OS ANOS REBELDES DA BRASILIDADE.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/17/2019 OS ANOS REBELDES DA BRASILIDADE.pdf

    1/4217T, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 217-220.

    RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária :um século de cultura e política. São Paulo: EditoraUNESP, 2010.

    Marcelo Ridenti, professor titular de Socio-logia da Unicamp, tem contribuído de manei-ra significativa para os estudos sobre as relaçõesentre cultura e política e para a historiografiada produção intelectual e artística da esquerdabrasileira das décadas de 1960 e 1970. Em seumais recente livro, Brasilidade revolucionária , oautor assume uma intenção provocativa ao unirdois termos que podem parecer antagônicos.Enquanto “brasilidade” tem um sentido facil-mente reconhecível – de acordo com a definiçãocolhida pelo autor no Novo dicionário Aurélio –,como uma “propriedade distintiva do brasileiroe do Brasil”, o adjetivo “revolucionária” confere

    ao substantivo uma qualidade não tão evidente,em virtude das diversas apropriações do termo“revolução” pelos atores sociais, durante o século

     XX. Ridenti explicita a provocação ao estabelecerum recorte ideológico que subverte o sentido co-mumente aceito para “brasilidade” – associada,ora a um programa conservador e nacionalistaà direita, ora a um populismo nacionalista à es-querda –, demonstrando a existência, ao longodas décadas de 1950 e 1960, de um projeto al-

    ternativo para o desenvolvimento da sociedadebrasileira que não pode ser compreendido apenaspor essas análises polarizadas. Para ele, a brasili-dade revolucionária   fez parte de um imagináriocompartilhado pela esquerda brasileira que, deacordo com suas palavras, buscava a construçãode uma sociedade “nacional-democrática ou so-cialista, que permitiria realizar as potencialidadesde um povo e de uma nação”.

     Ao propor uma “brasilidade” construída pela

    esquerda, o autor questiona modelos explicativosnascidos no interior de debates intelectuais tra-vados no momento em que se configuravam as

    “novas esquerdas”, durante os anos 1980, e queidentificavam o nacionalismo de esquerda com opopulismo. São interpretações que se tornaramcanônicas e que procuravam explicar a derrotapolítica sofrida com o golpe civil-militar de 1964,ao mesmo tempo em que eram revisadas as for-mas de atuação dos intelectuais de esquerda emum contexto de emergência de novos movimen-tos sociais. Àquela altura, passou-se a valorizar astransformações propostas pelas “bases” e não maisaquelas prometidas pelas chamadas “vanguardas”que, até então, procuravam conduzir o desen-volvimento do país.

    Marcelo Ridenti já havia desenvolvido umadiscussão fecunda acerca da produção intelectual eartística da esquerda brasileira em seu Em busca do

     povo brasileiro (2000), adotando, como referencialteórico, o conceito de “romantismo revolucionário”,

    conforme formulado por Michael Löwy e RobertSayre em Revolta e melancolia (1995). Neste sen-tido, Ridenti procurou definir o romantismo, paraalém de suas características estéticas ou filosóficas,como uma visão de mundo, cujos traços distinti-vos – a crítica ao capitalismo e uma “autocrítica”da modernidade – ajudam a entender a relaçãoda esquerda brasileira com as classes populares. Apartir de vários depoimentos, Em busca do povobrasileiro  recuperava a atuação de diversos artis-

    tas e intelectuais, mostrando as ambiguidades etensões dos projetos de conscientização popularque, com suas contradições, também continhamperspectivas autoritárias.

     Já nesse novo trabalho, Ridenti reconhece ocaráter polêmico do conceito, pois, segundo ele, oromantismo costuma ser associado à reação e nãoà revolução. Porém, a ambiguidade do conceitopode ser interessante para entender uma produçãocultural igualmente ambígua e complexa.

     Aprofundando sua análise, o autor também seaproxima das formulações teóricas de Raymond Williams, em  Marxismo e literatura  (1979), e de

    Os anos rebeldes da brasilidade

     Andrea Maria Vizzotto Alcântara Lopes 

  • 8/17/2019 OS ANOS REBELDES DA BRASILIDADE.pdf

    2/4218

    suas reflexões sobre as “estruturas de sentimento”que ajudam a matizar uma pluralidade de ex-pressões que não se organizam de forma rígida.

