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Organização, Recursos Humanos e Planejamento OS DESAFIOS ÉTICOS NAS - ORGANIZAÇOES MODERNAS Eugêne Enriquez Professor e Diretor do DEA e do Curso de Doutorado em Sociologia da Universidade de Paris VII, Diretor Adjunto do Laboratório de Mudança Social da Universidade Paris VII. Conferencista na EAESP/FGV no 2º semestre de 1996. RESUMO: O reaparecimento das preocupações éticas traduz o profundo mal-estar de nossas sociedades em conseqüência do triunfo da racionalidade instrumental, que tende a fazer dos seres humanos objetos manipuláveis. Esta perversão da racionalidade manifesta-se particularmente nas empresas que atualmente procuram integrar a preocupação ética dentro de seu funcionamento. Pode-se constatar que, agindo desta forma, elas têm como objetivo, na maior parte das vezes, desenvolver um forte consenso em torno de seus próprios ideais tanto da parte de seus membros quanto do conjunto do corpo social. Devemos nos perguntar quais são os verdadeiros desafios éticos com os quais as organizações modernas se confrontam. Com este objetivo, são revistos os conceitos de ética da convicção, da responsabilidade e da discussão. Uma quarta forma de ética, a ética da finitude, é vislum- brada. As organizações podem lhe dar um lugar? A questão merece, em todo caso, ser formulada. ABSTRACT: The reappearance of ethical concems reflects the profound disquiet in our societies in the wake of the triumph of instrumental rationality, with its tendency of making human beings into manipulatable objects. This perversion of rationality finds its expression particularly in companies, in spite of the fact that they are attempting to integrate a concem for ethics into their functioning at this time. It can be observed that, in doing this, their goal is most frequently to develop a strong consensus around the ideais from which they take their inspiration, both from their members and from the social body as a whole. We must ask what are the real ethical issues that confront modem organizations. To this end, the ethics of conviction, of responsability and of discussion are reviewed here. A fourth form of ethics, the ethics of finitude are considered. Can organizations make a place for this ethics? The question is in any case worth asking. KEY WORDS: ethical issues, rationality, modem organizations, responsabilities. PALAVRAS-CHAVE: desafios éticos, racionalidade, organizações modernas, responsabilidades. 6 RAE - Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 37, n. 2, p, 6-17 Abr./Jun. 1997

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Organização, Recursos Humanos e Planejamento

OS DESAFIOS ÉTICOS NAS-ORGANIZAÇOES MODERNAS

Eugêne EnriquezProfessor e Diretor do DEA e do Curso de Doutorado em

Sociologia da Universidade de Paris VII, Diretor Adjunto doLaboratório de Mudança Social da Universidade Paris VII.

Conferencista na EAESP/FGV no 2º semestre de 1996.

RESUMO: O reaparecimento das preocupações éticas traduz o profundo mal-estar de nossas sociedades emconseqüência do triunfo da racionalidade instrumental, que tende a fazer dos seres humanos objetos manipuláveis.Esta perversão da racionalidade manifesta-se particularmente nas empresas que atualmente procuram integrar apreocupação ética dentro de seu funcionamento. Pode-se constatar que, agindo desta forma, elas têm comoobjetivo, na maior parte das vezes, desenvolver um forte consenso em torno de seus próprios ideais tanto da partede seus membros quanto do conjunto do corpo social. Devemos nos perguntar quais são os verdadeiros desafioséticos com os quais as organizações modernas se confrontam. Com este objetivo, são revistos os conceitos deética da convicção, da responsabilidade e da discussão. Uma quarta forma de ética, a ética da finitude, é vislum-brada. As organizações podem lhe dar um lugar? A questão merece, em todo caso, ser formulada.

ABSTRACT: The reappearance of ethical concems reflects the profound disquiet in our societies in the wake of thetriumph of instrumental rationality, with its tendency of making human beings into manipulatable objects. Thisperversion of rationality finds its expression particularly in companies, in spite of the fact that they are attempting tointegrate a concem for ethics into their functioning at this time. It can be observed that, in doing this, their goal ismost frequently to develop a strong consensus around the ideais from which they take their inspiration, both fromtheir members and from the social body as a whole. We must ask what are the real ethical issues that confrontmodem organizations. To this end, the ethics of conviction, of responsability and of discussion are reviewed here.A fourth form of ethics, the ethics of finitude are considered. Can organizations make a place for this ethics? Thequestion is in any case worth asking.

KEY WORDS: ethical issues, rationality, modem organizations, responsabilities.

PALAVRAS-CHAVE: desafios éticos, racionalidade, organizações modernas, responsabilidades.

6 RAE - Revista de Administração de Empresas São Paulo, v. 37, n. 2, p, 6-17 Abr./Jun. 1997

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social em seu conjunto. Claro que este proces-so de depreciação não significa que todas es-sas formas sociais sejam totalmente rejeitadas;simplesmente, elas não parecem ser capazesde cumprir sua missão, que dirá de defini-lade maneira precisa.

O mal-estar é generalizado; sendo reforça-do pela ascensão do individualismo e, portan-to, por um voltar-se sobre si mesmo e sobre osvalores privados, pela impossibilidade de se re-presentar o futuro e pelo desejo correlato de seviver intensamente o presente (culto do efême-

ro), pela formação de "nichosA partir do momento ecológicos'" ou de "tribos" 2

nas quais os indivíduos ten-tam reconstituir modos de so-ciabilidade intensa até o ins-tante em que esses lugares nãoestejam mais em condições deatender seus desejos, seja pelaperda do sentido da transcen-dência ou pela clivagem en-tre as esferas tecno-econômi-ca, política e cultural ...3

De nossa parte, pensamosque o estudo da racionalida-de ocidental e seu impacto écapaz de esclarecer a dinâmi-ca social atual. Afirmamos,de imediato, que a racionali-dade ocidental triunfou nomundo moderno em sua for-ma perversa através da racio-nalidade instrumental.' O de-senvolvimento da razão foiacompanhado no séculoXVIII pelo renascimento da

paixão e do valor a ela atribuído.A razão triunfante não pode se instalar sem

efeitos perversos senão respeitando a seguintecondição: admitir que ela é capaz de se colocara serviço das paixões mais aberrantes ou então,para não cair nesse reverso, ser contrabalançadapela força do fluxo emocional. Com efeito, arazão é essencialmente universalista. O indiví-duo pensante é, portanto, uma entidade abstra-ta e nenhuma distinção é observável entre eles.Cada ser humano, enquanto indivíduo dotadode razão, é - ou deveria ser - estritamentesemelhante aos outros. A interioridade de cadasujeito, a alteridade irredutível ao outro, a cul-tura específica na qual vivem e agem não de-vem ser levadas em consideração. É somente oreconhecimento do poder das paixões e de inte-

A ética não é um fiacre que se pode man-dar parar para subir ou descer à vontade emfunção da situação.

Max Weber

O homem das civilizações tardias e de lu-cidez declinante será, a grosso modo, um in-divíduo mais frágil.

