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1067 Os efeitos da Revolução de São Domingos em relação ao abolicionismo anglo- americano e à segunda escravidão (1789-1815). Amanda Bastos da Silva 1 Resumo: Em finais do século XVIII, São Domingos foi alcunhada de “pérola das Antilhas”. Tratava-se da colônia mais lucrativa e cobiçada. No entanto, treze anos de movimento revolucionário devastaram a região e trouxeram à tona novas questões. O abolicionismo ganhou força e culminou na lei britânica de fim do tráfico de 1807. Em paralelo, a segunda escravidão se estruturou e Cuba, até então com pouca evidência, ascendeu ao longo do século XIX. Dois grupos de fontes se tornam centrais à pesquisa, as obras do soldado britânico Marcus Rainsford e os livros do francês Jean Louis Dubroca. Palavras-chave: São Domingos. Abolicionismo. Segunda escravidão. Colonialismo. Imagens. Abstract: In the late eighteenth century, St. Domingue was nicknamed "pearl of the Antilles". It was the most lucrative and coveted colony. Nevertheless, thirteen years of revolutionary movement devastated the region and raised new questions. Abolitionism gained momentum and culminated in the British End of Trafficking Act of 1807. In parallel, the second slavery was structured and Cuba, until then with little evidence, ascended throughout the nineteenth century. Two groups of sources become central to the research. The British soldier works Marcus Rainsford and the books of the Frenchman Jean Louis Dubroca. Key-words: Saint Domingue. Abolitionism. Second slavery. Colonialism. Pictures. 1. O Atlântico integrado: O período compreendido entre os séculos XVI e XIX comportou a maior experiência escravista da história da humanidade. Tratava-se de uma estrutura inédita, altamente comercial e comprometida em promover a exploração de milhões de africanos pelas Américas. Ainda assim, a escravidão não era um sistema uniforme e o mundo atlântico vivenciou um desenvolvimento desigual. E combinado 2 . O Atlântico não deve ser reduzido a um conjunto de regiões distintas entre si. O historiador Dale Tomich acentua que a fim de evitar o determinismo geográfico, muitos 1 Amanda Bastos da Silva, mestranda PPGH/UFF. E-mail: [email protected] 2 BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 4.

Os efeitos da Revolução de São Domingos em relação ao ......1067 Os efeitos da Revolução de São Domingos em relação ao abolicionismo anglo-americano e à segunda escravidão

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1067

Os efeitos da Revolução de São Domingos em relação ao abolicionismo anglo-

americano e à segunda escravidão (1789-1815).

Amanda Bastos da Silva1

Resumo: Em finais do século XVIII, São Domingos foi alcunhada de “pérola das Antilhas”.

Tratava-se da colônia mais lucrativa e cobiçada. No entanto, treze anos de movimento

revolucionário devastaram a região e trouxeram à tona novas questões. O abolicionismo

ganhou força e culminou na lei britânica de fim do tráfico de 1807. Em paralelo, a segunda

escravidão se estruturou e Cuba, até então com pouca evidência, ascendeu ao longo do século

XIX. Dois grupos de fontes se tornam centrais à pesquisa, as obras do soldado britânico

Marcus Rainsford e os livros do francês Jean Louis Dubroca.

Palavras-chave: São Domingos. Abolicionismo. Segunda escravidão. Colonialismo.

Imagens.

Abstract: In the late eighteenth century, St. Domingue was nicknamed "pearl of the Antilles".

It was the most lucrative and coveted colony. Nevertheless, thirteen years of revolutionary

movement devastated the region and raised new questions. Abolitionism gained momentum

and culminated in the British End of Trafficking Act of 1807. In parallel, the second slavery

was structured and Cuba, until then with little evidence, ascended throughout the nineteenth

century. Two groups of sources become central to the research. The British soldier works

Marcus Rainsford and the books of the Frenchman Jean Louis Dubroca.

Key-words: Saint Domingue. Abolitionism. Second slavery. Colonialism. Pictures.

1. O Atlântico integrado:

O período compreendido entre os séculos XVI e XIX comportou a maior experiência

escravista da história da humanidade. Tratava-se de uma estrutura inédita, altamente

comercial e comprometida em promover a exploração de milhões de africanos pelas

Américas. Ainda assim, a escravidão não era um sistema uniforme e o mundo atlântico

vivenciou um desenvolvimento desigual. E combinado2.

O Atlântico não deve ser reduzido a um conjunto de regiões distintas entre si. O

historiador Dale Tomich acentua que a fim de evitar o determinismo geográfico, muitos

1 Amanda Bastos da Silva, mestranda PPGH/UFF. E-mail: [email protected]

2 BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 4.

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pesquisadores esquivam-se de abordar o Atlântico como espaço histórico-social e considerá-

lo uma unidade de análise. Nesse ponto de vista, as fronteiras dos impérios se convertem em

mundos separados: britânico, holandês, espanhol, francês e português. Todos são tratados

como espaço fechado, coerente e de história própria3. Tomich se propõe a ponderar sobre a

questão e utiliza como base o conceito de “economia-mundo capitalista”. Em sua

argumentação, o Atlântico passa a ser tratado na sua singularidade e associado a um horizonte

maior de relações4.

