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RDS X (2018), 3, 495-526 Os acordos de acionistas que regulam a conduta dos administradores das S.A., à luz do Direito brasileiro PROF. DOUTOR JOSÉ FERREIRA GOMES Sumário: 1. Introdução. 2. O problema: vinculação dos administradores aos acordos de acionistas? 3. Cont.: a vinculação é compatível com o dever de independência dos admi- nistradores? 4. Cont.: a vinculação existe, mas cede perante orientações de voto abusivas? 5. Enquadramento sistemático da não vinculação. 6. O princípio do líder (Führerprinzip). 7. O princípio da responsabilidade global (Prinzip der Gesamtverantwortung). 8. O prin- cípio da lealdade (Loyalitätsprinzip). 9. Síntese: a nulidade dos acordos de acionistas que violem a competência privativa do conselho de administração e a eficácia dos votos dos admi- nistradores proferidos contra tais acordos Resumo: O presente artigo analisa criticamente a questão da vinculação dos admi- nistradores das SA aos acordos de acionistas, no Direito brasileiro, enquadrando sistematicamente o disposto no art. 118.º da LSA, tal como modelado em 2001, com o mais vasto quadro normativo da administração das SA. Esta é uma questão com profundos reflexos na prática empresarial brasileira, à qual damos uma resposta clara: contrariamente ao sustentado por parte significativa da doutrina brasileira, concluímos que, também no Brasil, os princípios subjacentes à administração da SA limitam a validade dos acordos de acionistas e, logo, a possibilidade de os mesmos vincularem os administradores no exercício das suas funções.  Abstract: This article includes a critical analysis of the question of whether the directors of public limited companies are bound by shareholders agreements, under Brazilian Law. It offers a systematic integration of art. 118 of the LSA, as amended in 2001, with the broader rules on the role of the board of directors. This is an issue with profound implications in the daily life of Brazilian companies, to which we offer a clear answer: against a significant part of the legal literature, we conclude that, also under Brazilian Law, the principles that define the role of the board of directors restrict the effectiveness of shareholders agreements and, thus, their ability to bound directors in the performance of their duties. Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2018).indb 495 Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2018).indb 495 22/10/18 11:33 22/10/18 11:33

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RDS X (2018), 3, 495-526

Os acordos de acionistas que regulam a conduta dos administradores das S.A., à luz do Direito brasileiro

PROF. DOUTOR JOSÉ FERREIRA GOMES

Sumário: 1. Introdução. 2. O problema: vinculação dos administradores aos acordos de acionistas? 3. Cont.: a vinculação é compatível com o dever de independência dos admi-nistradores? 4. Cont.: a vinculação existe, mas cede perante orientações de voto abusivas? 5. Enquadramento sistemático da não vinculação. 6. O princípio do líder (Führerprinzip). 7. O princípio da responsabilidade global (Prinzip der Gesamtverantwortung). 8. O prin-cípio da lealdade (Loyalitätsprinzip). 9. Síntese: a nulidade dos acordos de acionistas que violem a competência privativa do conselho de administração e a efi cácia dos votos dos admi-nistradores proferidos contra tais acordos

Resumo: O presente artigo analisa criticamente a questão da vinculação dos admi-nistradores das SA aos acordos de acionistas, no Direito brasileiro, enquadrando sistematicamente o disposto no art. 118.º da LSA, tal como modelado em 2001, com o mais vasto quadro normativo da administração das SA. Esta é uma questão com profundos refl exos na prática empresarial brasileira, à qual damos uma resposta clara: contrariamente ao sustentado por parte signifi cativa da doutrina brasileira, concluímos que, também no Brasil, os princípios subjacentes à administração da SA limitam a validade dos acordos de acionistas e, logo, a possibilidade de os mesmos vincularem os administradores no exercício das suas funções.  Abstract: This article includes a critical analysis of the question of whether the directors of public limited companies are bound by shareholders agreements, under Brazilian Law. It off ers a systematic integration of art. 118 of the LSA, as amended in 2001, with the broader rules on the role of the board of directors. This is an issue with profound implications in the daily life of Brazilian companies, to which we off er a clear answer: against a signifi cant part of the legal literature, we conclude that, also under Brazilian Law, the principles that defi ne the role of the board of directors restrict the eff ectiveness of shareholders agreements and, thus, their ability to bound directors in the performance of their duties.

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1. Introdução

I. Aparentemente, o Direito brasileiro consagra soluções diametralmente opostas às vigentes no ordenamento português no que respeita aos acordos de acionistas – em Portugal conhecidos como “acordos parassociais” – que versem sobre a conduta dos administradores.

Esta aparente contradição motivou-nos a abordar o tema em duas confe-rências na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Enfrentámos então o desafi o de questionar o sentido e alcance das regras brasileiras sobre acordos de acionistas, perante o mais vasto quadro normativo da administração das S.A.

II. Esta é uma questão com profundos refl exos na prática empresarial bra-sileira. Com efeito, no Brasil, são frequentes os acordos de acionistas em com-panhias abertas”1 pelos quais se vincula o voto dos administradores às decisões dos acionistas contratantes. Uns especifi cam as matérias relevantes, mas outros sujeitam todas e quaisquer decisões do administrador ao acordo prévio desses acionistas2.

De acordo com os dados empíricos apresentados por Érica Gorga, estamos perante um fenómeno cada vez mais expressivo, que se refl ete na progressiva perda de independência dos administradores deste tipo de sociedades face aos acionistas que determinaram a sua designação3.

III. O presente artigo refl ete a sintética investigação desenvolvida até ao momento, concluindo – contra parte signifi cativa da doutrina brasileira – que, afi nal, as divergências entre um e outro sistema são sobretudo aparentes: também no Brasil os princípios subjacentes à administração da sociedade anónima (S.A.) impõem limites à validade dos acordos de acionistas e, logo, à possibilidade de os mesmos vincularem os administradores no exercício das suas funções.

1 O conceito brasileiro de “companhia aberta” difere do português de “sociedade aberta”. Segundo o artigo 4 LSA, a companhia é aberta se tiver valores mobiliários admitidos à negociação no mercado de valores mobiliários. Veja-se, v.g., Rodrigo Tellechea, Autonomia privada no direito societário, 2016, 246-263. Aproxima-se, portanto, do conceito português de “sociedade cotada” ou de “sociedade com valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado”.2 Érica Gorga, Direito societário atual, 2013, ponto 8.1, Érica Gorga e Marina Gelman, “O esvaziamento crescente do conselho de administração como efeito da vinculação de seu voto a acordos de acionistas no Brasil”, Prêmio IBGC Itaú Academia e Imprensa, disponível em http://www.ibgc.org.br/userfi les/fi les/1o_Colocado.pdf, 3-5.3 Érica Gorga, Direito societário atual, cit., ponto 8.1.

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2. O problema: vinculação dos administradores aos acordos de acionistas?

I. Em 1984, Modesto Cavalhosa4 explicava ser comum a invalidade do acordo de acionistas por “invasão de competência privativa” dos órgãos de administração. Estaria em causa uma violação de norma legal: o artigo 139.º da Lei das Sociedades por Ações (LSA), segundo a qual

«As atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto».

Perante as regras relativas à competência do conselho de administração (CA), os acordos de acionistas não poderiam regular a eleição e a destituição dos diretores (artigo 142, II LSA), subordinar um ou mais administradores ao interesse do grupo que o elegeu (artigo 154, § 1.º LSA) ou de alguma forma limitar os poderes dos administradores ou infl uenciar as suas decisões e capaci-dade de julgamento5. Da mesma forma, não poderiam fi xar a política empre-sarial, a declaração de resultados e a proposta de distribuição de dividendos6.

II. Aparentemente, tudo mudou com a reforma da LSA pela Lei n.º 10.303/2001, de 31-out., supostamente dirigida ao reforço da proteção dos minoritários7. Nas palavras de Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik,

«verifi cou-se, com a reforma, um interessante movimento no sentido de diminuir os poderes dos órgãos de administração e da assembléia geral (contra as receitas da corporate governance), que deixam de constituir os centros de decisão empresarial.

Com o novo tratamento dado aos acordos de acionistas, visando a sua maior efi cá-cia, o “órgão”, não institucionalizado, mas que passa a ser de fundamental importância para a tomada de decisões, é o das “reuniões prévias”, usualmente previstas nos acordos de acionistas»8.

4 Acordo de acionistas, 1.ª ed., 1984, 195.5 Acordo de acionistas1, cit., 195-196.6 Acordo de acionistas1, cit., 197-198. Em sentido divergente, o mesmo autor sustenta que, antes de 2001, os acordos de acionistas podiam validamente versar sobre orientações vinculativas de voto no conselho de administração. Tais acordos seriam apenas inoponíveis à sociedade e a terceiros. Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, 2002, 227.7 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, 2002, 1-2.8 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, cit., 3-4.

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Caberia, portanto, aos acionistas que conjuntamente dominam a sociedade (que podemos aqui designar por “grupo controlador”) determinar os destinos desta numa reunião prévia à assembleia geral.

III. Na base do problema está o pressuposto de que os acordos de acionistas são oponíveis à sociedade quando arquivados na sua sede (artigo 118 LSA). Verifi cados os respectivos pressupostos, a sociedade não poderia praticar atos contrários ao contratado pelos acionistas, podendo estes exigir judicialmente a execução específi ca das obrigações acordadas9.

Assim, nos termos do § 8.º do artigo 118 LSA10, aqueles que presidem à assembleia geral, ao conselho de administração e à diretoria não poderiam com-putar os votos emitidos em violação de acordo parassocial11.

A este soma-se o § 9.º, segundo o qual, se o administrador vinculado não comparecer à reunião ou se abstiver, o seu voto pode ser exercido por outro administrador designado pelo grupo controlador12. O sentido do voto é então determinado por este grupo em reunião prévia13.

9 Os presidentes destes órgãos estariam, portanto, sujeitos a uma conduta de conteúdo negativo (não computar votos), mas não poderiam substituir-se ao titular do direito de voto (acionista, administrador ou diretor) na sua manifestação de vontade, substituindo o voto proferido por voto conforme ao acordo. Para este efeito, reconhece-se, como vimos, a possibilidade de execução judicial específi ca. Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial: Direito da empresa, 2, 18.ª ed., 2014, 347-349.10 No qual se pode ler que «[o] presidente da assembleia ou do órgão colegiado de deliberação da companhia não computará o voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado».11 Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, 218, cit., 349.12 Como explica Érica Gorga e Marina Gelman, “O esvaziamento crescente do conselho de administração”, cit., 7.13 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, cit., 214. Note-se, porém, que noutra obra, em co-autoria com Fernando Kuyven, Modesto Carvalhosa apresenta uma perspetiva mais restritiva: os administradores só estariam vinculados em “matérias relevantes ou extraordinárias”, expressamente enumeradas no respetivo acordo de controlo. Nas demais, prevaleceria o dever de independência dos administradores. Cfr. Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven, “Capítulo XII – Acordo de acionistas”, in Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven (Coord.), Tratado de direito empresarial, 3 – Sociedades anônimas, 2016, 619-620.A fi gura dos “pooling agreements”, nos termos dos quais um conjunto de acionistas decide em conjunto o seu sentido de voto numa reunião prévia, designando depois um representante para emitir conjuntamente todos os seus votos em assembleia, é comum no mercado globalizado. Porém, contrariamente ao verifi cado no Brasil, têm mera efi cácia obrigacional, não sendo oponíveis à sociedade. São por isso frequentemente acompanhados de cláusulas penais ou outros esquemas contratuais destinados a assegurar os resultados pretendidos na prática. Mirko Sickinger, “§ 11 Aktionärsvereinbarungen”, in Matthias Schüppen e Bernhard Schaub, Münchener Anwalts Handbuch Aktienrecht, 2.ª ed., 2010, n.os 34-40 (em especial, 39-40).

