Upload
vuongtuyen
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Os discursos da ditadura em Celda 12, de Moncho Azuaga: a desconstrução do ditador
Jéssica Baia Moretti da Silva (UEM)1
Resumo: Esta comunicação tem como objetivo a análise dos discursos da ditadura paraguaia e
da memória paralela a oficial no romance paraguaio Celda 12, de Moncho Azuaga. No romance
são apresentados vários discursos que compõem a ditadura de Alfredo Stroessner: diversas
vozes daqueles que foram injustamente encarcerados, a voz do ditador e as vozes de pessoas
que apoiavam o regime ditatorial, entre outros. Por meio do testemunho memorialístico, há a
desconstrução da figura de Alfredo Stroessner. A perversidade, a imoralidade e as fraquezas
do ditador são evidenciadas, de forma a contrariar o discurso oficial. Como principal
embasamento teórico para os estudos da memória são utilizados os livros: A memória coletiva
(1990), de Maurice Halbwachs e História, memória, literatura: o testemunho na era das
catástrofes (2013), de Márcio Seligmann-Silva. Para Halbwachs, a memória individual é
construída sob o ponto de vista da memória coletiva, já que não é possível se desvincular das
lembranças e das referências do grupo no qual se está inserido. Em Celda 12, os discursos
paralelos de pessoas distintas remetem à memória coletiva de uma nação que vivenciou os
horrores do regime militar de Stroessner durante 35 anos; vivenciou não apenas a tortura física,
mas principalmente a psicológica.
Palavras-chave: Ditadura Paraguaia; Memória; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda
12.
Abstract: This communication aims to analyze the speeches of the Paraguayan dictatorship
and the parallel memory to the official in the Paraguayan novel Celda 12, by Moncho Azuaga.
In the novel several speeches are presented that compose the dictatorship of Alfredo Stroessner:
several voices of those who were unjustly imprisoned, the voice of the dictator and the voices
of people who supported the dictatorial regime, among others. Through the memorialistic
testimony, there is the deconstruction of the figure of Alfredo Stroessner. The perversity, the
immorality and the weaknesses of the dictator are evidenced, so as to counteract the official
discourse. The main theoretical basis for memory studies is the following books: The
Collective Memory (1990), by Maurice Halbwachs and History, Memory, Literature: The
Witness in the Age of Disasters (2013), by Márcio Seligmann-Silva. For Halbwachs, individual
memory is constructed from the point of view of collective memory, since it is not possible to
detach itself from the memories and references of the group in which it is inserted. In Celda
12, the parallel discourses of distinct people refer to the collective memory of a nation that
experienced the horrors of the Stroessner military regime for 35 years; experienced not only
physical torture, but especially psychological torture.
Keywords: Paraguayan Dictatorship; Memory; Alfredo Stroessner; Moncho Azuaga; Celda
12.
1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá.
Introdução
Celda 12 foi publicado pela primeira vez em 1991 e o seu autor é o poeta, romancista,
dramaturgo e ator Ramon Sosa Azuaga, conhecido como Moncho Azuaga. O escritor nasceu
em Assunção em 11 de dezembro de 1952 e é um dos mais prolíficos e premiados escritores
paraguaios da contemporaneidade. A vasta produção literária de Azuaga inclui as seguintes
obras publicadas: Y no solo es cuestión de Mariposas (1976), En moscas cerradas (1977),
Rasmudel (1976), Jirones de espera (1986), Bajo los vientos del Sur (1986), Arto Cultural
(1986), Ciudad sitiada (1989), Celda 12 (1996). No que concerne ao teatro, suas principais
obras são: Los niños de la calle (1988), Sagrada Família (1989), La noche de San Blas (1989),
Tuku Karú (1989), Salven a Matilde (1989), Decidamos Juan (1989), Proibido em la plasa lo
niño y los perros (1990), Cuando los animales asaltaron la ciudad, Parada memória em busca
de la patria perdida, Ñande pesebre (1996) e Caballos locos (1997).