Nietzsche

O termo ética, anteriormente reservado aomais árduo labor filosófico e praticamente des-conhecido do grande público,apareceu com força na lingua-gem e na prática das organi-zações e instituições modernas.A inflacionada utilização des-ta noção pode ser considerada,à primeira vista, como resul-tante dos efeitos da moda. Noentanto, quando se examinacom atenção o movimento dopensamento e da ação, que dáà ética um valor essencial, nãose pode deixar de considerar deque se trata, por um lado, deum sinal de mal-estar profun-do que afeta a sociedade oci-dental e, de outro, uma tenta-tiva de tratar desse mal, querprocurando transformar o sin-toma em sinal de cura, querbuscando descobrir suas raízese seus significados. Este textotem por objetivo mostrar quesomente a segunda abordagempermite compreender as razõespelas quais a questão ética tomou-se uma ques-tão central em nosso tempo e a que ponto elacondiciona o futuro.

em que o indivíduoé reconhecido como

um sujeito dedireitos, ele entra,ao mesmo tempo,

em competiçãocom os outros que

podem fazerprevalecer sua

eficácia econômicasobre o mercado debens e de serviços

ou sua vontadepolítica sobre o

mercado dos votos.

o MAL-ESTAR EM NOSSASOCIEDADE E A ÉTICA

1. DUVIGNAUD, J. UI solidarité. Paris:Fayard, 1986.Iniciamos o assunto afirmando que nossas

sociedades, assim como as instituições e as or-ganizações que as compõem, não mais se apre-sentam, individual ou coletivamente, como le-

2. MAFFESOLl, M. t» temps des tribus.Paris: Méridiens Klincksieck, 1988.

3. BELL, D. Les contradictionsculturelles du capitalisme. Paris:P.U.F.,1979.gítimas. A mesma desconfiança é colocada

também com relação ao Estado, consideradoincapaz de propor um grande projeto e de ga-rantir o desenvolvimento econômico e socialdas principais instituições educativas, terapêu-ticas e carcerárias que asseguram a regulação

4. Em um texto anterior, L' identificationcomme processus d'intégration/exclusionIn: MAPPA, S. L' Europe des douze et lesoutres, Paris: Karthala, 1992, analisamosmais completamente as conseqüências daracionalidade ocidental.

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5. Tentamos analisar a emergência daperversão em nossos estudos Le pouvoiret la mor! (1973) e Le gardien des clés(1979), reproduzidos em Les figures dumaitre. Paris: Arcantére, 1991, comotambém em nossa obra De la horde à I 'Etat. Paris: Gallimard, 1983.

6. ENRIQUEZ, E. L'entreprise comme lieusocial: un colosse aux pieds d'argile 1fT.SAINSAULlEU,R. L'entreprise, une affairede société, Paris: fondation Nationale desSciences Politiques, 1991.

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resses divergentes que assinala a existência deum eu e de um ele, de uma história particular,de uma cultura que possui traços singulares.

Assim, se a paixão é esquecida ou reprimi-da, o problema da alteridade dos homens e dasculturas é aniquilado. Ora, durante todo o sé-culo XIX e ainda mais no século XX, operou-se uma dissociação muito clara entre razão eemoção. O resultado não se fez esperar: o mun-do criado foi aquele que, em nome da razão (esomente em seu nome), manifestava as paixões,passando a assumir um aspecto ainda maisatuante, visto que o silêncio no qual elas operam(porque elas não têm mais o direito de aparecerpublicamente) deixa intacto o seu poder arcaico.

Poderíamos fazer o mesmo diagnóstico noque se refere à paixão dissociada da razão. Apaixão termina em paranóia, assim como arazão em perversão. Mas deixemos de lado aprimeira. O fato marcante do século XX foi aobrigação, não só para as sociedades ociden-tais mas também para todas aquelas que a ado-taram em seu modo de vida, de se identifica-rem para poderem continuar seu desenvolvi-mento ou simplesmente sobreviverem com estaracionalidade dissociada da paixão e negadorade toda subjetividade. É necessário, entretan-to, lembrar que o triunfo da razão é um ele-mento indispensável tanto para a instauraçãodo mercado .quanto para a construção demo-crática. Com efeito, a partir do momento emque o indivíduo é reconhecido como um sujei-to de direitos entra, ao mesmo tempo, em com-petição com os outros que podem fazer preva-lecer sua eficácia econômica sobre o mercadode bens e de serviços ou sua vontade políticasobre o mercado dos votos. A democracia in-troduz uma ordem instável que resulta sem-pre - na teoria - no estabelecimento de umregime harmonioso. Para que tal projeto serealize é necessário que a racionalidade instru-mental seja subordinada à racionalidade dosfms. Colocando de um outro modo, os cida-dãos podem se perguntar por que e não so-mente como. Assim, a supremacia da racio-nalidade traduziu-se pela racionalidade domercado (e do capitalismo) sobre os valoresdemocráticos.

Atualmente, esse modelo de desempenho,que esteve durante um tempo em concorrên-cia com outros, como o da honra, o do prestí-gio e o da fidelidade, mas que caracterizou aexpansão do capitalismo ocidental, reina ab-soluto. Pede-se a cada indivíduo que ele se tor-

ne um combatente, um herói, um "radar" ca-paz de se adaptar a todas as circunstâncias, ea populações inteiras que não tenham nadaalém do êxito econômico e pessoal como pa-lavra de ordem. A conclusão é óbvia: aquelesque podem se adaptar a uma sociedade guia-da por estes valores estão seguros de seremreconhecidos como sujeitos e participaremcomo cidadãos no funcionamento da socieda-de. Os outros deverão se contentar (nas socie-dades ocidentais) com formas de trabalho su-balternas, ou então acabarão por pertencer àcategoria dos desqualificados sociais (os cha-mados assistidos ou marginais).

Claro que não é uma única determinaçãoque está em curso. Seria também necessárioperguntar por que razões a perversão tornou-se a forma privilegiada das relações humanasnas nossas sociedades." Seria igualmente ne-cessário examinar em que as dinâmicas pró-prias das instituições tendem a acelerar entreseus membros a ascensão de um processo dedesidealização. Entretanto, o essencial foi dito.Somente um elemento falta ainda: para que arazão instrumental esteja sozinha no coman-do é indispensável que ela apareça como umanova forma do sagrado ou, pelo menos, comoum novo modelo na instituição onde a razãoinstrumental fala com mais força, isto é, naempresa. Todos os pensadores estão de acor-do que, atualmente, a empresa (mesmo queela empreste a noção de perfomance do mun-do esportivo) tenta impor sua visão tecnicistado futuro humano. Certo que ela não alcançatotalmente seu intuito e começa a ser conside-rada como um "gigante de pés de barro'" à qualse conferiu um papel mais central na vida soci-al do que aquele que ela pode, dentro dos fatos,assumir.

A empresa, por ter como princial objetivo oalcance de resultados contábeis, introduziu amedida como o único elemento de diferencia-ção dos seres. Só importam as condutas com-paráveis. A cifra toma-se o sinal da excelên-cia dentro da empresa e, progressivamente, noconjunto das organizações.

