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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOCENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DULCIMAR PEREIRA
OS ESPAÇOSTEMPOS DA ALEGRIA NA ESCOLA COMO MOVIMENTOS INSTITUINTES NO COTIDIANO ESCOLAR: A
PRÁTICA DE PROFESSORES E ALUNOS NO ENTRELAÇAMENTO ENTRE RAZÃO E EMOÇÃO
VITÓRIA 2006
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DULCIMAR PEREIRA
OS ESPAÇOSTEMPOS DA ALEGRIA NA ESCOLA COMO
MOVIMENTOS INSTITUINTES NO COTIDIANO ESCOLAR: A
PRÁTICA DE PROFESSORES E ALUNOS NO ENTRELAÇAMENTO
ENTRE RAZÃO E EMOÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação, na área de Formação de professores e Práticas Pedagógicas.Orientadora: Profª Drª Janete Magalhães Carvalho
VITÓRIA2006
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DULCIMAR PEREIRA
OS ESPAÇOSTEMPOS DA ALEGRIA NA ESCOLA COMO MOVIMENTOS INSTITUINTES NO COTIDIANO ESCOLAR: A
PRÁTICA DE PROFESSORES E ALUNOS NO ENTRELAÇAMENTO ENTRE RAZÃO E EMOÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Educação, na área de Formação de Professores e Práticas Pedagógicas.
Aprovada em 21 de dezembro de 2006.
COMISSÃO EXAMINADORA
Profª Drª Janete Magalhães CarvalhoUniversidade Federal do Espírito Santo
Prof. Dr. Carlos Eduardo FerraçoUniversidade Federal do Espírito Santo
___________________________________________________________________Profª Drª Regina Helena Silva SimõesUniversidade Federal do Espírito Santo
Profª Drª Célia Soares Frazão LinharesUniversidade Federal Fluminense
3
À memória do meu pai: João Pereira.
À minha mãe e ao meu irmão.
Aos colegas, adultos e crianças das
escolas onde estive como aluna e professora
por tudo que me ensinaram.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, amigo fiel e cumpridor de todas as suas promessas, a oportunidade de novamente agradecer. Obrigada! Obrigada! Você sempre me surpreende!...
Durante algum tempo cheguei a afirmar que a escrita desta dissertação seria uma
tarefa solitária. Como me enganei! Estive sempre acompanhada de diferentes
gentes e descobri [...] que todo mundo é como um baleiro. Que ao invés de balas,
guardamos gente dentro da gente. Gente de vários sabores, gente de vários amores
(RIBEIRO, 1997). Gente amiga, companheira, cúmplice, sincera... gente que
incentiva, que colabora, que sorri, que acolhe, que ama, que compreende... gente
alegre, que compartilha o que sabe e o que não sabe, que escuta, que enxuga
lágrimas de tristeza e sabe fazer brotar lágrimas de alegria... gente de framboesa e
de hortelã (RIBEIRO, 1997).
Minha história vem sendo tecida com as vivências junto a estas gentes. Guardo a
cada uma em lugares muito especiais como a menina Ana que
Guardava tudo em caixinhas coloridas: na caixa verde guardava as coisas que tinham gosto, na caixa amarela as coisas que tinham cheiro, na caixa azul as coisas que tinham som, na caixa vermelha as coisas que tinham tato e numa caixa branca guardava todas as coisas que se misturavam (SANTOS, 2006).
São essas gentes:
Minha família, meus incentivadores e colaboradores.
Profª Dra. Janete Magalhães Carvalho, orientadora, pessoa admirável!
Prof. Dr. Carlos Eduardo Ferraço e Profª Dra. Regina Helena Simões,
professorescompanheiros.
Profª Dra. Célia Linhares, cuja escrita nos faz lembrar da utopia como algo possível.
5
Estudantes e profissionais da EMEF da Esperança, realizadores da alegria na
escola.
Ângela Francisca Caliman Fiorio e Danielle Piontkovsky Girelli, amigas sempre!...
Juntas somos “the powerpuff girls”.
Tânia Delboni e Sandra Kretli, amigascompanheiras de curso, de grupo de pesquisa,
de viagens!...
Maria Regina Lopes Gomes e Maria do Rosário Varejão Costa que iniciaram o
Projeto Revitalização dos Espaços Escolares e os amigos que também fizeram parte
dele: Andressa, Eugênia, Edlene, Fabiana, Marcelo, Penha, Anacoeli, Elane, Eliezer,
Fábio, Francisca, Marluce, Neuzinete, Ângela, Arlinda, Margareth, Soraya, Carlos
César, Beto, Zé Carlos e Júlio, bibliotecários, professoras de dança e de música,
professores/as das bandas marciais e de Educação Física. E também os
estagiários/as e professoras que atuaram nas bibliotecas municipais. Vivemos e
realizamos muitos sonhos possíveis (FREIRE, 1992).
Professores, professoras, alunos, alunas, diretores, diretoras e funcionários das
escolas municipais de Vitória que me permitiram entrar em seus locais de trabalho
para contar histórias. Fui muito feliz em todos esses momentos!
Colegas e meus sempre alunos e alunas do CMEI Eldina Maria Soares Braga com
quem aprendi a contar histórias!
Marinalda, minha bruxamadrinha de contar histórias.
Maria da Penha Souza Soares e os amigos da EMEF Professor João Bandeira,
educadores/as incansáveis!
Amigos/as do CMEI Luiz Carlos Grecco, um baleiro delicioso!
Colegas da turma 18 (Mestrado- PPGE-UFES), inesquecíveis!
6
Edna e Anna Luiza, Rúbia e Raphael, meus intercessores.
Os irmãosamigos sempre adolescentes da minha igreja.
Os amigos que por serem tantos não posso nominá-los, mas que esperaram
ansiosamente comigo por este momento.
Todos que compartilham o sonho da escola como espaçotempo de alegria e que
fazem de tudo para realizá-la e vivê-la!
Retribuo o que recebi: afetos, cores, sabores e sentimentos a todos vocês!
Amizade Admiração
Respeito
Amor
Paciência Lágrimas
Bondade
Conforto
Sinceridade
Compreensão
Acolhimento
Carinho
Sorrisos Afagos
Incentivo Conforto
Afetos
Sonhos
Beijos
Abraços Alegria
7
A escola
Escola é...o lugar onde se faz amigos,não se trata só de prédios, salas, quadros,programas, horários, conceitos...Escola é, sobretudo, gente,gente que trabalha, que estuda,que se alegra, se conhece, se estima.O diretor é gente,O coordenador é gente, o professor é gente,o aluno é gente,cada funcionário é gente.E a escola será cada vez melhorna medida em que cada umse comporte como colega, amigo, irmão.Nada de “ilha cercada de gente por todos os lados”.Nada de conviver com as pessoas e depois descobrirque não tem amizade a ninguém,nada de ser como o tijolo que forma a parede,indiferente, frio, só.Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,é também criar laços de amizade,é criar ambiente de camaradagem,é conviver, é se “amarrar nela”!Ora, é lógico...Numa escola assim vai ser fácilestudar, trabalhar, crescer,fazer amigos, educar-se,ser feliz. (Paulo Freire)
RESUMO
Busca dar visibilidade à alegria presente na escola e manifestada através da ação
de seus praticantes, no entrelaçamento entre razão e emoção, que altera o político e
o pedagógico. Utiliza como referencial teórico Snyders (1988; 2001), Santos (2002;
2004), Linhares (1997; 2002; 2005), Certeau (2002); Freire (2001;2004); Benjamin
(1994); dentre outros. Faz uso de uma abordagem qualitativa na tentativa de
conhecer e viver o cotidiano da escola. Para tanto, a utilização de imagens, de
entrevistas, de observação participante e a realização de uma oficina de teatro de
bonecos foram algumas formas de coleta de dados. Toma a prática e os discursos
dos sujeitos como elementos essenciais para a apresentação dos espaçostempos
de alegria no cotidiano escolar. Apresenta os desafios enfrentados por docentes e
discentes e as suas esperanças que instituem outras maneiras de viver e de estar
nessa reinvenção diária da escola. Os resultados apontam que a escola tem sua
história tecida diariamente através das marcas que seus praticantes imprimem nela
cotidianamente tornando-a um espaçotempo de invenção, de esperança, de utopia e
de alegria.
Palavras-chave: Cotidiano; Alegria; Utopia; Invenção; Esperança; Instituinte.
9
ABSTRACT
Surching to give visibility to the present happiness in the school, manifested through
its apprentices action, in the interlacement between reason and emotion, it alters the
politician and the pedagogic. It has as theorical reference Snyders (1988; 2001),
Santos (2002; 2004), Linhares (1997; 2002; 2005), Certeau (2002); Freire (2001;
2004), Benjamin (1994); among others. It uses a qualitative approach in the attempt
to know and live the school daily.
Therefore, the usage of images, the interviews, the participants observation and the
accomplishment of a workshop theater of puppets were some forms of essential
elements for the presentation of the spacetimes of happiness in the daily school. It
presents the challenges faced by teacher and students and its hopes that institute
another ways of being and living in this daily school reinvention. The results point that
the school has its history woven daily through the marks that its apprentices print on
it daily, turning it into an invention spacetime of hope, of utopia and happiness.
Keywords: Daily; Happiness; Utopia; Invention; Hope; Institute.
10
Foto 1- A Escola da Esperança........................................................................ 27Foto 2- Os movimentos do início da manhã no pátio da escola........................ 28Foto 3- As filas antes do horário da entrada..................................................... 29Foto 4- Contar histórias- tentativa de aproximação com as crianças................ 36Foto 5- Escrita de carta para as nuvens............................................................ 42Foto 6- Grades e filas- algumas maneiras para manter a ordem e a disciplina 45Foto 7- Burlas para chegar perto do “Papai Noel”............................................. 45Foto 8- Pintura na parede do Museu Homero Massena, Vila Velha- ES.......... 47Foto 9- Lili e Gugu............................................................................................. 52Foto 10- Contos na praça de Jucutuquara- Vitória............................................ 54Foto 11- Contos na praça de Jucutuquara- Vitória............................................ 54Foto 12- “As mil e uma noites” na EMEF Padre Anchieta................................. 55Foto 13- Mãe de alunas contando história na EMEF Professor João Bandeira 55Foto 14- Crianças e bonecos – EMEF Maria José Costa Moraes.................... 55Foto 15- Oficina de bonecos – EMEF Neusa Nunes Gonçalves....................... 55Foto 16- Momentos compartilhados – Professoras contam e vivem as
histórias........................................................................................................... 56Foto 17- Filas no horário da entrada................................................................. 59Foto 18- Atividade em sala de aula................................................................... 60Foto 19- “Tira uma foto da gente!”..................................................................... 61Foto 20- Aula de Arte – Pintura de cortina para sala (turma do Amor)............. 62Foto 21- Grupo de estudos................................................................................ 63Foto 22- Festa em sala de aula......................................................................... 64Foto 23- Cartaz na sala de apoio pedagógico................................................... 66Foto 24- Desenho da turma União.................................................................... 75Foto 25- Desenho da turma da Alegria............................................................. 75Foto 26- Desenho da turma 100% Paz............................................................. 75Foto 27- Desenho da turma da Leitura.............................................................. 75Foto 28- Desenho da turma da Amizade........................................................... 75Foto 29- Desenho da turma Arco-Íris................................................................ 76Foto 30- Desenho da turma Palavrinhas Mágicas............................................ 76Foto 31- Desenho da turma Liberdade e Paz................................................... 76Foto 32- Desenho da turma Amigos da Natureza............................................. 76Foto 33- Desenho da turma Vida...................................................................... 77Foto 34- Desenho da turma do Balão Mágico................................................... 77Foto 35- Desenho da turma do Amor................................................................ 77Foto 36- Bandeira com os desenhos das turmas.............................................. 78Foto 37- Piquenique no recreio......................................................................... 79Foto 38- Bilhete................................................................................................. 80Foto 39- A colaboração entre colegas............................................................... 81Foto 40- “Sobe na cadeira!”............................................................................... 82Foto 41- Produção de carrinho.......................................................................... 83Foto 42- O jogo do litrobol................................................................................. 86Foto 43- Experimentações com jogo de garrafa e palitos................................. 86Foto 44- Possibilidade de jogo em grupo.......................................................... 87Foto 45- Tabela de pontuação – As tentativas de diferentes usos................... 87Foto 46- Corda de tampinhas de garrafas: produzir e brincar........................... 87
LISTA DE FOTOGRAFIAS11
Foto 47- As pipas.............................................................................................. 88Foto 48- Enduro a pé: possibilidade de trabalho coletivo.................................. 91Foto 49- Os usos das salas de aula.................................................................. 92Foto 50- Jogos na sala de aula: outras aprendizagens..................................... 92Foto 51- Chinelos e Matemática: invenções para aprender.............................. 93Foto 52- Biblioteca............................................................................................. 94Foto 53- Laboratório de Ciências...................................................................... 94Foto 54- Laboratório de Cartografia.................................................................. 94Foto 55- Arrumação para Mostra Cultural......................................................... 97Foto 56- Apresentações de histórias................................................................. 98Foto 57- Teatro de bonecos na EMEF Esperança............................................ 108Foto 58- Lili conversa com alunas na EMEF UFES.......................................... 111Foto 59 - O casamento de Lili e Gugu na EMEF José Lemos de Miranda....... 117Foto 60- Um carteiro na sala de aula! A continuidade do casamento dos
bonecos............................................................................................................. 119Foto 61- Escrita de cartas para os bonecos...................................................... 119Foto 62- O início da confecção dos bonecos: formação dos grupos................ 122Foto 63- A professora e alunos envolvidos na confecção dos bonecos........... 122Foto 64- Diferentes materiais e aprendizagens na sala de aula....................... 124Foto 65- A alegria pela execução dos primeiros detalhes................................. 124Foto 66- A confecção era acompanhada dos desenhos feitos anteriormente.. 124Foto 67- Os bonecos são cercados de afetos................................................... 124Foto 68- Os materiais compartilhados em grupo.............................................. 125Foto 69- Momentos de apresentação das histórias.......................................... 129Foto 70- Novos personagens, novas relações na sala de aula......................... 131Foto 71- Professores, alunos e bonecos: afetos............................................... 133Foto 72- A conclusão do trabalho em grupo..................................................... 134Foto 73- A alegria com os bonecos: afetos e aprendizagens........................... 134
12
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Quadrinho de história da Mafalda .................................................... 15Figura 2- História em quadrinhos produzida por aluna na aula de Arte sobre
atividade de Educação Física........................................................................... 95,96
13
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 152 DAS TENTATIVAS DE CONHECER E VIVER OS COTIDIANOS DA ESCOLA...................................................................................................................
27
2.1 A ESCOLA DA ESPERANÇA................................................................................ 272.2 DAS ESCOLHAS E DOS CAMINHOS PERCORRIDOS...................................... 343 A ESCOLA E SUAS MARCAS: MULTIPLICIDADE DE SENTIDOS E DE HISTÓRIAS...................................................................................................
44
3.1 AS HISTÓRIAS DAS MINHAS ESCOLAS............................................................ 473.1.1 Histórias como aluna 483.1.2 Histórias como professora.............................................................................. 513.2 OS SENTIDOS DA ESCOLA DA ESPERANÇA PARA SEUS PRATICANTES............................................................................................................
57
3.2.1 O que falam as crianças e as professoras sobre a escola........................... 593.2.2 Estranhamentos: dos entrelaçamentos entre conflitos e esperanças.................................................................................................................
68
4 DAS HISTÓRIAS CONTADAS E VIVIDAS NOS ESPAÇOSTEMPOS DE ALEGRIA NA/DA ESCOLA .........................................................................
74
4.1 NOS NOMES DAS TURMAS................................................................................ 744.2 NAS AMIZADES.................................................................................................... 794.3 NOS BRINQUEDOS, JOGOS E AFETOS DAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA.......................................................................................................................................
83
4.4 NO QUE SE APRENDEENSINA NAS SALAS DE AULA...................................... 924.5 NO QUE SE APRENDEENSINA FORA DAS SALAS DE AULA........................... 974.6 NO DIÁRIO DE UMA PROFESSORA: INVENÇÕES DE UMA UTOPISTA.......... 985 NOVAS EXPERIMENTAÇÕES: A ALEGRIA POTENCIALIZANDO MOVIMENTOS INSTITUINTES.................................................................... 1085.1 O TEATRO DE BONECOS: ALEGRIA, ARTE, INVENÇÃO, BRINQUEDO! 1085.2 ALGUMAS HISTÓRIAS DE ALEGRIA COM BONECOS...................................... 1115.3 HISTÓRIA DE UM CASAMENTO......................................................................... 1145.4 OFICINA: RETALHOS, LINHA, AGULHA... BONECOS NA SALA DE AULA! MÚLTIPLAS LINGUAGENS E APRENDIZAGENS..................................................... 1205.4.1 A apresentação do projeto para a turma........................................................ 1215.4.2 A composição dos grupos............................................................................... 1235.4.3 A cor da pele dos bonecos.............................................................................. 1255.4.4 A participação e o envolvimento .................................................................... 1265.4.5 Algumas surpresas.......................................................................................... 1285.4.6 Alinhavando as experiências.......................................................................... 1306 ERA UMA VEZ... O COMEÇO PARA OUTRAS HISTÓRIAS............... 1367 REFERÊNCIAS................................................................................................... 142ANEXOS................................................................................................................... 149
14
1 INTRODUÇÃO
Fonte: QUINO (1999).
A leitura desse quadrinho traz-me, nesse momento, uma certa inquietação. O riso
tão comum após um tipo de leitura como essa não flui e, em seu lugar, surgem
algumas perguntas:
Por que Filipe não fala nada sobre a escola? Ele realmente não tem nada para falar?
Por que a expressão de seu rosto denota tristeza e um certo pânico? O que o “puxa
vida” dito por Mafalda significa para mim e para tantos outros leitores, crianças,
jovens e adultos? As experiências na escola são assim tão desagradáveis?
E o que dizer da vida que pulsa cotidianamente no ambiente escolar? Onde estão as
brincadeiras do recreio, a correria dos corredores (com esse nome como podemos
neles só caminhar?), as conversas fora e dentro da sala de aula e a alegria quando
aprendemos? Como não falar do cheiro da merenda, dos dias de festas, dos
passeios, das músicas, das amizades, dos abraços, dos encontros, dos livros de
histórias e de tantos outros motivos felizes na escola? Como não falar do arco-íris
em nossas mãos quando desenhamos e colorimos, com lápis de cor, casas, carros,
sóis, árvores, flores, meninos e meninas? Na escola não há lugar para a alegria?
A expressão de Filipe é tida por muitos como a única e a verdadeira certeza acerca
da escola. Referem-se a ela como desprovida de sentido e de vida. Afinal, por que
então vamos à escola? Por que nós, professores e professoras, entramos todos os
dias em nossas salas de aula, fazemos nossos planejamentos, participamos de
cursos, seminários e congressos? Por que falamos sobre nossos alunos e nossas
15
alunas em todos os lugares e até nos momentos de folga? Por que os meninos e
meninas saem de casa todos os dias rumo à escola?
São muitas as questões sobre as quais a expressão de Filipe me faz refletir e, nesse
texto que início a escrita, não pretendo responder a todas elas, mas buscar os
fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p.12) que contrapõem essa visão naturalizada
acerca da escola como lugar de tristeza. Linhares e Garcia (2001, p. 45) advogam
nesse sentido relatando acerca das certezas equivocadas que buscam no espaço
escolar somente o negativo, a falta, a incapacidade, o descaso. Uma visão altaneira,
soberba e cercada de verdades que não reconhecem os movimentos cotidianos que
fazem irromper jardins no chão de nossas escolas (LINHARES; GARCIA, 2001).
E o que falar acerca das emoções no ambiente escolar? Maturana (2001a, p. 15) diz
que ao desvalorizarmos as emoções não percebemos o entrelaçamento cotidiano
entre razão e emoção que constitui nosso viver humano. Porém, aprendemos com a
racionalidade moderna que os sentimentos ocupam um lugar secundário e/ou
inferior em relação aos conhecimentos legitimados pela ciência com seus princípios
epistemológicos e suas regras metodológicas. Por isso, falar deles em locais nos
quais haja a prevalência do conhecimento, como, por exemplo, a escola, pode
parecer para alguns como um discurso ingênuo, improvável e desnecessário.
Os avanços científicos são anunciados pela mídia em todas as áreas: saúde,
comunicação, tecnologia... os saberes legitimados são aqueles que têm da ciência o
seu aval expresso através de saberes que refletem leis, fórmulas e medições.
Contudo, apesar de todos esses avanços, grandes problemas da humanidade
permanecem. São as promessas não cumpridas da modernidade relacionadas por
Santos (2002): a promessa de igualdade que tem sido frustrada diante da
desigualdade material e econômica; a promessa de liberdade aprisionada diante das
situações de violência e discriminação; a promessa da paz esquecida entre guerras
e mortes humanas e dos recursos naturais.
Sobre a não aceitação de outros saberes que não sejam os legitimados pela ciência,
Santos (2004, p. 53) diz que o conhecimento da ciência moderna é “[...] um
16
conhecimento mínimo que fecha as portas a muitos outros saberes sobre o mundo,
o conhecimento científico moderno é um conhecimento desencantado e triste [...]”
Sendo desencantado e triste refletiu em muitas áreas seus princípios, notadamente
na educação. Há disciplinas escolares que desfrutam de privilégio em relação às
outras. São as consideradas mais difíceis e que reprovam. Os docentes dessas
disciplinas são os mais temidos. Ainda há um “modelo instituído” do que seja uma
aula formal: estudantes assentados e em silêncio, somente a voz do professor ou da
professora sendo ouvida e um quadro repleto de atividades. Dessa maneira, o que
não reflete esse padrão e não entra na forma, não é considerado como aula.
Santos (2002) diz que o prazer foi expulso da ciência e por isso anuncia um novo
senso comum estético suprimido pela modernidade: o princípio estético expressivo
no qual as emoções não são rejeitadas pela sua imprevisibilidade, mas pelo
contrário, são consideradas porque [...] daqui decorre a necessidade de uma crítica
da epistemologia hegemônica e a necessidade de invenções credíveis de novas
formas de conhecimento (SANTOS, 2002, p. 117).
Nesse sentido, o ambiente escolar tem refletido aspectos controvertidos aos que a
racionalidade moderna insiste em apresentar como válidos e insuperáveis. Snyders
(2001, p. 12) opõe-se a essa idéia de escola como lugar de tristeza, referindo-se aos
fragmentos felizes.
A escola já contém elementos válidos de alegria. Ela não é oposta à alegria, esse sentimento já é possível na escola atual, o que torna ainda mais lamentável que ela não esteja entre seus objetivos primordiais. É a partir da própria escola, dos fragmentos felizes que ela deixa transparecer, que se pode começar a pensar em como superar a escola atual.
17
Eu poderia ter escolhido falar das dificuldades, da violência, da precariedade de
muitos prédios escolares, das verbas escassas e/ou desviadas, não me faltariam
dados, estatísticas... contudo, prefiro buscar os fragmentos felizes (SNYDERS,
2001, p. 12) que ocorrem em meio a esse turbilhão de adversidades e pelos quais
muitos ainda acreditam na escola, na atuação de docentes e discentes que
cotidianamente protagonizam histórias de possibilidades, de invenções e de
esperanças. Nessas histórias, é possível vislumbrar mudanças que, segundo
Snyders (2001), possam superar a escola atual.
Não gostaria de dar a essa redação um aspecto de conformação a esses pontos
adversos. Eles são reais, aconteceram e continuam acontecendo em muitas, senão
em todas as escolas. Não quero negligenciar meus sentidos diante das dificuldades
e fingir que não existem, mas quero voltá-los para os movimentos instituintes que
têm sido fomentados em meio a essas adversidades. Essa não é uma tentativa de
calar a comunidade escolar ou de lhes dizer que se conformem diante do poder
público e de suas obrigações. Porém, é mais uma maneira de, através dessas
invenções dos praticantes do cotidiano, dar visibilidade a suas ações e ao seu
compromisso com a escola pública. Linhares (2005) assim diz sobre os movimentos
instituintes:
[...] é muito difícil visitar alguma escola que não tenha um grupo de professores tentando alguma coisa nova, no sentido de instituinte. Eles resistem a um processo de perda de autonomia. [...] os movimentos instituintes nutrem suas forças das memórias de lutas éticas que, embora vencidas, não podem ser exterminadas pela imensa capacidade de reinvenção da história que carregam, pelos seus compromissos e sonhos de liberdade e sabedoria que nunca se extinguem. Instituinte, portanto, é aquilo que institui uma outra realidade, marcada pela includência de todos e de forma inteira. Chamamos uma experiência escolar de instituinte quando busca ressignificar, realinhar a escola, dando lugar à diferença, ao mesmo tempo em que luta contra as desigualdades.
A leitura de Snyders, então, e sua preocupação com a existência da alegria na
escola provoca-me o interesse por trabalhar com esse tema: os fragmentos felizes
(SNYDERS, 2001, p. 12) vividos/tecidos cotidianamente por alunos, alunas,
professores e professoras que através de suas emoçõesações1 reinventam suas
práticas e a escola. Acredito que na tessitura desses fragmentos seja possível
1 Arte já aprendida com Nilda Alves na qual a junção de duas ou mais palavras aproxima, entrelaça e amplia os seus sentidos. Por isso, no decorrer desse texto farei o mesmo com outras palavras.
18
conhecer uma escola diferente da que tem sido apresentada seja pela mídia, pela
literatura ou pelas experiências adversas e, assim, dar visibilidade a algumas
possibilidades de mudança experimentadas por quem faz a história da escola num
movimento de “remar contra a maré”. Esses protagonistas são sonhadores,
utopistas que utilizam a cabotagem, para [...] navegar fora dos limites, mas em
contato físico com eles, e ir realizando outras atividades ao longo do trajeto [...]
(SANTOS, 2002, p. 134).
E nessa reinvenção diária da escola, diante do desafio de ampliar seu espaço e
atuação de seus sujeitos (LINHARES, 2002 b, p. 63), esses atores mobilizam seus
saberes e fazeres na construção de outros caminhos para o ambiente escolar. E a
escola que vem sendo desacreditada pela sociedade e, muitas vezes, até pela
própria comunidade escolar, devido à crescente onda de abandono e de escândalos
relacionados à depredação dos prédios escolares, desvio de verbas, violência,
insegurança... tem através desses movimentos suas histórias tecidas em outros
tantos cenários e novas tramas enredadas por nós, que, ao invés de aprisionar,
estabelecem rupturas com formas antigas de “ver” a escola e seus sujeitos abrindo
possibilidades de, em lugar de olhar, sentir (FERRAÇO, 2001, p. 93).
Os estudos sobre o cotidiano têm mostrado que há movimentos de quem já não
segue a linearidade da modernidade e arrisca-se por apresentar o improvável, o
imensurável, o que subverte a ordem e anuncia a voz dos que até então não podiam
falar e sequer serem ouvidos. Destacam-se, nesse sentido, estudos de Alves e
Oliveira (2001), Ferraço (2001, 2003) dentre outros trabalhos e autores sobre o
estudo do cotidiano escolar.
Nesses estudos são apresentados trabalhos/histórias de professores e professoras
e de alunos e alunas que, lançando mão de suas experiências e vivências,
reinventam com suas práticas as escolas nas quais atuam. As invenções, as táticas
(CERTEAU, 2002) desses personagens são o foco central desses estudos nos quais
passam de coadjuvantes a atores e praticantes.
Redin (2002, p. 63) em estudo com estudantes de 6ª e 7ª séries na tentativa de “[...]
detectar no espaço escolar, as dimensões estéticas que aí se constituem [...]”,
19
propõe a investigação dos gostos e preferências desses estudantes acerca da
escola. Ressalta que esses alunos e alunas declararam nas entrevistas gostarem da
escola, mas não de estudar. A partir de então, elenca categorias que definem o
encantamento do aluno pela escola destacando: o espaço físico, o encontro com
colegas e o relacionamento com professores. Quanto ao que mais lhes causa
aversão no ambiente escolar, os alunos e as alunas referiram-se ao excesso de
carga horária. A autora ainda destaca nas falas desses estudantes a utopia, as
emoções e os sonhos que permeiam suas relações na escola. Encerra discutindo
sobre as possibilidades de alegria e de encantamento na escola e ressalta a
importância de [...] abandonar os velhos hábitos rotineiros, as práticas que sempre
deram certo e buscar caminhos esquecidos, cheios de poeira e de mato, em que
ainda poderemos descobrir coisas novas, inusitadas” (REDIN, 2002, p. 135).
Acerca dos relacionamentos estabelecidos entre docentes e discentes, Panizzi
(2004) apresenta estudo sobre a relação entre afetivo e cognitivo no cotidiano da
sala de aula de grupos de 5ª a 8ª séries. A escolha, segundo a pesquisadora,
justifica-se porque nessas séries “[...] a preocupação centra-se na competência
técnica e conteudista de cada área, ou em questões puramente disciplinares”.
Através de dados coletados por meio de entrevistas e observações, descreve
conflitos entre estudantes-estudantes e estudantes-professores/as que ocorriam,
principalmente, em momentos nos quais eram repreendidos ou recebiam apelidos
de colegas. Porém, em outros momentos, demonstravam atitudes de amabilidade.
São apresentados ainda conflitos ocorridos no cotidiano escolar que refletem, em
muitos casos, o despreparo da escola e dos seus profissionais diante de algumas
dessas situações. Destaca como importante o “equilíbrio entre razão e emoção” para
a efetivação da aprendizagem. Ressalta também, através dos depoimentos dos
estudantes, a importância das atitudes dos docentes que utilizavam o diálogo, o
incentivo, o respeito e a argumentação em sala de aula e, ainda o bom humor.
Conclui que são essenciais para o cotidiano da sala de aula as relações entre
afetividade e cognição, ou seja, o afetivo, o diálogo, o respeito, saber escutar e dizer
são imprescindíveis para a aprendizagem. Ainda, observa serem essas atitudes
importantes durante todo o tempo e não ocasionalmente, pois “[...] o afetivo e o
intelectual são faces de uma mesma realidade - o desenvolvimento do ser humano”.
20
Bragança (2003) relata pesquisa realizada em escola cujo foco foi centrado nas
memórias de docentes, discentes e demais funcionários. Com a realização de
oficinas num “pólo de memória e narração” buscou a história da escola contada por
esses sujeitos como maneira de potencializá-los, dando sentido aos seus saberes e
fazeres. Então a recuperação da memória nessa pesquisa, segundo a pesquisadora,
aponta movimentos instituintes nos quais a história desses atores é contada e
(re)elaborada.
Macedo (2004) discute, a partir de sua experiência como professora, os
conhecimentos produzidos com as crianças na realização de um projeto. Enfatiza,
nesses sentido, a aproximação do que é ensinado na escola com o vivido dos
alunos. Assim, esses sujeitos produzem, elaboram e (re)elaboram conhecimentos.
Tais ações, então, apresentam-se como uma das muitas maneiras de melhor
compreender a complexidade do cotidiano escolar.
Gomes (2003) destaca as invenções dos praticantes do cotidiano escolar
estabelecidas através das suas redes de saberes e fazeres. Tais invenções
expressadas através das práticas e relatos das professoras tornam-se elementos
que dão visibilidade aos processos tecidos cotidianamente nos diversos
espaçostempos do cotidiano escolar e que favorecem diversas e diferentes
aprendizagens.
São esses e tantos outros movimentos que acontecem nas escolas e que nos
revelam as ações desses atores e atrizes que também buscam no ambiente escolar
o prazer de nele estar. São movimentos que alteram não somente seus sentimentos
em relação à escola, mas que também indicam mudanças pedagógicas e políticas.
Para Linhares (2002b, p. 69) são [...] movimentos instituintes com que os
insatisfeitos buscam instalar caminhos de emancipação na sociedade e na escola.
Tendo em vista a mobilização de saberes e fazeres que perpassam o cotidiano
escolar, juntamente com eles há também os sentimentos que permeiam essas
relações. Maturana (2001a, p. 22) diz que são as nossas emoções que provocam
nossas ações. Assim, os movimentos gerados no interior da escola expressam além
das práticas de seus sujeitos, também o entrelaçamento destas com as suas
21
emoções. Por isso, o estudo sobre esse aspecto apresenta possibilidades de
olhar/sentir/tatear/cheirar/degustar, enfim, sentir os movimentos instituintes gerados
na escola a partir e por causa das emoções de seus sujeitos, que alteram o político
e o pedagógico e são nutridos pelos sonhos e práticas daqueles que lutam e
sobrevivem pela escola pública. São eles/nós, utopistas e sonhadores que
reinventam com seu sentir/fazer o espaço escolar. Nesse sentido, torna-se
importante dar visibilidade aos fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12) porque
[...] quando os sonhos se ausentam, o presente se desorganiza, as perspectivas que
abrem o horizonte do amanhã se fecham, o hoje nos asfixia (LINHARES, 2002 b, p.
72).
Nesse sentido, busco nas minhas memórias de vivências na escola como aluna e
professora elementos que apresentem outros tantos cenários para suscitar
respostas de Filipe para Mafalda. Falas que provavelmente não caberão em tão
poucos quadrinhos. E, nessa trama iniciada, além das minhas experiências, trago
também outros protagonistas do cotidiano escolar com os quais estive durante a
realização da nossa pesquisa. Falo “nossa pesquisa” porque os docentes e
discentes que dela participaram são também seus autores. Cada momento junto a
eles foi apresentando-me outras maneiras de viver e de sentir a escola. Busquei
nesse ambiente os fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12) e os movimentos
instituintes dos atores/autores desse cotidiano.
Dessa maneira, com os questionamentos e considerações até aqui expostos, a
problemática da pesquisa seguiu na direção que pode ser assim enunciada: Como,
no interior da escola, os movimentos instituintes nutridos pela prática de docentes e
discentes no entrelaçamento entre razão e emoção, alteram o instituído e apontam
caminhos para mudanças políticas e pedagógicas?
Por isso, busquei nesse espaçotempo escolar o envolvimento dos seus sujeitos e as
suas práticas na reinvenção da escola através das histórias que protagonizavam
diariamente.