O título do romance que será analisado neste artigo: Celda 12 se refere a uma cela que
realmente existiu e é o espaço físico onde se passa a maior parte do romance. Conforme
comenta Rudi Torga em 1991 acerca da cela 12, ela é:
[...] celda tétrica; celda fatal; celda donde ele tormento no tiene ya misterio;
celda cuya numeración registra el particular mérito de simbolizar a todas
las celdas del Paraguay, durante los últimos cincuenta años.
Especialmente las celdas superpobladas de ciudadanos paraguayos que
no se sometieron a la dictadura del general Alfredo Stroessner. (TORGA2
apud AZUAGA, 2015, p. 11).
Portanto, a cela 12 é o microcosmo que é ampliado no romance para simbolizar todas
as celas do Paraguai e o país como um todo, uma vez que no período da ditadura militar, não
apenas os encarcerados eram oprimidos, mas todos os cidadãos estavam em constantemente
em estado de temor e opressão. No seguinte excerto do romance essa simbologia é comprovada:
“América Latina era un gran campo de concentración. América Latina era un gran campo de
concentración. Paraguay, una de sus cárceles más terrible. Mas, ele infierno de los justos se
2 [..] cela sombria; cela onde a abjeção da condição humana não tem limite; cela onde o tortura já não é mistério;
cela cuja numeração registra o mérito particular para simbolizar todas as celas do Paraguai, durante os últimos
cinquenta anos. Especialmente, as celas super povoadas de cidadãos paraguaios que não se submeteram à ditadura
do general Alfredo Stroessner.
llamaba Celda 12.” ( AZUAGA3, p. 15)
Celda 12 é um romance que através de sua temática histórica desmistifica os
acontecimentos do período da ditadura militar e faz uma alerta para o futuro. O personagem
principal do romance é um professor e poeta, que foi levado à cela doze por suspeitas de apoiar
de se opor ao partido do General Stroessner e difamá-lo em seus poemas. Denegrir os presos
políticos com acusações, muitas vezes falsas como ocorreu com o professor, era uma prática
comum no período da ditadura militar no Paraguai e também no Brasil.
Jonas, um ex-seminarista, é um dos que estão presos na cela 12 e compartilha dos
sofrimentos do professor. Ele tem sonhos simbólicos que de certa forma predizem o que irá
acontecer no decorrer do romance.
Outro personagem importante no romance é o personagem histórico Alfredo
Stroessner, o presidente do Paraguai. Na cela, o professor é submetido a torturas diárias físicas
e psicológicas. A pior das torturas a qual ele é submetido é a de escrever forçadamente a
biografia de seu maior inimigo, Stroessner. O ditador queria ser lembrado além dos limites
cronológicos por meio da ficção e por isso dita as suas memórias ao professor de forma a criar
uma realidade fantasiosa acerca de si mesmo, como é verificável no seguinte excerto onde o
ditador se direge ao professor: “Y amparado por el Dios de las Naciones em todo su monester,
iluminado por esse mismo hacedor, ha hecho olvidar al sufrido y estoico pueblo paraguayo de
las desgracias del pasado”. (AZUAGA, p. 104) No entanto, por meio dos relatos do romance,
a vida do ditador sofre o mesmo desmembramento que os corpos dos prisioneiros sofrem
durante a tortura, pois suas qualidades negativas são evidenciadas.
No romance, as vozes de diversos personagens se confundem por meio da polifonia, o
que torna a identificação do autor da fala um tanto complexa. Assim, as vozes individuais no
romance representam a voz da coletividade o que torna a compreensão dos acontecimentos
históricos mais ampla e plural.
Outra característica relevante do romance é o fato de o autor ter mesclado de forma
perspicaz a linguagem cotidiana do Paraguai ao castelhano padrão e ao guarani, de forma a dar
autenticidade cultural ao romance e expressar a identidade paraguaia.
O romance é repleto de simbologias e uma delas é a do discurso, como Torga comenta
no seguinte excerto:
3 América Latina era um grande compo de concentração. Paraguai, uma de suas celas mais terríveis.
Mas, o inferno dos justos se chamava Cela 12.
