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1 Os Amores de Philippe

Os Amores de Philippe - KOPR

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Os Amores de Philippe

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O C T A V E F E U I L L E T

TraduçãoValéria Toledo

Os Amores dePhilippe

Nova tradução feita a partir do original francês

EDIÇÃO ILUSTRADA

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Copyright © Editora Madamu, 2018

EditoresProjeto Editorial

CapaIlustrações

Fotos

Marcelo Toledo e Valéria ToledoKopr ComunicaçãoDepositphotosAlexandre FerdinandusEdouard CucuelDick de LonlayHarrison FisherPierre ChenuDepositphotosCharles MarvillePixabay

Todos os direitos desta edição são reservados à Editora MadamuRua Terenas, 66 - Conjunto 6 - Mooca, São Paulo, SP

CEP 03128-010 - Telefone: (11) [email protected]

Vendas exclusivas pelo site madamu.lojaintegrada.com.br

F426a Feuillet, Octave, 1821 - 1890

Os amores de Philippe / Octave Feuillet, [ tradução de Valéria Toledo ], ilus-trações Alexandre Ferdinandus, Dick de Lonlay, Edouard Cucuel, HarrisonFisher e Pierre Chenu. – 1a. ed., – São Paulo: Editora Madamu, 2018.

212 p., 16 x 23 cmTítulo original: Les Amours de PhilippeISBN 978-85-52934-04-2

1. Literatura. 2. Romance francês. I. Título.

CDD: 840CDU-82-3.

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Retrato de Octave Feuillet aos 42 anos (1863), criado porPierre Chenu a partir de foto de Félix Nadar

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Caro leitor,

É verdade! Você nunca ouviu falar do romance que hojetem em mãos! Apesar do reconhecimento internacional, Osamores de Philippe é praticamente desconhecido dos leito-res de língua portuguesa. Por isso, permita-me tecer algunsesclarecimentos.

“Les amours de Philippe” foi publicado na Françaem 1877, quando seu autor já gozava de enorme prestígio –Feuillet era membro da Academia Francesa desde 1862. Olançamento despertou a atenção de um editor do Brasil queencomendou, a toque de caixa, a tradução para o português.Assim, antes mesmo do fim daquele ano, os brasileiros co-nheceram “Os amores de Filipe”, na versão da LivrariaGarnier, do Rio de Janeiro. Quarenta anos depois, foi a vezda Livraria Chardron, de Lisboa, encomendar nova tradu-ção e oferecer aos portugueses a obra de Feuillet.

Em 2018, após 140 anos, a Editora Madamu oferece estanova tradução – que é a terceira em língua portuguesa, e sepa-

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rada de sua antecessora por décadas de um esquecimento queconsideramos injusto. Com notas e ilustrações, nossa ediçãoconvida o leitor a mergulhar em uma atmosfera romântica earistocrática, para acompanhar uma trama que ainda hojeenvolve, seduz e surpreende.

Por fim, uma explicação sobre a forma. O leitor logoperceberá que a pontuação deste texto não segue os usos ecostumes atuais. Na medida do possível, procuramos resga-tar a pontuação original de Feuillet, a fim de mostrar comosua prosa era criativa, dinâmica e elegante.

Boa leitura!

Os Editores

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“É uma edificação simples, flanqueadanos ângulos por duas torres agudas”

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Numa das regiões mais arborizadas da verdeNormandia, no coração do antigo condado doPerche, vemos elevar-se, ao fim de uma longa

avenida de ulmeiros, uma habitação que parece datardo tempo de Henrique IV e que por ali a chamam deCastelo de La Roche-Ermel. É uma edificação simples,flanqueada nos ângulos por duas torres agudas; de umdos lados do pátio ergue-se uma capelinha ainda maisantiga, e do outro o pombal fidalgo. Os La Roche-Ermel são uma das mais antigas famílias da província;mas não são das mais ricas. O conde Léopold, repre-sentante do ramo principal da família, era o mais velhode três irmãos, e a parte da herança que a cada um dostrês competia não excedia uma dúzia de mil francos derendimento. Era pouco para manter a propriedade enela viver com dignidade. Esta velha residência pare-cia, portanto, condenada a passar para mãos estranhas,quando foi salva de tal profanação por um gesto de de-