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IV. Perante estes preceitos, introduzidos em 2001, uma grande parte da doutrina parece não ter dúvidas: «o acordo oponível à sociedade passa a vincular não apenas os acionistas em assembleia geral ou especial, mas também os administradores indicados pelos acionistas, no que respeita às deliberações do órgão de que participem»14.

Seria assim reforçada a efi cácia prática dos acordos entre acionistas para voto em bloco15. Prevaleceria a ideia de que «[o]s contratos, quando celebrados, devem ser cumpridos»16.

3. Cont.: a vinculação é compatível com o dever de independência dos administradores?

I. Segundo a mesma doutrina, esta solução não é incompatível com o dever de independência dos administradores previsto no artigo 154 LSA17, cujo § 1.º é particularmente expressivo:

«O administrador eleito por grupo ou classe de acionistas tem, para com a companhia, os mesmos deveres que os demais, não podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres».

Segundo Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, os acordos de acionis-tas devem ser conformes ao interesse social, existindo uma presunção (?) de conformidade das decisões dos acionistas controladores, em reunião prévia, ao interesse social. Ou seja, para estes autores, na prática há uma necessária conformidade do acordo parassocial ao interesse social: a vontade da maioria expressa no parassocial seria a mesma que conformaria o interesse da sociedade nas deliberações sociais. Não existiria, portanto, confl ito de interesses18!

14 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, cit., 211 ss., 224 ss..15 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, cit., 211 ss., 225 referem-se ao reforço da “coercibilidade” destes acordos.16 M.ª Lúcia Cantidiano e Luiz Leonardo Cantidiano, “Notas sobre os deveres legais e fi duciários de acionista e do administrador da companhia versus vinculação à orientação de voto decorrente de ajuste pactuado em acordo de acionistas”, in Maristela Abla Rosseti e Andre Grunspun Pitta (coord.), Governança corporativa: avanços e retrocessos, 2017, 577-591 (588).Para uma análise do impacto dos acordos entre sócios nas relações entre estes, em particular, se o incumprimento dos mesmos pode dar lugar à exclusão do sócio, cfr. Luis Felipe Spinelli, Exclusão de sócio por falta grave na sociedade limitada, 2015, 187-190.17 Em cujo proémio se pode ler:

«O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fi ns e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa».

18 Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik, A nova lei das S/A, cit., 221-222, 228-229.

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II. Esta perspetiva oferece-nos as maiores dúvidas: não pode aceitar-se a presunção de conformidade das decisões dos acionistas controladores, em reu-nião prévia, ao interesse social19.

Não existe qualquer fundamento normativo para a afi rmação de uma prae-sumptio juris20, nem se verifi cam os pressupostos da praesumptio hominis (também dita simples, natural ou judicial), assente num juízo de probabilidade sustentado na experiência pessoal e profi ssional do julgador, integrado num específi co meio social, económico e cultural21.

III. Qualquer que seja a perspetiva que se assuma sobre o interesse social – contratualista ou institucionalista22 –, não pode resumir-se o interesse da socie-dade ao interesse da maioria. Um tal entendimento habilitaria os controladores a impor irrestritamente a sua vontade aos minoritários; desvalorizaria o prin-cípio da tipicidade societária, do qual decorre uma necessária estruturação dos órgãos sociais, com uma específi ca composição e uma específi ca competência ex lege; desvalorizaria igualmente o papel do procedimento deliberativo, orde-nado nos termos legais, com vista à salvaguarda dos interesses de todos os inte-ressados, evitando o abuso dos maioritários sobre os minoritários23.

Como têm sublinhado os estudos empíricos a nível internacional, nos mer-cados com concentração acionista – como é o caso brasileiro –, predominam os confl itos de interesses entre acionistas controladores e acionistas minoritários. Esta é uma realidade que não pode ser ignorada pelo intérprete-aplicador24.

Deve, portanto, rejeitar-se uma tal perspectiva de esmagamento dos minoritários, que assim seriam votados à insignifi cância no quadro do projeto societário.

19 Érica Gorga, Direito societário atual, cit., ponto 8.6, refere-se a uma perspectiva ingénua do interesse social, assente numa presunção inadmissível.20 Aquela que, assentando num juízo normativo de probabilidade, resulta diretamente da lei.21 Cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude dos actos praticados no processo (2006), 64 (n. 170).22 De acordo com o epítome comum: numa perspetiva contratualista o interesse social corresponde ao interesse comum dos sócios enquanto sócios; numa perspetiva institucionalista à síntese dos interesses dos vários stakeholders da sociedade. 23 Se bem vemos, Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik citam incorretamente (em A nova lei das S/A, cit., 221-222) Tullio Ascarelli, Studi in tema di società, 1952, 46 s. e 148 s., em abono da sua tese. O insigne mestre italiano sustenta que não existe um interesse social superior ao interesse comum dos sócios enquanto sócios. Não equipara o interesse da sociedade ao interesse do controlador.24 Remetemos para José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades, 2015, n.os 45 ss. (em especial, n.º 51) e 90 ss..

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IV. Por fi m, a perspetiva de uma presunção da conformidade das decisões dos controladores com o interesse social esvaziaria de conteúdo útil os artigos 115, 116 e 117 da LSA, que visam conformar a conduta dos sócios e, em espe-cial, dos controladores ao interesse social. Recorde-se que estes artigos visam precisamente assegurar a responsabilização do(s) acionista(s) controlador(es) pelo abuso do seu poder de controlo25.

Um tal comando normativo só é operativo perante um padrão de conduta objetivo – que não se limita à vontade manifestada pelos controladores (padrão subjetivo) – ao qual possa ser contraposta a concreta atuação dos acionistas26.

A subjetivação do padrão deitaria por terra todos os desenvolvimentos em torno dos princípios do tratamento paritário dos acionistas e da lealdade27, reconhecidos no direito brasileiro (também) como limitações ao poder do maioritário28.

4. Cont.: a vinculação existe, mas cede perante orientações de voto abusivas?

I. Diferente desta perspetiva é aquela que, partindo da afi rmação da vincu-lação dos administradores aos acordos de acionistas, admite o seu afastamento quando as orientações de voto pelos acionistas controladores sejam abusivas (v.g., M.ª Lúcia Cantidiano e Luiz Leonardo Cantidiano29).

Contrariamente à analisada no ponto anterior, esta corrente parte do pres-suposto de que as decisões dos controladores (em reunião prévia) devem ser conformes ao interesse social (artigos 115, 116, 117 LSA), mas, na prática, pode suceder que o não sejam.

25 A este propósito Nelson Eizirik, Reforma das S.A. do mercado de capitais, 2.ª ed., 1998, 101-102, refere-se a uma superação da “fi cção democrática” que antes implicava uma diluição da responsabilidade na assembleia geral ou nos órgãos de administração.26 Os casos de abuso de poder de controlo expressamente previstos artigo 117, § 1.º ora se referem ao objeto social, ora se centram no interesse da sociedade. Este não se limita àquele, mas a ligação é estreita, como resulta da exposição do próprio Nelson Eizirik em Reforma das S.A.2, cit., 101 ss., a propósito da al. h). Sobre a articulação destes conceitos, veja-se, de forma muito desenvolvida, o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., n.os 1869 ss. No Brasil, vide, v.g., com muito interesse, Marcelo Vieira von Adamek, Abuso de minoria em direito societário, 2014, 97 ss., 140 ss.27 Este princípio é apresentado sumariamente adiante no ponto 8.28 Veja-se novamente Marcelo von Adamek, Abuso de minoria, cit., 106 ss. (em especial, 109), 112 ss.29 “Notas sobre os deveres legais”, cit., em especial, 588-589.

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A atuação dos acionistas em sentido contrário aos interesses da sociedade constituiria abuso de direito; sendo os acionistas controladores, abusariam do seu poder de controlo. Havendo abuso, as orientações dadas aos administradores seriam ilegais, não os vinculando.

II. Assim, «[e]ntendendo o administrador que a orientação de voto que lhe foi transmitida é ilegal, ou contrária aos interesses da companhia, ele deve proferir seu voto segundo suas próprias convicções, no qual registrará as suas razões».

Este entendimento foi sufragado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro30:

«Como regra geral, o acordo de acionistas vincula os conselheiros à orientação de voto do acionista. Contudo, essa regra não é absoluta, devendo o conselheiro não cumprir tal orienta-ção caso a mesma seja contrária ao interesse social, eivada de ilegalidade ou abusiva. Nesses casos, o conselheiro poderá ser responsabilizado pelos prejuízos causados por sua conivência, negligência ou omissão (art. 158 da Lei das Sociedades por Ações brasileira).»

III. Com a devida vénia, esta posição não dá resposta cabal ao problema, porque só resolve os casos mais óbvios de abuso:

– Nos casos mais comuns de divergência entre acionistas e entre estes e os administradores quanto à opção mais adequada à promoção do interesse da sociedade, devem os administradores votar de acordo com o seu juízo ou das orientações dos acionistas que os designaram?

– Não têm os administradores afi nal o dever de fazer tudo ao seu alcance para promover os melhores interesses da sociedade?

– Se seguirem o caminho trilhado pelos controladores e a sociedade vier a perder dinheiro (ou não ganhar o dinheiro que podia ter ganho), não podem ser responsabilizados?

IV. O interesse da sociedade, enquanto bitola objetiva que modela a con-duta da administração, traduz aquilo que um «gestor criterioso e ordenado» – ou, na terminologia da lei brasileira, um administrador «ativo e probo», usando cuidado e diligência (artigo 153 LSA) – entenderia como “bom” ou “desejável” para a sociedade31, perante as circunstâncias do caso concreto.

30 TJRJ 16-mar.-2005 (Leila Mariano), Ap. n.º 2004.001.36522, 2.ª Câmara Cível. Cfr. M.ª Lúcia Cantidiano e Luiz Leonardo Cantidiano, “Notas sobre os deveres legais”, cit., 580.31 Vide n. 22 supra.

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Assim, em cada momento, cada administrador, no exercício da sua obri-gação de diligente administração, deve descobrir a conduta devida em função desse critério e atuar em conformidade32.

V. Porém, cada opção da administração no desenvolvimento da atividade empresarial, dentro dos limites da lei e dos estatutos, é relevante para a concre-tização casuística dessa bitola objetiva que é o interesse da sociedade.

Com efeito, todos os atos de administração – desde a aprovação do plano estratégico à prática de cada ato necessário para a sua concretização – traduzem uma opção concretizadora do interesse da sociedade.

Exemplo: A sociedade “A” tem por objeto social o fabrico e o comér-cio de bicicletas, estando portanto a sua administração obrigada a fabricar e comercializar bicicletas da forma mais rentável possível. Mas qual será a estratégia para o efeito? Só o planeamento estratégico, que cabe ao conse-lho de administração (artigo 142/I LSA), permite densifi car o fi m a pros-seguir pela sociedade.

Tendo o conselho de administração optado pela produção de bicicletas urbanas para soluções de bike-sharing em parceria com determinadas prefei-turas que pretendem promover o uso de meios de locomoção “amigos do ambiente”, e tendo dirigido os recursos da sociedade para investimentos em infraestruturas técnicas específi cas para o efeito, as escolhas posteriores serão sindicáveis face aos objetivos previamente estabelecidos.

Assim, a opção da administração pela produção de bicicletas para par-ques urbanos é difi cilmente sindicável face à incipiência do “interesse social” até ao momento (fabrico e comércio de bicicletas com escopo lucrativo). No entanto, defi nida essa estratégia, poderá questionar-se se o investimento “X” é mais adequado do que o investimento “Y” para o mais efi caz e efi -ciente desenvolvimento da produção e comercialização de bicicletas para parques urbanos.