La dictadura no puede vivir sin disparar balas de palabras: frases hechas que
se repiten, consignas que embisten a la verdad como tanques de guerra,
comunicados que vomitan el veneno de la mentira, jingles confluido eléctrico
que contaminan com gases letales la corteza cerebral. [...] Dictadura es
sinónimo de la palabra organizada al servicio de la mafia, al servicio de la
destruicción del vínculo familiar , de la contaminación del aire con el insulto,
de la exterminación de los seres libres, de la corrupción instaurada como
brújula del ser. ( TORGA 4apud AZUAGA, 2015, p. 12).
Sendo assim, o discurso da ditadura é uma forma de manipulação e de opressão da
população, que é enganada e iludida pelo discurso daqueles que possuem o poder político e
econômico.
O contexto histórico do romance é o da Operação Condor, que com o apoio
estadunidense, tinha como objetivo principal combater o avanço do comunismo na América
Latina. A Operação Condor trouxe a especialização da tortura para a América Latina, o que é
evidenciado nas descrições de torturas que há no romance.
Alfredo Stroessner Matiauda, personagem do romance, foi um político, general de
exército e ditador do Paraguai entre 1954 e 1989. Em 1989, após 35 anos de governo,
Stroessner foi derrubado do porder por um golpe de Estado, liderado pelo general Andrés
Rodríguez, seu co-sogro, indo para o Brasil, onde viveu em exílio até sua morte.
A figura do general Strossner é desconstruída por meio dos relatos das torturas de seus
perseguidos políticos e por meio de seus próprios relatos memorialísticos.
No romance, observamos o discurso de quem era a favor do general, mas os relatos de
tortura se sobrepõem. A fraqueza, a imoralidade, a crueldades, as limitações e a corrupção de
Stroessner são evidenciadas no romance, como observamos no seguinte excerto: “¿ Quién
soy? Um rostro cansado, um hombre viejo. Recuerdos, recuerdos y casi ninguna esperanza”. (
AZUAGA5, p. 180)
Com a ajuda do arcabouço teórico referente à memória, a relação entre memória e ficção
será analisada neste artigo, tendo como objetivo principal, entender como o trabalho estético
pôde possibilitar a criação desse romance em que memória e ficção se interlaçam de forma a
4 A ditadura não pode viver sem disparar balas de palavras: frases repetidas, slogans que atacam a verdade como tanques de guerra, lançamentos que vomitam o veneno da mentira, jingles elétricos convergiram que contaminam o córtex cerebral com gases letais. [...] A ditadura é sinônimo da palavra organizada a serviço da máfia, a serviço da destruição do vínculo familiar, da poluição do ar com insulto, do extermínio de seres livres, da corrupção estabelecida como uma bússola do ser. 5 Quem sou? Um rosto cansado, um homem velho. Recordações, recordações e quase nenhuma
esperança.
levar o leitor a não apenas ter uma maior compreensão acerca do período da ditadura militar no
Paraguai, mas também a questionar a memória oficial.
A memória em Celda 12
Neste tópico, aspectos importantes acerca da memória serão apontados e aplicados na
análise do romance Celda 12, romance em que a memória da ditadura militar no Paraguai se
faz presente, como foi mencionado anteriormente. A priori, é necessário compreender o que é
a memória e como ela se relaciona com história, trauma e testemunho.
Em História e Memória (2013), Jacques Le Goff define a memória como um conjunto
de funções psíquicas através das quais é possível relembrar vivências, opiniões e informações
já vividas. Desta forma, a memória é uma prática ativa.
Em Memória e exílio (2003), Sybil Safdie Douek discorre acerca do livro A memória
coletiva, de Maurice Halbwachs, pensador e sociólogo francês. No que concerne à forma
como Halbwachs compreende a memória, Douek diz que ele acredita que toda memória
individual não é puramente individual, pois se inter-relaciona com a memória do grupo social
do qual se faz parte. No excerto a seguir, o autor cita a concepção de Halbwachs acerca da
memória:
Halbwachs insurge-se contra este subjetivismo da memória, mostrando
que a memória individual apoia-se e enraíza-se numa memória
coletiva, memória dos diversos grupos nos quais vive o indivíduo:
grupo familiar, grupo de trabalho, grupo de amigos, grupo religioso,
político, artístico, cultural, etc. (DOUEK, 2003, p. 27).
