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Os Escritos do Eu e o Saber da Experiência

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Ensaio sobre escritos autobiográficos, segundo Georges Gusdorf

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OS ESCRITOS DO EU E O SABER DA EXPERIÊNCIA1

Valéria Moura Venturella2

L’homme de lettres n’est pás l’homme de l’être.Georges Gusdorf

Este trabalho tem como objetivo apresentar os textos Écritures du Moi et Genres

Littéraires e Le Journal: Dire ma Vérité de Georges Gusdorf, respectivamente os capítulos 11 e

12 de seu livro Lignes de Vie 1, que trata dos escritos íntimos, ou textos auto-biográficos, à luz

da teoria literária tradicional, em seus pontos mais relevantes no que tange o estudo e a

interpretação de obras autobiográficas.

As grandes questões colocadas pelo autor dizem respeito às semelhanças e diferenças

entre os diferentes tipos de “escritos do eu”, à situação desses escritos na classificação da

literatura em gêneros, e à metodologia mais apropriada para a abordagem desses documentos.

Este trabalho acompanha essas questões e tenta colocá-las na perspectiva da relevância dos

escritos íntimos como documentos humanos que atestam nossas experiências e realizações

em nossa busca por autoconhecimento.

Gusdorf, no texto denominado Écritures du Moi et Genres Littéraires, se propõe a

examinar e questionar a posição ocupada pela literatura pessoal, constituída pelos chamados

“escritos do eu”, na classificação tradicional dos gêneros literários. O autor afirma que esse tipo

de redação constitui um território desorganizado na epistemologia literária, um conjunto vasto e

indeterminado de obras que ocupa um lugar fluido na nos estudos sobre literatura.

O autor nos lembra que o século XIX afirmou a categoria da evolução, no sentido

darwiniano do termo, não apenas nas ciências naturais, mas também nas humanas. A partir da

publicação de “A Origem das Espécies”, os gêneros literários passaram a ser concebidos como

espécies vivas em processo gradativo de transformação. O desenvolvimento dos diferentes

tipos de escritos, que derivam de mutações imprevisíveis e rivalizam entre si em uma

concorrência que assegura a sobrevivência do mais apto, passou a ser uma visão dominante.

Gusdorf destaca uma diferença fundamental entre a abordagem de Darwin e a dos

teóricos literários “evolucionistas”. Em seus estudos, o pesquisador inglês constatou a aparição

das mutações, mas não se preocupou em estabelecer suas origens. Já os teóricos literários

tendem a postular o surgimento e a evolução dos gêneros literários a partir de um evento

específico arbitrariamente definido. Para a autobiografia, o ponto estabelecido de origem

parece ser as Confissões de Rousseau. Quanto aos diários íntimos, seus estudiosos fazem seu

aparecimento coincidir com o surgimento da consciência romântica da realidade humana.

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Literaturas Lusófonas, ministrada pela Profa. Dra. Maria Luíza Ritzel Remédios no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de agosto a dezembro de 2006.2 Mestre em Educação e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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O estudioso francês, no entanto, considera que essas origens históricas estabelecidas

são insustentáveis. Há uma antiga tradição – registrada e representada pela análise de um

bom número de trabalhos – de escritos do eu em diversas partes do ocidente. Toda essa

herança considerável tem de ser ignorada para que a “origem” estabelecida possa ser

assegurada. Ele afirma que a história natural da literatura produz uma crítica literária imanente,

cujos julgamentos se baseiam em conceitos abstratos e dogmáticos.

Um desses conceitos é o de gênero. O termo, embora provenha do vocabulário da

história natural, teve seu sentido bem estabelecido também na teoria literária. A noção de

gênero literário, entre os que a utilizam, remete a um conjunto de representações inconscientes

que avalizam o uso de um determinado conceito de literatura, conceito esse que é, via de

regra, opressivo e, boa parte das vezes, decepcionante.

A literatura, em primeiro lugar, constitui uma das belas-artes. Como a intenção da obra

artística é provocar no observador um certo tipo de satisfação estética, é possível entender a

literatura como o uso estético, fundamentalmente não-utilitário, da linguagem. Um texto literário

é um documento redigido conforme certas normas estabelecidas para o que seja belo e

destinado a encontrar um leitor que identifique e aprecie esse padrão. Supõe-se, então, que o

escritor domine as técnicas artesanais da arte poética, e que o leitor as espere encontrar no

texto. Essas noções, segundo o autor, nos permitem compreender por que os especialistas se

recusaram, até o fim do século XIX, a reconhecer aos escritos íntimos o estatuto de obra

literária.