As conseqüências desta situação são para-doxais:1. A empresa, trazendo ao seu apogeu os "va-

lores" do capitalismo racional e instrumen-tal, contribuiu enormente para a primaziada técnica sobre o humano e tentou fazerde cada ser um manipulador perverso quenão se interessa pelo outro, a não ser que

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OS DESAFIOS ÉTICOS NAS ORGANIZAÇÕES MODERNAS

Para construir estenovo homem, aempresa deve setornar cidadã, ou

seja, conduzirações que

favoreçam ainscrição dosindivíduos no

interior do corpo

favoreça a satisfação de seus desejos. Pode-se compreender, então, porque são aban-donadas as instituições que valorizam asolidariedade, a sociabililidade, quandoestas não são mais libido positiva. Sejaporque elas parecem remeter a "idéias" ul-trapassadas, como por exemplo, o bem co-mum, o amor comunitário; seja por nãoproduzirem efeitos, já que o resultado desua aplicação, na realidade, não pode serobjeto de um exame contábil; seja por pare-cerem incapazes de suscitar paixões arrasa-doras e quebrar a muralha da razão instru-mental, como a impossibi-lidade de definir um gran-de projeto; seja, enfim, porestarem tão contaminadaspelo modelo da empresacom sua dimensão inclu-são/exclusão que não con-seguem mais provocar oamor e a adesão. Nesse mo-mento, a empresa (e o mo-delo que ela institui) pare-ce ter alcançado a vitória,porque ela transformou osseres "humanos" em seres"técnicos" ou, dito de ou-tro modo, em puros produ-tores e consumidores,transformando as relaçõessociais em relações entre mercadorias.

2. No entanto, somos obrigados a constatar quea empresa, ao se esforçar para vir a ser ainstituição divina, é obrigada a se responsa-bilizar pelo "religioso", que é o próprio fun-damento de toda vida social. Ela, então, mo-bilizará os afetos para poder aparecer comoum pólo idealizado que tenta satisfazer onarcisismo de cada um convidando-o a par-ticipar da tarefa grandiosa que representa oseu desenvolvimento ininterrupto.Uma talevolução tem uma explicação muito preci-sa: se a empresa abrigasse em seu seio so-mente indivíduos cínicos, com a perversi-dade maliciosa dos histéricos (portanto, ca-pazes de sedução) ela se arriscaria a cadadia, que cada um, em lugar de se conformarao ideal da organização, começasse a se oporàs suas regras de funcionamento e a colo-car, assim, a organização em perigo de mor-te. O triunfo da técnica se voltaria contraela mesma. Torna-se, portanto, urgente res-tabelecer a potência das paixões e das pul-

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sões somente em benefício da empresa, ago-ra o lugar da socialização e do amor comu-nitário (edificação de uma cultura de em-presa).

3. Entretanto, o movimento da sociedade emdireção à racionalidade integral deixa de-sejos insatisfeitos. Ninguém pode ser felizcom a idéia do destino que aguarda o joga-dor de xadrez. Não somente porque ele estáameaçado de perder tudo (como em todosos jogos onde não há ganhadores), mas por-que ele sabe que, mesmo vencendo uma oumais vezes, será continuamente obrigado

a superar novas provas e, sefor ganhador em um dia, podeser perdedor em outro. Eletambém sabe muito bem queseus antigos desempenhosnão serão contabilizados aoseu ativo, mas ao seu passi-vo, sendo a opinião comum"como ele estava bem. antiga-mente". Neste tipo de jogo,todo mundo é, um dia ou ou-tro, um perdedor. Somente aempresa permanece segura desua perenidade. Enquantoisso, os homens resistem àinstrumentalização. O que fazde cada indivíduo um ser hu-social.mano e social é a sua capaci-

dade de viver em estado de abstinência, deformular novos desejos, de se deixar levarpela imaginação criadora, que é a origemde toda reflexão e de todo projeto, e de es-tabelecer com outros relações que intui, ecom razão, como sendo essenciais à sua in-tegridade e mesmo à sua vida. Uma lei so-ciológica bem estabelecida, ainda que con-tinuamente ocultada, sugere que toda açãotem eventualmente como conseqüência oefeito esperado e sempre o efeito inverso.O capitalismo engendra um imaginário so-cial e condutas capitalistas, mas ele pro-duz igualmente as utopias socialistas e osocialismo real. A economia de mercado énecessária à democracia, todavia pode seinstaurar num regime ditatorial; o "poderaos soviets" é a origem de um regime quese pretendia igualitário, mas que institui ototalitarismo etc. É então natural que umasociedade fundada sobre a funcionalidadee sobre a racionalidade desperte entre seusmembros desejos de espontaneidade, de

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7. GANEm, E. Masse et puissanee. Paris:Gallimard, 1960.

8. MONGIN, O. La peur du vide. Paris:Seuil, 1991.

9. LE GUYADER, A. Éthique et autorité.Texto mimeografado.

10. FABER, E. Main bassé sur la cité. Paris:Seuil, 1991.

11. Idem, ibidem. O autor ampliou a noçãode empresa para "responsabilidadeilimitada".

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atos gratuitos, de tempo perdido, de pai-xões fortes e de conviviabilidade. É neces-sário, pois, que uma sociedade baseada nalei do lucro e da eliminação dos mais fra-cos faça surgir as exigências éticas.Assim, uma sociedade perversa pode, ao

mesmo tempo, manter condutas perversas, ge-neralizar a instrumentalização dos indivíduose tentar transformá-los em uma "massaestagnante" ,7 na qual ninguém realiza seu pró-prio desejo, mas o desejo presumido dos ou-tros, vivendo senão pelo mimetismo e, ao mes-mo tempo, por seu caráter excessivo. Esta so-ciedade pode suscitar entre seus membros avontade de instituir certas condições de vida,onde a alteridade de cada um seria plenamen-te reconhecida e onde, segundo a expressãode O'Mongin, se passará "do medo do outroao medo pelo outro"?

A ÉTICA A SERViÇO DASORGANIZAÇÕES

É interessante notar que os dirigentes dasorganizações, e em especial das empresas, com-preenderam bem esta evolução. Eles tambémmanifestam preocupações éticas. Mas, comoeles tinham o desejo de não mudar nada de es-sencial no funcionamento social que lhes des-sem satisfação mantendo-os em funções de po-der - nova astúcia da razão instrumental -,fizeram da ética um meio mais sutil a serviçode um desempenho jamais questionado. Comodiz o filósofo Alain Le Guyader, trata-se menosde ética do que de uma etologia que" emprestaseus cânones à ciência do comportamento ani-mal para colocar em ação os dispositivos daservidão voluntária assegurando a adesão aosobjetivos exclusivos da empresa" (acrescenta-mos: das organizações e das instituições),"

Visto que se trata de uma ética travestida,seria normal que ela passasse em silêncio. Po-rém, como é praticamente a única que tem odireito de ser mencionada, pois é difundidanos livros, artigos e entrevistas, somos obri-gados a levá-la em consideração. Ela funcio-na segundo um duplo registro: o primeiro,"societal"; o segundo, empresarial. Ambos têmentre si ligações profundas.

O registro "societal"

A empresa protótipo da organização mo-derna, novo sagrado (temporário), tenta dar

um sentido à sociedade para suprir as defi-ciências das outras instituições. Para isso elapromove, de acordo com a declaração do gru-po de trabalho do CNPF (Confederação Naci-onal do Patronato Francês) "uma certa ima-gem de homem firme, ator, criador, responsá-vel",1O tanto na empresa como na sociedade.Para construir este novo homem, a empresadeve se tornar cidadã, ou seja, conduzir açõesque favoreçam a inscrição dos indivíduos nointerior do corpo social.

