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    Os Computadores tambm Sonham?Para uma Teoria da Cibercultura como Imaginrio

    Erick Felinto

    Resumo: Este trabalho prope a elaborao de uma teoria da cibercultura comoimaginrio tecnolgico. Pretende investigar de que modo a cibercultura se constitui emviso de mundo coerente, descrevendo algumas das principais representaes culturaisque tm cercado as tecnologias digitais. Ao mesmo tempo, sugere a constituio deuma teoria da cibercultura fundada em trs procedimentos epistemolgicos: I) a anlisedas relaes entre materialidades e imaginrios tecnolgicos, II) a arqueologia dosmeios e III) a adoo de uma viso culturalista.Palavras-Chave: cibercultura, comunicao, imaginrio tecnolgico

    No domnio do pensamento acadmico, as palavras mais sedutoras parecem ser

    freqentemente tambm as mais difceis de definir. Foi assim com a expresso ps-

    moderno, cuja popularidade entre os tericos das cincias sociais no cessou de crescer

    pelo menos at meados da dcada de 90. Falava-se exaustivamente da esttica ps-

    moderna, falava-se das sociabilidades ps-modernas, mas era impossvel evitar uma

    sensao de certa dvida quanto s reais diferenas que a ps-modernidade apresentavacom relao modernidade que lhe havia antecedido. Afinal, o ps-moderno envolvia

    uma recuperao de diversos passados e compreendia, em suas supostas poticas,

    princpios que j haviam sido erigidos nos modernismos de fins do sculo XIX e incio

    do sculo XX.

    D-se algo semelhante com o termo cibercultura, que desfruta hoje de

    significativa notoriedade nos meios acadmicos, tanto no exterior quanto em nossas

    terras tecnologicamente menos adiantadas. Contudo, a palavra parece evocar muito

    mais uma nvoa de idias, uma intuio a respeito de determinada situao cultural do

    que uma definio precisa. Minha proposta neste trabalho precisamente investigar a

    consistncia da palavra e do conceito em um contexto cultural onde vai se tornando

    cada vez mais difcil escapar s discusses sobre os problemas da cibercultura. De fato,

    ela parece estar em toda parte, de forma que no parece despropositado, como costuma

    fazer Andr Lemos, equiparar a cibercultura com a cultura contempornea. Desse

    modo, a cibercultura no seria muito mais que uma outra expresso para designar nossa

    complexa e intrigante ps-modernidade.

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    Por outro lado, deve haver algo mais na cibercultura que nos permita esboar

    uma mnima especificidade. fato que no h domnio da vida contempornea que no

    esteja, de certo modo, embebido na experincia tecnolgica. fato ainda que toda

    cultura desde sempre uma tecnocultura, como sugere Erik Davis (1999: p. 10).

    Porm, a cibercultura parece ser aquela esfera da experincia contempornea na qual o

    componente tecnolgico passa a ser pensado, reflexivamente, como o fator central

    determinante das vivncias sociais, das sensorialidades e das elaboraes estticas. Em,

    outras palavras, mais que uma tecnocultura, a cibercultura representa um momento em

    que a tecnologia se coloca como questo essencial para toda a sociedade em todos os

    seus aspectos, dentro e fora da academia.

    Pode-se argumentar que a experincia tecnolgica tem se constitudo em

    problema explcito para as sociedades ocidentais desde pelo menos a Revoluo

    Industrial. E no que tange especificamente s tecnologias comunicacionais, o

    surgimento dos meios de massa converte o tema da comunicao em questo central

    desde meados da dcada de 40. Nesse sentido,A Dialtica do Esclarecimento (1947),

    de Adorno e Horkheimer, foi uma obra emblemtica daqueles instantes iniciais em que

    a comunicao massiva se constitua como fora social determinante. Pouco mais tarde,

    sero os escritos de McLuhan que buscaro configurar, de modo muito mais afirmativo,

    as transformaes introduzidas na sociedade pelas tecnologias de comunicao. Pode-

    se ainda afirmar que os pensadores da cibercultura no fazem muito mais que reeditar as

    posies tericas representadas por tericos como Adorno e McLuhan1.