Em primeiro lugar, as autobiografias e os diários íntimos não são escritos segundo as

exigências de uma finalidade estética, e seu valor como um documento humano não reside

apenas nas capacidades do redator como escritor. A essência dos escritos íntimos se localiza,

fundamentalmente, em sua característica de registro de uma experiência humana única e, ao

mesmo tempo, universal, que é a busca de si mesmo. Assim, a qualidade do escrito não perfaz

o valor de uma autobiografia ou de um diário íntimo.

Em segundo lugar, o indivíduo que se dispõe aos escritos do eu não faz do texto um

instrumento de criação artística. Sua intenção é realizar uma pesquisa que tem a si mesmo

como objeto. Nesse sentido, o recurso da escrita constitui tanto um meio de investigação – um

projeto de autodisciplina que reprisa e retifica o sentido da vida pessoal – quanto um

instrumento de registro das descobertas realizadas, que permite concretizar os devaneios e

fixar as reflexões que são a própria investigação.

A escrita, nesse sentido, é um meio de comunicação. Os escritos do eu estabelecem

uma comunicação de si consigo, quando a memória não é suficiente para assegurar a validade

da experiência. Esse caráter instrumental não é próprio da composição literária conforme ela é

tradicionalmente definida. Gusdorf lembra, porém, que as noções de literatura e de gênero

literário foram criadas depois que o exercício dos escritos do eu já era uma tradição

estabelecida, e é absurdo esperar que o que foi escrito anteriormente à estipulação das regras

se enquadre nelas.

O autor conclui, então, que os escritos do eu não são literários em suas origens. Por

definição, eles não são realizados para serem publicados, pois se ocupam da vida pessoal de

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seu autor. Esses textos podem ocasionalmente se tornar literários, mas de uma maneira

subalterna, devido a suas características adicionais, e não essenciais. De fato, muitos

escritores adotaram a autobiografia ou os diários íntimos como meio de expressão e, mais

tarde, esses textos vieram a ser publicados e a assumir posições importantes no mercado

literário. Esses textos, de características excepcionais, não podem, porém, ser considerados

como uma autoridade agindo em retrocesso, normatizando a escrita íntima como um todo.

Nos casos dos escritos íntimos que atingem um estatuto de obra literária, o autor aponta

para o que ele denomina “o paradoxo do segredo”: os documentos, inicialmente escritos para

uso privado do escritor, atingem o grande público, que se apodera das reflexões mais

particulares de seu autor. Há, por outro lado, os textos autobiográficos que são, em sua origem,

escritos para serem publicados. Para se converter em uma obra literária, contudo, o escrito

íntimo deve renunciar ao caráter de espontaneidade: deve ser revisto, corrigido e expurgado,

mas nesse caso o tom intimista se perde, e esse texto não difere muito de um romance em

primeira pessoa, em que o “eu” é um personagem. E é aqui que uma diferença sensível entre a

escrita íntima e a composição literária emerge.

Os escritos do eu, redigidos originalmente como meio e registro de uma investigação

realizada pelo autor sobre si mesmo, não constituem uma literatura do eu no sentido próprio do

termo, e reduzi-los a um gênero literário – ou mesmo a vários – é deixar de reconhecer que

eles têm uma função específica para o ser humano. Escrever sobre nós mesmos é empreender

uma busca, é entrar em comunicação conosco, é estar atentos e questionar nossas

características e inclinações mais profundas. Sua abordagem e exploração não podem se

limitar ao âmbito da teoria da literatura, mas deve se localizar em uma instância interdisciplinar,

que possa dar conta da riqueza e da complexidade de sua natureza.

Ao longo do texto intitulado Le Journal: Dire ma Vérité, Gusdorf, dentre os tipos

diferentes de “escritos do eu” possíveis, foca sua discussão na autobiografia e nos diários

íntimos, que, segundo ele, constituem duas entidades autônomas na teoria literária, cada um

deles um objeto de estudos especializados. Enquanto autobiografia constitui um gênero literário

já bem consolidado, e ocupa um lugar seguro na classificação tradicional, o diário íntimo não

goza do mesmo estatuto.