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dicação que, não raro, vê-se nas famílias nobres. O ir-mão e a irmã do conde fizeram-lhe doação dos seusbens, renunciando um e outro a todo e qualquer futu-ro, a todo e qualquer destino pessoal, e confundindo asua existência com a do primogênito e chefe da sua casa.Estes dois grandes corações praticaram tal ato com sim-plicidade, e seu irmão aceitou-o da mesma forma por-que assim também procederia com eles.

Estes La Roche-Ermel eram muito estimados na-queles contornos. Seguiam o caminhar do século debom grado, ainda que com a reserva que seu nomelhes impunha. Era ademais uma raça varonil que ins-pirava respeito por predicados morais e até mesmofísicos que lhes pareciam hereditários. O condeLéopold era um homem de estatura baronial, de umafisionomia serena e intrépida, de uma cortesia primo-rosa e um tanto imponente. Enquanto experimenta-va suas ceifadeiras mecânicas e alcançava prêmiospelas raças apuradas de cavalos nos concursos agríco-las regionais, seu irmão Charles-Antoine, a quem cha-mavam o cavaleiro, tratava do jardim, da biblioteca,da adega e do barômetro. Tinha paixão pela botânicae passava horas deliciosas a estudar os musgos da ave-nida. Além disso era músico entusiasta: a sua timidezimpedia-o de manifestar o seu talento em público;mas não era raro ouvir noite adentro suaves melodiasde flauta saírem da torre em que morava.

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A irmã Angélique-Paule presidia discretamente asobras de caridade, que ocupavam amplo lugar nas tra-dições da família. Guardava a roupa branca, determi-nava os pratos das refeições e fazia doces. No intervalodas suas ocupações domésticas, pintava flores e pássa-ros em velino, cantarolando velhas cantigas que fala-vam de pastores atrevidos e de pastoras indiferentes.

Lucas! Lucas! reprima o seu ardor!Quando meu rebanho, guiado por quem o pastoreia,Sob os ulmeiros vem buscar o frescor,A sombra, e a onda pura, e a brisa que passa ligeira,Tudo diz a mim: reprima o seu ardor!

Foi no meio desta gente honrada que nasceu em185.1, Jeanne de La Roche-Ermel, que, devemosconfessá-lo, foi a princípio acolhida com bastante frie-za. Graças ao desinteresse generoso de seu irmão e desua irmã, o conde Léopold pudera se casar com umajovem e rica vizinha que fora a paixão da sua mocidade,mas de quem parecia dever separá-lo para sempre adesigualdade das suas posses. Esta união, aliás feliz sobtodos os pontos de vista, conservara-se por muito tem-

1185.: na tradição literária do século XIX, esta era forma comum deanotar uma data aproximada. Significa que a personagem Jeannenasceu em algum ano entre 1850 e 1859. (N. do T.)

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po estéril. Um forte mal-estar da condessa fez enfimque se concebessem esperanças, que o nascimento deuma filha não realizaram por completo. Dois ou trêsanos depois, o conde teve a dor de perder sua jovemesposa. Amara-a tanto que nem pensou em segundocasamento, e teve de se resignar a não deixar herdeirosvaronis. Essa amargura foi-lhe atenuada por uma espe-cial circunstância familiar.

Tinha por vizinho e amigo um desses primos dis-tantes que usava legalmente o mesmo sobrenome queele, visto serem filhos de dois irmãos, mas que o costu-me da província designava pelo nome de Boisvilliers parao distinguir do seu parente. Das janelas mais altas do cas-telo de La Roche-Ermel, descortinava-se, por entre asárvores, o ático e a claraboia que ornavam a fachada docastelo de Boisvilliers, pesada construção do séculoXVIII. As duas propriedades ligavam-se por avenidas.