    Todavia, por um lado, vivemos hoje um momento de inaudito fascnio com o

    desenvolvimento dos meios de comunicao. A miniaturizao das tecnologias de

    comunicao, bem como sua crescente mobilidade, presentes em aparatos como

    telefones celulares, palmtops e notebooks tornaram a comunicao mediada um

    fenmeno to ubquo que j no mais possvel escapar do mandato da comunicao.Temos de nos comunicar sempre, com cada vez mais freqncia e eficcia. Como

    sugere Sfez, todas as tecnologias de vanguarda enrazam-se num nico princpio: a

    comunicao (1994: 21). A cibercultura representa, nesse sentido, o instante supremo

    de realizao da comunicao tecnolgica: sem limites, sem fronteiras, sem rudos

    uma comunicao total. Se fosse apenas isso, teramos de concluir que a singularidade

    da cibercultura se reduz a um problema de grau em relao aos momentos tecnolgicos

    1 Trata-se, naturalmente, do velho debate entre apocalpticos e integrados analisado por Umberto Ecoem idos dos anos 70 (Cf. Eco, 1987).

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    anteriores. E de fato, diversos estudos recentes, comoWhen Old Technologies were

    New (1988) ou Haunted Media (2001) tm envidado esforos no sentido de mostrar que

    no somos a primeira gerao a maravilhar-se com as rpidas e extraordinrias

    mudanas nas dimenses do mundo e dos relacionamentos humanos nele

    compreendidos como resultado de novas formas de comunicao, ou mesmo a primeira

    gerao a ser surpreendida pelas alteraes que essas mudanas ocasionam nos padres

    regulares de nossas vidas. Se nossa experincia prpria nica em detalhe, sua

    estrutura caracteristicamente moderna (Marvin, 1988: p. 3).

    Por outro lado, contudo, tambm possvel marcar uma diferena ontolgica

    da cibercultura em relao a perodos precedentes. Essa diferena se radica napropalada passagem do paradigma analgico para o digital. A cibercultura assinala

    sua especificidade com base nesse novo modelo tecnolgico, cujas caractersticas

    seriam inteiramente distintas do modelo anterior. Para Lev Manovich, por exemplo,

    essa transformao envolve, em ltima instncia, a traduo de toda mdia existente em

    dados numricos acessveis por meio de computadores (Cf. 2001: p. 20). Temos a, de

    fato, um dado essencial: na cibercultura, o valor supremo a informao representada

    numericamente. Em outras palavras, a cibercultura promoveu uma radicalinformatizao do mundo uma viso na qual toda a natureza, incluindo a

    subjetividade humana, pode ser compreendida como padres informacionais passveis

    de digitalizao em sistemas computadorizados.

    O mapeamento do genoma humano em computadores que desfiam as seqncias

    genticas em estruturas binrias constitui o talvez o melhor exemplo desse processo de

    informatizao. nesse sentido que temas como o do ps-humanismo representam

    desdobramentos diretos da viso de mundo cibercultural: se o homem pode ser

    traduzido em partculas de informao discretas, ento por que no seria possvel

    aperfeio-lo atravs da manipulao consciente dessas mesmas informaes? As novas

    biotecnologias encontram-se, assim, com o campo das novas tecnologias

    computacionais. A cibercultura a de um universo no qual cada tomo e partcula se

    traduzem efetivamente em informao e comunicao. Diante dessa situao, no de

    espantar a proliferao de conceitos que atravessam reas to distintas como a gentica,

    as cincias sociais e as cincias computacionais. Um desses conceitos toma corpo na

    estranha palavra meme. Cunhado pelo geneticista Richard Dawkins em seu livroThe

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    Selfish Gene (1976)2, o termo designa uma unidade de informao que se multiplica de

    crebro em crebro ou entre quaisquer outros sistemas de armazenamento de

    informao.

