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Os amores de Gonçalves

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E-book desenvolvido para divulgação do meu conto. Disponível para download.

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TRÂNSITO

Virou a esquina com rancor.

Derramou ali sua dor.

Desceu a avenida.

Parou e limpou sua ferida.

Atravessou a rua.

Deu de cara com a lua.

Com a mão fez um sinal.

Pediu a Deus que cessasse o mal.

Mas veio a condução,

E achou melhor parar com tanta emoção.

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Os amores deum conto de Fatine Oliveira

Gonçalves

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Belo Horizonte, 1950

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Era uma quinta feira qualquer no mês de setembro e apesar do horário, já passava das sete da noite, o calor incomodava a lida diária, mas era um bom motivo aos amantes da boêmia. Belo Horizonte crescia timidamente como se tivesse aquele medo das coisas por vir. Aumentava um pouco ali, mantinha algo aqui. De um lado aumentava os bares, de outro preservava discrição de seus habitantes. Tradição e modernidade dialogavam não somente nos prédios erguidos dia após dia ao lado das antigas construções, como no sentimento interiorano mantido apesar das transformações sociais vindas além das montanhas. Falava-se do governo, das novas descobertas da ciência e dos novos times de futebol que se formavam, porém quando se encontrava os limites dos tradicionais muros cheios de nomes e sobrenomes, era preciso guardar as colheres e não entrar em determinados assuntos.

Ali em uma esquina, dessas muitas que se encontram na Afonso Pena, há dez anos Tonho abrira seu bar. Sem letreiro na porta, era conhecido como “O Céu Estrelado”. As origens do título eram muitas e sempre que alguém perguntava vinha um letrado embebido com uma história comprida e engraçada pra contar. Quando não tinha anedotas, era de uma tristeza sem fim, dessas de lamentar durante sete dias só de se ouvir. Em boteco as coisas são assim: ou engraçadas de doer a barriga ou tristes de doer o coração. De qualquer forma, a dor é a maior companhia dos boêmios e nunca está de copos vazios.

Estimado, o dono daquele Céu não parecia um morador das alturas, trazia em si uma beleza mortal capaz de aquecer as esperanças em coisas mundanas. Era magro, meio amarelo, por falta de sol, sem doença. Fato esse jurado e provado com atestado médico. Os dentes eram brancos, era preciso fazer contrastes, dizia. Cabelo grisalho, mesmo sem ter tanta idade, olhar puro e esverdeado constrangia qualquer pequeno pecador. Contudo, o que mais surpreendia e fidelizava seus clientes era a paciência, suportava tudo quanto era coisa, só não admitia criança e doentes nas suas mesas. Pra ele, o nascer e morrer são sagrados, devem ser preservados e sacramentados pela família. De resto, todos tinham seu lugar.

O bar estava mais cheio que os outros dias, bêbados desiludidos mergulhavam suas dores em longas canecas de cerveja lamentando os papéis a eles destinados pelo roteiro do que alguns chamavam vida. Gritavam, choravam e praguejavam os responsáveis pela má sorte: chefes, governos, enganadores e o principal, mulheres.

Tonho conhecia aqueles tipos, desde que abrira seu bar lidou com eles. Era uma receita de bolo: todos orbitavam por esses fantasmas por horas a fio, encerrando com um nome e uma declaração. Eram muitas Marias, algumas eram tantas que precisavam de complemento para diferenciá-las: Marias Antônias, Marias do Socorro, do Perpétuo, Aparecidas tímidas, do Carmo, da Conceição, algumas santas outras enviadas ao sete infernos pra lá das Gerais, todas, no final, erguidas e engolidas naquele balcão. Tais sempre apareciam em histórias, como personagens dos mais diversos filmes,

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entretanto naquele dia, duas delas resolveram sair dos contos e acertar suas dívidas no palco mais estrelado da capital.

