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Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água Havia uma mulher casada, que vivia muito mal com o marido, porque era preguiçosa, desmazelada, e não tinha verdadeiro cuidado no amanho da casa. O marido saía sem almoço, voltava e não o encontrava feito; e tudo por arrumar e limpar, sem ordem nem governo. Se aprontava o jantar, não tinha a loiça lavada, não tinha as camas feitas nem o pó limpo, enfim alinhava todos os serviços mas sempre mal – que também a preguiça e a falta de ordem e sistema de trabalho não a deixavam terminar coisa alguma. O marido começou a aborrecer-se daquela vida e a tratá-la muito mal, ralhando e ameaçando-a, a todo o momento, de a deixar, se não se emendasse. Muito triste da sua vida, foi a mulher ter com uma velhinha que vivia nos arredores, e que passava por saber de feitiçarias, e disse-lhe: - Tia Verde-Água, se vossemecê não me vale nesta ocasião, sou a mulher mais desgraçada que Deus deitou ao mundo! - Diga o que a apoquenta, vizinha, que eu farei o possível por a auxiliar. Entraram ambas na sua pobre morada e a mulher não se cansava de admirar o asseio, a ordem e o arranjo em que a velhinha conservava todas as suas coisas: a panela fervendo ao lume, a loiça na cantareira brilhando, a roupa nas suas arcas cheirando a alfazema, enfim, tudo respirava asseio e arranjo, fazendo gosto ver. - Ah, tia Verde-Água, se eu tivesse a minha casa como a sua, já meu marido não estaria tão zangado e eu não seria tão infeliz, como sou! Mas, também, eu sou sozinha para fazer todo o serviço; quero fazer tudo a um tempo e não posso que a gente não tem quatro mãos, não é verdade? Mas o meu homem não dá desculpa a nada e agora pegou em ralhar e até chega a querer bater-me! E dizendo isto desatou a chorar. - Então é por causa disso que a vizinha vem falar comigo? - Sim, senhora, para me dar remédio a esta desgraça, pois toda a gente diz que vossemecê tem fadas que a ajudam no seu trabalho e é por isso que tem tudo em sua casa com tanta ordem. - Pois tenho, sim, filha; há muito que devia ter vindo procurar-me, que logo lhe dava remédio e lhe prestava auxílio. Mas não são as fadas que me ajudam, essas têm mais que fazer, são dez anõezinhos muito desembaraçados e arranjadores que me deu a minha fada madrinha. Para a ajudar vou mandá-los para sua casa, mas para que a possam ajudar é necessário que faça o seguinte: logo pela manhã cedo levanta-se, arranja-se com esmero, faça a sua cama. Depois vá à cozinha acender o lume para

Os Dez Anõezinhos da Tia Verde

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Page 1: Os Dez Anõezinhos da Tia Verde

Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água

Havia uma mulher casada, que vivia muito mal com o marido, porque era preguiçosa, desmazelada, e não tinha verdadeiro cuidado no amanho da casa.

O marido saía sem almoço, voltava e não o encontrava feito; e tudo por arrumar e limpar, sem ordem nem governo.

Se aprontava o jantar, não tinha a loiça lavada, não tinha as camas feitas nem o pó limpo, enfim alinhava todos os serviços mas sempre mal – que também a preguiça e a falta de ordem e sistema de trabalho não a deixavam terminar coisa alguma.

O marido começou a aborrecer-se daquela vida e a tratá-la muito mal, ralhando e ameaçando-a, a todo o momento, de a deixar, se não se emendasse.

Muito triste da sua vida, foi a mulher ter com uma velhinha que vivia nos arredores, e que passava por saber de feitiçarias, e disse-lhe:

- Tia Verde-Água, se vossemecê não me vale nesta ocasião, sou a mulher mais desgraçada que Deus deitou ao mundo!

- Diga o que a apoquenta, vizinha, que eu farei o possível por a auxiliar. Entraram ambas na sua pobre morada e a mulher não se cansava de admirar o asseio, a ordem e o arranjo em que a velhinha conservava todas as suas coisas: a panela fervendo ao lume, a loiça na cantareira brilhando, a roupa nas suas arcas cheirando a alfazema, enfim, tudo respirava asseio e arranjo, fazendo gosto ver.