Dessa maneira, na organização da tessitura desse texto, alguns movimentos foram
importantes. Após falar sobre as tentativas de conhecer e viver os cotidianos da
22
escola (ALVES, 2002), apresento essa instituição e a sua multiplicidade de sentidos
e de histórias através dos fios das minhas memórias das unidades de ensino nas
quais atuei como aluna e professora e, também dos fios das experiências relatadas
e vividas pelos atores dessa pesquisa, que revelam as marcas dessas vivências e
refletem as maneiras pelas quais narram e vivem o cotidiano escolar.
Na busca por afirmar a importância dos autores e atores na reinvenção diária da
escola, trago as histórias contadas e vividas nos espaçostempos de alegria da
escola e os movimentos instituintes sentidos/percebidos/experimentados nesse
cotidiano.
E como mais uma maneira de dar visibilidade às práticas realizadas na escola, a
utilização de uma oficina de teatro de bonecos realizada com duas turmas a partir de
experiências das suas professoras representa possibilidades de alegria que
potencializam movimentos instituintes.
Por fim, mas sem terminar, e relembrando alguns desses momentos durante a
pesquisa, busco verificar o potencial emancipatório político-pedagógico, dos
fragmentos, das falas e da oficina no sentido de se constituírem como
potencializadores de movimentos instituintes no cotidiano escolar.
As imagens serão utilizadas também como parte do texto, contribuindo para resgatar
as memórias dessas vivências e também dar visibilidade a tantos meandros
escolares (SGARBI, 2001). A presença de histórias, músicas e poesias são
linguagens que também constituirão esse texto. Lanço mão delas porque, nós,
professoras de séries iniciais, freqüentemente as utilizamos na preparação de
atividades, seja em sala de aula ou fora dela. Também são elas utilizadas por
nossas crianças que nos bilhetinhos endereçados aos colegas ou a nós desenham
flores coloridas, corações e versos criados por elas mesmas.
As falas dos docentes e discentes também farão parte do texto. Elas tornam-se
essenciais à medida que apresentam as maneiras como narram e vivem suas
experiências na escola. No primeiro capítulo dei um destaque diferenciado a essas
falas que expressam os sentidos da escola para cada um, utilizando a linguagem
23
dos quadrinhos. As fotos que acompanham essas falas são de alguns momentos do
cotidiano da escola sem relação com as falas apresentadas.
Utilizei também os nomes citados no poema de Ruth Rocha “Toda criança do
mundo” para substituir os nomes reais das professoras, professores, alunas e alunos
da escola.
Alguns autores foram essenciais na tessitura desse texto enquanto procurei dialogar
com as experiências buscando nelas argumentos que dessem visibilidade à alegria
e ao que ainda há de bom na escola. Snyders (1988; 2001) trouxe-me a
possibilidade de pensar numa escola alegre; Freire (1992; 2004) com uma
linguagem simples, mas cheia de poesia, falou-me de encanto e de ação política na
reinvenção da escola; Maturana, (2001) questionando a dicotomia razão/emoção,
apresentou-as entrelaçadas não diminuindo uma em relação à outra; Santos (2002;
2004) advogou no sentido de um novo senso comum encharcado de utopias e de
possibilidades; Ginzburg (2003), com o paradigma indiciário, permitiu-me perceber
as sutilezas de falas e de ações na busca pelas pistas; Benjamim (1994) trouxe-me
a esperança na certeza de que a história é um processo e carrega consigo inúmeros
vieses que nos permitem dialogar com o passado, o presente e o futuro; Certeau
(2002) apresentou as táticas utilizadas pelos praticantes do cotidiano nessa
reinvenção diária da escola; Linhares (1997; 2001; 2002; 2005) não omitiu a paixão
pela escola e pelos movimentos instituintes nela gerados que se constituem em vida
que pulsa incessantemente; por fim, mas sem terminar, os autores que discutem e
pesquisam o cotidiano oportunizaram-me abrir mão das certezas e mergulhar nas
vivências durante a pesquisa, dentre eles destaco Ferraço (2001; 2003) , Alves
(2000; 2001; 2002), Oliveira (2001) e Carvalho (2002).
Pensar na possibilidade da existência de alegria na escola levou-me a buscar outras
linguagens, outras maneiras de sentir e de pensar sobre a complexidade com que a
vida se manifesta a cada dia nesse espaçotempo. A leitura iniciada com o silêncio e
a expressão de Filipe vai de encontro a um texto que aguça-me também os sentidos:
Alunos Felizes (PAUSEWANG, 1989). Lê-lo, absorvê-lo e vivê-lo foi essencial
enquanto escrevia o projeto de pesquisa e ainda o é quando penso nas bases
teórico-filosóficas nas quais baseei essa escrita. Numa linguagem intercessora, a
24
autora permite-nos pensar numa escola possível e que já existe nos muitos
fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12) vividos e sentidos nela.
A escola dos meninos felizes
Vou confiar-te um segredo:
existe uma escolaonde não se aprende o ABC,
mas se aprende a cavalgar cervos.
Também não se aprende a olharpara o quadro-negro meio sonolentos,
mas a navegar por sobre as nuvens.
Não se controla a corrida com o cronômetro,nem se calculam os saltos com um metro,mas se aprende a dançar sobre o arame.Não se aprende a buscar esconderijos,nem a olhar de soslaio o professor,mas a domar monstros.
Tampouco se aprende a engoliras lições com má vontade,
Mas a descobrir as pegadas das fadas.
E não interessa que dois mais doissejam quatro
e que a hora tenha sessenta minutos,mas se aprende a fazer mágicas e a sonhar.
Não se aprende a ficar sentado,nas lindas manhãs de primavera,numa aula que cheira aapagador de quadro-negro e roupas suadas,mas a aspirar o perfume das flores.Nem se aprende a rezar para passar de ano,E a ficar nervoso na horade levar para casa o boletim, mas a caminhar sobre a água.
25
tampouco se aprende quelua começa com l
rã com r,e galo com g,
mas a falar a língua dos animais e a destruir gaiolas.
Não se aprende a ficar quieto e sentadode boca fechada,
mas a subir em árvores.Muito menos se aprende a empurrar os outros
como quem diz: “Sai da frente, primeiro eu”,mas a consolar as pessoas tristes, a arrancar espinhos
e a cultivar violetas.
Se tu me perguntares:“Onde fica essa escola?”,
eu te responderei:“No Vale do Sabiá, a três quilômetros
de Pentecostes.Chama-se ‘Escola dos Meninos Felizes’,
e sua porta fica sempre aberta”.Podes ir lá.
E quando retornaresconta a teu professor onde estiveste.
Quem sabe ele te escute.
Cavalgar cervos, navegar por sobre as nuvens, domar monstros, descobrir as
pegadas das fadas, fazer mágicas e sonhar, aspirar o perfume das flores, caminhar
sobre a água, falar a língua dos animais e destruir gaiolas, subir em árvores,
consolar as pessoas tristes, arrancar espinhos e cultivar violetas são algumas das
aprendizagens da escola dos meninos felizes. São aprendizagens ligadas à vida. Na
escola da alegria é possível fazer uso dos sentidos e dos sentimentos. Nela os
estudantes não dormem (FREIRE, 2004), mas são despertados pelas possibilidades
de superar desafios.
Carvalho (2002), numa adaptação de conto de José Saramago, convida-nos a viver
as emoções de um professor que toca o sino da escola num lamento profundo pela
morte da sabedoria, da criação e da alegria nesse ambiente de ensino. O soar do
sino, sem dúvida ecoa nos diversos espaçostempos escolares uma vez que muitos
são os que têm lutado pela escola pública e, com suas práticas, vivido a alegria que
26
existe nela. São movimentos que têm revelado a ação política (CARVALHO, 2002)
dos docentes e discentes que não se deixam enredar por tantos nós que buscam
cercear a alegria na escola.
E como nos dizem Linhares e Garcia (2001, p. 43,49) [...] É tempo de garimpar este
terreno, visto por tantos como minado, e que em nossas pesquisas se revela fértil e
surpreendente a cada dia [...] e nos deixarmos permitir encontrar essa escola bem
próxima a nós e também a Filipe e a seus colegas.
2 DAS TENTATIVAS DE CONHECER E VIVER OS COTIDIANOS DA ESCOLA
Isso significa que compreender concretamente essas múltiplas e diversas realidades que são nossas escolas reais, com seus alunos, alunas, professores e professoras e problemas reais, nos coloca diante do desafio de mergulhar nestes cotidianos, buscando neles mais do que as marcas das regras gerais de organização social e curricular, outras marcas, da vida cotidiana, dos acasos e situações que constituem a história de vida dos sujeitos pedagógicos que, em processos de interação, dão vida e corpo às propostas curriculares (OLIVEIRA, 2001, p. 42).
2.1 A ESCOLA DA ESPERANÇA2
Foto 1- A Escola da Esperança
Alguns minutos antes das sete horas da
manhã. Mais um dia de aula. Chego com
algumas professoras e descemos de um
ônibus lotado num ponto próximo à escola. Os
carros estacionados na rua dão pistas de quais
professoras já chegaram. As crianças chegam
sozinhas ou acompanhadas por suas mães,
seus pais ou seus irmãos. Poucas chegam de
carro, algumas chegam de transporte escolar,
muitas chegam caminhando.
No pátio, acontecem as primeiras conversas e brincadeiras da manhã nos jogos de
amarelinha desenhados no chão, no futebol onde todos parecem pertencer ao
2 O nome real da escola foi substituído por “Escola da Esperança” em referência ao filme, “Nenhum a menos”, no qual a Escola Primária da aldeia de Shuixian recebeu o nome de “Escola Shuixian da Esperança” após a ação da professora Wei Minzhi junto a seus alunos e alunas.
27
mesmo time ou nos grupos formados ao redor de figurinhas e tazos. Algumas
crianças ficam junto dos familiares observando o movimento.
No espaço destinado às filas os lugares são marcados com as mochilas. É uma
diversidade de modelos, cores e tamanhos! Algumas crianças preferem também
permanecer na fila junto com as mochilas. Uma a uma, cada uma delas vai
demonstrando reconhecer seu lugar na fila, na sala de aula e na escola. Lugar
marcado não só por suas mochilas, mas por suas brincadeiras, suas vozes, seus
sorrisos, suas travessuras, seus sentimentos e seus sonhos.
Foto 2- Os movimentos do início da manhã no pátio da escola
Na sala das professoras (temos apenas um professor), elas chegam em duplas ou
sozinhas. Há quem não teve tempo de tomar o café da manhã em casa e o faz
nesses minutos que antecedem o horário da entrada. Os comentários nesse
momento são variados: um assunto do dia anterior que não deu tempo de ser
compartilhado é retomado, atividades que estão sendo realizadas em sala de aula,
notícias dos jornais, cosméticos, roupas, salários defasados, questões familiares...
tantos assuntos! O som ouvido nessa sala ressoa a vivência de cada professora e
professor como profissional, pessoa, mulher e homem. Suas falas refletem seus
sonhos, suas angústias, suas alegrias, suas tristezas... suas vidas!
28
Toca o sinal. Os corpos mudam os movimentos. Docentes e discentes
encaminham-se ao local destinado às filas. Uns fazem isso rapidamente, outros nem
tanto assim. “Preciso ler o meu horóscopo pra ver se posso trabalhar hoje!”, diz uma
professora.
O coordenador dá o “bom dia!” às vezes acompanhado de um ou de muitos avisos.
Uma criança vai até a frente das filas e faz uma oração ao microfone. Uns repetem,
outros escutam em silêncio, outros aproveitam pra falar de algo lembrado naquele
momento ou para continuar a conversar.
Uma a uma, as turmas são chamadas para que se encaminhem às suas salas. A fila
já não é mais tão fila. Ladeados, à frente ou atrás da professora, os meninos e as
meninas conversam, mexem com colegas e arriscam uma corrida pra ver quem
chega primeiro à sala de aula.
Foto 3- As filas antes do horário da entrada
Eram assim os minutos iniciais nas manhãs que passei na EMEF3 da Esperança
durante a pesquisa. Ainda que ocorressem as mesmas ações cotidianamente, cada
dia era marcado por algo inusitado, surpreendente, até mesmo nas ações comuns a
todos os dias. Muitas vezes eu ficava ansiosa pensando no que poderia acontecer.
Quais surpresas me aguardavam? Como as emoções provocariam as ações dos
praticantes daquele cotidiano a cada dia?
Neste cenário esses atores e essas atrizes, objetivo principal desse trabalho, através
de suas ações e discursos, foram apresentando-me a escola na qual aprendem e 3As escolas do município de Vitória-ES são chamadas de EMEF- Escola Municipal de Ensino Fundamental.
29
ensinam. Suas histórias são alguns dos fios com os quais esse texto vai sendo
tecido. Busco dar visibilidade aos fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12) desse
cotidiano escolar, práticas que subsistem a movimentos que engessam os sentidos
e que, muitas vezes, nos fazem pensar na escola apenas como lugar de enfado, de
repetição e de tristeza.
Nesse sentido, falar de alegria na escola significa falar da vida que se manifesta
diariamente expressa através de seus praticantes, dos movimentos que instituem
outras maneiras de ensinar e de aprender, que não se prendem a receitas e
fórmulas, mas que são gestados nas emoçõesações de cada um - e por que não de
todos?
Penso que ao falarmos de alegria e do prazer de ensinar e de aprender na escola,
possamos dar visibilidade à criação e aos processos inventivos nela existentes.
Podemos então viver outras possibilidades de superar muitos dos reducionismos
que encerram a vida escolar no fracasso e no lamento. Por isso, a escolha do
ambiente da pesquisa envolveu diversos fatores, contudo os sentimentos e as
experiências vivenciadas no espaço escolar pretendido foram decisivos nesse
movimento.
De certa maneira, conheço quase todas as Unidades Municipais de Ensino
Fundamental de Vitória devido ao trabalho que realizei nesses últimos 5 anos
contando histórias. Normalmente, a referência que docentes e discentes têm a meu
respeito é acerca de histórias e de bonecos. Alguns chegam a me chamar pelo
nome de “Lili”, dizendo lembrarem-se mais do nome da boneca que uso do que do
meu nome.
Pensei, inicialmente, que essa relação estabelecida com esses grupos talvez
dificultasse o período de pesquisa, por isso cheguei até a pensar em realizá-la numa
Unidade Escolar Estadual ou de outro município. Não que pensasse numa
“neutralidade”, porém, temia que a solicitação por contar histórias me impedisse de
realizar a pesquisa e/ou que me distanciasse dos seus sujeitos. Não queria ser
“visita”, ir à escola para dar um “show”, pretendia viver esse cotidiano inserida nele,
participando e mergulhando em seus movimentos. Após algumas reflexões,
30
compreendi que, até por causa dessas experiências já vividas e sentidas nessas
escolas, tinha o compromisso de realizar a pesquisa em alguma delas e que as
histórias e bonecos poderiam ser os facilitadores nesse processo aproximando-me
mais do grupo pesquisado.
A Escola Municipal da Esperança, situada na região de Maruípe, foi meu ambiente
de pesquisa. Dediquei-me ao turno matutino, com turmas de 1ª a 4ª a séries pelo
fato de que identifico alguns aspectos que contribuem para a questão que pretendo
investigar. São turmas que, normalmente, têm apenas uma professora regente que
sabe contar um pouco da história de vida de cada um de seus alunos e alunas e,
também, a solicitação da presença das famílias na escola é mais comum nessas
séries, visto ser também esse um período de aprofundamento do ensino da leitura e
da escrita.
Atualmente, a escola está organizada com turmas de 1ª a 4ª séries no turno
matutino, de 5ª a 8ª séries no turno vespertino4 e o noturno funciona com Educação
de Jovens e Adultos. O prédio foi reformado há cerca de 4 anos. Possui além das 12
salas de aula, sala de professores/as, salas da coordenação e das pedagogas,
secretaria, laboratórios de informática, de ciências e de cartografia, biblioteca, sala
de arte, refeitório, uma pequena sala que é usada para apoio pedagógico, uma
quadra coberta, pátio e auditório, este também é utilizado pela Secretaria de
Educação para reuniões e encontros.
Trata-se de uma escola cujo funcionamento foi iniciado como Grupo Escolar
conforme decreto nº 10.966, de 30/11/1939. Através da portaria nº 1629 de
27/11/81, recebeu a denominação de Escola de 1º grau e, a partir de 1984 pela
resolução nº 94/84, passou a atender as séries finais do Ensino Fundamental. Em
1998, teve sua transferência do Governo Estadual para o Sistema Municipal de
Ensino de Vitória através da portaria nº 3429 de 30/06/985.
4 Segundo a atual diretora, a divisão dos segmentos do Ensino Fundamental nos turnos matutino e vespertino, segue a mesma organização desde que a escola ainda estava ligada à Rede Estadual de Ensino. Essa foi uma decisão das famílias que, atualmente, ainda apóiam essa divisão.5 Dados do Projeto Político Pedagógico da escola.
31
O processo de municipalização trouxe alguns conflitos com a comunidade que não
queria que as professoras que atuavam ali há anos saíssem da escola. Esse fato foi
assim descritoA escola da Esperança é uma escola que foi municipalizada em 1998 e a comunidade, inicialmente, não aceitou a municipalização pelo fato de as professoras da Rede Estadual que aqui trabalhavam tinham mais de 20 anos de casa. Então, foi uma mudança muito brusca para a comunidade. Inicialmente, a escola era depredada e havia vários problemas sérios de bombas. E os diretores que vieram pra cá indicados por uma situação de municipalização sofreram bastante.Depois a Prefeitura iniciou um processo de resgate da Escola da Esperança, mas da sua parte física, a parte humana foi totalmente esquecida tanto no que diz respeito a alunos quanto a professores. E aí, por exemplo, trabalhamos aqui com reforma de grande porte, reforma estrutural imensa mesmo dessa escola. E houve professores doentes, crianças doentes, porém continuamos sem interromper o ano letivo. E, a partir do ano de 2002, começou a acontecer que o grupo da Esperança entrou também no processo de eleição direta [...]A Esperança era uma escola que não era bem vista na comunidade. Nessa comunidade aqui que 77% das crianças são do bairro Tabuazeiro, elas tinham como referência básica em escolas da Prefeitura uma escola municipal no bairro vizinho. Então, a partir de 2002, nós começamos a fazer um trabalho de resgate do ser humano, principalmente do professor, a questão da auto-estima, a questão da valorização do trabalho do professor [...] a gente observou que a escola mudou de cara, de feição, inclusive na comunidade. Hoje, a Escola da Esperança, ela é uma referência. [...] hoje em 2005 a Esperança é uma escola que tem uma imagem muito grande não só na comunidade, mas já na Prefeitura Municipal de Vitória [...] (Bia)
Alguns outros fatores também me influenciaram na escolha dessa escola: as
lembranças de ações já vividas/sentidas nessa Unidade de Ensino, a aceitação e o
apoio do grupo pelas atividades realizadas, a participação da comunidade escolar
nas atividades propostas e a permanência dos profissionais nessa escola
(ocorreram poucas mudanças no grupo nesse tempo em que os conheço). A maior
parte das professoras participa ativamente dos movimentos da categoria do
magistério, motivo pelo qual também busquei freqüentar reuniões e assembléias (o
que até então não fazia) como uma maneira de procurar entender um pouco mais
essas professoras, sobre o que falam, o que sentem, suas lutas e como as emoções
movem suas ações. Ainda, algumas professoras têm filhos estudando nessa escola,
o que penso ser também uma ação de além de lutar pela escola pública, de
acreditar nela.
32
Por essa ser uma equipe envolvida com as lutas dos educadores e realizar um
movimento que considero significativo para a comunidade, e pelas características
metodológicas da pesquisa, senti a necessidade de entrar em contato com o grupo
desde a escrita do projeto de pesquisa. Fiz contatos iniciais por telefone e
apresentei-me ao grupo num dos dias em que se encontravam para estudo na
escola. Pude falar das minhas intenções na/da pesquisa e senti-me acolhida. Então,
nesse período exploratório (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER,1998)
compreendi melhor suas relações cotidianas, seus aprendizados, suas conquistas,
as emoções e os conflitos que vivem.
No mês de junho/2005, houve eleição para direção da escola. Havia duas
candidatas: uma professora do turno vespertino e a atual diretora, que foi reeleita.
Esse processo mexeu com o grupo ocasionando alguns conflitos que puderam ser
percebidos a partir de relatos de algumas professoras que relembraram esses
momentos fazendo questão de citá-los e, também os conflitos deles decorrentes.
Elas me disseram que eu deveria ter chegado na escola no primeiro semestre
porque o “clima” estava bem melhor. Apesar disso não tive problemas durante a
pesquisa no período de julho a dezembro/2005.
A partir dos contatos e conhecimentos iniciais fui conhecendo esse cotidiano e
sentindo cada história narrada e vivida com seus praticantes. Com os relatos das
professoras conheci as histórias de muitas crianças e, aos poucos, fui descobrindo
que elas, em sua maioria, não moram próximas à escola, pois são oriundas das
áreas periféricas do bairro6. Muitas situações me foram contadas por quem, além de
ensinar a ler e a escrever, demonstra conhecer a comunidade que a escola atende.
Todo mundo tem que ser preparado pra trabalhar com esse tipo de crianças que nós temos aqui, que não moram nesses suntuosos casarões que tem
6 “A escola está localizada no bairro Maruípe e atende aos alunos e alunas residentes naquele bairro e no entorno [...] um número significativo deles/as reside nos diferentes morros e encostas que circulam a escola. Podemos caracterizar nossa clientela como pertencentes, em sua maioria, à classe popular e oriunda de famílias de baixa ou baixíssima renda. Normalmente são famílias que têm um número grande de filhos, residem em moradias desprovidas das condições mínimas para assegurar uma formação de valores e comportamentos considerados pela cultura da escola como necessários a uma convivência coletiva saudável. Os jornais da cidade apontam o bairro de Maruípe como o lugar onde há o registro de maior número de violência doméstica. Nossos alunos estão, portanto, expostos a um grande número de vivências e experiências no seu cotidiano cujos resultados e ou marcas não podem ser medidos” (Plano de Ação da escola).
33
aqui perto. Muitas moram lá no morro. As relações na escola, a organização, têm que ser baseadas nessa criança que vive lá e não nessa criança que vai pro shopping, que compra Fricote [...] Porque se você olhar cada criança, e eu tenho 32, eu digo pra você que eu consigo depois desse tempo inteiro olhar para as crianças... Rita senta aqui [ela aponta para uma cadeira]. Rita é auto-responsável. Ela sai daqui, ela almoça, acho que a mãe dela deve estar em casa, depois ela passa a tarde inteira, ela e o irmão presos lá no quintal deles. A mãe chega, eles já estão dormindo. Ela vem pra escola sozinha, por conta própria. A mãe chega, ela não vê, é o trabalho. Quer dizer, uma criança como essa, se você não estiver atenta o tempo inteiro, não aprende. (Emília)
Em muitos desses relatos sentidos/vividos pelas professoras e crianças percebemos
as relações de uma sociedade cada vez mais excludente na qual grande parte da
população vive em condições precárias. Os relatos dos protagonistas dessa história
são entremeados por suas emoções frente a situações que, muitas das vezes não
conseguem mudar. Na escola, então, buscam um mundo de possibilidades, tecem
outras/novas histórias de aceitação, buscam maneiras de sobreviver ao caos ao qual
estão submetidos7.
Foi nesse espaçotempo escolar que procurei, com todos os sentidos, encontrar os
fragmentos de alegria – e por que não de outros tantos sentimentos?
2.2 DAS ESCOLHAS E DOS CAMINHOS PERCORRIDOS
Pesquisar o cotidiano escolar é, assim, um trabalho de busca de compreensão das táticas e usos que os professores desenvolvem no seu fazer pedagógico, penetrando astuciosamente e de modo peculiar, a cada momento, no espaço do poder. Abdicando da busca de “ver” a totalidade – objetivo e paradigma de uma ciência que traz, embutido em si mesma, um necessário esquecimento e desconhecimento das práticas cotidianas complexas, plurais, diversas – esta metodologia de pesquisa pretende assumir a complexidade das práticas com suas trajetórias, ações, corpo e alma, redes de fazeres em permanente movimento. O cotidiano das escolas, no qual os sujeitos tecem suas redes de fazeres, onde vivem, agem, sentem, sofrem, amam, os seus ‘praticantes ordinários’ só existe onde cessa a busca da visibilidade ‘panóptica’ de uma escola abstrata, vista do ‘alto’ (OLIVEIRA, 2001, p. 49,50).
7 “A escola ao realizar todo o seu planejamento tem sempre em foco esse sujeito e é por ele que temos encontrado forças e sustentação para superar os desânimos impostos [...] Acreditamos que as dificuldades de acesso ao conhecimento sistematizado que grande parte dos nossos alunos demonstra não se caracterizam como uma dificuldade de aprendizagem. Elas apontam para a necessidade de organização da instituição escolar tanto no nível sistêmico como pelos profissionais de cada escola em particular que considere as necessidades desses sujeitos reais numa perspectiva de superação, não uma visão simplista de assegurar-lhes sua ascensão social, mas como um sério compromisso de não ser mais dos grandes obstáculos a serem vencidos dentre os que ainda terão que enfrentar” (Plano de Ação da escola).
34
As tentativas de conhecer e viver o cotidiano da Escola da Esperança reafirma
minha escolha por uma pesquisa de caráter qualitativo. Triviños (1987) destaca que,
por volta da década de 70, surgiu nos países da América Latina o interesse pelos
aspectos qualitativos da educação em oposição aos princípios positivistas de aplicar
os mesmos métodos para as ciências naturais e sociais; os aspectos quantitativos
foram então substituídos pelos qualitativos na pesquisa em educação. Minayo
(2003) destaca que a pesquisa qualitativa tem como atribuição o trabalho com
situações não quantificáveis.
Uma das características da pesquisa qualitativa é a utilização de múltiplas formas de
coleta de dados. Por isso, lancei mão de observação participante, usei entrevistas8
com professores e professoras, alunos e alunas e a realização de uma oficina de
teatro de bonecos com as turmas União e Arco-Íris9. Ainda contei com o registro de
fotos e a leitura dos documentos da escola: Projeto Político Pedagógico e Plano de
Ação, na tentativa de buscar conhecer o cotidiano no qual estive inserida. Já
havíamos tido uma experiência anterior de confecção de bonecos com apenas uma
turma, no ano de 2002 e, ao saberem do período que ficaria na escola, as
professoras das turmas União e Arco-íris pediram que fizesse uma oficina também
com seus alunos e alunas.
Procurei também me apresentar às crianças e, então, utilizei as histórias para dizer-
lhes do motivo da minha presença nessa unidade de ensino. Pude contar com a
colaboração da bibliotecária da escola que organizou esses tempos com as
professoras para que tivéssemos quatro momentos com três turmas em cada um
deles para uma apresentação de teatro de bonecos. Pensei que, além de
apresentar-me, poderia usar a contação de histórias para contribuir com os fazeres
das professoras, pois recebia essa solicitação sempre que conversava com elas.
Assim, aos poucos, fui me inserindo no ambiente da escola, conhecendo seus 8 Constituíram-se como sujeitos entrevistados: 68 crianças, além das demais cujas conversas e convívio não foram gravados e/ou fotografados, 16 professoras, 1 professor, a diretora, 2 pedagogas e 1 coordenador. Quanto aos demais funcionários da escola, não tive tempo para entrevistá-los, mas tivemos muitas conversas e eles foram essenciais nesses momentos vividos, colaborando para a realização deles. Nesse sentido, destaco a bibliotecária, os auxiliares de serviços gerais e os agentes de segurança ou vigilantes que as crianças chamavam de “guardinhas”. 9 As turmas são chamadas por nomes. Falarei sobre essa invenção das professoras no capítulo 4. Nesse caso, são turmas correspondentes à 4ª série do Ensino Fundamental.
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atores e atrizes, emocionando-me com eles, enfim, também “com todos os sentidos”
fazendo pesquisa.
Foto 4- Contar histórias- tentativa de aproximação com
as crianças
Dessa maneira, encontrei em Alves (2001), que aponta a importância da pesquisa
no/do cotidiano escolar, subsídios para estudar e buscar compreender a
complexidade desses cotidianos (ALVES, 2002), a criação e os processos inventivos
nela existentes. A autora destaca quatro aspectos nesse movimento de
compreensão.
O primeiro aspecto é referente à necessidade de não somente ver para crer, e de
exaltar o sentido da visão numa posição altaneira e de soberba, mas que ao invés
possam ser utilizados os outros sentidos para mergulhar nessa realidade sem
buscar a neutralidade aprendida com a ciência moderna. É de Carlos Drummond de
Andrade a expressão pela qual esse movimento é chamado pela autora de o
sentimento do mundo que assim o define
Buscar entender, de maneira diferente do aprendido, as atividades do cotidiano escolar ou do cotidiano comum, exige que esteja disposta a ver além daquilo que outros já viram e muito mais: que seja capaz de mergulhar
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inteiramente em uma determinada realidade buscando referências de sons, sendo capaz de engolir sentindo variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e me deixando tocar por elas, cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário (ALVES, 2001, p. 17).
No segundo movimento destaca a importância de reconhecer, desde o início, os
limites das teorias nas quais sempre nos apoiamos. Para tanto, virar de ponta
cabeça é
Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre as várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las não como apoio e verdade, mas como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade do cotidiano (ALVES, 2001, p. 25).
Beber em todas as fontes é o terceiro movimento enunciado pela autora que se
caracteriza pela discussão das fontes de pesquisa, lidando com a diversidade que o
cotidiano apresenta buscando tecer outros/novos saberes. Assumir fontes até então
julgadas sem valor e não adequadas a medidas e/ou estatísticas. Para tanto a fala,
os registros em documentos não oficiais, as fotos... são algumas dessas fontes que
junto à memória permitem o surgimento de lembranças, emoções, histórias e que
nos ajudam a perceber as tessituras presentes no cotidiano escolar.
Diante da complexidade do cotidiano aponta a necessidade de uma outra escrita e
diz que precisamos narrar a vida e literaturizar a ciência, ou seja, uma outra escrita
para além da já aprendida. E a autora, segue dizendo que
Há uma escritura a aprender: aquela que talvez se expresse com múltiplas linguagens (de sons, de imagens, de toques, de cheiros etc.) e que, talvez, não possa ser chamada mais de “escrita”; que não obedeça à linearidade de exposição, mas que teça, ao ser feita, uma rede de múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte muito além de dar respostas; que duvide no próprio ato de afirmar, que indique, talvez, uma escrita/fala, uma fala/escrita ou uma fala/escrita/fala (ALVES, 2001, p. 30).
Todos esses movimentos falam das implicações e tentativas feitas durante a
pesquisa. Não pretendem padronizar ou buscar enquadrar o cotidiano em “formas”.
Implicaram, antes, pistas atentando até para os pormenores mais negligenciáveis
(GINZBURG, 2003, p. 144), na busca por compreender os movimentos instituintes
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do cotidiano escolar, bem como dos diferentes espaçostempos de alegria nesse
contexto.
Ainda, um outro movimento me foi necessário e importante. Encontro em Saint-
Exupery, no diálogo entre o Pequeno Príncipe e a raposa, a expressão “criar laços”.
Os muitos laços criados também permitiram, além da minha inserção no grupo,
estabelecer vínculos de amizade com funcionários e crianças que permaneceram
também após o período de pesquisa.
Logo que cheguei à escola enfrentei meus próprios conflitos na tentativa de
conhecer a complexidade desses cotidianos (ALVES, 2002). Havia sempre muito
para ver, ouvir, experimentar, sentir... mas como escolher pra qual sala de aula ir?
Ficar no pátio durante o recreio ou na sala das professoras? Ir para o laboratório de
informática ou para a biblioteca? Fiquei como o menino que diante do mar pede ao
pai: Me ajuda a olhar! (GALEANO, 2005, p.15). Um dia, acompanhei uma professora
numa aula na horta. A turma buscava identificar com lupas os bichinhos que ali
moravam. Então, passei a pensar nas aulas que aconteciam em outros locais da
escola. Percebi que não poderia estar em todos os lugares, observar todas as aulas,
que não teria “o controle” dessas variadas ações e que elas não seriam tidas como
mera repetição. Esse incômodo me fez, inicialmente, afastar-me do que acontecia
para “refletir” um pouco sobre essas minhas primeiras impressões.
“Por que você me abandonou lá na horta?” Perguntou a professora no dia seguinte.
Expliquei-lhe sobre os meus conflitos e assim fui me desvencilhando das certezas
que ainda carregava e que me faziam acreditar que poderia entender/conhecer
todos os processos realizados na escola. Que tola! Fui percebendo minhas
limitações e buscando as pistas, os indícios (GINZBURG, 2003) dos fragmentos
felizes (SNYDERS, 2001, p. 12). Por isso, busquei sentir e respeitar a singularidade
de cada momento, aproveitando cada situação, inserindo-me cada vez mais nesse
grupo.
Fui sentindo a complexidade desse cotidiano, a rapidez com que as coisas
acontecem e as respostas que cada ator e atriz encontram nas muitas maneiras
como resolvem seus problemas. Fui, na verdade, conhecendo a mim mesma na
medida em que buscava conhecer os outros entre os quais eu também estava
38
incluída (FERRAÇO, 2003). Vivi a imprevisibilidade de muitos momentos na
realização da oficina de teatro de bonecos. Fizemos um planejamento inicial com
cronograma e materiais necessários. As etapas incluíam a seleção do tema de uma
história, a descrição, desenho e confecção dos personagens e a escrita dos textos.
Com os bonecos prontos fomos transformando o texto narrativo em discurso direto,
o que levou muito tempo porque era necessário estar com um grupo de cada vez e
isso implicava adequar esse horário às outras aulas. Com os textos prontos
precisávamos ensaiar. Mas estávamos submetidos também ao calendário de
atividades da escola. As crianças esperaram ansiosas por esses momentos. É hoje,
Dulci? É hoje, Dulci?
Não conseguimos cumprir os prazos estabelecidos inicialmente e refazíamos as
datas quando víamos que não podíamos cumprí-las. A falta de alguns materiais nos
levava a utilizar outros, íamos inventando cabelos e roupas. Quando alguma criança
faltava ao ensaio ou à apresentação era substituída por outra. A cada impedimento
inventávamos outras maneiras. Íamos aprendendo a lidar com essas situações, e
não posso esquecer da alegria sentida pela confecção dos bonecos e da satisfação
nos dias das apresentações. À medida que os bonecos ficavam prontos, seus usos
eram explorados pelas crianças que passavam a apresentá-los aos colegas da sala
e a quem passava pelo corredor. Novos sujeitos surgiram nas relações da sala de
aula e da escola. Encerramos a oficina no mês de dezembro e dividimos as
apresentações em quatro momentos.
