13
Os caminhos para o Renascimento Lorenzo Mammì O outono da Idade Média é um livro tão bonito, de uma escrita tão fluente e evocativa, que é fácil esquecer sua pregnância polêmica, a importância do debate em que se inseriu e as questões que contribui para levantar. Em parte, a responsabilidade é do próprio Huizinga. Vindo de uma família holandesa muito religiosa (o pai era pastor), formado em filologia indo-europeia com uma tese sobre o papel do palhaço no drama indiano antigo, pertencente a uma geração moldada pelas poéticas simbolistas, chegou à história medieval por vias transversas, mais por questão de gosto e de oportunidade que de aplicação sistemática. Ele próprio confessa, no prefácio de Ooutono, que seu impulso inicial foi a vontade de entender a pintura de Van Eyck; e no livro inteiro se percebe que, quando se trata de descrever obras, mentalidades ou costumes, a intuição estética, apesar da enorme erudição demonstrada, sempre toma a dianteira sobre a pesquisa documental detalhada. Não obstante, ou talvez justamente por isso, a obra-prima de Huizinga é um texto de referência fundamental, não apenas para se entender o período que aborda, mas também como testemunha do clima cultural em que foi escrita. Visto pela perspectiva de hoje, o livro se coloca na encru- zilhada de dois temas fundamentais, respectivamente, da historiografia dos séculos 19 e 20 e do pensamento histórico do próprio Huizinga: a ideia de Renascimento e a noção de jogo. A primeira tinha sido apresentada por Jacob Burckhardt (A cultura do Renascimento na Itália, 1860) em termos que se tornaram paradigmáticos, mas que também geraram muitas polêmicas e objeções. A discussão era especialmente animada à época em que Huizinga desenvolveu sua obra (os primeiros 40 anos do século 20) –, e o historiador holandês tem parte ativa nisso. Desembocou, mais tarde, no ensaio Renascimento e renascimentos na arte ocidental , de Erwin Panofsky (1957, mas baseado em conferências pronunciadas em 1952), que, se não resolveu o problema, pelo menos o colocou em outro patamar. A noção de jogo, por outro lado, é apenas embrionária em O outono da Idade Média, mas Huizinga a desenvolveria paulatinamente até Homo ludens (1938). Pressupunha a reformulação do campo da história cultural,

Os Caminhos Para o Renascimento

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Os caminhos para o renascimento