Da mesma forma, a alteração da estratégia empresarial será questioná-vel face aos investimentos já realizados. Quem seja chamado a sindicar a conduta da administração pode e deve questionar qual a necessidade ou conveniência dessa alteração que, naturalmente, comportará custos adicio-nais para a sociedade. À administração caberá demonstrar que essa alteração serve os melhores interesses da sociedade.

32 Veja-se o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., n.os 1852 ss..

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VI. Assim sendo, para assegurar a coerência do sistema, não basta assegurar a autonomia dos administradores perante casos mais óbvios de abuso. É neces-sário garantir a autonomia do conselho de administração para defi nir diligen-temente o que é melhor para a sociedade, no exercício das suas competências privativas, nos termos desenvolvidos em seguida.

5. Enquadramento sistemático da não vinculação

I. Perante o mais vasto enquadramento sistemático, não podemos aceitar a perspetiva de que as opções de gestão residem afi nal, não no conselho de admi-nistração, mas nas mãos de alguns acionistas, chamados a decidir numa qualquer “reunião prévia” à assembleia geral.

Afastamo-nos assim daqueles que, tendo uma visão crítica da reforma de 2001, sustentam que as «novas regras vieram suprimir alguns poderes políticos da administração e contrariam os princípios da independência dos órgãos da companhia e da autonomia dos administradores»33.

A solução é outra, nos termos sustentados adiante: o sistema continua a impor limites à validade – e não apenas à oponibilidade à sociedade –  dos acordos de acionistas. Quando sejam violados tais limites legais, os acordos são nulos, não vinculando o administrador ao sentido de voto determinado pelos acionistas que o escolheram34.

II. Estes limites à validade dos acordos de acionistas – e, logo, à possibili-dade de os mesmos vincularem os administradores no exercício das suas fun-ções – decorrem dos princípios que ordenam a administração das S.A.. Estão em causa:

(i) O princípio do líder (Führerprinzip);(ii) O princípio da responsabilidade global do órgão de administração

(Prinzip der Gesamtverantwortung); e(iii) O princípio da lealdade (Loyalitätsprinzip).

33 José Marcelo Martins Proença, “Direitos e deveres dos acionistas”, in Maria Eugênia Reis Finkelstein e José Marcelo Martins Proença, Direito societário: sociedades anônimas, 2.ª ed., 2011, 63.34 Neste sentido, v.g., Érica Gorga, Direito societário atual, cit., ponto 8.2, e, apelando especifi camente a uma interpretação sistemática, Marcelo Vieira von Adamek, Responsabilidade civil dos administradores de S/A e as ações correlatas, 2009, 145-147.

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Estes princípios, desenvolvidos sinteticamente adiante, estão hoje defi niti-vamente consolidados na Europa continental. Mais interessante ainda: nos siste-mas britânico e norte-americano as conclusões são idênticas, apesar do distinto enquadramento do problema e da diferente fundamentação das soluções, como veremos de seguida.

Os seus traços essenciais eram também genericamente reconhecidos no Brasil até à reforma da LSA de 200135.

Perante as dúvidas por esta suscitadas, impõe-se um adequado enquadra-mento sistemático que permita lançar luzes sobre as sombras criadas por esta reforma. Só esse labor permite afastar construtivamente as perspetivas doutri-nárias que desvalorizam o papel dos órgãos legais de administração no governo da S.A.36.

Só o reconhecimento do papel normativamente atribuído ao órgãos de administração permitirá realinhar a prática brasileira não só com as “melho-res práticas” de governo societário – entendidas como ideais aspiracionais –, mas sobretudo com os princípios injuntivos que, de forma basilar, estruturam a administração das S.A. a nível internacional e, se bem vemos, também no Brasil37.

35 Neste sentido, João Laudo de Camargo e Maria Isabel do Prado Bocater, sugerem que a reforma desfi gurou por completo o modelo societário consolidado há décadas no Direito brasileiro, subvertendo a concepção orgânica que explica a estrutura das sociedades por ações desde antes da 2.ª Guerra Mundial. Cfr. “Conselho de administração: seu funcionamento e participação de membros indicados por acionistas minoritários e preferencialistas”, in Jorge Lobo (Coord.), Reforma da Lei das Sociedades Anônimas: Inovações e questões controvertidas da Lei n.º 10.303, de 31.10.2001, 2002, 385-421 (396).36 A exposição de Paulo Cezar Aragão é, a este respeito, esclarecedora dos equívocos que marcam frequentemente a discussão: o cumprimento de contratos celebrados entre acionistas pelos administradores corresponde necessariamente a uma boa administração; os administradores não são escolhidos pela sua independência, não representando os interesses de todos os acionistas; é “completamente impertinente” a convocação de paralelos de outros sistemas jurídicos, porque o contexto brasileiro é contrário ao de outros países... Cfr., do autor, “A disciplina do acordo de acionistas reforma da lei das sociedades por ações (Lei n.º 10.303, de 2001)”, in Jorge Lobo (Coord.), Reforma da Lei das Sociedades Anônimas: Inovações e questões controvertidas da Lei n.º 10.303, de 31.10.2001, 2002, 367-384 (376-377).Contra esta perspetiva afi rmou-se, logo na mesma obra coletiva, Paulo F.C. Salles de Toledo, no seu texto sobre “Modifi cações introduzidas na Lei das Sociedades por Ações, quanto à disciplina da administração das companhias”, ibidem, 423-451 (426): Se os administradores não forem independentes, «a sua atuação será meramente burocrática, inócua e inefi caz, limitando-se a repetir, nas reuniões do conselho de administração, as instruções que lhe tiverem sido passadas pelo acionista que o tiver elegido».37 O potencial desvio da lei brasileira face à trajetória de todos os sistemas jurídicos de referência foi certeiramente apontado por João Laudo de Camargo e Maria Isabel do Prado Bocater

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6. O princípio do líder (Führerprinzip)

I. Na Europa continental, o papel do órgão de administração das S.A. – o conselho de administração –, tal como hoje o conhecemos, foi decisivamente modelado pelos trabalhos preparatórios do Aktiengesetz alemão de 1937 (AktG 1937), no qual se afi rmou o princípio do líder (Führerprinzip). De acordo com este princípio, o órgão de administração (Vorstand) passou a ter uma maior autonomia: deixou de estar sujeito às instruções da assembleia geral e assumiu total responsabilidade pela sua atuação.

Lia-se no § 70(1) AktG 1937 que o Vorstand devia dirigir a sociedade sob sua responsabilidade, segundo as exigências do bem da sociedade e dos seus trabalhadores e do bem comum do povo e do império.

Paralelamente, foi consagrada a regra de que a assembleia geral não podia intervir em matérias de gestão, salvo a pedido do Vorstand [§ 103(2) AktG 1937]38. Estas medidas criaram um novo equilíbrio entre os acionistas e a admi-nistração, permitindo ao Vorstand atuar com maior autonomia face a infl uências internas e externas39.

II. Esta evolução sistemática, desde sempre muito aplaudida, foi fruto de projetos anteriores à instauração do regime nacional-socialista e impôs-se pelos seus méritos depois da queda deste. Estamos perante um quadro sistemático que se perpetuou no Aktiengesetz de 196540 e que continua a modelar decisivamente o direito alemão das S.A.: por força da lei, ao Vorstand cabe a direção (Leitung) e a representação (Vertretung) da sociedade [§§ 76(1) e 78(1) AktG], sob res-ponsabilidade própria. Este não está por isso sujeito a instruções do órgão de

logo em 2002. Cfr. “Conselho de administração”, cit., 395-401.38 A assembleia geral continuava a ser responsável pelas decisões fundamentais em matérias relacionadas com a estrutura constitucional da sociedade, bem como com a estrutura do seu capital. Assim, estavam sujeitas a aprovação pela assembleia geral as alterações dos estatutos (§§ 154 ss. AktG 1937), o aumento e a redução do capital social (§§ 149 ss. e 175 ss. AktG 1937), as fusões (§§ 234 ss. AktG 1937), transmissão de ativos e celebração de contratos de comunhão de lucros (§§ 253 ss. AktG 1937), a transformação da sociedade (§ 257 AktG 1937), a sua dissolução (§ 203 AktG 1937), a nomeação de revisores especiais (§§ 118 ss. AktG) e a proposição de ações de responsabilidade civil contra fundadores, membros do Vorstand e do Aufsichtsrat (§§ 43, 122 ss AktG 1937). Quanto a matérias de gestão, não podia deliberar senão a pedido do Vorstand. A sua infl uência nesta área era então indireta, baseada no seu poder de designação e destituição dos membros Aufsichtsrat, a quem cabia, por sua vez, a designação e destituição dos membros do Vorstand.39 Veja-se o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., 494-501.40 Veja-se novamente o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., 501-503.

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fi scalização (Aufsichtsrat) ou da assembleia geral [§ 119(2) AktG]41. Mantém-se a proposição de que a assembleia geral só pode decidir sobre matérias de gestão a pedido do Vorstand [§ 119(2) AktG]42.

III. Este quadro foi igualmente perpetuado por toda a Europa Continen-tal. Em Portugal, por exemplo, a competência para a administração da S.A. é imputada em exclusivo ao conselho de administração (artigos 405.º e 431.º CSC)43. Os acionistas só podem deliberar sobre matérias de gestão a pedido do órgão de administração (artigo 373.º/3 CSC). Em coerência, os acordos de acionistas, com efi cácia meramente obrigacional inter partes44, não podem regu-lar a conduta dos administradores (artigo 17.º/ 1 e 2 CSC).

IV. Diferentemente, os sistemas anglo-saxónicos obedecem a uma tradi-ção própria, sem prejuízo do diálogo com os sistemas da Europa Continental, historicamente nem sempre evidente. Em todo o caso, seguindo o seu próprio caminho, chegaram a conclusões similares e, tanto no Reino Unido como nos EUA, se afi rma a independência do board of directors perante os acionistas.

No Reino Unido, atenta a vastíssima liberdade contratual reconhecida aos acionistas na modelação de cada sociedade, diz-se que a competência dos admi-nistradores encontra o seu fundamento na vontade dos acionistas e não na lei. Não obstante, isso não implica o reconhecimento de um poder de intervenção dos acionistas sobre a administração da sociedade. Efetivamente, a jurispru-dência britânica há muito sustenta que a solução decorre de uma adequada interpretação dos articles of association aplicáveis em cada caso: se os articles confe-rem aos administradores a competência para a administração da sociedade, nos

41 Cfr., v.g., Holger Fleischer, “Leitungsaufgabe des Vorstands”, Handbuch des Vorstandsrechts, 2006, 6, Johannes Semler, Leitung und Überwachung der Aktiengesellschaft, 2.ª ed., 1996, 9.42 Mas não pode ignorar-se a jurisprudência do BGH sobre competências não escritas da assembleia geral, que se refl ete na redistribuição de competências entre os acionistas e o Vorstand (cfr. §§ 76 e 119 AktG). São particularmente relevantes os acórdãos Holzmüller, Macroton e Gelatine (I e II), que analisámos noutra sede: Da administração à fi scalização das sociedades, cit., 505-507 (n. 1745).43 Em Portugal, as S.A. podem estruturar a sua administração e fi scalização segundo um e de três modelos (artigo 278.º CSC): o modelo tradicional, o modelo anglo-saxónico e o modelo germânico. Neste último, o órgão de administração é designado por “conselho de administração executivo”. Para uma análise crítica da solução normativa de multiplicação de modelos e as difi culdades sentidas na compreensão e aplicação do modelo germânico, cfr. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades, cit, §§ 41 (514-519) e 43 (530-536), bem como, mais recentemente, “Modelos de governo das S.A.: A difícil compreensão do modelo germânico e os requisitos de fi scalização reforçada da Lei n.º 128/2015”, Revista de Direito das Sociedades, 10:2 (2018), no prelo.44 Sem prejuízo de quanto veremos adiante, na n. 96, a propósito dos acordos omnilaterais.