    Essa espcie de conceitos polivalentes tende a ser comum num domnio como o

    da cibercultura, que em muitos aspectos representa uma encarnao do antigo sonho de

    uma characteristica universalis, de um cdigo capaz de traduzir toda a realidade numa

    s linguagem. A informao , nesse sentido, um conceito-chave da cibercultura, assim

    como de certas interpretaes contemporneas das fundaes do cosmos fsico. Nessas

    interpretaes, um cdigo informacional universal subjaz estrutura da matria, da

    energia, do espao-tempo na verdade, de tudo o que existe. O cdigo instanciado em

    autmatos celulares, unidades elementares que podem ocupar dois estados: ligado ou

    desligado (on or off) (Hayles, 1999: p. 11). Desse modo, o digitalismo constitui o

    instrumento unificador da viso de mundo cibercultural. Se Lvy Strauss enxergava o

    binarismo como estrutura bsica de funcionamento da mente humana, a cibercultura ir

    erigi-lo como novo idioma universal da sociedade tecnolgica.

    Mas, afinal, que tipo de definio poderia nos ajudar a conquistar uma viso

    mais precisa a respeito da cibercultura? Segundo Andr Lemos, ela se constitui

    essencialmente como cibersocialidade, ou seja, uma esttica social alimentada pelo

    que poderamos chamar de tecnologias do ciberespao (2002: p. 95). Contudo, essa

    definio se limita a abarcar os impactos sociais gerados pelas formas de comunicao

    engendradas no espao da rede mundial de computadores. O prprio pesquisador

    reconhece, em diversos momentos, que a cibercultura ultrapassa largamente esse

    domnio, ainda que seja inegvel a importncia de seus vnculos com o conceito de

    ciberespao. A presena do prefixo ciber em diversas outras palavras em voga de

    cibersexo a ciberarte indicativa do carter difuso que a cibercultura possui na

    contemporaneidade.Que categoria poderia, portanto, unificar formas de sociabilidade3,

    representaes sociais e estticas? Arriscamo-nos a responder com a categoria de

    imaginrio. O imaginrio, explica Hlne Vdrine, aquilo que trabalha, do interior,

    todos os sistemas e os obriga a afinar seus conceitos, quer se trate do simblico, do

    esttico, do conhecimento e de seus prolongamentos dirigidos esttica e poltica. Ele

    2 Para uma til introduo aos conceitos de meme e memtica, ver Blakmore (1999). No coincidncia

    que a internet constitua uma das mais ricas fontes de informao sobre a noo de meme. Umaconsulta com a palavra no Google gerou cerca de 169 milhes de resultados!3 Ou socialidade, como sugere Maffesoli (Cf. Lemos, 2002: p. 88).

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    se encontra, portanto, no centro de todos os dispositivos de saber (1990: p. 6). Fora

    social central, condio inevitvel da vida em sociedade (op. cit.: p. 10), o imaginrio

    se encontraria na fundao de saberes, prticas e representaes sociais. A

    complexidade e abrangncia da noo so, ao mesmo tempo, sua bno e maldio.

    Bno porque permite explicar fenmenos como o de cibercultura sem eliminar

    nenhuma de suas dimenses possveis; maldio porque ele nos obriga a continuar

    transitando em um territrio nebuloso, de contornos imprecisos e de cientificidade algo

    frouxa.

    J houve poca, com efeito, em que a noo de imaginrio desfrutava de maior

    popularidade acadmica. Os trabalhos de Gilbert Durand e Michel Maffesoli foram de

    importncia capital para essa difuso do conceito, que parece ter encontrado o pice de

    sua acolhido em meados dos anos 70. desse perodo que data uma outra obra cujo

    impacto tambm no foi desprezvel. EmA Instituio Imaginria da Sociedade, a

    partir de posies diferentes das de Durand, Cornelius Castoriadis afirmava com certa

    ousadia: O imaginrio de que falo no imagem de. criao incessante e

    essencialmente indeterminada (social-histrica e psquica) de figuras/formas/imagens, a

    partir das quais somente possvel falar-se de alguma coisa. Aquilo que denominamos

    realidade e racionalidade so seus produtos (1975, 1995: p. 13)4.

