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Os discursos da ditadura em Celda 12, de Moncho Azuaga: a desconstrução do ditador Jéssica Baia Moretti da Silva (UEM) 1 [email protected] Resumo: Esta comunicação tem como objetivo a análise dos discursos da ditadura paraguaia e da memória paralela a oficial no romance paraguaio Celda 12, de Moncho Azuaga. No romance são apresentados vários discursos que compõem a ditadura de Alfredo Stroessner: diversas vozes daqueles que foram injustamente encarcerados, a voz do ditador e as vozes de pessoas que apoiavam o regime ditatorial, entre outros. Por meio do testemunho memorialístico, há a desconstrução da figura de Alfredo Stroessner. A perversidade, a imoralidade e as fraquezas do ditador são evidenciadas, de forma a contrariar o discurso oficial. Como principal embasamento teórico para os estudos da memória são utilizados os livros: A memória coletiva (1990), de Maurice Halbwachs e História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (2013), de Márcio Seligmann-Silva. Para Halbwachs, a memória individual é construída sob o ponto de vista da memória coletiva, já que não é possível se desvincular das lembranças e das referências do grupo no qual se está inserido. Em Celda 12, os discursos paralelos de pessoas distintas remetem à memória coletiva de uma nação que vivenciou os horrores do regime militar de Stroessner durante 35 anos; vivenciou não apenas a tortura física, mas principalmente a psicológica. Palavras-chave: Ditadura Paraguaia; Memória; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda 12. Abstract: This communication aims to analyze the speeches of the Paraguayan dictatorship and the parallel memory to the official in the Paraguayan novel Celda 12, by Moncho Azuaga. In the novel several speeches are presented that compose the dictatorship of Alfredo Stroessner: several voices of those who were unjustly imprisoned, the voice of the dictator and the voices of people who supported the dictatorial regime, among others. Through the memorialistic testimony, there is the deconstruction of the figure of Alfredo Stroessner. The perversity, the immorality and the weaknesses of the dictator are evidenced, so as to counteract the official discourse. The main theoretical basis for memory studies is the following books: The Collective Memory (1990), by Maurice Halbwachs and History, Memory, Literature: The Witness in the Age of Disasters (2013), by Márcio Seligmann-Silva. For Halbwachs, individual memory is constructed from the point of view of collective memory, since it is not possible to detach itself from the memories and references of the group in which it is inserted. In Celda 12, the parallel discourses of distinct people refer to the collective memory of a nation that experienced the horrors of the Stroessner military regime for 35 years; experienced not only physical torture, but especially psychological torture. Keywords: Paraguayan Dictatorship; Memory; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda 12. 1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá.

Os discursos da ditadura em Celda 12, de Moncho Azuaga: a … · (1990), de Maurice Halbwachs e História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes (2013), de Márcio

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Os discursos da ditadura em Celda 12, de Moncho Azuaga: a desconstrução do ditador

Jéssica Baia Moretti da Silva (UEM)1

[email protected]

Resumo: Esta comunicação tem como objetivo a análise dos discursos da ditadura paraguaia e

da memória paralela a oficial no romance paraguaio Celda 12, de Moncho Azuaga. No romance

são apresentados vários discursos que compõem a ditadura de Alfredo Stroessner: diversas

vozes daqueles que foram injustamente encarcerados, a voz do ditador e as vozes de pessoas

que apoiavam o regime ditatorial, entre outros. Por meio do testemunho memorialístico, há a

desconstrução da figura de Alfredo Stroessner. A perversidade, a imoralidade e as fraquezas

do ditador são evidenciadas, de forma a contrariar o discurso oficial. Como principal

embasamento teórico para os estudos da memória são utilizados os livros: A memória coletiva

(1990), de Maurice Halbwachs e História, memória, literatura: o testemunho na era das

catástrofes (2013), de Márcio Seligmann-Silva. Para Halbwachs, a memória individual é

construída sob o ponto de vista da memória coletiva, já que não é possível se desvincular das

lembranças e das referências do grupo no qual se está inserido. Em Celda 12, os discursos

paralelos de pessoas distintas remetem à memória coletiva de uma nação que vivenciou os

horrores do regime militar de Stroessner durante 35 anos; vivenciou não apenas a tortura física,

mas principalmente a psicológica.

Palavras-chave: Ditadura Paraguaia; Memória; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda

12.