O relógio marcava oito da noite quando ela entrou. Usava um vestido branco com pequenas flores em tom pastel distribuídas no tecido, luvas vermelhas e salto alto branco. O blazer repousado sobre os ombros e a bolsa nas mãos evidenciavam o valor de seu sobrenome: Damasceno. Leila Aparecida Damasceno, uma linda jovem de cabelos negros, traços finos e bochechas marcadas que chamava atenção não somente pela beleza, mas pela presença em um ambiente tão diferente à sua figura. O chapéu pendendo sobre o olhar demonstrava suas intenções, não estava ali por suas vontades.

A banda de choro animava o ambiente e abafava as lamentações de um jovem rapaz no balcão. Como sempre, o amarelado dono ouvia e transmitia os conselhos lidos em um velho jornal ao amante novato. A lida no bar dera uma qualidade de entendimento humano capaz de enfrentar qualquer papel desses timbrados estampados e pendurados na parede. Não era formado e talvez por esse motivo conseguisse entender tão bem do que se passava naquelas lágrimas. Teorias não sobrevivem aos dias.

Com os ouvidos e boca ocupados, deixava os olhos livres para controlar o ambiente. Ao menor sinal de bagunça, interrompia a terapia e resolvia a confusão. Expulsava os arruaceiros do céu, quase da mesma forma das escritas sagradas. O céu é para poucos, não é lugar de brigas. Dizia.

Notou a presença daquela dama e seu desespero em procurar um lugar escondido, esperou que seus olhares se encontrassem para te ajudar com a busca. Mas a vergonha era tanta, talvez o medo de ser reconhecida, que rapidamente sentou na primeira mesa que encontrou. Tonho pediu licença ao rapaz e foi atender Leila.

_A senhorita quer alguma coisa? – De tanto lidar com marmanjos embriagados, perdera a delicadeza das palavras – Quero dizer, gostaria?

Filha de um dos maiores produtores de café na Zona da Mata, viera à capital para viver no conforto com sua mãe. Não poderia arranjar um bom destino se ficasse enfiada naqueles cafezais, contudo naquele momento pensou que não deveria ter saído de lá. Sorriu ao velho senhor e pediu um copo de água, precisaria dele pra se acalmar.

Não demorou para os outros clientes notarem aquela mulher. Quando voltou ao balcão, Tonho logo se viu cheio de perguntas ávidas por respostas. Homens falam do universo feminino e nem se percebem imersos nele. Sagazes com a língua, tão ruins quanto as piores carolas velhotas do bairro. Afastou todos como se fossem os pombos famintos do Parque Municipal, se permitiu ficar em silêncio e ordenou que não mexessem com a moça. Sabia que algo estava pra acontecer.

Vinte minutos se passaram, quando a personagem entrou. Ao ver aquele sorriso, o velho ficou mais amarelado do que já era. Entendeu aquelas

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presenças e preferia nem saber de nada para evitar o sofrimento. Moreira, um dos antigos clientes do bar, aproximou e confidenciou suas desconfianças:

_Aquelas são quem estou pensando, Tonho?

A cabeça pendeu que sim. Tarde demais para qualquer coisa. Tomou um gole e manteve atenção firme no salão.

Vestido preto amarrado em um dos ombros, descia para pouco abaixo dos joelhos, desenhando cada curva naquele corpo esculpido por um anjo malicioso. Os cabelos vermelhos estavam soltos, e cobriam o ombro nu. Sorridente e de olhar lúbrico derrubava qualquer homem. E por esse motivo estava ali. No céu para resolver seus pecados. Entrou deslizando pelos olhares sedentos e antes de sentar com Leila fez seu pedido:

_Eu quero uma dose de conhaque, Tonho. Leve por favor naquela mesa. Ah, e mais uma coisa, não quero ser incomodada, tá bem?

_Tudo bem, mas você não vai...

Com indicador macio e cheirando Leite de Rosas ela o silenciou. Não queria censuras, as coisas já estavam difíceis demais. Virou e sentou com Leila. Antes que começassem a conversar, pediu pra esperar sua dose chegar, precisava daquilo pra engolir o que estaria por vir.