    Hoje possvel notar certo arrefecimento no interesse pelos estudos sobre o

    imaginrio. No entanto, precisamente no mbito dos estudos sobre cibercultura ou as

    feies tecnolgicas da sociedade contempornea, o imaginrio reaparece como

    conceito importante, ao lado de vrias outras noes que lhe so correlatas, como

    mito, metfora e fantasia. Ele adquire carter regional na expresso

    imaginrio tecnolgico, de uso corrente em autores como Sfez, (1996), Ferrer (1996),

    Lemos (2002) ou Rdiger (2002). Em todos esses autores, um imaginrio

    tecnolgico uma espcie de fora social que projeta sobre a tecnologia determinadasimagens, expectativas e representaes coletivas. A cibercultura poderia, assim, ser

    definida como um imaginrio tecnolgico fecundado a partir do paradigma (e viso de

    mundo) digital. Nesse imaginrio, a relao que se estabelece com o componente

    tecnolgico seria definida mais ou menos nos seguintes termos: qualquer tecnologia

    representa uma inveno cultural, no sentido que as tecnologias trazem luz um mundo;

    elas emergem a partir de condies culturais particulares e, por sua vez, ajudam a criar

    4 A primeira data a da primeira edio francesa. A segunda a da edio brasileira utilizada.

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    novas situaes culturais e sociais (Escobar, 2002: p. 56). O imaginrio tecnolgico

    compreende, portanto, os processos por meio dos quais as caractersticas, projetos e

    sonhos de determinada poca e sociedade se plasmam em aparatos materiais, bem como

    o impacto que esses aparatos ensejam, uma vez convertidos em realidades do cotidiano,

    na imaginao coletiva da cultura no seio da qual foram concebidos.

    certo que no campo desse imaginrio, qualquer espcie de recorte seria

    inteiramente artificial. Contudo, com finalidade exclusivamente metodolgica, seria

    possvel sugerir a existncia de trs domnios distintos nos quais se poderia estudar o

    imaginrio da cibercultura: 1) o domnio das comunicaes, prticas e vises sociais

    envolvendo as tecnologias digitais, 2) o domnio das representaes ficcionais nas quais

    se pode observar a presena de elementos (tropos, mitemas etc) caractersticos de uma

    viso de mundo cibercultural e 3) o domnio das apreenses tericas a respeito do

    fenmeno cibercultura. Enquanto o primeiro domnio envolve o estudo dos modos

    como se imaginam e realizam as interaes tecnolgicas, bem como as imagens sociais

    do tecnolgico (por exemplo, na publicidade), o segundo implica a anlise de filmes,

    narrativas ficcionais (por exemplo, contos ou romances de fico cientfica) ou

    videogames, e o terceiro abarca a investigao crtica das elaboraes tericas, de modo

    a nelas apontar as repercusses do imaginrio tecnolgico.

    De fato, se levamos a srio tal conceito, somos forados a reconhecer que

    nenhum campo da cultura, mesmo o da apreenso conceitual, encontra-se livre da

    influncia do imaginrio. Pelo contrrio, se ele realmente est nocentro de todos os

    dispositivos de saber, seu impacto no pensamento terico no pode ser minimizado. A

    bem da verdade, no muito difcil detectar as repercusses desse imaginrio, no qual

    freqentemente se mesclam representaes cientficas e religiosas, em autores como

    Pierre Lvy ou Michael Heim, apenas para citar dois nomes. A maneira como se

    configuram as noes de inteligncia coletiva em Lvy (1998) ou de uma ontologiaertica do ciberespao em Heim (1993) no deixa dvidas quanto ao papel do

    imaginrio tecnolgico nas recenses crticas da cibercultura.