Nesse contexto, Robin Blackburn acentua que a necessidade de açúcar em Londres ou

Amsterdã culminou em plantações nas Américas. Como Europa não dominava essas técnicas

agrícolas, precisou aprender o assunto com terceiros. Os empréstimos vieram acompanhados

de inovações, adaptações e se converteram em novas instituições e práticas sociais. A

colonização combinou negócios europeus e agricultura africana, processos americanos e

orientais, patrimonialismo tradicional e propriedade individual5. Essa rede exigia relações

imbricadas e organização extrema. Eram necessários planejamentos, controle dos gastos e a

garantia de que conseguiriam conter os riscos e cobrir os prejuízos6.

O escravismo do Novo Mundo apreendeu modelos da Antiguidade, mas de muitas

maneiras, se mostrou compatível à Era Moderna. Utilizou o transporte marítimo em grande

escala e antecipou os formatos modernos de consumo. “A ligação entre modernidade e

escravidão nos dá boas razões para estarmos em atenção ao lado obscuro do progresso.

Poderes sociais modernos - como agora temos muitas razões para saber - podem conduzir a

fins altamente destrutivos e desumanos” 7.

No tocante à pesquisa, o caso caribenho é de extrema importância. O Caribe colonial

possui simultaneamente a unidade e a diversidade atreladas à sua estrutura. Trata-se de uma

região heterogênea e vinculada a múltiplos grupos sociais, línguas, culturas, divisões políticas

e possibilidades econômicas. Essa complexidade foi acentuada quando a escravidão, o

colonialismo e o sistema de plantation impuseram uma unidade ao espaço. Invariavelmente, o

Caribe estava resignado ao sistema europeu e atrelado à desigualdade racial: Espanha,

Holanda, Grã-Bretanha e França, impuseram um preceito agrícola e, em grande medida,

açucareiro8. No entanto, a sua história vai além desse modelo.

3 TOMICH, Dale. O Atlântico como espaço histórico. Estudos Afro-Asiáticos, v. 26, n. 2, p. 221-240, mai./ago.

2004. 4 Ibidem. p. 224-225.

5 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 17.

6 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 4.

7 BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 6.

8 TOMICH, Dale. Pelo prisma da escravidão. São Paulo: Edusp, 2011. p. 96.

1069

A começar, mesmo com a predominância do açúcar, outras matérias-primas

emergiram, por exemplo, o café e o tabaco. Além disso, em meio ao escravismo, pequenos

plantadores ascendiam e grupos escravos se rebelavam. Finalmente, a despeito das

imposições culturais europeias, negros desenvolviam e consolidavam expressões artísticas,

sentimentos religiosos e variações linguísticas9. Compreender o Caribe como um todo ou

apurar alguma de suas regiões, significa desvendar essas múltiplas camadas. Ou seja,

esmiuçar quebra de padrões; conceber temporalidades históricas diferenciadas e estruturar as

relações entre o Caribe, as demais colônias Atlânticas e as suas respectivas metrópoles

europeias10

.

Essa pesquisa se propõe a apreender a complexidade caribenha através de alguns

pontos específicos. No final do século XVIII, São Domingos era a região mais próspera do

Novo Mundo e atrelava-se aos interesses da sua metrópole, a França, mas também Inglaterra e

Espanha. Apesar de subjugada, a colônia estava em constante busca por autonomia.

Participou de uma intensa troca de influências com as colônias vizinhas - o artigo enfatizará o

caso cubano -, produziu manifestos coloniais contra as imposições metropolitanas e

consolidou a principal revolução escrava da história da humanidade.

2. A colônia de São Domingos: tão afortunada quanto revolucionária.

São Domingos é comumente definido como a colônia mais bem-sucedida do século

XVIII, a “pérola das Antilhas”. Os adjetivos não são gratuitos. O antropólogo Sidney Mintz

acentua que a região estruturou o mais diversificado, tecnológico, avançado e bem fortificado

sistema escravista do Novo Mundo11

. Foram pioneiros na produção de café, melhoraram a

cana usada para fazer o açúcar e desenvolveram um elaborado sistema de irrigação. Sozinho,

São Domingos lucrava mais que todas as outras colônias juntas da metrópole francesa12

. Em

1789, alvorecer da Revolução Francesa, São Domingos representava dois terços do comércio

da França com o exterior e se tratava da principal entrada do tráfico de escravos europeu. A

quantidade de africanos que desembarcou na região é enorme. Em 1720, 47 mil; em 1730, 80

mil, de forma que em 1789 existiam mais de 400 mil escravos na colônia13

.

Elevados números não vieram sem intensa exploração. O trabalho em São Domingos

começava muito cedo, ainda na madrugada. Às 8h havia um breve café da manhã e então

9 Ibidem. p. 96.

10 Ibidem. p. 96.

11 MINTZ, Sidney. Caribbean transformations. New York: Columbia University Press, 1989.

12VIANA, Larissa; SECRETO, María Verónica; ALADRÉN, Gabriel (Org). História da América II. Rio de

Janeiro: Fundação Cecierj. 2011. p. 90. 13

BLACKBURN, Robin. Op. Cit. p. 235.

1070

seguiam trabalhando até o meio dia. Às 14h retomavam e iam até as 22h, às vezes 23h14

.

Dormiam em cabanas com aproximadamente 06 metros de comprimento por 03 de largura e

3,5 de altura. O solo era de terra batida e as paredes de palha. Não havia janelas. Nesse espaço

moravam famílias inteiras. C. L. R James ressalta que precisavam conviver com o medo, o

excesso de trabalho e a desnutrição. Alguns cultivavam galinha e vegetais para trocar por

outras mercadorias e, em casos excepcionais, conseguiam juntar dinheiro suficiente para

comprar a própria liberdade15

.