     Ao mesmo tempo, rompe com interpretações

    dicotômicas que contrapõem o pensar ao sentir,entendendo-os de forma relacional, ou seja, os va-lores e significados são construídos pela experiên-cia vivida, contribuindo, dessa forma, para umadiscussão sobre o engajamento de intelectuais e ar-tistas que contemple, também, as ambivalências eincoerências comuns à trajetória de vida dos indi-víduos. Ridenti delimita e contextualiza sua abor-dagem sociológica, a partir do conceito de “co-munidade imaginada” desenvolvido por Benedict

     Anderson em Comunidades imaginadas   (1983),argumentando que, a partir do final da década de1950, “compartilhavam-se ideias e sentimentosde que estava em curso a revolução brasileira, naqual artistas e intelectuais deveriam engajar-se”.Essa discussão é aprofundada no terceiro capí-tulo, “Brasilidade revolucionária como estruturade sentimento: os anos rebeldes e sua herança”,quando o autor analisa as manifestações de artistase intelectuais nos anos 1960, período que marca o

    apogeu dessa estrutura de sentimento. Alguns aspectos desse sentimento de brasili-

    dade revolucionária são discutidos, como a neces-sidade de conhecer o povo brasileiro; a idealiza-ção do homem do campo como portador de umapureza e autenticidade ainda não contaminadaspelo capitalismo e pela industrialização urbana; aluta contra o latifúndio e o subdesenvolvimentodo país; e a denúncia das desigualdades sociais.Ridenti destaca, também, que as representações

    de harmonia racial foram retomadas, durante osanos 60 e 70, mas, agora, de forma questionadora,para romper com a ordem social e transformar oBrasil, cuja integração social e racial ainda não seefetivara, mas que poderia vir a sê-lo.

    No quarto capítulo, “A questão da terra nocinema e na canção: dualismo e brasilidade revolu-cionária”, Ridenti problematiza algumas interpre-tações que se tornaram hegemônicas na discussãosobre a cultura do período, como a influência dasteses desenvolvimentistas do Instituto Superior deEstudos Brasileiros (ISEB). A hipótese, primeira-mente formulada por Jean-Claude Bernardet para

    o Cinema Novo em Cineastas e imagens do povo (1985), teria sido estendida, segundo Ridenti,para as demais manifestações artísticas, transfor-mando as teses dualistas – que postulavam uma

    cisão entre um Brasil moderno e um Brasil atrasa-do – em um pólo centralizador da análise acer-ca da produção cultural dos anos 1950 e 1960.Ridenti procura matizar essa abordagem, mos-trando que havia desvios em relação a essa “nor-ma” estabelecida pela crítica, mas que, por outrolado, a ênfase nas contradições rurais poderia re-sultar de identificações das esquerdas brasileirascom experiências no cenário internacional, comoa Revolução Cubana, vitoriosa em 1959.

     A desnaturalização de interpretações já consa-gradas sobre a relação entre o cinema e a políticanos anos 1960, que privilegiam o Cinema Novoem detrimento de outras experimentações esté-ticas, é outra contribuição relevante do autor, aopropor que filmes como O pagador de promes-sas   – dirigido por Anselmo Duarte, baseado napeça homônima de Dias Gomes e premiado emCannes em 1963 – compartilhavam do senti-mento de brasilidade revolucionária, embora com

    outra proposta de narrativa fílmica, sob a influên-cia marcante do neo-realismo italiano. Não se tra-ta de incorporá-lo esteticamente à produção con-siderada representativa do Cinema Novo, mas deperceber as diferentes formas de pensar a sociedadebrasileira expressas na produção cinematográfica.Em um cenário de expansão da indústria cultural,Ridenti adverte para a existência de conflitos e dis-putas pela legitimidade e hegemonia no campo docinema que devem ser problematizados.

    Embora o fio condutor da obra seja, con-ceitualmente, o sentimento de brasilidade revolu-cionária, o estudo não o emprega de forma a ho-mogeneizar toda a produção artística do período.

     Ampliando as fontes de seu exame, Ridenti pro-cura demonstrar que havia várias formas atravésdas quais se expressava esse sentimento na can-ção popular, mas que não pairava onipresente portoda a produção cultural do período. Assim, o au-tor consegue recuperar um cenário plural atraves-sado por diversos conflitos.