Citation preview

Page 1: Os Caminhos Para o Renascimento

Os caminhos para o RenascimentoLorenzo Mammì O outono da Idade Média é um livro tão bonito, de uma escrita tão fluente e evocativa, que é fácil esquecer sua pregnância polêmica, a importância do debate em que se inseriu e as questões que contribui para levantar. Em parte, a responsabilidade é do próprio Huizinga. Vindo de uma família holandesa muito religiosa (o pai era pastor), formado em filologia indo-europeia com uma tese sobre o papel do palhaço no drama indiano antigo, pertencente a uma geração moldada pelas poéticas simbolistas, chegou à história medieval por vias transversas, mais por questão de gosto e de oportunidade que de aplicação sistemática. Ele próprio confessa, no prefácio de Ooutono, que seu impulso inicial foi a vontade de entender a pintura de Van Eyck; e no livro inteiro se percebe que, quando se trata de descrever obras, mentalidades ou costumes, a intuição estética, apesar da enorme erudição demonstrada, sempre toma a dianteira sobre a pesquisa documental detalhada. Não obstante, ou talvez justamente por isso, a obra-prima de Huizinga é um texto de referência fundamental, não apenas para se entender o período que aborda, mas também como testemunha do clima cultural em que foi escrita. Visto pela perspectiva de hoje, o livro se coloca na encruzilhada de dois temas fundamentais, respectivamente, da historiografia dos séculos 19 e 20 e do pensamento histórico do próprio Huizinga: a ideia de Renascimento e a noção de jogo. A primeira tinha sido apresentada por Jacob Burckhardt (A cultura do Renascimento na Itália, 1860) em termos que se tornaram paradigmáticos, mas que também geraram muitas polêmicas e objeções. A discussão era especialmente animada à época em que Huizinga desenvolveu sua obra (os primeiros 40 anos do século 20) –, e o historiador holandês tem parte ativa nisso. Desembocou, mais tarde, no ensaio Renascimento e renascimentos na arte ocidental, de Erwin Panofsky (1957, mas baseado em conferências pronunciadas em 1952), que, se não resolveu o problema, pelo menos o colocou em outro patamar. A noção de jogo, por outro lado, é apenas embrionária em O outono da Idade Média, mas Huizinga a desenvolveria paulatinamente até Homo ludens (1938). Pressupunha a reformulação do campo da história cultural, ramo da historiografia cujo primeiro exemplo maduro, por admissão do próprio Huizinga, era, mais uma vez, o famoso ensaio de Burckhardt. Pretendo abordar aqui apenas a forma, ainda não totalmente explícita, como ela se apresenta no trabalho de 1919. Em períodos terminais, segundo Huizinga, quando grandes ciclos culturais se concluem, as convenções culturais se encontram em pleno desenvolvimento, mas já começam a perder contato com suas funções originárias. Adquirem valor em si e, por assim dizer, perdem as amarras. Assiste-se então a uma última e extraordinária floração, em que traços meramente convencionais se organizam em sistemas (“jogos”) que parecem indiferentes às conveniências políticas e econômicas reais. É evidente que a postura de Huizinga depende também do momento histórico em que ele se encontra. Atrás do outono da Idade Média se entrevê o outono da Belle Époque. Numa conferência de 1915, “Ideais históricos de vida”, o historiador holandês mostrou como a emulação de modelos históricos (César, Alexandre) determinou escolhas políticas fundamentais, a despeito dos benefícios possíveis. E, ainda que na abertura da conferência Huizinga

Page 2: Os Caminhos Para o Renascimento

defenda que não, é impossível deixar de perceber que ele está pensando não apenas nos principados medievais, mas também nas nações europeias que estavam se dilacerando nesse exato momento. Na obra sucessiva do historiador holandês, a noção de jogo foi se expandindo progressivamente, até se tornar o fundamento de toda a civilização. Em Homo ludens, ela adquire uma abrangência tão ampla que seus contornos se perdem: pouco resta que não possa ser interpretado como jogo. Nesse percurso, no entanto, Huizinga desenvolve um método de história cultural, combinando filologia, etnologia comparada, história e história da arte, que influenciou toda a historiografia posterior. História cultural e Renascimento sempre foram, desde o ensaio inauguralde Burckhardt, dois conceitos imbricados. Não é para menos: de todas as periodizações históricas, o Renascimento é a única baseada exclusivamente em dados culturais, sem nenhum grande acontecimento político que marque seus limites. Segundo Burckhardt, a sociedade italiana dos séculos 14 e 15 produzira os primeiros modelos de “homem moderno”, caracterizado pelo individualismo, pela relação desencantada com a natureza, pela posição independente em relação à religião, pelo sentido da história etc. Parecia uma descrição sólida, fundada no conceito que os próprios teóricos renascentistas tinham de si mesmos. Mas, ao se atentar aos detalhes, embaçava. Todos os traços que Burckhardt indicara como típicos do homem renascentista, tomados um por um, podiam ser encontrados em épocas anteriores. Outros aspectos marcantes descritos pelo historiador suíço, como a superstição e o gosto por alegorias complicadas, pareciam traços ainda medievais. Além disso, o Renascimento seria de fato um fenômeno apenas italiano? Como situar a extraordinária floração artística franco-flamenga, que é do mesmo período? 