Lentamente, de sussurro em sussurro, todos entenderam quem eram. Ou melhor, de quem eram. Os amores de Gonçalves. Mulher e Amante. Para alguns, aquele encontro seria mais emocionante do que a final do campeonato mundial. Até os músicos resolveram contribuir e tocaram uma trilha especial, baixinha para ajudar os ouvidos curiosos.

Leila ficou surpresa com a beleza daquela mulher, de alguma forma, entendia o motivo do seu amor se envolver com ela. Contudo, precisavam colocar um fim naquele impasse imoral que os unia. Optou em começar, achou mais apropriado, afinal era uma dama da alta sociedade. Além disso, havia treinado aquele encontro por diversas vezes, seria impecável.

_Qual é seu nome afinal? – Confiante, perguntou com os olhos firmes naquele copo. O gole não foi demorado. Um leve sorriso de canto e a resposta fora colocada na mesa. Luiza, era seu nome. A bela dama de cabelos vermelhos refletiu a pergunta e logo estavam apresentadas. Silenciadas e cheias de confiança esperavam o próximo passo da outra. De fora, quase discretamente, todos ansiavam pela tormenta anunciada. Leila estampando ansiedades, continuou a conversa:

_Luiza, acredito que já sabe o motivo desse encontro, não?

_Talvez.

_Pois bem, serei breve. Quero que deixe Gonçalves em paz.

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Deixou um restinho de conhaque para aquele desfecho. Virou de uma vez como se fosse homem bravo, machão, roceiro. Desceu macio, lambeu os lábios fazendo o público masculino tremer as bases. Ela sabia impressionar e mexer com as ideias deles. Leila achou aquilo de mau gosto, mas sabia que não podia esperar menos daquela mulher. Pelos seus jeitos qualquer um via ser das leviandades, dos prazeres carnais. O pecado saía pelos poros misturados com seu perfume impregnante.

_O que te faz pensar que largarei Gonçalves? – Respondia, enquanto cruzava as pernas.

_Ora essas. Porque? Está claro o motivo. Basta olhar para mim e para você.

Uma gargalhada gostosa, dessas de piada bem feita, das de doer a barriga de tamanho riso, espalhou no salão. Luiza não esforçou em mostrar o quão aquela afirmação era ridícula. Passou as mãos nos longos cabelos, jogando-os para trás exibindo seu colo alvo. Levantou o braço e pediu para Tonho trazer mais uma dose. Agora não seria pra ajudar a engolir, mas queria apreciar melhor aquela anedota. Leila não gostou daquilo, sentiu o rosto queimar e as mãos tremerem. Não tinha previsto aquela reação de sua adversária. Imaginou que ela gritaria seu amor devasso e com soberba pediria para sumir da vida de seu amado. Sim, Gonçalves era dela. Isso ninguém diria o contrário. Moça prendada, de boa família, era o sonho de todo rapaz belo-horizontino, mas pertencia a um só homem. E não permitiria que outra entrasse em suas vidas.

_Me perdoe, Leila, mas não vejo motivos para um homem preferir você do que a mim. Ajude-me a enxergar isso, por favor. Estou aprendendo muito com essa nossa conversa. – Erguendo o copo, ensaiou um brinde e sorrindo esperou as explicações.

_Tudo bem, eu te entendo. Afinal, não deve ter conhecido as letras como eu. De fato, é uma mulher incapaz de vislumbrar maiores raciocínios. Tentarei ser mais didática. Eu sou uma moça de família abastada da Zona da Mata, fui bem criada, educada nas melhores escolas do Rio de Janeiro. Sou uma ótima dona de casa, companheira e sei servir bem a um homem. Sou elegante e, o melhor, sei comportar em público. Uma moça criada para lidar com a alta sociedade. Por isso Gonçalves está comigo, por ser uma excelente companheira nos eventos sociais. Ao contrário de você, que é apenas para o desfrute. Você é mulher para uma noite e eu para vida inteira.