Abstract: This communication aims to analyze the speeches of the Paraguayan dictatorship

and the parallel memory to the official in the Paraguayan novel Celda 12, by Moncho Azuaga.

In the novel several speeches are presented that compose the dictatorship of Alfredo Stroessner:

several voices of those who were unjustly imprisoned, the voice of the dictator and the voices

of people who supported the dictatorial regime, among others. Through the memorialistic

testimony, there is the deconstruction of the figure of Alfredo Stroessner. The perversity, the

immorality and the weaknesses of the dictator are evidenced, so as to counteract the official

discourse. The main theoretical basis for memory studies is the following books: The

Collective Memory (1990), by Maurice Halbwachs and History, Memory, Literature: The

Witness in the Age of Disasters (2013), by Márcio Seligmann-Silva. For Halbwachs, individual

memory is constructed from the point of view of collective memory, since it is not possible to

detach itself from the memories and references of the group in which it is inserted. In Celda

12, the parallel discourses of distinct people refer to the collective memory of a nation that

experienced the horrors of the Stroessner military regime for 35 years; experienced not only

physical torture, but especially psychological torture.

Keywords: Paraguayan Dictatorship; Memory; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda

12.

1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá.

Introdução

Celda 12 foi publicado pela primeira vez em 1991 e o seu autor é o poeta, romancista,

dramaturgo e ator Ramon Sosa Azuaga, conhecido como Moncho Azuaga. O escritor nasceu

em Assunção em 11 de dezembro de 1952 e é um dos mais prolíficos e premiados escritores

paraguaios da contemporaneidade. A vasta produção literária de Azuaga inclui as seguintes

obras publicadas: Y no solo es cuestión de Mariposas (1976), En moscas cerradas (1977),

Rasmudel (1976), Jirones de espera (1986), Bajo los vientos del Sur (1986), Arto Cultural

(1986), Ciudad sitiada (1989), Celda 12 (1996). No que concerne ao teatro, suas principais

obras são: Los niños de la calle (1988), Sagrada Família (1989), La noche de San Blas (1989),

Tuku Karú (1989), Salven a Matilde (1989), Decidamos Juan (1989), Proibido em la plasa lo

niño y los perros (1990), Cuando los animales asaltaron la ciudad, Parada memória em busca

de la patria perdida, Ñande pesebre (1996) e Caballos locos (1997).

O título do romance que será analisado neste artigo: Celda 12 se refere a uma cela que

realmente existiu e é o espaço físico onde se passa a maior parte do romance. Conforme

comenta Rudi Torga em 1991 acerca da cela 12, ela é:

[...] celda tétrica; celda fatal; celda donde ele tormento no tiene ya misterio;

celda cuya numeración registra el particular mérito de simbolizar a todas

las celdas del Paraguay, durante los últimos cincuenta años.

Especialmente las celdas superpobladas de ciudadanos paraguayos que

no se sometieron a la dictadura del general Alfredo Stroessner. (TORGA2

apud AZUAGA, 2015, p. 11).

Portanto, a cela 12 é o microcosmo que é ampliado no romance para simbolizar todas

as celas do Paraguai e o país como um todo, uma vez que no período da ditadura militar, não

apenas os encarcerados eram oprimidos, mas todos os cidadãos estavam em constantemente

em estado de temor e opressão. No seguinte excerto do romance essa simbologia é comprovada:

“América Latina era un gran campo de concentración. América Latina era un gran campo de

concentración. Paraguay, una de sus cárceles más terrible. Mas, ele infierno de los justos se

2 [..] cela sombria; cela onde a abjeção da condição humana não tem limite; cela onde o tortura já não é mistério;

cela cuja numeração registra o mérito particular para simbolizar todas as celas do Paraguai, durante os últimos

cinquenta anos. Especialmente, as celas super povoadas de cidadãos paraguaios que não se submeteram à ditadura

do general Alfredo Stroessner.

llamaba Celda 12.” ( AZUAGA3, p. 15)

Celda 12 é um romance que através de sua temática histórica desmistifica os

acontecimentos do período da ditadura militar e faz uma alerta para o futuro. O personagem

principal do romance é um professor e poeta, que foi levado à cela doze por suspeitas de apoiar

de se opor ao partido do General Stroessner e difamá-lo em seus poemas. Denegrir os presos

políticos com acusações, muitas vezes falsas como ocorreu com o professor, era uma prática

comum no período da ditadura militar no Paraguai e também no Brasil.