Esses novos sujeitos tecidos a partir da utilização de materiais incomuns ao “padrão”
do ambiente escolar (retalhos, linha, agulha...) foram outros/novos participantes nas
relações dessas turmas e da escola, entre estudantes-estudantes e estudantes-
professoras. As histórias produzidas a partir de músicas já utilizadas em sala de aula
contaram também um pouco das histórias da escola, das suas inquietações e dos
seus sonhos. Por isso, segundo Mediano (CARVALHO, apud SIMÕES, 1997, p. 59),
[...] as oficinas pedagógicas procuram criar condições para que os docentes [e
discentes] possam ir transformando suas relações no trabalho escolar em direção a
formas mais coletivas e cooperativas.
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Também algumas das entrevistas agendadas com as professoras foram adiadas.
Elas foram realizadas na sala das professoras, nas salas de aula, na sala das
pedagogas, na sala de artes, na coordenação, no pátio, caminhando pelo corredor.
Algumas vezes era necessário trocar de espaço durante a entrevista pela chegada
das crianças ou pela necessidade de utilização do espaço por outro grupo.
Busquei desvencilhar-me da visão carregada de pré-conceitos, de julgamentos e de
verdades e comecei a entender os movimentos existentes, ouvindo as vozes e os
silêncios, tateando, buscando possibilidades... Emocionei-me muitas vezes! Ri
durante as conversas engraçadas, chorei junto com uma aluna que disse ter ouvido
de sua mãe que não poderia ter uma festa de aniversário, angustiei-me junto com as
professoras que se esforçavam para que seus alunos aprendessem, e com as
crianças que pediam até para o Papai Noel para que aprendessem a ler. Vivi a
alegria do recreio, diverti-me nas aulas de Educação Física e nas salas de aula
também, fiz as mesmas atividades que as crianças e pude contar com a
solidariedade delas no empréstimo de materiais. Enfim, vivi esse cotidiano com
todos os sentidos!
Também fui provocada para gravar e relatar situações nas quais as professoras
diziam ter a voz cerceada pela direção da escola. Num desses momentos ouvi de
uma professora: “Dulci, você não vai gravar? Cadê o seu gravador? Isso também é
o cotidiano”. Respondi que o gravador não estava ligado, mas que eu poderia
registrar o fato independente dele. Em alguns momentos tive a impressão de que
muito do que diziam tinha a intenção de denúncia. Eu que buscava a alegria fui
percebendo outros sentimentos que habitam o cotidiano escolar e que afetam as
relações entre seus personagens. Procurei não “tomar partido” mas dispus-me a
ouvir, uma vez que, ainda que inserida na escola, não havia participado de todo o
processo da eleição.
Dos espaços da escola, a quadra foi meu primeiro local pesquisado. Gabriela e
Pedro me acolheram em suas aulas e fui percebendo a relação existente entre a
professora e o professor e deles com seus alunos e suas alunas. Eles planejavam
as aulas sempre juntos e dividiam a mesma quadra. Fui percebendo como aquelas
atividades de confecção de brinquedos tornavam-se significativas para as crianças e
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para os dois. Na confecção de pipas observei a destreza com que meninos e
meninas manipulavam varetas e papel de seda. Pedro admirava-se: Esses
moleques são bons demais! Eles conseguem soltar pipa até dentro da quadra!
Um dia, eu tentei manter uma pipa no céu, mas não consegui. As crianças ao meu
lado tentavam me ensinar. Admiti que não sabia e pedi a um aluno: Posso segurar
em sua mão? Segurei a mão daquele menino e pude sentir os movimentos que
fazia. Como é difícil! Mas com muita destreza e num compasso inigualável de
movimentos ele a fazia subir e mover-se no alto. Sua mão movia-se como a batuta
de um maestro orquestrando o vôo daquela pipa. Éramos eu e o menino ligados por
uma linha à pipa que voava no céu. Quanto conhecimento tem esse menino!
Aproveitei as aulas de Educação Física para falar com as crianças, o que me foi
permitido por Pedro e Gabriela. Durante esse período as crianças brincavam com os
brinquedos que haviam confeccionado. Assim, podia conversar com elas sem
atrapalhar as aulas. O gravador também foi motivo de muitas perguntas por parte
das crianças: Tia, é celular? Deixa eu ouvir? Também percebi constrangimentos de
crianças e de algumas professoras com a utilização dele. Eu também passei por
isso. Depois de entrevistar um grupo, duas alunas disseram que também queriam
me entrevistar. Nesse momento, pude sentir a inquietação de ouvir perguntas,
pensar na resposta, e tive medo de falar algo “errado”.
As crianças foram muito receptivas às fotos: Tira a minha agora! Deixa eu ver?
Posso tirar também? Faziam poses, queriam ver suas imagens na máquina, pediam
para fotografar e serem fotografadas. Fotografei muitas aulas de Educação Física
também a pedido de Gabriela e de Pedro que queriam um registro das atividades
que faziam e nem sempre tinham tempo pra pegar a máquina da escola, dar aulas e
fotografar ao mesmo tempo.
Busquei respeitar cada professora quando pedia para estar em suas salas de aula.
Percebia o desconforto que algumas vezes isso causava. Mas o que você vai
fazer?Você não acha melhor realizar alguma atividade com eles ao invés de só
observar? Em duas turmas realizei uma atividade de leitura.
41
Em uma delas, após ouvirem o início de
uma história10, as crianças deveriam
escrever cartas para as nuvens pedindo
que fizessem chover na terra seca do
personagem. Após a história choveu de
verdade e brincamos que era devido às
cartas escritas. Foto 5 – Escrita de carta para as nuvens
Penso que o desconforto em relação à minha presença em sala de aula era gerado
por muitas situações nas quais pesquisas são realizadas, mas não socializadas com
o grupo pesquisado e, que muitas vezes, buscam também na prática do professor e
da professora o fracasso da escola. Sobretudo, percebi uma preocupação com o
que seria feito com os dados e com as entrevistas.
No recreio também fui percebendo as relações entre as crianças. No pátio
brincavam, corriam, mas também algumas se reuniam em grupos. Fui convidada
para um piquenique num desses dias. Elas pareciam curtir a presença de uma
professora entre elas. Cheguei a ser disputada por dois grupos. As crianças
menores disseram também que sentiam falta de brinquedos e do quanto queriam
que o seu recreio fosse num espaço separado das crianças maiores.
Esses foram alguns dos caminhos percorridos e, diante da complexidade desses
cotidianos (ALVES, 2002) e dos muitos movimentos neles existentes, os caminhos
percorridos, longe da linearidade, percorreram meandros não previstos e algumas
rotas iniciais indicadas nesse percurso foram alteradas, revistas e reelaboradas. Por
10 Severino faz chover, de Ana Maria Machado.
42
isso, encontro em Santos (2004) uma maneira de buscar compreender e pesquisar
o conhecimento produzido/elaborado/sentido nesse espaçotempo que
[...] sendo total, não é determinístico, sendo local, não é descritivista. É um conhecimento sobre as condições de possibilidade. As condições de possibilidade da acção humana projectada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, constitui-se a partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica (SANTOS, 2004, p. 77,78).
43
3 A ESCOLA E SUAS MARCAS: MULTIPLICIDADE DE SENTIDOS E DE HISTÓRIAS
_O que é a escola pra você?
_Ah, é legal, é divertido, eu gosto.
_E a escola serve pra quê?
_Pra estudar, pra brincar.
_Pra brincar também?
_Só na hora do recreio.
_Mas só na hora do recreio?
_Só. Mas na sala não pode.
_Por quê?
_Por causa que a professora briga, tem que estudar.
(Estela, 7 anos)
Em nossos dias, a existência da escola é um fato inegável. Nós, professoras e
professores, comumente enfatizamos a sua importância para nossos alunos e
alunas como espaço primordial para a aprendizagem. Para tanto, muitas vezes
utilizamos palavras e expressões que se tornam jargões também repetidos pelos
discentes.
Os sentidos que vamos atribuindo à escola advêm das nossas vivências nesse
espaçotempo. Seja na sala de aula ou nas demais dependências dos prédios
escolares muitas histórias são tecidas dia-a-dia, histórias que falam de um presente,
mas histórias que também recorrem a um passado em que tantas práticas atuais
tiveram a sua origem, pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado
antes? (BENJAMIN, 1994, p. 213).
A escola tal como a conhecemos é uma invenção da modernidade (DUSSEL;
CARUSO, 2003). São muitas as marcas de suas histórias que ainda vivemos em
nossas escolas. Para Enguita (1989) o surgimento da escola deve-se à preparação
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para o trabalho nas fábricas que exigia trabalhadores disciplinados. Para tanto, a
docilidade dos corpos foi estabelecida a partir dos horários fixados, das filas, das
notas, das punições...
Foto 6- grades e filas- algumas maneiras para manter a ordem e a disciplina
Contudo, reconhecer os sentidos atribuídos à escola dialogando com as
experiências desse passado cujas marcas são ainda presentes junto a tantas outras
marcas atuais significa também buscar pistas, indícios (GINZBURG, 2003) de outras
possibilidades para ensinar e para aprender.
No início do mês de dezembro, as crianças chegaram à Escola da Esperança e
tiveram uma surpresa: Papai Noel estava lá! E a escola estava toda decorada!
Muitos olhos curiosos admiravam o boneco que representava o velhinho do Natal.
Algumas indagavam se ele era ou não de verdade, outras diziam acreditar nele e
faziam pedidos. Os avisos do coordenador eram de que nada devia ser tocado. Essa
era uma arrumação feita pelo turno vespertino. Mas como só olhar?
Um grupo de alunos aproveitou a saída do coordenador para atender a uma
professora em sala de aula e fez o que tanto queria. Eles aproximaram-se, sentaram
no colo do Papai Noel e fizeram poses felizes pelo que conseguiram. Como
aprisionar em grades, portões e regras a vida, a curiosidade, o riso, as burlas?
Foto 7- Burlas para chegar perto do “Papai Noel”
45
Ainda que sob a égide da disciplina, a história da escola é permeada também por
tantos outros atravessamentos que vão incorporando a ela os movimentos de quem
protagoniza o seu cotidiano. Há outras histórias sendo escritas por quem vive a
escola dando a ela outros sentidos e
[...] o que nos surpreenderá, talvez, é como neste espaço/tempo é possível encontrar a esperança, a vontade de fazer, a criação de possibilidades, a busca de alternativas, a discussão, a memória de tantas propostas feitas e desfeitas, a crença na utopia! (ALVES, 2002, p. 17, itálico pela autora).
Diante desses fatos citados recorro à pergunta feita por Veiga-Neto (2000): [...] as
crianças ainda devem ir à escola? O que foi sendo produzido através da escola
como agência de disciplinamento e de adequação às normas vai de encontro ao que
vivemos atualmente onde vemos um movimento contrário de rompimento a essa
regra. Benjamim (1994) fala do encontro secreto entre gerações passadas e
presentes. É a presença constante dos “agoras”. Nas esperanças que carregamos,
buscamos semelhanças ou diferenças no que já aconteceu, a fim de
compreendermos o presente e planejarmos o que ainda virá. Por isso, relacionar as
marcas que trazemos das escolas pelas quais passamos, bem como das práticas há
tanto tempo em nós arraigadas às nossas ações atuais resulta num movimento de
compreensão dessas experiências e, sobretudo, de buscar nelas elementos com os
quais possamos superar essa visão de escola desprovida de prazer. Entender esses
processos, talvez nos proporcione a ruptura desses nós cerceadores e, também,
possibilite despertar no passado [e ainda no presente e no futuro] as centelhas da
esperança (BENJAMIM, 1994).
Não busco julgar falas e práticas atuais e passadas, mas reconhecê-las e, também,
tentar compreender os sentidos da escola para os seus sujeitos, principalmente no
que concerne aos movimentos nela existentes que vêm dando significado às ações
daqueles que são seus atores e buscar em meio a elas os fragmentos felizes
(SNYDERS, 2001, p.12) desse ambiente nos meandros percorridos pelas fagulhas
que podem abrir pistas para a reinvenção da escola (LINHARES, 2002 a, p.49).
46
Homero Massena, artista plástico capixaba, aproveitava-se das rachaduras das
paredes de sua casa para pintar flores e pássaros. Destas rachaduras e das suas
marcas brotava vida através das pinturas que revelavam a vida renascendo também
nos lugares mais inóspitos.
Foto 8- Pintura na parede do Museu Homero Massena, Vila Velha- ES
Em meio às marcas deixadas pela escolarização representadas pelos
silenciamentos, castigos, medição, domesticação, modelização, brota a vida dos
movimentos instituintes gerados pelos seus praticantes que apresentam nesses
vieses outras histórias pelas quais ainda é possível acreditar na escola e na alegria
nela existente. Marcas dos muitos sujeitos com os quais convivemos nas muitas
escolas pelas quais passamos (ALVES, 2002). Marcas de alegria, marcas de
esperança, marcas de inventividade que revelam processos que instituem outras
maneiras de fazer, de ser e de estar na escola.
3.1 AS HISTÓRIAS DAS MINHAS ESCOLAS
É através da história que o homem vem traçando a sua trilha, por onde muitos caminham. Assim as histórias se repetem, se entrelaçam, se completam, se aprimoram. A história contada de geração a geração, palavra falada é o fio de prumo que ajuda a orientar com sensibilidade e equilíbrio o coração do mundo (SORRENTI, 1996, apud BARBOSA, 1997, p. 12).
Falar sobre a escola, bem como da alegria nela existente significa remeter-me à minha própria
história como aluna e professora. Recordar, diz Galeano (2005, p. 11), vem “do latim re-
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cordis, voltar a passar pelo coração”. Assim, as lembranças falam de muitos dos sentimentos
vividos. A escola sempre representou pra mim um lugar de descoberta e de alegria. Não
descarto os castigos, o medo de ficar reprovada, as brigas com colegas, as ameaças de alguns
professores com uma “prova surpresa”, porém esses momentos fizeram parte desses
cotidianos com tantos fragmentos também felizes.
Encontro nas palavras de Maturana (2001b) uma justificativa para a iniciativa de falar das
minhas histórias e do tema escolhido nesse movimento de escrita
Como seres humanos, criamos com nossas ações em nosso domínio de experiências os mundos que vivemos, quando os vivenciamos em nosso domínio de experiências enquanto seres humanos, e nos movemos nos mundos que criamos mudando nossos interesses e nossas perguntas, no fluir do nosso emocionar. Em outras palavras, a poesia da ciência é baseada em nossos desejos e interesses, e o curso seguido pela ciência nos mundos que vivemos é guiado por nossas emoções, não por nossa razão, na medida em que nossos desejos e emoções constituem as perguntas que fazemos ao fazermos ciência (MATURANA, 2001 b, p. 146,147).
3.1.1 Histórias como aluna
Viver e não ter a vergonha de ser feliz,Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz! (Gonzaguinha)
Conheci a escola aos sete anos de idade. Ela sempre teve um significado especial
para mim. Nela realizei um dos meus desejos dos primeiros anos da infância:
aprender a ler e a escrever. Meu pai, quando lhe pedia que me ensinasse a ler,
respondia: “Pra aprender a ler tem que ir pra escola!”. Era a única em casa que
ainda não sabia e queria, além de aprender a ler, saber o que acontecia na escola
dos meus irmãos.
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Não lembro de ter tido muitas dificuldades em relação às primeiras aprendizagens na escola.
Divertia-me a cada leitura, a cada história da cartilha que conseguia decifrar e entender. Fazia
incessantemente o movimento de ir até as últimas lições para saber o que ainda iria acontecer.
Lia todos os cartazes afixados nas paredes da sala de aula. Lembro desses cartazes, das
leituras mimeografadas que a professora fazia, do recreio, das filas, do dia de cantar o Hino
Nacional e do cheiro da sopa que me fazia passar bem longe do refeitório.
Minha primeira escola era um prédio bastante antigo. Tinha rachaduras e
infiltrações. As paredes eram pintadas de branco na parte superior e de cinza na
parte inferior. Logo soubemos que ela seria demolida. Isso aconteceu um ano depois
que comecei a estudar. Hoje, naquele espaço há uma praça.
Na sala de aula, nos assentávamos em duplas nas mesas conjugadas com bancos.
Ainda que juntos não podíamos conversar. Traçávamos uma linha imaginária que
nos separava. Era comum que um colega ficasse encarregado de anotar os nomes
de quem conversava, caso a professora saísse da sala. Esse colega era quase
sempre o mesmo ou a mesma. Nós o chamávamos de puxa-saco, de dedo duro.
Com a demolição da escola, nós fomos transferidos para um prédio numa unidade
de ensino próxima à nossa na qual já funcionavam as turmas do ginásio. Foi lá que
aprendi a brincar de elástico e de queimada. Lá fiz muitas amizades e também as
primeiras inimizades. E foi no prédio do ginásio, distante do nosso, que descobri a
biblioteca.
Recordo que na 3ª série do Ensino Fundamental fazia as atividades rapidamente e
pedia à professora que me deixasse ir até a biblioteca. No trajeto passava pelo pátio
e podia ver tudo: as aulas de Educação Física, quem chegava e quem saía e, ainda,
o sol que quase não podia ser visto nas salas com janelas tão pequenas e altas... A
biblioteca era enorme e possuía um acervo com muito material de pesquisa. Era o
local mais silencioso da escola! O acervo dos livros destinados para as crianças
menores não era muito grande, mas mesmo assim, as leituras foram aquecendo não
49
só meus olhos, mas todos os meus sentidos. Resende (1993, p. 123) fala sobre
essa relação das crianças com os livros
Ler, ver, ouvir, tocar o livro com todos os sentidos, entrar nele para vislumbrar encantos e novidades, tecer surpresas, imaginar irrealidades e viver emoções reais... Esse caminho é aberto ao novo, às camadas profundas, irracionais, que apreendem, intuem, armazenam imagens, sensações e sentimentos. As relações das crianças menores com o livro não se estabelecem em nível de entendimento racional e a fruição se dá por vias afetivas e sensoriais”.
Participar dos conflitos dos personagens de cada história possibilitava-me resolver
minhas próprias indagações, afinal, através das histórias é possível sentir muitas
emoções com os olhos do imaginário (ABRAMOVICH, 1993, p. 17).
Mas nem tudo foram flores. Encontrei alguns espinhos... e como doeram!... Nas
séries iniciais, eu, criança, não entendia o distanciamento das professoras em
relação a nós. Elas eram tão sérias e quase não sorriam. Não nos tocavam, quer
dizer, só na hora dos puxões de orelha, de cabelo; beliscões... Nunca fui agredida
fisicamente, mas emocionalmente sim. Um dia, na 2ª série, ri do desenho de uma
colega (apenas esbocei o sorriso com os lábios sem expressar qualquer som), e fui
posta de castigo atrás da porta. Tinha medo até de respirar... Achava que a
professora iria ler meus pensamentos que com certeza não foram os melhores em
referência a ela. Fui castigada porque sorri, meus colegas eram castigados porque
pediam para ir ao banheiro, conversavam ou levantavam sem permissão. Nossos
nomes iam para o quadro e nossos corpos eram castigados. Esperavam de nós que
agíssemos como estátuas. Era proibido sentir, tocar, falar... Éramos silenciados por
“práticas autoritárias [...] impedidos de se movimentar na sala de aula [...]” (GARCIA,
2002, p. 15).
Nas séries seguintes, minhas vivências também aconteceram, em sua maior parte,
na biblioteca da escola. Agora os livros até então proibidos foram liberados para
pesquisa. Podia percorrer entre as estantes que ainda não conhecia. Nessa época
também admirava um professor de Geografia. Ele era sério, tínhamos tanto medo
dele! Até na sua ausência não nos levantávamos de nossos lugares. Mas esse jeito
sisudo escondia alguém que revelava gostar muito da escola. Ele havia sido diretor
ali e sempre nos contava histórias daquele lugar, das conquistas e das perdas desde
a fundação da escola e da sua esperança de que as coisas melhorassem. Referia-
50
se também aos jogos de futebol, assunto preferido dos meninos, aos
acontecimentos do bairro, da cidade, do país, do mundo. Apesar do medo, nós o
admirávamos. Seu interesse pela escola nos contagiava.
Essas experiências despertaram em mim uma necessidade de buscar essa alegria
que eu acreditava existir na escola. Daí a importância da biblioteca para mim. As
histórias me permitiram estar em lugares diferentes, aspirar outros ares, sentir outras
experiências... elas foram minhas intercessoras de experiências prazerosas de
aprendizagem. Com elas tenho percorrido muitos caminhos, conversado com
diversos personagens e escrito outras/novas histórias.
3.1.2 Histórias como professora
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros
(BENJAMIN, 1994, p. 201).
E foi a partir das vivências na escola que fui me tornando professora, fazendo
minhas escolhas, influenciada também pelos fios trançados com colegas nas
conversas nos pátios, corredores e salas de aula. Por isso, optei por fazer o curso
de magistério também na rede pública estadual. Minha turma tinha sérios
enfrentamentos com a diretora e a coordenadora da escola. Questionávamos muitas
regras e isso as incomodava. Tínhamos o apoio de algumas professoras, mas elas
mesmas não enfrentavam aquele conjunto de imposições. Fomos descobrindo então
que havia outras maneiras de protestar. Uma amiga foi chamada um dia para
assinar o “livro de ocorrência”. Todas nós fomos juntas com ela para assinarmos
também. Diante disso, a coordenadora teve que ceder.
Outras táticas (CERTEAU, 2002) foram surgindo... Inventávamos paródias sobre nós
mesmas, sobre as professoras, sobre o funcionamento da escola, sobre a
coordenadora e a diretora também. Cantávamos as músicas nas aulas que nos
permitiam, no intervalo entre as aulas, nas aulas vagas, nos corredores e na
pracinha próxima à escola. Nesses momentos imaginávamos que as escolas nas
51
quais atuaríamos seriam bem diferentes da nossa. Nunca fomos pegas em flagrante!
Tínhamos um esquema montado no qual alguém sempre ficava vigiando.
Conseguíamos até usar o mimeógrafo da escola para reproduzir nossas criações.
Por várias vezes quase fomos surpreendidas, mas avisadas a tempo, quando a
coordenadora chegava à nossa sala, estávamos todas assentadas e bem
comportadas.
A convivência com essas colegas, nossos questionamentos sobre a rigidez das
normas que burlávamos, as músicas e as brincadeiras foram contribuindo para o
meu “ser professora”. Então, comecei a trabalhar querendo fazer da minha sala de
aula um lugar muito especial. Penso que foi por isso que levei essas experiências
para minhas salas de aula como professora. Queria que as histórias, as músicas e
as brincadeiras fizessem parte do meu cotidiano e que pudéssemos, eu e meus
alunos e alunas, sorrir sem medo. Atuei durante dois anos na rede privada de ensino
e depois ingressei na rede pública municipal e estadual. Sempre busquei utilizar
músicas e brincadeiras com as minhas turmas, embora muitas vezes não
considerava esses momentos como aula. Achava que o prazer era secundário e
utilizava esses recursos no final do dia, nos horários vagos, nas vésperas de férias
ou feriados e nas festas que ocorriam ocasionalmente.
E, em meio a essas experimentações, há cerca
de 10 anos surgiram duas “pessoas”
inesquecíveis em minha vida: a Lili e o Gugu,
dois bonecos. A princípio, foi uma brincadeira (de
novo a insistência em desprivilegiar o prazer),
mas descobri que meus alunos, na época da
turma do maternal, passaram a travar diálogos
com os bonecos.
FOTO 9- Lili e Gugu
Contavam-lhes as novidades sem o menor constrangimento, como também o que
faziam e descobriam a cada dia. Ficava surpresa com o que acontecia e, pouco a
pouco, eles estavam menos receosos e passaram a conversar também comigo.
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Na mesma época em que descobria o fascínio das crianças por histórias, lecionava
para adultos no Projeto Todos Podem Ler, da Rede Estadual de Ensino do Espírito
Santo. Os alunos tinham idades compreendidas entre 14 e 65 anos de idade. Eram
adolescentes, jovens, pais, mães, vovôs e vovós que trabalhavam durante o dia
como donas-de-casa, costureiras, balconistas, empregadas domésticas, pedreiros e
operários. Iniciávamos as aulas conversando sobre as atividades que havíamos
realizado durante o dia. Eles demonstravam curiosidade sobre como era a rotina
escolar com as crianças. Contei-lhes sobre as histórias e os bonecos. Daí veio a
minha surpresa: disseram que também queriam ouvir histórias! A partir de então,
histórias e bonecos foram, cada vez mais, tornando-se táticas (CERTEAU, 2002) em
minha sala de aula. Agora, passava a considerá-los como aula.
As crianças conversavam com os bonecos, falavam das suas relações com
familiares e dos seus brinquedos. Os adultos queriam que os bonecos retratassem
suas vivências. As relações familiares eram as preferidas. Por isso, casaram a Lili e
o Gugu no mês de junho, num arraiá na sala de aula. Depois, a gravidez e o
nascimento do primeiro filho foram os acontecimentos seguintes. Também houve
brigas entre o casal que foram apaziguadas pela turma. Os conselhos aos recém-
casados e os diálogos travados me deixavam sempre surpresa.
O que acontecia em minha sala de aula foi apresentado em um encontro de
professoras do noturno. E, assim, entre uma brincadeira e outra com os bonecos,
fui conhecendo pessoas e, em especial, destaco Marinalda Loureiro, que, vestida da
bruxa Petúnnya Rolf, encanta a todos com suas histórias. Essas novas amizades
passaram a chamar-me de “contadora de histórias”. Sempre achei interessante esse
título recebido. Em alguns lugares ele me diferenciava dos demais apesar de, nas
escolas, minhas colegas professoras já contarem histórias há tanto tempo!... E o
contador que existe em cada um/a de nós? Acredito que cada um/a de nós é um/a
53
contador/a de histórias que narra a sua própria história! Porém, isso já é uma outra
conversa... O fato é que as histórias foram conduzindo-me a muitos outros lugares.
O convite que recebi em 1999 para participar do Projeto Revitalização dos Espaços
Escolares11 possibilitou-me compartilhar muitas outras experiências como “contadora
de histórias”. Percorria as escolas contando histórias para turmas de 1ª a 8ª séries.
Em uma dessas escolas uma professora me disse: “Se eu contasse histórias igual a
você, minha sala de aula seria diferente”. Essa fala me levou a pensar sobre o
caráter do trabalho que fazia e como as ações eram conduzidas. Fiquei preocupada
em estar indo apenas para uma “visita”, um “show”, agendando os encontros por
mim mesma, segundo a minha disponibilidade.
No ano de 1999, foram pensadas algumas atividades para serem realizadas nas
escolas, que dinamizassem ainda mais os espaços revitalizados: contação de
histórias, brinquedos e brincadeiras, música e dança (as duas últimas já existentes
e que aconteciam em horário oposto ao de aulas regulares). Junto a essas ações,
havia também a proposta das bibliotecas escolares, que começavam a ser tratadas
como espaços dinâmicos e de interação, onde além de pesquisas e dos “momentos
de silêncio” (algumas vezes como condição indispensável à existência desses
espaços), também fosse possível sorrir e brincar. A biblioteca passou a fazer parte
da escola, sendo envolvida nos projetos pedagógicos e desencadeando tantas
outras ações.
11 O Projeto Revitalização dos Espaços Escolares foi uma ação nas escolas da Secretaria de Educação de Vitória que tinha como objetivo vivenciar junto a cada comunidade escolar algumas ações que propiciassem aos docentes e discentes outras alternativas pedagógicas, nas quais, o prazer justificasse o estar na escola. Começamos a falar de diversos sentimentos, gostos, preferências, de aconchego, de sentir-se bem na escola. Por isso, uma das primeiras ações foi a de revitalizar locais e materiais, criando e transformando espaços a partir da atuação coletiva dos atores e atrizes do cotidiano escolar.
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Tínhamos um longo caminho a percorrer. Não
intencionávamos mudar pessoas. Preocupava-nos
a idéia de nos distanciarmos dos atores da escola,
situando-nos como aqueles que sabem, que estão
para ensinar e negar a produção cotidiana. Não
queríamos ser mestres, mas aprendentes que na
escola trocam, compartilham, aprendem...
Então, outros movimentos foram surgindo na
perspectiva de trabalhar junto a esses grupos, de
fazer com eles e não para eles. Alguns projetos
surgiram: fizemos oficinas de bonecos e nossos
primeiros alunos da EMEF Neusa Nunes
Gonçalves foram até a EMEF Maria José Costa
Moraes ensinar a seus colegas o que aprenderam
no ano 2000. Alunos e alunas da EMEF Padre
Anchieta reviveram os contos das mil e uma
noites, e foram os contadores de histórias numa
praça próxima à escola. Professoras inventaram
histórias com seus alunos num curso ministrado
em 2001. Elas vestiram-se de personagens da
literatura infantil e utilizamos diferentes espaços
da escola para contar histórias...
Com um grupo de mães da EMEF Professor João
Bandeira pudemos também viver esses
momentos. Elas iam até a escola para contar
histórias para as crianças. Sentir o envolvimento
desses grupos foi fascinante! De repente, a
biblioteca ficou pequena e abriu suas portas como
páginas de um grande livro para que as histórias
alcançassem toda a escola. Sem palavras
mágicas ela foi transformada numa oficina, num
castelo com torre e salão de festa, numa casa
humilde com uma pequena horta e até numa casa
foto 10- Contos na praça de
Jucutuquara - Vitória
foto 11- Contos na praça de
Jucutuquara - Vitória
Foto 12- “As mil e uma noites” na
EMEF Padre Anchieta
Foto 13- Mãe de alunas contando
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Foto 16- momentos compartilhados - Professoras contam e vivem as histórias
E até casamento aconteceu! (outro!) A Lili e o Gugu casaram de verdade, quer dizer,
de história, na EMEF José Lemos de Miranda no ano de 1999, e ainda hoje há quem
comente sobre esse acontecimento.
Nessas ações com as escolas minha maior preocupação era a de que esses grupos
não insistissem em desvalorizar o que faziam e sabiam. E como aprendi com cada
um deles!... Nesse período foi que comecei a pensar na possibilidade de sentir
prazer em estar com/na escola. A leitura de Assmann (1998) foi a desencadeadora
dessas reflexões. Prazer e alegria é o que tenho buscado sentir a partir de então
cada vez que estou na escola. Sempre busquei os fragmentos felizes (SNYDERS,
2001) e encontrava-os em diferentes espaçostempos: nos relacionamentos com
colegas, com alunos e alunas, nas trocas de experiências, na aprendizagem das
minhas turmas, no envolvimento das famílias, nas conversas...
Por isso, trazer à cena essas histórias, as vivências e os sentimentos, os
movimentos e as invenções experimentados significa dar visibilidade à alegria
existente nas unidades de ensino. Assim como Sherazade contava histórias pra não
morrer e, noite após noite, tecia fios de uma nova história, abrandando a fúria do
sultão e fazendo-o refletir sobre suas atitudes, contar essas e tantas outras histórias
dos fragmentos felizes sentidos na escola pode nos ajudar também a pensar nas
muitas possibilidades nela existentes. Há vida e alegria na escola!
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3.2 OS SENTIDOS DA ESCOLA DA ESPERANÇA PARA SEUS PRATICANTES
As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes (ASSIS, 2002).
Você está estudando pra ser o quê?
Essa pergunta me foi feita por uma aluna quando estive em sua sala. A professora
pediu que eu me apresentasse. Disse então da minha condição de estudante e
pesquisadora naquele ambiente. Muitas perguntas surgiram, contudo essa referida
anteriormente, deixou-me surpresa.
Não respondi rapidamente à pergunta feita. Como respondê-la? Qual a importância
dessa pergunta para aquela menina? Quando pensei em como começar a
responder, a professora antecipou-se e disse: Ela já é. Ela também é professora. A
gente que é professora também tem que estudar.
O questionamento da menina me fez pensar no que comumente nós, professores e
professoras, dizemos às crianças quando discursamos sobre a escola. Falamos do
futuro e da preparação para ele. Mas, futuro, o que é ele? Quanta preparação é
necessária para ser alguém? Qual a relação da alegria na escola com essa
preparação para o futuro?
Um dos motivos pelos quais a alegria tem sido distanciada da escola, segundo
Snyders (1988), é a relação estabelecida com o futuro. Essa preocupação parece
estar no cerne de todos os objetivos e práticas escolares, pois as atividades são
direcionadas para as crianças como um futuro adulto, desconsiderando as alegrias
do presente, o ser criança no presente. Porém, ainda hoje é possível que um
estudante ao indagar sobre a necessidade de determinado conteúdo ouça como
resposta: Isso será importante no futuro. Assim, a escola é vista como um lugar de
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preparação tanto por quem acha que só ensina, quanto por quem acha que só
aprende.
Como superar essa “visão única de futuro e de preparação” na escola? Essa tarefa é
destinada aos docentes para que desafiem alunos e alunas a reconhecerem a
escola como lugar de invenção, onde é possível ser feliz no presente, numa escola
nem um pouco tediosa. E ainda a proximidade das vivências e experiências das
crianças e jovens torna-se fundamental. Quando isso não acontece, eles vão buscar
fora da escola elementos de um mundo próximo ao seu e, por conseqüência, mais
distante do cotidiano escolar. É, então quando a escola se apresenta como apenas
escola, nada diferente do que já lhes haviam falado e do que experimentaram
(SNYDERS, 2001). Então, às experiências dos discentes e docentes são
incorporados os conceitos que vão sendo ditos e construídos sobre a escola, como
ela se apresenta e o que representa para esses atores e atrizes.
Dussel e Caruso (2003) buscam nas comparações feitas por Comênio sobre a
atuação do docente como sol que aquece os alunos, ou como arquiteto que deve
começar pelo alicerce da disciplina, outras analogias que costumam ser feitas à
escola. Os autores destacam que tais comparações não são inocentes, mas que
refletem as percepções que temos daquilo que se quer apregoar.