    Marcelo Ridenti também procura complexi-ficar sua interpretação, fugindo de formulações

     Andrea Maria Vizzotto Alcântara Lopes

    O

    T, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 217-220.

  • 8/17/2019 OS ANOS REBELDES DA BRASILIDADE.pdf

    3/4219

    simplistas ou deterministas, quando, no segundocapítulo “Artistas e intelectuais comunistas noauge da Guerra Fria”, discute a relação entre oPartido Comunista Brasileiro (PCB) e os artistas e

    intelectuais, no contexto de modernização da so-ciedade brasileira durante os anos 1950. Rompen-do com a explicação reducionista de que os artis-tas eram instrumentalizados pelo partido, observaque esse tipo de abordagem acaba por excluir apossibilidade de ação voluntária e de interessepróprio desses atores sociais. Tratava-se de uma re-lação com ganhos recíprocos, segundo ele, pois arede de contatos internacionais do PCB permitiaque os artistas alcançassem prestígio e novas opor-

    tunidades profissionais em seus respectivos cam-pos de atuação, fundamentais para a promoçãodo desenvolvimento cultural em um cenárioainda incipiente em algumas áreas. Com o pro-cesso de modernização conservadora em expan-são nos anos 1960, teria florescido, portanto, umacultura inspirada pelo sentimento de brasilidaderevolucionária que produziria marcas profundasno cenário cultural brasileiro do período.

     A relação entre mercado e engajamento é dis-

    cutida, em suas ambiguidades e contradições, nomovimento de transformação de propostas con-testadoras em mercadorias. Passava a existir, emproporções significativas, um público ávido porconsumir as obras de artistas críticos ou revolu-cionários, permitindo a profissionalização e até aconsagração desses indivíduos. Os limites e pos-sibilidades dessa relação são constantementediscutidos e retomados em vários momentos,favorecendo uma reflexão, tanto sobre a produçãodos anos 1960, quanto sobre a atual, quando a mí-dia frequentemente destaca essa “brasilidade”, masde forma a reforçar estereótipos sobre o país.

    Em seus cinco capítulos, Brasilidade revo-lucionária   traz textos anteriormente publicadosem revistas ou coletâneas, agora, revistos e atu-alizados, oferecendo uma síntese das reflexõesempreendidas pelo autor nos últimos anos. Noprimeiro capítulo, “Um livre pensador no movi-mento operário: Everardo Dias contra a RepúblicaVelha”, modelos sociológicos são articulados a umaanálise diacrônica na discussão sobre a trajetória deEverardo Dias – imigrante espanhol que transitou

    pela maçonaria, anarquismo, tenentismo e comu-nismo –, problematizando as múltiplas adesões dopersonagem a correntes de pensamento variadase até mesmo contraditórias que, no entanto, pos-

    suíam um traço em comum: o descontentamentocom o tipo de modernização em curso na socie-dade brasileira, sentimento compartilhado comoutros artistas e intelectuais, ao longo da primeirametade do século XX. Sem propor um desenvolvi-mento linear em sua investigação, o autor identificaos momentos em que a brasilidade revolucionáriaocupou espaço significativo na produção culturale intelectual brasileira, procurando demonstrarque esse sentimento, ainda nascente, já podia ser

    identificado na diversificada militância política deEverardo Dias.

     Aparentemente, os capítulos que abrem eencerram o livro parecem deslocados do restanteda obra. Entretanto, o sentido de unidade do tex-to pode ser encontrado no exame das trajetóriasde intelectuais que viveram experiências contra-ditórias e ambíguas, como Everardo Dias, ou nacrise que afetou o meio intelectual nos anos 1980,discutida no quinto capítulo, “Intelectuais na (re)

    democratização: Marshall Berman e seu públicobrasileiro”. Se o fio condutor da discussão é osentimento de brasilidade revolucionária, é pelaanálise da atuação de intelectuais e artistas no es-paço público que ela se desenvolve. A ação do in-telectual constitui, então, um aspecto importanteda discussão que é constantemente retomada porRidenti em toda a obra, ao explorar as transforma-ções das estruturas de sentimento: da brasilidaderevolucionária, localizada historicamente entre asprimeiras décadas do século XX e os anos 1960,à “sensibilidade dita pós-moderna”, que ainda es-taria em vigor no início deste novo século. Dosanarquistas e comunistas do início do século XXà crise do pensamento marxista, no embate com opós-modernismo, o autor aponta a “cisão fáustica”como o dilema central do intelectual engajado,“portador de projetos de vanguarda numa socie-dade subdesenvolvida e desigual”.