O ponto de partida da obra de Huizinga é justamente essa última interrogação. No ensaio incluído na edição brasileira, Anton van der Lem liga a origem do livro a uma grande exposição de primitivos flamengos, organizada em Bruges, em 1902. É por volta dessa data que se começa a discutir a existência de um Renascimento flamengo, autônomo e concorrente em relação ao italiano (o livro de Fierens Gevaert, La Renaissance septentrionale et les premiers maîtres des Flandres [A Renascença setentrional e os primeiros mestres de Flandres], é de 1905). Huizinga escolhe o caminho oposto, e mais ousado. A questão não seria incluir a cultura franco-flamenga na Renascença, mas mostrar como a Renascença permaneceu, pelo menos no Norte da Europa, fundamentalmente medieval. À primeira vista, a posição de Huizinga não é necessariamente conflitante com a de Burckhardt, e sim complementar. Burckhardt foca sua atenção nas cidades-estados italianas; Huizinga escolhe o ducado de Borgonha, reino surgido quase do nada por capricho de um rei, última floração do feudalismo. Burckhardt acompanha a ascensão de uma nova classe dirigente de essência burguesa, mesmo quando se ornamenta de títulos nobiliários; Huizinga descreve uma aristocracia feudal se fechando paulatinamente em rituais e princípios que perderam sua função originária, e sobrevivem apenas como “jogos” magníficos. Para mostrar a mudança de mentalidade dos italianos em relação aos príncipes da Europa do Norte, Burckhardt cita a carta de

Page 3: Os Caminhos Para o Renascimento

um embaixador milanês a respeito da campanha contra os suíços de Carlos, o Temerário, último duque de Borgonha, em que o diplomata manifesta perplexidade diante de uma guerra que põe em risco a vida de nobres borguinhões contra meros camponeses, para uma conquista que quase nada acrescentaria às enormes riquezas do reino. Huizinga se interessa justamente pelas razões de Carlos, que por sinal morreu nessa campanha. O conceito central de Burckhardt é “humanismo”; o de Huizinga, “cortesia”. 

Mas a separação não é tão fácil. Visto pela perspectiva de Huizinga, até o humanismo se torna um jogo cortês; os artificialismos das cortes italianas, ao contrário, na visão de Burckhardt são artimanhas de uma nova cultura, que franqueia seu caminho dentro da cultura antiga. O próprio conceito de “Estado como obra de arte”, central no ensaio de Burckhardt, adquire outra coloração em Huizinga. Para o primeiro, correspondia à vontade de refundar a sociedade em novas bases, dispensando a tradição medieval; em Huizinga, passa a significar uma estetização da vida, que encobrisse, sem modificá-la, a feiura do real. E nesse sentido, é claro, o historiador holandês também o encontra no declínio da cavalaria medieval. 

A discussão teve outros protagonistas e outras reviravoltas. Em 1927, por exemplo, Charles Haskins publicou The Renaissance of the Twelfth Century [O Rkkenascimento do século 12], em que transferia para essa data a virada fundamental da cultura europeia. Huizinga, que em O outono da Idade Média sugere que o corte da era moderna deveria ser adiado para o século 14, num ensaio de 1935 sobre Abelardo pareceu simpatizar com a ideia de Haskins. Outras renascenças classicistas foram apontadas em época carolíngia (século 9) e otoniana (século 10). O ensaio de Panofsky tenta justamente pôr ordem nessa proliferação de renascimentos. Sua tese central, de modo muito esquemático, é que o Renascimento italiano dos séculos 14 e 15 se distingue de todas as retomadas anteriores por considerar a Antiguidade um período histórico fechado, ao qual se seguiria uma longa fase de esquecimento. Em outras palavras, a grande inovação do Renascimento não seria tanto a redescoberta do antigo, mas a invenção da Idade Média. Justamente porque um período de trevas nos separa da Antiguidade, esta deve ser abordada com método antiquário (ou arqueológico, ou filológico), que recoloque cada documento em seu contexto. A obra moderna à maneira antiga, então, porquanto imite as formas do passado, sempre trará embutida a distância que nos separa dele e que apenas idealmente pode ser transposta. No plano da iconografia, Panofsky observa que, nas renascenças anteriores do antigo (e sobretudo naquela mais consistente, do século 12), vale o que ele chama de “princípio da disjunção”: formas clássicas são reaproveitadas para conteúdos modernos (imagens de Vênus para representar Nossa Senhora ou Eva, por exemplo), enquanto os conteúdos antigos são representados em formas modernas (Alexandre como um cavalheiro medieval). Não há registro de conteúdos antigos representados em formas antigas. Isso significaria que a Antiguidade não é pensada como um todo coerente de formas e conteúdos, mas como um repertório de imagens ou narrativas que podem ser utilizadas, sob condição de serem inseridas em contextos modernos. Apenas no Renascimento do século 15 as formas antigas são recolocadas em seus contextos originais. 