Na escola, docentes e discentes também costumam referir-se a ela através de
comparações. Dussel e Caruso (2003) convidam-nos a visitar alguns desses
conceitos e seus significados. Como empresa, a escola é vista através da relação de
investimento e lucros esperados. O diretor é um empreendedor que atua na mesma
lógica de seleção do mercado; como família, à escola é atribuída a tarefa deixada
pelos familiares e daí surge o conflito entre as relações afetivas e a atividade
profissional das professoras como trabalhadoras; como agente de progresso, a
escola é tida como o meio capaz de trazer a solução para as mazelas da sociedade
através do conhecimento que dissipa a escuridão da ignorância; como templo do
saber, agrega-se o princípio religioso e ser docente significa exercer um apostolado
com os atributos e perdas que fazem parte do sacerdócio. Como templo também
são presentes e justificados os rituais das filas, das formas de tratamento, como há
os rituais de saudação e de benzimentos nas igrejas.
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Encontrei também algumas maneiras pelas quais as crianças e as professoras
referiam-se às marcas da existência da escola sentidas por elas e os sentidos que
iam atribuindo àquela unidade de ensino. Apresentar essas falas significa dar
visibilidade às suas práticas influenciadas pela polifonia que ecoa no cotidiano
escolar. Os movimentos dos corpos que habitam a escola são percebidos, então, a
partir dos modos como narram e vivem a escola.
3.2.1 O que falam as crianças e as professoras sobre a escola
O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história (BENJAMIM, 1994, p. 223).
Mas, afinal, o que é a escola para as crianças e as professoras? Qual é o sentido de
sua existência para elas? Quais são as marcas de suas histórias que dão sentidos e
significados às suas práticas?
Foto 17- Fila no horário da entrada
Um lugar onde as crianças aprendem a ler e a escrever e a se educar.(Aluna Patrícia)
A escola pra mim é um lugar onde eu aprendo a ler, onde eu aprendo a fazer conta e que eu aprendo a fazer muitas coisas que eu não sabia.(Aluno Carlos)
Não é um lugar de mensurar conhecimento [...] É lugar de se conhecer, de trocar conhecimento, não de se mensurar conhecimento. (Profª Mônica)
É um lugar que a gente aprende muitas coisas tipo: fazer arte, fazer esporte na educação física... só [...] aqui as professoras são legais, mas às vezes elas brigam com alguns colegas. Às vezes também elas passam deveres legais.(Aluno Raimundo)
Eu penso que escola é isso, é a vivência, é a convivência, é a vivência do cotidiano, da aprendizagem, um pedacinho mais da aprendizagem porque não é só aqui que se aprende, né. (Profª Suzana)
Escola é onde que a gente vai pra aprender ler, escrever, é... saber mais das coisas, das outras coisas assim. (Aluna Mara)
Pra estudar [...] Pra mim aprender a ler e escrever [...] Pra ir na biblioteca pra ler os livros, pra fazer Artes, fazer Educação Física. (Aluno Geraldo)
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Foto 18 – Atividade em sala de aula
Primeiramente é um espaço para o aluno, que o aluno é o alvo, é o objeto, a razão de existir a escola é o aluno, então trabalhamos em prol do aluno. E para que o aluno se sinta bem é necessário que a gente se preocupe, que a gente exerça as atividades com gosto, com prazer pensando no resultado, no bom desenvolvimento da criança.(Prof. Vinícius)
Ah, lugar de aprender e poder ficar sabendo das coisas [...] Porque quando a gente não fica sabendo, quando a gente for fazer alguma coisa não sabe como é que se faz.(Aluna Márcia) A escola é pra eu
brincar, me ensinar e aprender [...] Aprender a escrever, a cultura, a ler.(Aluno José)
Estão aqui aprendendo, é um momento de vivência deles na escola, mais um pouquinho de vivência, do cotidiano deles... mas eu fiquei muito angustiada e aquilo que eu havia falado pra você, eu fiquei desesperançosa com muitas coisas que eu vi. Aí eu lembro do livro de Paulo Freire, Pedagogia da Esperança, e eu quero voltar a ter uma visão de futuro pra essas crianças, de uma coisa melhor pra eles.(Profª Suzana)
Pra mim aprender a ler, escrever melhor [...] Ah, escola é quem tá com dificuldade recupera, aí a professora dá aula pra nóis. (Aluno Bruno)
Ah, pra mim escola é um lugar onde a gente aprende a ler, escrever, fazer conta [...] Lazer também na aula de Educação Física [...] Não, na sala de aula é mais pra estudar mesmo. (Aluna Eunice)
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Foto 19 – “Tira uma foto da gente!’
Eu acho que a escola é um espaço de conflito o tempo todo. Tem conflito de interesse até porque envolve pessoas, mas eu acho que é um espaço também de crescimento coletivo onde os assuntos são postos na mesa, quando são discutidos, quando as pessoas colocam as suas insatisfações, avaliam o que realmente está dando resultado, tira mesmo lições pra estar continuando, ou estar contornando algumas coisas. (Profª Marília)
É quando a pessoa faz dever, quando as cadeiras estão arrumadas, é quando vai pra Educação Física, quando a gente vai pra Artes.(Aluna Helena)
Aí os brinquedos pode ficar, mas só que aprender a ler nóis tem que aprender pra poder passar de série. (Aluno João)
Eu quero aprender a ler pra trabalhar. Comprar uma casa pra minha mãe [...] E ajudar minha família comprar as coisas. (Aluno Miguel)
A escola pra mim, ela tem que ser um espaço o tempo todo do coletivo. Eu não consigo pensar a escola, eu sozinha na minha sala de aula. Não é essa a concepção de escola que eu tenho. A concepção de escola que eu tenho é todas as salas de aula, todo mundo trabalhando junto. O que acontece com uma turma de 1ª série, vai acontecer com uma turma de 4ªsérie, vai chegar na 4ª série. Então isso que vem acontecendo, todo esse trabalho que é feito na escola tem que ser compartilhado, tem que ser vivido com todo mundo, um tem que estar falando o que está acontecendo, tem que estar mediando, tem que estar crescendo junto. Um pensamento de um professor muito diferente de 1ª, 2ª pra de um de 3ª, de 4ª ou o contrário atrapalha quando ele chega na 4ª série.(Profª Marina)
A escola pra mim é pra mim aprender, pra estudar... Pra quando eu crescer eu virar uma pessoa muito boa. (Aluna Lia)
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Foto 20- Aula de Arte- Pintura de cortina para sala (Turma do Amor)
[...] Fazendo tarefa, voltando essa questão mesmo que você tem que estar trabalhando com o aluno da responsabilidade [...] não é pra trabalhar pro futuro não, é pra agora mesmo... que todo mundo tem que ter. Isso eu penso de escola. Na escola todo mundo trabalhando junto, crescendo junto, não adianta eu crescer sozinha porque aí você fica insatisfeita o tempo todo porque não está acontecendo com todo mundo. (Profª Marina)
É um desejo de estudar, de ser alguém, se educar, de ajudar os pais, crescer, ficar forte, ganhar as coisas... (Aluna Laurinha)
Pra mim estudar, pra gente aprender a ler, pra gente passar pra faculdade. (Aluno Gustavo)
Escola é tudo na vida [...] Porque a gente pode crescer mais e pode fazer faculdade e crescer muito mais, trabalhar. Se não a gente fica sem serviço.(Aluna Luciana)
Mas eu acho ainda que é um espaço de muito prazer, de muita satisfação... a gente que tem compromisso acaba vivendo muito em função da escola, não tem como fugir disso. (Profª Marília)
É uma coisa legal que faz a gente aprender [...] Pra mim aprender [...] A ler, a escrever.Escola é futuro. (Aluna Regina)
É um lugar onde a gente aprende coisas diferentes, aprende a respeitar não só as professoras como a mãe em casa, vender coisas. (Aluno Marcelo)
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Foto 21- Grupo de estudos
A escola pra mim representa uma boa parte da minha vida, a escola sempre representou pra mim a alegria, o espaço de desenvolver as coisas mais belas do ser humano. Eu sempre fui muito feliz na escola. Eu sempre tento falar isso pro aluno. Quando eu vou nas reuniões e alguém fala da infância, da professora que puxava a orelha e fazia e acontecia... eu tenho uma história contrária a essa. Eu fui uma criança que tive dificuldades que todas as crianças têm. Meus pais separaram-se eu tinha 12, 13 anos. Mas a escola sempre foi pra mim o espaço da alegria, eu sempre levei os meus amigos da escola para a minha casa. Eu sempre participei dos encontros, passeios, de tudo, meu pai nunca ligou. Nossa, meu pai quando a gente era de 1ª a 4ª, meu pai era operário e ele sempre procurou estudar, fez supletivo. Então, lá em casa sempre teve livros e eu levava pra escola... então a gente sempre tinha uma festa na minha casa, um teatro na minha casa, porque a minha mãe não deixava sair. Então a escola sempre foi pra mim o espaço da alegria... (Profª Emília)
A escola pra mim é assim pra que eu estudo bastante, pra mim é um ensino fundamental. É que tem um ensino muito forte, bastante. Aí a gente em vez de ficar na rua, a gente vem pra escola. É melhor ficar na escola o dia todo do que ficar na rua fazendo bagunça [...] porque na rua você aprende bobeiras, aprende a xingar, esses negócios, aí aprende um monte de palavrão. Aí não é bom ficar na rua, eu não vou pra rua, eu fico dentro de casa, eu vou às vezes com minha mãe. (Aluna Ângela)
Escola é lugar pra gente aprender pra saber se não tá bem[...] a gente aprende a ser unido, cálculo, palavras corretas e exercícios [...] Fazer amizades e sempre andar em grupo. (Aluna Ana)
Escola é a minha casa [...] É igual uma casa, eles são bons com os outros. (Aluna Paula)
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Foto 22- Festa em sala de aula
É o lugar onde que a gente aprende um monte de coisa [...] Aprende escrever [...] Não fazer bagunça na sala [...] Não fazer barulho quando a tia tá fora da sala [...] Que tem que respeitar os outros também. (Aluno Fábio)
O que é uma escola pra mim? Um lugar onde se ensina e se aprende. Um lugar onde a gente aprende a se relacionar com as pessoas. Um lugar onde você aprende a lidar com as diferenças, com os conflitos, porque por mais que você seja aluno você se depara com dificuldades. Eu acho que escola deveria ser um segmento de casa, mas não é o que está acontecendo. A escola está tendo a obrigação da escola e de casa. Eu acho que a escola deveria ser um segmento de casa, uma continuação da educação de casa. Precisaria trabalhar junto. Mas a escola hoje em dia está sendo taxada, infelizmente, se a gente for resumir, ela está sendo taxada como um depósito de crianças. Os pais de hoje em dia não estão preocupados nem com a educação, mas com um lugar para eles deixarem os filhos pra ficarem sossegados. Os pais que trabalham ou os pais que não trabalham, seja o que for, infelizmente. (Profª Joana)
É um lugar bom porque tem a sala de Artes pra nóis desenhar, o professor também de Educação Física que ensina a fazer carrinho e a professora também ela passa um monte de dever legal de folha. (Aluno Rodrigo)
Eu também penso dessa forma. A escola pra mim é um local que eu gosto de estar. O trabalho que eu faço na escola, eu venho pra escola trabalhar com prazer. Em momento algum eu estou aqui porque eu não consegui outro tipo de emprego. Foi opção mesmo e não me passa pela cabeça como muita gente diz: “Ah, meu Deus, eu quero passar no concurso do Tribunal para ganhar mais dinheiro.” Gostaria muito de ganhar mais dinheiro, mas é uma opção mesmo de trabalho profissional, é o que eu gosto de trabalhar. (Profª Marina)
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Relembrar essas vozes reporta-me ao contexto em que fui conhecendo cada
professora e cada criança e do que experimentavam na escola, dos seus medos e
dos seus sonhos. Dessa maneira, para elas, a escola assume múltiplos sentidos que
se referem às suas vivências dentro e fora dela. As marcas das experiências
escolares estão presentes em cada fala. São histórias que falam do presente, do
passado, do futuro e que creditam à escola um papel de grande importância na vida
de docentes e discentes. Essas diferentes maneiras de falar sobre a escola vêm
também impregnadas de conceitos moralizantes e repetitivos.
A escola então se traduz para esses atores e essas atrizes em espaçotempo de
aprender a ler e a escrever, de recuperação da aprendizagem, de locais e horários
diferenciados para estudar e brincar, de cumprimento de tarefas, de disciplina, de
promoção para a série seguinte, de preparação para o futuro e de promoção social,
de proteção contra os perigos da rua, de aprendizagem de valores, de segunda
casa, de sentir prazer e alegria, de esperança, de conflito e de crescimento coletivo.
A escola como lugar de aprender foi a referência mais utilizada pelas crianças. Ler e
escrever foram os aprendizados mais citados. Esse foi um movimento que percebi
tanto nos alunos quanto nas professoras. Os movimentos na escola aconteciam
nessa ênfase do ler e do escrever. As crianças das turmas de primeiras e segundas
séries foram as que mais se referiram a esse aspecto. Era comum ouvir das
professoras que estavam felizes porque uma criança aprendera a ler e, como
estávamos no segundo semestre, a preocupação aumentava acerca daqueles que
ainda não haviam aprendido. Tanto as professoras quanto as crianças viam na
aquisição da leitura e da escrita e no [...] miúdo e libertador trabalho da sala de aula
(GENTILI, 2003, p. 116) possibilidades de mudança nas histórias por eles vividas
até então.
As dificuldades enfrentadas pelas crianças preocupavam as professoras que se
esforçavam para que por meio de sua ação essa situação pudesse ser revertida.
Isso levava também a momentos de incerteza e apreensão quando percebiam sua
limitação, principalmente no que concerne à situação sócio-econômica das crianças.
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As necessidades de atendimento à saúde das crianças e a precariedade do sistema
público de saúde levou uma professora a pensar também na escola como um centro
integrado de especialidades. Ela viveu durante o ano a tarefa de encontrar
atendimento para um aluno que necessitava de uma cirurgia.
As professoras buscavam muitas maneiras para que as crianças aprendessem:
aulas de informática, jogos, mudança de atividades, palavras de incentivo e aulas de
recuperação. Nessas ações elas pareciam querer demonstrar que acreditavam que
os alunos e as alunas iriam conseguir aprender o que lhes era ensinado, contudo,
algumas vezes lançavam mão de um discurso apoiado em frases de efeito e que
revelavam incertezas como a de um cartaz na sala de apoio pedagógico.
Foto 23 – Cartaz na sala de apoio pedagógico
O medo de ficar reprovado, de não aprender, de ter que freqüentar as aulas de
reforço e ser alvo das brincadeiras de colegas, também estava presente nas falas
das crianças. Um dia, estava com um grupo de alunos numa sala usada para aulas
de recuperação para escrevermos o texto de uma história para o teatro de bonecos
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e um outro grupo voltava da aula de Educação Física. Ao virem os colegas ali,
naquela sala, gritaram: Ih! Tá de reforço! Vaiaram o grupo que ficou em silêncio e
nenhum deles disse que estava ali apenas para fazermos o texto. Estranhei essa
reação, mas depois percebi que aquele espaço era comumente usado para reforço
escolar e estar ali significava estar de recuperação, quer dizer, não estar rendendo o
esperado em relação às atividades em sala de aula.
A escola como aquela que prepara para o futuro reflete o desejo de viver numa
sociedade na qual possam usufruir também dos seus bens materiais. As crianças
convivem com as dificuldades financeiras e querem ajudar a seus pais a construir
suas casas, comprar alimentos, brinquedos... e querem ser alguém na vida, como se
já não fossem. Porém, quantas vezes já ouvimos e repetimos: “O que você vai ser
quando crescer?”
Um dia, estive numa sala de aula e, enquanto ajudava a professora a verificar as
atividades realizadas pelas crianças, percebi que uma aluna foi até a porta para
conversar com uma senhora. Depois ela retornou ao seu lugar e, abaixando a
cabeça, começou a chorar. Saí com ela da sala e perguntei o motivo do choro. “É
porque a minha mãe disse que não pode fazer o meu aniversário porque ela não
tem dinheiro”. Tentei consolá-la, mas o choro da menina parecia me dizer de uma
história de privações para além de uma festa de aniversário.
Além das alegrias e das dificuldades, as professoras apontam a escola como lugar
de conflito e de crescimento. Percebem na variedade de pontos de vista a
oportunidade de crescimento e de possibilidades que resultem em sua melhor
atuação e no aprendizado dos alunos e das alunas. Recordam a escola da sua
infância, as histórias que viveram e buscam proporcionar o mesmo para as crianças.
É por isso que podemos perceber que não entramos na escola e deixamos nossas
vidas do lado de fora; e que também essas histórias de dentro e de fora da escola
não assumem uma posição dicotômica, mas ao contrário, se entrelaçam.
Pertencemos a inúmeras redes (ALVES, 2003, p. 86) e com elas vamos nos fazendo
docentes e discentes. Adentramos na escola todos os dias repletos de emoções, de
histórias, de esperanças, de frustrações, de dúvidas... há uma intensidade de vozes
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e de emoções ecoando dentro da escola. São os múltiplos sentidos atribuídos por
seus praticantes que contam e vivem as histórias da escola dia-a-dia e fazem dela
um [...] espaço de relações extremamente ricas, de instigantes desafios, de buscas,
de aquisições (MOREIRA, 2003, p. 75).
Daí a importância da prática educativa de dar visibilidade a esses sujeitos e de
contribuir para [...] desencantarmos do desencanto, livrarmos da resignação,
recuperarmos ou reconstruirmos nossa confiança na possibilidade de uma
sociedade baseada em critérios de igualdade e justiça (GENTILI, 2003, p. 42, 43).
3.2.2 Estranhamentos: dos entrelaçamentos entre conflitos e esperanças
Esperança versus Desencanto, eis o duelo deste início de século XXI [...] Acreditamos na libertação que se intercomunica, que reconhece as estruturas onde está inserida para superá-las, que se imbui da mística transformadora de um projeto militante e amoroso de resistência criativa, em todos os espaços e das mais variadas formas possíveis, inclusive nos ambientes escolares (GENTILI; ALENCAR, 2003, p. 20,21).
Diante dos múltiplos sentidos atribuídos à escola pelas marcas vividas e sentidas
por seus atores e suas atrizes, recorro novamente à pergunta feita por Veiga-Neto
(2000): [...] as crianças [e as professoras] ainda devem ir à escola?
Cunha (2003, p. 447) fala do surgimento da escola no século XVII como agência de
apoio à família e, nas palavras de Comênio, traduz o pensamento da época através
do qual as famílias necessitavam da escola para a educação dos filhos por falta de
tempo e incompetência.
Com efeito, se um pai de família não tem disponibilidade para fazer tudo o que a administração dos negócios domésticos exige, mas se serve de vários empregados, porque não há de fazer o mesmo no nosso caso? Na verdade, quando ele tem necessidade de farinha, dirige-se ao moleiro; quando tem necessidade de carne, ao carniceiro; quando tem necessidade de bebidas, ao taberneiro; quando tem necessidade de um fato, ao alfaiate; [...] porque não havemos de ter escolas para a juventude?[...] raramente os pais estão preparados para educar bem os filhos, ou raramente dispõem de tempo para isso, daí se segue como conseqüência que deve haver pessoas que façam apenas isso como profissão e desse modo sirvam a toda a comunidade (COMÊNIO, 1985, p.135, 136, apud CUNHA, 2003, p. 448).
68
Nas conversas, as professoras apontavam alguns conflitos vividos na escola e um
deles é o existente com a família. Elas diziam da ausência de participação da família
no acompanhamento das atividades escolares e referiam-se a esse fator como
negativo para a aprendizagem das crianças.Não, não tenho, [participação da família] é por isso que eles precisam de uma pessoa dentro da sala que faça esse papel pra eles de estar cobrando deles, de colocar pra eles que o futuro deles é estar estudando, não é o futuro que a mãe está querendo. É o futuro deles daqui dentro da sala de aula mesmo. E eles mesmos, garantindo isso aí pra eles. E eu acho que falta em casa mesmo é essa cobrança. E eles não têm isso. E eu cobro demais deles, e eles não ficam chateados, não ficam com raiva. É tanto que eles pedem nas outras aulas pra que eu fique. Se um estiver bagunçando, eles acham que eu que tenho que estar lá resolvendo o problema. (Profª Lúcia) Nessa parceria com a escola eu não tenho essa colaboração. A gente procura estar chamando, mas eles alegam que não têm tempo para a escola. Mas aí a gente fala “é, mas no dia da matrícula conseguiu vir matricular a criança, de uma forma ou de outra alguém apareceu”. (Profª Juliana)
Triste é, por exemplo, a família que simplesmente abandona a criança, deixa para os professores, para os educadores tomarem conta. (Prof. Vinícius)
Agora, existem as famílias que são carentes, mas não são extremamente carentes, mas se acomodam deixando a responsabilidade pra escola. Sabe, a gente tem deparado muito com isso aqui. [...] Oh, aqui a gente tem também o caso de crianças na sala da Cristina de que você não pode esperar tarefa de casa, retorno nenhum. Porque não volta nem tarefa, nem material, nem mochila, muito menos o menino. O problema que tem na sala da Cristina é esse: é a falta e o retorno de casa. O investimento, o crescimento que eles têm é o que a gente investe aqui na escola, porque não tem retorno nenhum de casa. De 32 alunos você tira 10 que vem retorno de casa. O resto, não. É justificativa: pai e mãe, traficantes, não dá atenção pra filho; o pai foi assassinado, a mãe tá meio perturbada, é criado pela avó, a avó não sabe ler. Outras justificativas: os pais trabalham o dia inteiro, aí cuidam dos irmãos mais novos, então não tem como fazer tarefa. Outra aula é porque esqueceu. Outra aula “tia, você não me deu”. Aí você abre o caderno tá lá dentro. Então é sempre assim. [...] Mas a escola hoje em dia está sendo taxada, infelizmente, se a gente for resumir, ela está sendo taxada como um depósito de crianças. Os pais de hoje em dia não estão preocupados nem com a educação, mas com um lugar para eles deixarem os filhos pra ficarem sossegados. Os pais que trabalham ou os pais que não trabalham, seja o que for, infelizmente. (Profª Manuela)
As professoras sentem-se sós na escola e ressentem-se em relação à falta de apoio
das famílias. Contudo, essa família idealizada também já não existe. São muitas as
histórias de crianças que vivem com avós, que os pais foram assassinados, ou que,
simplesmente, foram abandonadas. Há famílias que não têm a presença do pai ou
da mãe e que os irmãos maiores cuidam dos menores. Há famílias também que têm
a presença do pai e da mãe, mas estes trabalham durante todo o dia e não têm
69
tempo para ir à escola. Como há também as famílias que estão sempre presentes
na escola. E a escola, a cada dia, vê-se diante desses dilemas (CUNHA, 2003).
Ainda, as unidades de ensino recebem cada vez mais diferentes grupos de
estudantes, os quais Moreira (2005) chama de estranhos. Esses grupos apresentam
características cada vez mais diferentes, seja em relação à aprendizagem, à
disciplina, a questões sociais, econômicas e culturais. Não se adequam aos
esquemas que a escola possui e exigem do profissional docente o empenho no
sentido de conhecê-los e de ensiná-los. O estranhamento diante desses estranhos
que entram na escola sem pedir licença (MOREIRA, 2005, p.31) provoca inúmeras
reações que vão desde o espanto à sua negação.
Os estranhos que habitam a escola nos surpreendem e nos levam a abdicar das
nossas certezas e, a cada dia, precisamos de novas forças para lidar com situações
tão adversas. Ouvindo o relato de uma professora, pude perceber o seu
estranhamento diante de uma situação que lhe causou surpresa e espanto. Pedi que
ela relatasse uma de suas aulas com um grupo de quatro a cinco alunos de 7 anos
de idade que necessitavam de uma atenção individualizada.
O negócio é o seguinte: como eu estou com essas crianças e eu percebi que por mais que a
gente fizesse cartazes com figurinhas, com a turma da Mônica, Sítio do Picapau, palavras
associadas ao alfabeto... não estavam surtindo efeito. Aí eu resolvi bater um papo com eles,
e fiquei descobrindo cada coisa que só o Senhor! Lá do morro. Nosso Deus! E comecei a
lançar do nada letras do alfabeto, tanto vogal quanto consoante e pedi que eles falassem
pra mim. Aí eu dei a primeira letra: C. E falei:
_Gente, vocês quando vão assim na mercearia, supermercado, lá em cima [no morro] se
tem eu não sei, venda, não sei o nome que vocês dão, mas não tem nada escrito, vocês já
viram alguma coisa que começa com a letra C?
Ah, aí uma criança virou e falou assim:
_Oh, tia, eu não vi escrito ainda não, mas meu pai fala muito.
Eu falei:
_O quê?
_ Cocaína!
Eu falei:
_Senhor! Misericórdia!
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Eu falei:
_É!?
Aí ele falou:
_É, tia, ó CO, CO, é com C; C,O.
Eu falei:
_Ah, tá...
Aí rapidamente eu mudei de letra. Eu falei:
_Vem cá! E com a letra M?
Aí o outro:
_Maconha! Isso aí eu vejo muito escrito na, como é que é? Nas faixas, nas portas de uns
caras lá em cima, tia, onde a polícia bate direto.
Aí fui falando várias, falei uma outra, aí depois falei outra: P.
Aí um menino lá:
_Piranha!
Aí eu falei:
_Vem cá, ah, tá, aquele peixe?
_Não, tia, é piranha mesmo, mulher safada, igual a mãe do fulano.
Citou o nome de um colega da sala que a mãe é taxada como piranha lá em cima do morro.
Então, são assim: P, falaram “piranha”. Aí depois falaram “pó”... Qual foi a outra coisa que
falaram?...No C, eles falaram “cocaína”, falaram “crack”, falaram, no Z, falaram “zona”.
Então, assim, tudo dentro da realidade deles. E depois que eu comecei a trabalhar a
realidade deles, eles começaram a associar a letra ao objeto [...] Trabalhei porque a partir
dessas palavras que é a realidade deles é que eles conseguiram. Aí depois associaram o M do macaco, o M da mesa, mas primeiro foi o M da maconha. Abriu com isso. Aí eles foram
me contar como é que era o morro.
[...] Eu fui tentar descobrir por que a auto-estima de um deles era tão baixa. Fazia a coisa
certa aí eu dava o “parabéns”...
_Não precisa dar o “parabéns” que eu sei que eu sou um burro.
Eu falei:
_Gente, tá acontecendo alguma coisa.
Aí eu fiquei sabendo: essas crianças, eles estavam assim, mas era porque... um eu
perguntei:
_Qual é o seu maior sonho?
Aí ele falou:
_Crescer, comprar um revólver pra matar o meu pai.
Aí eu falei:
_Por quê?
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_Porque meu pai, tia, espanca minha mãe! Meu pai é maconheiro! E meu pai toda vez que
espanca a minha mãe fica olhando pra mim e falando pra mim que me odeia.
_Mas como?
_Tia, ele olha pra mim assim e fala “eu te odeio! Você é uma desgraça, eu te odeio!”. Então
eu quero matar ele pra ele não fazer minha mãe chorar mais.
Tem um outro lá que fala que o maior medo dele é as pipocas. Até então eu não entendia o
que era pipoca, né? Eu falei:
_Pipoca? Mas por que pipoca? Você não gosta de pipoca?
Aí um riu e falou bem assim:
_Eh, a tia tá nadando!
Aí eu falei:
_Me explica então.
_Pipoca é os tiro, tia! Porque no dia de tiro lá eu tenho que dormir debaixo da minha cama,
debaixo da cama da minha mãe. Porque outro dia o tiro agarrou lá na porta da minha casa e
eu tenho muito medo. E toda vez que a polícia sobe, todo mundo tem que entrar correndo
dentro de casa e trancar as portas, porque as polícia sobe com cada... (e falava o nome das
armas, fuzil, falava mesmo!)
Então, assim, eu percebi, por alguns momentos eu vi que eu era uma criança perto deles e
eles eram os adultos, porque eles sabem de cada coisa, de cada coisa.
Um falou assim pra mim:
_Tia, a mãe do fulano vai ganhar neném. Ela vai ganhar eu não sei se é cesárea ou se é
parto normal.
Eu falei:
_O que você sabe de cesárea e de parto normal?
_Tia, parto normal é quando não precisa abrir a barriga e cesárea precisa abrir a barriga.
Porque você sabe, né, tia, eles transam.
Eu falei:
Você sabe o que é isso?
Ele me explicou direitinho o que que era.
E falou:
_Oh, o pai de fulano pega a mãe do nosso colega toda noite.
Então assim, eu percebi que eles são assim, literalmente adultos.
Nessa conversa com os alunos, a professora espanta-se e interroga-se sobre os
motivos pelos quais crianças tão pequenas já convivem com tantas adversidades.
Seria engraçado se isto fosse piada, mas é a verdade como ela é apresentada a
72
cada dia nas escolas com diferentes roteiros e protagonistas, mas com o mesmo
enredo de privação, de agressão...
No entanto, a professora procura aproximar-se desses meninos, conhecer sobre
suas vidas, entender porque eles não aprendem como os outros aprendem, abre
mão do que sempre utilizou e busca outras maneiras para ensinar, ainda que com
palavras que agridem seus ouvidos, seus outros sentidos e sentimentos e que
mostram uma realidade dura e sofrida demais pra seus alunos que só têm 7 anos de
idade12. Além de procurar entender e ensinar, em suas ações, ela demonstra aceitar
cada aluno como legítimo outro (MATURANA, 2001a), com suas especificidades e
singularidades. E quando ensina, as palavras são como sementes que caem em um
chão inóspito. Ela faz o que Gentili e Alencar (2003, p. 23) chamam de semeando,
em meio ao horror, a primavera. E, como para plantar e colher estamos sujeitos às
intempéries da natureza, nesse caso, só o tempo dirá. As incertezas ainda serão
nossas companheiras de caminho e,
Enquanto os desafios se acumulam, a escola, a despeito de tudo, ainda se destaca como espaço insubstituível e indispensável para nutrir nossos estranhos de alimentos intelectuais e culturais que permitam sustentá-los nas lutas pelos direitos que historicamente lhes vêm sendo negados. Daí a importância de se continuar a ponderar sobre os apuros e as incertezas (inevitáveis) que perseguem os professores que procuram conhecer os estranhos, aprender com os estranhos e aprender a ensinar aos estranhos (MOREIRA, 2005, p. 41).
Nesse momento de escrita, um silêncio profundo me invade. Busco em minhas
memórias esses estranhos que habitaram as salas de aula nas quais lecionei e os
estranhos com os quais estudei. Por que não consigo lembrar dos seus nomes e das
suas histórias? Onde estarão eles? Penso também nos estranhos que ainda
encontrarei. Como eles serão? Quais os desafios e incertezas a serem enfrentados?
12 Nesse relato também me surpreendo e interrogo-me acerca da idealização de criança “ingênua e livre de todo mal” na qual muitas vezes acreditamos. Nossos alunos e alunas participam de mundos dos quais desconhecemos e/ou ignoramos.
73
4 DAS HISTÓRIAS CONTADAS E VIVIDAS NOS ESPAÇOSTEMPOS
DE ALEGRIA NA/DA ESCOLA
Não sei... se a vida é curta ou longa demais pra nós,Mas sei que nada do que vivemos tem sentido,Se não tocamos o coração das pessoas (Cora Coralina).
Todos nós somos contadores e contadoras de histórias. Benjamim (1994, p. 207) diz
que as histórias são feitas de existência vivida. Nesse sentido, para dar visibilidade
aos fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12), trago à cena as histórias dos
espaçostempos narrados pelos alunos, alunas e professores e professoras como
felizes na escola. As amizades, a atribuição de nomes às turmas e as aulas de
Educação Física foram algumas ações indicadas como facilitadoras da alegria, tanto
pelas crianças quanto pelas professoras. Apresento as falas desses docentes e
discentes para essas ações e também alguns desses momentos vividos com
eles/as.
4.1 NOS NOMES DAS TURMAS (AS TURMAS DE PROJETO13 E O PROGRAMA VITÓRIA DA PAZ14)
13A criação das turmas de projeto foi uma tentativa da escola de oferecer alternativas para os alunos e alunas que estavam aquém do desenvolvimento de suas turmas de origem. Uma fala recorrente foi: “Ou algo era feito para recuperar esses alunos ou eles permaneceriam nas turmas regulares como sempre estiveram”. Essa ação gerou um impasse com posicionamentos favoráveis e desfavoráveis. Conversei com as professoras dessas turmas e elas disseram dos problemas que encontraram para ensinar a esses grupos, mas também disseram da alegria que as crianças expressavam à medida que superavam as dificuldades e aprendiam. Penso que a mim não compete o julgamento quanto à criação dessas turmas, uma vez que não participei dessas discussões e por mais inserida que estive nesse cotidiano, não faço parte dele como professora regente. Por isso, ao me referir a esses alunos e alunas e às suas professoras, tratá-los-ei como aos demais que estão nas turmas correspondentes às suas idades e séries. 14 O Programa Vitória da Paz, da Prefeitura de Vitória, é uma ação proposta para a administração de 2005-2008. Uma cartilha foi elaborada sobre o programa, e na carta à cidade, o prefeito assim define o Programa: “[...] é a resposta democrática, participativa e responsável que a Prefeitura Municipal desenvolveu para atuar de forma efetiva no combate à criminalidade e à violência, nos limites de suas atribuições constitucionais. É um conjunto estruturado de políticas públicas que se desdobra em programas de inclusão social, integração e mobilização comunitária, fiscalização e monitoramento, educação e desenvolvimento urbano. Um conjunto que tem como eixos a defesa da vida e o respeito à cidadania”. No início do ano de 2005, as escolas foram convidadas pela Secretaria de Educação para o lançamento do Programa, onde poderiam levar apresentações referentes ao tema e também adereços (pompons, bolas de soprar, bandeirolas... nas cores: branco, amarelo claro, azul claro e verde claro) sugeridos através de ofício enviado às unidades de ensino.
74
A escola e a sala de aula são espaçostempos de
invenção no qual as professoras e seus alunos e
alunas recriam e dão outros sentidos ao que lhes
chega a cada dia. Dessa maneira, Alves e Garcia
(2000, p. 11) dizem que as iniciativas de se pensar a
escola de fora dela ignoram os movimentos nela
existentes que revelam o engajamento dos seus atores
por uma escola e por um mundo melhor.
