doente como portador de enfermidade em fase terminal;

CONSIDERANDO, finalmente, o decidido em reunião plenária de 9/11/2006,

RESOLVE:

Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.

§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.

§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.

§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.

Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

118

Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.

Observe-se que já nos “considerandos” do texto há destaque para

os princípios constitucionais que ora está-se utilizando para defender a

constitucionalidade da ortotanásia, dentre eles o princípio da dignidade da pessoa

humana. Assim, trata-se de norma que está em profunda consonância com o

ordenamento jurídico brasileiro.

Analisando-se mais detidamente o artigo 1º da Resolução, vê-se que

a redação remete à exigência de pelo menos três requisitos para configurar a

licitude da conduta: primeiro, dever-se-á estar diante de um caso em que haja um

médico tratando um doente; segundo, o doente deverá necessariamente estar em

fase terminal, acometido de enfermidade grave e incurável (ou seja, em situação

cuja possibilidade de reversão seja nula); e terceiro, que seja respeitada a

vontade da pessoa ou de seu representante legal.

Parece nítida a preocupação do legislador, ao elaborar o texto

normativo, em fazer constar todos os requisitos para que o objetivo da norma

fosse atingido. Se houvesse supressão de uma dessas três condições, estar-se-ia

diante de um comando facilmente questionável sob o ponto de vista

constitucional.

O artigo 2º também reforça uma situação típica de ortotanásia,

prevendo a continuidade dos cuidados necessários para aliviar os sintomas (as

dores, o sofrimento), sem contudo impor ao doente uma parafernália tecnológica

ou procedimentos incisivo e dolorosos sem qualquer resultado benéfico ao

paciente.

O mesmo artigo 2º da norma em comento assegura o direito à alta

hospitalar. Trata-se de garantia essencial e em consonância com o direito à vida

digna.

119

O médico oncologista Drauzio Varela, em sua obra “Por Um Fio”,

destaca uma série de relatos de pacientes tratados por ele, que acometidos por

doença grave (como o câncer) em situação irreversível e terminal, preferiram

estar entre os entes queridos e no conforto do seu lar do que permanecer na

frieza dos quartos hospitalares158.

A Revista “Super Interessante”, em edição publicada em 15 de

dezembro de 2005, apresenta reportagem ressaltando, entre outras coisas, os

malefícios que a permanência de pacientes desenganados em hospitais

causam159:

A idéia de qualidade de vida nos momento finais também foi influenciada por outra constatação. Baseada em entrevistas com dezenas de pacientes terminais, a psiquiatra americana Elisabeth Kübler-Ross concluiu que a maioria deles sofre, além da dor física, com a separação da família, problemas financeiros, vergonha e até inveja de quem não está doente. ‘Num hospital, a pessoa deixa de ser ela mesma, de ter suas coisas, roupas e funções para se tornar apenas um paciente, tendo que obedecer regras, horários para dormir e comer que não são seus’.

É por isso que muita gente prefere ficar em casa com a família a ganhar uns dias do lado de outros doentes, equipamentos e enfermeiras. No Brasil, alguns estados já traçam leis nessa direção. Em São Paulo, o paciente terminal pode decidir quando e onde morrer. Uma lei sancionada em 1999160 estabelece o direito de um doente recusar o prolongamento de sua agonia e optar pelo local da morte. O próprio Covas, que morreu de câncer, beneficiou-se dessa lei161.

A promulgação dessa resolução causou verdadeiro furor e polêmica

na comunidade científica, em especial entre médicos e juristas. Diversas matérias

em jornais162 de todo o país espelharam opinião de profissionais, manifestando

158 VARELLA, Drauzio. Por um Fio. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 159 A título ilustrativo, reproduziu-se a íntegra da reportagem no anexo da presente dissertação. 160 Falar-se-á sobre esta lei estadual mais adiante. 161 Revista Super Interessante: Quando a Vida Termina? Edição 221, 16.12.05, p 54. 162 Jornal Folha de S. Paulo, 10.11.2006. “O Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou ontem resolução que permite ao médico suspender tratamentos e procedimentos que prolonguem a vida de doentes terminais e sem chances de cura- desde que a família ou o paciente concorde com a decisão, que deve constar no prontuário médico. A norma, aprovada por unanimidade em plenária do CFM, vale para médicos de todo o país. Mas ela só tem efeito interno, isto é, não isenta o profissional de ser responsabilizado criminalmente. A polêmica é grande. Em 2005, o Ministério Público e a OAB condenaram medida semelhante proposta pelo conselho médico de São Paulo por entender que era eutanásia, prática ilegal pela qual se busca abreviar a vida de um doente incurável. Nesse caso, o médico pode ser processado por homicídio privilegiado. Para os médicos, a resolução trata da ortotanásia, o ato de cessar o uso de recursos que prolonguem artificialmente a vida quando não há mais chances de recuperação. Exemplo: um doente terminal de câncer sofre uma parada

120

suas opiniões favoráveis e contrárias à iniciativa do Conselho Federal de

Medicina.

Algumas pessoas chegaram a afirmar que muito embora os

médicos, ao suspender ou limitar determinado tratamento clínico em pacientes

terminais estivessem agindo sob a égide da resolução do Conselho Federal de

Medicina, não estariam imunizados a serem responsabilizados criminalmente.

O presidente da Comissão de Bioética, Biodireito e Biotecnologia da

Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo, Erickson Gavazza

Marques, manifestou posição incisivamente contrária à Resolução do Conselho

Federal de Medicina. Para o advogado, a Resolução contrasta com a realidade da

legislação brasileira que proíbe quaisquer formas de auxílio ao suicídio ou de

homicídio, categoria ao qual se encaixaria a ortotanásia. Em suas palavras “essa

resolução atenta contra a legislação em vigência, sobretudo Código Penal, que

define como prática criminosa qualquer intervenção que venha colocar fim à vida

de uma pessoa, mesmo que seja um paciente terminal e sem nenhuma

expectativa de reversão do caso”, afirmou Gavazza em entrevista, ressaltando

cardíaca. Hoje, o médico tenta reanimá-lo e o coloca em respirador artificial na UTI. Se o rim entrar em falência, por exemplo, será submetido à diálise peritonial. A idéia é que, a partir de agora, esse paciente não seja "ressuscitado". Ele receberá analgésicos, sedativos e todos os cuidados para que não sinta dor, mas não terá sua vida prolongada por meio dos recursos tecnológicos de uma UTI. Para Clóvis Francisco Constantino, vice-presidente do CFM, não há perigo de as pessoas confundirem a medida com eutanásia. "Nós somos absolutamente contra a eutanásia, não só porque é eticamente condenável, mas também porque, no nosso país, não é permitida. Eutanásia significa deliberadamente provocar a morte. Obviamente que nem o paciente, nem a família e nem nós, médicos, queremos isso." Para Constantino, a resolução é "doutrinária". "Ela doutrina o médico no sentido de fazê-lo entender que existe um momento em que não é possível fazer mais nada em benefício do paciente. Que qualquer coisa que prolongue a vida só vai causar sofrimento", diz. O médico Roberto D'Ávila, corregedor do CFM, reforça: "O paciente não será jamais abandonado". Segundo José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, a resolução encerra um dilema ético. "Os médicos, sobretudo os intensivistas, estão reféns hoje de uma situação cruel: não ter amparo e não saber quando interromper um tratamento de um doente grave e incurável." Siqueira explica que a tecnologia avançou de "maneira extraordinária", mas desguarnecida de reflexão ética. "Na grande maioria das UTIs, vemos doentes morrendo com agonia, com sofrimento. Essa resolução vai permitir que o médico reconheça: "Pronto, não há mais técnica que vá resolver esse problema". É uma decisão moral e agora eles estão permitidos a isso", diz Siqueira. A médica Maria Goretti Maciel, presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, concorda: "Foi uma vitória imensa para a medicina brasileira. O médico tem medo. Acha que todo final de vida tem que ser numa UTI. Ele agora sabe que pode dar um tratamento que vise o conforto do paciente, um final de vida digno". Na avaliação dela, a sociedade deve apoiar a resolução. "Ninguém quer ver seu familiar sofrendo, passando dor. Ninguém quer vê-lo morrer sozinho na UTI. A morte tem que ser encarada como algo natural da vida." A partir do próximo ano, o Ministério da Saúde deve implantar um programa nacional de cuidados paliativos e controle de dor. A idéia é que o conceito seja adotado em todo o sistema, das equipes de médico da família até os hospitais de grande complexidade. Já o CFM vai regulamentar os serviços de cuidados paliativos, determinando, por exemplo, quais drogas devem ser usadas para analgesia, sedação e para conforto do paciente terminal.

121

ainda que a família que autorizar a prática da ortotanásia também pode responder

a processo por homicídio163.

Maria Helena Diniz, por sua vez, lançou perguntas ao refletir sobre a

Resolução n. 1.805/2006 do CFM:

Não seria tal Resolução inconstitucional por violar o art. 5º da CF/88 (cláusula pétrea), que resguarda o direito à vida, mesmo que tenha por escopo atender ao princípio do respeito à dignidade humana (CF/88, art. 1º, III) e ao da liberdade de autodeterminação ou de escolher entre a vida e a morte? Havendo conflito entre dois direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, qual deverá prevalecer? O direito à vida ou o direito de liberdade? Qual desses direitos é mais forte? Não seria o direito de viver? Se ninguém pode dispor de sua própria vida, terceiro (médico ou representante legal) teria legitimidade jurídica para fazê-lo? Seria lícita a limitação do tratamento, interrompendo-se medicação ou deixando-se de conectar a pessoa doente a aparelho de sustentação vital quando não houver mais sentido em prolongar sua vida, visto que pela ciência médica sua morte é tida como iminente e inevitável? Teria aquela Resolução do CFM o poder de modificar a Constituição Federal e o Código Penal, legalizando a ortotanásia? O Procurador da República (Wellington de Oliveira) não teria razão ao pleitear a suspensão dessa Resolução?

Se o médico deve respeitar a vida humana desde a concepção até a morte, utilizando seus conhecimentos em benefício do paciente, não podendo causar-lhe qualquer sofrimento físico ou psíquico, não seria a eutanásia ativa, o suicídio assistido ou o ato de desligar aparelho de sustentação da vida más práticas médicas, pois direitos fundamentais do paciente, garantidos pela Constituição Federal e pelo Código de Ética Médica, são o direito à vida e o de não ser morto pelo seu médico, mesmo estando em estado terminal?

163 GAVAZZA MARQUES. Erickson. Disponível em < http://www.oabsp.org.br/noticias/2006/11/28/3950>Acesso em: 27-04-2007. Eis a íntegra da reportagem divulgada no site: Alerta da Comissão da OAB SP sobre Ortotanásia se confirma. MPF pediu revogação da Resolução do Conselho Federal de Medicina sobre a Ortotanásia. O presidente da Comissão de Bioética, Biodireito e Biotecnologia da OAB-SP, Erickson Gavazza Marques, afirmou que o alerta feito pela Comissão contra a Resolução em prol da ortotanásia se confirmou com a decisão do Ministério Público Federal de Brasília de pedir, nesta terça-feira (28/11), a revogação da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que permite aos médicos suspender tratamentos e outros procedimentos artificiais para prolongar a vida de pacientes terminais e sem chances de cura, denominada ortotanásia. “ O Conselho Federal de Medicina terá de apresentar a relação de todas as ortotanásias praticadas antes e depois da Resolução ou enfrentar uma ação civil pública, além de processo criminal”, afirma Gavazza Marques. Para Gavazza Marques a resolução do CFM contrasta com a realidade da legislação brasileira que proíbe quaisquer formas de auxílio ao suicídio ou de homicídio, categoria ao qual se encaixa a ortotanásia. “Essa resolução atenta contra a legislação em vigência, sobretudo Código Penal, que define como prática criminosa qualquer intervenção que venha colocar fim à vida de uma pessoa, mesmo que seja um paciente terminal e sem nenhuma expectativa de reversão do caso”, avalia Gavazza, ressaltando que a família que autorizar a prática da ortotanásia também pode responder a processo por homicídio. O MP do Distrito Federal fixou até a próxima sexta-feira (1/12) o prazo limite para o CFM revogar a resolução que regulamenta e autoriza a prática da ortotanásia. “A medida do CFM não tem amparo nem força legal para permitir que médicos, com aval de familiares, abreviem a vida de pacientes terminais. Existe PL tramitando na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, mas sem nenhuma perspectiva de votação. Valem portanto as leis em uso que criminaliza a ortotanásia”, diz Gavazza.