Dentro deste objetivo, vários meios sãopostos em ação: desenvolvimento do mecenato;elaboração de produtos que possibilitem a pro-teção do meio ambiente (a empresa se coloca aserviço da natureza que está em vias de se tor-nar o novo sagrado criando unanimidade); es-forço educativo pela integração dos imigran-tes; ajuda ao funcionamento das universida-des e das grandes escolas; ação em favor dosbairros; direção de grupos esportivos que têmpor objetivo não só o aprimoramento dos de-sempenhos da equipe mas também a aquisi-ção de um novo prestígio para a cidade, comopor exemplo, a equipe de futebol olímpico deMarselha ... É inútil continuar a lista de ativi-dades custeadas pelas empresas e às vezes poroutras organizações que alonga a cada dia. Noentanto, o ponto essencial a ser assinalado éque a empresa difunde uma visão do futurosocial (estética, convival e dinâmica), utilizaos meios para realizá-lo e, como conseqüên-cia, cria os heróis positivos tais como os conce-be. Ela se encarrega não somente do desen-volvimento econômico da nação, mas tambémdo seu desenvolvimento social, psicológico ecívico. Nenhum dos domínios da vida lhe é,a priori, proibido, pois ela se considera com"responsabilidade ilimitada". 11 É por isso quecertos autores não hesitam em dizer que elase faz "onipotente sobre a cidade" e certosdirigentes de empresa imaginam ter "um des-tino nacional".

O registro empresarial

No interior da empresa procura-se fazercom que seus membros, na sua totalidade (enão somente alguns, como há pouco tempo),sintam-se parte integrante da organização aju-dando na construção de um projeto da empre-sa, aderindo à cultura que lhes é proposta, subs-tituindo seus próprios ideais pelo ideal comumdefinido pela empresa e se submetendo aos .

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OS DESAFIOS ÉTICOS NAS ORGANIZAÇÕES MODERNAS

poder manifestar alguma virtude. Estas virtu-des podem ser divulgadas no mundo das apa-rências. "Nada falta para melhorar o climainterno da empresa (SAS - Estocolmo): pisci-na, clube de esportes e mesmo uma pequenaorquestra de câmara. / .. ./ Nada falta(Challenger- Versalhes) para assegurar o con-forto dos 2500 colaboradores do grupo quetrabalham nos 40.000m2 de escritório. Salasde conferências modulares, salão de beleza,agências de seguro e de viagens, bancas dejornais, TV a cabo, sem esquecer o ginásiocom sauna, sala de bronzeamento etc" .15 Efe-

tivamente, as organizaçõesatuais cuidam de seu look não

processos de recalque e de repressão criadospela organização." A ética parece, no início,fora das preocupações dos dirigentes que de-sejam essencialmente mobilizar as energias.Mas tal interpretação é enganosa. Para que osindivíduos sejam suscetíveis de exercer seuspapéis de heróis positivos é necessário que elessejam homens de convicção, que tenham sen-so de responsabilidade, em resumo, como dizo texto do CNPF já citado, que eles provem teruma "ética da convicção e uma ética da res-ponsabilidade". Se, portanto, os homens "fir-mes, criativos" não acreditassem profunda-mente em suas idéias e nãose sentissem responsáveispela sua ação frente a si mes-mos, à organização (e igual-mente ao meio ambiente),eles seriam capazes de jogarum jogo individual fatal àsobrevivência da mesma.

Ser responsável é, só para melhorar sua imagemexterior mas também para daraos seus membros o sentimen-to de serem nutridos, protegi-dos na plenitude de todos, obem-estar pela empresa. En-tretanto, este não é o aspectomais importante, mesmo queele seja o mais espetacular. Osdois elementos centrais são agestão dos recursos humanose a divisão de responsabilida-des. Por estes meios, os diri-

gentes querem manifestar sua confiança noser humano. Eles não se dão conta de que seutilizam de um slogan de Stalin de sinistramemória: "O homem, o capital mais precio-so" .16 Eles não percebem o aspecto diretamen-te instrumental de seu discurso: os homens são

então, ser o alvo detoda sanção,

vendo-se ao mesmotempo afastado

de qualquerOra, as organizações "negama realidade do tempo e damorte" .13 Elas se queremimortais, mesmo sabendo quepodem desaparecer. Funcio-nam sob a égide da denegação(eu sei, mas apesar disso ...)que as protege de tomar consciência de suasdificuldades, da finitude necessariamente liga-da às suas ações e de seu enfrentamento aoreal. 14 Elas têm, portanto, uma necessidade vi-tal de possuir em seu interior indivíduos capa-zes de se sacrificarem por elas, homens de de-ver, de virtude e de virtus (a virtus, paraMaquiavel, não é nada mais do que a disposi-ção à coragem). Estes devem, assim, investir atotalidade de sua libido na organização, nãoobrigatoriamente, porque eles estimam poderreceber dela satisfações à altura pela renúnciaque aceitaram, mas sobretudo porque acredi-tam que a organização merece a dedicação queela reivindica.

possibilidade deavaliar sua

própria ação.

administrados, tratados - às vezes melhor,às vezes não tão bem - como estoques dosquais se deve garantir a rentabilidade, comomercadoria (às vezes de péssima qualidade: aexpressão "cortar as gorduras" é o sintomamais evidente) que deve ser utilizada conve-nientemente ou da qual se deve ser capaz dese desvencilhar. Além disso, se os homens sãoconsiderados recursos, não se vê por que mi-lagre eles seriam igualmente reconhecidoscomo personalidades autônomas, sujeitos dedireitos e sujeitos psíquicos que têm palavrasa dizer tanto sobre a evolução da organizaçãocomo da sociedade. Mas é possível ocultar aconotação desagradável dos termos gestão erecursos reforçando que a demanda feita aohomem é de ser responsável. Ora, somentepode ser responsável um sujeito psíquico, umsujeito de direito. A insistência sobre a res-ponsabilidade seria a prova da consideração

12. ENRIQUEZ, E. Imaginaire social,refoulement et répression dans lesorganisations In: Connexions 3, Paris:EPI, 1972. A partir deste texto,numerosos autores tentaram analisar osprocessos de integração e de submissãoao poder da empresa.Estes "seres-pela-organização" não vislum-

bram outra vida senão aquela proporcionadapela organização e desde então não buscammais outros pólos de identificação. Para poderprovocar tal amor ou pelo menos suscitar umfluxo de afetividade positiva a empresa devepoder aparecer como um objeto maravilhososuscetível de provocar entre os indivíduos pro-cessos de idealização. Ora, um objeto não éjamais maravilhoso por definição. Para que setome um ícone ou um ídolo ele ainda deve

13. Idem, ibidem.

14. ENRIQUEZ, E. Le pouvoir et la mor!In: Les figures du maitre. Paris:L'Arcantêre, 1973.

15. BLOCH & HABABOU, citados porFABER, E. Op. cil.

16. Quanto mais idealizamos o homemcom palavras, mais o rebaixamos comatos. Este aforismo, mil vezes verificado,deveria ser reconhecido como uma leisociológica.

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17. Se não está em questão hipostasiar anatureza porque, deixando de lado (ainda)a floresta amazônica, toda a natureza éproduto das ações humanas. É evidenteque o problema "natural" é, enfim,colocado, e torna-se uma preocupação detodos os dirigentes políticos e nãosomente de alguns marginais (cf. aConferência do Rio, 1992).