Nesse contexto, os castigos eram intensos, as chicotadas frequentes e a mutilação

costumeira. A depressão e o suicídio eram habituais, bem como o ódio pelo seu senhor. À

noite, celebravam o vodu e cantavam a sua canção favorita: “Juramos destruir aos brancos de

todas as suas possessões, melhor morrer do que faltar a esse juramento” 16

. De acordo com

Gèrdes Fleurant, o vodu é uma prática religiosa que sintetiza elementos das culturas Ewe-fone

Ioruba. Ele esteve presente na África antes do tráfico atlântico e o termo deriva da palavra

“deus”. A religião se tornou uma forma de oposição ao regime escravista e a religião oficial17

.

Em 1789, a França deu início ao seu movimento revolucionário. O processo findou um

sistema absolutista de mais de mil anos, condenou o privilégio de alguns estamentos, como a

nobreza e o clero, e se tornou o marco de passagem da Idade Moderna para a

Contemporânea18

. Ainda assim, o evidente paradoxo entre os ideais de igualdade, liberdade e

fraternidade pregados na Europa e a manutenção da escravatura nas colônias foi, ao menos

inicialmente, ignorado pela França.

São Domingos possuía as pré-condições para uma revolta e era natural que odiassem

os seus senhores e desejassem destruí-los. Sobre essa conjuntura, Eugene Genovese sublinha

que os negros de São Domingos não precisavam dos jacobinos brancos de Paris para lutar

pela liberdade, bem como os brancos não aprenderam com os negros sobre a igualdade. Mas,

ao mesmo tempo, esse ideal revolucionário se consolidou nos dois lados do Atlântico19

.

Em agosto de 1791, alguns negros de São Domingos se reuniram na floresta de Bois

Caïman. Os escravos atravessaram a ilha, viajaram quilômetros e apesar dos impedimentos,

dançaram, cantaram, praticaram o vodu e... Conspiraram. Um dos primeiros líderes foi Dutty

Boukman, um sacerdote negro, e os relatos destacam que ele estava inspirado. Falou sobre

14

JAMES, C.L.R. Os jacobinos Negros. São Paulo: Editora Boitempo, 1938. p. 27. 15

Ibidem. p. 28. 16

No original, “Eh! Eh! Bomba! Heu! Heu! Canga! Bafio té! Canga, mouné de lé! Canga, do ki la Canga, li”.

Tradução: ibidem. p. 33. 17

FLEURANT, Gèrdes. Dancing Spirits. Rhythms and Rituals of the Haitian Vodun, the Rada Rite. Westport,

Connecticut: Greenwood Press. 1996. p. 209. 18

VOVELLE, Michel. Breve História da Revolução francesa. Lisboa: Ed. Presença, 1994. 19

GENOVESE, Eugene. Da rebelião à Revolução. São Paulo: Global Editora, 1983. p. 88.

1071

deus e vingança, enfatizou a necessidade de serem livres e respeitarem as tradições20

. O plano

possuía uma dimensão grandiosa, havia pelo menos 12 mil escravos em Le Cap, e o objetivo

era o extermínio dos brancos21

.

De início, essas lutas não almejavam separar a metrópole da colônia, mas nem por isso

eram menos políticas. Segundo a filósofa política Hannah Arendt as revoluções são mais que

meras mudanças ou acontecimentos violentos. Elas ocorrem quando a população deixa de

acreditar que a pobreza lhes é inerente. Começam a duvidar das distinções sociais e passam a

perceber que o modo em que vivem não precisa ser inevitável ou eterno22

. Na mesma linha, o

historiador Valério Arcary sublinha que uma revolução se estrutura quando pessoas, até então

indiferentes ao coletivo, despertam à luta política. São processos que acontecem com alguma

raridade. As massas oprimidas reclamam e até resistem, mas hesitam em acreditar. Estão

atreladas ao medo, receosas às represálias dos poderosos23

. Vez ou outra insistem e

desenvolvem movimentos de participação popular “tão ou mais autênticos, verdadeiros e

representativos que eleições” 24

.

A Revolução de São Domingos não possui precedência. Acentuou as tensões

iluminismo, inverteu os princípios dos Direitos do Homem e redefiniu o significado de

liberdade. A luta pela emancipação e autonomia distinguiu o conflito não só de outros

burgueses, mas também de todas as outras revoltas e rebeliões escravas25

. Trata-se da primeira

grande quebra da escravidão, que culminou na primeira república formada por ex-escravos, a

segunda do Novo Mundo e a terceira da História, até aquele momento.

O antropólogo Michel Trouillot considera que alguns meses antes da revolução ter

início, um colono francês afirmou a sua esposa que os negros jamais seriam capazes de se

rebelar. Eram muito obedientes e submissos26

. Quando as primeiras notícias do movimento

chegaram à Europa a principal reação foi à descrença: o que estava sendo dito deveria ser

falso. A revolução haitiana, por muito tempo significou pensar o impensável e foi a partir dela

que muitos repaginaram as análises sobre o conceito de raça, a escravidão nas Américas e o

colonialismo27

.