Page 4: Os Caminhos Para o Renascimento

Huizinga tratara especificamente da questão num ensaio publicado pouco depois de O outono da Idade Média (“O problema do Renascimento”, 1920), em que apontava todas as dificuldades de se definir o Renascimento nos termos de Burckhardt. É um texto fundamental para a história do problema, mas o autor não chega a propor (e tampouco o fez nos escritos posteriores, pelo que sei) uma periodização alternativa claramente definida. Falta-lhe, acredito, uma definição clara de Idade Média a partir da qual se possam estabelecer continuidades e fraturas em relação à época moderna. Em outras palavras, falta-lhe a consciência, que só se estabelece a partir do ensaio de Panofsky, de que Idade Média, afinal, é uma invenção do Renascimento. Dessa forma, mesmo manifestando desconfiança por toda periodização e preferindo salientar as continuidades de uma época à outra, Huizinga acaba cedendo a uma concepção cíclica da história, como a própria imagem do outono, no título de sua obra mais famosa, torna manifesto. Mas, do ponto de vista da história da arte, e mais especificamente da arte holandesa ou franco-borguinhona do século15, a questão é outra: ela pode ser interpretada, como sugere Huizinga, como expressão de uma cultura cortês, aristocrática e cavalheiresca, na fase final de sua evolução? Aqui, de novo, será útil recorrer a Panofsky: não a Renascimento e renascimentos, mas à monografia quase contemporânea sobre a “Pintura primitiva flamenga” (fruto de um curso de 1948, publicada em 1953). Para Panofsky, a existência de uma escola borguinhona é bastante questionável: o ducado, como reino independente, teve uma vida relativamente curta (da doação a Filipe, o Audaz, em 1363, à morte de Carlos, o Temerário, em 1477) e foi composto de um conjunto variável de regiões, cada uma com características culturais próprias. Artisticamente, dois filões se cruzam na arte produzida na e para a Borgonha. O primeiro, no chamado estilo gótico internacional, tem seu centro de origem em Paris, e se manifesta sobretudo na iluminura, como as famosasLes Três riches heures du duc de Berry, iniciado pelos irmãos Limbourg (a parte dos Limbourg foi executada entre 1413-1416). Para esse filão, de uma elegância e preciosidade extenuadas, a descrição de Huizinga combina perfeitamente, e Panofsky a retoma nos conceitos gerais, ainda que sem citar o historiador holandês. Mas o outro filão, o da grande pintura flamenga de Robert Campin (hoje em geral identificado como Mestre de Flémalle), Hubert e Jan van Eyck, Rogier van der Weyden etc., deriva de uma tradição da Alemanha e dos Países Baixos, de origem bem mais burguesa e popular. Esse estilo dialoga muito mais cerradamente com a arte italiana, com que estabelece um constante intercâmbio cultural e comercial. Para dar coerência à sua leitura da pintura dos grandes holandeses (sobretudo Van Eyck) como expressão da vida de corte borguinhona e de seu caráter exasperadamente aristocrático, Huizinga é levado a colocar entre parênteses esse outro aspecto, burguês e mais próximo da produção italiana, não apenas do ponto de vista das influências, mas também o do destino das obras. Dos grandes clientes italianos dos pintores holandeses (como Portinari, que encomendou o famoso tríptico de Van der Goes, agora nos Uffizi), apenas Giovanni Arnolfini é nomeado, e por causa do famoso retrato duplo de Jan van Eyck (O Casal Arnolfini, 1434). Segundo Huizinga, esse retrato seria fruto de uma amizade de Van Eyck com Arnolfini, portanto uma obra mais íntima e menos cerimonial, como demonstraria a assinatura na parede, que o historiador interpreta como