    Por outro lado, essa relao entre reflexo e imaginrio se torna ainda mais

    complexa e inextricvel numa cultura onde a realidade cotidiana, a teoria e a fico

    parecem convergir. Trata-se de uma idia hoje bastante difundida, que encontramos em

    uma mirade de autores (Cf. Bukatman, 1993; Shaviro, 2003; Haraway, 2004;

    Baudrillard, 1981). A tecnocultura hiper-moderna em que vivemos j seria toextraordinria e sedutora que no caberia mais traar uma linha ntida de separao

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    humana. O agudo interesse contemporneo pelo tema da inteligncia artificial

    provavelmente desagradaria o autor de Du Mode dExistence des Objects Techniques

    (1958), para quem a tecnologia est inextricavelmente conectada ao mundo da

    experincia humana, e, portanto, inteiramente dependente de sua vital relao com o

    homem.

    Esse retorno do reprimido, essa manifestao de um inconsciente tecnolgico

    (Cf. Rutsky, 1999: p. 134) no seio da nossa ps-modernidade no poderia deixar de

    ser perturbador. Mas para muitos observadores atentos5, no resta dvida de que a

    cibercultura se constitui em uma espcie de religio informtica na qual os termos

    communicare e religare se encontram intimamente conectados. Seus discursos se

    estruturam em torno de pares de oposio, como corpo-mente, material-imaterial,

    unidade-multiplicidade, romantismo-iluminismo. Assim fazendo, reproduz a lgica do

    digitalismo informacional que, como sugiro, encontra-se em sua base. Muitas das

    narrativas da cibercultura podem ser classificadas com base em esquema que propus

    anteriormente6, segundo a dualidade entre corpo e conscincia.

    Conscincia Corpo

    1.

    imagens de expanso

    2.imagens de (re)construo1.

    imagens de desmaterializao

    2.imagens de hibridao

    Neste esquema, enquadram-se, por exemplo, os discursos que anunciam o surgimento

    de um novo tipo de conscincia conectada, capaz de expandir-se pela rede sem limites

    (uma inteligncia coletiva) ou reelaborar vontade suas marcas identitrias (Cf.

    Turkle, 1997). Por outro lado, o corpo tambm se torna malevel, podendo conjugar-se

    matria inorgnica de modo a transformar-se em ciborgue (Cf. Haraway, 2001) ou

    simplesmente desaparecer, j que o fundamental, na viso de mundo digitalista, a

    mente convertida em padres informacionais (Cf. Hayles, 1999).

    Porm, essa classificao corre o risco de obscurecer o fato de que o imaginrio

    tecnolgico contemporneo de natureza essencialmente espiritualista. O uso do termo

    5 A quantidade de trabalhos que refere essa associao entre cibercultura, mito e religiosidade cresce acada dia. Apenas para se ter uma idia, podemos citar Wertheim (1999), Davis (1998), Fisher (2004),Alonso & Arzoz (2002), Mosco (2004), Breton (2000) e Zalesky (1997).6

    Em A Religio das Mquinas (2005), esp. os captulos Tecnognose: tecnologias do Virtual, Identidadee Imaginao Espiritual e Por uma Crtica do Imaginrio Tecnolgico: Novas Tecnologias e Imagensda Transcendncia.

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    gnosticismo7 por autores como Davis (1998) e Martins (1996) bastante apropriado,

    no sentido de que a lgica da tecnocultura dualista e anseia por formas de

    transcendncia corporal e unidade mstica. Para Martins, por exemplo, as propostas de