Havia entre os dois primos um ar de família tão acen-tuado que, à alguma distância, era possível confundi-los.A semelhança moral não era menor; ambos tinham osmesmos sentimentos e iguais predileções, ocupando-seassiduamente dos interesses locais, de melhoramentosagrícolas, de criação, de caça, e muito pouco de política.

Mas Monsieur de Boisvilliers tinha um filho –Philippe – que nascera alguns anos antes de sua primaJeanne, e, desde que o conde Léopold perdeu a esperan-ça de ter um herdeiro direto, o seu sonho ardente foi,

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um dia, unir sua filha a Philippe de Boisvilliers, que de-via ser, depois dele, o primogênito dos La Roche-Ermel.

Deixou o conde Léopold escapar do coração estesegredo? ou esta combinação tão natural e tão conve-niente surgiu espontaneamente no espírito das duas fa-mílias? Fosse como fosse, o futuro casamento das duascrianças foi daí por diante caso decidido em La Roche-Ermel, da mesma forma que em Boisvilliers: primeirofalou-se disso misteriosamente, com alusões e sorrisos;depois foram-se desembaraçando, e dizia-se a Philippe:“a sua noiva”, referindo-se a Jeanne; – a Jeanne: “o seunoivo”, em relação a Philippe. As mulheres, e em es-pecial a excelente Angélique-Paule, gostavam dessabrincadeira, que não deixava, devemos dizê-lo, de in-teressar vivamente a menina Jeanne. Estava, tanto quan-to uma criança o pode estar, enamorada de seu primo:divertiam-se escondendo Philippe atrás de uma corti-na ou debaixo de uma mesa, depois chamavam Jeanne,que ignorava a sua presença; mas adivinhava-a imedia-tamente, ia direto ao esconderijo de seu primo, e aodar com ele corava. Todos então desatavam a rir, me-nos Philippe, menino orgulhoso e tímido, a quem tudoisto parecia cruelmente insuportável. Havia herdadode sua mãe, que infelizmente já não existia, uma sensi-bilidade nervosa um pouco exaltada. Os amigáveis gra-cejos que as criadas e as vizinhas lhe faziam a respeitodos seus amores e do seu casamento acabavam por

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exasperá-lo, e a sua suposta noivinha, causa inocentede toda esta perseguição, tornou-se pouco a pouco paraele objeto de uma extrema antipatia.

Essas impressões acompanharam-no ao liceu Louis-le-Grand, onde entrou aos quinze anos, e despertavamcom mais força na proximidade das férias. Seu retornoà província natal o atormentava antecipadamente coma ideia de encontrar a sua indefectível prima, risonha ecorada; a sua aversão à jovem abrangia os locais ondeela respirava e as pessoas que a rodeavam, e sem dúvi-da, se de um raio ele dispusesse, o solar de La Roche-Ermel seria varrido da terra com todas as suas depen-dências, sem esquecer o chefe do ramo primogênito,o cavaleiro Charles-Antoine e a sua flauta, a tiaAngélique, a pobre Jeanne e os criados.

Tais disposições da parte do jovem Boisvilliers, sepudessem ser suspeitadas pelas duas famílias, teriamgerado uma estranha consternação; mas a respeitosadeferência de Philippe por seu pai e os seus hábitoshereditários de perfeita cortesia não deixavamtransparecer nenhum vestígio dos seus sentimentosocultos. Reparavam sim num pouco de frieza e de em-baraço nas suas relações com sua prima; justificavamsuficientemente essa atitude pela natural timidez eacanhamento da sua idade.

Entretanto passavam-se os anos. MademoiselleJeanne crescia, e a sua pura paixão por seu ingrato primo

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crescia com ela. Aproveitaram-se habilmente desse afe-to como meio de educação. “Se seu primo a visse, meni-na!” foi uma frase mágica, cujo poder todos os que a ro-deavam não tardaram a conhecer, e diante da qual seacalmavam imediatamente as cóleras e as rebeliões dacriança. Entrevia logo o desprazer do seu primo, e emseguida a ruptura desse casamento ainda remoto, masque era o pensamento querido do seu coração juvenil.Estava efetivamente claro que Philippe de Boisvilliers,sendo, como ela entendia, um modelo de todas as per-feições morais, nunca se casaria com uma jovem de máíndole e que não estava bem sentada à mesa.