122

Logo parece-nos que proibido está o profissional da saúde de utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal. A má prática médica ocorre, portanto, quando o profissional da saúde desvirtua sua finalidade humanitária e atenta contra a dignidade do ser humano. O médico não pode sustar, nem diminuir a vida164

Não obstante as ponderações citadas acima, todas com lógica,

fundamento e seriedade, acredita-se que mesmo antes da promulgação da

Resolução, a ortotanásia já estava autorizada pelo ordenamento constitucional, à

luz dos princípios constitucionais e direitos fundamentais anteriormente

destacados.

Conforme abordado no primeiro capítulo deste trabalho, a vida

protegida pelo Constituição de 1988 é, necessariamente, a vida digna. Nesse

sentido, não se trata, necessariamente, de contrapor direito à vida versus direito à

liberdade. E também não se trata de simplesmente “dispor” da vida de terceiros.

Não é a isso que a Resolução visa, também não é esse o significado da

Ortotanásia.

Também não parece correta a afirmação “logo parece-nos que

proibido está o profissional da saúde de utilizar, em qualquer caso, meios

destinados a abreviar a vida do paciente”. Reitera-se: não se trata de se utilizar de

artifícios com vistas a abreviar a vida do paciente. Simplesmente, a ortotanásia,

significa não interceder desnecessariamente (para evitar o prolongamento da dor

e sofrimento do paciente) na situação inevitável e irreversível de morte.

Até mesmo no ordenamento infraconstitucional, não merece vingar a

tese da ilegalidade da ortotanásia, conforme demonstrado no item seguinte do

presente trabalho.

Um dos depoimentos mais lúcidos sobre a questão veio de Luís

Roberto Barroso, um dos juristas que encabeçam movimento recente na ordem

164 Ob. Cit., p. 350.

123

jurídica brasileira em favor da bioética e do biodireito, defendendo posições em

consonância com o princípio da vida diga, tais como a possibilidade de aborto em

fetos com anencefalia, o estudo e manipulação de células troncos embrionárias,

entre outros.

Sobre a ortotanásia manifestou-se o professor Barroso em entrevista

concedida ao jornal Folha de S. Paulo:

Nessa fronteira em que a medicina se interpõe entre a vida e a morte, você tem quatro possibilidades importantes a considerar: limitação do tratamento, cuidado paliativo, suicídio assistido e eutanásia propriamente dita. A ortotanásia se refere às duas primeiras, que ocorrem nos casos em que não há mais possibilidade de cura, e o tratamento apenas prolongaria a vida, por vezes indefinidamente e com grande sofrimento. A possibilidade de limitar o tratamento é interromper a medicação ou deixar de conectar a pessoa a aparelho, mesmo que isso eventualmente possa trazer a morte quando já não haja mais sentido em prolongar aquela vida. O cuidado paliativo ocorre quando a medicina, mesmo não podendo curar, deve ter a preocupação de evitar, o quanto possível, o sofrimento das pessoas. Portanto, a opção pela limitação do tratamento ou apenas pelo cuidado paliativo, elas integram essa idéia geral do que seria uma ortotanásia, que significa, etimologicamente, a morte no tempo certo. O suicídio assistido é quando a própria pessoa tira sua vida, diante de uma situação de grande sofrimento irreversível, com a ajuda de terceiro, geralmente um médico. A última dessas quatro categorias é a eutanásia: a ação médica intencional, voltada para apressar a morte de uma pessoa que esteja numa situação médica incurável, de grande sofrimento165. (grifo nosso)

A lição de Barroso em muito se aproxima às definições e

classificações apresentadas no capítulo anterior deste trabalho. De fato,

diferentemente da eutanásia stricto sensu, quando se fala em ortotanásia não se

trata de abreviar a vida do paciente em fase terminal, e sim em não se utilizar de

remédios ou aparelhos hospitalares que venham a prolongar inutilmente uma vida

já condenada.

Acrescenta ainda o jurista em outra passagem, ao comentar sobre a

legalidade da eutanásia e ortotanásia:

A legislação penal brasileira não faz qualquer distinção entre essas quatro categorias a que eu me referi. Assim, tanto a limitação do tratamento como a eutanásia estão sujeitas a enquadramento como

165 Jornal Folha de São Paulo, 04.12.2006.

124

crime de homicídio. E foi essa interpretação que levou o procurador da República [Wellington de Oliveira] a formular a recomendação [para que o CFM suspendesse a resolução]. Portanto um médico está sujeito a processo por crime de homicídio, seja por atuar praticando a eutanásia ou ajudando no suicídio assistido, seja por omitir tratamento, como é o caso da limitação do tratamento ou do cuidado paliativo. A resolução do conselho não é impositiva de determinada conduta ao médico, apenas permite a ele deixar de prover tratamento se considerar que essa é a opção medicamente adequada, sobretudo na hipótese em que o paciente ou alguém que o representasse validamente tenha feito a solicitação. É interessante observar que, além do CFM, diversas leis estaduais continham normas referentes à ortotanásia. Há casos em São Paulo, Pernambuco, Distrito Federal, Paraná e Rio. O único problema é que no Brasil os Estados não têm competência para legislar sobre direito penal. Se considerarmos que o que a resolução do CFM e as leis estaduais fizeram foi tentar modificar o Código Penal, certamente são documentos inidôneos para esse fim, de modo que uma interpretação ortodoxa, tradicional, concluiria pela inconstitucionalidade, tanto das leis estaduais quanto dessa resolução. Portanto, uma tese melhor é que o Código Penal deve ser interpretado à luz da Constituição, sob princípios como o da dignidade da pessoa humana e o da liberdade. A liberdade envolve direito à autodeterminação, desde que o exercício dessa liberdade seja lúcido e não interfira no direito de uma outra pessoa. O segundo princípio que legitima a resolução é o da dignidade da pessoa humana, que compreende, além do direito a uma vida, o direito a uma morte digna. Não há nenhuma dúvida, nem ética nem jurídica, à luz dos valores sociais e dos princípios constitucionais, de que a ortotanásia é legítima. A resolução é uma interpretação adequada da Constituição. Suicídio assistido e eutanásia envolvem riscos importantes, portanto devem ser cercados de uma cautela muito particular. Porém, como disse, ética e juridicamente elas podem realizar adequadamente valores constitucionais, pelas mesmas razões, de respeitar a vontade do paciente, quando ela possa ser manifestada, e o sofrimento seja insuportável. Sou a favor da eutanásia e do suicídio assistido, se tomadas certas cautelas.

Vê-se que a clareza da exposição do professor Barroso é bastante

contundente ao defender a constitucionalidade e a licitude da Resolução e da

ortotanásia.

A Resolução 1.805/06 do Conselho Federal de Medicina está sendo

contestada pelo Ministério Público Federal, que ingressou com recente Ação Civil

Pública166 pretendendo a suspensão da Resolução.

166 Ação Civil Pública nº. 2007.34.00.014809-3, em trâmite perante a 14ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal. Requerente: Ministério Público Federal. Requerido: Conselho Federal de Medicina.

125

Num primeiro momento, houve decisão liminar determinando a

suspensão provisória da Resolução. Contudo, a ação ainda carece de decisão de

mérito definitiva.

O professor José de Oliveira Ascenção 167 faz os seguintes

comentários sobre referida a referida Resolução e respectiva ação judicial:

Esta Resolução foi contestada pelo Ministério Publico Federal, através da Procuradoria dos Direitos do Cidadão. Não tendo não obstante a Resolução sido alterada, o Ministério Publico intentou recentíssima ação civil publica, em 9 de maio de 2007.

A petição, lavrada aliás em estilo pouco habitual em documentos desta ordem, tem vários fundamentos. Antes de mais, a falta de competência do Conselho Federal de Medicina como a entidade reguladora da matéria. É questão em que não pretendemos entrar, mas não ocultamos que nos impressiona esta espécie de para-legislação, em que setores verdadeiramente fundamentais da ordem jurídica brasileira são regulados por entidades diferentes das que se diria que constitucionalmente seriam as competentes para tal.

Mas o Ministério Publico impugna também longamente o estatuído na Resolução, considerando-o violador da Constituição e do Código Penal.

Representará a omissão ou cessação de tratamento do doente terminal, seguida da morte deste, um crime de homicídio?

A resposta positiva está generalizada. A ordem dos Advogados do Brasil, no caso paralelo da cessação de cuidados a doentes em estado vegetativo persistente, considerou ser um caso de homicídio por essa excepção não estar prevista.

O fundamento, como dissemos, estaria no art. 13 do Código Penal, que no seu proêmio equipara à ação a omissão sem a qual o evento não teria ocorrido.

Não há previsão específica sobre esta matéria, nem a propositura do homicídio nem noutro lugar da Parte Especial.

Dissocio-me desta doutrina dominante. A isto me conduzem os princípios gerais de interposição da lei.

O art. 13 do Código Penal especifica no § 2º os pressupostos da relevância da omissão. Esta só releva quando o agente podia e devia atuar.

Requer-se pois um dever de atuar. Este existe, nos termos da al. a, quando o agente “tinha por lei” esse dever.

Na situação que nos ocupa, há pois que indagar se o médico tem por lei o dever de prosseguir sempre os tratamentos primários, mesmo quando

167 Ob. Cit.

126

traumatizantes, se a morte se apresenta em qualquer caso como inevitável.

Não há lei especifica sobre esta matéria. A conduta do médico terá então de ser determinada pelas leges artis.

O que estas estabelecem não é seguramente o dever de curar, que negariam a morte e a irredutibilidade de muitas doenças.

Não é também o dever de retardar por todas as formas a morte, provocando ou prolongando a agonia, fora de toda a esperança.

O dever é o de evitar a morte possível: não sendo, acompanhar o paciente terminal até ao fim; eliminando ou limitando o sofrimento, porque o sofrimento é em si um mal, embora possa ser sublimado pela sua aceitação individual.

Isto significa, no que respeita à posição do médico, que não recai sobre ele um dever cego de tratar em qualquer caso. Prevalece um outro dever, que é de evitar o procedimento fútil ou a obstinação terapêutica, a que o médico está eticamente vinculado. As atuações com fim de cura tornam-se então desproporcionadas, justificando-se apenas tratamentos secundários ou paliativos que beneficiem quanto possível o estado do doente na fase terminal.

Daqui resulta que o médico que assim procede não viola nenhum dever de agir, médico ou de qualquer outra fonte. Não se preenchem os pressupostos jurídicos da omissão penal. Conseqüentemente, nunca lhe poderia ser imputado o crime de homicídio.

Resta, por fim, trazer à reflexão a íntegra da Exposição de Motivos

da referida Resolução, que sintetiza o raciocínio ético-constitucional até aqui

demonstrado.

A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilíbrio na relação médico-enfermo. A ética médica tradicional, concebida no modelo hipocrático, tem forte acento paternalista. Ao enfermo cabe, simplesmente, obediência às decisões médicas, tal qual uma criança deve cumprir sem questionar as ordens paternas. Assim, até a primeira metade do século XX, qualquer ato médico era julgado levando-se em conta apenas a moralidade do agente, desconsiderando-se os valores e crenças dos enfermos. Somente a partir da década de 60 os códigos de ética profissional passaram a reconhecer o doente como agente autônomo.