    Haraway sobre a figura do ciborgue no esto muito distantes do antigo sonho gnstico

    de transcender a dispora dos seres (1996: p. 191). Esse impulso em direo

    unidade, caracterstica central das narrativas digitais, segundo Richard Coyne, toma

    as tecnologias digitais como instrumentos para realizar uma espcie de comunicao

    total. Aqui, deve-se entender a expresso em um de seus sentidos mais originrios

    (communicare): unir, tornar comum. Acredito que o mito da comunicao total

    constitua a grande narrativa organizadora em torno da qual se desenrolam todas as

    outras fantasias ancilares da cibercultura. Esse mito implica a idia da desapario de

    todo obstculo ou materialidade no processo de comunicao, inclusive do prprio

    corpo. Envolve ainda noes como imediatez, transparncia e transcendncia. Indo

    alm de toda forma de comunicao simblica, o sonho da cibercultura engendrar uma

    espcie de comunho mstica, na qual a prpria mdia desaparea e a representao se

    torne apresentao. Tais narrativas implicam o que Grusin descreve como tropo da

    desmaterializao, que marginaliza o mundo da prtica dos contextos materiais,

    humanos e tecnolgicos (Coyne, 2001: p. 68).

    O paradoxo dessa aspirao que um processo de tal natureza, eliminando

    diferena e distncia, no constitui efetivamente aquilo que entendemos por

    comunicao. Sem diferena, sem alguma espcie de rudo, sem alguma forma de

    mediao (mesmo a linguagem), no pode existir comunicao. por essa razo que o

    mito da comunicao total se traduz, no fim das contas, numa verso tecnologizada do

    tema da unio mstica (unio mystica). Nesse sentido, todo o entusiasmo da cibercultura

    com os futuros possveis, todo seu fascnio com os discursos projetivos e expectantes se

    traduz, de novo paradoxalmente, numa espcie de retorno ao Paraso perdido, queleestado de completude do sujeito integrado holisticamente ao resto do mundo. Trata-se

    de buscar o repouso definitivo no grande mar indistinto do Ser, livre das dores e

    angstias desse mundo material e temporal.

    Walter Benjamin identificava esse desejo de retorno origem a uma

    temporalidade mtica sem conflitos ou lutas de classes no imaginrio coletivo que as

    7 Gnosticismo a expresso que se usa para designar um conjunto de religies de mistrios que floresceu

    por volta dos sculos I e II d.C. Todas eram de natureza dualista, associando a matria com o pecado e omal, ao passo que a salvao s podia ser obtida atravs de um conhecimento secreto (gnosis) voltado transcendncia espiritual do homem.

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    estudos de recepo, anlise do discurso, anlise da imagem, etc) tem operado a partir

    de um paradigma hermenutico. Entretanto, em trabalhos recentes como os de Hans

    Ulrich Gumbrecht, Friedrich Kittler e Vivian Sobchack assistimos a uma recuperao e

    aprofundamento de certa corrente de pensamento eminentemente materialista, j

    detectvel em autores como Benjamin, Simmel, Derrida e McLuhan (lembremos: o

    meio a mensagem). Em The Scene of the Screen, por exemplo, Sobchack adverte

    que toda tecnologia sempre historicamente determinada, no apenas por sua

    materialidade, mas tambm por seu contexto poltico, econmico e social. Por outro

    lado, a tecnologia ainda incorporada e vivida pelos seres humanos que se engajam

    com ela dentro de uma estrutura de sentidos e metforas na qual as relaes sujeito-

    objeto so cooperativas, co-constitutivas, dinmicas e reversveis (1994: p. 85). O

    estudo das interfaces e das materialidades tecnolgicas, que adquire importncia

    crescente no contexto da cultura digital, dever nos auxiliar, nos prximos anos, a

    entender melhor nossas relaes com a tecnologia e suas imagens e usos sociais.

    2) A Arqueologia das Mdias

    A crescente popularidade de pesquisas que se debruam sobre a recepo social

    de tecnologias anteriores, como o telgrafo ou o rdio (Cf. Marvin, 1988; Sconce, 2001;

    Kittler, 1999), parece indicar uma nova tendncia no campo dos estudos de mdia. Em

    um livro cujo subttulo enuncia uma arqueologia da audio e da viso por meios

    tecnolgicos, Siegfried Zielinski busca elaborar uma histria descontnua e

    fragmentria da mdia projeto, portanto, bastante diverso dos tradicionais percursos

    evolutivos que marcavam a viso moderna da tcnica. Seu objetivo revelar

    momentos dinmicos nos quais floresa a heterogeneidade no registro arqueolgico

    miditico para, desse modo, entrar em uma relao de tenso com vrios momentos dopresente, relativiz-los e torn-los mais decisivos (2006: p. 11).