O mesmo processo se empregou com igual eficá-cia para fazê-la progredir nos seus estudos. Philippe deBoisvilliers alcançava brilhantes triunfos no seu colé-gio; no futuro seria evidentemente um homem notá-vel, até mesmo um grande homem: por acaso sua es-posa podia ignorar as regras dos particípios? – Erainadmissível, e Jeanne concordava.

Algum tempo depois ela foi enviada para as Irmãsda Visitação2 na cidade de A., capital da província, uminternato muito apropriado. Recomendando sua sobri-nha aos desvelos das freiras, a tia Angélique confiou-lhes, sob sigilo, os projetos da família com relação ao

2 Irmãs da Visitação: Ordem de freiras fundada em 1610 na cidade deAnnecy, por São Francisco de Sales e Santa Jeanne de Chantal. (N. do T.)

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futuro de Jeanne, o culto que a menina professava porseu primo, e o segredo de se utilizar esse sentimentopara lhe aperfeiçoar a índole e a inteligência.

Munidas desta preciosa informação, as freiras ino-centemente acabaram incitando a fantasia juvenil nãocansando de lhe apresentar Philippe de Boisvillierscomo um ente perfeito, um noivo ideal a quem deviatomar por modelo em todas as suas ações, e de quemsó se podia tornar digna por uma contínua aplicação eméritos excepcionais.

Mademoiselle Jeanne estava perfeitamente dispos-ta a fantasiar seu primo sob este prisma vantajoso equase sagrado: revestira-o de toda essa vaga e encanta-dora poesia que flana na alma de uma donzela, como sefosse um resplendor. Deve-se dizer que Philippe deBoisvilliers prestava-se bem, pelos seus dotes, a estaapoteose. Os fortes predicados da sua raça lhe eramsuavizados pela mescla do sangue materno, mais bran-do e mais delicado. Era um rapaz elegante e ágil, defisionomia grave e um pouco altiva, com olhos audaci-osos que revelavam um ardor apaixonado, exteriormen-te controlado pelo intrínseco atributo da dignidade. Osseus êxitos estudantis, alguns versos bem feitos, a pro-sa agradável e engraçada das suas cartas, revelavam umainteligência pelo menos destacada, que Jeanne consi-derava superior. Até a reserva de Philippe nas suas re-lações com ela a subjugava e a encantava; quando ele se

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dignava, de vez em quando, a aparecer no locutório doconvento, Jeanne apresentava-se trêmula, feliz e con-fusa por ser visitada por este jovem deus.

Sem embargo essa jovem divindade seguia o seucurso de direito com uma doce indiferença, que nãodeixava de ter um misto de cruéis apreensões. Termi-nados os seus estudos de direito, tinha de voltar aBoisvilliers para ali viver com seu pai. Aproximava-se omomento em que seria provavelmente forçado a seexplicar sobre as suas intenções a respeito de sua pri-ma. Não ignorava que o seu casamento era considera-do, cada vez mais, um negócio decidido nas duas famí-lias. Sem tratar abertamente desse assunto diante dele,eram feitas reiteradas alusões que não lhe permitiamesquecê-lo. Ele infelizmente conservava pela donzelaa antipatia que consagrara à criança, e levava de cadauma das suas visitas ao convento impressões dificilmen-te conciliáveis com os votos de seus pais. Achava Jeannefeia e desagradável, apesar dos seus grandes olhos azuis,das ondas de cabelos negros e dos dentes deslumbran-tes; tinha pequena estatura, era rechonchuda, desas-trada e deselegante, enfim vestia-se sem gosto, e eraaté muito descuidada no seu trajar. Deste triste deta-lhe, a bem da verdade, não tinha ela culpa. No conven-to era um axioma que a beleza moral devia ser a únicaambicionada e cultivada pelas jovens educandas, e eraregra que o mais leve indício de vaidade fosse severa-

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mente reprimido. Por conseguinte, os espelhos eramproibidos. Jeanne, que às vezes surpreendiam pente-ando o seu magnífico cabelo diante dos vidros da jane-la, era especialmente censurada nesse ponto.