À mesma época, a medicina passou a incorporar, com muita rapidez, um impressionante avanço tecnológico. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e novas metodologias criadas para aferir e controlar as variáveis vitais ofereceram aos profissionais a possibilidade de adiar o momento da morte. Se no início do século XX o tempo estimado para o desenlace após a instalação de enfermidade grave era de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho é o arsenal tecnológico hoje disponível que não é descabido dizer que se torna quase impossível morrer sem a anuência do médico.

127

Bernard Lown, em seu livro A arte perdida de curar, afirma: ‘As escolas de medicina e o estágio nos hospitais os preparam (os futuros médicos) para tornarem-se oficiais-maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se ensina sobre a arte de ser médico. Os médicos aprendem pouquíssimo a lidar com a morte. A realidade mais fundamental é que houve uma revolução biotecnológica que possibilita o prolongamento interminável do morrer’.

O poder de intervenção do médico cresceu enormemente, sem que, simultaneamente, ocorresse uma reflexão sobre o impacto dessa nova realidade na qualidade de vida dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefícios auferidos com as novas metodologias diagnósticas e terapêuticas. Incontáveis são as vidas salvas em situações críticas, como, por exemplo, os enfermos recuperados após infarto agudo do miocárdio e/ou enfermidades com graves distúrbios hemodinâmicos que foram resgatados plenamente saudáveis por meio de engenhosos procedimentos terapêuticos.

Ocorre que nossas UTIs passaram a receber, também, enfermos portadores de doenças crônico-degenerativas incuráveis, com intercorrências clínicas as mais diversas e que são contemplados com os mesmos cuidados oferecidos aos agudamente enfermos. Se para os últimos, com freqüência, pode-se alcançar plena recuperação, para os crônicos pouco se oferece além de um sobreviver precário e, às vezes, não mais que vegetativo. É importante ressaltar que muitos enfermos, vítimas de doenças agudas, podem evoluir com irreversibilidade do quadro. Somos expostos à dúvida sobre o real significado da vida e da morte. Até quando avançar nos procedimentos de suporte vital? Em que momento parar e, sobretudo, guiados por que modelos de moralidade?

Aprendemos muito sobre tecnologia de ponta e pouco sobre o significado ético da vida e da morte. Um trabalho publicado em 1995, no Archives of Internal Medicine, mostrou que apenas cinco de cento e vinte e seis escolas de medicina norte-americanas ofereciam ensinamentos sobre a terminalidade humana. Apenas vinte e seis dos sete mil e quarenta e oito programas de residência médica tratavam do tema em reuniões científicas.

Despreparados para a questão, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo com doença incurável em fase terminal, impondo-lhe longa e sofrida agonia. Adiamos a morte às custas de insensato e prolongado sofrimento para o doente e sua família. A terminalidade da vida é uma condição diagnosticada pelo médico diante de um enfermo com doença grave e incurável; portanto, entende-se que existe uma doença em fase terminal, e não um doente terminal. Nesse caso, a prioridade passa a ser a pessoa doente e não mais o tratamento da doença.

As evidências parecem demonstrar que esquecemos o ensinamento clássico que reconhece como função do médico “curar às vezes, aliviar muito freqüentemente e confortar sempre”. Deixamos de cuidar da pessoa doente e nos empenhamos em tratar a doença da pessoa, desconhecendo que nossa missão primacial deve ser a busca do bem-estar físico e emocional do enfermo, já que todo ser humano sempre será uma complexa realidade biopsicossocial e espiritual.

A obsessão de manter a vida biológica a qualquer custo nos conduz à obstinação diagnóstica e terapêutica. Alguns, alegando ser a vida um bem sagrado, por nada se afastam da determinação de tudo fazer

128

enquanto restar um débil ‘sopro de vida’. Um documento da Igreja Católica, datado de maio de 1995, assim considera a questão: ‘Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionais aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida’.

Inevitavelmente, cada vida humana chega ao seu final. Assegurar que essa passagem ocorra de forma digna, com cuidados e buscando-se o menor sofrimento possível, é missão daqueles que assistem aos enfermos portadores de doenças em fase terminal. Um grave dilema ético hoje apresentado aos profissionais de saúde se refere a quando não utilizar toda a tecnologia disponível. Jean Robert Debray, em seu livro L’acharnement thérapeutique, assim conceitua a obstinação terapêutica: ‘Comportamento médico que consiste em utilizar procedimentos terapêuticos cujos efeitos são mais nocivos do que o próprio mal a ser curado. Inúteis, pois a cura é impossível e os benefícios esperados são menores que os inconvenientes provocados’. Essa batalha fútil, travada em nome do caráter sagrado da vida, parece negar a própria vida humana naquilo que ela tem de mais essencial: a dignidade.

No Brasil, há muito o que fazer com relação à terminalidade da vida. Devem ser incentivados debates, com a sociedade e com os profissionais da área da saúde, sobre a finitude do ser humano. É importante que se ensine aos estudantes e aos médicos, tanto na graduação quanto na pós-graduação e nos cursos de aperfeiçoamento e de atualização, as limitações dos sistemas prognósticos; como utilizá-los; como encaminhar as decisões sobre a mudança da modalidade de tratamento curativo para a de cuidados paliativos; como reconhecer e tratar a dor; como reconhecer e tratar os outros sintomas que causam desconforto e sofrimento aos enfermos; o respeito às preferências individuais e às diferenças culturais e religiosas dos enfermos e seus familiares e o estímulo à participação dos familiares nas decisões sobre a terminalidade da vida. Ressalte-se que as escolas médicas moldam profissionais com esmerada preparação técnica e nenhuma ênfase humanística.

O médico é aquele que detém a maior responsabilidade da ‘cura’ e, portanto, o que tem o maior sentimento de fracasso perante a morte do enfermo sob os seus cuidados. Contudo, nós, médicos, devemos ter em mente que o entusiasmo por uma possibilidade técnica não nos pode impedir de aceitar a morte de um doente. E devemos ter maturidade suficiente para pesar qual modalidade de tratamento será a mais adequada. Deveremos, ainda, considerar a eficácia do tratamento pretendido, seus riscos em potencial e as preferências do enfermo e/ou de seu representante legal.

Diante dessas afirmações, torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser humano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e sobre o processo do morrer.

129

Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, para o qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual.

A exposição de motivos da Resolução 1.805/2006 do CFM

apresenta fundamentos bastante sólidos da seara médico-científico.

Sintetiza os avanços tecnológicos conquistados pela ciência e

medicina e a mudança do papel do médico na sociedade atual.

O texto traz ainda uma questão bastante polêmica e controvertida: a

posição ética da sociedade atual sobre o que se tem chamado de “terminalidade

da vida”. De fato, tem-se a impressão de que as pessoas de um modo geral

(independentemente de religião) não gostam de debater e não aceitam com

facilidade encarar a questão do “fim da vida”.

Posto isso, vê-se que, além dos argumentos e fundamentos jurídicos

lançados anteriormente, o viés científico, prático, do dia-a-dia do médico, que vê a

vida e a morte todos os dias, seguem no sentido de entender que a ortotanásia já

ocorre no Brasil e esse é o rumo natural das coisas.

Assim sendo, a referida Resolução do Conselho Federal de

Medicina nada mais fez do que colocar no papel uma realidade cotidiana dos

médicos de todo o país.

130

4.2 Ortotanásia: Constitucionalidade ou Inconstitucionalidade?

4.2.1 Análise da esfera infraconstitucional: a ortotanásia à luz

do atual Código Penal brasileiro e os anteprojetos de 1994, 1998

e 1999

Uma parte da doutrina brasileira entende que a ortotanásia é

conduta a ser tipificada como homicídio privilegiado. Todavia, no aspecto

legislativo infraconstitucional, em especial no que tange ao Código Penal não é

este o entendimento. Ao contrário. Portaria 581/92 do Ministério da Justiça

nomeou comissão destinada a elaborar o Anteprojeto de 1994 para Reforma da

Parte Especial do Código Penal. 168 A comissão revisou o texto do antigo

Anteprojeto de 1984 e produziu a seguinte proposta de alteração legislativa para o

art. 121, § 3º:

Art. 121, §3º: Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, cônjuge, ou irmão.

Novamente, em 1998 e 1999, novos Anteprojetos vêm propor

modificações ao texto legal. No anteprojeto de 1998, recomendava-se a previsão

de pena para a prática de eutanásia no parágrafo 3º do artigo 121 e inclusão de

parágrafo 4º descriminalizando o ato de “deixar de manter a vida de alguém por

meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e

inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou, na sua

impossibilidade, de ascendente, cônjuge, companheiro ou irmão”.

168 Antes deste anteprojeto, o Ministério da Justiça já havia determinado, através da Portaria 518/83, a elaboração de Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal de 1984, cujo texto tornava impunível a eutanásia de modo amplo, seja na forma ativa, seja na passiva. A idéia era acrescentar ao artigo 121 um terceiro parágrafo, cujo conteúdo isentaria de pena “o médico que, com o consentimento da vítima, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa a morte iminente e inevitável, atestada por outro médico”. Este anteprojeto não teve seguimento quanto à Parte Especial e somente anos depois a Portaria 581/92 ora em comento nomeou comissão destinada a elaborar o Anteprojeto de 1994.

131

Observa-se que na proposta de artigo 121, parágrafo 4º, afasta-se

qualquer dúvida acerca da ilicitude da ortotanásia. A própria Exposição de

Motivos diz, nos moldes do esboço de 1994, acrescentando apenas a figura do

companheiro entre os legitimados a decidir, em caso de impossibilidade pessoal

da vítima.

Em 1999, novo Anteprojeto vem propor a modificação do texto

sugerido em 1998, tornando a eutanásia delito próprio, a ser praticado pelos

familiares, e passando-se a exigir o estado terminal169. Com relação à ortotanásia,

contudo, não houve alterações substanciais. No artigo 121, parágrafo 4º do

Anteprojeto de 1999, conservou-se disposição expressamente permissiva quanto

à ortotanásia, nos termos do modelo de 1998, alternando, todavia, a ordem dos

legitimados a consentir em lugar do doente (o que sugere existir realmente uma

hierarquia), de modo que o cônjuge ou companheiro passa a preceder os

ascendentes e descendentes. Tal orientação também não parece ideal, quando

se rememora que mesmo os separados de fato ainda são considerados para fins

penais como cônjuges170, em detrimento, talvez, de pais ou filhos que convivam

com o moribundo e sejam responsáveis pelos cuidados para com ele.

Entende-se que a iniciativa de inclusão deste parágrafo no Código

Penal, reflete a cultura da “super normatização” do direito brasileiro. Revela um

costume (impregnado inclusive na formação dos magistrados brasileiros) de

procurar sempre criar uma norma para todo e qualquer fenômeno social. A

inclusão do parágrafo não seria (e não é) necessária. O texto constitucional já

oferece resposta suficiente ao “problema”. Um simples exercício interpretativo da

Constituição Federal é bastante para reconhecer que a ortotanásia é conduta

absolutamente constitucional e lícita.

169 Diz a nova redação: Artigo 121, §3º: “Eutanásia: Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente, descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por compaixão, a pedido desta, imputável a maior de dezoito anos, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal, devidamente diagnosticados. Pena: reclusão, de dois a cinco anos”. 170 Esse é o entendimento de grande parte da doutrina no que toca, por exemplo, ao agravante constante no artigo 60, II e do Código Penal brasileiro de 1940.

132

De qualquer modo, considerando a atual redação do Código Penal

brasileiro, vê-se que não há qualquer referência quanto à ortotanásia e às

condutas médicas restritivas – limitações de terapêuticas que se revelam

inoperantes, servindo apenas para prolongar o processo de morte, sem melhorar

a condição de sobrevivência do enfermo. Defende-se aqui, como já afirmado em

outra passagem, que a omissão ou a retirada dessas medidas não configura o

tipo do homicídio, sequer privilegiado, pois se trata de decisão do âmbito

profissional, acerca da conveniência e da indicação de certo tratamento, faltando-

lhe, no caso, o dever de agir. Não há obrigatoriedade de se fazer uso de todos os

recursos tecnológicos e farmacológicos disponíveis, se o próprio doente, no

exercício de sua autonomia, não deseja prolongar sua existência além dos limites

naturais. Ele não pede que se lhe antecipe a morte, mas que não se a protele

artificialmente.