18. ENRIQUEZ, E. Op. cít. 1991.

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com o homem em todas as suas dimensões,pela organização. É esquecido nesta afirma-ção o fato de que a responsabilidade em ques-tão é somente uma responsabilidade organi-zacional (de modo que a tarefa efetuada favo-reça o desenvolvimento da organização; ou,dito de outro modo, que os objetivos alcança-dos sejam transitivos em relação a um objeti-vo último) e uma responsabilidade técnica(acionar os meios mais adequados e a compe-tência mais firme para realizar o trabalho como menor custo possível e de uma maneira ex-celente). A responsabilidade política (quais sãoas conseqüências da ação conduzida para aorientação da organização considerando opapel que ela desempenha na dinâmica social?);a responsabilidade social (as decisões toma-das favorecem a autonomia ou a heteronomiados outros membros da organização?); a res-ponsabilidade cívica (que influência umaação - ou uma inação - tem sobre apossilibilidade de vida ou de sobrevida dos ou-tros cidadãos?); a responsabilidade ecológica(quais são as incidências das condutas huma-nas sobre o meio natural,'? a fauna, sobre a flo-ra e igualmente sobre as populações próximasou longínqüas?); a responsabilidade psíquica(que opinião, ou que sentimento, cada sujeitopode formular ou ressentir sobre o valor de seusatos, quaisquer que sejam as sanções positivasou negativas em que ele possa incorrer?) nãosão levadas em consideração, na maior partedo tempo, quando as responsabilidades sãoatribuídas a fatores sociais.

De fato, muitas vezes, quando os homensna organização são designados como respon-sáveis, isto significa somente que eles são obri-gados a prestarem conta de suas decisões dobom andamento dos serviços a seus superiorese de aceitar o julgamento dos mesmos. Ser res-ponsável é, então, ser o alvo de toda sanção,vendo-se ao mesmo tempo afastado de qual-quer possibilidade de avaliar sua própria ação.Compreende-se muito bem por que certas pes-soas não assumem ou mesmo fujam das res-ponsabilidades que lhes são confiadas pois elascaptaram bem a lógica da organização: todo res-ponsável é um constante suspeito e um provávelculpado.

No entanto, em vários casos a empresaconsegue fazer crer a seus membros que ela évirtuosa, que considera os homens, suas opi-niões e sua vida e que pode ser, então, o póloidealizado por excelência. Ela atinge o obje-

tivo jogando com a dupla referência dos gru-pos e do indivíduo:a) pela transformação da organização - so-

ciedade em organização - comunidade;b) pela difusão do culto da excelência que dá

satisfação aos desejos narcísicos.

A EMPRESA COMO COMUNIDADE

Desde o aparecimento da teoria da direçãoparticipativa por objetivos é imposta a idéia deque a empresa não é mais um sistema de regrashierarquizadas edificada para obter um certo tra-balho e um certo proveito, mas um lugar de co-operação entre membros que formam uma equi-pe empenhada em atingir um objetivo comume movidos pelo mesmo ideal. Deste modo, arepresentação de uma organização como so-ciedade onde as condutas humanas são defi-nidas por regras imperativas e que se produ-zem num mundo de relações formalizadas éatenuada para dar lugar à representação de umacomunidade de seres fraternais que estabele-cem relações convivas, que são responsáveispor seus atos e desejam o bem comum.

Que as organizações não tenham sido ja-mais lugares unicamente formais, funcionaise impessoais os teóricos bem o sabem e mos-tram que mesmo nas burocracias mais rígidasexistiam relações "informais", reagrupamen-tos que se estabelecem baseados em afinida-des eletivas, sobre a necessidade do trabalho,sobre o contorno de regras ou sobre a defesacoletiva. Toda organização guarda em seu in-terior comunidades variadas, micro-culturasse constituindo como um lugar de vida e nãocomo um simples lugar de trabalho. Mas, pas-sar desta constatação à afirmação segundo aqual a organização tornou-se uma comunida-de funcionando sem um aparato de poder se-parado, instituindo uma certa orientação e umestilo de vida determinado, é desdenhar daexistência de estratos diferentes preenchendofunções mais ou menos prestigiosas dentro derelações de consenso e de conflito. No entan-to, é justamente esta ideologia que é o funda-mento da administração participativa. E se osmembros da organização muitas vezes a acei-tam é por que ela anuncia que a organizaçãonão pode existir "sem que indivíduos se situemenquanto sujeitos humanos, isto é, enquantoatores que devem se exprimir, mestres de seusdesejos trabalhando afirmativamente para osucesso do conjunto" .18 Como é difícil resistir

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OS DESAFIOS ÉTICOS NAS ORGANIZAÇÕES MODERNAS

se pela metade": são as últimas palavras es-critas por Vincent Van Gogh a seu irmão Théo)procurando o conflito e não o compromisso,mostrando consistência" e sabendo que nãodevia esperar dos outros, que lhe seguiriamum dia, nem amor nem reconhecimento. Es-tamos bem longe destes "heróis portáteis" que,segundo o bem-humorado Andy Warhol, se-rão célebres "quinze minutos em sua vida", poisse deve deixar seu lugar aos outros, heróis "frá-geis", como já havia percebido Nietzsche. En-fim, não se pode esquecer que o verdadeiroherói, aquele que se tomará um pai simbólico,

que provocará a identifica-ção e criará sujeitos que bus-quem a autonomia é marca-do, um dia, pelo fracasso oupela morte. Moisés não viu aterra prometida, Cristo foicrucificado, Maomé teve queemigrar para Medina. Emnossos dias, mais prosaica-mente, Churchill foi desde-nhado pelos seus, enquantoDe Gaulle teve que se retirare, tanto Gandhi quanto MartinLuther King foram assassina-dos. Os falsos heróis que mor-reram de suas belas mortes(Stalin, Mao) são pessoas queconstruíram seus impérios esuas empreitadas sobre o san-gue de seus concidadãos.

Pode-se agora considerara que ponto o imaginário dacomunidade e da excelênciaé um imaginário ilusório,onde o objetivo é fazer indi-víduos conformes que respei-tem o ideal da organização.Neste jogo, os indivíduos per-dem cada vez que eles pensamganhar. O único vencedor é aorganização que recebe, as-sim, um acréscimo de legiti-

midade, que continua a se acalentar de sonhosde imortalidade e que crê, desta maneira, nãoser atingida pela crise que afeta o conjunto dasinstituições.

Assim sendo, conforme já foi indicado, asorganizações, apesar de seu desejo de ascen-der ao estatuto de instituição divina, são afeta-das, também, pela crise da legitimidade e pelaascensão do individualismo perverso que pa-

a tal apelo, ainda mais sabendo, que o imagi-nário social igualitário da comunidade cria ummundo de plenitude que permite a cada umcrer que sua necessidade de segurança pessoalestará satisfeita!

o CULTO DA EXCELÊNCIA

Essa necessidade de segurança pessoal seintensifica ainda mais quando se instaura oculto da excelência. Excelência, certamente,dos líderes carismáticos ou estratégicos quefavorecem a identificação com sua própria pes-soa. Mas excelência igualmen-te de cada um, já que não im-porta qual "homem sem qua-lidades"" pode, à condição dequerer ser brilhante a qualquerpreço e, portanto, de se devo-tar de corpo e alma, tomar-seum dia um ser tão excelenteque os outros o admirarão eimitarão. Aqui alcançamos oheroísmo para todos! Admirar-se-á o brio deste novo culto,que sabe prender com uma ha-bilidade sem igual os indiví-duos nas armadilhas de seusdesejos narcísicos. Como re-cusar-se a ser um herói, umhomem capaz de "sair da for-mação coletivà'i" já que talfuturo está ao alcance de qual-quer um?