20

FERRER, Ada. Freedom’s mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York: Cambridge

University Prress, 2014. p. 17. 21

JAMES, CLR. Op. Cit. p. 91. 22

ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Editora Ática, 1990. p.17. 23

ARCARY, Valério. O que é uma revolução? In: Revista Dialetus, v. 2, n.5, p. 51-63, ago./dez. 2014. 24

Ibidem. p. 55. 25

FICK, Carolyn. Para uma (re)definição de liberdade: a Revolução no Haiti e os paradigmas da Liberdade e

Igualdade. In: Estudos Afro-Asiáticos. v. 26, n. 2, p. 359-361, mai./ago. 2004 26

TROUILLOT, Michel-Rolph. Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995. p. 72. 27

Ibidem. p. 72.

1072

As notícias chegaram à França por meio de um embaixador inglês. Apesar do

sentimento catatônico, seis mil franceses, quatro mil da guarda nacional e dois mil de tropas

regulares, saíram da França para São Domingos a fim de acabar com a revolução28

. Os

comissários eram Sonthonax, Polverel e Aihaud. Pouco depois, Laveaux uniu-se a eles29

.

Além disso, diversas medidas foram tomadas. Em abril de 1792, a França decretou igualdade

entre homens livres de todas as cores. Em agosto de 1793, comissários coloniais

estabeleceram o fim da escravidão em São Domingos. Pouco depois a metrópole fez o mesmo

e afirmou que todos os homens que viviam nas colônias, independente da cor, eram cidadãos

franceses. De início a lei se aplicava a São Domingos, mas em 1795 a Convenção estendeu o

decreto a todo o território francês30

A França acreditava que conseguiria atrair os negros e afastá-los de invasores. As

medidas eram um avanço, mas também uma tentativa de subjugar os rebeldes e mantê-los

contidos até que a revolução se esvaísse. Em 1802, Napoleão Bonaparte desistiu da iniciativa,

retomou a escravidão nas colônias e recrudesceu o ataque a São Domingos. Apesar de uma

estratégia bem planejada, Bonaparte não saiu vitorioso e em 01 de janeiro de 1804 São

Domingos se converteu no independente Haiti. O processo atraiu a atenção de inúmeros

indivíduos e gerou diversos pontos-de-vista. Nesse contexto, o artigo analisará as abordagens

do britânico Marcus Rainsford e do francês Jean Louis Dubroca. À primeira vista opostos, de

vez em quando complementares.

3. O abolicionismo em Marcus Rainsford:

Em 1798, os britânicos foram expulsos de São Domingos. A medida ambicionava

trazer o controle total da ilha aos negros e causou certo impacto. Pouco depois, o soldado

britânico Marcus Rainsford desembarcou na colônia. Precisou fingir ser americano para que

pudesse transitar pela região e durante um tempo foi bem-sucedido. Nos anos seguintes

publicou dois livros sobre a viagem: A memoir of transactions that took place in St. Domingo,

in the spring, de 1802 e An historical account of the Black empire of Hayti: comprehending a

view of the principal transactions in the revolution of Saint Domingo, de 1805.

O primeiro se constitui de um relato pessoal de 31 páginas sobre a estadia de Marcus

Rainsford em São Domingos. Em seu texto, Rainsford trata a si mesmo como um simples

28

DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo: Unesp, 2011.

p. 161. 29

DRESCHER, Seymour. Op. Cit. p. 161. 30

BLACKBURN, Robin. The American Crucible: Slavery, Emancipation And Human Rights. New York: Verso,

2007. p. 161.

1073

soldado disposto a desmistificar São Domingos e combater preconceitos31

. De acordo com

Rainsford, falava-se sobre São Domingos: muitos alarmes, conjecturas e crises de ansiedade.

O autor se sentia no dever moral de negar essas questões. O movimento era legítimo e não

existiam razões para a Grã Bretanha se sentir temerosa.

Apesar de os negros no geral causarem boa impressão ao soldado, o maior responsável

pelas benesses de São Domingos foi o líder revolucionário Toussaint Louverture. Tratava-se

de um indivíduo letrado, convertido ao catolicismo e integrado ao militarismo. Em meio à

destruição da guerra, Toussaint brilhava e conduzia negros e estrangeiros com perspicácia.

Em certo momento, Rainsford teve a oportunidade de jantar com Toussaint e o britânico

enfatiza que Louverture esbanjou humildade e fez questão de não sentar à cabeceira da

mesa32

.

No entanto, após três semanas na ilha, Rainsford foi descoberto. Faltavam passaportes

e outros documentos que comprovassem a sua nacionalidade. Depois de um rápido

julgamento, o britânico foi condenado à morte; acusaram-no de ser espião. Contudo, em uma

virada na história, Toussaint em pessoa decidiu dar uma segunda chance à Rainsford. Anulou

a pena de morte e determinou que o soldado não voltasse à ilha sem os papeis necessários33

.

Rainsford estava salvo. Toussaint reafirmara a sua grandiosidade. Havia a necessidade de um

segundo livro.

Para o autor, essa segunda obra era indispensável. Em consonância ao seu primeiro

texto, Rainsford utiliza 544 páginas para destacar que os eventos em São Domingos eram

grandiosos e provavelmente alterariam a história da humanidade. No entanto, as falhas da

sociedade iluminista, os preconceitos frequentes e medos infundados nublavam a

compreensão geral. Daí a importância de seus relatos; por mais falhos e parciais que fossem,

eram genuínos34

.

Negros foram capazes de repelir os seus inimigos com vigor, em seu próprio país.