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termos prescritos nos sucessivos model articles, as decisões dos acionistas sobre a mesma devem ser consideradas nulas45.

A intervenção dos acionistas depende, portanto, da alteração dos articles of association (em princípio sujeita a maioria qualifi cada), e não de uma mera deli-beração por maioria simples46.

V. Nos EUA, em todos os Estados federados podemos encontrar proposi-ções legais como a que, no Estado do Delaware, resulta do § 141(a) da General Corporations Law:

«The business and aff airs of every corporation (…) shall be managed by or under the direction of a board of directors, except as may be otherwise provided in this chapter or in its certifi cate of incorporation».

45 Em 1883, no caso Isle of Wight Railway Co v. Tahourdin, (1884) L.R. 25 Ch. D. 320, o Court of Appeal recusou uma providência pela qual a administração da sociedade visava evitar a reunião da assembleia geral que tinha, entre os pontos da sua ordem de trabalhos, um relativo à nomeação de uma comissão destinada a reorganizar a administração da sociedade. Segundo o tribunal, a administração não podia evitar a reunião da assembleia geral, dado que esta constituía o único meio de os sócios interferirem caso entendessem que os administradores não estavam a atuar segundo os melhores interesses da sociedade. Porém, em 1906, em Automatic Self Cleansing Filter Syndicate Co Ltd v. Cuninghame, [1906] 2 Ch. 34 [1906] 2 Ch. 34, o Court of Appeal esclareceria que a divisão de poderes entre a assembleia geral e os administradores dependia da interpretação do estabelecido nos estatutos. Quando a administração tivesse sido conferida aos administradores, não podia a assembleia geral interferir. Esta perspetiva consolidou-se com o aresto proferido no caso Quin & Axtens Ltd v. Salmon, [1909] 1 Ch. 311, nos termos do qual, quando os estatutos estivessem em conformidade com os model articles sucessivamente publicados, a assembleia geral não podia interferir na administração da sociedade, salvo em caso de atuação dos administradores contrária à lei ou aos estatutos. O mesmo entendimento seria mantido em casos históricos como John Shaw & Sons (Salford) Ltd v. Shaw, [1935] 2 K.B. 113, e Scott v Scott, [1943] 1 All E.R. 582. A partir de 1985, os model articles passaram a clarifi car esta questão, prevendo que a atribuição dos poderes de administração ao board of directors, “salvo disposição em contrário dos estatutos”. Passaram ainda a prever expressamente uma cláusula de “reserva de poderes dos sócios” (artigo 3). Sem prejuízo desta regra geral, a jurisprudência tem admitido ainda a intervenção dos acionistas quando se verifi que uma situação de bloqueio no board of directors, quando não haja administradores em exercício de funções, quando não seja possível alcançar o quórum mínimo no conselho, ou quando os administradores estejam impedidos de votar. Veja-se, v.g., Paul L. Davies e Sarah Worthington, Gower principles of modern company law, 10.ª ed., 2016, 358-36446 Porém, esta solução é parcialmente subvertida pela regra atualmente prevista na secção 168 Companies Act 2006, introduzida em 1948, nos termos da qual os acionistas podem destituir os administradores por maioria simples. Esta disposição constituiu um forte instrumento de pressão, na medida em que, na prática, caso os administradores não sigam as instruções dos acionistas (constantes de deliberações aprovadas por maioria simples), sujeitam-se a ser destituídos. Veja-se novamente Davies e Worthington, Gower principles10, cit., 360. Veja-se também o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., 628-629, n.os de margem 1632-1634.

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Com base nesta norma, o board encontra-se vinculado à promoção do bem da sociedade e de todos os seus acionistas, devendo resistir à pressão de acionistas e de outros grupos de interesses específi cos. Isso mesmo é sublinhado por uma lista interminável de jurisprudência, da qual a decisão proferida pelo Court of Appeals of the State of New York, no caso Triggs vs. Triggs, de 197847, é um bom exemplo:

«It has long been the law in this State that a corporation must be managed by the board of directors (…) who serve as trustees for the benefi t of the corporation and all its shareholders (…). To prevent control of the corporation from being diverted into the hands of individuals or groups who in some cases might not be subject to quite the same fi duciary obligations as are imposed upon directors as a matter of course, the courts have always looked unfavorably towards attempts to circumvent the discretionary authority given the board of directors by law (…). Such matters normally arise in the context of an agreement between sharehol-ders to utilize their shares so as to force the board of directors to take certain actions. (…)

It is, of course, proper for shareholders to combine in order to elect directors whom they believe will manage the corporation in accord with what those shareholders perceive to be the best interests of the corporation. Thus, an agreement between two shareholders to vote for a particular director or directors is not illegal and may be enforceable in an appropriate case (…). If some shareholders seek to go beyond this, however, if they agree to vote their shares so as to impose their decisions upon the board of directors, such an agreement will normally be unenforceable. (…)

(…) In those cases in which the agreement is made by less than all the shareholders48, almost any attempt to reduce the authority granted to the board by law will create a signifi cant potential for harm to other shareholders even if the potential for harm to the general public is minimal. This is so because the eff ect of such an agreement is to deprive the other shareholders of the benefi ts and protections which the law percei-ves to exist when the corporation is managed by an independent board of directors, free to use its own business judgment in the best interest of the corporation» (realce nosso).

Em suma: tanto no Reino Unido como nos EUA se entende pacifi camente que os acordos de acionistas não podem condicionar a autonomia do conselho de administração49.

VI. No Brasil, vale o disposto no artigo 138 LSA, segundo o qual «[a] administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de

47 46 N.Y.2d 305, 314, também citado por Érica Gorga, Direito societário atual, cit., ponto 8.6, n. 11.48 Os acordos omnilaterais são tratados adiante.49 Sem prejuízo de quanto vai dito adiante, na n. 96, sobre os acordos omnilaterais.

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administração e à diretoria, ou somente à diretoria»50. Este preceito é depois concre-tizado pelo art. 142 LSA, que afi rma determinadas competências do conselho de administração. Central para o que ora nos ocupa é o artigo 139 LSA:

«As atribuições e poderes conferidos por lei aos órgãos de administração não podem ser outorgados a outro órgão, criado por lei ou pelo estatuto».

Perante este preceito, em 1981, Fábio Konder Comparato referia-se a um “princípio de divisão de poderes”. Dele decorreria a proibição de redistribuição das competências legais – ditas exclusivas ou privativas – de cada órgão social pelos estatutos da sociedade51.

VII. Aparentemente, temos um manifesto paralelo com os desenvolvimen-tos assinalados a nível internacional – e, em especial, na Europa Continental –, só obnubilado pelo disposto no artigo 121 LSA, que dispõe:

«A assembléia-geral (…) tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento»52.

Em todo o caso, uma articulação sistemática destes preceitos exige que se recorte a competência da assembleia em função da concreta competência dos órgãos de administração. Este é um passo dado por uma parte signifi cativa da doutrina brasileira que reconhece “competências privativas” dos órgãos de administração53.

50 Como resulta deste preceito, o conselho de administração não é órgão obrigatório nas SA. Só o é nas companhias abertas (artigo 138, § 2.º LSA).51 “Competência privativa do conselho de administração para a designação de diretores, em companhia aberta: Inefi cácia de cláusula do contrato social da holding, ou de eventual acordo de acionistas, para regular a matéria”, in Novos ensaios e pareceres de direito empresarial, 1981, 96. Cfr. tb., mais recentemente, Marcelo von Adamek, Responsabilidade civil, cit., 16-17.52 Perante este preceito, alguns autores afi rmam que, no direito brasileiro, contrariamente ao direito continental europeu, «a assembléia geral foi mantida como órgão supremo da companhia». Neste sentido, Carlos Augusto da Silveira Lobo, “Acordo de acionistas”, in Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, Direito das companhias, 1, 441-499 (485-486). Cfr. tb. José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho, “Estrutura da companhia”, in Direito das companhias, 1, cit., 773-870 (806-807).53 Contrariamente a uma parte da doutrina que nega a existência de tais “competências privativas” e que, se bem percebemos, é ainda mais signifi cativa. Cfr., v.g., Carlos Lobo, “Acordo de acionistas”, cit., 487-488.

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A delimitação destas competências, porém, tem sido feita por referência sobretudo ao elenco previsto no artigo 14254 e não ao conceito indeterminado de administração afi rmado pelo artigo 138, como sucede na generalidade dos sistemas jurídicos de referência. Como bem sublinha Marcelo von Adamek, é o artigo 138 que preserva «a liberdade de atuação dos administradores, conferindo-lhes atribuições e poderes privativos e (consequentemente) indelegáveis»55.

Deve portanto reconhecer-se, também no Brasil, uma margem de discri-cionariedade dos administradores – perante os acionistas – para conformar a atuação da sociedade no sentido que lhes parece mais adequado à promoção dos melhores interesses desta, assegurando assim a sua autodeterminação.

Esta proposição injuntiva delimita o espaço de conformação das competên-cias orgânicas pelos acionistas, seja nos estatutos, seja nos acordos de acionistas. Está aqui em causa o princípio da tipicidade, num claro paralelo com os sistemas da Europa Continental56.

7. O princípio da responsabilidade global (Prinzip der Gesamtveran -twortung)

I. A evolução recente das regras sobre o governo dos bancos na União Europeia deu palco a um princípio estruturante da administração colegial das S.A.: o princípio da responsabilidade global (Prinzip der Gesamtverantwortung)57.

54 Alguma doutrina, inclusive, vem sustentar que o elenco de competências do artigo 142 LSA não afasta necessariamente a competência dos acionistas. Assim, por exemplo, a política legislativa fi xada pelo conselho de administração poderia ser sujeita a homologação dos acionistas. Neste sentido, Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven, “Capítulo XV – Conselho de administração e diretoria”, in Modesto Carvalhosa e Fernando Kuyven (Coord.), Tratado de direito empresarial, 3 – Sociedades anônimas, 2016, 818-819.55 Marcelo von Adamek, Responsabilidade civil, cit., 113. Como sublinha noutro ponto (139 ss.), os administradores não estão vinculados a todas as deliberações da assembleia geral: podem e devem recusar-se a cumprir aquelas que usurpem competência privativa da administração.Em sentido contrário, perante o artigo 138 LSA, Rodrigo R. Monteiro de Castro, Controle gerencial, 2010, 63, sustenta que não compete ao conselho de administração administrar a sociedade, mas tão só «participar da administração» desenvolvida pela Diretoria «excecionalmente e nos limites de suas competências previstas em lei», e admite a perspetiva do administrador como «mero instrumento de execução das vontades de quem o designa».56 Sobre este princípio, cfr., por todos, Pedro Maia, “Tipos de sociedades comerciais”, in Jorge Coutinho de Abreu (coord.), Estudos de direito das sociedades, 12.ª ed., 2015, 13-39. 57 Na sequência da crise de 2007-2009 e dos acordos de Basileia III que lhe sucederam, foi aprovada a Diretriz 2013/36/UE, de 26-jun.-2013, conhecida como “Capital Requirements Directive IV” ou “CRD IV”. Esta Diretriz procurou dar resposta aos problemas identifi cados pelo Relatório de Larosière (2009), segundo o qual, apesar de o governo das instituições fi nanceiras não ter sido, per

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De acordo com este princípio, que concretiza o Führerprinzip, os membros do conselho de administração são coletivamente responsáveis pelas decisões do mesmo (quer unânimes, quer maioritárias), independentemente de quaisquer divisões de tarefas ou delegações de poderes.