- Ah, tia Verde-Água, se eu tivesse a minha casa como a sua, já meu marido não estaria tão zangado e eu não seria tão infeliz, como sou! Mas, também, eu sou sozinha para fazer todo o serviço; quero fazer tudo a um tempo e não posso que a gente não tem quatro mãos, não é verdade? Mas o meu homem não dá desculpa a nada e agora pegou em ralhar e até chega a querer bater-me!

E dizendo isto desatou a chorar.- Então é por causa disso que a vizinha vem falar comigo?- Sim, senhora, para me dar remédio a esta desgraça, pois toda a

gente diz que vossemecê tem fadas que a ajudam no seu trabalho e é por isso que tem tudo em sua casa com tanta ordem.

- Pois tenho, sim, filha; há muito que devia ter vindo procurar-me, que logo lhe dava remédio e lhe prestava auxílio. Mas não são as fadas que me ajudam, essas têm mais que fazer, são dez anõezinhos muito desembaraçados e arranjadores que me deu a minha fada madrinha. Para a ajudar vou mandá-los para sua casa, mas para que a possam ajudar é necessário que faça o seguinte: logo pela manhã cedo levanta-se, arranja-se com esmero, faça a sua cama. Depois vá à cozinha acender o lume para o almoço, encha os cântaros de água, varra a casa, cosa a roupa e, enquanto vai cozinhando o jantar, vá fiando e dobando as suas meadas até o seu marido vir comer.

E assim lhe foi ensinando tudo o que devia fazer com método e ordem, afiançando-lhe que os dez anõezinhos a não largariam e trabalhariam com afã para a ajudar.

A mulher agradeceu muito à boa velha e foi para casa muito mais animada. Logo no dia seguinte, começou o trabalho como a tia Verde-Água lhe indicara, e o que é certo é que, à hora do almoço, chegou o marido à cozinha e já o encontrou fumegando sobre a mesa e esta coberta com uma toalha branca, os talheres e os pratos bem limpos, enfim na devida ordem.

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Ao jantar, o mesmo e a casa limpa e florida e a mulher alegre e satisfeita. Ficou muito contente e comeu com apetite, não ralhando, por não ter de quê.

A mulher estava tão satisfeita que nessa mesma noite voltou a casa da tia Verde-Água para agradecer o ter-lhe mandado os dez anõezinhos diligentes, que não vira, mas que tão bem a tinham auxiliado, pois o trabalho lhe correra como por encanto.

A boa velha sorriu e disse-lhe que continuasse na mesma ordem de trabalho, que todos os dias lhe mandaria os anõezinhos para a ajudar.

O marido andava satisfeitíssimo, pois via as coisas na melhor ordem, e o dinheiro, que dantes não chegava para nada, agora crescia no canto da gaveta.

O tempo foi passando e a mulher vendo-se tão feliz, voltou de novo a casa da tia Verde-Água para lhe agradecer e pedir-lhe que continuasse a emprestar-lhe os dez anõezinhos, pois receava que sem eles nada pudesse fazer.

- Então eles têm-lhe feito bom serviço?- Tão bom, que já trago a minha casa num brinco, e o meu marido

sempre satisfeito, a roupa lavada e cosida, enfim, considero-me agora muito feliz!

- Pois se a vizinha lá quer os dez anõezinhos, deixe-os estar consigo e trate-os bem. Mas, olhe cá, com franqueza, ainda os não viu?

- Eu não, senhora! E gostava muito de os ver e de lhes agradecer, hão-de ser tão espertos e engraçados!

- Pois então, se os quer ver, olhe para as suas mãos e conte os seus dez dedos – que são esses os dez anõezinhos da tia Verde-Água.

A mulher ficou de boca aberta e só então compreendeu como o serviço feito com boa vontade e ordem nada custa, é luzido e dá alegria e felicidade.

Começou a rir como perdida do engano em que estivera, abraçou a velhinha e voltou para casa animada e tendo confiança na sua própria diligência. Foi sempre muito feliz e reconhecida à tia Verde-Água. Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água Ana de Castro Osório