Não é, contudo, o consentimento do ofendido apenas que embasa a

licitude da ortotanásia. Embora o pedido do enfermo capaz justifique a

manutenção artificial da vida (pois essa solicitação, de per si, demonstra a

existência de benefício na mantença do tratamento para ele, que ainda deseja

viver esses momentos acrescidos pela tecnologia), a perda da autonomia faz com

que se passe a trabalhar na busca de seu melhor interesse. Isso pode apontar na

direção da limitação de terapêutica, mesmo sem o seu expresso e atual

consentimento, quando, perdida a capacidade de decidir por si, observa-se que

os recursos utilizados são ineficazes e representam acréscimo de sofrimento ao

moribundo. A conduta médica restritiva é decisão prioritariamente profissional,

ainda que a família deva ser sempre previamente informada, até para que, à

simetria do que se dá no diagnóstico de morte encefálica, tenha tempo razoável

para questionar a conduta restritiva perante um médico de sua particular

confiança. Isso visa a proteger os interesses do paciente, na medida em que, em

sua esperança e comoção, podem os parentes insistir na manutenção de

tratamento flagrantemente inútil, que somente o maltrata ainda mais. Veja-se que

a intenção da equipe médica que restringe terapêutica não é matar o doente, mas

evitar a distanásia.

133

Para os seguidores de Welzel, então, a conduta ora analisada seria

atípica, pela ausência do elemento subjetivo, é dizer, pela falta do animus necandi

(desejo de matar), já que, na escola finalista, o dolo faz parte do tipo. Tal

entendimento justifica não apenas a ortotanásia, mas a licitude dos demais atos

médicos, regularmente praticados, sob a ótica dessa corrente teórica.

Pela teoria da imputação objetiva, por sua vez, é possível dizer que,

ao se adotar uma conduta médica restritiva, não se estará incrementando o risco

que a doença já representava, atendo-se aos limites do risco permitido ao

exercício profissional de decidir a terapêutica, com bom senso e lastro científico.

Em última instância, não foi a decisão médica que promoveu a morte do paciente,

mas a enfermidade, em grau já incontrolável, que o inserira num irreversível

processo de morrer. Deixou-se apenas de lentificar artificialmente esse processo

por entender que isso seria prejudicial ao interessado, aumentando suas dores e

não lhe oferecendo efetiva vantagem em contrapartida, Esse entendimento afasta

também a tipicidade da conduta, que restará penalmente irrelevante171.

Já pela chamada teoria da tipicidade conglobante, entendendo-se

que o Código de Ética que rege a profissão (fruto da Resolução do Conselho

Federal de medicina, a partir da autorização legal stricto sensu) e o próprio

ordenamento admitem a prática médica e, ainda, que as condutas médicas

restritivas enquadram-se no exercício regular dessa prática profissional, é de se

supor que o mesmo ordenamento não pode, simultaneamente, fomentar e punir a

conduta nas mesmas circunstâncias, de modo que o fato resultaria atípico,

tomando-se o sistema como um todo172.

Limitando-se ao direito positivado, é possível alegar em favor da

licitude da ortotanásia que, tomando-se as causas de exclusão de ilicitude

constantes do Código Penal brasileiro, ainda que considerada típica, a conduta

médica restritiva seria penalmente justificada com fulcro numa das excludentes

171 VILLAS-BÔAS, 2005, p. 190. 172 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Partegeral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 e PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido da teoria do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, passim.

134

arroladas no artigo 23 desse Diploma Penal, a saber: o estado de necessidade, a

legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de

direito. Dentre essas, entendeu-se como mais aplicável, in casu, o exercício

regular de direito, uma vez que se defende tratar-se aqui de avaliação

eminentemente médica a que constata a futilidade terapêutica, a partir de

conhecimentos técnicos específicos, aplicados na boa prática profissional. O

direito então exercido seria o da prática da Medicina, obedecendo-se, inclusive,

às disposições já referidas do Código de Ética profissional, que exige a prestação

médica em favor do paciente (artigo 57 do Código de Ética Médica), promovendo-

lhe benefício efetivo com a atividade, em lugar de agravar sua angústia.

Além das causas legais de justificação, aventa-se a possibilidade de

uma causa supra legal excludente de culpabilidade, a saber: a inexigibilidade de

conduta diversa. Esse fundamento já foi admitido em julgados de direito

estrangeiro quanto ao tema em estudo173, isentando de pena parentes próximos

que provocaram a morte de entes queridos em grande sofrimento, alegando-se

então, que não se podia exigir dos agentes assistirem impassíveis ao dantesco

quadro, insensíveis aos apelos desesperados para que pusessem termo à

angústia daquelas existências terminais174.

Tratando da eutanásia, Dotti175 cita como espécie de inexigibilidade

de conduta diversa atinente ao tema o “conflito de deveres” (entre o dever de

conservar a vida e o dever de aplacar o sofrimento), resultando na “escolha do

mal menor” (entre a agonia lenta e inevitável da doença e a morte rápida e indolor

da eutanásia), o que pode ser adaptado, com adequação ainda maior, ao caso da

ortotanásia. O autor cita, contudo, a forte crítica ao argumento do mal menor,

sobretudo na Alemanha, por ter sido ele utilizado durante o regime nazista, para

justificar um programa verdadeiramente genocida, dito de eutanásia.

173 O direito brasileiro – mesmo os tribunais superiores – já aceita que o argumento da inexigibilidade da conduta diversa pode ser reconhecido em questões envolvendo homicídio, inclusive para fins de quesitação ao júri; não foi encontrada, todavia, jurisprudência nacional que o tivesse utilizado especificamente na hipótese em tela. 174 Cf. casos citados por Evandro Corrêa de Menezes. Direito de matar: Eutanásia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 59-67. 175 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 426-429.

135

É possível alegar, afinal, os princípios do Direito Penal que justificam

a tipificação de uma conduta, dentre os quais se destaca o binômio composto

pela relevância e pela adequação social 176 . As condutas médicas restritivas

tendem a ter ampla aceitação por parte da sociedade, que não deseja ver seus

membros submetidos a tratamentos compulsórios e cruentos no final da vida, os

quais, não podendo devolver a saúde, destinam-se somente a prolongar um

resquício de existência, que pode mostrar-se mais custoso do que benéfico para o

indivíduo. Não se trata de defender um “direito de matar” ou um “direito de

morrer”, como se usa dizer quanto à eutanásia, mas um direito de recusa à

terapêutica fútil que afronta, desproporcional e desnecessariamente, a dignidade

do ser humano em fim de vida.

4.2.2 A legalidade e a constitucionalidade da ortotanásia

Foi com a promulgação da Resolução do Conselho Federal de

Medicina ora analisada que reascendeu a discussão acerca da

constitucionalidade ou inconstitucionalidade da ortotanásia.

Fartas foram as reportagens divulgadas pela imprensa sobre o

assunto. Muitos foram os posicionamentos pela inconstitucionalidade da medida e

da Resolução. Veja-se algumas:

Ortotanásia: Conselho Federal de Medicina: Resolução: Questionamento para revogação imediata

Resolução do Conselho Federal de Medicina permite a suspensão de tratamento a pacientes terminais.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Distrito Federal instaurou na última terça-feira, 14 de novembro, procedimento administrativo para revogar imediatamente a resolução do Conselho Federal de Medicina que regulamenta e autoriza a prática da ortotanásia. A resolução foi aprovada no último dia 9 de novembro e permite aos médicos limitar ou suspender tratamentos e procedimentos empregados para prolongar a vida de pacientes terminais. Para o Ministério Público Federal, no entanto, a medida é um atentado ao direito à vida.

O procurador regional dos Direitos do Cidadão Wellington Marques de Oliveira argumenta que a ortotanásia, assim como a eutanásia, ainda é considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro. Por isso, "é inadmissível que se deixe à livre vontade de médicos e parentes atenuar

176 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 17.

136

o sofrimento de qualquer ser humano", afirma. Além disso, ele lembra que o anteprojeto de Código Penal que regulamentará o assunto ainda está em discussão no Congresso, "onde passará pelo crivo da constitucionalidade, terá que ser aprovado em plenário e passar pelo crivo de inevitável ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, para, somente depois, admitirem-se homicídios com nomes pomposos na legislação brasileira".177

Consultor Jurídico

Saúde até o fim

Permitir morte de doente terminal é inconstitucional

por Felippe Mendonça

O CFM legislar matéria constitucional foi a maior inconstitucionalidade por mim percebida. A vida, direito fundamental, como todos os demais, é matéria constitucional, assim como a tripartição do poder, limitações do poder, forma do Estado, etc.. E é clausula pétrea.

Modificar o termo, separar eutanásia de ortotanásia, ou qualquer outra "solução" que o CFM encontre para permitir aos médicos liberar o leito do enfermo incurável é inconstitucional. Só a Constituição poderia limitar o direito à vida.

A saúde é dever do Estado, máxima constitucional. Portanto, um paciente deve ser submetido ao tratamento, mesmo que sem a mínima esperança de cura, até o momento de sua morte. Fato jurídico. Deixar de submetê-lo ao tratamento seria um ato jurídico.

Entrando no mérito da matéria, apesar de desnecessário, se a diferença entre eutanásia e ortotanásia é que no primeiro aplica-se procedimento capaz de levar o enfermo à morte e o segundo preocupa-se com seu sofrimento, mas cessa o tratamento, tanto de uma forma ou de outra, limita-se o direito à vida.

Quando a carta magna institui o direito à vida e o dever do Estado de cuidar da saúde do indivíduo, sem restringir à possibilidade da eutanásia ou ortotanásia, impede que uma norma inferior venha a fazer.178

Em ambos os artigos destacados tem-se posições no sentido de

considerar a ortotanásia ora ilegal ora inconstitucional.

177 Portal NotaDez. Disponível em <http://www.notadez.com.br/content/noticias.asp> Acesso em 25.11.2007 178 Site Consultor Jurídico. Disponível em:< www.conjur.com.br> Acesso em 25.11.2007.

137

Na opinião do procurador regional dos Direitos do Cidadão

Wellington Marques de Oliveira “a ortotanásia, assim como a eutanásia, ainda é

considerada homicídio pelo Código Penal Brasileiro”. Ao contrário do que

assevera o ilustre procurador, acredita-se, conforme se demonstrou no item

precedente, que o código penal brasileiro não apresenta de forma clara se a

ortotanásia constituiria conduta típica, antijurídica e culpável, apesar da doutrina e

jurisprudências majoritárias a tratarem como homicídio privilegiado. O que há,

como visto, é um projeto de alteração do diploma penal que deverá tornar a

ortotanásia conduta expressamente atípica.

Já na opinião do advogado Felippe Mendonça, a ortotanásia e a

referida Resolução são manifestamente inconstitucionais.

Nelson Hungria entende que a permissão da ortotanásia, com a álea

do erro de diagnósticos, enseja, não obstante, o perigo dos abusos: “Médicos

levianos, inescrupulosos ou displicentes, ou demasiadamente confiantes na sua

previsão de morte, podem deixar-se aliciar pelas insinuações interesseiras de

parentes que visam a uma herança, ou a evitar que se desfalque com um

tratamento dispendioso do enfermo a ser induzidos, ainda que por furtivo influxo

do subconsciente, a admitir como realidade o que talvez não passe de errônea

suposição de insuperável proximidade de morte e a não aplicar, ou interromper a

aplicação dos recursos distanásicos”179.

Em que pese o respeito que se tem por todos os juristas e

estudiosos acima destacados, acredita-se que seus posicionamentos não refletem

a melhor interpretação do texto constitucional.