Não há como negar a inventividade de quem habita e
faz a história das escolas! Na escola da Esperança
percebi isso logo no primeiro dia. Ao chamar as turmas
para se encaminharem às salas de aula, o
coordenador não utilizava a nomenclatura
convencional: 1ª A, B..., 2ª A, B... Ele chamava as
turmas por nomes! Eram nomes distintos, pareciam
estar dentro do contexto de cada turma. Busquei então
saber o motivo desses nomes e a professora Mônica
foi indicada como aquela que dera a idéia dessa ação.
Ouçamos o que ela tem a dizer:[...] a gente tinha um grande impasse: essas turmas de projeto, e que a gente não podia colocar esses meninos mais pra baixo do que eles já estavam, com a auto-estima tão baixa como eles já estavam. “Ah, você não é nem 1ª, nem 2ª, nem 3ª, nem 4ª..”. “Eu sou o quê dentro dessa escola?” Então Denise [professora] sugeriu até, na época, que a gente fizesse um nome pra essa turma. Só que aí eu estava pensando, aí foi idéia minha, porque se você também tira só essa turma que tem nome está discriminando do mesmo jeito. Tem que colocar nome pra todo mundo, tirar esse negócio de A e B, que A é forte e B é fraco, que tem essas coisas que a gente carrega desde a nossa escolaridade. Aí, conversando aqui no grupo todo mundo aceitou a minha idéia de dar nome à turma [...] Porque eu acho que fica mais fácil ir transitando a criança em todas essas etapas pra ela passar de uma turma para outra. E todo ano esse nome vai trocar, porque quem escolheu o nome da turma foram as crianças...
Foto 24-Desenho da turma União
Foto 25 – Desenho da turma da Alegria
Foto 26 – Desenho da turma 100% Paz
Foto 27 – Desenho da turma da Leitura
Foto 28 – Desenho da turma da Amizade
75
A criação das turmas de projeto nesse ano começou a
mobilizar as professoras em relação ao tratamento que
seria dado a elas e às demais turmas. Os nomes das
turmas surgiram como possibilidades de minimizar os
efeitos dessa mudança, mas também carregam a
insatisfação das professoras que estão sempre
estreando no enfrentamento de novos perigos, para os
quais nunca foram preparados[as] (LINHARES, 2002 a,
p.48). Por isso, buscaram outras maneiras além da
seriação e da classificação de “fortes e fracos” para
nominar as turmas.
No começo, a gente estava pensando em deixar livre [a escolha dos nomes]. Cada um que escolhesse o seu. Aí, depois nós resolvemos direcionar para um tema que foi a Vitória da Paz. Foi no início do ano que surgiu essa idéia da paz, a Prefeitura de Vitória também estava trabalhando. Nós decidimos tirar o nome daí: amizade, união...[...] Também tem a ver com paz se você for lá pesquisar porque eles escolheram esse nome. Foi todo um trabalho, uma conversa, pra decidir o nome, falando que não ia ter mais série, que ia ter nome de turma. Então teve um trabalho nesse sentido.[...]Nós apresentamos o nome da turma. Nós apresentamos pra escola pro turno da manhã, pros pais, pros convidados. Aí teve teatrinho, teve música, dança... para apresentar o nome. [...] A turma da Alice apresentou um teatrinho, a minha turma foi mais pra música, a turma da Cecília apresentou uma poesia e também música. Então cada turma decidiu como fazer.
A escolha dos nomes, então, envolveu todas as
crianças. Fizeram uso de um programa lançado pela
Prefeitura Municipal, e o direcionaram para o que
pretendiam. Daí que por mais que idéias sejam
elaboradas para a escola a partir de quem está fora
dela, é lá, no espaçotempo da invenção que os
praticantes do cotidiano alteram e fazem diferentes
usos do que lhes foi imposto. E o que antes era uma
preocupação e mais uma determinação se tornou uma
Foto 29 – Desenho da turma Arco-Íris
Foto 30 – Desenho da turma Palavrinhas Mágicas
Foto 31 – Desenho da turma Liberdade e Paz
Foto 32 – Desenho da turma Amigos da Natureza
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festa da qual participou toda a comunidade escolar.
A professora diz como foi a escolha do nome da sua
turma e faz uma avaliação desse processo acreditando
na continuidade dele.
Quando a gente começou a conversar sobre paz, nós falamos primeiro o que é não ter paz, depois o que é ter paz. Então, vem muito da realidade deles. Porque pra eles não ter paz é violência. E a violência geralmente é mais doméstica, mais assim da comunidade que é o tiroteio, o tráfico, aquela coisa toda. Então bater, apanhar... Porque eles presenciam muito isso. E chegou-se à conclusão que só há paz onde tem vida. Onde tem morte, não tem paz. [...] Olha só, que engraçado, esse ano não tem comparação de uma série para outra como tinha no ano passado. Por que no ano passado era 3a A, 3a B e 3a C porque eram terceiras séries. E eles falavam: “vocês são 3a C. Estão lá porque não sabem”.Eles falavam isso. Isso é uma cultura que eles têm de que a letra determina como se a gente separasse as crianças dessa forma, não é. A gente pega a lista e vai tentando misturar a turma, sem nem conhecer os alunos. E esse ano não tem isso.
Eu lembro do meu tempo de escola...Do meu tempo de escola, a turma C que eu já fiquei nela (risos). Era a pior... A A e a B eram melhores. A C e D eram piores. Ou seja por conhecimento ou por comportamento não eram boas, nem bem vistas.
Esse ano não tem essa comparação. Algo pejorativo... eu acho um lado positivo e também a turma de projeto não está se sentindo tão discriminada assim.
Foto 33 – Desenho da turma Vida
Foto 34 – Desenho da turma do Balão Mágico
Foto 35 – Desenho da turma do Amor
[...] É muito difícil ainda... Já tem tanto tempo que tem seriação que acho que não é no primeiro ano que a gente vai conseguir. Eu espero que continuemos tentando. Porque eu acho muito importante.
As táticas (CERTEAU, 2003) encontradas pelas professoras para cumprir uma
atividade do Programa e, também, para ressignificar suas práticas são a prova do
que ocorre nas escolas enquanto há ainda quem pense em ações de fora dela.
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Os nomes das turmas revelam os processos que ocorreram em cada sala de aula a
fim de que fossem escolhidos. Em alguns casos, além da discussão os nomes
surgiram também em função de alguma música ou texto apresentados pela
professora. Ainda, uma bandeira foi criada com um desenho de cada turma que
representava o nome escolhido. A professora de Arte foi encarregada de unir cada
pedaço e o fez alinhavando cada tecido junto ao sonho de cada turma, de cada
criança e de cada professora, para a construção de uma escola na qual as pessoas
sejam reconhecidas por seus nomes, pelo que sabem e pelo que fazem e não pelo
que não conseguem fazer.
Foto 36 – Bandeira com os desenhos das turmas
Os nomes escolhidos das turmas foram:
1as séries:
Turma do Balão Mágico
Turminha do Amor
Palavrinhas Mágicas
2as séries:
Liberdade e Paz (Projeto 1)
Turma da Amizade
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Turma 100% Paz
3as séries:
Turma da Alegria (Projeto 2)
Turma Amigos da Natureza
Turma Vida
Turma da Leitura (Projeto 3)
4as séries:
Turma Arco-Íris
Turma União
4.2 NAS AMIZADES
Dulci, vem pro nosso piquenique na hora do recreio!
Recebi esse convite de crianças da turma
União. Durante o recreio, os grupos reuniam-se
conforme suas afinidades. Nesses momentos
também se encontravam com colegas de
outras turmas. Apesar da merenda da escola,
alguns levavam seu próprio lanche e o dividiam
em piqueniques que faziam no pátio da escola.
Foto 37- Piquenique no recreio
Formavam grupos menores, e grupos maiores. Conversavam sobre muitos
assuntos: desentendimentos com colegas, atividades da sala, questões de uma
prova, programas da televisão, músicas... Nessas e em outras conversas,
enfatizavam a importância da amizade nas relações da escola e diziam dos colegas
com os quais mais gostavam de estar.
Nas salas de aula era possível perceber também os afetos que eram trocados e
correspondidos. Um dia estava na turma 100% Paz e percebi que um bilhetinho ia e
voltava nas mãos de duas meninas. A professora corrigia os exercícios no quadro e
79
elas disfarçavam para que não fossem vistas por ela ou por outros colegas. Essa
situação me faz lembrar que por maior que seja o rigor que tentemos imprimir em
nossas escolas e em nossas salas de aula, nossos alunos e alunas encontrarão
maneiras de burlar a ordem estabelecida. As meninas pareciam conversar através
desse bilhete... risos e, de repente, algo mais ia sendo escrito e desenhado. A minha
curiosidade aumentava... quis fotografar, mas isso iria delatá-las. Até que, ao final da
aula, pedi para que pudesse ver o que tanto escreviam e desenhavam. E numa folha
de papel, recheada com flor, coração e palavras carinhosas, as meninas firmavam a
sua amizade.
Foto 38 - Bilhete
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São muitas as maneiras de demonstrar carinho e cuidado para com os colegas. Os
bilhetes, os piqueniques, o envolvimento nas brincadeiras... e também a ajuda na
explicação de alguma atividade. Quem já aprendeu e sabe fazer sozinho executa
também a tarefa de ensinar e os dois juntos aprendem. Aprendem a linguagem das
letras, dos números, mas também a linguagem da amizade.
Foto 39 – A colaboração entre colegas
Os afetos estão presentes também no cotidiano escolar e foi buscando compreender
um pouco mais a presença deles na escola que fui até a turma da amizade. A
professora assim fala sobre essa turma.
A turma da amizade é realmente a turma da amizade. É um trabalho que a gente já havia feito desde o ano passado, que a gente busca fazer o tempo inteiro que cada um pense sobre si, pense sobre o outro, que ele ajude o outro, aqui na sala. A palavra cola não existe, a gente está sempre ajudando. Não sei se você percebeu. O Rafael que está com dificuldade, os outros vêm e é uma coisa até natural, eles vêm e ajudam o outro. E foi uma coisa assim que o ano passado acontecia, começando, não só entre os alunos, mas entre mim e a Gabriela que é professora de Educação Física, todas as coordenadoras que trabalhavam aqui, todas as estagiárias que passaram por aqui, porque passaram muitas estagiárias aqui no ano passado, principalmente. Então, elas vinham e ficavam integradas aqui. Só que eu tive um problema de percurso no ano passado. Eu fiquei 90 dias de licença médica, numa turma de 1ª série onde uma grande parte deles eram considerados pré-silábicos, segundo a classificação da escola. Então quando chegou em agosto eu fiquei muito doente e o médico resolveu me tirar da sala de aula. Só que eu não fiquei fora da sala de aula porque eu vinha na escola 2 ou 3 vezes por semana... Eu não podia ficar na sala de aula, mas veio uma menina que ficou aqui, que veio do Centro de Educação Infantil, professora Rose, e ela contou com a minha amizade e a minha colaboração. Então eu trazia os planos e ela trabalhava o tempo inteiro com eles, da mesma maneira. Quando chegamos em dezembro, os alunos estavam alfabetizados. E para mim, eu tenho um afeto, um sentimento muito grande por eles. Não assim essa coisa piegas, eu gosto deles, quando eu afago, quando eu abraço, quando eu brigo, eu gosto. Eu gosto de estar aqui. É uma coisa que eu faço que eu gosto.
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A professora passa a dizer o quanto o nome e a ação da turma baseada na amizade
conseguiu transformar um aluno considerado difícil.[...] Tinha uma situação assim, uma questão de comprometimento muito grande da questão da disciplina, da questão da aprendizagem. Foram os próprios alunos que transformaram Roberto naquilo que Roberto é hoje. Se ele consegue ser amigo, de vez em quando ele dá porrada, mas ele consegue ser amigo, de ficar sentado o tempo inteiro, antes ele não conseguia ficar. Ele, no Centro de Educação Infantil, corria, mordia a professora, fazia e acontecia. É um trabalho dos alunos, um trabalho das crianças, um trabalho da Gabriela, um trabalho meu. Roberto hoje sabe ler, escrever, fica na sala de aula como qualquer um, como Rafael, Cassiano... E as minhas conversas quando não são assim... porque tem as conversas públicas e particulares. As públicas são quando é pra falar das coisas boas. Quando é pra chamar a atenção são as particulares. “Vamos pra um particular comigo que eu quero ter uma conversa com você”. E depois a gente chama os outros pra perguntar “O que vocês pensam disso?”...Uma das palavras que a gente aprendeu aqui na sala é compartilhar, a gente compartilha até os sofrimentos. Porque quando eu pergunto: “Gente, vocês sabem de fulano de tal?” Eles dizem assim: “Professora, eu vou lá!” [...] Nós fizemos aqui uma votação e apareceram nomes e eles chegaram ao consenso da palavra amizade... É um nome que eles escolheram e que reflete muito o que eles vivem aqui.
Eu me senti muito acolhida por essa turma. Num dos dias em que estive com eles,
um aluno distribuía as atividades e chegando perto de mim perguntou se era pra me
entregar também. Disse que sim. Logo Rafael percebeu que eu estava sem material.
Um lápis e uma borracha foram logo compartilhados. Como estava sem caderno,
uma folha também foi providenciada. Uma das atividades era a de produção de texto
a partir de desenho. Cassiano veio com uma caixa de lápis de cor e disse: “Pode
usar, eu vou sentar lá na frente, depois você leva pra mim”.
Com as histórias prontas, as crianças foram
apresentando suas produções. Sobe na cadeira!
Era o que a professora pedia aos que se
prontificavam a ler os seus textos. Naquele
momento, a história de cada aluno e de cada
aluna era o que de mais importante acontecia na
sala. Foto 40 – “Sobe na cadeira!”
Muitos deles invisíveis fora da escola, numa sociedade excludente, eram visíveis
naquele espaçotempo de criação, de surpresa e de afetividade. Eu também criei a
minha história e ela foi ouvida por eles (não subi na cadeira!). E, assim, fui
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aprendendo com essa professora e seus alunos e suas alunas que muito me
ensinaram sobre amizade, aceitação e afetos.
4.3 NOS BRINQUEDOS, JOGOS E AFETOS DAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA
A escola é um lugar bom porque tem a sala de Arte pra nóis desenhar, o professor também de Educação Física que ensina a fazer carrinho e a professora também, ela passa um monte de dever legal de folha (Lourenço, 7 anos).
Como iniciei a pesquisa no segundo semestre, muitas ações já haviam sido iniciadas
e as conheci já em execução. Notei que na quadra, durante as aulas de Educação
Física, havia a produção de brinquedos e logo me interessei por saber o que
construíam. Vi crianças que confeccionavam brinquedos de sucata e se divertiam
com isso. Não havia também separação entre brinquedos de meninos e de meninas.
À medida que ficavam prontos, tinham seus usos explorados individualmente ou em
grupos. Os brinquedos de sucata também davam outros sentidos aos brinquedos
industrializados que eram levados para a aula. Até a boneca Barbie ganhou um
carrinho de caixa de papelão!
Foto 41 – Produção de carrinho
Algo que me chamou muito a atenção foi também a amizade entre o professor e a
professora. Eles planejavam as suas aulas sempre juntos, dividiam a mesma
quadra, eram amigos. Um se importava muito com o outro. Ela, funcionária efetiva,
com muitos anos de experiência. Ele, recém-formado, funcionário contratado, mas já
com alguma experiência. Eram a teoria e a prática, como eles mesmos se definiam.
83
Ambos com perspectivas diferentes de atuação que foram, através do diálogo,
afinadas para que pudessem trabalhar juntos e, com as crianças, construir a
proposta das aulas de Educação Física. Tiveram dificuldades nesse sentido, até
porque dividiriam a mesma quadra.Essa chegada do Pedro na escola trouxe essa coisa boa pro meu lado. Eu sempre quis me despertar pra isso [para a pesquisa]. Ele me mostrou outra forma de conseguir...“Ah, Pedro, mas eu não sei”, “Eu não consigo”. Ás vezes eu falava, né Pedro? Pedro: É mesmo!Gabriela: Não se preocupa não, as coisas vão fluindo, construindo, pesquisa, vai lá. Então está sendo muito gratificante.Pedro: Isso aí é muito legal. Eu sempre descrevo o processo da Gabriela em outros espaços institucionais. Eu gosto muito da Gabriela. E aqui ela está num processo de descoberta e isso interfere na carreira, “caramba”! Ela vem descobrindo as coisas e pra ela isso tem feito bem. E o que tem feito muito bem é que ela tem se sentido feliz com as possibilidades que a gente tem construído. Isso tem sido o ponto mais positivo do trabalho. [...] Esse trabalho está sendo muito “massa”. No primeiro tema, a gente teve várias possibilidades. A gente trabalhou com as diversas ginásticas. [...] A Gabriela foi meu consciente. Ela conhecia o corpo docente bem. Isso foi importante pra mim. Gabriela: E isso facilita o meu trabalho, entendeu? Pedro: E isso facilita o meu trabalho também porque ela dá as pistas.
Para a sua ação durante o ano optaram por partir de três temáticas que seriam
realizadas em cada trimestre letivo.
Pedro: A respeito da proposta, a gente trabalhou através do viés da cultura e elencamos três temas gerais: foi a ginástica o primeiro; os jogos, brinquedos e as brincadeiras populares que foram o segundo tema e, no último trimestre, a gente está pensando em trabalhar com elementos da cultura negra.
Com essa proposta enfrentaram também a resistência inicial das crianças que já
estavam acostumadas à prática esportiva somente.
Pedro: Ah! Ficava muito forte essa coisa do paradigma esportivo, de esporte de alto rendimento. Era muito forte isso na escola. Isso me assustou [...] Eu sempre falo que eu não desprezo o conteúdo esporte, o que me preocupa é a forma como ele é abordado porque eu acho que o espaço escolar, ele tem que ser justificado pelo viés cultural e o esporte como elemento cultural é um tema extremamente importante pra ser tratado na escola. [...] Mas o problema é que eles atribuem um peso muito grande a essa tal competição, e eles cobram. Esse tipo de cobrança é que joga o moleque pra fora da prática. Que exclui quantos moleques gostariam de praticar. Eu acho que tem que ter a competição, mas não da forma como ela é conduzida porque tem que ter intervenção pedagógica na competição quando o cara vai lá jogar com o moleque... quando vai selecionar a equipe na escola, tudo bem, mas ele tem que intervir, ele não tem só que cobrar: “Toca pro lado!” Não, ele não tem que cobrar só isso. Porque há outras coisas que acontecem nas relações que os moleques estabelecem e que são importantes pra formação deles.
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Para ele, as brigas durante as aulas foram um obstáculo inicial...
Pedro: Mas vou te dizer, uma das coisas que foi limitante no trabalho e de maneira bem geral foi a quantidade de violência, a quantidade de porrada que eu vi na sala. Isso me surpreendeu muito negativamente e, no início, me chocou muito. E a Gabriela percebeu muito meu sofrimento, minha dificuldade, pra lidar com esse tipo de coisa, eu não conseguia aceitar isso [..] Numa aula tiveram quatro focos de briga ao mesmo tempo. O guardinha teve que vir me ajudar a separar a briga numa 2a série. Então, o negócio era tenso. [...] Hoje eu consigo produzir com meus alunos, e pra mim, eu tinha que resolver os conflitos da turma. A maior parte da aula era destinada pra revolver conflito. Então, hoje a gente consegue produzir algum conhecimento específico da área.[...] Hoje eu consigo sentar com os alunos da 4a série na quadra e conversar com eles naquele espaço aberto que é difícil. Era algo que se fosse propor isso na metade do primeiro trimestre, Nossa Senhora! Eles iam me comer vivo. E isso são coisas que vêm acontecendo, são mudanças que eu pude notar.
Dentro da primeira temática, ginástica, foi realizado também um enduro a pé dentro
da escola com as turmas União e Arco-Íris, que tinham cerca de 40 alunos cada
uma. Daí, Gabriela e Pedro lançaram mão de táticas para conseguir ensinar a esses
grupos e também evitar os grupos fechados que chamavam de “panelinhas”.
Gabriela: Foi interessante a gente conseguir trabalhar junto na mesma proposta como foi no dia do enduro na escola, eles participaram juntos, as duas turmas. E foi um trabalho!... o que foi que nós fizemos... Eu falei: “Pedro, vamos dividir em grupos para ficar mais fácil”. Então, nós trabalhamos muito nesse primeiro trimestre as atividades sempre em grupo. Eles formavam os grupos. Num primeiro momento até deixamos que formassem os grupos, mas depois nós precisamos intervir porque começaram as panelinhas e era exatamente isso que a gente queria dissolver para poder trabalhar e nós conseguimos até dar aula do mesmo conteúdo, no mesmo dia, com as duas turmas juntas e os grupos facilitavam... reuniam-se rapidamente como foi no dia do enduro. Pedro: E interessante que para a questão dos grupos nós usamos cartões para poder distribuir. E aí os alunos iam pegando os cartões e, na cor correspondente, eles iam pro grupo. Foi uma estratégia boa pra juntar alguns alunos porque as panelas eram muito fortes.
Para a temática dos jogos, brinquedos e brincadeiras populares, houve a
participação das crianças na realização de uma pesquisa.
Pedro: Inicialmente a gente fez uma seleção com os alunos, baseada na questão do grande tema pra seleção dos elementos que seriam tratados. Aí a gente fez uma seleção com os alunos, de consulta mesmo, aí eles escreviam. A gente pedia para que eles fizessem uma pesquisa que eles entrevistassem algumas pessoas: parentes, pai, mãe, tio, cachorro, papagaio... quem eles pudessem entrevistar referente a algumas brincadeiras ou brinquedos que eles já tinham vivenciado e inclusive as brincadeiras que eles tinham na rua. A partir dessa seleção, da pesquisa que eles fizeram a gente fez a seleção, foi juntando e começamos a desenvolver o trabalho. A gente optou, num primeiro momento, por construir brinquedos, os brinquedos que as crianças tinham trazido, e aí foi bem legal porque eu já
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tinha uma relação com essa coisa da construção do brinquedo. Eu tinha que fazer muito na outra escola que não tinha material nenhum. Dos brinquedos pesquisados, surgiram invenções também do professor e da
professora...
Pedro: Legal porque eu pude resgatar alguns jogos da minha infância, e eu pude trazer pros meus alunos aquele jogo lá que eles apelidaram de litrobol e a Gabriela inventou o nome pro suporte que é o embocador...Os meninos tinham que dar nome ao jogo, aí não tinha nome. Era um jogo que a gente jogava com a bola de papel e o suporte de litro. Aí eu propus que dessem um nome: “Ah, litrobol, litrobol...”Aí a Gabriela inventou o embocador. (Gabriela explica que o nome surgiu porque na hora de recolher os brinquedos, tinha que nominá-los, para que os alunos lhe entregassem).
Foto 42 – O jogo do litrobol
Pedro: E tem relação com o jogo... Achei bem interessante essa interação. Eles gostaram muito desse jogo em particular, a gente brincou bastante. Eu brincava bastante também. Gabriela: Muito legal!Pedro: E é um brinquedo barato. Você pega um copo usado, pega uma pedra, e começa a brincar com o litrobol, ou pedrabol, seja lá o que for.
E o que acontecia na escola começa a chegar nas casas das crianças...
Pedro: E quando a gente organizou, a gente pensou em criar novas possibilidades para os alunos intervirem nos seus espaços de brincadeiras fora da escola. Isso, em grande medida, eu pude notar. Eu perguntei aos alunos, depois das férias (de julho) o que eles fizeram nas férias. Aí muitos utilizaram os brinquedos que a gente construiu na escola, ensinaram outras pessoas. Um grupo de meninas fez um enduro lá no Horto. Gabriela: Por conta própria.Pedro: Primeiramente um dos objetivos que a gente colocou no projeto foi pensar na possibilidade de autonomia dos alunos em gerir espaços de brincadeiras e esse objetivo tem sido alcançado no decorrer do nosso trabalho e foi muito gratificante... a Gabriela tem umas coisas boas pra falar dos brinquedos. Fala aí, Gabriela.Gabriela: Ah, Pedro a gente fez com eles. Pedimos que trouxessem diversos materiais pra eles mesmos também fazerem jogos, até mesmo sem material, vivenciar na quadra... e essas coisas foram surgindo:
Foto 43 – Experimentações com jogo de garrafa e palitos
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cada dia um novo tipo de brinquedo, uma nova forma de brincar e eles foram construindo e aí nós estamos sem saber onde colocar tanto brinquedo na sala. Pedro: E o que eu acho legal de fazer o brinquedo é que é um processo de teorização diferente onde o aluno vai construindo suas próprias teorias, a partir do momento em que ele coloca uma nova peça no negócio e ele entende de verdade, aquilo ali adquire significado de verdade pra vida dele. Pelo menos eles têm mostrado sinais disso.Gabriela: Alguns ficam até encantados, com os brinquedos depois de prontos. Eles vão brincar com aquele brinquedo e ficam assim... gostam mesmo. E estão cobrando... aluno que tem pais aqui na escola, eles estão cobrando. “Olha, agora você me arrumou um problema. Tenho que arrumar tampinha pra fazer corda de tampinha”.
Foto 44 – Possibilidade de jogo em grupo
Foto 45 – Tabela de pontuação - As tentativas de diferentes usos
Foto 46 – Corda de tampinhas de garrafas: produzir e brincar
Pedro: O grande lance que a gente queria é que eles construíssem... Eu até lancei um desafio pra turma: eu pedi que eles convidassem alguém pra construir um brinquedo. E foi bem interessante que no dia que teve um encontro com os pais aqui aí um pai falou: “Você deixa meu filho maluco! Ele chega em casa, vamos fazer, vamos fazer!...” Isso foi muito legal pra mim, porque ele chamou a família pra construir um conhecimento junto com ele. Fiquei muito feliz!Pedro: Cara, é muito maneira essa relação que os moleques estão conseguindo estabelecer com a família pra construir o brinquedo! Pra mim foi um dos momentos mais marcantes quando eu pude perceber que a gente tava chegando lá na casa do moleque, assim, de alguma forma, mas estava chegando, mas de maneira concreta mesmo. A gente manifestava lá na casa dele por meio do brinquedo que ele estava construindo. Achei bem “massa”![...] Um aluno trouxe de presente pra mim um pião. Fiquei bastante satisfeito. Ele pediu o avô dele pra fazer o pião pra trazer pra mim. “Agora você está me devendo o bilboquê” disse pra ele.
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Pipas também foram produzidas durante as aulas de Educação Física. Era
indescritível a alegria das crianças quando, depois de prontas, as pipas ganhavam o
céu. Eu arrisquei, mas só consegui quando segurei a mão de um menino que com
muita destreza dançava com a pipa no céu.
Foto 47 – As pipas
Os brinquedos não ficavam só na quadra, chegavam nas casas das crianças, mas
também na sala de aula, seja através da demonstração, da conversa, da produção
de textos, ou da brincadeira com alguma professora. Um dia, aguardava uma delas
em sua sala para uma entrevista. Como ela demorara, fui ao pátio para ver se já
havia chegado. Lá a vi soltando pipa junto com as crianças. Ela disse que havia sido
chamada para ver as pipas. Quis fotografar, mas o visor da máquina era muito
pequeno para reter aquela imagem tamanha era a extensão da linha e da
cumplicidade entre a professora e seus alunos e alunas com as pipas.
A terceira temática, elementos da cultura negra partiu de uma pesquisa de Pedro e
de Gabriela junto com Lília, a professora de Arte. Ainda sob o efeito dos brinquedos
aguardavam a mostra cultural para encerrar a atividade.
Pedro: É agora que a gente vai começar a construir: Elementos da cultura negra. E a gente vai começar o processo de pesquisa, não é, Gabriela? A gente vai começar a pesquisar e construir esse tema. Estamos terminando essa coisa do brinquedo. A gente não vai encerrar junto com o trimestre, mas vamos fechar com a pipa, com os alunos, com a construção da pipa, e vamos fazer um festival de pipas na semana da criança. [...] É,... sobre o 3o trimestre: espero que a gente consiga umas coisas bem legais para fazer uma bela Mostra Cultural e aí resgatar tudo o que foi produzido durante o ano, porque eu acho que o evento cultural é um negócio muito rico pra escola porque ele valoriza o que o aluno produziu e dá um outro significado e possibilita à família também reconhecer o seu sujeito lá, o seu guri lá como produtor de conhecimento. E de algo concreto que ele pode ver. “Olha, meu filho está na escola, mas ele está produzindo alguma coisa. Olha que “massa!” Olha o que ele fez! Poxa!...” Eu vou tentar junto com a Gabriela fazer com que a mostra cultural de verdade se concretize.
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O final do período letivo estava próximo e havia a preocupação de como seria no
ano seguinte já que não estariam mais juntos. Esse professor e essa professora que
foram colegas e cúmplices durante todo o ano, avaliam o percurso percorrido.
Pedro: Acho que tem o papel pra dialogar. Eu defendo a idéia da proposta porque existe algo construído e isso está sistematizado de alguma forma e é mais fácil de dialogar. É por isso que eu defendo. Essa é a importância da construção da proposta no papel, acho isso válido pra dialogar. Gabriela: Pra mim é difícil, todo início de ano é complicado, eu já fico pensando. “O que vai acontecer no ano que vem?” “Pedro não vai estar aí” Como é que as coisas vão poder fluir, entendeu? Como dar continuidade ao trabalho? Não é fácil. Mesmo estando no papel, quando a pessoa chega, dependendo do profissional, se ele tem compromisso, se é responsável... Eu já tive várias experiências. Mas eu sei que não é fácil, não. Pra mim é difícil... dentro da mesma proposta, da mesma linha. Porque cada um pensa de forma diferente. Eu tenho facilidade de me adaptar, eu me relaciono bem com a escola. Quantas pessoas já passaram por aqui, né? Tem oito anos que eu estou aqui, mas a cada início de ano... Pedro: E eu acho que essa semente que está sendo plantada pela Gabriela e eu, eu acho que ela tende a perdurar, porque eu acho que vai gerar um movimento de resistência. Os moleques vão cobrar e vai ter tanto as pedagogas quanto as professoras. Elas vão ter como cobrar isso. Elas também vão ver dos progressos e estão percebendo os progressos que nós estamos tendo com relação à Educação Física e o peso não vai ser só da Gabriela de cobrar de outro professor, mas vai haver toda uma cobrança institucional, eu espero. E se houver essa cobrança institucional, acho que dá pra dar continuidade ao processo iniciado nesse ano. Talvez não da forma como a Gabriela gostaria, como eu gostaria, mas acho que alguma coisa dá pra ficar, acho que dá pra caminhar.
Pedro passa a avaliar a sua ação nesse ano e, principalmente o envolvimento com
as crianças e as descobertas que fez nesse sentido.
Pedro: Eu posso dizer que agora tenho um relacionamento excepcional com os moleques aqui da escola, que foi construído. Eu tive uma recusa muito grande no início por parte dos alunos, eles criaram uma resistência muito grande à minha figura porque eu não rolava bola e que a outra professora também não rolava bola. E eles reclamavam que em anos anteriores eles tinham uma bola todo dia. A gente construiu uma história em quadrinhos pra poder sistematizar o que a gente tinha reproduzido com ginástica no primeiro trimestre. Aí numa das histórias uma aluna fala: “Olha professor, eu ia reclamar com a diretora de você”. Só que aí no decorrer da história dela você consegue perceber como a relação dela comigo e como o conhecimento que a gente vem tratando foi mudando. Aí ela disse: “Só que hoje eu não faria isso, e tal”. A gente vem propondo. Mas ficou bem marcado aquilo pra mim, porque, poxa, eu não era bem quisto. Eles não me queriam naquele espaço, mas foi uma relação que a gente conseguiu construir junto. Dentro das próprias turmas, eu acho que houve alguns avanços bem significativos porque a turma conseguiu se relacionar de outra forma com o conhecimento proposto e a turma interagiu com o conhecimento de maneira mais efetiva, eu acredito. Porque havia um racha assim com essa cultura da bola e a cultura de quem jogava bola e de quem não jogava bola. E a gente possibilitou que outros alunos pudessem mostrar que eles também eram capazes de produzir alguma coisa dentro do espaço da aula de Educação Física e que às vezes é extremamente discriminadora... eu entendo isso perfeitamente e sei que as nossas limitações fazem isso [...] Mas vejo que vieram
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acontecendo mudanças significativas... eu hoje particularmente posso perceber positivamente.
Em seguida, esse foi um momento da entrevista que até choramos, ele fala de
saudade e do quanto será difícil não dar continuidade ao seu trabalho no ano
seguinte. E, nesse entrelaçamento entre razão e emoção, esse professor desabafa...
Pedro: Olha, vou te dizer, eu venho passando por um processo bastante duro na minha carreira. Eu levei uns tapas na cara que me fizeram muito mal e um dos tapas foi não ter voltado pra minha escola [ele diz da escola na qual trabalhou em anos anteriores]. E me faz até mal de lembrar. Só que lá eu tinha três anos consecutivos de trabalho. Então, eu construí uma história dentro da escola. E eu não consegui retornar pra escola e isso me fez muito mal. Foi quando eu percebi que nada era meu, nada era meu. Tudo era... Ah,! Desculpa, gente! [...] E isso me fez muito mal, essa condição de DT15. Eu queria ter um espaço em que eu pudesse trabalhar e que eu pudesse dar continuidade ao meu trabalho, porque eu gosto muito da escola, eu gosto de construir as coisas, eu sou apaixonado pela Educação Física, sou apaixonado, e sou apaixonado pela escola. Mas a estrutura do sistema tem dado muito mal, tem me feito muito mal. Essa descontinuidade do trabalho é a coisa que mais me faz mal dentro da escola: saber que a gente inicia um processo, que as coisas estão começando a caminhar direito e que tem um prazo determinado pra que isso termine, e isso vem me fazendo muito mal. E tomar pé dessa situação não foi legal. Eu vou passando por um processo realmente depressivo [...] E isso tem me feito mal, bastante, saber que meu emprego tem poucos dias de duração. Tem me perturbado muito. Tem me perturbado um bocado. Gabriela: Poderíamos estar bem mais felizes, né?Pedro: Poderíamos, Gabriela...Gabriela: Eu sinto isso, eu vejo...
Mas segue confiante apostando no que sua colega continuará realizando na escola.