– A beleza moral, mademoiselle, repetiam-lhe as dig-nas madres, a beleza moral! tal deve ser a sua única pre-ocupação e desvelo, como é, pode estar certa disso, oúnico pensamento e o único empenho de um espíritotão elevado como o do senhor seu primo.

– Mas, madre, respondia ela, meu primo não podever a minha beleza moral no locutório!

– Desculpe, mademoiselle, ele a entrevê, ou pelomenos a interpreta nesse seu desprezo pelas vaidadesexteriores.

Jeanne deixava-se persuadir, mas era ela quem ti-nha razão. Seu primo, quando vinha ao locutório, nãovia a sua beleza moral; via os seus cabelos emaranha-dos, suas unhas bem curtas, suas pernas muito longas,as suas botinas largas, as suas meias mal calçadas, e elemesmo não tinha bastante beleza moral para apreciara dimensão simbólica e superior de todas essas coisas.

Às ideias preconcebidas e persistentes a respeitode sua prima juntaram-se com a idade novos senti-mentos que redobravam a sua aversão por ela e pelofuturo que lhe destinavam há tanto tempo. O seu su-cesso escolar, as suas tentativas poéticas admiradaspelos seus colegas, haviam-no exaltado, e não estava

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longe de compartilhar a excelente opinião que Jeanneformava a seu respeito. Sem ainda aspirar a um obje-tivo determinado, sonhava vagamente com ambiçãoe glória; também vislumbrava amores soberbos e chei-os de tempestades na fascinante atmosfera parisiense;estremecia lembrando-se de que iria enterrar no fun-do da província, no acanhado recinto do solar pater-no, as faculdades dignas de um grande teatro e pai-xões dignas das grandes aventuras.

O mais delicado seria fazer com que seu pai com-preendesse tudo isso. Monsieur de Boisvilliers de LaRoche-Ermel era um pai terno, e nada romântico; asua fronte severa, os seus olhos pardos e resolutos,os seus lábios espontaneamente irônicos, não incen-tivavam desabafos, e Philippe adiou enquanto pôdeuma confidência que evidentemente devia causar amais desagradável surpresa ao velho fidalgo; enfimformou-se, já não tinha daí em diante pretexto al-gum para prolongar a sua residência em Paris; com-preendeu que chegara a hora das temíveis explica-ções, e partiu para a Normandia munindo-se de todaa sua coragem.

Acolheram-no em Boisvilliers e em La Roche-Ermel com um ar de festa e de alegria que muito oafligiu e que o fez até mesmo hesitar na sua resolu-ção. Era duro ter que dilacerar todos estes honradoscorações. No dia seguinte ao da sua chegada o seu

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constrangimento e a sua tristeza não escaparam aosolhos de seu pai, que por isso ficou profundamenteinquieto.

Em uma linda tarde de agosto ambos passeavamem um terraço plantado com espessos castanheirosque formavam um dos lados do jardim de Boisvilliers;continuava até a beira de um lago profundo e tranquiloque parecia dormir sobre as largas folhas de nenúfa-res3 que o recobriam quase inteiramente; um velhobote, com água pelo meio, estava encalhado ao fundode uma escada com degraus separados. – O pai fuma-va silenciosamente um charuto, o filho contemplavacom melancolia o velho bote preso por uma correnteenferrujada e parecia-lhe ver ali a imagem do destinoque o esperava nesse canto perdido do mundo.

– Então, meu filho, disse inesperadamenteMonsieur de Boisvilliers, nunca fumas?