II. Desta afi rmação decorre aqueloutra de que todos e cada um dos admi-nistradores, incluindo os não-delegados58, são responsáveis pelo sucesso e pelo insucesso da instituição. Assim sendo, perante decisões ou omissões sobre ques-tões fundamentais, não poderá um administrador exonerar-se afi rmando tratar--se de matéria delegada a um seu colega.

Daqui decorre a imputação de um dever de mútua vigilância (Pfl icht zur Selbstkontrolle)59 a todos e a cada um dos administradores, próprio do funciona-mento colegial do órgão que integram, e a afi rmação de um regime de respon-sabilidade civil subjetiva, por ato próprio60.

III. O princípio da responsabilidade global conhece ainda uma outra con-cretização: há competências que são da responsabilidade do plenário do órgão de administração, não sendo suscetíveis de exercício pelos seus membros em modo singular61. Está aqui em causa o princípio de direção global (Prinzip der Gesamtleitung), de acordo com o qual o órgão de administração deve assegurar,

se, uma das principais causas desta crise, um adequado governo dessas instituições teria permitido mitigar os piores efeitos da mesma. Exigia-se que todos os envolvidos no governo dos bancos e outras instituições fi nanceiras tivessem maior consciência da sua responsabilidade (accountability and liability), sem minar o espírito de empreendedorismo necessário ao crescimento económico. Neste sentido, o artigo 88.º da CRD IV passou a densifi car os deveres do órgão de administração enquanto primeiro responsável pela promoção dos interesses da instituição: a este cabe necessariamente um conjunto de tarefas relativas ao planeamento estratégico, à organização, coordenação e vigilância da atividade empresarial, que a doutrina alemã sintetizou nos princípios da responsabilidade global (Prinzip der Gesamtverantwortung) e da direção global (Prinzip der Gesamtleitung), princípios que o legislador português não refl etiu da melhor maneira na transposição deste preceito para o artigo 115.º-A RGIC. Veja-se o nosso “Os princípios da responsabilidade e da direção global”, in AA.VV., A governação dos bancos nos sistemas jurídicos lusófonos, 2016, 89-122.58 Ou “não-executivos”, na opção terminológica que agora se afi rma na prática com insufi ciências manifestas. Veja-se o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., § 59.59 Cfr., v.g., Michael Hoffmann-Becking, “Zur rechtlichen Organisation der Zusammenarbeit im Vorstand der AG”, Zeitschrift fur Unternehmens- und Gesellschaftsrecht, 27:3 (1998), 497-519 (507). No sentido da sua articulação, cfr. Holger Fleischer, in Gerald Spindler e Eberhard Stilz (eds.), Kommentar zum Aktiengesetz, 2015, § 77, n.º 45.60 Reinfrid Fischer, in Karl-Heinz Boos, Reinfrid Fischer e Hermann Schulte-Mattler (eds.), KWG, CRR-VO: Kommentar zu Kreditwesengesetz, VO (EU) Nr. 575/2013 (CRR) und Ausführungsvorschriften, 2016, § 36, n.os 23-26.61 Holger Fleischer, in Gerald Spindler e Eberhard Stilz (eds.), Kommentar zum Aktiengesetz, 2015, § 77, n.º 44.

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em modo coletivo, a bem sucedida existência da sociedade no presente e a sua preparação para o futuro62.

Para tanto, deve desempenhar diretamente determinadas tarefas que, qua-lifi cadas como originárias (originären unternehmerischen Führungsfunktionen), não são suscetíveis de delegação63, nem devem ser postas em causa pela constitui-ção ou participação em sociedades-fi lhas64, consubstanciando a competência mínima (Mindestzuständigkeit) do plenário do órgão coletivo65.

62 Semler, Leitung und Überwachung2, cit., 10-11.63 Semler, Leitung und Überwachung2, cit., 13-22. Cfr. tb., v.g., Hoffmann-Becking, “Zur rechtlichen Organisation”, cit., 506-514, Jens Koch, in Uwe Hüffer e Jens Koch, Aktiengesetz, 12.ª ed., 2016, § 77, n.os 17-18, Christoph H. Seibt, in Karsten Schmidt e Marcus Lutter, Aktiengesetz Kommentar, 1, 2008, § 77, n.º 19, Holger Fleischer, “Leitungsaufgabe des Vorstands im Aktienrecht”, Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 24:1 (2003), 1-11 (em especial, 5-6).64 Para a aplicação deste princípio face à existência de sociedades-fi lhas, cfr., v.g., Heinrich Götz, “Leitungssorgfalt und Leitungskontrolle der Aktiengesellschaft hinsichtlich abhä ngiger Unternehmen”, Zeitschrift fur Unternehmens- und Gesellschaftsrecht, 27:3 (1998), 524-546.65 Para além das que resultam diretamente da lei, Semler, seguido por grande parte da doutrina alemã, identifi ca as seguintes matérias indelegáveis: (i) determinação dos objetivos de médio e longo prazo da política empresarial (Unternehmensplanung); (ii) organização e coordenação das tarefas administrativas cometidas a áreas parciais da empresa (Unternehmenskoordinierung); (iii) controlo corrente e posterior da execução e dos resultados das tarefas de gestão delegadas (Unternehmenskontrolle); (iv) atribuição de posições de direção (Führungspostenbesetzung). Cfr. Semler, Leitung und Überwachung2, cit., 10. No mesmo sentido, v.g., Hans-Joachim Mertens, Kölner Kommentar zum Aktiengesetz, 2.ª ed., 1996, § 76, n.º 5, Jens Koch, in Koch/Hüff er AktG12, cit., § 76, n.º 9, Uwe Hüffer, “Der Vorstand als Leitungsorgan und die Mandats- sowie Haftungsbeziehungen seiner Mitglieder”, in Walter Bayer e Mathias Habersack (eds.), Aktienrecht im Wandel, 2 – Grundsatzfragen des Aktienrechts, 2007, 345, n.os 20-21.Mais recentemente, Fleischer criticou esta enumeração que considera ser “incolor” ( farblos) e demasiado cautelosa do ponto de vista da moderna gestão de empresas. Segundo este autor, as tarefas de direção inalienáveis traduzem-se na responsabilidade: (i) pelo planeamento e direção (Planungs- und Steuerungsverantwortung), incluindo o dever de estabelecimento de um quadro estratégico (determinação dos objetivos empresariais a longo-prazo e das principais áreas de negócio e tomada das mais importantes decisões de investimento) e, paralelamente, o dever de intervir quando surjam perturbações na execução do plano; (ii) pela organização (Organisationsverantwortung), traduzida na estruturação da empresa em subunidades funcionais (com particular destaque para a unidade de controlo) e seu ajustamento contínuo em função das necessidades da empresa; (iii) pelas fi nanças (Finanzverantwortung), compreendendo tanto o planeamento como o controlo fi nanceiro da empresa; e (iv) pela informação (Informationsverantwortung), dado que esta não tem apenas um papel auxiliar da gestão, antes constituindo “o bem empresarial por excelência” (“Unternehmensressource schlechthin”), constituindo a sua gestão uma verdadeira tarefa de liderança. Cfr. Holger Fleischer, “Leitungsaufgabe des Vorstands im Aktienrecht”, Zeitschrift für Wirtschaftsrecht, 24:1 (2003), 1-11 (5). Cfr. também o § 4.1.2 do Deutscher Corporate Governance Kodex (DCGK), nos termos do qual o Vorstand desenvolve a orientação estratégica da empresa, em coordenação com o Aufsichtsrat, e assegura a sua concretização.

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IV. Este quadro sistemático foi desenvolvido na Europa continental, mas tem paralelos claros no Reino Unido, onde se afi rma uma dupla função do board of directors: to lead and control 66. Este perspetiva foi afi rmada logo no Rela-tório Cadbury, em 1992 (ponto 4.1.), no qual se podia ler precisamente que «[e]very public company should be headed by an eff ective board which can both lead and control the business».

Esta proposição continuaria a ser afi rmada nos instrumentos que sucederam ao Relatório Cadbury, consistindo hoje o primeiro princípio do UK Corporate Governance Code (2016)67, de acordo com o qual «[e]very company should be headed by an eff ective board which is collectively responsible for the long-term success of the company». Este princípio é desenvolvido em dois subprincípios que vale a pena transcrever:

«The board’s role is to provide entrepreneurial leadership of the company within a framework of prudent and eff ective controls which enables risk to be assessed and managed. The board should set the company’s strategic aims, ensure that the necessary fi nancial and human resources are in place for the company to meet its objectives and review management performance. The board should set the company’s values and standards and ensure that its obligations to its shareholders and others are understood and met.

All directors must act in what they consider to be the best interests of the company, consistent with their statutory duties.»

V. Nos EUA, desde o fi nal dos anos 1970, verifi cou-se uma progressiva concentração do board of directors em funções de fi scalização, ao ponto de se afi rmar a reconstrução do correspondente modelo normativo, passando de um advisory model para um monitoring model68. Esta perspetiva, porém, não preju-dica a centralidade do board, nem a sua discricionariedade e independência face a acionistas específi cos, como vimos já. Também não prejudica o papel de

66 Para mais desenvolvimentos, cfr. o nosso “Os princípios da responsabilidade e da direção global”, in AA.VV., A governação dos bancos nos sistemas jurídicos lusófonos, 2016, 89-122.67 Cfr. A.1 do UK Corporate Governance Code, atualizado em abril de 2016. Cfr. https://www.frc.org.uk/Our-Work/Codes-Standards/Corporate-governance/UK-Corporate-Governance-Code.aspx. 68 De acordo com as propostas percursoras de Melvin A. Eisenberg, The structure of the corporation: A legal analysis, 1976. Segundo Daniel R. Fischel, “The corporate governance movement”, Vanderbilt Law Review, 35:6 (1982), 1259-1292 (1281, n. 78), o termo é da autoria de Eisenberg.Foi neste contexto que se afi rmou a importância dos administradores independentes e do audit committee. Jeffrey N. Gordon, “The rise of independent directors in the United States, 1950-2005: Of shareholder value and stock market prices”, Standford Law Review, 59:6 (2007), 1465--1568 (1518-1519).

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cada um dos administradores na efetiva promoção dos melhores interesses da sociedade.

VI. Estas linhas estruturantes do direito das S.A. parecem valer também no sistema brasileiro, não obstante o disposto no artigo 118 LSA. Perante o mais vasto quadro normativo, somos forçados a reconhecer o papel do conselho de administração na liderança da sociedade das companhias abertas (artigo 138, § 2.º LSA), bem como a necessária aplicação dos princípios próprios da cole-gialidade, que se refl etem na posição jurídica de cada um dos administradores individualmente considerados.

Cada um destes deve assegurar que o órgão coletivo funciona e que, nessa medida, promove efetivamente os melhores interesses da sociedade. Isso pode implicar reações perante a atuação de um ou mais administradores que, na sua apreciação dos temas em discussão, estejam condicionados por acionistas, pondo em causa o necessário espaço próprio de refl exão – livre de instruções ou orientações vinculativas por parte de um ou mais acionistas – para a escolha das opções que, em cada caso concreto, concretizam aquele que é o fi m da sociedade. Recorde-se aqui, novamente, o exemplo da sociedade produtora de bicicletas.

É particularmente relevante, para este efeito, o artigo 158, §§ 1.º a 5.º que não podemos aqui explorar69.