O único problema é que éimpossível que todos sejamvencedores. Em toda a bata-lha existem vencedores e ven-cidos. Ninguém acreditará quenas organizações somente sepratiquem jogos à somatórianão-nula nos quais todos de-vem ganhar. Os cadáveres,reais ou simbólicos, acumuladoshá gerações atestam a realida-de muitas vezes violenta da vida organizacio-nal. Além do mais, a concepção proposta doherói é fundamentalmente falsa. O homem he-róico foi, em todos os tempos, um ser apto apensar de modo solitário (ou com alguns), aser contra o pensamento (ou mais exatamentea doxa) gregário da "maioria compacta"," ca-paz de assumir riscos ("No meu trabalho euarrisco a minha vida e a minha razão perde"

A emergência deuma exigência ética

na organizaçãofaz precisamente

com que asresponsabilidades

política. cívica.ecológica e psíquica

sejam cada vezmais asseguradas,

não porque odinamismo da

organização exige,mas porque é

impossível, a quemquer que seja.

ignorá-las. sob orisco de ver triunfar

unicamente ocinismo perverso.

19. Título do livro de MUSIL, R. Ohomemsem qualidades. Lisboa: Livros do Brasil,1952.

20. FREUD, S. L'homme Morse et lareligion monothéiste. Tradução recente.Paris: Gallimard, 1986.

21. Expressão de H. Ibsen,freqüentemente citada por Freud,particularmente em Moisés e omonoteísmo, Dp. cil.

22. Cfr. MOSCOVICI, S. Psychologie desminorités aclives. Paris: P.U.F., 1971.

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23. WEBER, M. Le savant et le politique10/18. l' ed., 1919, p. 173.

24. FREUD, S. & BULlTT. Le présidentWilson. Tradução francesa. Paris: Payot,1990.

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rece ter, a princípio, prestado socorro e contri-buído ao seu sucesso. As organizações, cadavez que se nutrem de vitórias, estão próximasdo fracasso. Há verdades que devem ser repe-tidas incansavelmente, pois a verdade provo-ca uma ferida narcísica e continua com difi-culdades para se fazer ouvir.

OS VERDADEIROS DESAFIOSÉTICOS

Se a ética não pode se colocar a serviçodas organizações, isto não impede que as or-ganizações modernas possam ocultar o pro-blema da ética sob pena de serem abandona-das ou traídas por seus membros, tornados maisperversos que elas próprias e deixando-se le-var ao não-senso, uma vez que mais nada (ne-nhuma organização, nenhuma doutrina) é ca-paz de dar um sentido à suas vidas.

Costuma-se, quando se evoca a questão daética, a partir de Weber, distinguir ética da con-vicção (à qual Kant deu a formulação mais cla-ra) de ética da responsabilidade. Deve-se acres-centar às duas, ao se considerar a obra de J.Habermas, a ética da discussão. Estes três tiposde ética servirão de fio condutor ao propósitoque segue. Questionaremos se a elaboração deuma quarta categoria não seria necessária paracercar verdadeiramente os desafios atuais.

A ética da convicção é uma ética do tudoou nada. Não se trata de introduzir nuances.Se a injunção é "oferecer a outra face", dever-se-á oferecê-la em todas as circunstâncias. Seo outro não deve ser jamais tratado como ummeio mas como um fim, isto significa a recu-sa geral e definitiva de toda tentativa deinstrumentalização dos seres humanos. Assim,uma convicção não se negocia. Além do mais,esta ética não se preocupa com as conseqüên-cias dos atos. Se "oferecer a outra face" é daro poder às forças do mal, que importa! Estaética se interessa somente pelo fim último. To-dos os meios são bons quando permitem al-cançar o fim desejado.

Tal ética coloca um problema evocado porMax Weber: "Para atingir fins 'bons' somos,na maior parte do tempo, obrigados a contarpor um lado, com os meios moralmente deso-nestos ou, pelo menos, perigosos; de outro,com a possibilidade ou mesmo a eventualida-de das conseqüências deploráveis. Nenhumaética no mundo pode dizer em que momentoou em que medida um fim moralmente bom

justifica os meios e as conseqüências moral-mente perigosas"," No entanto, tais preocu-pações estão ausentes dos homens de convic-ção. De fato, eles são muitas vezes, como disseFreud, "iluminados, visionários, homens quesofrem de ilusão, neuróticos e loucos. Em to-dos os tempos [eles] desempenharam um gran-de papel na história da humanidade. Tais pes-soas exerceram uma influência profunda so-bre seu tempo e sobre os tempos ulteriores,dando um grande impulso a importantes mo-vimentos culturais e fazendo grandes desco-bertas. Eles puderam executar tais façanhas,de um lado, graças à parte intacta de suapersonalidade, quer dizer, apesar de sua ano-malia; mas, de outro lado, foram os traçospatológicos de seu caráter, seu desenvolvimen-to unilateral, o reforço anormal de certos de-sejos, o abandono sem crítica ou sem freio aum único objetivo que lhes deram o poder dearrastar os outros no seu rastro e de vencer aresistência do mundo". 24 Tais indivíduos deexceção escolhem seus caminhos e não mu-dam. De fato, eles não percebem que:

a) ao utilizar meios discutíveis ou empregaros mesmos meios dos adversários que com-batem não podem atingir o fim vislum-brado, estando este definitivamente con-taminado pelos meios. Eles não queremver que o que importa no social não é aintenção, ainda que ela seja tão louvável,mas os meios que impõem, sempre e emqualquer lugar, sua ditadura. É por estarazão que as revoluções, quando bem su-cedidas (a Revolução Francesa, não esque-çamos, não foi bem-sucedida e é por essemotivo que ela constitui ainda uma refe-rência), não são portadoras de "um ama-nhã que canta", mas de escravidão gene-ralizada e genocídio. Os benfeitores da hu-manidade, quando não se questionam so-bre os meios, são coveiros;

b) ao não desejar colocar a questão das conse-qüências de uma ação, os sujeitos de exce-ção não podem tomar consciência de seuserros de apreciação, ficando obrigados a im-putar os resultados não previstos a culpa-dos que eles escolhem. O homem de con-vicção é um ser que cria, sem dificuldades,vítimas tipo bodes expiatórios.E, portanto, sem homens de convicção, sem

esses seres movidos por uma "idéia fixa", lu-

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OS DESAFIOS ÉTICOS NAS ORGANIZAÇÕES MODERNAS

ponsabilidade" deverá, então, arbitrar entre asresponsabilidades que ele assume e aquelas queele recusa. Ele terá, às vezes, tendência a con-siderar as responsabilidades tais como elas sãodefinidas pela organização. Poderá, a partir dis-so, saber exatamente quais sanções positivasou negativas irá receber colocando-se numasituação de segurança máxima. No entanto, istonão é tão simples. Em todos os tempos, certos