Pedro: Essa semente é a proposta que a gente está construindo e que a Gabriela vai dar seguimento. Eu tenho fé!...E aí eu acho que tem um peso institucional grande entrando no plano da escola. E aí tem como dialogar, e aí tem como cobrar, e aí fica mais fácil das coisas se efetivarem, dessa semente germinar. Acho que a minha passagem aqui foi muito boa.
No mês de dezembro, o enduro a pé foi realizado num parque do município. Houve
a escolha de um dos desenhos feitos pelas crianças para estampar as camisas que
seriam usadas durante o enduro. Camisas foram pintadas para esse evento com a
participação da professora de Artes.
15 Profissional em Designação Temporária.
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Foto 48 – Enduro a pé: possibilidade de trabalho coletivo
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4.4 NO QUE SE APRENDEENSINA NAS SALAS DE AULA
Eu gosto de ficar estudando. É pra ficar estudando pra aprender mais [...] Pra aprender a ler e escrever (Lauro, 8 anos). Eu acho essa escola legal, gosto de ir na biblioteca e jogar bola e fazer as atividades (Débora, 9 anos).
Foto 49 – Os usos da sala de aula
A sala de aula e as atividades nela realizadas foram apontadas pelas crianças e
pelas professoras como também um espaçotempo de alegria na escola. É nela que
passam a maior parte da manhã, realizam atividades, fazem as provas, encontram
os amigos das turmas e também organizam as festas dos aniversários das
professoras, do dia das crianças e do final do ano letivo. É nela que, além da alegria,
têm também seus enfrentamentos diários diante das necessidades, principalmente,
de aprender e de ensinar.
Aprender, tirar boas notas, passar de ano,
conseguir resolver as atividades em sala de aula...
esses eram também alguns dos desejos
manifestados pelas crianças. Enquanto as
professoras buscavam maneiras diferentes para
ensinar, seus alunos e alunas iam inventando
maneiras diferentes para aprender.Foto 50 – Jogos na sala de aula:
outras aprendizagens
Um dia, na turma Amigos da Natureza, a professora entregou uma folha com
exercícios de Matemática. Havia problemas e operações. Os corpos iniciaram uma
sincronia de movimentos. Logo, cabecinhas abaixadas começavam a pensar. Mas
também uma ou outra se virava para o lado e olhava o que o colega já havia feito...
92
Nesse momento também trocavam respostas. A professora começou a ser solicitada
por uns dedinhos que se levantavam pedindo ajuda. Busquei também auxiliar a
professora. E daí, percebi que um aluno fazia movimentos com os dedos das mãos
e olhava para os seus chinelos que estavam no chão. Quando parecia que
alcançava o resultado, registrava-o na folha.
Foto 51 – Chinelos e Matemática: invenções para aprender
De contar com palitos, com os “risquinhos” num cantinho da folha e com os dedos
eu sei e já fiz muitas vezes, mas com chinelos? Perguntei o que ele estava fazendo
e tive logo a explicação. Ele precisava, por exemplo, saber quanto eram 12-8. Então,
aos 10 dedos das mãos adicionava os dois chinelos encontrando 12. Subtraía 8
dedos ficando com 2 dedos e dois chinelos. Adicionava-os encontrando como
resposta 4.
Esse menino com seus chinelos e com o seu corpo, vai nos apresentando como os
processos inventivos na/da escola instituem outras maneiras de compreendermos o
que se passa nela para além das lógicas já estabelecidas e que comumente
procuram conformá-la a regras e a padrões. Dessa maneira, compreender os
movimentos que as crianças realizam para aprender pode nos ajudar a realizar
tantos outros para com elas aprender e ensinar (LACERDA, 2002).
Além das salas referentes a cada turma, havia também outras salas que
funcionavam como espaços de apoio às atividades das professoras regentes.
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Foto 52 - Biblioteca Foto 53-Laboratório de Ciências Foto 54 - Laboratório de
Cartografia
A biblioteca era um dos locais preferidos pelas crianças. Não havia horários fixados
para cada turma. Esses momentos eram definidos pelas professoras para todas as
turmas, mas era comum que grupos pequenos de alunos estivessem ali lendo ou
pegando livros emprestados. Percorriam as estantes, escolhiam livros e indicavam
outros aos colegas. Esses eram momentos também para mostrar à professora que
já estavam lendo. E após a leitura, o sorriso da professora afirmava para a criança o
objetivo alcançado.
A sala de Arte funcionava também como uma oficina de apoio às atividades
realizadas pelas professoras em sala de aula. Lília, a professora de Arte, envolvia-se
nos projetos com os colegas, dava sugestões, trabalhava junto. Muitas vezes fazia
seus planejamentos junto com os professores de Educação Física, o que
proporcionava uma integração maior entre as suas disciplinas. Dessa maneira,
buscava contextualizar suas aulas com as outras aulas da escola. A confecção de
uma cortina para a turma do Amor foi feita durante as suas aulas. Essa foi uma
maneira de a professora regente também afirmar junto às crianças o nome da turma.
A bandeira com os desenhos e os nomes das turmas foram feitos também nessa
oficina.
A possibilidade de utilizar tinta, pincéis e diferentes materiais também inventados
por essa professora encantava as crianças que se referiam às aulas de Arte como
um motivo de alegria e, com suas artes de fazer (CERTEAU, 2002) apresentavam
outros modos pelos quais escreviam as histórias da escola.
Os laboratórios de informática e de cartografia também funcionavam nesse sentido e
eram salas que as crianças mencionavam gostar muito de estar. Apesar de que, em
94
relação a esses dois espaços, o uso era restrito. A sala de informática atendia
preferencialmente as turmas com os alunos menores e que tinham projetos
direcionados. A sala de cartografia, segundo o professor, era destinada aos alunos
maiores e já alfabetizados, contudo não estava disponível em todos os dias e
atendia também a grupos de outras escolas, o que inviabilizava seu uso pelo turno
matutino com maior regularidade.
Uma das produções de histórias em quadrinhos feitas pelo/as alunos e alunas das
turmas União e Arco-Íris mostra a integração desses diferentes espaços de aula da
escola e seus docentes.
95
96
4.5 NO QUE SE APRENDEENSINA FORA DAS SALAS DE AULA
As festas, os passeios, as apresentações teatrais e de dança também foram
apontadas pelas crianças como momentos de alegria na escola. Elas viam nessas
ocasiões a oportunidade de estar mais perto dos colegas das outras salas, além de
ter mais tempo para brincar sem a preocupação com atividades e horários.
No início do mês de dezembro, houve a preparação para uma mostra cultural que
seria realizada num dia de sábado pela manhã. Atividades dos alunos foram então
expostas nas paredes da escola e enfeitadas pelos detalhes que as professoras iam
criando para valorizar os trabalhos. As crianças iam ajudando também. Os
brinquedos construídos nas aulas de Educação Física também receberam os seus
cuidados na exposição.
Foto 55 – Arrumação para Mostra Cultural
No sábado pela manhã chovia muito. Quando cheguei à escola vi um menino
correndo pela rua sem qualquer abrigo para chuva. Ele parecia estar com muita
pressa. Passou pelo portão e foi direto para a sua sala. A sua turma, 100% Paz,
preparara teatro das histórias com as quais estudaram durante o ano e as
apresentações seriam nesse dia. No auditório, os cenários estavam sendo
arrumados pela professora, algumas crianças e familiares que chegaram mais cedo
para ajudar.
Mas antes da apresentação faltava um personagem! Marcos, um aluno cadeirante
ainda não chegara. Por causa da chuva foi muito difícil que sua mãe o levasse à
escola. Mas ninguém quis começar até que ele chegasse. Uma professora se
prontificou para ir buscá-lo. A professora teve problemas com o carro, mas
conseguiu chegar. Marcos, no colo do professor de Educação Física, entrou no
97
auditório e foi aplaudido. Faltava ele! O espetáculo começou. As crianças
apresentaram as histórias interpretando os diferentes personagens. E aquele
menino que entrara correndo foi o príncipe numa dessas histórias.
Foto 56 – Apresentações de histórias
Na escola, então, muitas histórias são protagonizadas por quem dá sentido a tudo
que nela é realizado. São histórias de afetos, de saberes, de respeito, de carinho...
histórias de diferentes pessoas que habitam esse espaçotempo.
4.6 NO DIÁRIO DE UMA PROFESSORA: INVENÇÕES DE UMA UTOPISTA
Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não foraA presença distante das estrelas!
(Das utopias. Mário Quintana,, 1998)
Santos (2002), ao tratar sobre a utopia, antecipa-se a qualquer repulsa imediata,
alertando: Não disparem sobre o utopista. E, assim, nos convida primeiro a
reconhecer as causas pelas quais os militantes da utopia (GENTILI; ALENCAR,
2003) atuam. Esses seres que vivem cotidianamente as surpresas, as incertezas, as
alegrias, as imprevisibilidades... escrevem com suas muitas maneiras de fazer
(CERTEAU, 2002) outras histórias pelas quais ainda é possível encontrar e dar
visibilidade aos fragmentos felizes (SNYDERS, 2001) da escola.
E já que estamos falando de histórias e utopias...
Alice é uma professora que atuava na turma Liberdade e Paz, correspondente à 2ª
série, na qual todos os alunos e alunas vieram de experiências de não ter aprendido
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a ler e a escrever na primeira série. Ela se mostrava sempre muito dedicada e
preocupada com a aprendizagem das crianças de sua sala. Muito tímida, me disse
que tinha receio da minha presença em sua sala, caso precisasse chamar a atenção
de uma criança com mais severidade. Afinal, o que eu poderia pensar dela? Tentei
tranqüilizá-la dizendo que também sou professora e que entendo as dificuldades
pelas quais passamos, o que algumas vezes nos leva a brigar com as crianças, o
que não significa não gostar delas.
Assim que entrei em sua sala ela me pediu que a ajudasse a entregar algumas
atividades. Em seguida, deu-me um relatório de um aluno para que eu lesse. Esse
relatório seria encaminhado à psicóloga que atendia a criança. Perguntei porque ela
queria que eu lesse. Pra corrigir! Respondeu ela. Entendi que queria uma opinião
sobre o relatório e sobre a maneira como foi escrito. Notei que Alice expressou
através da escrita o seu sentimento em relação ao menino, além de simplesmente
dizer de sua melhora quanto à realização das atividades ou a melhora nas atitudes
comportamentais. Saltou-me aos olhos o trecho:
Tem enorme prazer em montar quebra-cabeças com grande número de peças e é o que
prende sua atenção durante mais tempo.
Em português passou a entender o código lingüístico aproximadamente no mês de julho. Lê
devagar, mas demonstra felicidade por conseguir fazê-lo. Escreve textos que já são
possíveis de interpretar. Gosta de participar respondendo às perguntas feitas pela
professora, apesar de se concentrar pouco tempo em cada atividade.
Alice entrelaça a sua atuação como professora às suas próprias emoções e às
emoções de uma criança em sua sala de aula que fica feliz ao aprender, e por quem
ela demonstra também felicidade ao ensinar. O prazer é a marca dessa experiência
(ASSMANN, 1998).
Quis ouvir mais dessa professora, sobre a sua atuação com essa turma, por isso
pedi que pudesse entrevistá-la. No dia marcado, ela estava muito nervosa e me
mostrou as suas mãos trêmulas. No dia seguinte, assim que me viu, disse logo:
Esqueça o que eu falei! Eu prefiro escrever pra você. Então, gravei sua entrevista e
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entreguei-a para que pudesse ouvir o que havia falado. Ela autorizou-me a utilizar a
entrevista, mas mesmo assim preferiu escrever.
A partir dessas inquietações com a entrevista e também por um pedido anterior da
pedagoga, Alice fez um relatório do que foi o trabalho com a sua turma durante o
ano. O encadeamento com que a professora vai dizendo das suas surpresas, dos
seus medos, das suas aprendizagens... faz-me lembrar da artistagem,
[...] significada como ensinar-e-pesquisar, de modo criativo-inventivo-artístico, nas trilhas já traçadas, nos territórios aceitos, nas lógicas estabelecidas, nas epistemologias consagradas, nos sentidos fixados, nos desenhos já desenhados (CORAZZA,2002, p. 67).
E como uma contadora de histórias, narra a sua própria história...
No início do ano letivo, a possibilidade de assumir uma turma de projeto, gerou angústia
e negação de minha parte. Não era esse o meu desejo! O nome “turma de projeto” soava
como sinônimo de problema... MUITOS PROBLEMAS!
Conversa vai16, “pressão” vem... “pressão” vai, diálogo vem e, enfim, assumi a turma.
Vinte alunos, ponto considerado positivo por mim. Respiro mais aliviada. Logo
surgem os comentários das colegas de trabalho: “_Fulano e cicrano valem por dois.
Beltrano está nessa turma? Esse vale por dez”. Paro de respirar! Não são vinte! Na minha
resolução de problemas... Talvez quarenta... cinqüenta alunos.
E nos primeiros contatos com a turma, as primeiras impressões:
- Somente um aluno sabia ler e escrever de forma aproximada da considerada
convencional;
- Comportamento social desviante expresso em agressividade física e oral - tanto por
parte dos meninos, quanto das meninas;
- Dificuldade em permanecerem sentados;
- Dificuldade de concentração;
- Higiene comprometedora - tanto em relação ao corpo, quanto em relação aos
materiais escolares, sala de aula e outros espaços da escola;
16 Alice é professora pertencente ao quadro estatutário do magistério. Atuava num prédio ligado à escola chamado “anexo”. Essa foi uma prática comum no Sistema Municipal quando os prédios escolares não atendiam a demanda de vagas. Os anexos ficavam ligados administrativamente a alguma escola. Com a extinção do anexo, Alice foi para a escola e, uma vez que o seu trabalho como alfabetizadora já era conhecido pela diretora e pelas pedagogas, foi convidada para atuar nessa turma, pois as professoras que ali já atuavam também não se manifestaram para atuar com as turmas de projeto.
100
- Certo desinteresse e medo ao serem exigidas atividades relacionadas à leitura e à
escrita;
- Falta de compromisso com as tarefas de casa;
- Família ausente do processo escolar (e quem sabe... ausente da vida desses
sujeitos).
Se pudesse expressar com palavras meus primeiros sentimentos, diria
naquele momento: _ O que é isso, companheiro? Livra-me dessa! Não mereço
isso!”.
Após conversas com as pedagogas, definiu-se o principal objetivo das turmas
de projeto: ALFABETIZAÇÃO!
Foram necessárias algumas “noites em claro”, para surgirem as estratégias
na tentativa de organizar o trabalho (“tentativas de sobrevivência”).
Alice tem os primeiro indicativos de que a sua ação não seria nada fácil. Ela fica
assustada com suas primeiras descobertas, mas passa a investigar a própria
prática, procura conhecer as crianças e busca outras maneiras para ensinar a uma
turma que apresenta tantas dificuldades. Ela não abre mão de sua tarefa de ensinar
e chama de tentativas de sobrevivência aos seus primeiros tateamentos. As
emoções da professora vão provocando as suas ações (MATURANA, 2001a) para
iniciar o trabalho com a turma.
Organização do trabalho:
1) O estético, o limpo e o organizado podem ser mais agradáveis aos olhos.
Os alunos confeccionaram capas para todos os cadernos, pastas e livros, com
diversos materiais e técnicas. Percebi prazer na realização dessa atividade,
empolgação com o resultado e tentativa de cuidado para não estragarem as
produções artísticas.
No início, decidi guardar os materiais no armário com a promessa de que
só liberaria para casa quando percebesse um avanço no cuidado. Havia uma
certa expectativa de alguns alunos: “Já posso levar para minha mãe ver?”
Aos poucos, liberei o material que voltava com comentários positivos de
alguns familiares.
Num inesperado dia de chuva, na volta dos alunos para casa, alguns
materiais molharam. Percebi tristeza por terem estragado os trabalhos e receio
101
em me contar o ocorrido. Então percebi que o objetivo foi atingido: tanto os
materiais, quanto os alunos estavam mais limpos, mais bonitos, com cabelos
cortados ou penteados. A sala estava mais agradável.
Alice começa pelos cadernos das crianças. É uma necessidade de organização, de
tê-los limpos... quem sabe num caderno com uma aparência agradável fosse mais
fácil aprender a ler e a escrever? Ela quer vê-los aprender, evoluir... As crianças
entendem a preocupação da professora que percebe o prazer delas na realização
da atividade. Na tristeza pelos cadernos molhados ela encontra pistas de que
alcançara seus objetivos.
Sobre essa preocupação da professora, Snyders (1988, p. 218) diz que “Não se
afastar dos interesses dos alunos constitui um fator essencial da tarefa do professor,
o que não significa absolutamente destruir seu estilo, nem abandonar a
preocupação de vê-los evoluir”.
A ação da professora baseia-se na primeira condição que estabelece para que
pudesse ensinar e aprender com as crianças: a sala de aula precisa ser agradável.
Com esse aspecto conquistado, ela avança para outros...
2) Escrita:
No início, optei por não priorizar a escrita dos alunos, pois essa atividade
causava um certo pânico e frases do tipo: “Não sei escrever, não sei fazer!”
Nesse período, contei muitas histórias, li muitos livros com comentários
sobre autores, os ilustradores, as imagens. Descobri que nessa atividade o
silêncio e a concentração eram gerais (e descobri muitos olhos brilhando
também).
Uma vez por semana, obriguei os alunos a pegarem empréstimos de
livros na biblioteca com o meu acompanhamento. Já no segundo bimestre,
deixei livre a decisão de pegar ou não os livros, e quando pegar. Percebi que
muitos “tomaram gosto” pela leitura e ficaram independentes para realizarem os
empréstimos.
Após um maior entrosamento com os alunos, as atividades de escrita
foram sendo apresentadas, pois já eram consideradas mais agradáveis. E... aos
102
poucos, leitores e escritores foram surgindo, um a um, em maneiras e tempos
diferentes.
A alegria das crianças de se perceberem lendo e escrevendo é
indescritível. Mas é indescritível também a minha alegria ao perceber que o
respeito a tempos diferenciados valoriza as nossas crianças, torna-as parte da
escola, como seres em processo.
A professora que pesquisa a sua prática arrisca-se quando diz optar por contar
histórias e não cobrar a escrita inicialmente. Ela busca com as crianças os sentidos
da leitura e da escrita a cada história que vai contando. Aguça-lhes o paladar ao
oferecer palavras aos montes, recheadas de enredos desafiantes e de finais felizes.
A cada história ela vai apresentando às crianças a possibilidade de terem uma outra
história escrita sobre suas próprias vidas. As imagens apresentadas, seja através
das ilustrações dos livros ou dos quadros que pintavam em suas mentes,
apresentavam outros cenários que substituíam o embaçamento pelas cores que
faziam os olhos brilhar. O prazer de ensinar e de aprender é o ingrediente básico
nesses fragmentos de uma escola da alegria. E o que seriam os obstáculos à alegria
(FREIRE, 2004) em sala de aula, não saber ler e escrever, vão sendo vencidos pela
professora e seus alunos e alunas.
3) Matemática:
Priorizei as atividades matemáticas que trabalhavam com o conceito de número.
Possuíam imensa dificuldade em números até nove. Incluí nas aulas bastante jogos
para auxiliar nessa construção numérica: dama, ludo, bingo, quebra-cabeça, jogo da
memória, dominó, liga-pontos, sete erros, entre outros.
OBS – gostaria de deixar registrado que a maioria desses jogos peguei
emprestado com meu filho. Durante todo o ano, “cobrei da escola” que comprasse
jogos, principalmente para as turmas de projetos, que necessitam de algo mais
lúdico e concreto para auxiliar na aprendizagem. Infelizmente, esse pedido não foi
correspondido e, com certeza, deixou de auxiliar muitas crianças. Pois, acredito no
poder dos jogos para construir sujeitos mais inteligentes e felizes.
Faço esse registro no sentido de contribuir, com recursos a mais, na
aprendizagem de nossos alunos. Portanto, deixo como sugestão que, na presença
de verbas, esse assunto também seja pensado como prioridade.
103
No segundo semestre, foi possível avançar nos conteúdos matemáticos:
números até noventa e nove, unidade e dezena, números pares e ímpares,
antecessor e sucessor, resolução de problemas aditivos e subtrativos, etc.
Vale ressaltar que, com exceção de um aluno, todos os outros demonstraram
muita dificuldade em Matemática, durante todo o ano letivo.
Através dos jogos, Alice cria possibilidades para que as crianças aprendam
(FREIRE, 2004). Ela diz do seu encantamento com as conquistas das crianças, mas
também não abre mão de utilizar o relatório, que seria lido por mim, pelas
pedagogas e quem sabe pela diretora, como veículo de denúncia pelo fato de ter
levado os jogos de seu filho para a escola. Ela, que durante todo o ano frisou a
importância deles, diz que fizeram falta e continua insistindo para que sejam
adquiridos pela escola. A professora fala um pouco da dor que cada uma de nós
professoras sente quando em nossas salas de aula vemos e elencamos as
necessidades dos nossos alunos e alunas, mas as verbas são insuficientes e/ou
encaminhadas para outras prioridades.
4) Concentração:
A dificuldade em permanecerem sentados, com o passar do tempo, tornou-se
mais amena e suportável. No lugar dela, observei cabecinhas concentradas
sobre folhas de papéis tentando resolver questões matemáticas, escrever
textos, descobrir palavras, ler...
A professora observa que vai conseguindo atingir seus objetivos...
Rememora as dificuldades ressignificadas pela sua emoçãoação junto às crianças
que passam a corresponder às atividades propostas. Nesse momento, ela parece
dizer: “Ufa!”... e respira, para seguir contando... Contudo, ainda se preocupa em ver
as crianças assentadas numa organização de sala de aula que todos nós já
conhecemos e experimentamos. Em alguns momentos em sua sala observei que ela
foi abrindo mão dessa preocupação inicial e já era possível ver outras organizações
nas disposições das mesas e cadeiras bem como nos movimentos das crianças em
sala de aula.
5) Agressividade:
104
A agressividade dentro da sala de aula também se tornou rara. Meninos
dos quais eu tinha receio no início, transformaram-se! Não sei se por medo ou
por respeito. Mas sei que em nenhum momento a agressividade passou em
branco: também gritei, encaminhei aluno pra coordenação, onde registros de
ocorrências foram realizados e, no retorno do aluno à sala de aula, geralmente
envergonhado, o diálogo sobre o ocorrido foi estabelecido.
Alice diz que teve de colocar limites às situações que extrapolavam nas relações de
convívio. Se por medo ou por respeito, como ela mesma diz, precisava estabelecer
regras até para continuar acreditando na mudança, não só de atitudes, mas de
histórias.
6) Família:
Em relação às famílias, minha frustração permaneceu do início ao final do ano letivo.
O descaso da maioria dos responsáveis para com os filhos das turmas de projeto foi
assustador. São crianças que precisam de proteção familiar: atenção, carinho, segurança,
apoio, incentivo, vestimenta, alimentação, saúde, moradia, sorrisos e abraços. Onde estão e
quem são esses responsáveis? Muitos nem conheci, apesar da insistência das pedagogas
em enviar bilhetes chamando para reuniões.
Tenho refletido muito sobre essa desestrutura familiar e falta de apoio por parte dos
responsáveis, vivenciada por muitos de nossos alunos, como um dos fatores prejudiciais na
aprendizagem dos mesmos.
A ausência da participação familiar foi um aspecto apresentado por todas as
professoras como prejudiciais ao desenvolvimento das crianças. Muitas dessas
famílias são ausentes até em relação aos cuidados com as crianças em casa. A
professora narra esse fato, deixando registradas sua reflexão e preocupação.
7) Laboratório de Informática:
As aulas realizadas no laboratório de informática, também auxiliaram aos alunos, na
concentração, na coordenação motora, na leitura, na produção de textos, na pesquisa, na
paciência, no respeito e cuidado com os materiais da escola.
105
As aulas extrapolam o espaço físico das salas de aula e encontram em outros
ambientes da escola meios para favorecer as aprendizagens...
8) Laboratório de Cartografia:
Preparei um projeto sobre a construção do espaço a ser desenvolvido no laboratório
de cartografia, devido aos diferentes materiais lá disponíveis sobre o assunto. Infelizmente,
esse projeto foi realizado apenas na sala de aula.
Gostaria de sugerir que, no próximo ano, as turmas de 1ª a 4ª séries também fossem
contempladas por este laboratório, devido à sua importância no auxílio dos conteúdos
estudados.
O laboratório atendia também a outras unidades de ensino e o professor
responsável tinha uma carga horária limitada para o turno matutino. Novamente, a
professora diz do que necessita para efetivar seu trabalho. A seguir, ela faz questão
de avaliá-lo tecendo suas considerações.
A turma de projeto pensada na 2ª série, para todos alunos que não se alfabetizaram
até o final da 1ª série, pode ser considerada uma nova tentativa na resolução do problema
do analfabetismo em séries seguintes.
Acredito que esse tipo de turma pode ser um auxílio aos alunos que, por vários
motivos, necessitam de mais tempo para se alfabetizarem. E pode ser também uma
alternativa aos alunos já alfabetizados no sentido de avançarem nos conhecimentos já
adquiridos. Como professora alfabetizadora sei o quanto é difícil trabalhar com uma turma
onde muitos sabem ler e escrever convencionalmente e outros ainda estão na identificação
das letras. Esses alunos, geralmente, sentem-se envergonhados quando percebem que
ainda não sabem ler, em meio aos colegas que já sabem e acabam tornando-se
indisciplinados ou “os casos complicados” da escola.
Em algumas situações, esses alunos não possuem dificuldades de aprendizagem,
apenas necessitam de outro tempo para aprenderem, já que a alfabetização é um processo
complexo.
Não defendo nessas turmas a inclusão de crianças consideradas especiais
(síndromes de Down e outras)17, que tenham laudos comprovados. 17 A preocupação de Alice é que as turmas de projeto tornem-se espaços instituídos para crianças rotuladas como aquelas que têm dificuldades de aprendizagem e também para crianças com deficiências. Quando diz que não defende a inclusão de crianças especiais nessas turmas é porque entende que elas surgiram de uma necessidade pontual, mas acredita que todas as crianças, com deficiências ou não, devam estudar em salas regulares convivendo e aprendendo com diferentes colegas.
106
É preciso ter cuidado para não formar classes especiais para alunos portadores de
deficiências físicas ou mentais.
Como professora da turma, sinto que nem tudo foram rosas e nem tudo foram
espinhos. Apenas sementes que foram plantadas, regadas e cuidadas com enorme carinho.
Muitas desabrocharam e superaram tempo de sol e tempo de tempestades. Outras
sementes ainda estão tentando nascer.
Se foi o melhor caminho trilhado... não sei! Mas SEI que foi uma nova tentativa de
ajudar nossas crianças na construção dos saberes, na construção da cidadania, na
construção da vida!
Alice encerra seu relatório avaliando a criação dessas turmas e das suas tentativas
para ensinar a um grupo tão diferenciado. Entende que nem tudo que era necessário
foi realizado, mas acredita na utopia, entendida por Santos (2002, p. 331, 332) como
novas possibilidades humanas e novas formas de vontade.
107
5 NOVAS EXPERIMENTAÇÕES: A ALEGRIA POTENCIALIZANDO MOVIMENTOS INSTITUINTES
De simples objeto escultural, sem vida, estático, o boneco, [...] transforma-se por completo. Animado, ganha alma. Animado por um artista que a ele se dá por completo, o boneco oferece inspiração para um delineamento mais claro do seu jeito de ser, do seu temperamento e personalidade. De ser passivo, torna-se uma criatura independente, com vida própria, e dá-nos a impressão de se tornar, inclusive, muito superior a quem o anima, tal é a sensação de independência e liberdade que oferece quando flutua nos limites do espaço cênico. É quando o boneco passa a ter outra natureza. Já não é mais madeira, pano ou papel e sim uma outra matéria, um novo ser [...] (SANTOS, 1979, p. 162, 163).
5.1 O TEATRO DE BONECOS: ARTE, INVENÇÃO, BRINQUEDO
O boneco é um brinquedo, uma invenção que
alegra, que encanta, que faz rir, que faz chorar e,
diante da sua fragilidade representada pelo seu
tamanho e pelos materiais dos quais é produzido, o
público não oferece resistência, aproxima-se e
interage com ele! Foto 57 – Teatro de bonecos na
EMEF Esperança
Arte presente desde as primeiras civilizações (SILVEIRA, 1992), tem sido utilizado
para registrar ou para transmitir informações, para alegrar, para trazer conforto ou
para protestar. Amaral (2001, p.9) trata da utilização de bonecos pelo homem
primitivo como uma maneira de entender o mundo que o cercava e, por isso, atribuía
tanto aos elementos da natureza quanto aos animais selvagens, a essência de
divindade passando a representá-los por meio de ídolos, fetiches, estátuas.
Sua origem provavelmente tenha acontecido no Oriente espalhando-se para a
Europa, até chegar às Américas [...] fruto de uma conquista da criatividade humana,
do desejo e necessidade inegáveis do homem em se representar e se reconhecer
[...] (SANTOS, 1979, p.11). Há registros também de que no Egito antigo havia a
utilização de estátuas móveis nas festas a Osíris18.
18 “Osíris (uma das principais divindades, identificada ao deus Dionísio). Esses cultos agrestes eram destinados a reverenciar a fertilidade da terra, estando eles intimamente ligados às cheias do rio Nilo, que faziam a lavoura, morta no inverno, renascer periodicamente na primavera” (BALARDIM, 2004, p.48).
108
Na Idade Média, foi instrumento utilizado pela igreja católica para atrair fiéis e para
ensinar a sua doutrina. É dessa época que há indícios de que tenha surgido o termo
marionete, em referência a imagens pequenas da Virgem Maria (BALARDIM, 2004,
p.49). Os jesuítas também fizeram uso dos bonecos como veículo de catequese dos
índios no Brasil.
Há referências da presença do teatro de bonecos em vários lugares no mundo:
Praticado como é em todo o mundo, o teatro de bonecos assumiu fisionomias e espírito dramático diferenciados, dependendo da localização geográfica de cada uma de suas manifestações. Isso devido, obviamente, às próprias injunções de tradição cultural, costumes, formação social, econômica e política.E é sob prismas de diferenciação que vamos encontrar e observar os mais importantes tipos de teatro de bonecos popular do mundo, como por exemplo: o VIDOUCHAKA, na Índia; o KARAGÓS, na Turquia; o PUNCH, na Inglaterra; o GUIGNOL, na França; o FANTOCCINI, na Itália; o MAMULENGO, no Brasil, entre outros. Todas essas manifestações guardando entre si ao menos um aspecto comum: o seu caráter popular, o povo se representando a si mesmo (SANTOS, 1979, p. 20).
No Brasil, o mamulengo é praticado por artistas do povo em alguns Estados
nordestinos [...] onde os atores são bonecos que falam, dançam, brigam e, quase
sempre, morrem (Santos, 1979, p. 11). Nele está presente o humor, mas também a
crítica social e política (BALARDIM, 2004, p.10).
Nesse momento, não busco tratar de sua trajetória nesses tempos e locais
diferentes, o que pode ser encontrado nas pesquisas de Balardim (2004), Amaral
(2001) e Santos (1979), mas de como essa linguagem encerra múltiplas
possibilidades de uso e de aprendizagens.
Existem bonecos que requerem diferentes tipos de técnicas para sua manipulação
(AMARAL, 2001) que podem também ser utilizadas individualmente ou em conjunto:
bonecos articulados (representando a figura humana possuem articulações na maior
parte das juntas), bonecos de luva ou fantoches (neles o ator-manipulador veste a
mão), bonecos de vara (são sustentados por uma vareta central no corpo do boneco
podendo haver pequenas varetas presas à sua cabeça, pés e mãos), bonecos de
109
fios ou marionetes (são manipulados a partir de fios que oferecem a possibilidade de
movimentos mais elaborados).
Nós, professoras, sabemos também das nossas invenções a partir de diferentes
materiais: meias, rolinhos de papel higiênico, jornal, embalagens... cada um desses
materiais é transformado nas nossas mãos e nas mãos das nossas crianças. Dessa
maneira são dados diferentes usos ao boneco seja como brinquedo, arte ou
instrumento didático. Seja qual for o seu uso, o boneco encerra em si a capacidade
de atrair o público e de estimular a fantasia.
Atualmente, a mídia tem investido nesses pequenos e aparentemente inofensivos
atores. Seja como personagens de histórias ou como auxiliares de apresentadores
de programas de TV ganham cada vez mais espaço. Dotados de liberdade em suas
ações, algumas vezes, falam até o que poderia ser censurado se fossem pessoas.
Por causa disso é que foram proibidos durante a Inquisição, pois propagavam idéias
que geravam críticas (SILVEIRA, 1992).
Os bonecos são assim lembrados por seus nomes e por suas características e os
seus manipuladores19, muitas vezes, passam despercebidos. Eles, através de suas
mãos, animam, produzem ânima (BALARDIM, 2004, p.43) dão vida aos bonecos e
lhes emprestam a própria alma. Suas vidas são vividas junto a esses seres de
tecido, espuma e tantos outros materiais. Marques (1993, p.140) diz que “Não é só a
mão que mexe o boneco. É o corpo todo. O que o boneco faz em cima do pano, o
bonequeiro faz atrás da empanada20: pula, dança, corre, beija, dorme [...]” O teatro
de bonecos tem essa força, essa magia de prender a atenção num ser que só se
torna real pelo olhar do outro que o assiste, interagindo com ele. É assim que é
estabelecida a relação manipulador-boneco-público.
19 Quem manipula o boneco é chamado de bonequeiro e/ou ator-manipulador.20 Palco onde o teatro de bonecos é apresentado.
110
O teatro de bonecos tem nas crianças um
público fiel e atento, mas também é apreciado
por adultos. A princípio eles mostram-se
receosos, mas a fragilidade dos bonecos
permite que se aproximem e participem.
E para a criança, a frágil aparência desses
seres mágicos permite que se sinta mais forte
do que eles, por isso perde o medo e se
entrega ao diálogo (SILVEIRA, 1992).