VIII. Este dever – de assegurar que o órgão coletivo funciona e que, nessa medida, promove efetivamente os melhores interesses da sociedade – é particu-larmente intenso no caso do presidente do conselho de administração, enquanto primus inter pares: perante o confl ito entre (i) o dever de sobreordenação do interesse social (artigo 154 e outros LSA)70 e (ii) o dever de não computar voto proferido com infração de acordo de acionistas devidamente arquivado (artigo 118, § 8.º LSA), deve o presidente dar prevalência ao primeiro, hierarquica-mente superior, sacrifi cando o outro71.

69 Numa primeira leitura, estes preceitos suscitam desafi os interpretativos equivalentes aos que resultam, no sistema português, do artigo 72.º/2 a 4 CSC. Impõe-se à doutrina a tarefa de, a partir destas proposições, construir sistematicamente a obrigação de vigilância do conselho de administração e de cada um dos administradores individualmente considerados. Sobre o tema, veja-se o nosso Da administração à fi scalização das sociedades, cit., § 16, n.os 389 ss.. 70 Vide o ponto seguinte para um desenvolvimento da base legal do dever de lealdade no direito brasileiro.71 Nos termos gerais, o conf lito de deveres exclui a ilicitude quando não seja possível o cumprimento tempestivo ou simultâneo de deveres de agir em confl ito, sendo necessário dar prevalência a um (hierarquicamente superior), sacrifi cando o outro: ad impossibilita nemo tenetur. No domínio

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8. O princípio da lealdade (Loyalitätsprinzip)

I. O princípio da lealdade desempenha um papel central no Direito das sociedades comerciais a nível global. Numa perspetiva muito profícua, este ramo do Direito pode ser encarado como um instrumento de regulação de tensões entre diferentes interesses no seio das sociedades comerciais. No con-texto destas tensões entre interesses confl ituantes, facilmente se compreende a importância central da lealdade, enquanto princípio norteador da conduta de sócios72, dos administradores e membros dos demais órgãos sociais, bem como de todos os funcionários e colaboradores da sociedade.

A história da lealdade no direito das sociedades é longa, rica e com-plexa73. Para o que ora importa, retenhamos apenas a sua concretização em deveres de conduta dos administradores, sintetizados na proposição, tão sim-ples quanto esclarecedora, de que, na gestão da sociedade, os administradores devem sobreordenar o interesse da sociedade a quaisquer outros interesses em presença74.

Não se trata de prosseguir apenas e tão-só o interesse social ou de ignorar os demais interesses em presença. Tais proposições não são realistas e não per-mitem ordenar a conduta dos administradores no caso concreto. Trata-se de, perante um confl ito de interesses, colocar a promoção do interesse da sociedade acima dos interesses com este confl ituantes.

II. Esta proposição, tal como desenvolvida e consolidada ao longo da his-tória, conhece concretizações mais intensas do que aquelas que tipicamente se

civilista, a questão é tratada a propósito da colisão de direitos (artigo 335.º CC), sendo os termos desta convolados para a colisão de deveres. Cfr., por todos, António Menezes Cordeiro, “Da colisão de direitos”, O Direito, 137:1 (2005), 37-55 (38), Tratado de direito civil, 8, 2010, 485-490. A exclusão da ilicitude determina a exclusão da responsabilidade civil, como bem sublinha Olindo Geraldes, “Confl ito de deveres”, O Direito, 141:2 (2009), 411-428 (411).72 No Brasil, veja-se com muito interesse a síntese de Marcelo von Adamek, Abuso de minoria, cit., 112 ss., 161 ss..73 Para uma análise de enquadramento da lealdade no direito societário português, veja-se, v.g., António Menezes Cordeiro, “A lealdade no direito das sociedades”, Revista da Ordem dos Advogados, 66:3, 2006, 1033-1065, e, em particular, sobre os deveres de lealdade dos administradores, veja-se sobretudo Nuno Trigo dos Reis, “Os deveres de lealdade dos administradores de sociedades comerciais”, in Temas de direito comercial, Cadernos o Direito, 4, 2009, 279-419.74 Veja-se, já em meados do século XX, Ernst-Joachim Mestmäcker, Verwaltung, Konzerngewalt und Rechte der Aktionäre, 1958, 214-215. Mais recentemente, em Portugal, Manuel Carneiro da Frada, “A business judgment rule no quadro dos deveres gerais dos administradores”, in A Reforma do Código das Sociedades Comerciais: Jornadas em Homenagem ao Professor Doutor Raúl Ventura, 2007, 70-71.

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reconhecem ao abrigo da boa fé contratual (§ 242 BGB ou artigo 762.º/2 CC português, artigo 422 CC brasileiro)75, o que não tem impedido a generalidade da doutrina portuguesa, por exemplo, a reconduzir a lealdade à boa fé76.

Algumas destas concretizações estão positivadas, outras não, valendo nestes casos os desenvolvimentos doutrinários e jurisprudenciais. Perante o conceito (a priori) indeterminado de lealdade, exige-se uma ponderação casuística orien-tada a valores que permita determinar a norma do caso77.

III. No sistema brasileiro, o dever de lealdade dos administradores é enun-ciado e desenvolvido no artigo 155 LSA. O mesmo surge ainda concretizado em vários outros preceitos, como os artigos 154 “Finalidade das atribuições e desvio de poder”, 156 “Confl ito de interesses”, 157 “Dever de informar”, e 245 “Administradores”.

Para o que ora nos interessa, a sua mais impressiva concretização resulta dos artigos 154, § 1.º e 245 LSA, que impõem a sobreordenação do interesse da sociedade aos interesses do “grupo ou classe de acionistas” que determina-ram a sua eleição, bem como aos interesses de sociedades do grupo no qual se integra78.

Perante estas normas, não pode deixar de concluir-se pela não vinculação dos administradores às orientações dos acionistas de controlo contrárias ao inte-resse social.

IV. Uma tal conclusão, porém, convoca uma outra questão: quando é que se considera que tais orientações são contrárias ao interesse social?

Como desenvolvemos antes79, o interesse social, enquanto bitola objetiva que modela o conteúdo das obrigações dos diferentes órgãos sociais, é concre-tizado sobretudo a partir da atuação diária da administração. Cada opção da

75 Mestmäcker, Verwaltung, cit., 214, Manuel Carneiro da Frada, “A business judgment rule”, cit., 70-71. A especial intensidade da lealdade (decorrente da boa fé) no contexto societário justifi ca-se pela comunhão de escopo subjacente à participação social e que determina uma especial cooperação entre as partes, de intensidade variável em função da concreta posição do sócio na sociedade.76 No Brasil, cfr., por todos, Marcelo von Adamek, Abuso de minoria, cit., 162-163.77 António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, 1984, 1176-1181, Nuno Trigo dos Reis, “Os deveres de lealdade”, cit., 360-361. Recorde-se, neste último estudo, a proposta de Nuno Trigo dos Reis de sistematização das concretizações do dever de lealdade dos administradores em: (i) deveres a observar na celebração de contratos com a sociedade; (ii) aproveitamento de propriedade, informação ou “oportunidades de negócio” da sociedade; (iii) dever de não concorrência com a sociedade; (iv) deveres a observar na transferência de domínio da sociedade e, em particular, na pendência de oferta pública de aquisição da sociedade (285). 78 O preceito refere-se a sociedades coligadas, controladoras ou controladas. Cfr., v.g., Marcelo Vieira von Adamek, Responsabilidade civil, cit., 154-159.79 Ponto 4 supra.

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administração no desenvolvimento da atividade empresarial, dentro dos limites da lei e dos estatutos, é relevante para a concretização casuística dessa bitola objetiva que é o interesse da sociedade.

Assim sendo, repita-se80: para assegurar a coerência do sistema, não basta assegurar a autonomia dos administradores perante casos mais óbvios de abuso. É necessário garantir a autonomia do conselho de administração para defi nir diligentemente o que é melhor para a sociedade, no exercício das suas compe-tências privativas.

O mesmo é dizer que o sistema exige a ponderação simultânea dos prin-cípios do líder, da responsabilidade global e da lealdade, para oferecer a regra do caso.

9. Síntese: a nulidade dos acordos de acionistas que violem a com-petência privativa do conselho de administração e a efi cácia dos votos dos administradores proferidos contra tais acordos

I. É bem conhecida a frase «é importante conhecer a história, para que não se repitam no presente os erros do passado».

Como se sabe, a imposição normativa de um leque de órgãos sociais nas S.A., com competências delimitadas injuntivamente por lei, surge na Europa continental em meados do séc. XIX, na transição do sistema de concessão (Konzessionsystem) para o sistema normativo (Normativsystem)81. A liberdade de constituição das S.A., i.e., sem prévia autorização administrativa, foi de alguma forma compensada com a previsão de mecanismos de autotutela (Selbsthilfe) dos acionistas e dos credores.

Entre estes mecanismos, destaca-se a imposição normativa de um específi co órgão de administração, com poderes determinados ex lege, e o reconhecimento de um espaço de atuação sob responsabilidade própria, livre de instruções dos acionistas ou de outros órgãos sociais, destinado a assegurar a promoção dos melhores interesses da sociedade com um todo82 e não apenas os interesses deste ou daquele acionista.

80 O que foi já sustentado no ponto 4 supra.81 A preterição da autorização administrativa para a constituição das S.A. e o correspondente reconhecimento da liberdade de constituição deste tipo de sociedades, desde que cumpridos os requisitos normativos fi xados por lei com carácter geral e abstrato, traduziu o reconhecimento da incapacidade do Estado para garantir o mérito e o sucesso dos projetos empresariais. Cfr. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades, cit., n.os 188 ss., 1177 ss..82 Vide n. 22 supra.

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Neste contexto, os administradores não mais são considerados como man-datários dos acionistas: reunidos em modo coletivo, são um órgão da sociedade, destinado a assegurar a autodeterminação desta, com vista à consecução dos seus próprios fi ns.

Paralelamente, fi cou então defi nitivamente afastada a perspetiva dos admi-nistradores como “representantes” dos acionistas que os designam83. Os admi-nistradores servem a sociedade e devem sobreordenar os interesses desta a quaisquer outros interesses em presença. É verdade que, na praxis empresarial, continua a ser frequente a referência à representação deste ou daquele acio-nista, mas tais referências não têm base normativa: traduzem um fosso entre o quadro legal e a prática empresarial. Este fosso deve ser combatido pela correta ordenação das condutas dos administradores e não pela subversão dos pilares da personifi cação coletiva, em benefício dos controladores e em prejuízo de todos os demais stakeholders84.

II. Estamos perante uma solução modelada pelos princípios do líder, da res-ponsabilidade global e da lealdade que, como concluímos nos pontos anterio-res, são injuntivos também no sistema brasileiro. Nos termos gerais, constituem limites à autonomia contratual dos acionistas, seja nos estatutos da sociedade, seja em acordo de acionistas85. Será assim nulo o acordo que seja contrário a tais princípios86.