Page 5: Os Caminhos Para o Renascimento

uma dedicatória amistosa: “Jan van Eyck esteve aqui1434”. Pesquisas posteriores comprovaram que esse retrato é, ao contrário, altamente cerimonial, podendo ser interpretado como uma espécie de documento (não estritamente legal, mas expressão formal de um compromisso) de um casamento ou de uma procuração do marido para a mulher. Na época, o casamento podia ser celebrado sem a presença de um padre, apenas pela troca de um juramento entre os cônjuges. Nesse caso, porém, era obviamente necessário produzir algum tipo de documento que atestasse o acontecimento. A obra-prima de Van Eyck seria esse documento: a escrita na parede, em caligrafia cartorial, é uma assinatura de testemunho. Pela mesma razão, no espelho convexo na parede se enxergariam, além do casal visto de costas, mais duas personagens (possivelmente o pintor e sua mulher) que serviriam de testemunhas. Mas não é necessário aprofundar a complexa simbologia dessa obra (aliás, bastante controversa): o que importa é quanto essa interpretação quase cartorial da obra, encomendada por um rico burguês, destoa da postura cortesã e aristocrata que Huizinga atribui à arte flamenga da época. O que me interessa mostrar é que a distinção entre um Renascimento italiano e uma Idade Média tardia holandesa é demasiado esquemática, e que as duas principais escolas da pintura do século 15 devem ser entendidas como um conjunto, a partir do diálogo que estabelecem entre si. O Enterro de Cristo, de Fra Angelico (Munique, Alte Pinakothek, 1438-1440), e o quadro sobre o mesmo tema de Rogier van der Weyden (Florença, Uffizi, c. 1450) oferecem um bom ponto de partida. Evidentemente, o segundo é uma reinterpretação do primeiro, como Panofsky sinalizou, e uma comparação entre os dois já foi conduzida por Giulio Carlo Argan, no segundo volume da História da arte italiana. No retábulo de Fra Angelico, todos os volumes convergem numa forma em pirâmide, cujo eixo é cons-tituí do pela figura de Cristo. As figuras em primeiro plano, o rochedo mais atrás, a floresta no fundo (com as folhas amareladas à esquerda e verdes à direita, para simbolizar uma nova era) são totalmente solidários à representação de uma noção unitária de espaço. A pirâmide visual renascentista, que na época era quase uma novidade, exige que todas as linhas perpendiculares ao plano do quadro convirjam para um ponto de fuga (que aqui significativamente coincide mais ou menos com a cabeça de Cristo), e todas as paralelas recuem segundo uma progressão calculada também matematicamente. Para que essa visão planar não gere distorções nas laterais, é necessário pensá-la como se a víssemos de longe, a partir de outro espaço. É de fato o que acontece aqui, de modo explícito, pela inserção de duas colunas laterais e a sugestão levíssima de um peitoril, como se observássemos a cena de um pórtico ou de uma varanda. Mas, sendo Fra Angelico um grande artista e um exímio retórico (foi orador oficial do papa Nicolau v), não se limita a organizar perfeitamente o espaço. Insere também uma ruptura, o inesperado buraco negro do túmulo atrás das figuras, paralelo ao plano do quadro e indiferente a qualquer perspectiva ou gradação luminosa (se excetuarmos o levedégradé do claro-escuro em seu limiar). É uma das imagens de morte mais fortes que eu conheço na história da pintura, justamente porque se insere como interrupção abrupta dentro de um mundo perfeitamente conciliado. Para entendermos a importância simbólica dessa representação unitária do espaço, podemos tomar como exemploA Virgem e o Menino com Santos, Anjos e Federico da