Rainsfod afirmava compreender a questão, dizia-se cônscio das consequências e apto a tratar

do assunto. O soldado comenta que outros textos antes do seu foram produzidos, todos sem

cautela e embasamento35

. Para suprir essa carência e evitar que o movimento fosse creditado

em outra época, por pessoas não contemporâneas aos fatos, o britânico apressou-se a escrever

31

RAINSFORD, Marcus. A memoir of transactions that took place in St. Domingo, in the spring. London: John

Carter Brown Library, 1802. p. 8. 32

Ibidem. p. 14. 33

Ibidem. p. 30. 34

RAINSFORD, Marcus. An historical account of the Black empire of Hayti: comprehending a view of the

principal transactions in the revolution of Saint Domingo. London: John Carter Brown Library, 1805. p. 40. 35

Ibidem. p. 44.

1074

o relato de 1802. Três anos depois, com mais tempo e discernimento “encontrar-se-á uma

versão sucinta e confiável, na qual a impolidez da crueldade e os erros da injustiça são

expostos, preferencialmente que qualquer preconceito ou hábito nacional” 36

.

Rainsford desejava elencar os pontos positivos da população de São Domingos. Ao

seu modo. A começar, hospedou-se no Hotel da República, edifício elegante e bem

organizado. Exceto pela pele predominantemente negra, não notou grandes diferenças de uma

hospedagem europeia. No local em que fez as suas refeições, foi tratado com cordialidade e

educação e sentiu-se como em um café londrino. No campo das artes, assistiu a uma

encenação de Molière com precisão idêntica aos franceses37

. Quando disse que combateria

preconceitos, Rainsford o fez de forma segura. Não se propôs a esmiuçar a cultura africana

em São Domingos, a construção do créole, ou as influências que os negros deram aos homens

brancos.

Nesse ponto de vista, os negros eram tão gentis, estáveis e obedientes que dificilmente

se rebelariam por conta própria. Para Rainsford, os escravos poderiam ser felizes em São

Domingos. O clima era agradável, estavam bem vestidos e alguns possuíam pequenas

plantações ou criavam galinhas, porcos e até cavalos. No entanto, os colonos não hesitaram

em explorá-los e tratá-los como a classe mais ordinária de seres humanos. Os franceses não

eram necessariamente maus, mas consideravam a sua estadia na ilha provisória, estavam ali

para fazer ou reconstruir fortunas. Não havia tempo para desenvolver laços. Como

consequência, o espírito revolucionário cresceu e se consolidou ao longo dos anos38

.

Novamente Rainsford mostrou-se reticente em quebrar padrões europeus. Os negros,

obedientes e submissos, iniciaram o movimento devido à incompetência francesa. Não porque

desejaram e podiam, porque jamais estariam plenos com a liberdade cerceada. Para o autor, o

tráfico e a escravidão eram possibilidades plausíveis. Bastava que os senhores não se

excedessem e nem abusassem do poder que possuíam. Diante de um cenário negativo e já

desgastado, a abolição emergia com um caminho que, ao menos para Rainsford, deveria ser

percorrido com cuidado39

.

A ideia era comum. O movimento abolicionista estava extremamente atrelado ao

contexto em que se inseria, possuía objetivos diversos e iniciativas não coordenadas40

. Os

36

Ibidem. p. 48. 37

Ibidem. p. 280. 38

Ibidem. p. 122. 39

Ibidem. p. 160. 40

TEMPERLEY, Howard. Eric Williams and Abolition: The Birth of a New Orthodoxy. In: SOLOW, Barbara

L.; ENGERMAN, Stanley L (Org). British Capitalism and Caribbean Slavery. The legacy of Eric Williams.

Cambridge: Cambridge University Press, 1987. p. 229-257.

1075

primeiros impulsos para mudança giravam mais em torno de melhorias que na abolição do

tráfico e emancipação da escravatura. Rainsford, inclusive, acreditava que a Grã Bretanha

com as suas fábricas possuía formas de trabalho tão virulentas quanto o escravismo das

colônias41

.

Além disso, havia os fatores econômicos como possíveis embargadores. Em 1807,

ano de fim do tráfico, a Grã Bretanha era a maior potência europeia e as suas colônias

rendiam altos lucros. Em meados de 1815, nem Cuba ou Brasil ultrapassaram a liderança da

Grã Bretanha na produção de açúcar e café. A ascensão da indústria também não funcionou

como justificativa, havia a plena capacidade dos dois sistemas conviverem. E conviviam42

. Os

próprios abolicionistas reconheciam que o escravismo era altamente lucrativo. Rainsford

afirma que em termos estritamente econômicos, não havia motivos para abolir o tráfico ou

emancipar escravos43

.

De acordo com o historiador Christopher Brown, a campanha antiescravista britânica

precisava de alguns elementos para se desenvolver. A começar, a escravidão deveria ser

considerada um erro moral. Em seguida, esse erro precisava receber cunho político, atrair

interesse sustentado e se tornar fonte de preocupação. Nesse contexto, os envolvidos

(políticos, grupos religiosos, filantropos) deveriam estruturar as novas inquietações.

Finalmente, o confronto com o sistema escravo tinha de ser problema pessoal e coletivo,

prioridade para além dos protestos iniciais, sustentada em uma organização coerente e

institucional44

.

A conjuntura estava diretamente atrelada à Revolução Americana. O conflito não

causou o abolicionismo britânico, mas influenciou significativamente o caráter moral das

instituições coloniais e práticas imperiais. O escravismo foi repensado, transformou-se em

símbolo e fonte de auto-exame. Ambos os abolicionismos foram organizados em bases

reformistas, com participação de comunidades religiosas e direcionados à ação legislativa,

além de promoverem debates públicos e participação popular45

.