83 Não deve assim aceitar-se a perpetuação deste tipo de referências nos termos expressos, e.g., por Nelson Eizirik, “Acordos de acionistas. Arquivamento na sede social. Vinculação dos administradores de sociedade controlada”, Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Distrito Federal, 1:37 (2003), 81-98 (89).84 Como resulta do artigo 154, § 1.º LSA.85 Não desenvolvemos aqui o problema clássico do confronto entre os acordos parassociais e o contrato de sociedade.De acordo com a corrente mais tradicional, os acordos parassociais são instrumentais face ao contrato de sociedade. Logo, se uma norma do parassocial contrariasse o contrato de sociedade, prevaleceria este sobre aquele. Esta perspetiva parece-nos hoje ultrapassada, na medida em que não se pode qualifi car o parassocial como um subcontrato perante o contrato de sociedade: a colisão de uma norma parassocial com uma norma social não determina a invalidade da primeira.Não existe uma necessária prevalência axiomática (ou, no reverso da medalha, subordinação normativa, nos termos sugeridos por M.ª da Graça Trigo, Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2.ª ed., 2011, 191 ss.) da regulação social sobre a parassocial: à partida ambas são válidas, produzindo específi cos efeitos jurídicos. A subordinação do parassocial pode existir, mas não é necessariamente imposta pelo sistema. Só pela interpretação do parassocial se pode determinar se existe ou não uma tal subordinação no caso concreto. Neste sentido, Ana Filipa Leal, Algumas notas, 169. Em sentido contrário: Paulo Câmara, Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários, inédito, 1996, 262, 463. António Pereira de Almeida, Sociedades comerciais, valores mobiliários e mercados, 7.ª ed., 2013, 351-352, sustenta a prevalência das regras estatutárias sobre as parassociais,

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86 Temos perfeitamente claro que o sentido pretendido pelo legislador brasi-leiro de 2001 era outro. Porém, esse sentido traduziria uma solução que o sistema manifestamente não comporta. O intérprete-aplicador não pode igno-rar a mens legislatoris87, é certo, mas a unidade e coerência interna do sistema

mas sem se pronunciar sobre a questão da validade destas por colisão com aquelas. No mesmo sentido, em Portugal, Paulo Olavo Cunha, Direito das sociedades comerciais, 6.ª ed., 2016, 180, e, no Brasil, v.g., André de Albuquerque Cavalcanti Abbud, Execução específi ca dos acordos de acionistas, 2006, 104-105.Quando as normas do contrato de sociedade reproduzam normas legais injuntivas, as normas parassociais em colisão serão inválidas por contrariedade à lei (280.º/1 CC) e não por contrariedade ao contrato de sociedade. Em sentido não inteiramente convergente, Ana Filipa Leal, Algumas notas, 169. Quando assim não seja, em cada caso concreto, o sujeito é chamado a conformar a sua conduta com duas normas: sociais e parassociais. Na medida em que estamos perante duas normas contratuais, se a conformação com uma destas determinar a violação da outra, caberá ao sujeito escolher qual pretende cumprir, sujeitando-se às consequências do incumprimento da outra. Neste sentido, também Ana Filipa Leal, Algumas notas, 171, Helena Morais, Acordos parassociais, 2014, 22-23.Tipicamente, neste tipo de casos, o cumprimento de um dever não consubstancia causa de justifi cação (que exclui ilicitude) do incumprimento do outro. Ana Filipa Leal, Algumas notas, 172, recorrendo aos ensinamentos do Prof. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, 1968, 167 ss.Em suma: uma eventual prevalência do contrato de sociedade depende da vontade manifestada pelas partes no acordo parassocial e da sua interpretação à luz dos artigos 236.º e 239.º CC. Ana Filipa Leal, Algumas notas, 172. A propósito dos acordos parassociais omnilaterais, acrescenta Carneiro da Frada que estamos perante «um problema de concurso de determinações jurídicas, que não se resolve por nenhum critério, hierárquico ou não, ou de efi cácia ou de precedência temporal entre elas». Cfr. “Acordos parassociais omnilaterais”, Direito das Sociedades em Revista, 1:2 (2009), 97-135 (101).86 Em Portugal, nos termos do artigo 17.º/2 CSC – inserido na parte geral do código e, logo, aparentemente aplicável a todos os tipos de sociedades comerciais –, os acordos parassociais não podem respeitar «à conduta de intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração ou de fi scalização». Contra um âmbito de aplicação (aparentemente) tão extenso, a doutrina pro-curou desde cedo restringir o seu alcance. O Prof. Raúl Ventura, autor do Projeto de CSC (1983), explicava, em termos que têm sido pacifi camente aceites, que o artigo 17.º/2 CSC não veda em absoluto acordos parassociais que versam sobre a administração da sociedade; seriam lícitos os acordos sobre matérias relativamente às quais os sócios podem licitamente deliberar: «Variável é o espaço que fi ca livre para tais acordos, conforme o tipo de sociedade; muito vasto nas sociedades por quotas – art. 259.º – estreita-se nas sociedades anónimas – art. 373.º, n.º 3 e 405.º, n.º 1». Cfr. Estudos vários sobre sociedades anónimas, 1992, 69-70.87 Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confi ança e responsabilidade civil, 2004, 368-369 (n. 369), José de Oliveira Ascensão, O direito: introdução e teoria geral, 13.ª ed., 2005, 401, António Castanheira Neves, “Interpretação jurídica”, in Digesta: Escritos acerca do Direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, 2, 1995, 337-377 (357). Nesse sentido, identifi cam-se teorias mistas entre posições objetivistas e subjetivistas, como em Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 4.ª ed., 2005, trad. José Lamego, 445-450. Vejam-se, porém, as críticas de António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, 1, 4.ª ed., 2012, 683-685, para quem «[a] composição

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jurídico impõe-se à vontade historicamente localizada de um determinado legislador88.

III. Isto não signifi ca que seja nulo todo e qualquer acordo que verse sobre a administração da sociedade. As fronteiras são delimitadas pelo fundamento da nulidade89. Caso a caso haverá que confi rmar se o conteúdo do contrato é ou não conforme à distribuição injuntiva de competências (segundo os princípios do líder e da responsabilidade global do conselho) e à lealdade devida pelos administradores90.

Vejamos então algumas cláusulas típicas:

de um “misto” de objetivismo e de subjetivismo pode mais não ser do que um arranjo vocabular»: cabe ao intérprete-aplicador valorar casuisticamente cada um dos elementos.88 Como bem sublinha Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao direito, 2012, 350-351, 359-361, «a dimensão pragmática da lei prevalece sobre a sua dimensão semântica», devendo sempre preferir-se o sentido compatível com a unidade do sistema jurídico.89 São frequentemente apontados como fundamentos para a proibição da regulação da conduta dos administradores (i) o princípio da tipicidade e a distribuição legal de competências (que nós sublinhámos através dos princípios do líder e da responsabilidade global), e (ii) a proteção do interesse social: os administradores não poderiam privilegiar o interesse dos sócios que os elegem ou os seus próprios interesses, preterindo o interesse social (fundamento que reconduzimos ao dever de lealdade dos administradores). Veja-se, v.g., a síntese de Helena Morais, Acordos parassociais, 2014, 38-62, a propósito do artigo 17.º/2 CSC.90 Na fronteira temos os acordos que, não regulando diretamente a conduta da administração, imputam obrigações de meios aos acionistas, que assim fi cam vinculados a desenvolver os melhores esforços no sentido de fazer com que a administração atue de determinada forma. Tais cláusulas são muito comuns na prática, como reconhece, v.g., M.ª Graça Trigo, “Acordos parassociais: síntese das questões jurídicas mais relevantes”, in AA.VV., Problemas do direito das sociedades, 2002, 169-184 (175).A admissibilidade desta modalidade é muito discutida nos sistemas assentes na efi cácia meramente obrigacional (inter partes) dos acordos de acionistas e na proibição dos acordos que versem sobre a conduta dos administradores, como é o caso do português. Assim, perante o artigo 17.º/2 do CSC, temos sustentado que, sem prejuízo de uma cuidada análise casuística, devem ser considerados nulos pelo menos os acordos que incluam cláusulas penais, obrigações de demitir administradores não alinhados, ou outros esquemas contratuais destinados a assegurar o efeito prático da infl uência sobre a administração. Neste sentido, Mirko Sickinger, “§ 11 Aktionärsvereinbarungen”, cit., n.os 30-31.A questão coloca-se nos mesmos termos no sistema brasileiro, no qual os acordos de acionistas, apesar de oponíveis à sociedade (artigo 118 LSA), estão igualmente sujeitos a limites injuntivos, nos termos aqui sustentados. Assim, deve considerar-se nulo não apenas o acordo que regula diretamente a administração contra os princípios enunciados, como aquele que indiretamente, através da modelação da conduta dos acionistas, visa alcançar o mesmo escopo.Esta modalidade de vinculações, assentes em obrigações de meios dos sócios, vive paredes-meias com uma outra, baseada em cláusulas parassociais dirigidas apenas aos sócios que não se vinculariam a infl uenciar a administração, mas apenas a garantir uns perante os outros que os administradores por

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(i) Cláusulas relativas à composição e designação dos membros dos órgãos sociais: são válidas porque regulam o exercício de direito de voto dos acionis-tas e não a conduta dos administradores91.

(ii) Cláusulas relativas à distribuição de pelouros entre os administradores: são inválidas nas S.A. porque é matéria da competência exclusiva do con-selho de administração, segundo os princípios do líder e da responsa-bilidade global. A este cabe organizar-se internamente da forma que entender mais adequada à promoção do interesse da sociedade, sob responsabilidade própria. Ou seja, os administradores podem ser res-ponsabilizados caso se demonstre que as suas opções relativas à distri-buição de pelouros não são conformes à sua obrigação de diligente administração. O caso típico é o da atribuição de um pelouro a um administrador manifestamente impreparado para o mesmo.

(iii) Cláusulas relativas à defi nição da estratégia empresarial: são inválidas nas S.A., porque é matéria da competência exclusiva do conselho de admi-nistração. Valem os argumentos apresentados no parágrafo anterior.

(iv) Cláusulas relativas à identifi cação de “matérias reservadas” cujas deliberações dependem de determinado quórum constitutivo e determinada maioria qualifi -cada: são inválidas nas S.A., porque é matéria da competência exclusiva do C.A. Novamente: valem os argumentos apresentados no parágrafo (ii).

(v) Cláusulas relativas à determinação das consequências da violação das cláusulas anteriores [parágrafos (ii) a (iv)]. Estas cláusulas são igualmente nulas. O seu conteúdo sancionatório articula-se com os das cláusulas ante-riormente referidas nos parágrafos (ii) a (iv), formulando uma só norma, contrária a princípios injuntivos e, logo, inválida.

IV. Esta posição é coerente com a que foi sustentada no Brasil, por exemplo, por Fábio Konder Comparato, à luz do regime anterior à Lei n.º 10.303/2001, que explicava de forma exemplar:

«Os acordos podem regular tão somente os votos dos acionistas em assembleias, gerais ou especiais. Não podem obrigar os membros do conselho de administração, não obstante serem eles acionistas. Frise-se que os conselheiros não são mandatários dos acionistas, mas titulares de funções próprias. Os poderes do conselho de administração não derivam da vontade de

si designados atuariam em conformidade com o parassocial. Estaria em causa, numa tal perspetiva, uma distribuição de risco entre os sócios, com atribuições patrimoniais recíprocas.91 Neste sentido, Raúl Ventura, Estudos vários, cit., 70.

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acionistas, mas diretamente da lei. A deliberação acionária preenche o órgão conselho de administração; não o constitui por atribuição de poderes»92.

V. Há vários autores que sustentam idêntica solução atualmente, não obs-tante as alterações introduzidas na LSA pela Lei n.º 10.303/2001. Veja-se por exemplo Érica Gorga, para quem esta solução é coerente com a distribuição legal de competências entre os órgãos da S.A. que, nos termos do artigo 139 LSA, não está na disponibilidade das partes por ser de ordem pública93.

Em suma, para a autora, as competências próprias do conselho de adminis-tração, tal como previstas no artigo 142 LSA, não podem ser prejudicadas por acordo parassocial. Impõe-se, portanto, um adequado enquadramento sistemá-tico do artigo 118, §§ 8.º e 9.º LSA, que deve ser lido restritivamente, no sen-tido da salvaguarda do espaço próprio de atuação do conselho de administração.