Jonas, um ex-seminarista, é um dos que estão presos na cela 12 e compartilha dos

sofrimentos do professor. Ele tem sonhos simbólicos que de certa forma predizem o que irá

acontecer no decorrer do romance.

Outro personagem importante no romance é o personagem histórico Alfredo

Stroessner, o presidente do Paraguai. Na cela, o professor é submetido a torturas diárias físicas

e psicológicas. A pior das torturas a qual ele é submetido é a de escrever forçadamente a

biografia de seu maior inimigo, Stroessner. O ditador queria ser lembrado além dos limites

cronológicos por meio da ficção e por isso dita as suas memórias ao professor de forma a criar

uma realidade fantasiosa acerca de si mesmo, como é verificável no seguinte excerto onde o

ditador se direge ao professor: “Y amparado por el Dios de las Naciones em todo su monester,

iluminado por esse mismo hacedor, ha hecho olvidar al sufrido y estoico pueblo paraguayo de

las desgracias del pasado”. (AZUAGA, p. 104) No entanto, por meio dos relatos do romance,

a vida do ditador sofre o mesmo desmembramento que os corpos dos prisioneiros sofrem

durante a tortura, pois suas qualidades negativas são evidenciadas.

No romance, as vozes de diversos personagens se confundem por meio da polifonia, o

que torna a identificação do autor da fala um tanto complexa. Assim, as vozes individuais no

romance representam a voz da coletividade o que torna a compreensão dos acontecimentos

históricos mais ampla e plural.

Outra característica relevante do romance é o fato de o autor ter mesclado de forma

perspicaz a linguagem cotidiana do Paraguai ao castelhano padrão e ao guarani, de forma a dar

autenticidade cultural ao romance e expressar a identidade paraguaia.

O romance é repleto de simbologias e uma delas é a do discurso, como Torga comenta

no seguinte excerto:

3 América Latina era um grande compo de concentração. Paraguai, uma de suas celas mais terríveis.

Mas, o inferno dos justos se chamava Cela 12.

La dictadura no puede vivir sin disparar balas de palabras: frases hechas que

se repiten, consignas que embisten a la verdad como tanques de guerra,

comunicados que vomitan el veneno de la mentira, jingles confluido eléctrico

que contaminan com gases letales la corteza cerebral. [...] Dictadura es

sinónimo de la palabra organizada al servicio de la mafia, al servicio de la

destruicción del vínculo familiar , de la contaminación del aire con el insulto,

de la exterminación de los seres libres, de la corrupción instaurada como

brújula del ser. ( TORGA 4apud AZUAGA, 2015, p. 12).

Sendo assim, o discurso da ditadura é uma forma de manipulação e de opressão da

população, que é enganada e iludida pelo discurso daqueles que possuem o poder político e

econômico.

O contexto histórico do romance é o da Operação Condor, que com o apoio

estadunidense, tinha como objetivo principal combater o avanço do comunismo na América

Latina. A Operação Condor trouxe a especialização da tortura para a América Latina, o que é

evidenciado nas descrições de torturas que há no romance.

Alfredo Stroessner Matiauda, personagem do romance, foi um político, general de

exército e ditador do Paraguai entre 1954 e 1989. Em 1989, após 35 anos de governo,

Stroessner foi derrubado do porder por um golpe de Estado, liderado pelo general Andrés

Rodríguez, seu co-sogro, indo para o Brasil, onde viveu em exílio até sua morte.

A figura do general Strossner é desconstruída por meio dos relatos das torturas de seus

perseguidos políticos e por meio de seus próprios relatos memorialísticos.

No romance, observamos o discurso de quem era a favor do general, mas os relatos de

tortura se sobrepõem. A fraqueza, a imoralidade, a crueldades, as limitações e a corrupção de

Stroessner são evidenciadas no romance, como observamos no seguinte excerto: “¿ Quién

soy? Um rostro cansado, um hombre viejo. Recuerdos, recuerdos y casi ninguna esperanza”. (

AZUAGA5, p. 180)

Com a ajuda do arcabouço teórico referente à memória, a relação entre memória e ficção

será analisada neste artigo, tendo como objetivo principal, entender como o trabalho estético

pôde possibilitar a criação desse romance em que memória e ficção se interlaçam de forma a