    Para discutir as mudanças na atuação do in-telectual, Ridenti analisa, ao final, a recepção deTudo que é sólido desmancha no ar , de MarshallBerman, lançado com enorme sucesso no Bra-

     Andrea Maria Vizzotto Alcântara Lopes

    O

    T, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 217-220.

  • 8/17/2019 OS ANOS REBELDES DA BRASILIDADE.pdf

    4/4220

    sil, em 1986, pela Companhia das Letras, editoraque iniciava suas atividades em um contexto detransição democrática, quando muitos intelec-tuais já começavam a rever a forma de sua inter-

    venção política. O caráter provocativo, sugeridopelo autor no título da obra, aparece também emsua narrativa, pelo contínuo questionamento dainstitucionalização do “profissional” intelectualque, de “revolucionário”, passou a “resignado” econformado à nova ordem social. Além de pro-por uma interpretação que pode ser considera-da polêmica, ao identificar semelhanças entre opensamento romântico e o marxismo, Ridentiexplora outros temas perturbadores, ao examinar

    a diluição do pensamento revolucionário em es-tratégias mercadológicas e a atual inércia do in-telectual, cuja presença no espaço público é cadavez mais escassa.

    Para Ridenti, a reflexão de Berman encon-trava ressonância entre setores da intelectualidadeabertos a leituras que indicassem novos caminhospara o engajamento, pois apontava para o aspectopositivo e criativo de uma crise que poderia le-var a novas transformações sociais. Nesta perspec-

    tiva – de valorização das experiências cotidianase da liberdade individual – o intelectual deveriaaprender a ver “os sinais da rua”, tornando-se umaprendiz e não mais a vanguarda que conduziriao proletariado. Entretanto, argumenta Ridenti,uma outra leitura, à revelia de Berman, acentuavao narcisismo, pela apologia da liberdade indivi-dual, em detrimento da individualidade libertária.Para ele, “passava a ganhar força o modelo de in-telectual profissionalizado, competente e competi-tivo no mercado das ideias, centrado na carreirae no próprio bem-estar”. As ideias apresentadaspor Berman, segundo o autor, podiam interes-sar àqueles que revisavam suas trajetórias de es-querda e que buscavam novas formas de atuação,mas também eram apropriadas por quem queriaausentar-se do debate e adotar uma atitude queia do conformismo passivo à contemplação. Enfo-cando a relação entre mercado e o pensamento deesquerda, o autor propõe uma reflexão importantepara entender o lugar do intelectual na sociedadeatual, em um processo que também apresenta des-dobramentos em outros países. O pragmatismo

    pós-moderno teria contaminado os intelectuaisque, na busca pela inserção institucional, deixamde intervir no debate político.

     A grande contribuição de Ridenti, portanto, é

    o convite, até mesmo o apelo, para uma reflexãoem torno da atuação do intelectual no espaço pú-blico, nos dias de hoje. Um dos principais inte-resses que a leitura de Brasilidade revolucionária  desperta consiste na possibilidade de pensar asvárias formas de atuar na sociedade; e na existên-cia de nuances, nesta atuação, que uma interpre-tação maniqueísta não consegue dar conta. Alémde contribuir para a discussão sobre a trajetóriado pensamento político e cultural da esquerda

    brasileira, o autor convida a uma reavaliação daatitude do intelectual, não para retomar os mo-delos anteriores, mas para enfrentar, a partir dadialética passado/presente, o desafio de estabeleceralgum tipo de diálogo com a sociedade. Mais doque propor respostas, este novo livro de MarceloRidenti formula indagações, indica novos mode-los interpretativos, inquieta e instiga o leitor a, so-bretudo, repensar, também, a sua própria práticaintelectual e política.

     Andrea Maria Vizzotto Alcântara Lopes

    O

    T, v. 12, n. 23, jul.-dez. 2011, p. 217-220.