Desfrute. O cavaquinho parou. Não havia nota para disfarçar aquelas palavras. O pandeiro soou baixinho e a banda se entreolhou na esperança de surgir uma nova melodia para seguirem. O silêncio constrangia, Leila se sentiu vitoriosa. Sorriu, em seu coração acelerado esperava pelo desespero de Luiza. Mas essa se perdeu no copo vazio. O sorriso sumiu de seu rosto, olhou para o chão como se tivesse procurando alguma coisa perdida. Que nada, sabia onde estava e o que queria. Não era mulher de incertezas. Os homens percebendo o desconforto das duas, começaram a gritar nomes de

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canções para inspirar a banda. Um compositor aqui, uma nota ali e a banda voltou a tocar.

_Então acha que ele precisa de uma companheira para os eventos. E eu não seria a mais adequada para isso porque sou alguém desfrutável.

Leila arqueou a sobrancelha direita e confirmou o dito. Tentou acrescentar mais detalhes, quando foi interrompida:

_Eu ainda não terminei. Também tenho família, não é rica como a sua, meu pai não tem posse de nada, mas fui bem criada por ele. Não conheci minha mãe, pobrezinha não sobreviveu ao parto, mas tive todo o carinho que precisei. Também sou dona de casa, sabia? A melhor, eu diria. Não fui criada para os eventos sociais, mas sei me comportar como uma dama quando preciso. Como pode ver somos bem parecidas, com um detalhe: eu posso ser uma mulher de uma noite, mas garanto será uma noite a ser lembrada pela vida inteira. O que acha disso? Um homem dormindo ao seu lado, todos os dias e noites, pensando somente nas poucas horas que passou ao lado de uma linda mulher ruiva nua envolvida nos lençóis?

Em uma mesa ao lado, rapazes brindaram em favor de Luiza. Em agradecimento ela piscou pra eles. Viu as mãos de Leila tremerem e resolveu continuar, estava cansada daquela conversa sem rumo.

_Vocês, moças de família, pensam que estão preparadas para vida, mas não sabem de nada. Acham que sabem lidar com os homens, quando em verdade, são experientes nas atividades do lar, isso sim.

_Saia da nossa vida! Deixe eu ser feliz com Gonçalves! – A pureza da alta sociedade escoou pela mesa junto com a água derramada pelas mãos trêmulas. Leila estava com os olhos em brasa, prestes a chorar e perder o controle. Luiza levantou e, não querendo continuar aquele assunto, foi ao balcão pagar suas doses. Dinheiro na mão, agradecimento e antes de sair, o veredito dado pela família Damasceno. A voz da alta sociedade espalhada pelo salão. – Sua vadia! Deixe-nos em paz!

_A quem chama de vadia? A mim? Você tem certeza que a vadia sou eu? – Gritava Luiza.

Tonho estendeu a mão para contê-la, mas foi segurado por Moreira. Era preciso recolher as colheres, além disso, queriam saber o desfecho daquela história. Com os pés batendo ao chão, Leila gritava enlouquecida.

_Você é vadia, sim! Uma meretriz de quinta categoria!

_Pois a vadia aqui vai deixar bem claro pra você: eu não largarei Gonçalves! Não largarei meu marido! – A nota escorregou e um estrondoso assombro silenciou o choro. Aparências, essa dama das ilusões sempre enganando os olhos ditos atentos.

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_Você não pode fazer isso, estou grávida. O que será de mim?

_Ah é? Adivinha só quem vai ter problemas com o pai? Ou melhor, com a alta sociedade.

Luiza deu de costas e foi-se embora. Em breve, seu marido chegaria em casa e ela precisaria servir o jantar. Leila, em prantos, fugia o mais rápido do bar. Não podia ser vista ali. Seria vergonhoso demais. Mais ainda se não tivesse acontecido embaixo daquelas estrelas. Uma moça de família disputando o amor de um homem casado. E antes do que pudesse imaginar, a briga não foi o assunto mais discorrido da noite, mas o talento de Gonçalves em seduzir aqueles anjos. A inveja fora servida entre muitas doses de cachaça e cerveja gelada. Enquanto isso, a banda tocava “Assanhado” de Jacob do Bandolim.

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Obrigada por ler meu conto. Adoraria saber sua opinião, envie um email para:

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Um grande abraço! :)

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