Entende-se que a ortotanásia representa conduta absolutamente

constitucional, haja vista estar em consonância com o que aqui está-se chamando

de princípio do “direito à vida digna”, união da garantia constitucional do direito à

vida (art. 5º, caput), com o superprincípio da dignidade da pessoa humana (art.,

1º, III), numa interpretação sistemática da Constituição Federal. Limitar ou

179 HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão, p. 752..

138

suspender tratamento de paciente terminal cuja terapêutica não será revertido em

seu benefício é ato com amplo respaldo constitucional, eis que garante a

dignidade do ser humano. À luz de tudo o que foi estudado e refletido até o

momento no presente texto, parece ser essa, se não uma resposta definitiva, um

caminho bem fundamentado na defesa da constitucionalidade da ortotanásia.

Não bastasse a supremacia do princípio da dignidade da pessoa

humana, convêm destacar que o caput do art. 225 da Constituição Federal, ao

tratar da proteção ao meio ambiente, prevê a garantia da “sadia qualidade de

vida”180.

Defende-se que, muito embora o bem jurídico tutelado por este

dispositivo seja o meio ambiente, cabe interpretação extensiva, entendendo-se

que a preservação da “sadia qualidade de vida” depende não só de um meio

ambiente ecologicamente equilibrado, mas principalmente de condutas humanas

que venham contribuir para a sua manutenção. No caso da ortotanásia, em

especial, vê-se que o doente terminal está longe de gozar de uma sadia qualidade

de vida . Assim, se a vida perdeu este caráter sadio, perdeu sua qualidade e sua

dignidade, então não podem os médicos utilizarem de tecnologia científica para

manter o ser humano indefinidamente nesta condição.

É fato, ainda, que a suspensão de esforço terapêutico está

autorizada não só constitucionalmente como também no plano infraconstitucional.

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 15, prevê que “ninguém pode

ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a

intervenção cirúrgica”.

A Lei nº. 8.080/90 – Lei Orgânica da Saúde, em seu artigo 7º, inciso

III, reconhece o direito à autonomia do paciente:

180 Art. 225, Constituição Federal: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do porvo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

139

Capítulo II – Dos Princípios e das Diretrizes

Art. 7º: As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde – SUS são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda os seguintes princípios:

(...)

III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral.

Somam-se a essas normas, ratificando a idéia de que a ortotanásia

já é lícita em nosso ordenamento infraconstitucional, o fato de que a Secretaria de

Saúde do Estado de São Paulo publicou, no fim na década de 90, uma “Cartilha

dos Direitos do Paciente”, cujo item 32 determina que o enfermo

(...) tem direito a uma morte digna e serena, podendo optar ele próprio (desde que lúcido), a família ou responsável, por local ou acompanhamento e, ainda, se quer ou não o uso de tratamentos dolorosos e extraordinários para prolongar a vida.

Há, ainda, no campo da ortotanásia, a Lei dos Direitos dos Usuários

dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo – Lei nº. 10.245/99, dispondo em

seu artigo 20, que são direitos dos usuários dos serviços de saúde do Estado de

São Paulo:

VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados (...);

XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;

XXIV – Optar pelo local da morte.

Há quem entenda, inclusive, com relação a este dispositivo de lei,

“que paciente recusa esses tratamentos quando fica inconsciente, por meio de

diretivas antecipadas, de um testamento vital, símbolo de sua autonomia, de sua

titularidade sobre seu corpo e o seu destino”.181

181 RIBEIRO, Douglas Costa. Suspensão de esforço terapêutico. Cadernos de direito clínico. Brasília: União Educacional do Planalto Central. Out. 2005, p. 8-9.

140

Presumindo-se a constitucionalidade das normas acima citadas, à

luz da norma constitucional segundo a qual somente a União pode legislar sobre

matéria penal, é de se deduzir que se refiram, portanto, a matérias extra-penais.

Em sentido semelhante (pró-ortotanásia e contra a eutanásia passiva, em

distinção já defendida), o “Código de Ética do Hospital Brasileiro” 182 , em seu

artigo 8º orienta:

O direito do paciente á esperança pela própria vida torna ilícita – independente de eventuais sanções legais aplicáveis – a interrupção de terapias que a sustentem. Excetuam-se, apenas, os casos suportados por parecer médico, subscritos por comissão especialmente designada para determinar a irreversibilidade do caso, em doenças terminais (...).

Defende-se, portanto, que assim deve ser entendida a atual

legislação, de maneira que não se dependa de uma reforma penal para libertar os

pacientes de uma indevida obstinação terapêutica. As condutas médicas

restritivas – ortotanásia – devem ser decisões médicas, em discussão com o

paciente e seus familiares, pois não representam encurtamento do período vital,

mas o seu não prolongamento artificial e precário.

O dispositivo relativo à ortotanásia, assim como o novo privilégio,

cujo acréscimo se propôs nos artigos 121, parágrafo 3º, dos Anteprojetos de 1998

e 1999, devem ser melhor organizados, a fim de que sejam eles tanto mais

seguros e isentos de dúvida quanto possível; daí a preleção feita em torno das

três esferas de discussão, em especial no que concerne à ortotanásia: a equipe

médica (abrangendo o parecer de especialista na área), a família (em consenso

ou cabendo a palavra final àquele que melhor responda pelos interesses do

paciente, por ser quem cuida dele, por exemplo) e o médico assistente, que

colocará em práticas as condutas médicas restritivas. A polêmica da destinação

da ortotanásia (se apenas a paciente terminal ou se envolvendo também outros

pacientes incuráveis) depende de uma discussão social detalhada, buscando-se

182 Em PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de, 2000, p. 417.

141

estimar os valores preponderantes, bem assim quanto à possibilidade de

suspensão de nutrição e hidratação artificiais em casos específicos183.

Conclui-se por todo o exposto, à luz dos fundamentos aqui trazidos

à reflexão, que o ordenamento brasileiro ampara de forma integral o procedimento

da ortotanásia, quer no plano constitucional, quer no infraconstitucional.

183 VILLAS-BÔAS, 2005, p. 200.

142

CAPÍTULO 5

A ORTOTANÁSIA COMO FORMA DE SE ALCANAR UM FINAL DE VIDA

SERENO: ANÁLISE DE CASOS REAIS

Neste derradeiro capítulo, procura-se trazer à baila casos reais de

pessoas que enfrentaram com serenidade os instantes finais de suas vidas,

optando pelo carinho de familiares e o aconchego do lar, à frieza, impessoalidade

e parafernália de aparelhos tecnológicos que sob a escusa de “alongar a vida

humana” (mesmo quando é sabido que a morte é fim inevitável), acabam por

alongar o sofrimento humano.

5.1 Em Busca de Um Final Sereno

O artigo intitulado “Em Busca de Um Final Sereno”, trouxe ao

conhecimento público a história de uma série de pacientes terminais que

preferiram receber tratamentos paliativos em casa, tornando a fase final da vida

menos traumática do que nas UTIs.

Abaixo a transcrição de trecho do referido artigo.

“A notícia chega pelo médico e imediatamente deflagra uma

tempestade de sentimentos negativos: raiva, culpa, depressão e, sobretudo,

medo. Descobrir que sofre de uma doença incurável e que a expectativa de

vida provavelmente não vai além do próximo aniversário é para todo

mundo, em qualquer tempo, o choque definitivo de toda uma vida. A

cultura, a biologia e até as religiões conspiram para que as pessoas

jamais estejam prontas para morrer. Embora a morte seja uma das poucas

certezas da vida, ninguém faz planos para seus últimos momentos na

Terra. Segundo estatísticas, somente 10% dos pacientes terminais se

conformam com a própria situação e tomam providências adequadas para a

143

fase final da vida. Os outros 90%, confrontados com as evidências e

sob o peso do trauma emocional, condicionam-se a viver como se de

alguma maneira a sentença final possa ser revertida. Mesmo quem tem

certeza de que a morte é apenas a passagem de um estado de vida

material a outro imaterial teme o processo de transição. A atitude

mais comum é acreditar em um milagre da medicina tradicional ou em

algum recurso alternativo sobre cuja eficácia é sacrilégio conjeturar.

A medicina dos grandes centros urbanos de fato é capaz de

prolongar a vida de um doente terminal por semanas ou meses. Nas melhores

unidades de tratamento intensivo (UTIs), a falência de um órgão quase sempre

pode ser contornada com um aparelho que reproduz artificialmente suas

funções. As possibilidades são tantas que os familiares e os pacientes

lúcidos podem se confortar com a fantasia de que a morte, nesse

ambiente, é opcional. Mesmo em casa, é possível manter um doente em

estado vegetativo por anos a fio, com a ajuda de aparelhos intrusivos.

A questão central nessas situações é o que realmente o paciente grave

ganha com esses dias extras – e a que preço. Existem recompensas se o

fim da vida for adiado à custa de sofrimento físico e psicológico? Os

familiares, chocados com a possibilidade de uma perda irreparável,

quase sempre acham que sim e pedem ao médico que faça tudo o que for

possível com o objetivo de manter o paciente vivo. Os próprios

médicos, para quem salvar vidas é a prioridade da profissão, usam de

todos os recursos disponíveis para isso. O principal interessado na

questão, porém, muitas vezes tem uma opinião diferente. Pesquisas

feitas no Brasil e nos Estados Unidos mostram que, já na fase de

aceitação da doença e da proximidade da morte, acima de 70% dos

pacientes terminais fazem aos médicos e à família dois pedidos.

Primeiro, não querem sofrer. Segundo, querem morrer em casa.

A questão da qualidade de vida dos pacientes terminais tem

mobilizado comunidades médicas de todo o planeta. Há em curso na medicina

uma mudança de perspectiva com relação ao tratamento que se deve dedicar a

esses pacientes. A idéia é chegar um pouco mais perto do conceito –

144

utópico, em boa medida – de "boa morte". Em termos médicos, significa

colocar ênfase no alívio da dor, no controle dos sintomas e nos

cuidados espirituais e emocionais do doente terminal. Em geral, nas

unidades de tratamento intensivo, prevalece conceito oposto. Ali se

trava uma batalha obstinada pela manutenção da vida, mesmo sob o risco

de que isso venha a se reduzir ao adiamento da morte à custa de

sofrimento e desespero. Do ponto de vista dos pacientes, a boa morte,

ou o mais próximo que se pode chegar disso, significa trocar mais

alguns dias ou semanas de convivência nas UTIs com estranhos e

máquinas por momentos mais breves porém mais calorosos e

recompensadores com os entes queridos em casa. Muitos pacientes aptos

do ponto de vista médico a abandonar o hospital para compartilhar o

tempo que lhe resta em casa têm escolhido essa opção.

Os procedimentos incluídos nessa nova forma de tratar

doentes terminais levam o nome genérico de cuidados paliativos. Seu

objetivo, em síntese, é permitir ao doente a morte mais serena

possível. Não é uma decisão simples. Todas as respostas são

insatisfatórias quando se tenta determinar quando chegou a hora de

desligar o respirador artificial de um paciente terminal ou quando se

pode parar a quimioterapia e passar a cuidar apenas do bem-estar do

doente. Como parar de lutar quando as chances de erro, em benefício do

paciente, podem passar de 20%? Em outras palavras, como parar de lutar

se dois em cada dez pacientes dados como irrecuperáveis podem se

curar? Os dados acima se referem a doenças não malignas do coração,

dos pulmões, do fígado e dos rins. No caso do câncer, a taxa de acerto

dos médicos é muito maior. A casuística e a profusão de dados

internacionalmente aceitos permitem traçar com mais certeza a evolução

do quadro clínico dos pacientes. A enfermidade tem evolução

previsível: as condições físicas do paciente se deterioram muito

lentamente no decorrer de vários meses, ou até anos. De uma hora para

outra, os sintomas se tornam agressivos, o paciente piora rapidamente

e, em poucos meses, morre. Por essa razão, é vítima de câncer a grande

maioria dos pacientes que conseguem obter o controle do que será feito

145

de sua vida nos momentos finais. A busca de uma morte serena exige

planejamento. Há várias providências que precisam ser tomadas enquanto

o doente ainda está lúcido e senhor de si: (i) Instruir a família sobre eventuais

procedimentos hospitalares. Deixar claro se deseja ser internado em UTI mesmo

quando se sabe que isso não vai ajudar a melhorar sua qualidade de vida no

período final da existência; (ii) Fazer um testamento e mantê-lo atualizado; (iii)

Dedicar-se a projetos pessoais planejados há tempos, como escrever

um livro, aprender pintura ou fazer uma viagem muito desejada; (iv) Nos Estados

Unidos, um recurso legal chamado Living Will (Testamento

em Vida, na tradução livre), criado em 1967, permite que o cidadão

determine sob que circunstâncias deseja ter a vida prolongada

artificialmente no hospital. Em geral, trata-se de uma ordem para

desligar os aparelhos quando não há chance de recuperação. Mas se

estima que menos da metade das ordens seja realmente obedecida pelos

médicos. No Brasil, não existe legislação específica sobre o assunto.