Uma autobiografia é, em geral, uma obra realizada na maturidade. Sendo uma narrativa

documental de vida, ela é um projeto de totalidade, que uma proposta de síntese, um livro

fechado. Por tratar de um tempo que não é o de agora, a autobiografia é escrita a partir de um

distanciamento considerável. Ela engaja o autor em um acerto de contas consigo mesmo e

com suas experiências, e sua escrita pressupõe uma preparação cuidadosa.

O autor conhece a palavra final da autobiografia. Ela é uma história que começa em um

ponto específico e termina em um momento privilegiado, ambos estipulados pelo narrador, e

segue uma via traçada. Ela deve poder ser lida como um romance ou um livro de história, e,

por isso, exige coerência. O autor desse tipo de obra necessita assumir a regra aristotélica das

três unidades – de tempo, de lugar e de ação – e, portanto, a autobiografia rejeita como inúteis

todas as aberturas sem saída e as possibilidades que não se concretizaram.

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Devido à necessidade de uma imagem harmoniosa da pessoa que emerge da

confrontação de si consigo, a regra das três unidades deve também ser aplicada à

personalidade retratada pela autobiografia. Por isso, o princípio de identidade deve reger a

seleção dos elementos admitidos ou eliminados na escrita. O autor da autobiografia se esforça

por se definir à imagem e semelhança da pessoa que acredita ser, e um determinado fio de

sentido – o que acredita reger sua vida – impõe os critérios para a escolha do que e de como

narrar. Nessa perspectiva, o julgamento está sempre subentendido na autobiografia. Esse tipo

de escrito íntimo alcança sua coerência ao custo da censura, consciente ou não.

Ao contrário da biografia, o diário íntimo é uma obra despretensiosa, um conjunto de

inscrições nas margens da existência, um livro aberto e flexível, que começa e termina não

importa quando, e pode ser interrompido a qualquer momento. Por isso, o diário pode ser lido a

partir de qualquer parte, uma vez que não tem um percurso imposto.

O termo “diário” cobre indistintamente a totalidade dos escritos quotidianos, que podem

ser de grande diversidade. Por definição, um diário é uma obra em que o autor relata,

cronologicamente, fatos ou acontecimentos do dia-a-dia, registrando suas meditações,

confiando opiniões e impressões.

As notas do diário íntimo, que podem ser mais ou menos completas, não necessitam

preparação. Elas expressam as ocorrências dos pensamentos ou dos sentimentos ainda em

desordem, segundo as eventualidades da realidade quotidiana. A metodologia da escrita do

diário é baseada na digressão, na alternância e na descontinuidade. As perguntas contam mais

que as respostas, o relator aborda e abandona questões aos sabores do humor do momento,

conflitos sem resolução são narrados, registrando contradições e imprevistos, e preservando o

senso de ambigüidade da vida.

Uma vez que o autor ignora o que virá a seguir, seu presente é carregado de

esperanças, inseguranças, pressentimentos. O diário íntimo tem sua espontaneidade garantida

pelo caráter próprio do tempo em que ele se inscreve. O tempo do diário, presente após

presente, presente mesmo sem futuro, permite o registro de tudo o que é potencial, o que é

irreal no presente mas possível no futuro. O diário acompanha a vida em forma de

efemeridades, uma sucessão de presentes que encontra, assim, sua conservação através da

escrita.

O “eu” do diário vive sob o regime do quotidiano comum, contentando-se em fixar

algumas marcas da memória. Desse modo, o diário expõe a realidade humana em um estado

mais bruto que a da autobiografia: uma verdade ainda fragmentária, ainda em desordem, que

ainda não forma um todo. O redator do diário é um ser ainda livre do sentido que atribuirá, um

dia, a sua própria vida, e, desse modo, mais espontâneo em suas manifestações.

Apesar de sua aparente espontaneidade, o diário não é, no entanto, uma descrição

propriamente dita. O narrador, ao se distanciar do ocorrido e falar sobre o que fez, disse,

pensou e sentiu, realiza uma intervenção ativa, atribuindo um mínimo de sentido e forma a uma

realidade sempre confusa e ambígua. O redator do diário íntimo, testemunha de sua própria

vida, organiza a realidade a seu próprio modo e realiza uma obra criativa.