homens fizeram prevalecer,por exemplo, sua responsabi-lidade social ou psíquica so-bre sua responsabilidade or-ganizacional. O problema ébem mais sério em nossosdias, já que as organizaçõessão mais complexas e formu-lam exigências variadas aseus colaboradores. A emer-gência de uma exigência éti-ca na organização faz preci-samente com que as respon-sabilidades política, cívica,ecológica e psíquica sejamcada vez mais asseguradas,não porque o dinamismo daorganização exige, mas por-que é impossível, a quem querque seja, ignorá-las, sob o ris-co de ver triunfar unicamen-te o cinismo perverso. É cla-ro que a tentação do cinis-mo, da instalação do não-sen-

so e do individualismo egoísta existe, comomostrou o início deste texto. Mas se eles in-vadissem todo o campo, a organização e a so-ciedade não teriam qualquer legitimidade.Toda autoridade seria contestada, a angústialigada à perda dos referenciais predominariasem contenção e o reconhecimento do eu edos outros se tornaria impossível. É por issoque as responsabilidades se multiplicam. Nãohá mais empresas que possam, legitimamen-te, desembaraçar-se de toda preocupação eco-lógica. Não há organização onde a preocupa-ção social - principalmente as empresas ja-ponesas - esteja ausente etc.

Ainda é muito cedo para dizer qual hierar-quia de responsabilidades será aceita por nos-sa sociedade. Porém, pode-se adiantar que oestabelecimento de tal hierarquia é justamen-te o desafio fundamental das lutas constituí-das por diversos grupos sociais e dos conflitosinternos que devem travar todo ser humano. É

tando contra ventos e marés, crendo noinacreditável, pensando que as montanhas po-dem se deslocar, batendo a cabeça contra asparedes com a certeza de as derrubar," habita-dos por um um fervor sagrado, o mundo nãoseria nada além de "um longo rio tranqüilo" ea vida, uma sucessão de instantes monótonos.Os grandes homens, para se tornarem criadoresde história 26 devem abalroá-la, ainda que fra-cassem ou que sejam repudia-dos. Moisés, Cristo e Maoménão eram criaturas ternas, dis-postas a compromissos, masjustamente o contrário. Guar-dadas as proporções, os gran-des chefes de empresa são fru-tos da mesma árvore. O pro-blema é que se pode esperar dohomem de convicção tanto omelhor como o pior.

A ética da responsabilida-de se apresenta de outro modo.Não que os homens deconvição não tenham o sensoda responsabilidade. Pelo con-trário, eles se encarregam datransformação do mundo e sa-bem que seus atos serão umdia julgados. Mas eles não es-colhem suas condutas em fun-ção de sua probabilidade desucesso. Por outro lado, o ho-

Com efeito, osseres humanos esociais não são

somenteresponsáveis frenteàs gerações futuraspelo peso de suasações presentes

mas também pelamaneira como elestratam o passado,

como elesregistram a

história, aceitam-na e a deformam.

mem movido por uma ética deresponsabilidade estimará que conseqüênciassão imputáveis a sua própria ação, à condiçãoque ele as poderá prever" e, portanto, colocar-se-á na condição de antecipar os resultados pro-váveis. O homem "de responsabilidade" é, pois,fundamentalmente um "político" que sabe queo melhor é o inimigo do bem e ainda, aqueleque considera o contexto ao tomar as decisõesaceitáveis para a maioria. A ética da responsa-bilidade é exigente. Com efeito, como já ditoanteriormente, o homem tem sempre respon-sabilidades diversas, organizacional, técnica,política, social, cívica, ecológica, psíquica esendo difícil para ele assumi-las em conjunto,pois algumas podem apresentar aspectos con-traditórios, como por exemplo, um funcioná-rio do departamento pessoal deverá conside-rar sua responsabilidade técnica e organiza-cional na aplicação do fluxo de demissão dopessoal "excedente" em detrimento de sua res-ponsabilidade social e cívica. O homem de "res-

25. Um autor como M. Crozier,particularmente reservado em relação aações desmesuradas, nota, com humor,que, às vezes, a cabeça não fracassa e asparedes se quebram. Cfr. CROIZIER &FRIEDBERG. L'acteuret te systeme. Paris:Seuil, 1986.

26. ENRIQUEZ, E. Individu, création ethistoire. Connexions 44, EPI.

27. WEBER, M. Op. cit., p. 192.

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28. HABERMAS, J. Raison et légilimilé.Paris: Payot, 1978, p. 150.

29. . Morale etcommunication. Paris: Gerf, 1987, p. 87.

30. FERRY, L. Les puissances de/'expérience. Paris: Gerf, 1991, p. 172.

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por esta razão que o tema da responsabilidade,fora de toda pesquisa de culpabilidade, tomou-se o termo (modelo) central de nossas socieda-des, ainda que elas não saibam muito bem comotratá-lo. De toda maneira, qualquer que seja alista, é evidente que um dos problemas essen-ciais que a sociedade deverá enfrentar concer-ne não somente ao futuro mas igualmente aopassado. Com efeito, os seres humanos e so-ciais não são somente responsáveis frente às ge-rações futuras pelo peso de suas ações presen-tes mas também pela maneira como eles tra-tam o passado, como eles registram a história,a aceitam e a deformam. Por exemplo, aocultação durante quase 50 anos do período deVichy, na França, favoreceu a eclosão do fenô-meno Le Pen e os sucessos da Frente Nacionalda mesma maneira que a ignorância dos cri-mes nazistas na R.D.A.- República Democrá-tica Alemã (os dirigentes afirmavam que osnazistas vinham todos da R.F.A.- RepúblicaFederal Alemã) facilitou a implantação de umneo-nazismo na Alemanha do Leste. O repri-mido retoma sempre (Freud já havia expostoesta idéia com força) e com mais virulênciaquanto mais intensa tenha sido a repressão.Não é possível, desse modo, responsabilizar-se pelo presente e pelo futuro se ou quando sequer esquecer o passado. Ser responsável é en-carregar-se das dívidas (e dos créditos) das ge-rações passadas para não cair num mecanis-mo de repetição do qual as gerações futuras sóteriam a sofrer.