Mesmo que o paciente deixe por escrito o desejo de não ser mantido

vivo artificialmente, prevalece a decisão do médico. Em geral, esse

segue a ética da profissão, que manda salvar vidas a qualquer preço, e

faz de tudo para prolongar a existência do paciente195.

Há hoje no Brasil cerca de quarenta hospitais e clínicas que mantêm

centros de cuidados paliativos. Eles estão presentes até mesmo no

caótico serviço do SUS. Tanto o Hospital do Servidor Público Estadual,

em São Paulo, quanto o Instituto Nacional de Câncer, no Rio de

Janeiro, atendem pacientes terminais com um time que inclui, além do

médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista, assistente social,

fisioterapeuta e conselheiro espiritual. São considerados pacientes terminais, os

que têm doenças incuráveis e fatais, com expectativa de vida de três a seis

meses. Na rotina dos cuidados paliativos, se os sintomas dão trégua ao paciente,

195 Como tratado no capítulo anterior, este entendimento sofreu significativa alteração, a partir da promulgação da Resolução nº. 1.805/2005 do Conselho Federal de Medicina. A partir de sua publicação no Diário Oficial da União, em 28 de novembro de 2006, passou a ser “permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável”, a teor do que dispõe o artigo 1º. Observe-se, entretanto, que atualmente a referida Resolução encontra-se suspensa por ordem liminar judicial, embora ainda pendente o exame de mérito de Ação Civil Pública.

146

o atendimento é feito no próprio hospital – caso contrário, a equipe vai à casa

dele.

Manter um paciente terminal é uma decisão que implica enormes

transtornos. Quando os sintomas se agravam, é preciso que os parentes,

ou enfermeiros contratados, transformem parte da casa em um pequeno

hospital. Os momentos finais da vida podem reservar cenas aflitivas –

ou mesmo assustadoras – para quem os testemunha. Esses momentos podem

não ser tão serenos e contemplativos como se planejou. Mas as

experiências engrandecedoras e emocionantes são bem mais numerosas. Os

psicólogos especializados em cuidados paliativos notam que, apesar das

variações, alguns padrões podem ser observados. Pacientes com alto

grau de espiritualidade, que acreditam existir algo além da vida,

enfrentam a morte de forma mais serena. Quem teve uma vida feliz, na

qual conseguiu realizar boa parte dos objetivos da juventude, também

tende a encarar a morte com mais tranqüilidade.

A crescente aceitação dos cuidados paliativos traz embutida uma

reação às grandes transformações por que passaram os rituais da morte no

mundo moderno. Até o início do século XX, o mais comum era morrer em

casa porque os recursos terapêuticos dos hospitais eram limitados. A

morte ocorria no próprio leito, com o doente cercado pela família e,

talvez, também pelos amigos e vizinhos. Consumada a morte, a família

cumpria a solenidade do luto, cobrindo-se de preto e abstendo-se de

comparecer a acontecimentos festivos durante um longo período. Com o

advento dos antibióticos e das cirurgias mais seguras, nos anos 30,

tornou-se mais comum morrer em hospitais. A criação das UTIs, no

início dos anos 70, abriu uma nova porta de comodidade para os

familiares e de esperança para o doente. A evolução dos tratamentos reduziu a

fatalidade de muitas doenças, mas ao mesmo tempo contribuiu para imbuir a

sociedade de um certo sentimento de onipotência com relação à morte. Criou-se

a fantasia inconsciente de que é possível evitá-la indefinidamente se forem

tomados os cuidados necessários.

147

A ilusão da imortalidade, evidentemente, serve muito bem às

famílias angustiadas por uma perda iminente. Convencidos de que os cuidados

paliativos são um passo fundamental para o progresso da medicina,

médicos de muitos países têm promovido uma autocrítica quanto à

atuação da classe nas últimas décadas. Eles argumentam que tanto as

famílias dos pacientes como os próprios médicos passaram a enxergar a

morte como uma derrota, e não como um acontecimento natural da

existência humana”196.

A busca pela serenidade do fim da vida é uma idéia que possui

estreita relação com o conceito da ortotanásia. Sim, porque no mais das vezes, a

opção por desfrutar de seus últimos dias em casa, apenas com cuidados

paliativos só ocorre após a confirmação médica de que a permanência de

determinado paciente no hospital poderá lhe dar apenas uma sobrevida, sem

trazer-lhe benefícios que possam reverter o resultado final: a morte.

Vê-se, portanto, mais uma vez, a idéia da ortotanásia associada ao

princípio da dignidade humana ou, como se tratou aqui, ao princípio da vida

digna. É a busca por essa dignidade que os operadores do direito têm o dever de

combater daqui em diante: da vida com dignidade e não da vida a qualquer preço.

A seguir, destaque para alguns relatos de pessoas que enfrentam

com serenidade seus últimos dias de vida. São pessoas que optaram em cessar

as intervenções médicas que em nada lhe trariam benefícios concretos,

permanecendo apenas com tratamento paliativo (notadamente para aliviar dores

agudas) e o carinho da família:

196 Trecho de reportagem publicada na revista “Veja”. Em Busca de Um Final Sereno. Edição 1.930, de 9 de novembro de 2005.

148

Araci Carolina Rosa

"No hospital só vejo gente morrendo, é um pesadelo", diz a dona-de-casa carioca Araci Carolina Rosa, de 60 anos, que enfrenta um câncer de colo de útero há quatro anos. Passou por vários tratamentos, mas o tumor aumentou e comprometeu o funcionamento de seus rins, bexiga e intestino. Em 2003, sem chance de cura, Araci começou a ser tratada no setor de cuidados paliativos do Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Rio de Janeiro. "Graças aos remédios que tenho tomado, sinto pouca dor física", diz ela. "A dor maior é o fato de saber que eu carrego essa doença comigo, e que não posso fazer nada para combatê-la." No dia-a-dia, tenta levar uma vida normal em casa, ao lado do marido, dos filhos e dos netos. Não há, contudo, como não pensar na doença e, algumas vezes, na própria morte, ela admite. "Eu já lutei muito contra o tumor, mas agora não tenho mais forças para isso", conta. No fim de outubro, ela passou mal e foi internada no Inca. Durante as duas semanas em que permaneceu hospitalizada, morreram duas pacientes internadas no mesmo quarto que ela. Araci entrou em depressão. "Um dos meus maiores pesadelos é ter de ficar internada. No hospital, só vejo morrer gente na mesma situação que eu", diz ela. "Como meu caso não tem mais solução, é muito melhor ficar em casa, que é um lugar cheio de crianças e vida."

Rosemari de Campos Andrade

"Ser tratada em casa faz uma grande diferença para a qualidade de vida". A professora de história paulista Rosemari de Campos Andrade, de 58 anos, solteira, dedica a vida à sua maior paixão: viajar pelo mundo. Conhece toda a Europa e as Américas do Norte e do Sul. Já foi ao Havaí e à Islândia. "Conheço até a terra de Papai Noel, na Finlândia, próximo ao Pólo Norte", orgulha-se. Em novembro de 2003, quando fazia um safári na África do Sul, começou a sentir uma dorzinha incômoda na região abdominal. De volta ao Brasil, foi diagnosticado um câncer no ovário, extirpado logo em seguida. Em 2005, o tumor voltou a se manifestar, e as sessões de quimioterapia a que ela se submeteu começaram a perder a eficácia. Mesmo 14 quilos mais magra, Rosemari não se deixa abater. No momento, planeja uma nova viagem, desta vez ao Sudeste Asiático. "Sempre acredito que vou melhorar, faz parte do meu temperamento", diz. "Mas, se por acaso não melhorar, só não quero sofrer." Falante e simpática, a professora credita boa parte de seu entusiasmo aos cuidados paliativos ministrados pela equipe do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Até mesmo procedimentos delicados, como a paracentese, drenagem do líquido que se acumula no abdome, são feitos em sua própria casa. "Isso faz uma grande diferença para tudo que se relaciona à qualidade de vida", comenta Rosemari.

149

Maria de Lourdes Maciel da Silva

Maria de Lourdes Maciel da Silva, de 49 anos, tem câncer de colo de útero desde 2000. Há dois anos, soube que não havia chance de cura. Desde então, recebe apenas tratamento paliativo. Já no início, Maria de Lourdes rejeitou a idéia de ser hospitalizada, sobretudo em UTI. "Como não tinha cura, eu preferi ficar em casa, com meu marido, meus filhos e netos, a enfrentar mais um sofrimento, que é o de ficar internada", diz ela. Maria de Lourdes superou as expectativas dos médicos. A previsão inicial era que lhe restavam apenas alguns meses de vida, mas já se passaram dois anos. "Tem dia que eu acordo bem, tem dia que acordo mal. Vou vivendo até o dia em que Deus quiser", diz.

José Carlos Carneiro

O carioca José Carlos Carneiro, professor de 64 anos, descobriu que tinha câncer de próstata há sete anos. Em 2003, ele foi considerado em estado terminal. Parou com as sessões de radioterapia e foi encaminhado aos cuidados paliativos do Inca. Aos poucos foi se sentindo melhor, começou a fazer caminhadas e voltou a freqüentar festas e churrascos. "Minha vida hoje é praticamente normal", diz ele. "O tumor continua lá, mas não me incomoda, e isso é o mais importante." A gravidade da doença fez com que ele refletisse sobre a vida. "Percebi que ajudava as pessoas menos do que eu era capaz", conta. Não sabe quanto tempo lhe resta, mas pretende usá-lo para fazer trabalho voluntário em hospitais.

5.2 A Recusa de Obstinação Terapêutica para um Bebê de 8 meses,

Portador Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I – Consagração da

Ortotanásia

Importante destacar caso especial de ortotanásia envolvendo um

bebê de 8 meses, portador de doença degenerativa conhecida como Amiotrofia

Espinhal Progressiva Tipo I. Trata-se de doença incurável, tendo os pais da

criança optado por recusar a obstinação terapêutica (distanásia) e adotar apenas

cuidados paliativos com limitação terapêutica (ortotanásia). O relato foi feito por

Débora Diniz em recente obra197. Trata-se de um caso de ortotanásia e para

ilustração do presente trabalho reproduzimos trecho do relato da autora, que

197 DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado. In: Nos Limites da Vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p. 300-307.

150

atuou, como advogada, em ação judicial requerendo autorização para suspender

o que a autora chama de “tortura da medicalização”.