Halbwachs em A memória coletiva (1990), também, afirma que apesar da memória
coletiva envolver memórias individuais, ela não se confunde com ela. Os reflexos
memorialistas em Celda 12 não são apenas reflexos individuais, mas são reflexos da memória
coletiva. Ainda acerca da memória coletiva, Paul Ricoeur (2008, p. 133) defende que “cada
memória individual é um ponto de vista da memória coletiva”. Portanto, a memória pode ser
concebida como um fenômeno construído pelo coletivo. Sendo assim, o relato memorialístico
em Celda 12 não faz parte apenas das memórias do autor e do personagem professor, mas das
memórias de todos que vivenciaram o momento histórico relatado no romance.
Na atualidade, a lógica de mercado rege a sociedade, e devido a isso, a memória dos
eventos traumáticos corre o risco de desaparecer, visto que a vida material e a vida cultural
estão mercantilizadas. Infelizmente, no Paraguai e em toda a América Latina, o esquecimento
faz parte da herança cultural. No romance, o apagamento da memória coletiva e a sua
manipulação acerca dos problemas ocasionados pela ditadura é evidenciado no excerto a
seguir: “ Allí estaban los cabecillas de una conspiración. Los condenados a muerte, los
olvidados de esa ciudad que entre bocinazos, cervezas, pendejas y gritos festejaban al Rey de
Copas, campeón de la Libertadores”. ( AZUAGA6, p. 33)
A vergonha coletiva faz com que muitos tentem apagar determinados acontecimentos
da história do país. Sendo assim, a literatura que surge após a ditadura sente-se no dever de não
permitir que a memória das catástrofes seja extirpadas memória nacional. Isso é importante para
que entendamos o motivo pelo qual o estado socioeconômico se encontra de determinada
forma, visto que ele é fruto das catástrofes que não podemos permitir que ocorram novamente.
Celda 12 é um exemplo de romance que através da memória de eventos traumáticos pretende
manter vivos em nossa memória os acontecimentos devastadores do passado.
Há diversos discursos memorialísticos divergentes no que se refere à Ditadura Militar.
As opiniões divergentes refletem na forma como os acontecimentos do golpe militar e do
regime militar são lembrados ou olvidados pelas pessoas. Os discursos que se destacam são o
oficial dos comandantes militares e o das vítimas e seus familiares. Em Celda 12 diversos
discursos estão presentes, o que torna o conteúdo do romance ainda mais dialético e plural. É
possível ouvir, por exemplo, as vítimas da ditadura, defensores do regime militar e o ditador.
Quanto à importância da memória na constituição da identidade, M. Pollak em
Memória, Esquecimento, Silêncio afirma que a memória é um importante elemento que
constitui a identidade:
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um
fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de
coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
(POLLAK, 1992, p. 204).
Segundo Paul Ricoeur em A memória, a História, o Esquecimento, a memória é
manipulada através das relações de poder e “situa-se no cruzamento entre a problemática da
6 Ali estavam os líderes de uma conspiração. Os condenados à morte, os esquecidos dessa cidade que
entre buzinas, cervejas, pendejas e gritos festejavam o Rei das Copas, campeão da Libertadores.
memória e da identidade, tanto coletiva quanto pessoal.” (RICOEUR, 2008, p. 94)
De acordo com Jacques Le Goff em História e Memória (1990), a memória deve ser
utilizada para a libertação e não para a servidão, no entanto, ela sempre foi muito utilizada para
a servidão através de sua manipulação. Com o advento da imprensa e dos meios de
comunicação de massa, essa manipulação se tornou mais forte. No seguinte excerto Le Goff
discorre acerca da manipulação da memória coletiva: “A memória, onde cresce a história, que
por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos
trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos
homens.” (LE GOFF, 1990, p. 477)
A memória manipulada é evidente na esfera individual do romance, pela tentativa de
apagamento da memória do professor e dos demais desaparecidos políticos. Não é possível
saber o paradeiro de seus corpos e nem como foram mortos. Isso nos remete ao fato de que às
vítimas da ditadura militar não é legado nenhum espaço - tanto físico, quanto na memória
coletiva. Em Celda 12 não é possível saber exatamente como o professor falesceu, pois tudo
que há são hipóteses.