A Grã Bretanha era uma grande potência, provavelmente a maior, mas não era a única

nação do mundo. Não existia poder dentro ou fora da lei que fizesse com que a Grã Bretanha

pudesse abolir o tráfico em todo o globo. Aliás, até o último momento havia dúvidas se o

41

RAINSFORD, Marcus. Op. Cit. p. 160. 42

DRECHER, Seymour. Le “déclin” du système esclavagiste britannique et l’abolition de la traite. In: Annales.

Histoire, Sciences Sociales, v. 31, n. 2, p. 414-435, mar./abr. 1976. 43

RAINSFORD, Marcus. Op. Cit. p. 160. 44

BROWN, Christopher. Moral Capital. North Carolina: The University of North Carolina Press, 2006. p. 36. 45

Ibidem. p. 27.

1076

tráfico se tornaria ilegal na Grã Bretanha. Em concomitância aos projetos abolicionistas,

desenvolveu-se a chamada segunda escravidão.

4. Jean Louis Dubroca: São Domingos e a segunda escravidão.

A revolução de São Domingos devastou economicamente a colônia e outras regiões

emergiram como substitutas no contexto da segunda escravidão. De acordo com Dale

Tomich, os interesses da Grã Bretanha prevaleceram à medida que a hegemonia da região, a

economia-mundo e a Revolução Industrial se mostraram capazes de reestruturar as

necessidades e solidificar essa nova escravidão. Nesse contexto, o desenvolvimento da classe

média, o aumento do número de trabalhadores e a procura por novas matérias primas

consolidaram o açúcar, o café e o algodão como bens primordiais46

. Enquanto os antigos

centros escravistas declinavam, Cuba, Brasil e o Sul em dos Estados Unidos ascendiam. Além

disso, o historiador Tâmis Parron estruturou a necessidade de se pensar além do ponto de vista

econômico. Parron acredita que em adição à hegemonia britânica, é preciso compreender as

ações de senhores e escravos, a dimensão política e os fatores culturais47

.

Entre a primeira e a segunda escravidão existem semelhanças e descontinuidades. A

primeira escravidão associava-se aos sistemas da Espanha, Portugal, Países-Baixos, Grã

Bretanha e França. Possuiu caráter colonial, mercantil e atrelado ao tráfico de escravos e a

plantation. A sua estrutura era um acontecimento inédito. Impérios marítimos europeus

compravam seres humanos no continente africano para utilizá-los como mão-de-obra nas

Américas. Era pouco diversificada, concentrada no trabalho braçal e racial dos africanos. Em

colônias mais bem sucedidas, como São Domingos, o número de escravos era maior que de

homens brancos48

A segunda escravidão negava esse status de colônia, seja de forma efetiva, como no

caso dos Estados Unidos ou por meio de aspirações, como Brasil e Cuba. Apresentava um

regime mais autônomo, que reivindicava soberania e era capaz de suportar movimentos

revolucionários, além de atender às demandas do pós-colonialismo. Certamente precisava de

um Estado que a amparasse, mas não que a controlasse. Provavelmente era mais moderna e

produtiva, definitivamente não era mais humana. Ambos os modelos utilizaram cativos a

46

TOMICH, Dale. Pelo o prisma da escravidão. São Paulo: Edusp, 2011. p. 83-89. 47

PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846.

Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade de São

Paulo, São Paulo, 2015. p. 14. 48

BLACKBURN, Robin. Por que a segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael. SALLES, Ricardo.

Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2016. p. 14.

1077

partir de critérios sub-raciais, lançaram mão do trabalho forçado e trataram os escravos como

mercadorias que poderiam ser compradas e vendidas49

No tocante à pesquisa, o caso cubano é de extrema importância. Cuba possuía

escravos antes de São Domingos organizar a sua Revolução. No entanto, até finais do século

XVII a colônia era mais uma sociedade com escravos que uma sociedade de escravos. Com a

queda econômica de São Domingos, o cenário tomou novas proporções. Plantadores cubanos

compreenderam que o espaço deixado por São Domingos, em breve Haiti, não poderia ser

desperdiçado e trabalharam para expandir a escravidão e o açúcar50

.

Desde 1780, os plantadores de Havana enviaram petições ao rei solicitando a abertura

do comércio de escravos. Destacavam o potencial de Cuba e a possibilidade de a Espanha

competir diretamente com Portugal e Inglaterra. O crioulo e advogado Francisco Arango y

Parreño viajou à Madri e tornou-se uma espécie de porta-voz da causa. As medidas surtiram

efeito. O império espanhol comprometeu-se a reestruturar a região e o açúcar, bem como a

escravidão cresceram a olhos vistos51

.

Nesse novo cenário, os plantadores cubanos passaram a se preocupar em expandir a

produção, elevar a qualidade do produto e reduzir os custos. A agricultura açucareira ficou

centrada na parte ocidental da ilha e se expandiu pelo sul e oeste de Havana. Essa indústria

corroborou para a construção de ferrovias, estruturou novos engenhos e tecnologias e

deslocou a produção de tabaco e café para outras regiões52

.