Foto 58 – Lili conversa com alunas na
EMEF UFES
Certa vez, após um momento de contação de histórias com bonecos, um menino me
perguntou como eu fazia para saber onde estavam as pessoas porque percebeu que
os bonecos direcionavam “o olhar” na direção correta de quem estava falando com
eles. Nunca havia pensado nisso porque quando eles olham, eu também olho. Mas
aquela criança queria uma resposta. Lembrei dos deficientes visuais e, então, disse
que usava os outros sentidos e também o coração. Quando eles estão em minhas
mãos, sinto que somos um só, meu coração e o coração dos bonecos batem no
mesmo compasso. Acredito na veracidade da existência deles porque sinto tudo o
que eles sentem. E, ainda, quando a platéia também acredita e “olha no olho” deles,
aí o espetáculo deixa de ser uma mera apresentação e passa a ser algo real,
experimentado, sentido, vivido! Daí ser o uso que fazemos do boneco como arte,
brinquedo ou recurso pedagógico definido como um ato de paixão (SANTOS, 1979,
p. 164).
5.2 ALGUMAS HISTÓRIAS DE ALEGRIA COM BONECOS
Quando atuava no Projeto Revitalização dos Espaços Escolares contando histórias
utilizava diferentes recursos, dentre os quais, os bonecos. O uso deles despertava a
curiosidade das crianças e os seus pedidos para segurá-los e para falar com eles
foram desencadeando outro movimento: a realização de oficinas de teatro de
bonecos nas quais seriam não só os manipuladores, mas também os que iriam
participar de todo o processo desde a criação dos bonecos e do texto até a
111
preparação para a apresentação. As primeiras oficinas foram realizadas em escolas
municipais dos bairros Nova Palestina e Santa Martha.
Os encontros das oficinas ocorriam em horário oposto ao de aulas regulares. A
participação das bibliotecárias dessas escolas também foi uma outra maneira de
realizarmos ações na escola a partir da biblioteca escolar. Dessa maneira, além de
dinamizarmos o acervo das bibliotecas também nos aproximávamos dos diferentes
atores e atrizes dessas unidades de ensino fazendo junto com eles, o que era a
nossa meta principal de trabalho. Alguns materiais tais como: papel higiênico, cola,
tinta, tecido, lã, cabelos... fizeram parte dessa invenção e os bonecos começaram a
existir. Para costurar as roupas contamos com a ajuda da mãe de um dos alunos da
escola.
À medida que os bonecos iam sendo modelados, suas características físicas e
emocionais eram produzidas em textos orais e escritos e socializadas com o grupo.
Algumas perguntas sobre os bonecos foram elaboradas para auxiliar na produção
dos textos. A investigação era acerca do local de residência, do nascimento, das
qualidades, dos defeitos, das preferências, dos sonhos... surgiram bonecos com
características diferentes, mas algumas das informações referiam-se não somente
ao boneco criado, mas também ao aluno ou à aluna que o confeccionava ou a algum
sonho que ele/a nutria. Conversei com eles/as sobre o fato e me disseram que era a
oportunidade de tornarem-se, através dos bonecos, o que gostariam de ser na
realidade. Sobre a criação do personagem e esse envolvimento entre criação e
criador, FELINTO, citada por Brait (2002, p. 84) afirma:
“E um personagem é tudo o que, em você, eu amo porque não posso ser; tudo o que, de você, eu gostaria de ter, tudo o que, em você, eu odeio porque não posso ser, ou porque sou e você me faz ver. É você, enfim, apresentável. Você e eu resgatados no modelo do que deveria ser...”
Enquanto cada detalhe das roupas e cabelos eram terminados e com as histórias
individuais dos bonecos prontas, os alunos e as alunas reuniram-se em grupos.
Agora a tarefa seria reunir vários personagens numa mesma trama. Então houve a
necessidade de parar, de ouvir o outro, algo que eles e elas confessaram ser muito
difícil e que conseguiram fazer durante essa atividade. Sobre essa experiência,
112
Santos (1998, p. 26) diz que “[...] as crianças escrevem suas histórias em grupos, o
que oferece um jogo de trocas onde cada um quer expressar suas idéias e aprende
a ouvir”.
As histórias falavam de amizade, de relacionamentos na escola, de brincadeiras, de
perdas, de saudade, de possibilidades de mudança, de sonhos, de alegria, de
sentimento... Através delas fomos conhecendo melhor o grupo com o qual
atuávamos, suas aspirações, como pensam e entendem a escola. Reverbel (1997,
p. 21) diz que “[...] quando a criança desenha, faz uma escultura ou dramatiza uma
situação, transmite com isso uma parte de si mesma: nos mostra como sente, como
pensa e como vê.”
Esse grupo de alunos e de alunas relatou que a possibilidade de participar dessa
atividade permitiu o encontro com os bonecos, amigos dos quais jamais queriam se
separar, e com colegas de turmas diferentes com os quais não conversavam.
Algumas redes de solidariedade foram compartilhadas: nem tudo se podia fazer
sozinho, era preciso parar a própria produção para auxiliar algum/a colega. Os
tímidos estavam mais seguros e os que sempre faziam tudo sozinhos, mais
solidários. É por isso que
O teatro de fantoches se aproveita das avenidas de acesso representadas pelos sentidos, para conduzir a criança a experiências novas de valor inestimável. Problemas como timidez e inibição são minimizados quando a criança participa dessa atividade, seja na montagem do texto, na confecção dos fantoches ou na apresentação da peça, e ela se torna mais segura e positiva, o que contribui para sua socialização e desenvolvimento (OLIVEIRA, 1988, p. 6).
Da oficina de fantoches seguida da apresentação, os alunos e as alunas passaram
por outra experiência: ensinaram a colegas de outra escola a fazerem bonecos.
Novamente houve envolvimento, sorrisos... e muitas surpresas... os mais tímidos
pediram para serem os ministradores daquela nova experiência... falaram,
explicaram, deram sugestões e... surgiram novos amigos, novos parceiros para
contar histórias. Foi como uma festa, uma grande brincadeira de ensinar e de
aprender... uma história surpresa onde tudo pode acontecer, pois como afirma
Santos (1998, p.28). “[...] quando a criança faz seu boneco representar sua história,
113
algo sempre acontece diferente do que ela pensou, exigindo uma não rigidez, onde
ela reelabora, redefine e recria sempre”.
5.3 HISTÓRIA DE UM CASAMENTO
A marionete é velha como o mundo. Ela é uma filha natural da poesia. É imortal, embora habitando na terra, tendo sido criada para fazer os homens esquecerem suas preocupações. Diverte as crianças, encanta as pessoas grandes, toca o simples, oferece um prazer delicado ao enfastiado e ao cético (CHESNAIS, 1947 apud Santos, 1979, p.20).
A escola é palco de muitos acontecimentos... são inúmeras as histórias que
acontecem cotidianamente. Vivi junto a uma unidade de ensino a história de um
casamento de bonecos. A proposta veio das crianças, e não posso negar que além
de divertida, foi extremamente emocionante.
Quando ouvimos uma história iniciada com Era uma vez, esperamos que o final dela
seja “e foram felizes para sempre”. Mas, e se o final não for feliz? Será possível
interferir?
No mês de setembro de 1999, fui à escola José Lemos de Miranda com a
bibliotecária21 para contar histórias. Poderia ter sido mais um momento como os
outros com o envolvimento do grupo de alunos/as e os pedidos de “volta outra vez”,
“conta outra”, “você volta quando?” Mas a história não terminou assim...
Levei a Lili e o Gugu que apresentaram e representaram a música de Luís Fidelis, A
flor do mamulengo, acompanhados pela bibliotecária ao violão:
Eu sou a Flor do mamulengo
Me apaixonei por um boneco
E ele neco de se apaixonar, neco de se apaixonar,
Neco de se apaixonar e ele neco.
Ai, meu coração apaixonado!
21 Nessa época cada profissional era responsável por cerca de 5 escolas, nas quais o atendimento diário da biblioteca era feito por estagiários de Ensino Médio do curso técnico em biblioteconomia.
114
Já estou com os nervos à flor do pano
De desenganos vou ter um treco,
Ai, ai, cruz credo!
E ele neco de se apaixonar, neco de se apaixonar,
Neco de se apaixonar e ele neco.
Se no teatro eu não te atar, boneco, eu juro: vou me esfarrapar!
Eu não consigo viver sem teu dengo, meu mamulengo!
E ele neco de se apaixonar, neco de se apaixonar,
Neco de se apaixonar e ele neco.
A Lili fez inúmeras tentativas para conquistar o amado. As crianças também
sugeriram que ela declamasse uma poesia, que o abraçasse e lhe desse um beijo,
que fingisse estar doente para que ele tivesse pena dela e que cantasse a música “É
o amor” de Zezé de Camargo e Luciano.
Todas as tentativas para ganhar o amor do boneco foram frustradas e a história
terminaria com a solidão da boneca... mas uma das crianças disse: “Você tem que
casar com ela!”, e, então, outras frases foram surgindo: “Ela parece com você, casa
com ela!, “Tadinha, ela tá sozinha, se você não casar com ela, vai casar com
quem?”
O Gugu tentou esquivar-se, mas não teve jeito... só depois de concordar com o
casamento é que deixou de ser alvo da insistência das crianças.
Enquanto manipulava os bonecos, ficava curiosa tentando pensar no que iria
acontecer depois da promessa do casamento. E a Lili, espertamente, sugeriu:
“Então, se a gente casar vocês organizam tudo?” A resposta foi “sim”.
Saímos da escola aguardando a data da cerimônia e os preparativos que ficariam
por conta do grupo dessa comunidade escolar. E aí foi outra história...
As turmas do horário matutino da EMEF José Lemos de Miranda tinham então uma
tarefa para realizar: a preparação do casamento. Cada turma ficou responsável por
organizar uma parte do que seria essa cerimônia: lembranças, decoração, cenário,
115
texto do padre, certidão, convites, dentre outras coisas... As crianças, o diretor, as
merendeiras, o estagiário da biblioteca, o pedagogo, as professoras... houve o
envolvimento de todo o grupo. E o convite ficou assim:
Com os preparativos da cerimônia sendo organizados, ainda faltavam as roupas dos
noivos. Onde encontraríamos roupas de casamento para dois bonecos? Não poderia
decepcionar as crianças! (e a mim mesma que já estava tão envolvida). Recordei
então das roupas que tentava costurar para as minhas bonecas e para as crianças
das turmas de maternal para as quais lecionei. Se era difícil encontrá-las prontas,
poderia confeccioná-las. Ângela, professora de dança, desenhou os modelos e foi
comigo comprar os tecidos. As vendedoras das lojas perguntavam para qual ocasião
seria a roupa e ficavam impressionadas quando falávamos da seriedade desse
casamento de bonecos. Em casa, minha mãe ajudou na costura das roupas com
todos os detalhes: gravata borboleta, terno, cartola, vestido branco, véu e buquê...
tudo ficou um sonho! E eu nem imaginava o que ia encontrar na escola...
Quando cheguei à escola tive a impressão de estar num salão de festas. Algumas
funcionárias perguntaram logo pela noiva. Uma bela cerimônia foi preparada: o
padre, os músicos, flores, altar e até havia padrinhos para os noivos!
Estava muito nervosa! Via e sentia a expectativa em cada rosto...
Armando de Jesus (Im memóriam) Artur da PaixãoAurora Assunção do Nascimento (Im memóriam) Felícia Luz da Paixão
Convidam para a cerimônia do casamento de seus filhos
Lili e Gugu
Que será realizada no dia 13 de dezembro de 1999, às 10 horas, na Escola de 1º Grau José Lemos de Miranda, onde os noivos receberão os cumprimentos.
116
Havia também fotos, filmagem e o sermão do padre que, após o “sim” dos noivos,
declarou: “Vocês estão casados!” Os aplausos foram emocionados!... as crianças,
as professoras e demais funcionários e convidados pareciam vibrar!
Foto 59 – O casamento de Lili e Gugu na EMEF José Lemos de Miranda
E quando parecia estar tudo terminado, começou a ser organizada uma fila para os
cumprimentos. Enquanto segurava a Lili e o Gugu sentia o toque das mãos das
crianças nela, os abraços... algumas perguntas e felicitações que não conseguia
ouvir direito... mas percebia o quanto elas estavam felizes...
Após os cumprimentos, outra surpresa: havia uma festa com bolo e refrigerante,
além das lembrancinhas para serem entregues no final. Até hoje lembro do sabor do
bolo, dos sorrisos das crianças e das lágrimas nos olhos de alguns adultos. Para nós
que fazíamos parte do Projeto Revitalização dos Espaços Escolares foi também um
momento de pensarmos nossas ações e reafirmá-las junto às escolas, na busca de
dar visibilidade a esses movimentos de quem faz as histórias das unidades de
ensino terem inúmeros sabores. As professoras, as crianças, o diretor, as
merendeiras, o pedagogo, sentiram cada momento e participaram dessa história
como atores e atrizes, foram personagens e autores que escreveram linha a linha
uma história na qual se pôde falar “e foram felizes para sempre”. E como propõe
Assmann (1998), essa foi uma experiência de aprendizagem que suscitou prazer...
Mas parecia que essa história terminaria por aqui... até que uma aluna perguntou:
“Onde eles vão passar a lua-de-mel?” De súbito, inventei: no Ceará.
No ano seguinte as perguntas sobre os noivos continuaram. Queriam saber se já
haviam chegado, como estavam e, principalmente, se estavam juntos e felizes.
117
Essas perguntas sugeriam que a história não havia acabado. Mais um capítulo
estava sendo iniciado... e como quem conta um conto aumenta um ponto,
aproveitamos o interesse e experimentamos outra tática: utilizar a situação para
realizar atividades de leitura e de escrita. Lili e Gugu então escreveram algumas
cartas.
Mas como essas cartas chegariam à escola? Tudo até agora havia ocorrido de uma
forma mágica e com toques de realidade... ou vice-versa: o casamento e toda a
organização da cerimônia... e a fila dos cumprimentos! Não, não podíamos
simplesmente chegar com algumas folhas escritas e dizer: “Olha, Lili e Gugu
escreveram. As cartas estão aqui”. Afinal, a brincadeira era séria! Estávamos
vivendo a história!
Pensamos então na possibilidade de um carteiro de verdade levar as cartas. Após
alguns telefonemas para amigos, soubemos que esse pedido poderia ser feito por
escrito à Empresa de Correios e Telégrafos. E foi o que fizemos.
No dia marcado, pontualmente, lá estava o carteiro em frente à escola para entregar
as cartas dos bonecos. Pedi à direção da escola para irmos às salas de aula junto a
esse profissional. Enquanto nos apresentávamos a cada turma, relembrávamos a
história do casamento, da viagem de lua-de-mel e dizíamos estar trazendo respostas
às perguntas sobre os recém-casados. Eram cartas escritas pelos noivos e
endereçadas àquela comunidade escolar.
Entregamos as cartas e alguns postais enviados pelos bonecos. Propositalmente o
espaço referente ao destinatário nos envelopes não estava preenchido
adequadamente. Além de entregar as cartas, essa poderia ser uma maneira do
carteiro também falar da sua profissão e da empresa onde trabalha.
118
Foto 60 – Um carteiro na sala de aula! A continuidade da história do casamento dos bonecos
Então, um novo personagem, o carteiro, passou a fazer parte da história. Ele foi a
todas as salas de aula para falar das cartas que haviam chegado para as crianças e
aproveitou também o momento para dar aula. Disse que os bonecos esqueceram de
escrever o endereço com CEP (Código de Endereçamento Postal) nos envelopes e,
por isso, a correspondência também demorou a chegar. Falou da importância do
preenchimento correto do endereço nos envelopes e ainda fez a relação do sistema
de postagem do Brasil com o de outros países. Que experiência! Ter tantas
informações, participar e aprender [...] ficar sabendo História, Geografia, Filosofia,
Política, Sociologia, sem precisar saber o nome disso tudo e muito menos achar
que tem cara de aula [...] (ABRAMOVICH, 1993, p.17).
As cartas foram para a biblioteca e junto aos
livros contavam histórias que eram lidas por
olhos mágicos22. Como a leitura das cartas
gerava outras perguntas, colocamos na
biblioteca uma caixa na qual as crianças
escreviam bilhetes para os bonecos.
Foto 61 – Escrita de cartas para bonecos
Entre algumas felicitações, beijos e abraços, havia pedidos para que eles não se
separassem e fossem sempre felizes.
22 A menina dos olhos mágicos, Cecília Vasconcelos. A menina da história descobre que tem olhos mágicos ao ler as histórias dos livros.
119
Após o retorno da lua-de-mel, Lili e Gugu contaram sobre a viagem e sobre as
dificuldades que estavam enfrentando: o Gugu estava desempregado e não tinham
casa própria. A história terminou por aqui. Não pudemos dar continuidade com
aquele grupo, mas será que terminou mesmo? Às vezes fico pensando em tudo o
que aconteceu e no que significou para mim e para aquele grupo. Encontro ainda
com algumas pessoas que estiveram ali e sempre um sorriso é esboçado em cada
rosto quando recordamos desses acontecimentos. Para cada um/a de nós foi uma
experiência ímpar!
Com esse casamento pude sentir o quanto as histórias de nossas vidas enredam-se
umas às outras... compartilhamos experiências, aprendemos, ensinamos e vivemos
outras histórias puxadas por fios coletivos e entrelaçados por redes de
solidariedade. O “sim” que as crianças tanto queriam ouvir representava as
possibilidades de dar visibilidade a esses movimentos cotidianos no entrelaçamento
entre razão e emoção (MATURANA, 2001a, p. 15). E nada melhor do que uma boa
história para provocar tudo isso porque, segundo Assmann (1998, p. 65),
Educar significa recriar novas condições iniciais para a auto-organização das experiências de aprendizagem [...] Educar é ir criando continuadamente novas condições iniciais que transformam todo o espectro de possibilidades pela frente [...]
5.4 OFICINA: RETALHOS, LINHA, AGULHA... NA SALA DE AULA! MÚLTIPLAS
LINGUAGENS E APRENDIZAGENS
Através das possibilidades de integração espaço-temporais, planteadas no imaginário humano pelos bonecos e objetos animados, somos capazes de extravasar, por essa arte, nossos íntimos desejos de fugir à ordem estabelecida, de extrapolar a realidade cotidiana, desagregar nosso pensamento dos automatismos sociais corriqueiros e interagir com o mundo ilusório que sacraliza o tempo, elevando a ritualidade das ações cênicas ao patamar mágico capaz de nos emocionar e, emocionando, transformar (BALARDIM, 2004, p. 107).
Trago em minha própria história, como professora e aluna, a presença de múltiplas
linguagens presentes nos usos dos livros e do teatro de bonecos. Acredito que
também por causa disso as professoras da Escola da Esperança, que já me
conheciam, solicitaram a realização da oficina de teatro de bonecos. Suas turmas
120
eram numerosas, com cerca de 40 estudantes em cada uma. Essas professoras
lecionam na mesma escola há cerca de 4 anos e disseram que, nesse ano,
enfrentavam muitas dificuldades em relação à responsabilidade dos estudantes
quanto ao cumprimento das atividades, principalmente as que eram destinadas para
casa.
Então, dentre as táticas (CERTEAU, 2002) para ensinar a esses grupos, utilizaram
músicas durante todo o ano em sala de aula. Algumas foram apresentadas através
de coreografias para a comunidade escolar em dias de festividades. Outras foram
utilizadas em sala para desencadear discussões ou para complementar/enriquecer
conteúdos. A possibilidade de fazer uma oficina de teatro de bonecos seria mais
uma tentativa na busca de despertar o interesse das crianças pelas atividades da
sala de aula. Por sugestão das próprias professoras aproveitamos as músicas que
foram utilizadas para que os textos fossem escritos a partir delas.
E como todas nós, professoras, contamos muitas histórias, apresento as falas
dessas docentes sobre os passos da oficina, uma vez que todos os procedimentos
partiram do que elas já realizavam em sala de aula. Trazer à cena esses momentos
apresenta possibilidades de sentir os movimentos instituintes gerados a partir e por
causa das emoções de seus sujeitos, que alteram o político e o pedagógico e são
nutridos pelos sonhos de quem luta e sobrevive pela escola pública, reinventando
com seu fazer/sentir o espaço escolar.
5.4.1 A apresentação do projeto para a turma
No final de agosto nós começamos a fazer uns grupos e escolher as músicas para nós fazermos uma apresentação. Mas no início eu não gostei, depois de um tempo eu fui gostando, mas fui aprendendo mais ainda! Eu também aprendi como contar histórias e segurar os bonecos. Foi muito legal (Inês).
Tivemos um encontro inicial para planejarmos os passos da oficina. Fizemos um
cronograma inicial e as músicas com as quais as professoras ensinaram durante o
ano foram apontadas como as desencadeadoras dos textos. Elas disseram dos
motivos da escolha:
121
Marina: Então aí a gente levou o projeto pra turma, falamos do que seria o projeto e aí a
turma escolheu a música, e da música seria transformada a história.
Marília: E aí nós optamos pela questão da música como ponto de partida, primeiro porque a
gente pensou numa coisa mais lúdica, mais prazerosa. Mas como a gente já vinha
desenvolvendo um projeto desde o início do ano por conta da escolha do nome da turma,
porque nós optamos por escolher o nome da turma através de música, teatro, literatura. E aí
deu muito certo com a música, eles gostaram de cantar, se envolveram bastante, aí por isso
pensamos em estar começando os bonecos a partir das músicas.
Marina: É, as músicas que nós trabalhamos durante o ano
têm a ver com o tema PAZ que também gerou a formação
dos nomes das turmas. A escola na construção da paz, esse
movimento que gerou as músicas para os nomes das turmas.
Essas músicas foram trabalhadas durante o ano sempre
buscando esse mesmo tema: a questão da paz, a questão da
cidadania, dos direitos, dos deveres.
[...] O primeiro capítulo dele [do livro de Português] trata dos
direitos da criança, então encaixou com o que se estava
trabalhando mesmo com a questão da paz.
As músicas que a gente procurou escolher para trabalhar
com eles, eram músicas que falam disso: “Comida”, do Titãs;
“É”, de Gonzaguinha... “Paz”, de Abdulla; “É bonita demais”,
de Zé Vicente...
Marília: “Crianças da terra”...
Foto 62- O início da confecção
dos bonecos: formação dos
grupos
Foto 63 – Professora e alunas
envolvidas na confecção dos
bonecos
Marina: O “Ilumina” de Padre Zezinho. A música Ilumina veio no meio do encontro que a
escola teria com a família e de trabalhar uma forma de se apresentar, dançando numa
concepção da dança dos povos que vem a ciranda de roda em que você trabalha...
Marília: Dança circular...
122
Marina: É uma dança circular em que todo mundo tem que estar em sintonia com a música,
com o movimento, com o sentimento. Então as músicas foram escolhidas assim.
Nesses primeiros movimentos fui percebendo o quanto as professoras buscavam
outras maneiras para ensinar. Elas utilizavam diferentes táticas (CERTEAU, 2002)
em suas aulas e também se dispunham a aprender outras maneiras para ensinar.
Nesse sentido, Garcia (2000) refere-se ao uso das múltiplas linguagens na sala de
aula e na escola como necessárias cotidianamente e não somente em festividades
ou “quando dá tempo”. E os bonecos seriam, assim como as músicas, os
intercessores de múltiplas aprendizagens.
5.4.2 A composição dos grupos
Fazer o fantoche foi muito legal. Começou quando nós escolhemos as músicas. A música preferida do nosso grupo foi “Comida”. Nós fizemos os desenhos que ficaram muito legais para confecção dos fantoches. Fizemos o rosto dos bonecos e depois as roupas (Tiago).
As turmas eram numerosas e uma outra questão se pôs: quais critérios seriam
utilizados para formar os grupos? As professoras aproveitaram esse momento para
tentar resolver uma situação conflituosa entre os grupos e também para envolver os
alunos e as alunas que comumente não realizavam as atividades.
Marina: Para não ficar muito um grupo que produz bem com outro que, se deixar sozinho,
não produz nada, procurei estar colocando alunos que têm condições, alunos que ...
Marília: Em termos de conteúdo produzem melhor...
Marina: Produzem melhor, têm responsabilidade, produzem melhor. Isso eu procurei estar
fazendo, mas eu fui pela chamada. Então, pela chamada, eu fui formando os grupos.
123
Marília: Mas aí nós combinamos que, se pela chamada ainda coincidisse de ficar uma
“panelinha”, a gente ainda faria uma interferência. Até porque as turmas tinham um
histórico, principalmente uma das turmas, de ter grupos muito fechados que não se
misturavam. O objetivo era separar esse grupo aí tão fechado e conviver com outras
crianças.
Marina: E fazer com que esses grupos fechados
também conhecessem os outros, porque eles não
tinham o interesse de conhecer os outros não. A
intenção era essa de estar dividindo dessa forma. As
músicas foram colocadas todas no quadro, todos os
títulos trabalhados. Lembramos as músicas
trabalhadas, aí os grupos já formados, iriam escolher a
música com a qual gostariam de trabalhar pra fazer a
história. Então as músicas foram escolhidas pelos
grupos. O grupo se organizou na sala, estavam os
títulos dispostos e cada um escolheu. A partir daí cada
grupo escolheu, aí o grupo fez uma história narrativa,
definiu os personagens dessa história narrativa. A
gente colocou que se o grupo tinha cinco pessoas,
tinha que ter cinco personagens, pra cada um estar
fazendo o seu personagem. E sobre o personagem, a
gente procurou fazer logo a caracterização... A
caracterização, os desenhos, caracterizar esses
personagens pra poder ir construindo o fantoche
enquanto se ia transformando a narrativa em discurso
direto que é um tipo de texto para o teatro de fantoche.
A gente fez dessa forma. Na hora da caracterização a
gente procurou ver com mais rapidez se o personagem
era negro, se o personagem era branco, se o
personagem era moreno. A Marília é que perguntou se
iam ficar só bonecos brancos ou se seriam os bonecos
brancos e negros. E a gente definiu, como precisava
estar fazendo os bonecos numa quantidade de
bonecos negros, morenos e os brancos. Foi
resgatando até do ano anterior que a gente só fez de
uma cor.
Foto 64 – Diferentes materiais e
aprendizagens na sala de aula
Foto 65 – Alegria pela execução dos
primeiros detalhes
Foto 66 – A confecção era
acompanhada dos desenhos feitos
anteriormente
124
A preocupação das professoras não é só com o
aprendizado, mas com as relações afetivas em
sala de aula. Percebem que é preciso intervir para
que seus alunos e alunas aceitem o outro como
legítimo outro (MATURANA, 2001 a), e aproveitam
a divisão dos grupos para fazer essa tentativa.
Elas não destroem seu estilo (SNYDERS, 1988, p.
218) e buscam interferir também nos
relacionamentos. Querem ver os alunos
aprenderem, mas também querem que sejam
amigos e que afetem-se mutuamente e
positivamente.
Foto 67 – Os bonecos são cercados
de afetos
Foto 68 – Os materiais compartilhados
em grupo
5.4.3 A cor da pele dos bonecos
Eu gostei muito da oficina e aprendi muita coisa sobre teatro de boneco que eu não sabia. Eu pensava que ficar atrás da casinha onde os bonecos apresentam era fácil. Quando a gente estava confeccionando os bonecos eu ficava muito empolgado porque é muito divertido, eu ficava querendo apresentar logo, mas dava muito trabalho (Raul).
Durante o ano as professoras também utilizaram suas aulas para falar da questão
étnico-racial. Confeccionar bonecos de diferentes cores seria também a
oportunidade para discutir esse tema com as crianças. Elas foram percebendo que
algumas crianças atribuíram suas próprias características aos bonecos, contudo,
quando a cor da pele precisava ser definida, algumas mudanças ocorriam. Dessa
maneira, vão percebendo e citando as dificuldades que encontraram para discutir o
125
tema com as crianças. Demonstram que foram envolvendo-se a cada dia quando
dizem das suas impressões.
Marina: Alguns alunos se colocaram como o personagem, e eles são alunos negros, mas
não queriam se colocar como negros, se colocaram como morenos. “Eu não sou negra, eu
sou morena”. Na hora, alguns eu deixei até porque como mediar essa situação? Ficou difícil
mediar.
Não foi fácil mediar, não. Nas histórias, alguns alunos se assumiram negros, outros alunos
brancos quiseram fazer fantoches negros, mas a maioria a gente viu que preferiu fazer
bonecos brancos. Alunos que são morenos, que têm muito mais características negras
preferiram fazer bonecos brancos. Mesmo o personagem não sendo eles, em alguns casos
eles ainda se caracterizavam no personagem, no fantoche. Então eles não queriam ser
negros.
Marília: Eu acho até, Marina, não sei se percebi isso corretamente que quem não se fez
teve mais facilidade de fazer o boneco negro porque não era ele. Essa capacidade de se
perceber negro é muito difícil ainda nos nossos alunos. No máximo, eles são morenos.
Marina: Exato, por exemplo, teve um grupo que cada aluno era um personagem. A Adriana
era ela. Aí ela se fez morena, não se fez negra, mas mesmo morena que ficou muito
diferente do branco, ela mudou o nome do personagem no final. Não era mais Adriana, era
outro nome, ela não queria ser aquela morena.
Marília: Não quis se identificar, né?
Marina: Exato, ela não queria.
E esse trabalho com teatro de fantoche envolveu a questão do tema PAZ que a gente
estava trabalhando, a questão da cidadania, a questão da raça e da etnia. Agora como
mediar isso com a questão do aluno de se ver negro? A gente encontra um pouco de
dificuldade em como desenvolver isso durante o ano, é muito difícil. O aluno não se aceita
mesmo, é diferente de procurar outra visão do trabalho.
5.4.4 A participação e o envolvimento
Eu achei muito legal que a nossa turma e a outra turma Arco-Íris todos nós gostamos porque essas apresentações nos ensinaram como tudo neste mundo é possível [...] eu aprendi que nós podemos fazer muitas pessoas felizes fazendo apresentações com esses bonecos. Eu achei que ia fazer a apresentação toda errada, mas
126
quando eu cheguei lá na frente eu pude perceber que a apresentação era uma coisa muito boa (Betty).
Todos os dias quando chegava à escola ouvia frases como: “Você vai na nossa sala
hoje, Dulci?” “Eu só vim por causa do boneco... a gente vai fazer hoje, né?” Os
bonecos foram conquistando um espaço cada vez mais significativo nesses grupos.
Contudo, o que as professoras mais esperavam é que a sua confecção despertasse
nas crianças também o interesse pelas atividades em sala de aula. Elas disseram de
algumas mudanças, mas ainda citam que a especificidade das turmas era algo que
extrapolava os planejamentos e colocavam-nas em situações de auto-avaliação em
todos os momentos, sentindo-se como estreantes no enfrentamento de novos
perigos (LINHARES, 2002 a, p. 48) e situações inusitadas. Foram percebendo que
nem tudo poderia ser mudado, mas não pararam de tentar e apontaram que a
integração e a continuidade do trabalho na escola a cada ano é essencial para que
essas questões possam ser minimizadas.
Marina: Era o tempo todo, o tempo todo durante as aulas: “E o fantoche? Nós vamos fazer o
fantoche hoje? Quando é que vamos escrever? Quando é que vamos fazer o texto do
teatro? Quando é que vamos apresentar?” Então, todas as aulas eles estavam sempre
pensando no fantoche.
Marília: Acho que houve o seguinte: uma grande empolgação, envolvimento... você vê que
eles estavam maravilhados com os fantoches. Se deixasse, eles estavam o tempo todo com
ele na mão. Tanto é que já estava bastante destroçado na hora da apresentação porque pra
eles aquilo era uma criação deles, uma coisa bem próxima a isso. Mas pra essa turma
especificamente acho que a questão da responsabilidade e do compromisso passou muito
aquém do que a gente esperava de uma 4ª série, pelo menos. Então ao mesmo tempo eles
queriam fazer, mas não tinham o compromisso de fazer, de cumprir com o combinado: de
fazer o boneco, de trazer o material, se comprometer a ler o texto em casa. Não tinham...
queriam mais a coisa prazerosa e isso eles tiveram, se envolveram muito. Agora eu acho
que é um processo, sabe? E não teve a resposta esperada em termos de responsabilidade,
mas por outro lado também eu acho que deixou a gente até mais tranqüila porque o que
acabou acontecendo foi que a gente viu que era uma coisa que fugia de todos os padrões, a
turma extrapolava. Então não era só na aula de Matemática que não havia
responsabilidade, na aula de Português, no conteúdo de Ciências, é em tudo. Porque nesse
momento eles estavam totalmente envolvidos, se envolvendo desde o processo de
127
planejamento, participaram da questão do cronograma das atividades, sabiam que eles
tinham um prazo pra apresentar, mas mesmo assim eles não conseguiam cumprir. Então eu
acho que é uma coisa específica mesmo dessa turma.
Marília: Uma questão, eu acho, de cultura, de família, de comunidade, da vivência mesmo,
da relação com a escola e tudo mesmo.
Marina: Todos trouxeram muito material da outra vez. Dessa vez quem mais trouxe material
fui eu. Eu trouxe muito material, eu tive que arranjar tecido porque poucos alunos, por
exemplo, os alunos mais responsáveis é que trouxeram. Aqueles que a gente procurou
misturar nos grupos pra poder trabalhar continuaram sem trazer.
5.4.5 Algumas surpresas
Eu achei muito legal. A parte que eu mais gostei foi quando nós apresentamos e quando fizemos as roupas. Eu gostei de aprender isso porque é muito interessante[...] Eu achei legal quando nós mexemos os bonecos, parece que eles são de verdade. Eu aprendi que nós achamos que é fácil lá na empanada e quando nós fizemos eu vi que não é fácil e quando crescer quero ser bonequeiro (Diogo).
Ainda que não conseguindo atingir todos os objetivos em relação ao cumprimento
das atividades, as professoras citam as surpresas que tiveram em relação a alguns
alunos.
Marina: O Juliano, eu achei muito interessante, o Juliano foi uma situação assim: às vezes a
gente vê só o todo e uma coisinha que acontece você percebe. Eu estava conversando
alguma coisa sobre o planejamento do fantoche, o que trazer para a apresentação, aí o
Juliano falou assim: “O Jorge está faltando a roupa”. Aí eu olhei “O Jorge? Que Jorge?” “O
Jorge que é o pai!” Ou seja, na hora que ele falou pra mim, ele sentiu o tempo todo que o
boneco dele era realmente um personagem quase que real: o Jorge. Ele não falou assim “o
meu boneco Jorge”, ele falou “o Jorge”. E foi muito legal essa parte. Pelo menos alguma
coisa estava interessando o Juliano. O Jorge estava interessando o Juliano. O Juliano, por
exemplo, no grupo dele se envolveu muito, o tempo todo no grupo dele ele não deu
problema de comportamento. Ele se envolveu com o grupo. Há alguns alunos bagunceiros,
ele é um, mas não se perdeu no grupo. Por exemplo, Samuel ficou o tempo todo perdido.