4 A ditadura não pode viver sem disparar balas de palavras: frases repetidas, slogans que atacam a verdade como tanques de guerra, lançamentos que vomitam o veneno da mentira, jingles elétricos convergiram que contaminam o córtex cerebral com gases letais. [...] A ditadura é sinônimo da palavra organizada a serviço da máfia, a serviço da destruição do vínculo familiar, da poluição do ar com insulto, do extermínio de seres livres, da corrupção estabelecida como uma bússola do ser. 5 Quem sou? Um rosto cansado, um homem velho. Recordações, recordações e quase nenhuma

esperança.

levar o leitor a não apenas ter uma maior compreensão acerca do período da ditadura militar no

Paraguai, mas também a questionar a memória oficial.

A memória em Celda 12

Neste tópico, aspectos importantes acerca da memória serão apontados e aplicados na

análise do romance Celda 12, romance em que a memória da ditadura militar no Paraguai se

faz presente, como foi mencionado anteriormente. A priori, é necessário compreender o que é

a memória e como ela se relaciona com história, trauma e testemunho.

Em História e Memória (2013), Jacques Le Goff define a memória como um conjunto

de funções psíquicas através das quais é possível relembrar vivências, opiniões e informações

já vividas. Desta forma, a memória é uma prática ativa.

Em Memória e exílio (2003), Sybil Safdie Douek discorre acerca do livro A memória

coletiva, de Maurice Halbwachs, pensador e sociólogo francês. No que concerne à forma

como Halbwachs compreende a memória, Douek diz que ele acredita que toda memória

individual não é puramente individual, pois se inter-relaciona com a memória do grupo social

do qual se faz parte. No excerto a seguir, o autor cita a concepção de Halbwachs acerca da

memória:

Halbwachs insurge-se contra este subjetivismo da memória, mostrando

que a memória individual apoia-se e enraíza-se numa memória

coletiva, memória dos diversos grupos nos quais vive o indivíduo:

grupo familiar, grupo de trabalho, grupo de amigos, grupo religioso,

político, artístico, cultural, etc. (DOUEK, 2003, p. 27).

Halbwachs em A memória coletiva (1990), também, afirma que apesar da memória

coletiva envolver memórias individuais, ela não se confunde com ela. Os reflexos

memorialistas em Celda 12 não são apenas reflexos individuais, mas são reflexos da memória

coletiva. Ainda acerca da memória coletiva, Paul Ricoeur (2008, p. 133) defende que “cada

memória individual é um ponto de vista da memória coletiva”. Portanto, a memória pode ser

concebida como um fenômeno construído pelo coletivo. Sendo assim, o relato memorialístico

em Celda 12 não faz parte apenas das memórias do autor e do personagem professor, mas das

memórias de todos que vivenciaram o momento histórico relatado no romance.

Na atualidade, a lógica de mercado rege a sociedade, e devido a isso, a memória dos

eventos traumáticos corre o risco de desaparecer, visto que a vida material e a vida cultural

estão mercantilizadas. Infelizmente, no Paraguai e em toda a América Latina, o esquecimento

faz parte da herança cultural. No romance, o apagamento da memória coletiva e a sua

manipulação acerca dos problemas ocasionados pela ditadura é evidenciado no excerto a

seguir: “ Allí estaban los cabecillas de una conspiración. Los condenados a muerte, los

olvidados de esa ciudad que entre bocinazos, cervezas, pendejas y gritos festejaban al Rey de

Copas, campeón de la Libertadores”. ( AZUAGA6, p. 33)

A vergonha coletiva faz com que muitos tentem apagar determinados acontecimentos

da história do país. Sendo assim, a literatura que surge após a ditadura sente-se no dever de não

permitir que a memória das catástrofes seja extirpadas memória nacional. Isso é importante para

que entendamos o motivo pelo qual o estado socioeconômico se encontra de determinada

forma, visto que ele é fruto das catástrofes que não podemos permitir que ocorram novamente.

Celda 12 é um exemplo de romance que através da memória de eventos traumáticos pretende

manter vivos em nossa memória os acontecimentos devastadores do passado.

Há diversos discursos memorialísticos divergentes no que se refere à Ditadura Militar.