Até 1791, São Domingos emergiu como um exemplo. A próxima e próspera colônia

era um esquema a ser imitado e, quem sabe, superado. Quando a rebelião de escravos tornou-

se evidente, os senhores mudaram de posicionamento, mas notaram que o vácuo econômico

deixado parecia tão bom quanto uma ajuda divina53

. Pouco depois, compreenderam que a

situação era mais complexa. Em novembro do mesmo ano, relatos da revolução já estavam

difundidos e a suposta benção ganhou ares de maldição. E se os horrores de São Domingos se

repetissem em Cuba?

Arango estava otimista. Acreditava a revolução não se estenderia e por mais intensa

que parecesse, tratar-se-ia de um momento breve para Cuba ampliar as suas produções e se

manter em alta quando a França recuperasse a colônia. Nesse ponto de vista, era válido seguir

os passos de São Domingos em relação ao colonialismo, o açúcar e a escravidão, mas tomar

49

Ibidem. p. 19. 50

FERRER, Ada. Freedom’s mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York: Cambridge

University Prress, 2014. p. 30. 51

Ibidem. p. 33. 52

TOMICH, Dale. Op. Cit. p. 131. 53

FERRER, Ada. Op. Cit. p. 34-37.

1078

cuidado com as convulsões e conter a iminência do Haiti54

. Ao longo dos anos, outras

medidas foram tomadas por Arango e seus companheiros. Por exemplo, tornou-se necessário

vigiar os territórios cubanos mais afastados, realizar contagens da população e, na medida do

possível, exigir relatórios mensais dos colonos sobre a mão de obra escrava55

.

Na teoria, havia até dúvidas se os escravos de fato iniciaram a revolução. Relatos

afirmavam que os verdadeiros líderes eram mulatos ou brancos rebeldes e os escravos meros

seguidores. Na prática, várias restrições foram elaboradas ou reafirmadas. Desde a Revolução

Francesa as autoridades espanholas em Cuba confiscavam jornais, panfletos e cartas vindos

da França que poderiam incutir o espírito revolucionário. Em meio ao caos de São Domingos,

a coroa passou a se preocupar também com a procedência dos negros vindos do tráfico56

.

Traficantes e colonos asseguravam que os escravos vinham diretamente da África. Na

verdade, não era fácil saber a real origem dos negros e os navios poderiam vir com indivíduos

que presenciaram ou até participaram da Revolução de São Domingos. Ao longo dos 13 anos

de movimento, a Espanha ordenou e revogou leis que proibiam os escravos franceses em seus

territórios. Nunca foi simples. Os decretos demoravam a chegar, nem sempre eram

obedecidos e muitas vezes os lucros faziam valer os riscos57

.

Paralelamente, em 1802, Napoleão Bonaparte decidiu retomar o controle de São

Domingos. Extinguiu a relação amistosa que vinha levando com Toussaint, restabeleceu a

escravidão nas colônias e... Contratou o escritor francês Jean Louis Dubroca para

desmoralizar os principais líderes do movimento revolucionário. A encomenda se consolidou

em duas obras: La vie de Toussaint Louverture, de 1802, sem ilustrações, e La vie de Jean

Jacques Dessalines, de 1806, com 10 litografias.

Curiosamente, os livros foram lançados primeiro em espanhol, na famosa editora

Mariano Zúñiga y Ontiveros. Meses depois elas foram editadas em outros idiomas: francês,

inglês, alemão e holandês. As justificativas remetiam à facilidade na publicação imediata das

obras58

. De forma consciente, ou não, alguns elementos vieram à tona quando esses textos e

imagens propagandísticos passaram a circular pela Espanha e suas colônias.

Segundo Dubroca, não havia como a Europa permanecer indiferente ao que acontecia

em outras nações. A questão se esclareceria após todos tomarem conhecimento dos

tenebrosos acontecimentos em São Domingos. De acordo com o autor, a desunião dos

54

FERRER, Ada. Op. Cit. p. 41. 55

FERRER, Ada. Op. Cit. p. 43. 56

FERER, Ada. Op. Cit. p. 56. 57

FERRER, Ada. Op. Cit. p. 56. 58

MORA, Arturo Soberón. Felipe de Zuñiga y Ontiveros, um impresor ilustrado de la Nueva España. TEMPUS:

Revista de História de la Facultad de Filosofia y Letras, Unam, v.1, n. 1, p. 52-74, jan./dez. 1993.

1079

brancos da ilha fez com que os negros se apoderassem dela. A partir de então, agiram com as

próprias mãos, em meio a uma crueldade sem precedentes 59

.

Na primeira obra Toussaint é deslegitimado em cerca de 64 páginas. De acordo com

Dubroca, o negro era um exímio cavaleiro, dedicado ao movimento e pouco suscetível a

distrações60

. Os únicos elogios convertiam-se nos principais defeitos. Aparentemente,

Toussaint utilizava essas habilidades para cometer crimes e traições, matar seres humanos se

assim julgasse conveniente. Além disso, deturpava os ensinamentos do catolicismo; vivia

cercado de sacerdotes, mas não hesitava em trocar o altar pela carnificina. Dizia-se letrado,

integrado à cultura europeia, mas mal falava o francês e muitos dos seus textos eram escritos

pelos seus comissários61

.

As acusações a Jean Jacques Dessalines eram tão ou mais intensas. Em 140 páginas o

africano é descrito como um ser atroz, coberto de sangue humano e destituído dos costumes

da civilização europeia. Nos parcos momentos pacíficos com os homens brancos, Dessalines

não hesitou em matar os negros, separar mães dos filhos e estuprar mulheres. Ainda que não

possuísse intelectualidade, era movido por ambição e juntamente à Toussaint promoveu a pior

sucessão de eventos da história da humanidade62

.