O caso que chegou à justiça brasileira envolvia um bebê de 8 meses, com um quadro clínico degenerativo, incurável, e que exigia sessões diárias de intervenção no corpo para mantê-lo vivo. Seus pais descreveram estas intervenções como atos de tortura: ‘isso que a gente chama de tortura é a fisioterapia, puncionar a veia, aspirar o pulmão duas ou três vezes por dia, isso tudo incomoda, machuca (...) e não há qualquer possibilidade de modificar o quadro dele...’. Por não haver mudança no quadro clínico do bebê ou qualquer possibilidade de conter o avanço da doença, práticas invasivas como a sonda nasogástrica eram medidas consideradas exageradas, porém toleráveis para os pais do bebê. A tortura da medicalização definia-se pela impossibilidade de as medidas invasivas reverterem ou modificarem o quadro clínico ‘... o que eu acredito é que se houvesse prognóstico de cura para ele, isso não poderia ser nomeado tortura, isso seria uma terapia dolorida. Mas ele não vai ser curado, nós não estamos indo em direção a uma cura...”. Essas eram medidas que serviriam apenas para manter o bebê em sobrevida, jamais atuariam para curá-lo ou para aliviar os sintomas da doença. As mesmas medidas invasivas, quando aliviavam o sofrimento do bebê, não eram definidas pelos pais como torturantes, apenas como dolorosas. Para os pais, a fronteira entre tortura e dor deveria ser traçada pelo resultado de cada ação médica: algumas melhoravam a sobrevida do bebê, outras serviam apenas como medidas de obstinação terapêutica.

E foi sobre uma das ações médicas – a ventilação mecânica – que os pais do bebê solicitaram o direito de escolha à Justiça. Uma das características da síndrome genética do bebê era a crescente e incontrolável perda da capacidade muscular. Ainda hoje, a Medicina não sabe como interromper o processo de degeneração muscular provocado pela síndrome198-199. Os principais hospitais e centros de reabilitação locomotora do país se recusavam a internar pacientes com Amiotrofia Espinhal Progressiva Tipo I. Essa recusa não se dá por um discriminação genética, mas simplesmente por um reconhecimento da incapacidade técnica da Medicina em oferecer qualquer recurso terapêutico ou medidas paliativas para aliviar o quadro clínico. E sobre isso os pais do bebê estavam conscientes e conformados: não havia absolutamente nada o que fazer para reverter o avanço da síndrome, ou nas palavras do pai: ‘... este é um jogo em que já começamos perdendo...’.

Quadros clínicos como o desse bebê são casos-limite para os quais a Medicina tem pouco a oferecer. Há promessas de futuras terapias gênicas, remotas possibilidades de descobertas no campo da farmaco-genética, mas o fato é que não há qualquer recurso médico disponível e tampouco se considera que qualquer avanço neste campo estaria acessível às pessoas já em estágio tão avançado de perda muscular, como era o caso do bebê. A síndrome genética do bebê lhe impunha uma curta existência corporal: a estimativa de sobrevida seria de poucos anos200. E foi exatamente a certeza da existência reduzida pela

198 AICARDI, Jean . Diseases of the Motor Neuron. Diseases of the Nervous System in Childhood, 2nd Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1998, 699-708. 199 SWAIMAN, Kenneth e Ashwal, Stephen. The Spinal Muscular Artrophies. Pediatric Neurology: Principles and Practice, vo. 2, 3 ed. St. Louis: Mosby, 1999, 1164-1169. 200 Idem, ibidem.

151

síndrome – uma batalha em que a Medicina não está habilitada ainda a enfrentar – que fez os pais do bebê solicitarem limites para cada procedimento médico.

Mas se os recursos médicos são limitados, e não há responsáveis para esta limitação do conhecimento humano, os pais do bebê reconheciam outros cuidados como prioritários para garantir a integridade e a dignidade do bebê. Os pais eram dedicados e amorosos com o bebê. Desde o nascimento, a mãe não trabalhava para dedicar-se integralmente aos cuidados do bebê prematuro que precocemente foi diagnosticado como portador da síndrome genética. O pai abandonou o trabalho desde a primeira internação hospitalar do bebê. Os dois alternavam-se ininterruptamente nos cuidados e na vigilância do bebê. Os pais passaram a ser mantidos pela ajuda da família extensa que, em sua maioria, estava de acordo com a decisão do casal. Esta dedicação irrestrita ao bebê não deve ser entendida apenas como um ato compulsório da maternidade ou da paternidade, mas como um profundo ato de amor de um jovem casal que, antecipadamente, sentia saudades do filho.

Os cuidados intensivos do bebê exigiam diferentes atitudes dos pais. Por um lado, cuidar de um bebê com as limitações impostas pela síndrome pressupunha uma dedicação física e temporal irrestrita. Os pais converteram-se na extensão do corpo debilitado e fraco do bebê. A sobrevida do bebê às paradas cardiorrespiratórias foi resultado do incondicional de seus pais. Por outro lado, os pais tiveram que aprender a suspender o tempo: eles eram pais de um filho cuja existência tinha data marcada para terminar. A morte é uma condição humana, mas a existência pré-determinada é desconcertante. O bebê morreria em breve, com ou sem ventilação mecânica, e os pais tinham pressa de viver os últimos momentos com a tranqüilidade de quem ignora a proximidade da morte. A morte do bebê não era apenas uma certeza da condição humana, mas uma sentença. A passagem de condição para sentença fez com que os pais aprendessem que o amor e apego fossem sentimentos diferentes, ‘... o amor é fundamental com desapego ... e o nosso amor por ele é desapegado, não poderia ser diferente...”. Por fim, eles precisavam de proteção: somente a Justiça impediria que eles fossem transformados de pais amorosos em assassinos.

A solicitação dos pais à Justiça foi para garantir que o bebê, em caso de parada cardiorespiratória, não seria submetido à ventilação mecânica e não seria internado em uma UTI. Em outras palavras, a solicitação do casal era por garantir que a capacidade de respeitar independentemente de uma máquina fosse o limite da medicalização do corpo do filho. Nos termos do casal, o pedido judicial seria a garantia de que a independência respiratória fosse o limite da tortura. Não mais ser capaz de respirar era o sinal definitivo de que o curso da vida do bebê deveria ser seguido sem a intervenção técnica. Impor a ventilação artificial seria um ato de obstinação terapêutica que apenas impediria por algum tempo que o ciclo natural de curta existência do bebê seguisse seu rumo. O pedido dos pais de recusa de procedimento médico baseava-se na compreensão de que a ventilação mecânica não era um ato médico necessário para o tratamento do bebê, mas sim uma intervenção cruel que impediria a falência definitiva do corpo.

Ser capaz de respirar foi o limite físico estabelecido pelos pais, mas que deve ser redescrito em termos éticos. Os pais defendiam que enquanto o bebê fosse capaz de respirar sem o auxílio de medidas invasivas, ele seria capaz de lutar pela vida: ‘... a partir do momento em que ele precisar daquela máquina para poder respirar é porque ele não vai mais

152

conseguir respirar (...) É porque ele não deveria estar vivo. É porque não é para ele estar mais vivo...’. Os pais estavam conscientes, informados e esclarecidos que recusar a ventilação mecânica significaria não mais prolongar a existência do bebê, ou em termos médicos estritos, levaria ao óbito do bebê. É possível, equivocadamente, descrever a solicitação dos pais como um ato de eutanásia, uma vez que o recurso à ventilação mecânica manteria o bebê em sobrevida por mais tempo. Muito provavelmente, o bebê não morreria por problemas decorrentes de colapsos respiratórios, pois a máquina o manteria respirando, mas sua morte se daria por infecções secundárias, pneumonias, ou falências de órgãos. Certamente, a curta existência do bebê seria expandida de alguns meses (em geral 24 meses) para alguns anos, mas a pergunta dos pais era exatamente sobre o sentido de submeter o bebê a medidas heróicas e invasivas.

A ventilação mecânica garantiria a sobrevida do bebê, mas não interromperia o avanço da síndrome. Ele se manteria vivo e permanentemente ligado à máquina para respirar, piorando continuamente, e sem qualquer experiência de vida independente. Uma vez ligado à máquina, não haveria retorno: o bebê e a máquina de respiração seriam uma única existência. Na máquina, os movimentos físicos dele se reduziriam ao piscar de olhos. Por ocasião do pedido judicial, o choro do bebê já era sem som, pois os músculos das cordas vocais já haviam se enfraquecido. Ele ainda ria, mas seus pais sabiam que rapidamente a síndrome impediria a expressão do sorriso. Os pais se esforçavam para acompanhar estes últimos sinais da interação do bebê com o mundo ‘... a gente está o perdendo, mas perdendo de um jeito bonito. De um jeito justo. Com integridade...’. No hospital, o bebê passou a se alimentar por sonda nasogástrica. Na verdade, ele só conhecera duas formas de se alimentar: o leite materno e o alimento da sonda. Ele ainda era um bebê que se alimentava no seio da mãe quando na primeira parada respiratória perdeu a capacidade de deglutir.

Foi neste mesmo período que os pais passaram mais seriamente a pensar nos limites da medicalização do corpo e da existência do bebê. Até então, os relatos médicos sobre o prognóstico da síndrome eram bastante evasivos, uma característica do discurso médico quando se defronta com situações clínicas que lhe exigem o reconhecimento da impotência técnica. Segundo os pais, os relatos médicos eram genéricos: ora afirmavam que não havia padrão único de evolução da doença, ora confundia os três tipo de Amiotrofia sugerindo ser possível que o bebê viesse a sentar numa cadeira de rodas ‘... ninguém nos disse que ele vai chegar num ponto que não vai respirar mais...’. Essa ambigüidade discursiva abriu espaço para que os pais nutrissem expectativas de que não havendo padrão único de evolução da síndrome, talvez, o bebê não desenvolvesse a doença, ou mesmo de que fosse possível que a síndrome estagnasse e ele sobrevivesse em uma cadeira de rodas. Os pais o queriam vivo e com condições de viver a vida, não importando com que restrições de funcionalidade. Jamais a possibilidade da vida com deficiência foi um problema para os pais do bebê. Mas a expectativa foi destroçada pela primeira parada cardíaca e pela tentativa de colocá-lo num CPAP (Continuous Pressure Aiway Positive), um recurso de respiração artificial201. Nesta ocasião, os pais entenderam que, além de ter que aprender a lidar com a breve existência do filho, era preciso enfrentar o tema de como queriam que o bebê experimentasse os meses de vida que lhe restavam.

201 EMMERICH, João Cláudio. Modalidades especiais de Suporte Ventilatório. Suporte Ventilatório: conceitos atuais. Rio de Janeiro: Revinter, 1998, p. 125-142.

153

Ao contrário do debate tradicional sobre o direito de morrer em que se apela para a autonomia e o livre arbítrio individual para justificar o exercício do direito de deliberar sobre a vida, neste caso não havia como conhecer a opinião do bebê. E jamais seria possível conhecê-la. Mesmo que, desrespeitando a vontade de seus pais, o bebê fosse mantido sob ventilação mecânica permanente, ele não sobreviveria o suficiente para atingir a maioridade e poder se pronunciar. Na melhor das hipóteses, a respiração artificial lhe daria alguns anos de sobrevida, confinado a um leito de hospital ou aos cuidados domésticos intensivos e sem qualquer independência física ou locomotora, pois todos os músculos estariam permanentemente debilitados. Diante da total impossibilidade de se conhecer a opinião do bebê, seus pais era os representantes legítimos de sua vontade.202 E o foram não por uma concessão do Estado que reconhece o pátrio poder, mas por uma demonstração irrefutável do incondicional cuidado dos pais ao bebê.

‘... Meu filho é uma extensão de mim, sendo uma extensão de mim não posso deixar que ele passe o que eu não passaria. Não posso permitir: uma extensão de mim não vai sofrer uma coisa que eu não concordo. Eu estou salvando meu filho...’. Com estas palavras, os pais descreveram o fundamento ético do pedido por aliviar o bebê da obstinação terapêutica. Confiná-lo a uma máquina seria escravizá-lo a uma existência limitante e degradante, seria retirar dele a dignidade da morte. Impedi-lo de morrer naturalmente seria uma agressão à existência já repleta de limites do bebê. A medicina não necessitaria impor outra sentença àquela irrefutável da loteria da natureza. Os pais descreveram a ventilação mecânica como uma ameaça ao livre arbítrio do bebê: o arbítrio de uma existência livre de tecnologia médica. A dignidade do bebê passava pelo direito de morrer livre da tortura médica diária e isenta de sentido terapêutico. A tortura não está na sentença da morte precoce, na degeneração muscular ou no sofrimento físico do bebê, mas nos procedimentos médicos invasivos e incapazes de oferecer qualquer alternativa real de reversão do quadro clínico já instaurado. A ventilação mecânica significaria apenas uma extensão de sobrevida do bebê e, muito provavelmente, a substituição da causa de sua morte: de parada respiratória seguida de parada cardíaca para infecção generalizada ou pneumonia.