Page 6: Os Caminhos Para o Renascimento

Montefeltro, de Piero della Francesca, que foi discípulo de Angelico (Brera, Milão, 1472-1474). Aqui o espaço é muito mais aberto, e se dilata arquitetonicamente para as laterais e para a frente. Olhamos a cena como se estivéssemos na nave de uma igreja, de onde enxergamos a abside e o início dos braços do transepto. Mas, no alto do quadro, ainda são indicadas as cornijas das pilastras que delimitam nosso espaço de observadores, e o duque Federico (única personagem profana do quadro) se encarrega de estabelecer uma barreira entre nós e os santos com seu corpo de perfil, sua lança e suas braçadeiras. Atrás, o espaço se organiza segundo dois registros. No alto, um ovo suspenso numa concha no vão da abside estabelece um espaço abstrato, geométrico. Embaixo, os santos (na interseção dos braços da igreja) e os anjos (na abside) formam outro círculo, que encontra seu centro na cabeça da Virgem, cujo oval retoma exatamente as proporções do ovo. Essa solução deve ser aproximada à tendência neoplatônica dominante, na época, na Itália Central: as coisas adquirem significado enquanto remetem a uma forma ideal. No quadro, há uma graduação cuidadosa, que é também geração, do abstrato ao concreto, do espiritual ao mundano: no alto, a forma ideal em si; no centro da arquitetura e do quadro, sua manifestação perfeita: a encarnação, cercada pelos anjos e os bem-aventurados; finalmente, um espaço eclesial que inclui a forma pura, o círculo dos santos e nós mortais (incluindo o duque) num espaço distinto, mas contínuo. É o espaço pictórico renascentista no auge de sua densidade significativa. Vamos agora ao quadro de Van der Weyden. Foi pintado na Itália, e pertencia aos Medici. Evidentemente, é uma resposta flamenga, proposital e explícita, à estrutura do quadro de Angelico. Para começar, Van der Weyden elimina a separação entre espaço da representação e espaço do observador. A cena chega até nossos pés, e isso implica o uso de uma perspectiva dupla: frontal para os objetos distantes, de cima para baixo para os próximos. No quadro de Angelico, as quatro figuras formavam um arco de simetria perfeita. Aqui, para disfarçar a fratura entre os dois pontos de vista, o pintor insere mais elementos: a cabaça embaixo à esquerda, Maria Madalena e a pedra em diagonal do túmulo formam uma linha diagonal que se junta ao arco na cabeça de São João, enquanto o sudário, que em Angelico se estendia perpendicularmente como um tapete, aqui perde sua função estrutural. Acrescentando mais uma personagem ao grupo, a cabeça de Cristo, que em Angelico era o ápice do arco que gerava todos os outros arcos da composição, se torna o ponto de interseção entre duas diagonais rebaixadas – uma função geométrica mais complexa, mas muito menos evidente. O rochedo é cortado nas laterais, para deixar passar dois caminhos serpentinos, onde acontecem várias cenas (duas mulheres, um cavalheiro, um forte, o calvário, mais atrás uma cidade). O sepulcro, nesse contexto, perde todo impacto oratório. É apenas uma coisa entre as outras. 

O que Van der Weyden quis fazer com essa operação? Na literatura crítica da época (quase toda italiana), louvava-se nos flamengos a visão perspícua, ou seja, a capacidade de representar todos os objetos, mesmo distantes, com a mesma nitidez. Os flamengos foram também os primeiros a perceber que os objetos não se tornam mais escuros pela distância, e sim mais claros, inaugurando a perspectiva aérea, mais tarde introduzida na