As litografias consolidavam o cenário e traziam à tona a brutalidade da revolução.

Imagens gráficas foram valorizadas, com assassinatos, decapitações e desmembramentos.

Naturalmente, não se tratam de documentos neutros. Segundo Peter Burke: “As imagens não

devem ser consideradas simples reflexos de suas épocas e lugares, mas sim extensões dos

contextos sociais em que elas foram produzidas e, como tal, devem ser submetidas a uma

minuciosa análise, principalmente de seus conteúdos subjetivos.” 63

.

59

DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown Library, 1806. p. 1. 60

DUBROCA, Jean Louis. La vie de Toussaint Louverture. London: John Carter Brown Library, 1802. p. 62. 61

Ibidem. p. 63. 62

DUBROCA, Jean Louis. Op. Cit. p. 18. 63

BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e imagem. São Paulo: Edusc, 2004. p. 11-25.

1080

Figura 1: Coroação de Juan Santiago Desalines primeiro imperador do Haiti.64

A figura corresponde à última imagem do livro 65

. O imperador ocupa um trono alto

sobre um dossel, possui uma coroa imperial em sua cabeça, uma manta de arminho sobre os

ombros e o cetro na mão direita. O seu olhar está voltado ao espectador e com a mão esquerda

aponta para sua corte de negros, agora cidadãos haitianos66

. Estão reunidos em um palácio de

arquitetura clássica. No livro, a figura está atrelada ao texto da nova constituição, com suas

declarações contra europeus e católicos.

64

Cf: DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown Library, 1806, p.

82. 65

No original: Coronacion de Juan Santiago Desalines primer emperador de Hayti.Tradução minha. Na

verdade, o sobrenome do novo imperador era Dessalines, com dois S, e esse desvio ortográfico foi cometido

durante todo o livro. Descuido ou descaso? Juan Santiago correspondia a uma das regiões tomadas pelo negro e

provavelmente local de sua coroação. Nos dias de hoje, Juan Santiago faz parte da República Dominicana e não

do Haiti. 66

DUBROCA, Jean Louis. Op. Cit. p. 82.

1081

De acordo com Dubroca, os colonos foram descuidados, mas os únicos responsáveis

pelo caos de São Domingos eram os negros. Incivilizados, violentos e rebeldes. A solução não

estava em melhorar as condições de vida dos escravos. Muito menos no fim do tráfico ou da

escravidão. Os homens brancos deveriam intensificar a repressão, extinguir as possibilidades

de organização negra e divulgar as atrocidades que ocorrera em São Domingos. É sabido que

a França não recuperou São Domingos, mas os textos e imagens de Dubroca mantiveram-se

úteis a outros cenários, como o cubano.

Imagens como essa serviam para ilustrar o texto, reforçar intenções ou sintetizar

conteúdo. Ao mesmo tempo, eram capazes de ofuscar e alterar o sentido das palavras. Havia

ainda a possibilidade de enfatizar certos momentos da historia67

. As ilustrações de Dubroca

possuem um sentido anti-abolicionista. Não representam acontecimentos fundamentais da

Revolução de São Domingos, não existem cenas efetivas de batalha e a coroação de

Dessalines corresponde ao único evento ilustrado que com certeza ocorreu. Não

necessariamente dessa forma. As demais imagens retratam episódios menores, algumas não

foram descritas no livro e podem simplesmente ter sido inventadas.

O Dessalines da imagem é convertido em um imperador de símbolos ocidentais. No

entanto, trata-se de um soberano e de uma corte negras. Os homens brancos não são sequer

bem-vindos. Os negros costumavam ser concebidos como seres menores, pobres e exóticos.

São Domingos não só inverteu essa hierarquia, como também extirpou os brancos. A

recordação do europeu que fechasse o livro após ver Dessalines nessa posição não poderia ser

positiva. Espanha e Cuba deveriam permanecer atentos e até pelo menos 1815, as obras de

Dubroca foram prioridade de publicação na editora do império espanhol68

.

5. Conclusão:

É difícil precisar se Marcus Rainsford e Jean Louis Dubroca possuíam consciência do

lugar de suas obras. Alguma noção é provável que sim. Rainsford relacionava-se ao

abolicionismo e Dubroca foi contratado por Napoleão Bonaparte. Além disso, ambos

escreveram textos de fôlego e mostraram-se determinados a disseminar suas respectivas

mensagens. Em certa medida opostas, de vez em quando complementares.

Ao mesmo tempo, se hoje é relativamente possível estruturar o abolicionismo anglo-

americano, os conceitos de primeira e segunda escravidão e a ascensão de Cuba enquanto

colônia, Rainsford e Dubroca foram contemporâneos a essas questões. Por mais engajados

67

BURKE, Peter. Op. Cit. p. 11-25. 68

MORA, Arturo Soberón. Op. Cit. p. 52-74.

1082

que estivessem ao período de seus livros, não havia como saber que o tráfico britânico

findaria pouco depois, que a segunda escravidão se consolidaria ao longo do século XIX e

Cuba se tornaria a “pérola” que fora São Domingos.

À indiscutível parcialidade desses autores, somam-se uma série de dúvidas e

imprecisões. Não por isso Rainsford e Dubroca são menos válidos como fonte de pesquisa.

Cabe ao historiador assimilar e ordenar esses processos em pesquisas acadêmicas e

seminários temáticos.

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DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown

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