As opiniões divergentes refletem na forma como os acontecimentos do golpe militar e do

regime militar são lembrados ou olvidados pelas pessoas. Os discursos que se destacam são o

oficial dos comandantes militares e o das vítimas e seus familiares. Em Celda 12 diversos

discursos estão presentes, o que torna o conteúdo do romance ainda mais dialético e plural. É

possível ouvir, por exemplo, as vítimas da ditadura, defensores do regime militar e o ditador.

Quanto à importância da memória na constituição da identidade, M. Pollak em

Memória, Esquecimento, Silêncio afirma que a memória é um importante elemento que

constitui a identidade:

A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,

tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um

fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de

coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.

(POLLAK, 1992, p. 204).

Segundo Paul Ricoeur em A memória, a História, o Esquecimento, a memória é

manipulada através das relações de poder e “situa-se no cruzamento entre a problemática da

6 Ali estavam os líderes de uma conspiração. Os condenados à morte, os esquecidos dessa cidade que

entre buzinas, cervejas, pendejas e gritos festejavam o Rei das Copas, campeão da Libertadores.

memória e da identidade, tanto coletiva quanto pessoal.” (RICOEUR, 2008, p. 94)

De acordo com Jacques Le Goff em História e Memória (1990), a memória deve ser

utilizada para a libertação e não para a servidão, no entanto, ela sempre foi muito utilizada para

a servidão através de sua manipulação. Com o advento da imprensa e dos meios de

comunicação de massa, essa manipulação se tornou mais forte. No seguinte excerto Le Goff

discorre acerca da manipulação da memória coletiva: “A memória, onde cresce a história, que

por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos

trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos

homens.” (LE GOFF, 1990, p. 477)

A memória manipulada é evidente na esfera individual do romance, pela tentativa de

apagamento da memória do professor e dos demais desaparecidos políticos. Não é possível

saber o paradeiro de seus corpos e nem como foram mortos. Isso nos remete ao fato de que às

vítimas da ditadura militar não é legado nenhum espaço - tanto físico, quanto na memória

coletiva. Em Celda 12 não é possível saber exatamente como o professor falesceu, pois tudo

que há são hipóteses.

De acordo com Jacques Le Goff (1990), “A memória política pode ser motivo de

disputa entre várias organizações”. Desta forma, a memória pode ser manipulada por via

ideológica por aqueles que possuem maior poder político-social. Segundo o autor, o

esquecimento é uma das formas mais eficazes de manipular a memória. Acerca da luta contra

o esquecimento, verificada em K., Ricoeur afirma que:

A busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato

da memória, a saber, lutar contra o esquecimento, arrancar alguns

fragmentos de lembrança à “rapacidade” do tempo, ao “sepultamento”

no esquecimento. Não é somente o caráter penoso do esforço da

memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter

esquecido, de esquecer de novo (...) (RICOEUR, 2008, p. 48)

Na América Latina, a anistia e a mídia, principalmente, a TV são ferramentas para levar

os cidadãos ao esquecimento das atrocidades do regime militar. Além disso, torturadores e

assassinos a serviço do regime militar são amparados pela lei e permanecem impunes, como se

as torturas fossem apenas ficção. Em Celda 12, a manipulação feita pelos que detêm o poder

através da mídia é evidenciada: “_ Atención cámara uno, atención cámara uno! Por favor deje

de filmar al General, deje de filmar al General. Está nervioso. Escuchen, pues carajo. Deje de

filmar al General o vamos a terminar todos presos [...]” (AZUAGA7, p. 61).

Para Ricoeur (2008, p. 460), “a proximidade mais que fonética, e até mesmo semântica,

entre anistia e amnésia aponta para a existência de um pacto secreto com a denegação da

memória, que na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação”.

O tempo no romance está entre o tempo privado e o tempo público; entre a memória

coletiva, a memória histórica e a memória individual. Em Tempo e Narrativa (1997, p. 59),

Paul Ricoeur diz que “o presente é ao mesmo tempo o que vivemos e o que realiza as

antecipações de um passado rememorado”, ou seja, as experiências do passado influenciam as

ações no presente. Além disso, segundo Ricoeur, as lembranças são afetadas pelo tempo e por

ele alteradas; são elas que permitem: “voltar a subir a encosta de nossa vida passada para nela

buscar determinada imagem” (RICOEUR, 2010, p. 44).

Em A memória, a história, o esquecimento (2010), Ricoeur defende que a memória

possui caráter múltiplo e fragmentário, sendo o fio condutor da experiência temporal humana.