– Nunca, meu pai.– Fazes muito bem. Tens mais juízo do que eu, fico

satisfeito. E agora és um advogado?– Sim, meu pai.– Excelente. Graças aos teus conhecimentos de di-

reito, não serás como eu vítima de procuradores. Po-

3 Nenúfar: Gênero de plantas aquáticas que cresce em águas para-das ou de movimentação lenta; gostam de mangues, pântanos e mar-gens de lagos. A vitória-régia é um exemplo de nenúfar. (N. do T.)

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derás administrar tu mesmo os teus bens, que um diaserão vultosos.

– Espero, meu pai, que durante muito tempo nãotenha essa preocupação.

– Agradeço-te a amabilidade, mas não tens remé-dio senão ajudar-me a carregar o fardo. Envelheço, jáme canso, meu filho. – Sabes que as propriedades deBoisvilliers e de La Roche-Ermel reunidas dariam maisde noventa mil francos de rendimento?

– Tanto, meu pai?– Exatamente.Houve uma pausa silenciosa, depois Monsieur de

Boisvilliers continuou:– Há pouco fui ver tua prima Jeanne no conven-

to; estão muito contentes com ela. Dizem as freirasque é uma criatura perfeita, com uma instrução e umbom senso notáveis; além disso é uma excelentemusicista.

– Toca muito bem piano, é verdade, meu pai.– Sabes que a sua educação está concluída, e que

volta definitivamente para casa no dia 15 deste mês?– Meu primo de La Roche-Ermel já me contou,

meu pai.Monsieur de Boisvilliers interrompeu de súbito o

seu passeio e atirou o charuto:– Philippe, disse ele cravando os olhos no rosto

pálido do mancebo, não podes ignorar que sempre de-

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sejamos a tua união com a tua prima. Devo entenderque os teus projetos são diferentes dos nossos?

– Meu pai, disse Philippe num tom respeitoso porémfirme, não posso me casar com minha prima,... não a amo.

– Não a amas? repetiu Monsieur de Boisvilliers.Cravou os olhos em seu filho; as rugas entre as

sobrancelhas se acentuaram profundamente, e umaligeira convulsão fez-lhe tremer os lábios.

A dois passos da margem do lago havia um banco;sentou-se, encostou as mãos à fronte e pareceu medi-tar dolorosamente.

– Pobre criança! murmurou.E erguendo a cabeça para seu filho, que se conser-

vava em pé diante dele:– Depois da declaração que acabas de me fazer, dis-

se com voz dura e breve, deves perceber que a tua per-manência em Boisvilliers se torna, ao menos por algumtempo, impossível.

– Se assim o julga, meu pai, obedecerei.– Sim, entendo, é isso o que desejas; tomaste gos-

to por Paris, e queres ir passar a tua mocidade e talvez atua vida no ócio.

– No ócio não, meu pai, e, se me permite que lhefale com muita franqueza.

– Oh! nem desejo outra coisa.– Pois bem, aqui na província, no campo é que eu

viveria ocioso. Perdão, meu pai!... tenho diante dos

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olhos o seu exemplo e o de nosso primo, e sei quanto édignamente ocupada a existência de ambos; só que nãotenho nem as suas predileções nem as suas aptidões.Dizia que gosto de Paris, é verdade: gosto sem dúvidadas suas distrações e dos seus prazeres, como é próprioda minha idade; mas também aprecio, queira acreditá-lo, a nobre atividade que ali se respira com o ar, a gene-rosa ambição que faz brotar nos corações, a febre deglória que acende nos espíritos; amo a sua impetuosavida intelectual que parece juntar-se à própria inteli-gência e duplicar-lhe as forças. Aqui, meu pai, a inteli-gência que eu posso ter ficaria sem meta, sem aplica-ção; deixaria aos caseiros e aos procuradores cuidadosque não teriam para mim o mais leve interesse; o té-dio, o desalento, invadir-me-iam, e afinal me desgasta-riam; não tendo as virtudes de fidalgo da província, te-ria apenas os seus defeitos, e talvez um dia os seus vícios.Empregaria meu tempo, como tantos outros, a passe-ar com os meus cães, a consultar o barômetro e a rosados ventos, a engarrafar vinho e talvez a bebê-lo. Poisbem, confesso-lhe, meu pai, que esse gênero de exis-tência, sem honra para mim, sem utilidade para nin-guém, me faz horror, e a minha infeliz prima, que sem-pre simbolizou tal existência a meus olhos,tornou-se-me odiosa por isso mesmo; foi ela que pro-nunciou a sentença do meu destino desde o berço, foiela que me disse: “Viverás aqui, e não em outra parte, an-