    As arqueologias miditicas tm sido fundamentais para repensarmos nossas

    relaes com as tecnologias, bem como as conexes que cada situao histrico-cultural

    estabelece com determinados sistemas tecnolgicos. Por outro lado, a partir dessa

    historicizao das mdias, tornamo-nos capazes de lanar um outro olhar, mais

    perspectivado e isento, sobre nossa contemporaneidade tecnolgica. Como arrisca

    Jonathan Crary a respeito de sua tentativa de identificar as condies de possibilidadeda emergncia histrica do olhar atento moderno, bastante evidente que a

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    arqueologia dessas condies sinnima da pr-histria de nosso prprio presente e

    seus mundos tecno-institucionais (2000: p. 10). No horizonte de uma teoria da

    cibercultura como imaginrio tecnolgico, a arqueologia das tecnologias de

    comunicao fundamental para entender, tambm, como certas representaes

    culturais se repetem ou atualizam numa relao de constante dilogo e retomada do

    passado.

    3) A Adoo de uma Viso Culturalista

    Investigar o imaginrio tecnolgico contemporneo exige que adotemos, antes

    de tudo, aquilo que chamo de uma viso culturalista. Em outras palavras, preciso

    partir do princpio de que os vrios discursos e representaes sociais sobre a

    cibercultura constituem uma totalidade cultural coerente. Quando digo coerente, no

    quero dizer sem contradies. Trata-se de enxergar a cibercultura e toda a mirade de

    fenmenos que lhes so associados, em seus aspectos econmicos, sociais, tecnolgicos

    e comunicacionais, como um sistema dotado de sentido e dirigido para determinadas

    finalidades. A lgica desse sistema, ainda que possa nos parecer freqentemente

    contraditria e paradoxal, no implica necessariamente a liquidao de toda

    racionalidade, mas antes a utilizao de formas de racionalidade diferentes e mais

    adequadas ao contemporneo (Calabrese, 1988: p. 11). A cibercultura, se efetivamente

    constitui um fenmeno em convergncia com a epistemologia prpria dos tempos em

    que vivemos, deve nos apresentar feies lgicas diversas daquelas a que a

    modernidade nos acostumou. Meu emprstimo da frase de Omar Calabrese no

    gratuito. Na verdade, o projeto de investigar a cibercultura como uma totalidade

    cultural se aproxima em muitos pontos da proposta do terico ao analisar a

    contemporaneidade como expresso de uma sensibilidade neobarroca. Trata-se deinvestigar certa esttica social, por meio de um olhar que se prope enxergar a

    cibercultura inteira, em maior ou menor grau, em cada um de seus aspectos ou produtos

    (Calabrese, 1988: p. 10). Essa perspectiva que chamo de culturalista tambm

    convergente com muitos pressupostos dos atuais cultural studies, em sua valorizao

    dos elementos da cultura popular e massiva e sua abordagem transdisciplinar,

    especialmente nos casos em que seu foco recai sobre temas e questes tecnolgicas (Cf.

    Sconce, 2001).

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    Como novssimo campo de estudos, a cibercultura tem certamente muito a

    oferecer comunicao. Contudo, sua complexidade e amplitude iro exigir dos

    pesquisadores cada vez mais flexibilidade e desenvoltura em relao a diversas

    disciplinas e saberes. Como imaginrio, a cibercultura nos oferece um vasto repertrio

    de sonhos e vises utpicas ou distpicas. Mas nem todas as utopias so benfazejas.

    Breve, teremos de escolher quais desses sonhos realmente valem a pena sonhar.

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