De acordo com Jacques Le Goff (1990), “A memória política pode ser motivo de
disputa entre várias organizações”. Desta forma, a memória pode ser manipulada por via
ideológica por aqueles que possuem maior poder político-social. Segundo o autor, o
esquecimento é uma das formas mais eficazes de manipular a memória. Acerca da luta contra
o esquecimento, verificada em K., Ricoeur afirma que:
A busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato
da memória, a saber, lutar contra o esquecimento, arrancar alguns
fragmentos de lembrança à “rapacidade” do tempo, ao “sepultamento”
no esquecimento. Não é somente o caráter penoso do esforço da
memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter
esquecido, de esquecer de novo (...) (RICOEUR, 2008, p. 48)
Na América Latina, a anistia e a mídia, principalmente, a TV são ferramentas para levar
os cidadãos ao esquecimento das atrocidades do regime militar. Além disso, torturadores e
assassinos a serviço do regime militar são amparados pela lei e permanecem impunes, como se
as torturas fossem apenas ficção. Em Celda 12, a manipulação feita pelos que detêm o poder
através da mídia é evidenciada: “_ Atención cámara uno, atención cámara uno! Por favor deje
de filmar al General, deje de filmar al General. Está nervioso. Escuchen, pues carajo. Deje de
filmar al General o vamos a terminar todos presos [...]” (AZUAGA7, p. 61).
Para Ricoeur (2008, p. 460), “a proximidade mais que fonética, e até mesmo semântica,
entre anistia e amnésia aponta para a existência de um pacto secreto com a denegação da
memória, que na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação”.
O tempo no romance está entre o tempo privado e o tempo público; entre a memória
coletiva, a memória histórica e a memória individual. Em Tempo e Narrativa (1997, p. 59),
Paul Ricoeur diz que “o presente é ao mesmo tempo o que vivemos e o que realiza as
antecipações de um passado rememorado”, ou seja, as experiências do passado influenciam as
ações no presente. Além disso, segundo Ricoeur, as lembranças são afetadas pelo tempo e por
ele alteradas; são elas que permitem: “voltar a subir a encosta de nossa vida passada para nela
buscar determinada imagem” (RICOEUR, 2010, p. 44).
Em A memória, a história, o esquecimento (2010), Ricoeur defende que a memória
possui caráter múltiplo e fragmentário, sendo o fio condutor da experiência temporal humana.
Assim como a história, a memória se preocupa com o real e verdadeiro; ela é um canal de
reapropriação do passado histórico. O autor afirma que, no que concerne à memória, tanto o
esquecimento quanto a repetição podem ser negativos, já que o esquecimento impede a
reapropriação do passado e a repetição impede o trabalho genuíno da memória, que é
compreender os fatos ocorridos. Na estrutura Celda 12, o caráter múltiplo e fragmentado da
memória, destacado por Ricoeur é verificável. Além de estar na estrutura, está na crise da
historicidade, evidente no romance aqui estudado, onde a noção de totalidade da história oficial
é questionada.Todas as personagens do romance tiveram o curso de suas vidas afetado pelo
contexto histórico e esse fato é evidenciado através do relato memorialístico de cada uma delas.
Apesar de serem memórias contraditórias, elas estão todas interligadas entre si por meio da
memória coletiva.
Segundo Paul Ricoeur em A memória, a História, o Esquecimento, “o dever [da
memória é] de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si.” (RICOEUR, 2008, p.
101) No entanto, essa justiça se torna quase inalcançável devido medidas tomadas pelas
autoridades e pelo governo acerca disso.
Trauma e testemunho em Celda 12
7 Atenção câmera um, atenção câmera um! Por favor deixe de filmar o General, deixe de filmar o General. Está
nervoso. Escutem, pois caralho. Deixe de filmar o General ou vamos terminar todos presos [...]