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darás toda a vida neste círculo fatal, e andarás nele comigo,não terás outro amor, outra esposa que não seja eu, – e asminhas predileções serão as tuas, e será meu o teu quarto, eserá teu o meu túmulo!” Ah! meu pai, poderia tê-la amadose a tivesse escolhido; quem sabe, podia até ser que eutivesse amado a vida e as ocupações do campo, se nãome tivessem sido eternamente impostas? Desculpe-me, meu pai, o desagrado, mas prefiro dizer-lhe semreserva o meu pensamento, abrir-lhe sinceramente omeu coração!

– Tens razão, disse Monsieur de Boisvilliers.Respirou fundo, meditou um instante, e continuou

com voz branda e quase velada:– E eu também, meu filho, tenho que te dizer:

Desculpa-me.– Meu pai!– Sim, porque afinal podes supor que eu dispuses-

se com certa leviandade do teu futuro, como se o teufuturo me pertencesse. Podes supor, e supões sem dú-vida alguma, que um motivo egoísta me levara a con-fiscar, até certo ponto, em meu proveito, a tua vida,fixando-a antecipadamente junto da minha. É certo queeu não era insensível à esperança de ver um dia – de-pois de tantos anos de solidão! – a minha velha casacheia e reanimada; sim, esperava que Deus me poupa-ria essa grande amargura dos velhos, a casa erma e só.Amava demais essa criança como se fosse minha filha.

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– Meu pai! murmurou novamente o rapaz, que sen-tiu umedecerem-se-lhe os olhos.

– Estou errado, perdão, tornou o pai.E prosseguiu com a máxima firmeza:– O que eu preciso dizer-te, meu filho, é que não

pensava unicamente nas minhas vantagens pessoais ena minha própria ventura determinando para ti o pla-no de existência que repeles. Julgava preparar-te aomesmo tempo uma vida feliz, útil e honrosa. Atravésdas gentis atenuantes da tua fala, entrevejo bem, man-cebo, que nos considera, a mim e ao conde de LaRoche-Ermel, como dois entes bastante inúteis nestemundo. Deixa-me continuar. Nesse ponto não concor-do com a tua opinião. Somos dois fidalgos de provín-cia, como dizes, e vivemos sem glória, mas não semhonra. Trabalhamos na multiplicação do pão e da car-ne, e damos à cavalaria francesa fortes montarias. Já éalguma coisa. – Mas ainda não é tudo, meu filho: nestestempos, mais do que nunca, é bom que homens comonós residam em suas regiões natais, campo ou cidade,e aí saibam conquistar o respeito de todos. Sem falardos serviços práticos que podem prestar em torno desi, há na sua presença, na superioridade dos seus co-nhecimentos, na dignidade da sua vida, nas grandes re-cordações que o seu nome desperta, um ensinamento,um exemplo e uma autoridade. São como esses velhoscampanários, que se veem dispersos no campo, que fa-

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zem meditar o viajante na estrada, o camponês debru-çado na charrua, e que involuntariamente inspiram aogrupo elevados sentimentos e respeitosos pensamen-tos. Não, meu filho, não somos inúteis! Não me digasnada, Philippe, não, nem uma palavra! Imagino que teinterpreto, todavia não quero arrancar à tua sensibili-dade, ao teu enternecimento, um sacrifício que lamen-tarias amanhã. Segue o caminho que escolheste; segue-o como homem de bem, e hei de consolar-me.Vejamos, que tencionas fazer?