Com J. Habermas desenvolveu-se uma éti-ca da discussão. Ele coloca a posição daintersubjetividade. É essencial que os homenspossam trocar argumentos racionais referen-tes a seus interesses dentro de um espaço pú-blico de livre discussão. Assim, cada um é con-siderado como um ser autônomo, dotado derazão, que pode dar sua opinião. Da discus-são, onde somente as propriedades formais sãodefinidas, surgirão novas normas e interessesuniversalizáveis. Habermas resume seu pen-samento nestas linhas: "A vontade formada demodo discursivo pode ser dita 'racional' por-que as propriedades formais da discussão eda situação de deliberação garantem sufi-cientemente que um consenso não pode nas-cer senão sobre interesses universalizáveis, in-terpretados de modo apropriado, o que enten-do como necessidades que são compartilhadasde modo comunicacional. A barreira, represen-tada um tratamento decisionista( autoritário)

das questões práticas, é ultrapassada desdeque se solicite à argumentação examinar ocaráter universalizâvel de interesses em vezde se resignar diante do pluralismo, em apa-rência impenetrável, dos valores últimos (oudos atos de fé ou das atitudes)".28

O que pressupõe esta posição é que a éticada convicção (onde cada um defende suas posi-ções e não muda) cederá lugar à ética da discus-são, cada um podendo fazer concessões e ondeas normas criadas serão aceitáveis por todos.Com efeito, para Habermas, toda norma uni-versalmente observada terá, de maneira previ-sível, conseqüências e efeitos secundários quepoderão ser aceitos sem exigências por todasas pessoas envolvidas dentro do projeto de sa-tisfazer os interesses de cada um".29

Pode-se reconhecer no pensamento deHabermas uma forte semelhança com o pensa-mento psicossociológico, em particular comaquele de Lewin; a diferença essencial é que oconsenso obtido não será sobre a base "dosconteúdos axiológicos que remetem às convic-ções antropológicas das partes envolvidas,mas sobre os termos processuais de um com-promisso entre estas convicçõesíP No entan-to, além das diferenças, a idéia central é quese os indivíduos ao comunicarem-se entre sirespeitando as exigências de validade de umdiscurso que tem um sentido, que exprime abusca da verdade, que é sincero e demonstrajustiça normativa, estão em condições de che-gar a um acordo e de encontrar soluções justase eficazes. Claro que Habermas não cai na uto-pia (Lewin também não) segundo a qual osindivíduos chegarão sempre a formular inte-resses universalizáveis. O que lhe parece es-sencial é definir as condições que permitem atodos os seres humanos utilizar suaracionalidade consensual e comunicativa e as-sim existir enquanto tais.

Mesmo se uma tal perspectiva parece re-fletir tendências evidentemente consensuais denossa. sociedade aparecendo como pouco sus-peita, da mesma forma que a racionalidade sempaixão pode tomar-se perversa, deve-se admi-tir seu interesse, visto que ela evoca a eminen-te dignidade do homem como indivíduo capazde reflexão, de expressão e confronto comoutros. Se esta perspectiva é menos originaldo que parece (Merleau-Ponty já tinha expos-to há bastante tempo que a objetividade vinhada subjetividade) ela nos faz, pelo menos, sen-tir a impossibilidade da formulação de uma

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sobretudo que é capaz de mudar, se na trocaconseguir se transformar, a saber, portanto,pensar sozinho e com os outros, a se concebercomo responsável sem ser bloqueado pelomedo das responsabilidades, a fazer passar suasidéias (ou aquelas de outro que ele aceitou)interrogando-se sobre sua deformação possí-vel pela escolha de certos meios, sabendo queas conseqüências imprevistas serão mais fa-cilmente encontradas que as conseqüênciasprevistas. Tal sujeito é capaz de sublimação,isto é, de procurar-se a si mesmo nos outros eaos outros em si mesmo" numa busca perma-nente da verdade.

Assim, a ética da finitude pode integrar astrês primeiras formas de ética. Claro, cada umaapresenta características não redutíveis às ou-tras. Mas a ética da finitude opera precisamen-te um trabalho de transformação destas carac-terísticas para torná-las pragmaticamente com-patíveis. É pelo fato de ter uma idéia dos seuspróprios limites que o homem pode ser um "ho-mem de convicção" aceitando entrar em comu-nicação com os outros; também, por conheceras capacidades mortíferas das discussões ele asaceita até o momento em que compreende quea negociação conduzida ininterruptamente fazcom que perca sua alma; e, finalmente, por quepersegue objetivos que quer verdadeiramenterealizar (e não se contenta em proclamá-los),estando atento à escolha dos métodos para atin-gi-los. Portanto, autonomia e heteronomia nãose oporão mas se completarão, assim como co-municação e solidão, força de vontade e per-cepção das exigências. Tal ética, que deverá umdia ser formulada mais claramente, é particu-larmente exigente. Ela requer homens dotadosde paixão, sem a qual a imaginação não podeemergir; de julgamento, sem o qual nenhumarealização é possível; de referência a um ideal,sem o qual o desejo não abandona sua formaarcaica; de aceitação do real e de suas obriga-ções, sem as quais os sonhos mais ambiciososse transformam em pesadelo coletivo. Ela tam-bém requer que as organizações sejam um lu-gar onde a manipulação é banida e os esforçosde todos na construção da organização e naedificação do social sejam reconhecidos. Nósainda estamos longe da meta. Mas, enquantoas organizações preferirem homens que asidealizem a homens "de sublimação" elas con-tinuarão a serem construídas na areia e desapa-recerão lentamente, sem chegarem a perceberas razões de seu infortúnio. O

ética que não esteja fundada sobre a reciproci-dade. Nisto nos permite compreender melhorque a participação tanto nas organizações comona sociedade implica considerar as idéias doconjunto dos indivíduos situados num planode igualdade. Ela dispensa todos os tipos demanipulação, mas não poderá ser plenamentesatisfatória, pois não visualiza os homens emseu aspecto passional nem tão pouco seus in-teresses totalmente contraditórios, eliminan-do os efeitos da pulsão de morte nas organiza-ções e nas instituições. É possível, então, ex-por uma quarta forma de ética que, proviso-riamente, será nomeada ética da finitude. Se-gundo tal concepção, as condutas humanasserão definidas:

a) pelo seu papel na rigidez, na homogeini-zação e na destruição possível das estrutu-ras e dos homens, ou, ao contrário, por suaespontaneidade e capacidade de favorecero processo de autonomização;

b) por sua capacidade de considerar não so-mente a atividade do pensar e do prazer aela vinculado mas igualmente a das pai-xões, a dos medos, a dos sofrimentos, a daslimitações que afetam toda vida;

c) por sua atitude e sua coragem de aceitar asferidas narcísicas, a finitude e a mortali-dade, de se submeter ao trabalho de luto ede se confrontar continuamente com apulsão de morte em seus aspectos auto ealter destruidores.

Outros termos poderiam ter sido utiliza-dos, mas o que eles evocam estão contidos nastrês primeiras formas de ética: a coragem naética da convicção, o futuro das estruturas edos homens na ética da responsabilidade, a au-tonomia e o reconhecimento da alteridade naética da discussão. Por outro lado, nenhumadas três primeiras formas de ética visualiza aaceitação da impotência, a tomada de consci-ência dos limites, o questionamento da identi-dade e do narcisismo da morte, a considera-ção das conseqüências nefastas sobre o futurodo gênero humano, a convivência de cada umcom a morte que carrega em si e que podeprojetar sobre os outros. É então que o sujeitose situa tanto como portador de vida e de mor-te, como egoísta e altruísta, como ser de razãoe de paixão que pode ter convicções fortes, mas

31. ENRIQUEZ, E. Chemins vers I'autre,chemins vers soi. In: MAPPA, S.Ambitionset iIIusions de la coopérationNard-Sud. Paris: L'Harmattan, 1990.

Artigo originalmente publicado na revistaSociologie et Sociétés, v. XXV, n. 1, p.25 - 38, printemps 1993, sob o Utulo Lesenjeux éthiques dans les organizationsmodernes. Tradução de Maria JoséTonelli, Professora do Departamento deFundamentos Sociais e Jurldicos daAdministração da EAESP/FGV.

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