Os pais defenderam o direito de morrer livre da tortura da medicalização, um argumento desafiante para o ordenamento moral cristão e para o ethos biomédico que associam a morte ao fracasso. ‘... No respirador, nem um minuto. Do nosso ponto de vista, aquilo não é mais vida. Aquilo é condenar uma pessoa a não poder morrer... (...) Uma criança no respiradouro não tem a possibilidade de morrer...’. Seria possível traduzir o apelo dos pais como a recusa pela obstinação terapêutica. Mas a questão é ainda mais sofisticada que meramente a recusa de procedimento. A condenação à morte não foi decretada pelos pais, mas pelo caráter implacável da síndrome. A ventilação mecânica manteria o bebê indefinidamente vivo, mas seria um procedimento técnico irreversível: uma vez no respirador, o bebê só seria desconectado da máquina com a morte. Neste contexto, a ventilação mecânica não deve sequer ser entendida como uma recusa de tratamento médico, pois sua eleição é uma falsa opção. Os pais, na verdade, não tinham opção: a morte precoce do bebê era uma sentença e como tal não havia negociação. O que a UTI do Hospital tinha a oferecer seria um prolongamento da existência do bebê e a substituição da causa de sua morte.

202 KUHSE, Helga. Ob. Cit.

154

O dilema ético que se instaurou era exatamente pela ausência de opção. Não havia nada o que oferecer ao bebê e sua família. Nesse contexto dilacerante de absoluta impotência da medicina, comparam-se variáveis que não se prestam à equiparação: de um lado, concepções privadas sobre o sentido da vida para os pais e, de outro, recursos terapêuticos inúteis para o quadro clínico do bebê. A ventilação mecânica se justificaria como uma medida temporária com vistas a garantir o retorno à respiração independente de uma pessoa doente. Não era este o caso do bebê e sobre isto não há qualquer dúvida na literatura médica.203-204

Nesse sentido, apelar para o direito de morrer como fundamento ético para a decisão dos pais em recusar a obstinação terapêutica é pressupor que a ventilação mecânica seria uma opção viável para o bebê. O mais correto seria apelar para o direito a estar livre da tortura da medicalização. Neste caso específico, a ventilação mecânica não se justificaria em termos clínicos tampouco éticos.

A resistência em reconhecer a respiração artificial como uma opção foi acima de tudo um posicionamento ético dos pais. Um argumento ético expresso em termos de um juramento dos pais ao bebê: ‘... Nós amamos muito nosso filho. E é por causa disso que nós fizemos este juramento para com ele. É um juramento nosso: nós não vamos permitir daquela parte em diante. É um compromisso, uma obrigação. Nós sabemos que a partir daqui não será bom para ele. Ele pode ficar descansado sobre isso...’. Há quem possa contestar afirmando que este seria um caso de conflito de juramento hipocrático em que os médicos prometem não provocar nenhum dano em seus pacientes. Mas novamente este é um falso conflito. Não há dano a ser infringido ao bebê pela recusa da ventilação mecânica. Ao contrário, o dano está no confinamento do bebê à máquina. Com ou sem respiração artificial, ao haverá mudança no curso implacável da síndrome. Neste caso, o juramento hipocrático dos médicos era o mesmo que o juramento de amor dos pais: ambos comprometeram-se a cuidar do bebê. O equívoco está em entender o cuidado com a exigência do agir técnico permanente: há situações – e esse caso demonstra isso – em que a única forma de cuidado é o respeito às convicções pessoais das pessoas doentes e de seus cuidadores.

Em resumo, o pedido dos pais foi considerado eticamente legítimo, pois: 1. Os pais eram as pessoas jurídicas e eticamente legítimas para tomar decisões relativas ao cuidado do bebê; 2. O caráter heterônomo do bebê não poderia jamais ser suplantado, ou seja, seria preciso sempre que alguém representasse seus interesses e seus pais deram provas substantivas de que representam seus melhores interesses; 3. Não havia opção terapêutica, possibilidades de reversão do quadro clínico ou mesmo de medidas disponíveis de contenção da síndrome que justificassem a obstinação terapêutica. O prognóstico de sobrevida do bebê era curto (em torno de 24 meses) e de alguns anos se submetido à respiração artificial; 4. A ventilação mecânica não representava uma opção terapêutica para o bebê. Era apenas uma possibilidade técnica não indicada para quadros clínicos como o dele; 5. A ventilação mecânica seria antes uma escolha ética e pessoal que uma indicação médica e o posicionamento dos pais foi de total recusa de ventilação mecânica; 6. Os pais estavam conscientes, informados e esclarecidos que a recusa à ventilação mecânica não estenderia a sobrevida do bebê; 7. Os pais apelaram para o direito humano de estar livre de tortura, no caso do bebê entendido como o direito de estar livre da tortura da medicalização.

203 AICARDI, Jean. Ob. cit. 204 SWAIMAN, Kenneth E ashwal, Stephen. Ob. Cit.

155

Este caso e a procura inédita dos pais à Justiça devem ser entendidos não apenas como uma submissão á legalidade do Estado, mas também como uma expressão pública do ato de cuidado por um bebê no fim de sua vida. A garantia de que o apelo ético dos pais desse bebê – o direito de estar livre da tortura da medicalização – não será um clamor privado, mas um princípio ético coletivo frente á crescente medicalização da morte, será um dos desafios que esse caso deixará para a bioética brasileira.

O relato acima reproduzido ilustra e sintetiza o alcance da

ortotanásia. Não há nada que justifique manter uma criança que sofre de doença

degenerativa e incurável presa a tubos e remédios apenas para lhe garantir uma

sofrida sobrevida. Não é este o ideal de ética e justiça - que deve sempre nortear

a interpretação e aplicação de leis e princípios.

O sistema jurídico brasileiro, sedimentado no superprincípio da

dignidade da pessoa humana, garante de forma inequívoca do direito à vida

digna. Assim, quando esta vida, em casos extremos, está eivada de um “mínimo

ético fundamental”, já não é mais vida, tornou-se outra coisa. O bem jurídico a ser

tutelado e protegido é a vida digna e não qualquer vida. E a adoção da

ortotanásia é a melhor aplicação desta proteção.

156

CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 é expressa em outorgar proteção máxima ao

direito à vida. Não obstante, constitui fundamento da República Federativa do

Brasil, a dignidade da pessoa humana. Numa interpretação sistemática do texto

constitucional, conclui-se que a vida que o legislador pretende garantir e preservar

é a vida digna.

Não há consenso, nem na doutrina jurídica, nem na comunidade

científica sobre quando a vida se inicia. E muito embora seja amplamente

aceitável a tese de que ela termina com a morte encefálica, há ainda polêmicas

discussões sobre até quando a tecnologia deve interferir no processo de morrer.

O assunto central abordado na presente reflexão é o direito de

pacientes terminais terem a opção de rechaçar a obstinação terapêutica, ou seja,

limitar ou suprimir o uso de aparelhos, remédios ou outros recursos que, se por

um lado adiam o óbito, por outro acarretam profundo sofrimento (físico e

psíquico). Em verdade, muitas vezes o que a tecnologia garante é uma

“sobrevida”, muito distante do conceito de vida digna.

Após extensa pesquisa e reflexão sobre os mais diferentes

conceitos que a doutrina utiliza quando o assunto é eutanásia, viu-se que a

proposta aqui apresentada, intitulada ortotanásia, constitui expressão autônoma e

diversa do termo eutanásia “stricto sensu” . Trata-se da “morte no tempo certo”,

não sendo nem abreviada pela eutanásia (através, por exemplo, de injeção letal

aplicada ao paciente terminal), nem tampouco prolongada pela distanásia

(obstinação terapêutica, visando prolongar a vida a qualquer custo).

Analisou-se com vagar a recente Resolução nº. 1.805/2006 do

Conselho Federal de Medicina, que permite aos médicos limitarem ou

suspenderem procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida de pacientes

terminais acometidos por enfermidades graves e incuráveis. Da análise, concluiu-

se, em síntese: (i) que a espécie prevista no texto normativo do Conselho Federal

157

de Medicina é “ortotanásia” e (ii) que a previsão legal está em perfeita harmonia

com o ordenamento constitucional.

Com o intuito de embasar o pensamento exposto, apresentou-se

algumas lições relativas à construção da norma através do estudo das regras,

princípios e valores. Trouxe-se à baila a teoria de Ronald Dworkin, que demonstra

a força deontológica dos princípios, tal como das regras, o que culminou na

conclusão de que decisões que garantam o direito como integridade devem

observar o conjunto aberto de regras e princípios. E, em se tratando de princípios,

não se pode esquecer a força daqueles relacionados ao biodireito e à bioética,

presentes no pensamento de Dworkin. Portanto, diante de situações fronteiriças,

o que vale é o estudo do caso concreto, cuja decisão deverá garantir a justiça

para aquela determinada situação.

Analisou-se ainda, como outros países tratam do tema da

ortotanásia e da eutanásia, trazendo a leitura de casos reais, ocorridos nos

Estados Unidos da América, Espanha e França. Especialmente no que tange ao

polêmico caso da americana Terri Schiavo, viu-se que diferentemente do quanto

noticiado pela mídia internacional, a discussão travada leva em conta típico caso

de ortotanásia e não de eutanásia. De qualquer sorte, concordou-se com o

posicionamento da Corte americana em autorizar o marido e os médicos da

paciente terminal em retirar a sonda de hidratação que garantia a sobrevida de

Terri.

Procurou-se trazer à analise, casos reais de pacientes terminais que

optaram por sair do ambiente frio e impessoal dos hospitais, de se libertarem de

fios, remédios e camas geladas, para o convívio com a família, recebendo apenas

cuidados paliativos necessários para conter dores insuportáveis.

Viu-se, por fim, a necessidade de se expandir a interpretação e

efetiva aplicação do superprincípio da dignidade da pessoa humana, concedendo

liberdade e autonomia às pessoas que, encontrando-se em casos extremos,

possam viver ou morrer com dignidade, sem a dolorosa busca pela obstinação

terapêutica.

158

É preciso cultivar uma sabedoria que se adapte a contextos

pluralistas. O direito necessita entender que tanto a bioética quanto o biodireito

representam uma ponte para o futuro e devem ser vistos como pontes de diálogo

multicultural e multidisciplinar para que se possa recuperar a tradição humanista e

o respeito pela dignidade do homem e desfrutar a vida como conquista, solidária e

honradamente. A consagração da ortotanásia constitui, sem dúvida, um primeiro

passo em direção à discussão séria que a bioética exige e o direito não pode se

furtar.

Se a ciência e a medicina têm apresentado possibilidades cada vez

mais modernas de melhorar a vida e a condição humana, cabe aos operadores do

direito discutir e chegar a consenso sobre qual a melhor forma dessas inovações

converterem-se em instrumentos benéficos à sociedade. Evitar a discussão, não

trará respostas. Encarar as questões bioéticas como tabu, não trará benefícios às

próximas gerações.

O presente trabalho teve o objetivo de lançar luzes e apontar

algumas soluções para aparentes conflitos no ordenamento jurídico brasileiro, no

que diz respeito à ortotanásia. E é na esperança de que os caminhos apontados

sirvam para estimular o debate é que se acredita ser possível construir uma

sociedade mais ética, mais justa, mais digna.

159

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