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Gusdorf afirma que todo empreendimento de escrita íntima, como busca de um recuo e

de uma familiaridade de si consigo, após o entusiasmo e a expectativa iniciais, passa por

momentos de desilusão, de dois tipos diferentes. O primeiro é perceber que a tentativa de

traduzir o “eu” em um discurso se mostra impossível; e o segundo é não alcançar, apesar de

todos os esforços, a transparência total.

O autor de escritos do eu escreve como uma tentativa de registrar o vivido, confiante de

que aquilo que é inscrito não está fadado a desaparecer. A consistência do escrito contrasta

com a fugacidade dos movimentos da mente, e torna concreta a experiência efêmera de viver.

A maior parte do vivido, no entanto, não passa pelo filtro do escrito. As transformações

interiores, os pensamentos, as paixões, os coloridos da imaginação, todos são flutuantes

demais para serem registrados. Um diário total, que note todas as experiências, mesmo que

apenas aquelas mais significativas, não existe. E mesmo que fosse admissível, consumiria toda

a existência da pessoa. Não é possível traduzir a realidade humana, vasta e complexa, em

palavras.

Por outro lado, a configuração mental de um indivíduo, assim como a física, não deixa

de se modificar. Estamos destinados a mudar constantemente, várias vezes em um dia. Por

isso, um ser humano não pode pretender conhecer, em qualquer dado momento de sua vida, a

essência de si mesmo. Assim, o escrito do eu se lança em uma busca vã, impossível de ser

obtida, que é a do autoconhecimento completo.

Essa busca, embora infindável, é sempre uma ação do investigador sobre si mesmo e,

por esse motivo, não poderíamos atribuir ao escrito íntimo uma objetividade particular. O ato de

escrever, em si, é uma constituição de sentido, e não um mero registro. Os escritos íntimos não

são um testemunho imparcial, eles não manifestam uma entidade pré-existente, mas criam

uma identidade à medida que elaboram uma realidade reconstituída, que acaba por substituir a

original. A verdade literal, a verdade pessoal colocada em palavras, então, é uma ilusão, e a

transparência, mesmo que do espírito a si mesmo, nada mais é que uma procura. Assim, todo

diário íntimo deve ser interpretado segundo uma metodologia crítica que considere a

impossibilidade da limpidez.

Gusdorf ressalta, no entanto, que é importante extrair da prática da escrita íntima os

benefícios que ela pode oferecer, mesmo que não correspondam ao que inicialmente se

esperava dela. Ao renunciar o encontro do eu real e o acesso a uma verdade objetiva, o

redator do texto íntimo pode encontrar utilidades não previstas no momento em que ele foi

começado.

As desilusões encontradas na redação dos escritos íntimos existem porque a

consciência humana, por não se apresentar sob forma alguma, não pode ser representada. Ela

não é, em essência, falante. Tentar falar sobre essa consciência, ou tentar escrevê-la, é aliená-

la. O ato de escrever, nesse sentido, consagra um distanciamento e um desdobramento da

consciência. A escrita é um segundo movimento, uma busca de ordem, uma reação contra a

espontaneidade livre de uma consciência governada por pulsões íntimas e contradições.

Nessa perspectiva, afirma o autor, a escrita é como uma psicoterapia, um instrumento

de busca de equilíbrio, mesmo que esse não seja objetivamente real. Escrever transfigura a

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consciência em conhecimento, promovendo um contato consigo mesmo, tornando

permanentes as reflexões alcançadas. O escrito do eu como prática quotidiana tem um valor de

higiene, de purificação, como um fator de remodelamento da vida que chega a tornar

secundária a preocupação epistemológica do autoconhecimento.

Os textos de Gusdorf realizam uma reflexão profunda a respeito do valor dos escritos

íntimos como registros da ansiedade humana por permanência e coerência: a aspiração de

deixar uma marca, a necessidade de buscar um sentido para nossas vivências, o anseio por

uma unidade coesa para nossas atividades, sentimentos, pensamentos, devaneios,

percepções.

Em seu texto, o autor nos leva a concluir que a maior parte dos textos íntimos que

chegam a serem publicados o são não devido a seu valor intrínseco, mas porque documentam

a vida de personagens importantes, sobre cujas vidas o público tem curiosidade. Esse aspecto

de algumas obras autobiográficas famosas, no entanto, não nega aos escritos que nunca

chegam a ser conhecidos sua validade. A escrita íntima é a palavra da pessoa questionando

sua própria identidade, colocando em questão a própria ontologia da realidade humana, e o

uso literário dessa linguagem constitui apenas a periferia do essencial.