Assim como a história, a memória se preocupa com o real e verdadeiro; ela é um canal de

reapropriação do passado histórico. O autor afirma que, no que concerne à memória, tanto o

esquecimento quanto a repetição podem ser negativos, já que o esquecimento impede a

reapropriação do passado e a repetição impede o trabalho genuíno da memória, que é

compreender os fatos ocorridos. Na estrutura Celda 12, o caráter múltiplo e fragmentado da

memória, destacado por Ricoeur é verificável. Além de estar na estrutura, está na crise da

historicidade, evidente no romance aqui estudado, onde a noção de totalidade da história oficial

é questionada.Todas as personagens do romance tiveram o curso de suas vidas afetado pelo

contexto histórico e esse fato é evidenciado através do relato memorialístico de cada uma delas.

Apesar de serem memórias contraditórias, elas estão todas interligadas entre si por meio da

memória coletiva.

Segundo Paul Ricoeur em A memória, a História, o Esquecimento, “o dever [da

memória é] de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si.” (RICOEUR, 2008, p.

101) No entanto, essa justiça se torna quase inalcançável devido medidas tomadas pelas

autoridades e pelo governo acerca disso.

Trauma e testemunho em Celda 12

7 Atenção câmera um, atenção câmera um! Por favor deixe de filmar o General, deixe de filmar o General. Está

nervoso. Escutem, pois caralho. Deixe de filmar o General ou vamos terminar todos presos [...]

Celda 12 é um romance em que há um relevante esforço para recordar e relaborar os

traumas da ditadura militar. As perdas da ditadura militar não foram apenas individuais, porém

coletivas. Não apenas entes queridos foram perdidos, mas também foram perdidos direitos

políticos, liberdade de expressão, direito à informação e o direito à memória.

A literatura de testemunho, da qual Celda 12 parte, está relaciona aos traumas coletivos

caracterizados pela tortura, pelo extermínio e pelas diversas formas de opressão em

determinado contexto social. O testemunho na literatura não busca narrar os fatos exatamente

como ocorreram, mas sim representá-los, devido ao seu caráter de mimesis. Essa representação

não é limita à época a que se refere, porém se presentifica no momento de sua escrita e no

momento de sua leitura.

No que se refere mais especificamente à América Latina, contexto do romance

estudado, a literatura de testemunho possui forte compromisso político, visto que, através dela

aqueles que estavam à margem podem ser ouvidos. Sendo assim, a memória oficial é

questionada e dá lugar à memória não oficial daqueles que até então tinham suas vozes

marginalizadas. Dois tipos de discurso são necessários a fim de que se construa o testemunho

como arte literária: 1) o testemunho imediato não literário, proveniente de cartas, diários e

depoimentos; 2) o testemunho ficcionalizado a partir do preenchimento das lacunas ou da

interpretação dos fatos. Portanto, o gênero testemunho se diferencia da biografia e da

autobiografia.

O testemunho tem como característica intrínseca a subjetividade, da qual não é possível

se abster totalmente ao testemunhar. Ele nunca é totalmente fiel ao que ocorreu; ele é apenas

parte do que ocorreu. Aqueles que sobreviveram às catástrofes não podem testemunhar com a

completa autenticidade que só aqueles que não sobreviveram poderiam testemunhar. Portanto,

o testemunho completo das grandes catástrofes não pode existir. No entanto, a voz daqueles

que sobreviveram possui a potência para testemunhar por aqueles que já não podem ser

ouvidos. Desta forma, o relato testemunhal dos sobreviventes é uma importante forma de

homenagear os que não sobreviveram às catástrofes.

Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer (2009) afirma que há dois tipos

de testemunhas das catástrofes: as que presenciaram os fatos e as que souberam dos fatos

através de outras pessoas, de forma a absorver parte do sofrimento dos que presenciaram os

fatos. Em ambos os casos, a me memória do passado pode “ajudar a não repeti-­‐‐lo [os fatos]

infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, inventar o presente.”( GAGNEBIN,

p. 57)

Acerca do trauma faz parte da literatura de testemunho, Márcio Seligmann-Silva em

seu livro intitulado Narrar o trauma (2008) discorre acerca do trauma, que segundo ele,

“encontra na imaginação um meio para sua narração”. Ele também afirma que:

A literatura é chamada diante do trauma para prestar [a]prendemos, ao

longo do século XX, que todo produto da cultura pode ser lido no seu

teor testemunhal. Não se trata da velha concepção realista e naturalista

que via na cultura um reflexo da realidade, mas, antes, de um

aprendizado – psicanalítico – da leitura de traços do real no universo

cultural. Já o discurso dito sério é tragado e abalado na sua arrogância

quando posto diante da impossibilidade de se estabelecer uma fronteira

segura entre ele, a imaginação e o discurso literário. (SELIGMANN-

SILVA, 2008, p. 71)

O mesmo autor também reflete em seu livro acerca dos processos de estetização da

catástrofe e defende que o papel da arte não é representar o real tal como ele é, mas com a

utilização de recursos estéticos e simbólicos, proporcionar uma visão dos processos históricos.

No que concerne ao registro dos eventos traumáticos ocasionados pelo regime

ditatorial, o autor cita quatro aspectos fundamentais que são: I) a impossibilidade de narrar a

memória dos desaparecidos políticos que já não vivem; II) o aspecto impactante da mídia em

transmitir a falsa ideia de que os traumas já foram superados; III) a impunidade por meios de

lei que garantem o perdão no Brasil e na Argentina daqueles que cometeram atrocidades no

período ditatorial “Mais de 20 anos de Anistia no Brasil: isso equivale a 20 anos de amnésia?”

(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 84) IV) a incompetência do Brasil em analisar os crimes e as

torturas da ditadura.

Diante dos aspectos apontados acima, Seligmann-Silva afirma ser de extrema

importância que não permitamos que a lembrança das catástrofes seja, totalmente, apagada de

nossas memórias. Para que a memória dos traumas e das feridas não seja apagada, os registros

históricos e as construções artísticas referentes à ditadura militar são demasiado relevantes.

Sendo assim, Celda 12 de uma busca é uma importante criação artística que não tem sua

importância apenas em aspectos estéticos, mas também em seus dados históricos.

Acerca da necessidade do trabalho estético para se narrar o trauma, Márcio Seligmann-

Silva afirma em História, Memória, literatura: o testemunho na Era das catástrofes que:

O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua simultânea

necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de

realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma

falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de

recobrir o vivido (o “real”) com o verbal. O dado inimaginável da

experiência concentracionária desconstrói o maquinário da linguagem.

Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real”

equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a

intraduzibilidade pode ser desafiada ---- mas nunca totalmente

submetida. (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 46-47).

Desta forma, é impossível recobrir totalmente o trauma vivido por meio apenas verbal;

para narrar o trauma é necessário o uso da imaginação, atributo da ficção.

Em A memória coletiva (1990), Maurice Halbwachs afirma que o único meio de salvar

as lembranças é por meio da escrita, pois os pensamentos se vão, mas as palavras escritas não.

Por esse motivo, o personagem professor narra suas lembranças e traumas, uma vez que, para

expressar a dor do evento traumático e se fazer ouvir, é necessária a ficção, já que só o relato

oral não é suficiente para expressar as dores causadas pelos eventos traumáticos. O excesso de

realidade e a utopia da arte literária possibilitam um testemunho mais completo, que é

verificável em Celda 12.

Considerações finais

Com a ajuda do arcabouço teórico, foi possível ter uma melhor compreensão acerca da

memória, do trauma e do gênero testemunho. Além disso, foi possível compreender melhor

este significativo romance e o seu contexto histórico. Em Celda 12, os sofrimentos pelos quais

os personagens passam não são referentes apenas a eles, mas simbolizam o sofrimento de toda

a nação. Assim, a memória da ditadura presente no romance não é apenas a memória individual,

mas a memória coletiva, que se manifesta através da pluralidade de vozes. A memória

individual é sempre vinculada à memória coletiva, visto que, não é possível desvinculá-la do

contexto social do qual se faz parte. No romance, o professor escreve o seu testemunho a fim

de libertar-se de seus sofirmentos e traumas, e por meio dos relatos memorialísticos a figura do

general onipotente é descontruída. Ele recorre ao testemunho escrito, pois sem a ficção, ele

não pode se expressar e ser compreendido satisfatoriamente, tendo em vista o teor de seus

traumas. Desta forma, foi possível concluir que Celda 12 é um romance relevante não apenas

por sua qualidade estética, mas por testemunhar as atrocidades da ditadura militar e manter viva

a memória desse triste período político no Paraguai.

Referências

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