– Meu pai, minha intenção, se não a desaprove, eraa de continuar os meus estudos de direito até me dou-torar e depois ser admitido no conselho de Estado.

– Que seja! – E agora, Philippe, temos de tomaruma resolução dolorosa. É conveniente que não fiquesaqui, que partas o mais breve possível. Sairás amanhãpela manhã, e para nos pouparmos a comoções inúteis,desejo não assistir à tua partida.

Monsieur de Boisvilliers levantou-se bruscamente:endireitou-se na sua estatura atlética e retomou suacaminhada com passo firme, fazendo sinal a seu filhopara que o acompanhasse.

Depois de um longo silêncio:– Talvez passem anos, disse ele, antes que possas

voltar honradamente a Boisvilliers. A tua presença se-ria uma crueldade para aquela menina. Irei ver-te emParis de tempos em tempos.

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– Obrigado, meu pai.A noite chegava pouco a pouco, engrossando a

sombra no terraço. A lua projetava uma fraca luz entrea sóbria folhagem dos castanheiros, e prateava doce-mente, através das árvores, a superfície imóvel do an-tigo lago. Era uma cena de um sossego e de uma me-lancolia profundos.

– Philippe, tornou Monsieur de Boisvilliers, pare-ces-te com a tua mãe. Sim, tua mãe era um espírito umpouco romanesco, mas era ao mesmo tempo uma san-ta; não te esqueças.

– Não me esquecerei, meu pai.Passaram-se quinze minutos sem que nem mais

uma palavra fosse trocada entre o pai e o filho, cujospassos, fazendo ranger a areia da alameda, interrompi-am com esse ligeiro rumor o silêncio da solidão.

De súbito Monsieur de Boisvilliers parou:– Vamos, meu filho, disse ele, estendendo-lhe a

mão, preciso de descanso. Retiro-me, adeus!– Meu pai! disse Philippe com voz sufocada pela

angústia, meu pai, perdoa-me?O velho puxou-o para si com certa força.– Abraça-me, pediu-lhe.E apertou convulsamente ao peito o mancebo, que

soluçava.No dia seguinte, logo ao romper do dia, Philippe de

Boisvilliers afastava-se da casa paterna, numa carruagem

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puxada por dois vigorosos percherons4 que deviam levá-loem vinte minutos à próxima estação de trem. Deixavapara trás – feliz mocidade! – as preocupações, o desam-paro, o luto, e corria alegremente para o futuro por en-tre o orvalho dos bosques e os raios de luz da aurora.

Algumas horas depois, seu pai, de rosto pálido ede olhos pisados por uma noite de insônia, dirigia-secom passo fatigado ao castelo de La Roche-Ermel.Quando se aproximava, no meio da avenida avistou oconde Léopold que vinha ao seu encontro:

– Então, exclamou o conde de longe com um tomjovial, que é feito do nosso jovem parisiense? Ainda nacama?

Monsieur de Boisvilliers prosseguiu sem responder,e, quando chegou a dois passos de seu primo, disse-lhenum tom triste e grave:

– Meu amigo, Philippe retornou a Paris.– Como! voltou para Paris? disse o conde aturdido.

Então que temos? vejo tratar-se de algo sério.– Muito sério, replicou Monsieur de Boisvilliers acen-

tuando as suas palavras. E, pegando na mão do conde:– Meu amigo – disse, vou lhe causar um grande

desgosto; está destruído o sonho de toda a nossa vida.

4 Percheron é uma raça de cavalos, originária da atual comuna dePerche, de onde herdou o nome. Trata-se de uma típica raça de cavalosde tração, e a mais conhecida das raças equinas francesas . (N. do T.)

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Meu filho, meu filho não é digno da aliança que tinhatido a bondade de lhe reservar.

O conde Léopold encarou fixamente Monsieur deBoisvilliers:

– Ele se recusa? indagou.Não recebendo resposta, soltou uma espécie de

gemido; caíram-lhe os braços inertes e ficou com oolhar vago e incerto, depois simplesmente exclamou:

– Jeanne morrerá!