Page 7: Os Caminhos Para o Renascimento

Itália por Leonardo. Mas a posição teórica do artista me parece ir além dessas inovações técnicas. O que esse quadro diz é que não existe espaço ideal, o espaço do quadro não é diferente do nosso. Panofsky aproxima essa postura da via moderna, ou filosofia moderna, desenvolvida especialmente no Norte da Europa (Ockham, Roger Bacon), que, em oposição ao platonismo italiano, afirmava que só os objetos singulares são reais. O espaço, então, é apenas o lugar onde os objetos estão, não a forma a que os objetos devem se conformar. Parece difícil filiar essa postura a uma atitude aristocrática, a uma cultura feita de convenções arbitrárias.Há outro aspecto, porém, que me interessa salientar. O espaço renascentista não é só ideia, mas também projeto. A igreja que Piero della Francesca pintou é uma igreja renascentista, análoga àquelas que arquitetos próximos à sua poética estavam construindo pela Itália afora. Veja-se, por exemplo, a igreja de Santa Maria delle Grazie (Cortona, 1485), de Francesco di Giorgio Martini, arquiteto na Urbino do mesmo Federico da Montefeltro que aparece no retábulo de Piero della Francesca. Em 1481-1482, Perugino pintou A entrega das chaves a São Pedro na Capela Sistina. Os edifícios no fundo (uma igreja e dois arcos triunfais) simbolizam o duplo poder da Igreja, tem-poral e espiritual. Trinta e cinco anos mais tarde, quando encarregado de reconstruir São Pedro, foi justamente o esquema formal dessa igreja que Bramante adotou. Um contraexemplo: A anunciação, de Jan van Eyck, da década de 1430, hoje na National Gallery de Washington. Pela primeira vez a cena é situada dentro de uma igreja. Como todos os edifícios de Van Eyck, esse também é de fantasia, ainda que construído com tal precisão arqueológica que, sustenta Panofsky, seria possível datar cada detalhe com aproximação de uma década. O estilo é eclético e se torna progressivamente mais arcaico de baixo para cima: é românico no último andar, onde se encontra o vitral com a imagem de Javé e os afrescos com as histórias de Moisés; de um estilo românico mais avançado no deambulatório; de um estilo gótico inicial, já antigo à época em que o quadro foi pintado, no térreo. Evidentemente, nenhum edifício poderia ter essas características a não ser que tivesse sido construído a partir do teto. Mas gótico e românico, em muitos quadros do círculo dos Van Eyck (por exemplo, A anunciação do Metropolitan de Nova York, já atribuída a Hubert), simbolizam respectivamente o Antigo e o Novo Testamento. Se uma diferença pode ser apontada entre esses quadros, que remeta a uma diferença entre sociedade italiana e sociedade borguinhona, talvez ela esteja nisto: a pintura italiana do Renascimento representa o espaço como deveria ser; a franco-borguinhona, pelo que pode significar. Na Itália, o espaço ideal da representação ambiciona (e muitas vezes consegue) se tornar real. Nos países do Norte, os pintores representam um espaço real, reconstruído filologicamente, mas um espaço que eles não têm o poder nem a ambição de modificar. As cidades e os edifícios que descrevem com tanta maestria continuam medievais, porque continuam medievais as estruturas sociais em que os artistas são chamados a operar – enquanto nas rápidas transformações da sociedade italiana, que Burckhardt descreve de forma magistral, os artistas exercem um papel ativo. Portanto, a relação entre o material e o espiritual, tão premente para flamengos e italianos, não pode se dar, no Norte, por uma generalização da forma, mas apenas por uma relação pontual de cada forma material com um significado que a transcenda. A

Page 8: Os Caminhos Para o Renascimento

simbologia meticulosa e quase obsessiva de Van Eyck tem justamente a função de resgatar a representação do mundo, já reduzido a coisas, de sua mera materialidade. 