Literário ou não, todo escrito do eu propõe uma revisão da vida. Em suas diferentes

formas, os escritos íntimos são obras que se constituem em uma tentativa de consumação

concreta da existência humana, que é tão efêmera. Nessa perspectiva, se afirma a

solidariedade essencial entre todos os diferentes tipos de escritos do eu: há intenções em

comum, que são a notação do vivido, o distanciamento da consciência e a reformulação da

experiência na tentativa de compreensão da própria existência.

O estudioso francês não deixa de questionar, no entanto, a validade dessas buscas.

Para ele, a meditação é uma inversão da marcha espontânea da consciência, e a não-

transparência é um elemento constitutivo de nossa natureza. Mas também afirma que o

reconhecimento dessas limitações não deve pôr fim à prática do diário íntimo, nem deveria

minar a fascinação que ele exerce sobre as pessoas.

O lingüista espanhol Jorge Larrosa Bondía considera que o único saber verdadeiro é

aquele construído através da experiência. Segundo ele, a experiência não é o que acontece,

mas o que nos acontece, o que nos toca, nos desequilibra, e nos transforma. A experiência real

e verdadeira nos tira de nosso centro e nos força a ver o mundo sob uma nova perspectiva, e

esta é a única via de transformação de nós mesmos e da realidade.

No entanto, continua Larrosa, o mundo à nossa volta está arranjado de modo que nada,

verdadeiramente, nos aconteça, para que nada nos tire de nossa marcha, para que nada nos

abale. Vivemos, na atualidade, em meio ao excesso de informação, à falta de tempo, ao

acúmulo de atividades, e à necessidade de sempre termos certezas e nunca dúvidas, o que vai

nos tornando rígidos e insensíveis, e contribui para que nos preservemos das vivências

verdadeiras.

A experiência, para Larrosa, para nos acontecer, requer um gesto de interrupção.

Reivindica um momento de pausa, em que suspendemos nossas atividades para nos deixar

atingir. Necessita que sejamos mais receptivos e menos dogmáticos. Experiência significa

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aventura, insegurança, e risco. A pessoa que vive experiências não é invulnerável. Ela não está

sempre firme e ereta. Muitas vezes, ao contrário, está por terra, abalada pela força do que lhe

ocorre. Mas essa pessoa é também flexível e sábia, porque é uma pessoa que assume suas

experiências, aprende e se deixa modificar por elas.

A escrita íntima talvez seja um exemplo do que Larrosa considera um “gesto de

interrupção”. As notas em um diário nos oportunizam uma pausa para a reflexão, e abrem a

possibilidade de uma interpretação mais profunda de nossa própria experiência, de uma busca

do sentido latente sob o sem-sentido aparente da vida, uma procura do eu profundo através do

eu superficial.

A redação de uma autobiografia ou de um diário íntimo, por outro lado, evoca uma

vigilância vital, não sem perigos para quem empreende a aventura. Na exploração de nosso

íntimo, no confronto com nossas paixões e no encontro de nossas limitações, nossa inocência

inicial se perde para sempre. Podemos ser derrubados pela experiência de encontrarmos a nós

mesmos, mas, como afirma Larrosa, esse é o único caminho possível para o conhecimento e

para a transformação.

Escrever é desafiar a morte. Através da palavra escrita, instantes privilegiados são

eternizados. A escrita também é a própria transfiguração de nós mesmos e de nosso mundo.

Jamais somos exatamente o que gostaríamos de ser. Não dizemos tudo o que deveríamos ter

dito. Na vida, às vezes não temos a chance de reagir do modo como gostaríamos aos eventos

que nos ocorrem. A escrita íntima nos dá uma segunda chance, a possibilidade de uma re-

elaboração, de uma reconstrução, não apenas dos eventos, mas especialmente de nós

mesmos.

REFERÊNCIAS:

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002.

GUSDORF, Georges. Écritures du moi et genres littéraires. In: __________. Lignes de vie: écriture du moi. Paris, Ed. Odile Jacob, 1991, p. 275-291.

__________. Le journal intime: dire ma vérité. In: __________. Lignes de vie: écriture du moi. Paris, Ed. Odile Jacob, 1991, p. 317-346.