É uma leitura que acompanhamos, salvo quanto à delimitação da com-petência privativa da administração pelo artigo 142 LSA. Como sustentámos antes, em linha com Marcelo von Adamek, a chave do problema não está neste preceito, mas sim no artigo 13894, primeira norma de competência do conse-lho de administração, cujo conteúdo a priori indeterminado, mas determinável em cada caso concreto, é dotado de maior plasticidade e alcance do que o do artigo 142 LSA.

VI. Assim sendo, em matérias da exclusiva competência do conselho de administração, são necessariamente efi cazes os votos dos administradores que votem em sentido contrário ao decidido pelo acionista ou acionistas que deter-minaram a sua designação.

Viola o seu dever de coordenação do coletivo o presidente do conselho de administração que não computar tais votos nas correspondentes deliberações, fi cando sujeito a responsabilidade civil nos termos gerais do artigo 154 LSA.

Da mesma forma, o administrador que se demitir do exercício das suas fun-ções, não exercendo um juízo próprio e autónomo sobre as matérias próprias da competência exclusiva do conselho que integra, incumpre a sua obrigação

92 “Eleição de diretores em companhia aberta. Validade e efi cácia de reuniões do conselho de administração de sociedade anônima. Quórum deliberativo em assembleias gerais de companhia aberta”, in Direito empresarial: Estudos e pareceres, 1990, 186. No mesmo sentido, Paulo Campos Salles de Toledo, O conselho de administração na sociedade anônima, 1999, 13.93 Segundo a autora, não pode, portanto, ser modelada por acordo parassocial, sempre subordinado ao conteúdo dos estatutos da sociedade. Érica Gorga, Direito societário atual, cit., ponto 8.3.94 Neste sentido, Marcelo von Adamek, Responsabilidade civil, cit., 113.

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de diligente administração, incorrendo em responsabilidade civil, também nos termos do artigo 154 LSA95.

VII. Este esquema traduz aquela que nos parece ser a regra geral também no sistema brasileiro, sem prejuízo dos desvios que se entendam admissíveis perante acordos de acionistas omnilaterais, i.e., acordos que tenham sido cele-brados por todos os acionistas96.

95 Neste sentido, parte da doutrina brasileira sustenta habilmente a compatibilidade do artigo 118, §§ 8 e 9 com o artigo 154: da articulação sistemática destes preceitos resulta a prevalência da autonomia dos administradores, que devem contrariar o acordo parassocial sempre que entendam que o cumprimento deste não é conforme ao interesse da sociedade. Vejam-se as indicações de doutrina em Érica Gorga e Marina Gelman, “O esvaziamento crescente do conselho de administração”, cit., 8 (em especial, n. 8).96 Na ausência de regras específi cas como as que resultam do Model Business Corporation Act (MBCA) nos EUA, tem sido discutida a possibilidade de os acordos de acionistas omnilaterais serem oponíveis à sociedade, vinculando os sócios e os administradores e constituindo fundamento de invalidade das correspondentes deliberações.Nos EUA, o § 7.32 Model Business Corporation Act (MBCA) admite a celebração de acordos parassociais oponíveis à sociedade cujo conteúdo seja contrário às regras do próprio MBCA. Porém, os acordos com tal conteúdo só são admissíveis nas sociedades fechadas (closely-held corporations) [§ 7.32 (d) MBCA]; têm de ser omnilaterais, devendo fi gurar dos documentos constituintes da sociedade (articles of association ou bylaws) ou de documento escrito assinado por todos os sócios e dado a conhecer à sociedade [§ 7.32 (b)(1) MBCA]; a sua existência deve ser dada a conhecer aos adquirentes de ações, nos títulos representativos das ações ou em documento informativo, no caso de ações não tituladas [§ 7.32 (c) MBCA]; caducam necessariamente ao fi m de 10 anos [§ 7.32 (b)(3) MBCA]; e, na medida em que restrinjam a discricionariedade dos administradores, excluem a responsabilidade civil dos mesmos [§ 7.32 (e) MBCA].Como é sabido, o MBCA é um modelo de lei das sociedades, preparado pelo Committee on Corporate Laws da Section of Business Law da American Bar Association, que tem modelado de forma decisiva a evolução do direito das sociedades nos EUA. Como resulta do respetivo offi cial comment, o § 7.32 MBCA confere maior liberdade contratual aos sócios de sociedades fechadas, nas quais as posições de administração (management) e de socialidade de alguma forma se confundem. A possibilidade de tais acordos contrariarem outras normas do MBCA deve ser enquadrada na extraordinária fl exibilidade do direito societário norte-americano, perspetivado como enabling law: a generalidade das regras societárias são supletivas e não injuntivas. Em todo o caso, há necessariamente limites. Em diferentes Estados federados têm sido ensaiadas diferentes soluções normativas: uns enunciam fundamentos com base nos quais não podem ser invalidados acordos parassociais [e.g.: Del. Code Ann. tit. 8, sections 350, 354 (1983); N.C. Gen. Stat. section 55–73(b) (1982)]; outros elencam preceitos que não podem ser contrariados [e.g.: Cal. Corp. Code section 300(b)–(c)]. Diferentemente, o MBCA apresenta ilustrações de casos típicos de parassociais que devem ser considerados válidos, o que não exclui a validade de parassociais com outro conteúdo. Para o que ora nos interessa, são válidos os parassociais que, cumprindo os requisitos enunciados, eliminem o conselho de administração ou restrinjam a sua discricionariedade; alterem a distribuição do poder de voto dos administradores; ou transfi ram

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para um ou mais acionistas (ou outras pessoas) poderes de administração, incluindo em casos de impasse no conselho (deadlock situations) [§ 7.32 (a)(1), (4) e (6) MBCA].No sistema alemão, a estrita separação entre o contrato de sociedade e os acordos de acionistas foi questionada por, pelo menos, três decisões do BGH de 1959, de 1983, e de 1986.No caso decidido em BGH 12-mar.-1959, BGHZ 29, 385, NJW 1959, 1082, todos os acionistas de uma AG obrigaram-se a votar no sentido da exclusão da responsabilidade de um ex-administrador. Em violação deste acordo, a sociedade intentou ação de responsabilidade civil contra este administrador. O BGH entendeu, perante ao acordo celebrado entre todos os acionistas, que a sociedade demandante deveria ser tratada como se a deliberação de exclusão de responsabilidade tivesse sido efetivamente aprovada:

«Einer juristischen Person darf ein mit ihren sämtlichen Mitgliedern geschlossener Vergleich dann entgegengehalten werden, wenn die Ausnutzung der rechtlichen Verschiedenheit einen Rechtsmissbrauch darstellt».

No caso subjacente à decisão BGH 20-jan.-1983, NJW 1983, 1910 – conhecida como “Kerbnägelentscheidung” –, os sócios de uma GmbH, que também eram sócios de uma OHG, discutiram se a GmbH poderia participar numa empresa concorrente da OHG. O autor alegou a existência de um acordo fi rmado por todos os sócios, nos termos do qual foi proibida essa participação. Também neste caso o BGH permitiu que o acordo parassocial penetrasse no âmbito social:

«Der Mehrheitsbeschluss der Gesellschafterversammlung, sich an einem fremden Unternehmen zu beteiligen, kann – obgleich von der Satzung gedeckt – anfechtbar sein, wenn sich alle Gesellschafter untereinander schuldrechtlich verpfl ichtet haben, eine solche Geschäftstä tigkeit der GmbH zu unterlassen.»

Também em BGH 27-out.-1986, NJW 1987, 1890, o BGH foi além da efi cácia obrigacional do acordo parassocial omnilateral, ao considerar que os sócios não podiam deliberar a destituição de um sócio-gerente se tinham todos acordado que tal dependeria do consentimento do gerente em causa:

«Der Beschluß der Gesellschafterversammlung, einen Gesellschafter-Geschäftsführer abzuberufen, kann – obgleich von der Satzung gedeckt – anfechtbar sein, wenn sich alle Gesellschafter einig waren, eine Abberufung solle nur mit Zustimmung des betroff enen Geschä ftsfü hrers erfolgen kö nnen.»

A fundamentação do BGH nesta decisão viria a ser muito criticada na doutrina e na jurisprudência, desde logo por encerrar uma contradição: por um lado afi rma que os estatutos deveriam ser interpretados objetivamente e o acordo parassocial segundo as regras dos §§ 133 e 157 BGB; porém, por outro lado, admite uma interpretação dos estatutos de acordo com o previsto no acordo parassocial. Contra a fundamentação desta decisão, afi rmou-se então que, se os estatutos devem ser interpretados objetivamente, não é possível atender à vontade das partes manifestada num acordo parassocial. Várias vozes se ergueram então sustentando que tal decisão quebrava o “princípio da separação” (“Trennungsprinzip”) entre a dimensão social e a dimensão parassocial, só derrogável perante situações de claro abuso de direito. Para além de outras críticas, foi também contraposto que esta decisão violava o princípio fundamental de que as regras organizacionais básicas devem poder ser determinadas sem margem para dúvidas por quem esteja fora da sociedade, devendo portanto constar dos estatutos. Mesmo aqueles que concordam com o resultado, apresentam como fundamento a concretização do dever de lealdade através do acordo parassocial – o que foi expressamente recusado pelo BGH – ou aceitam o resultado apenas em casos de violação do parassocial em manifesto abuso de direito.Na sequência destas e outras críticas, o BGH distanciou-se tacitamente – sem quaisquer explicações – da sua decisão “Kerbnägel”, de 1983, no acórdão BGH 7-jun.-1993, GmbHR 1993, 497, DNotZ

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1994, 313. Mais recentemente, em BGH 24-nov.-2008, ZIP 2009, 216 – decisão conhecida como “Schutzgemeinschaft II” – o BGH reafi rmou o “princípio da separação” (“Trennungsprinzip”) entre a dimensão social e a dimensão parassocial. Assim, o acordo parassocial – ainda que omnilateral – não determina o conteúdo do dever de lealdade, não pode ser usado na interpretação dos estatutos e não serve de fundamento para impugnação de deliberações sociais. Cfr. Kolja Dörrscheidt, Grenzen der Gestaltungsfreiheit bei omnilateralen außerstatutarischen Gesellschafterabreden, 2009, 47-67, que apresenta uma análise detalhada da evolução até 2009. Cfr. tb., v.g., Jens Koch, in Koch/Hüff er AktG12, cit., § 23, n.º 47, Viola Sailer-Coceani, in Münchener Handbuch des Gesellschaftsrechts, 4, 4.ª ed., 2015, n.º 14, Andreas Pentz, in Münchener Kommentar zum Aktiengesetz, 1, 4.ª ed., 2016, § 23, n.os 200-202.Diferentemente, em Portugal, desde 2009, sobretudo pela mão do Prof. Carneiro da Frada [veja-se “Acordos parassociais «omnilaterais»: Um novo caso de «desconsideração» da personalidade jurídica?”, Direito das Sociedades em Revista, 1:2 (2009), 97-135], tem ganho terreno a perspectiva de que os acordos omnilaterais, vinculando todos os sócios, assumem natureza corporativa e carácter análogo ao pacto social, desde que os correspondentes efeitos jurídicos não afetem terceiros. Esta perspetiva assenta na redução teleológica do artigo 17.º CSC, por cessarem certas razões suscetíveis de determinar algumas limitações aí previstas para os acordos parassociais em geral: não havendo sócios a proteger (porque todos são partes no acordo), nem terceiros atingidos pelo acordo, «nada justifi ca impor aos sócios aquilo que eles – todos eles – declararam, uns perante os outros, não querer; ou não admitir aquilo que eles unanimemente quiseram». Segundo Carneiro da Frada, a admissão de efeitos parassociais entre os sócios não pode ser recusada com fundamento na existência de um contrato de sociedade a que todos se comprometeram [ibidem, 109].

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