Celda 12 é um romance em que há um relevante esforço para recordar e relaborar os
traumas da ditadura militar. As perdas da ditadura militar não foram apenas individuais, porém
coletivas. Não apenas entes queridos foram perdidos, mas também foram perdidos direitos
políticos, liberdade de expressão, direito à informação e o direito à memória.
A literatura de testemunho, da qual Celda 12 parte, está relaciona aos traumas coletivos
caracterizados pela tortura, pelo extermínio e pelas diversas formas de opressão em
determinado contexto social. O testemunho na literatura não busca narrar os fatos exatamente
como ocorreram, mas sim representá-los, devido ao seu caráter de mimesis. Essa representação
não é limita à época a que se refere, porém se presentifica no momento de sua escrita e no
momento de sua leitura.
No que se refere mais especificamente à América Latina, contexto do romance
estudado, a literatura de testemunho possui forte compromisso político, visto que, através dela
aqueles que estavam à margem podem ser ouvidos. Sendo assim, a memória oficial é
questionada e dá lugar à memória não oficial daqueles que até então tinham suas vozes
marginalizadas. Dois tipos de discurso são necessários a fim de que se construa o testemunho
como arte literária: 1) o testemunho imediato não literário, proveniente de cartas, diários e
depoimentos; 2) o testemunho ficcionalizado a partir do preenchimento das lacunas ou da
interpretação dos fatos. Portanto, o gênero testemunho se diferencia da biografia e da
autobiografia.
O testemunho tem como característica intrínseca a subjetividade, da qual não é possível
se abster totalmente ao testemunhar. Ele nunca é totalmente fiel ao que ocorreu; ele é apenas
parte do que ocorreu. Aqueles que sobreviveram às catástrofes não podem testemunhar com a
completa autenticidade que só aqueles que não sobreviveram poderiam testemunhar. Portanto,
o testemunho completo das grandes catástrofes não pode existir. No entanto, a voz daqueles
que sobreviveram possui a potência para testemunhar por aqueles que já não podem ser
ouvidos. Desta forma, o relato testemunhal dos sobreviventes é uma importante forma de
homenagear os que não sobreviveram às catástrofes.
Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer (2009) afirma que há dois tipos
de testemunhas das catástrofes: as que presenciaram os fatos e as que souberam dos fatos
através de outras pessoas, de forma a absorver parte do sofrimento dos que presenciaram os
fatos. Em ambos os casos, a me memória do passado pode “ajudar a não repeti-‐‐lo [os fatos]
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, inventar o presente.”( GAGNEBIN,
p. 57)
Acerca do trauma faz parte da literatura de testemunho, Márcio Seligmann-Silva em
seu livro intitulado Narrar o trauma (2008) discorre acerca do trauma, que segundo ele,
“encontra na imaginação um meio para sua narração”. Ele também afirma que:
A literatura é chamada diante do trauma para prestar [a]prendemos, ao
longo do século XX, que todo produto da cultura pode ser lido no seu
teor testemunhal. Não se trata da velha concepção realista e naturalista
que via na cultura um reflexo da realidade, mas, antes, de um
aprendizado – psicanalítico – da leitura de traços do real no universo
cultural. Já o discurso dito sério é tragado e abalado na sua arrogância
quando posto diante da impossibilidade de se estabelecer uma fronteira
segura entre ele, a imaginação e o discurso literário. (SELIGMANN-
SILVA, 2008, p. 71)
O mesmo autor também reflete em seu livro acerca dos processos de estetização da
catástrofe e defende que o papel da arte não é representar o real tal como ele é, mas com a
utilização de recursos estéticos e simbólicos, proporcionar uma visão dos processos históricos.
No que concerne ao registro dos eventos traumáticos ocasionados pelo regime
ditatorial, o autor cita quatro aspectos fundamentais que são: I) a impossibilidade de narrar a
memória dos desaparecidos políticos que já não vivem; II) o aspecto impactante da mídia em
transmitir a falsa ideia de que os traumas já foram superados; III) a impunidade por meios de
lei que garantem o perdão no Brasil e na Argentina daqueles que cometeram atrocidades no
período ditatorial “Mais de 20 anos de Anistia no Brasil: isso equivale a 20 anos de amnésia?”
(SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 84) IV) a incompetência do Brasil em analisar os crimes e as
torturas da ditadura.
Diante dos aspectos apontados acima, Seligmann-Silva afirma ser de extrema
importância que não permitamos que a lembrança das catástrofes seja, totalmente, apagada de
nossas memórias. Para que a memória dos traumas e das feridas não seja apagada, os registros
históricos e as construções artísticas referentes à ditadura militar são demasiado relevantes.
Sendo assim, Celda 12 de uma busca é uma importante criação artística que não tem sua
importância apenas em aspectos estéticos, mas também em seus dados históricos.
Acerca da necessidade do trabalho estético para se narrar o trauma, Márcio Seligmann-
Silva afirma em História, Memória, literatura: o testemunho na Era das catástrofes que:
O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua simultânea
necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de
realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma
falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de
recobrir o vivido (o “real”) com o verbal. O dado inimaginável da
experiência concentracionária desconstrói o maquinário da linguagem.
Essa linguagem entravada, por outro lado, só pode enfrentar o “real”
equipada com a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a
intraduzibilidade pode ser desafiada ---- mas nunca totalmente
submetida. (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 46-47).
Desta forma, é impossível recobrir totalmente o trauma vivido por meio apenas verbal;
para narrar o trauma é necessário o uso da imaginação, atributo da ficção.
Em A memória coletiva (1990), Maurice Halbwachs afirma que o único meio de salvar
as lembranças é por meio da escrita, pois os pensamentos se vão, mas as palavras escritas não.
Por esse motivo, o personagem professor narra suas lembranças e traumas, uma vez que, para
expressar a dor do evento traumático e se fazer ouvir, é necessária a ficção, já que só o relato
oral não é suficiente para expressar as dores causadas pelos eventos traumáticos. O excesso de
realidade e a utopia da arte literária possibilitam um testemunho mais completo, que é
verificável em Celda 12.
Considerações finais
Com a ajuda do arcabouço teórico, foi possível ter uma melhor compreensão acerca da
memória, do trauma e do gênero testemunho. Além disso, foi possível compreender melhor
este significativo romance e o seu contexto histórico. Em Celda 12, os sofrimentos pelos quais
os personagens passam não são referentes apenas a eles, mas simbolizam o sofrimento de toda
a nação. Assim, a memória da ditadura presente no romance não é apenas a memória individual,
mas a memória coletiva, que se manifesta através da pluralidade de vozes. A memória
individual é sempre vinculada à memória coletiva, visto que, não é possível desvinculá-la do
contexto social do qual se faz parte. No romance, o professor escreve o seu testemunho a fim
de libertar-se de seus sofirmentos e traumas, e por meio dos relatos memorialísticos a figura do
general onipotente é descontruída. Ele recorre ao testemunho escrito, pois sem a ficção, ele
não pode se expressar e ser compreendido satisfatoriamente, tendo em vista o teor de seus
traumas. Desta forma, foi possível concluir que Celda 12 é um romance relevante não apenas
por sua qualidade estética, mas por testemunhar as atrocidades da ditadura militar e manter viva
a memória desse triste período político no Paraguai.
Referências
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. História, memória e
esquecimento: Implicações políticas. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, pp. 95-111,
dez. 2007. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/79/RCCS79-095-
111-MPNascimento-MSepulveda.pdf, acesso em jul. 2009>.
AZUAGA, Moncho. Celda 12. Assunção: Ñandereko, 2005.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 242 p.
DOUEK, Sybil Safdie. Memória e exílio. São Paulo: Escuta, 2003, pp.123-159.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2009.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo
Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Naify, 2014. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
RICOEUR, Paul. A memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Editora da Unicamp,
2008.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo III. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Papirus, 1997.
SELIGMANN-SILVA, M. (org.). História, Memória, Literatura. O testemunho na era das
catástrofes (pp. 59-89). Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
SELIGMANN-SILVA, M. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes
históricas. Psicologia clínica, v. 20, n.1, Rio de Janeiro, pp. 65-82, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652008000100005&script=sci_arttext>; Acesso em: 07 fev. 2017.