Isso vale também para as obras profanas, como O casal Arnolfini. Trata-se de um espaço real, e não ideal – como sugere o fato de as linhas perpendiculares ao plano do quadro não coincidirem com o enquadramento, mas se prolongarem idealmente além dele; a presença da janela, que deixa adivinhar outro espaço, fora da caixa fechada do interior; e, finalmente, o espelho convexo (uma marca registrada de Van Eyck), que nos permite enxergar não apenas o que temos na nossa frente, mas também o que teríamos às nossas costas. Nós estamos no quarto dos Arnolfini, com a única estranheza de que, como os vampiros, não aparecemos no espelho. Embora os especialistas tenham identificado cinco pontos de fuga diferentes, a perspectiva é bastante consistente, graças à habilidade do pintor em disfarçar as incongruências pela posição dos corpos, e parece convergir para o fundo do espelho. Este, então, que tem a forma de um olho, ocupa o lugar em que se encontra, idealmente, o olho do espectador que observa o quadro (o ponto de fuga corresponde ao centro do olho do observador, na teoria renascentista). A perspectiva, na cultura artística italiana do século 15, era a estrutura arquitetônica do mundo – de um mundo idealizado, mas possível. Aqui, sem nenhuma pretensão de transformação do mundo, ela se torna um jogo conceitual; ela também é um símbolo. De fato, é um milagre que as obras de Van Eyck, tão obsessivamente detalhistas, não estilhassem em mil pedaços, cada coisa no seu canto — um milagre que só o extraordinário controle do artista sobre o equilíbrio do quadro consegue realizar; um milagre sobre o qual Huizinga escreve, em O outono da Idade Média, algumas de suas páginas mais inspiradas. As gerações posteriores (Van der Weyden, sobretudo, e mais tarde Dieric Bouts, Geertgen tot Sint Jans, Hugo van der Goes) buscam unificar suas composições por uma maior fluência rítmica e atmosférica, uma expressividade mais carregada, que renuncia ao sólido domínio da realidade de Van Eyck e retoma, até certo ponto, cadências góticas. Essa é a pintura que tanto impressionou os italianos — sobretudo Botticelli e Leonardo, por caminhos diferentes — quando o idealismo otimista do primeiro Quatrocentos começou a se desfazer. Michelangelo, por outro lado, a critica: 

Em Flandres eles pintam apenas para enganar o olho exterior, coisas que o alegram e de que não se pode falar mal, bem como santos e profetas. A pintura deles é uma pintura de coisas: argamassa e tijolos, a grama dos campos, a sombra das árvores, rios e pontes, o que eles chamam paisagem, e pequenas figuras aqui e ali. E tudo isso, embora possa parecer bom para os olhos de alguns, é feito sem razão ou arte, sem simetria e proporção, sem cuidado ao selecionar e ao rejeitar, sem substância ou verve. E, a despeito disso tudo, a pintura é melhor em Flandres do que em outros lugares. 

É significativo, porém, que oponha a ela não mais o sólido projeto construtivo de Angelico e Piero, mas algo muito mais impalpável: “A boa pintura é música e melodia que apenas o intelecto pode apreciar, e isso com grande dificuldade”.[1] De fato, a evolução da pintura flamenga depois de Van Eyck é um movimento que, ao mesmo tempo que olha para o passado, se projeta para a frente. Panofsky descreve egre-

Page 9: Os Caminhos Para o Renascimento

giamente, no último capítulo de sua “Pintura primitiva flamenga”, esse caminho pelo qual a arte holandesa buscará uma nova relação entre sensível e espiritual, não mais na ordem da transcendência, e sim na da moralidade – solução que aqui apenas se entrevê, e que só se manifestará plenamente dois séculos depois. As personagens de Rembrandt emergem da sombra não por uma iluminação transcendente, mas pela força de seu caráter. A luz que ilumina o rosto da moça de Vermeer, enquanto afina o alaúde, não vem do céu, mas é a luz de seu próprio pensamento. No século 17, já é possível conferir universalidade aos objetos singulares sem passar pela idealização formal italiana nem pela simbolização pontual da pintura borguinhona. Mais do que determinar se era medieval ou renascentista, aristocrática ou burguesa, é importante entender o papel determinante que a grande pintura flamenga do século 15 desempenhou nesse processo.   LORENZO MAMMÌ (1957) nasceu na Itália e vive no Brasil. Doutorou-se em filosofia pela USP, onde é professor de história da filosofia medieval. Sua vasta produção ensaística transita entre a música e a arte, sendo autor dos livrosVolpi (Cosac Naify, 2009) e Carlos Gomes (Publifolha, 2001). Em O que resta (Companhia das Letras, 2012), reuniu sua produção mais significativa em crítica de arte nos últimos 30 anos. Este ensaio, até então inédito, foi escrito por encomenda da editora Cosac Naify, à qual o autor e a serrote agradecem. 

[1] Francisco de Hollanda, Dialoghi Romani (Lisboa, 1548), apud Roger Fry, French, Flemish and British Art. Londres: Chaüo & Windus, 1951, p. 115.