Samuel não se entrosou no grupo hora nenhuma. E olha que o grupo do Samuel era um
grupo até mais paciente: Mariana, Renata, Maria que é muito parecida com ele, é um grupo
que aceita mais as diferenças. Onde o Juliano estava, não. O grupo tinha a Cláudia e a
128
Luzia que não aceitam qualquer um. São alunas que tiram fora. Ele se encaixou no grupo
assim, ele trabalhou o tempo todo. Da criação da história, ele ficou participando da história
também. Ele quis participar da história, ele debruçava na mesa pra ouvir. Outros alunos que
têm essa dificuldade de concentração fugiam na hora de escrever, ficavam brincando com
o boneco, olhando pro lado. Ele não. O tempo todo ele ficou ali presente.
Marina: A história passava numa igreja, então eles fizeram tudo, tudo, tudo... ficou muito
bem organizado.
Marília: Ficou muito legal.
Marina: Ele foi um que a gente percebeu mais. Não foi só ele não. A gente observou, por
exemplo, a Teresa quando fez a Cecília no grupo dela.
Marília: Que não se envolve com nada, nada, nada.
[E ela perdeu o boneco...] Teve que fazer outro...
Marina: E ela se integrou no grupo. Pouco, mas se integrou, muito por conta dela, mas ela
se integrou no grupo.
Marília: Eu acho que até a questão da falta, nós nunca tivemos uma turma que faltasse
tanto durante o ano. Então, pelo menos, no dia de fazer o boneco eles estavam mais
preocupados. Mesmo você vendo que no dia da apresentação muitos faltaram. Não têm o
compromisso que deveriam ter, mas, pelo menos, deu uma minimizada.
Marina: Não podiam faltar, porque se faltar, o fantoche não vai ficar pronto. Então eles me
cobravam: “Hoje não é o dia de fazer o fantoche? Você não prometeu?”
Augusto, por exemplo, o tempo todo queria mostrar que ele não estava interessado em
nada, mas no dia da apresentação ele foi. “Eu não quero apresentar, eu não vou fazer isso!”
No dia da apresentação, estava Augusto lá apresentando e ainda puxou a música.
Marília: Por exemplo, Milton...
Marina: Milton que é um aluno altamente hiperativo, ele é disperso na sala o tempo todo.
Ele ficou louco pra apresentar, ele não via a hora de apresentar. Ele quis o tempo todo, ele
ficou todo empolgado, desenhar, caracterizar... ele foi um dos primeiros a terminar o
fantoche.
129
Foto 69 – Momentos de apresentação das histórias
Marília: E outra coisa que eu acho bem legal que dá até pra ver nas fotos. Eu acho que as
fotos vão mostrar isso bem, a cara de orgulho deles na hora da apresentação. O Sérgio,
sabe aquele Sérgio grandão? Saltava do olho de tanta felicidade e orgulho “Olha eu aqui, eu
estou aqui, eu sou importante.” Eu acho muito legal.
Marina: E isso foi assim, excelente. O que a gente coloca de mudança é a questão da
responsabilidade mesmo, que de uma certa forma como a Marília falou, aliviou a gente. Não
era só a aula de Português que era chata, a aula de Matemática que era chata, era uma
questão mesmo que a turma trouxe. Desde o início do ano a gente trabalhou com questões
de eles estarem levando uma tarefa de casa e trazendo. E nós tivemos isso o ano todo...
Marília: Falamos disso o ano todo...
Marina: O ano todo...
Marília: O ano todo, e eu acho que tinha que ser feito um trabalho...
Marina: E nós não conseguimos reverter isso não.
Marília: Isso precisa ser olhado pro ano que vem, porque vai ser o caos.
5.4.6 Alinhavando as experiências...
Eu achei muito legal desde quando a professora falou assim que a gente ia fazer fantoche. Eu fiquei muito alegre, contei pra todo mundo da minha casa. Eu falei com minha mãe que não queria faltar aula, eu falei que não queria ficar nem se fosse para fugir.
130
Gostei muito de confeccionar os bonecos.Gostei de pintar, desenhar, mas eu fiquei muito triste porque faltei no dia que meu grupo ia apresentar. Eu chorei. Estava chovendo, mas eu não podia vir.Eu gostei muito foi de fazer roupas e de enfeitar o boneco, também gostei de fazer olho, boca, cabelos [...] Quando fiz os textos e li para a turma fiquei feliz e comecei a aprender como faz textos (produzir foi o que mais gostei), gostei das aulas, aprendi muitas coisas e essas coisas foi tudo por causa dos fantoches (Fanny).
Corazza (2002, p. 57) fala da pesquisa-que-procura e ensina que move professores
e professoras a buscar outros caminhos além dos já percorridos. Nessa atividade
com o teatro de bonecos as professoras puderam revisitar suas práticas, perceber
os caminhos que percorreram e que ainda precisam ser percorridos e não
esqueceram de que os estranhos (MOREIRA, 2005, p. 31) que habitam suas salas
precisam de maneiras diferentes para aprender o que implica maneiras diferentes
para ensinar.
As músicas foram desencadeadoras das idéias dos textos. Foi preciso também
desenhar os bonecos e caracterizá-los. Nessa parte contamos com a participação
da professora de Arte. Quando os desenhos e caracterizações estavam prontos,
partimos para a produção de olhos, narizes, bocas, roupas, cabelos... Outros
movimentos foram originados: a cada detalhe que era colado ou costurado, surgia
um sorriso, uma brincadeira... as ações, antes individuais, tornaram-se coletivas à
medida que era necessário compartilhar materiais e também esperar a vez para usá-
los, pedir ajuda e colaborar com os colegas. Caderno, lápis, borracha... foram
substituídos por retalhos, linha, agulha... Cada um dava um toque especial à sua
produção. Professoras e crianças estavam envolvidas na mesma ação. Não havia
diferença entre quem aprendia e quem ensinava. Redes de solidariedade foram
estabelecidas e reafirmadas. Todos ensinavam e todos aprendiam. Dessa maneira,
a oficina pedagógica
É um lugar onde todos trabalham em conjunto para produzir algo que vai servir para si e para os outros. Nas oficinas, o conhecimento é construído por todos os professores [alunos e alunas] e cada um traz a sua prática, a sua contribuição que, partilhada por todos, constrói um saber que faz o grupo crescer e, dentro do grupo, enriquece a cada um. Também como numa oficina os conhecimentos devem ser socializados e redundar numa prática pedagógica mais consistente e mais adequada aos alunos nela
131
envolvidos” (MNDDH, s/d, p. 31, apud CARVALHO; SIMÕES, 1997, p. 57-58).
Foto 70 – Novos personagens, novas relações na sala de aula
A partir dos bonecos prontos, o texto narrativo precisava ser reescrito para discurso
direto o que implicava encontros de pequenos grupos. Nesses momentos era
possível ouvir a voz de cada um na produção dos textos que eram constituídos de
histórias engraçadas, tristes, dramáticas... e que, mesmo originadas a partir das
músicas utilizadas em sala de aula desde o início do ano, falavam de
acontecimentos da escola, das suas casas, do bairro e da cidade. Um professor e
uma professora da escola foram homenageados como personagens de uma das
histórias. Até o prefeito da cidade foi um dos personagens. Esses bonecos
envolvidos nessas diferentes tramas foram cercados de afetos e de cuidados. Já
não eram mais só bonecos, eram novos sujeitos nas relações da sala de aula e da
escola que foram alterando o cotidiano desses grupos, suscitando outros afetos,
outras práticas e outras aprendizagens.
As surpresas também surgiram quando até quem não manifestou interesse durante
a confecção dos bonecos empolgou-se quando soube da apresentação. O Juliano
foi uma dessas surpresas. Numa sexta-feira ele chegou mostrando que estava
preocupado porque o Jorge ainda não tinha roupa e a apresentação seria na
semana seguinte. Eu estava com a chave do armário da professora onde estavam
os bonecos e hesitei em deixá-lo levar o boneco para casa. Fiz muitas
recomendações e ele respondeu: “Pode deixar, tia Dulci, eu vou trazer!” E, na
segunda-feira, para minha surpresa, o Jorge estava vestido e pronto para juntar-se à
sua família e representar a história. O uso de múltiplas linguagens foi favorecendo
também múltiplas aprendizagens.
132
A perda dos bonecos que iam pra casa foi algo que também enfrentamos. Na turma
Arco-Íris, um aluno, o Leonardo, levou o boneco para casa a fim de terminá-lo. Pedi
por várias vezes que o trouxesse para a escola. Ele sempre dizia que havia
esquecido. Até que, um dia antes da apresentação, disse da urgência para que o
boneco estivesse na escola e ele confessou: “Eu perdi o boneco.” Tive vontade de
brigar com ele, mas comecei a pensar naquele aluno e algumas perguntas
povoaram minha mente: “Onde será que ele mora? Será que ele tem em casa um
lugar pra guardar seus materiais e para estudar?” E aí, ao invés de brigar, ofereci
ajuda para que fizéssemos outro boneco.
O boneco que Leonardo deveria fazer representava o professor de Educação Física
da escola. No dia da apresentação, com o boneco pronto, ele pôde participar da
apresentação do seu grupo. Estava todo orgulhoso com o seu boneco na mão. O
professor, não continha a emoção pela homenagem. Teresa também perdeu o seu
boneco que representava a professora Cecília. Ela recebeu a ajuda da professora de
Arte, Lília, e também pôde participar da apresentação. Não soubemos os motivos
pelos quais os bonecos sumiram, mas fizemos o possível para que o mesmo não
acontecesse com essas crianças. E nesse entrelaçamento entre razão e emoção
fomos percebendo que já não éramos mais as mesmas pessoas. Essas relações
nos influenciaram significativamente. Além dos bonecos, fomos sendo fabricados
como novos sujeitos e contribuindo para mudar também as histórias de cada um e
de todos nós (LINHARES, 2002 a, p. 44).
Foto 71 – Professores, alunos e bonecos: afetos
133
Dessa maneira, a oficina de bonecos foi, passo a passo, revelando os inúmeros
processos inventivos que ocorrem na escola e dão visibilidade aos seus fragmentos
felizes (SNYDERS, 2001), por isso, segundo Mediano (1991, p. 16) [...] “as oficinas
pedagógicas procuram criar condições para que os docentes [e discentes] possam ir
transformando suas relações no trabalho escolar em direção a formas mais coletivas
e cooperativas” (CARVALHO; SIMÕES, 1997, p. 59).
Foto 72 – A conclusão do trabalho em grupo
Fomos lidando com as imprevisibilidades surgidas e nos dando conta da rapidez
com que nós, as professoras, e as crianças encontrávamos maneiras para resolver
os problemas que surgiam: alteração de cronograma, falta de materiais que nos
levava a utilizar outros... íamos inventando cabelos e roupas... quando alguma
criança faltava ao ensaio ou à apresentação era substituída por outra e, a cada
impedimento, inventávamos outros modos. À medida que os bonecos ficavam
prontos, seus usos eram explorados pelas crianças que passavam a apresentá-los
aos colegas da sala e a quem passava pelo corredor. Esses novos sujeitos tecidos a
partir da utilização de materiais incomuns ao “padrão” do ambiente escolar (retalhos,
linha, agulha...) foram outros/novos participantes nas relações dessas turmas e da
escola.
134
Foto 73 – A alegria com os bonecos: afetos e aprendizagens
É assim que o cotidiano escolar apresenta inúmeros fatos inusitados. São muitas as
situações nas quais as ações de docentes e discentes refletem suas emoções. Os
fragmentos felizes (SNYDERS, 2001) da escola estão presentes nessas práticas
cotidianamente. São como retalhos que enviesados pelas emoções tecem as
histórias da escola e de seus praticantes. Esses fragmentos são oportunidades de
darmos visibilidade ao que de bom tem acontecido nas escolas.
Benjamin (1994, p. 197) nos confronta ao afirmar que “[...] a arte de narrar está em
vias de extinção [...]”. Por isso, narrar nossas experiências significa falar da vida que
é manifestada cotidianamente nas unidades de ensino através dos processos
inventivos de professoras que, utilizando múltiplas linguagens para ensinar,
permitem a si próprias e a seus alunos e alunas encontrarem múltiplas
possibilidades para aprender. E são eles e elas utopistas que utilizam a cabotagem
para “[...] navegar fora dos limites, mas em contato físico com eles, e ir realizando
outras atividades ao longo do trajeto [...]” (SANTOS, 2002, p. 134).
135
6 ERA UMA VEZ... O COMEÇO PARA OUTRAS HISTÓRIAS
Pensei em muitas maneiras para colocar um ponto final nesse texto. Contudo, como
quem conta um conto, aumenta um ponto, a cada fio puxado, outros tantos surgiam.
Queria acrescentar mais fotos, fatos, depoimentos... Por isso, penso ser esta escrita
não um ponto final, mas o começo ou ainda a continuação de tantas histórias que
foram e serão vividas nas escolas que reinventam cotidianamente a prática de
professoras, professores e seus alunos e alunas.
Então, para falar desses momentos vividos durante a pesquisa e dos movimentos
dos seus sujeitos que instituem outras maneiras de ser e de estar na escola, recorro
ao que Linhares (1997) diz sobre a reinvenção desse espaçotempo:
Por muito tempo insistimos na urgência de ampliar a escola. Hoje sabemos que não basta ampliá-la, mas que importa reinventá-la, reinventando métodos e conteúdos, embarcando no tempo histórico que vivemos, usufruindo da pluralidade de instrumentos de comunicação e de diferentes vozes, apropriando-nos dos avanços tecnológicos e redirecionando-os, percebendo a centralidade que vão conquistando os discursos e as práticas tidas como periféricas. Portanto, um outro esforço para inventar a escola precisa ser feito. Esforço que parta de sujeitos históricos capazes de se contrapor e ultrapassar as próprias condições de uma cultura privatista tecida por opções político-econômicas concentradoras. Mas é importante que este esforço passe por um circuito prazeroso de afirmação da vida e atente para os movimentos da sociedade que permanentemente instalam vazios e oferecem possibilidades de intervenção (LINHARES, 1997, p. 143).
Falar sobre a alegria na escola como movimentos instituintes, além de
extremamente prazeroso, foi a oportunidade de dar visibilidade às ações de quem
está cotidianamente escrevendo e vivendo outras histórias de possibilidades, de
alegrias e de esperanças.
Parti das minhas vivências como aluna e professora com outros docentes e
discentes para a escolha desse tema. E, dessas experiências, trago muitas marcas
que, a cada dia, confirmam a presença da alegria na escola como possibilidade e
não como um efêmero devaneio. Apresentei essas histórias nesse texto também
como pistas para o que venho buscando afirmar.
136
Escolhi uma escola pública como espaçotempo de pesquisa por acreditar no
trabalho de quem, entre conflitos e esperanças, reinventa a própria prática,
aprendeensinaaprende, atuando no sentido de fazer irromper jardins no chão de
escolas (LINHARES; GARCIA, 2001).
As inúmeras experiências que revelam os movimentos instituintes de quem vive e
realiza o cotidiano escolar vão de encontro ao quadrinho apresentado na introdução
desse texto no qual Filipe parece não ter o que responder à Mafalda sobre a escola.
A vida, a invenção e a esperança na escola não podem ser negadas por quem
credita a ela somente o fracasso, a tristeza e a repetição.
Busquei trazer à cena os fragmentos felizes (SNYDERS, 2001, p. 12) da escola,
mas não foram somente eles que encontrei. Por isso, falar de alguns enfrentamentos
vividos pelas professoras foi também uma maneira de falar desse entrelaçamento
diário entre razão e emoção (MATURANA, 2001a, p. 15) e que nesses momentos
como um relampejo na hora do perigo (BENJAMIN, 1994, p. 224) alteram seus
planejamentos, questionam suas práticas e buscam outros caminhos para aprender
e ensinar.
Quanto aos alunos, vivem intensamente os espaçostempos da escola e afirmam
gostar dela. Deparam-se também com uma organização de horários, de tempos... o
que não impede que sejam felizes. Suas táticas (CERTEAU, 2002) revelam que há
também outros movimentos e ruídos (quase) imperceptíveis que revelam a vida
na/da escola. Alguns deles são os que estão com/neles próprios: a música preferida
que não sai da cabeça e que também movimenta os pés numa silenciosa sincronia,
o coração que bate disparado pela descoberta de uma paixão, os dedos que batem
na mesa, o lápis que cai no chão, a respiração incessante, os risos... como silenciá-
los? Impossível! E são esses ruídos que falam mais alto! É na escola que também
fazem suas amizades, que aprendem e ensinam, que brincam... Os seus corpos
podem trazer marcas de domesticação, mas esses e muitos outros ruídos e
movimentos estão presentes e são marcas do vivido e muito mais do sentido!
Na escola da alegria é possível construir outras histórias. Isso não implica negar o
passado e as suas marcas, mas encontrar outras maneiras, outras práticas que
137
dêem visibilidade aos fragmentos felizes (SNYDERS, 2001) presentes no cotidiano
escolar, realizando um diálogo possível entre os processos instituintes e os
instituídos. E isso não significa negar o saber do professor e da professora e a sua
atuação, mas como diz Linhares (2005), agregar ao saber o sabor com práticas que
não desvencilhem o vivido e o sentido do aprendido.
Não quero dizer com isso que encontrei pessoas conformadas com as situações
adversas nas quais atuam. Pelo contrário, encontrei professoras que questionam as
suas próprias práticas e as da escola, que não aceitam que adentre em suas salas o
que não for para benefício de seus alunos e alunas, que lutam pela melhoria salarial
e de condições de trabalho, que participam das assembléias de sua categoria e de
manifestações e atos públicos, que fazem greve, que não cessam de estudar e de
buscar outras maneiras para ensinar, que não aceitam ter suas vozes cerceadas... e
que resistem a movimentos de engessamento da vida na escola... algumas falantes
e outras caladas ... e que não cessam de sonhar sonhos possíveis (FREIRE, 1992).
Encontrei também alunos e alunas que vivem sob as mais diversas situações tanto
no aspecto afetivo quanto no social ou no econômico. Crianças cercadas de carinho
e crianças privadas dele... crianças que desde muito cedo vêem e ouvem falar de
drogas, de violência... crianças que brincam, que inventam brinquedos e
brincadeiras... crianças que sorriem e que fazem sorrir... crianças que choram e que
fazem chorar... crianças que sonham em crescer, ter profissão, ajudar aos pais...
crianças que inventam maneiras diversas para aprender... crianças que brigam, que
batem, que xingam, que apanham... crianças tímidas, caladas, dóceis,
extrovertidas... crianças que cumprem as tarefas da escola e crianças que não
cumprem... crianças que se constituem num desafio para a escola e seus
profissionais... e que, entre vozes e silêncios, marcam sua presença na escola e
contribuem para fazer dela um espaçotempo de alegria.
Penso que a existência da escola da alegria representa uma possibilidade, afinal
professores, professoras, alunos e alunas que cotidianamente dizem “presente” à
chamada escolar estão deixando nela suas marcas, seus saberes e fazeres. Por
isso, acredito que essa escola esteja bem próxima a nós, seja através de seus
fragmentos felizes (SNYDERS, 2001) ou do próprio desejo de seus atores e atrizes,
138
autores e autoras em querer transformá-la, movimentos que têm revelado a sua
ação política (CARVALHO, 2002).
E, foi convivendo com os sujeitos dessa pesquisa, alunas, alunos, professores e
professoras, que fui descobrindo suas invenções, participando das suas alegrias e
também me emocionando junto com eles. Em suas ações, revelavam também a
multiplicidade de sentidos que a escola tem para cada um. As muitas maneiras
como referem-se aos cotidianos da escola vão dando sentido às suas práticas e aos
modos como narram e vivem esse espaçotempo.
Porém, como disse a professora Alice, nem tudo foram rosas e nem tudo foram
espinhos. Os conflitos narrados e vividos revelam os estranhamentos com o qual as
professoras e as crianças viviam cotidianamente. O medo de ficar reprovado, o
sonho de crescer, trabalhar e dar uma casa aos pais, os tiros no morro, o desejo de
aprender a ler, as brigas entre colegas... entravam também na escola. Mas pelo
portão, dentro de cada corpo, entravam também as brincadeiras, os sorrisos, as
invenções... e era em meio a esse entrelaçamento entre razão e emoção
(MATURANA, 2001a, p. 15) que atuavam também abrindo mão de práticas que
sempre deram certo (será?) e que diante de sua falibilidade necessitavam ser
reinventadas.
As experiências desse grupo foram dando outros sentidos às suas práticas. Dar
nomes às turmas significou questionar o que até então não era questionado, afinal,
porque não escolher um nome que tenha sentido para cada turma? Nesse caminho
também buscam uma pista para romper com a seriação, movimento que ainda
ensaiam.
Os jogos e brinquedos, além da quadra, foram adentrando as salas de aula e as
casas das crianças, dando visibilidade às suas invenções junto aos seus professores
produzindo outras práticas, outras vivências e, também reinventando a alegria na
escola. Isso revela que precisamos mais que um jogo de esconde-esconde no qual
estudantes e seus mestres passam uns pelos outros e nunca se enxergam
(BENJAMIN, 2002, p. 33). O ambiente escolar aspira por relações de solidariedade.
139
Os afetos, as amizades, o cuidado com o outro, aceitando-o como legítimo outro
(MATURANA, 2001a), foram também emoções importantes que deram significados
especiais às ações na escola. E como são as emoções que provocam as ações
(MATURANA, 2001a, p. 22), as práticas estavam também carregadas de
esperanças.
Os bonecos criados também foram suscitando outros movimentos, outras
aprendizagens. As relações na sala de aula e na escola foram tendo outros sentidos
com a chegada desses seres de tecido que foram tecidos a partir de histórias
inventadas pelos alunos e alunas junto a professoras cuja preocupação estava em
suscitar o prazer de aprender e de também ensinar.
É dessa e de tantas outras maneiras que as histórias de alegria da escola são
tecidas cotidianamente. Encontrei, na Escola da Esperança, muitas pessoas
envolvidas nessa escrita e, que ao invés de pincéis, utilizam suas ações, seus
corpos e emoções para tatuar no cotidiano escolar as suas marcas. Seres plurais,
diferentes gentes, das quais Ribeiro (1997) fala com tanta ternura:
Você sabia que dentro da gente mora gente? Verdade!...
Não é só a nossa panelinha de três ou quatro gatos pingados.
Pencas de gente brotam dentro da gente. Brotam parentes
sorridentes e atraentes, conhecidos distraídos e enxeridos,
companheiros fofoqueiros e bisbilhoteiros. O gozado é que
pensamos que somos diferentes de toda essa gente,
mas no fundo somos toda essa massa de gente.
Somos uma geléia de raças, ancestrais, familiares e amigos.
Afinal, o mundo é um só país e nós,
os humanos, somos seus cidadãos.
Somos feitos de gente que se foi
e de gente que ainda não nasceu.
E nem adianta erguer muros, trancar portas, fechar janelas e
fingir que dentro de nós não cabe mais ninguém.
Porque não tem coisa mais gostosa do que abrir o coração
para um novo amigo entrar.
140
E daí receber o novo amigo como manda a etiqueta: servir
cafezinho, bolo de fubá, de chocolate, biscoitos em forma de
oito, frutas, sorrisos,
e, ainda por cima, oferecer a melhor poltrona para ele sentar.
Ah!... Como é bom descobrir que até amigos inventados
podem caber dentro da gente.
Descobrir que todo mundo é como um baleiro. Que ao invés
de balas, guardamos gente dentro da gente. Gente de vários
sabores, gente de vários amores. Epa! Por falar em sabores,
não deixe de experimentar as pessoas de framboesa e as de
hortelã. Elas são deliciosas.
E é acompanhada das marcas que essas gentes deixaram em mim e das marcas
que também deixei nelas que me despeço dessa escola. Saio das salas de aula,
passo entre os corredores, entro na sala das professoras, na biblioteca, na sala de
Arte, nos laboratórios de Informática, de Ciências e de Cartografia, no refeitório,
percorro o pátio e a quadra. Ouço as vozes, os gritos, os risos, as músicas... sinto os
cheiros, os sabores... percebo os humores! Chego até ao portão e, ao passar por
ele, já na rua, enquanto me afasto, ainda ouço um som: incessante, alto, renitente.
De dentro da escola vários sinos tocam não mais pela morte, mas pela reinvenção,
pela alegria e pela esperança da escola. Esses sinos tocam em uníssono junto a
tantos outros sinos de tantas outras escolas. Que histórias estarão contando nessa
melodia? E, então, repito o pedido de Carvalho (2002, p. 40) e o dirijo a Filipe, a
Mafalda, a seus colegas e a todos e a todas que ainda insistem em ignorar a vida e
a alegria que há na escola: Ouçamo-lo [os], por favor!
141
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2005.
148
ANEXOS
Histórias escritas durante a oficina de teatro de bonecos com as turmas União e Arco-íris23
Comida24
Carol_ Gente, vamos lá em casa fazer o trabalho que a professora pediu.
(Eles saem e vão para a casa de Carol)
Priscila_ Ah! Não! Vamos brincar! Depois a gente faz.
Layane_ Calma! Vamos fazer o trabalho primeiro e depois a gente brinca só se
sobrar tempo.
Simone_ Temos que estudar para ficarmos inteligentes!
Nelson_ Liga esse rádio logo. Eu quero ouvir a música. Eu gosto muito de música.
Priscila_ Cala a boca, Nelson!
(Ouvem a música “Comida”)
Priscila_ Eu achei essa música muito chata!
Layane_ Mas eu gostei! Ela é muito interessante porque diz que a gente tem que se
divertir.
Simone_ E o trabalho? Como faremos?
Carol_ Podemos fazer um cartaz para colocar na sala de aula.
Nelson_ Como será esse cartaz? Será desenhado ou colado? Grande ou pequeno?
E será que vai valer ponto?
Simone_ Você fala demais, Nelson! O trabalho não precisa valer ponto. O
importante é termos feito.
Carol_ Vamos começar!23 Algumas histórias têm os nomes repetidos porque as músicas utilizadas nas duas turmas foram basicamente as mesmas. 24 Música cantada pelo grupo Titãs.
149
(Eles saem e voltam com o trabalho)
Nelson_ Até que ficou legal!
Priscila_ Não ficou tão bonito... ficou mais ou menos...
Layane_ Ficou ótimo!
Carol_ Agora, já que nós queremos diversão... Vamos brincar?
Priscila_ Demorou!...
Planeta água25
(Entra Cornélia telefonando para os amigos)
Cornélia_ Alô! Aninha? Olha, vamos nos encontrar na praça para tomar sorvete?
Aproveite e telefone para Camila, Zezinho e Pedrinho.
(Ela sai e retorna na praça para encontrar os amigos)
Cornélia_ Eles estão demorando tanto...
Pedrinho_ Ei! Cornélia!
Cornélia_ Porque você demorou?
Pedrinho_ Eu perdi o ônibus. E por que a Camila não está com você?
Cornélia_ Nós somos irmãs, mas nossos pais são separados. Eu moro com minha
mãe na Enseada do Suá e a Camila mora com papai no centro da cidade.
(Camila chega)
Camila_ Ei, gente!
Joãozinho_ Pedrinho, você não me esperou.
Pedrinho_ Nós moramos em Vila Velha e já estávamos atrasados. Daí eu te deixei
pra trás.
25 Música cantada por Guilherme Arantes.
150
Camila_ E a Aninha?
(Aninha chega)
Aninha_ Ei, gente! Desculpem-me porque atrasei.
Joãozinho_ O que aconteceu?
Aninha_ É que o cano da pia quebrou e eu precisava de alguém para me ajudar,
senão ia desperdiçar muita água.
Joãozinho_ E daí? Depois sua mãe paga a conta.
Cornélia_ Ela pode até pagar a conta, mas a água será desperdiçada.
Joãzinho_ Tem muita água no mundo!
Cornélia_ É o que você pensa. A água do mundo está acabando, Joãozinho.
Pedrinho_ Como assim? A água do mundo está acabando? Você pode explicar?
Camila_ Tive uma idéia! Podemos preparar uma palestra para falarmos sobre a
importância da água. Assim, todos vão se conscientizar de que sem água não existe
vida.
Todos_ Isso mesmo!
(Eles saem, retornam com a palestra e ouvem a música Planeta água)
É!26
(As amigas ouvem uma música)
Gabriela_ Estou com a maior dúvida sobre a música que ouvimos.
Emanuele_ Qual dúvida?
Gabriela_ O que é ser cidadão?
Carolina_ Vamos à biblioteca pesquisar?
(Elas saem e vão à biblioteca. Chegando lá começam a pesquisar. Fernanda chega)
26 Música cantada por Gonzaguinha.
151
Fernanda_ Oi pessoal, tudo bem?
Todas_ Tudo bem!
Fernanda_ Sobre o que vocês estão estudando?
Emanuele_ Sobre a música que nós aprendemos na aula.
Fernanda_ Ah, bem!
Gabriela_ Fernanda, você sabe o que é ser cidadão?
Fernanda_ Acho que sei. Cidadão de verdade é ser compreensivo, educado e
nunca tratar mal as pessoas. Tratar bem as pessoas é importante para ser bem
tratado. Isso é muito bom!
Carolina_ Nós também não podemos xingar, temos que obedecer aos mais velhos
e aos idosos.
Emanuele_ É verdade! Nossa! Mas vocês aprenderam tudo isso!
Carolina_ Eu e a Fernanda viemos ontem aqui na biblioteca.
Emanuele_ Ah! Vocês nem chamaram a gente!...
Carolina_ Nós nem demoramos. Nós viemos rapidinho...
Emanuele_ Isso é que é tirar dúvida... Olhem só o que o dicionário diz sobre o que é
ser cidadão:
“Indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de
seus deveres para com este”.
Gabriela_ Agora eu já entendi! Vou até ouvir a música de novo!
Crianças da terra27
Gabriel_ Pai, posso sair para brincar na rua?
Túlio_ Não, porque é muito perigoso.
Gabriel_ Se a minha mãe estivesse viva, ela deixaria...
Túlio_ Eu já disse que não!
(O pai sai)27 Música cantada pelo grupo que tem esse mesmo nome.
152
Gabriel_ Então eu vou fugir!
(Ele foge e o pai sai para procurá-lo)
Tulio_ Gabriel! Gabriel! Onde está você, meu filho! Eu poderia ter deixado ele
brincar... O que eu fui fazer?
(Chegam as crianças)
Tiago_ O que foi seu Túlio?
Adriana_ Por que o senhor está chamando o Gabriel?
Túlio_ Eu não deixei ele brincar e ele fugiu. Vocês podem me ajudar a procurá-lo?
Adriana e Tiago_ Podemos!
(Eles saem para procurar Gabriel e o encontram escondido no mato)
Tiago_ O que você está fazendo aí?
Gabriel_ Eu fugi de casa porque meu pai não me deixou sair para brincar.
Adriana_ Vamos para casa. Seu pai está procurando você.
Gabriel_ Mas com uma condição: meu pai tem que me deixar brincar!
Tiago_ Lá conversaremos com ele.
(Eles saem e encontram o Túlio)
Túlio_ Meu filho, onde você estava?
Gabriel_ Eu fugi por que você não me deixou brincar.
Túlio_ Você não pode brincar na rua porque é perigoso. Tem muita violência.
Gabriel_ E eu posso chamar meus amigos para brincar em frente de casa?
Túlio_ Sim. Mas eu vou ficar te vigiando.
Gabriel_ Está bem, vamos brincar!
Tiago_ Vamos começar a brincadeira cantando uma música?
Adriana_ É, “crianças da terra!”
153
( Cantam a música)
É bonita demais!28
Guilherme_ Sabiam que eu fui assaltado?
Gabriel_ O que levaram?
Guilherme_ Meu celular e um relógio de ouro.
Estela_ Tem muitas coisas ruins acontecendo...
Estefani_ Também guerras e bombas, drogas e violência.
Alexandre_ E além de roubos e disso tudo, não temos paz e há muita
discriminação.
Guilherme_ O que é discriminação?
Estefani_ É quando alguém fala coisas ruins de você só porque você não é da
mesma cor dele ou dela.
Estela_ Eu faço a minha parte: não destruo telefones públicos, não jogo lixo no chão
e respeito as pessoas...
Guilherme_ Será que só isso basta?
Estefani_ Seria importante que todos fizessem.
Gabriel_ Como convencer as pessoas?
Alexandre_ Vamos fazer uma passeata pela paz?
Todos_ Vamos!
(Eles saem. Voltam com bandeiras e cantam “É bonita demais!”)
Comida
(Entra o prefeito)
28 Música cantada por Zé Vicente.
154
Prefeito_ Meu povo, cidadãos dessa cidade, vocês sabem o quanto eu luto pela
felicidade de vocês! Prometo ajudar a todos! Se precisarem de ajuda, eu ajudarei.
Podem me procurar na prefeitura!
(O prefeito sai e entram as crianças)
Adriano_ Vamos procurar o prefeito já que ele prometeu ajudar.
Carol_ Estamos tendo muitas necessidades. O salário das nossas famílias é muito
pouco.
Letícia_ A nossa escola também tem passado por dificuldades. Faltam professores,
merenda e material escolar.
Caio_ A cidade está poluída e as quadras de esportes estão destruídas.
(As crianças vão conversar com o prefeito)
Adriano_ Prefeito, nós ouvimos o que o senhor disse sobre ajudar nas nossas
necessidades.
Carol_ Nós somos crianças muito carentes e existem outras crianças também na
mesma situação que a nossa.
Letícia_ A nossa escola precisa de reforma, estão faltando professores e também
merenda.
Prefeito_ Crianças, eu gostaria muito de ajudar vocês agora, mas tenho muitos
compromissos. Só poderei resolver todos esses problemas no próximo mandato.
Adriano_ Mas você disse que ia ajudar!
Carol_ Disse que quem precisa poderia vir aqui na prefeitura.
Letícia_ E a qualquer momento, não no próximo mandato.
Caio_ E você acha que assim ganhará a próxima eleição?
Prefeito_ Mas eu não tenho só vocês pra ajudar. Por favor, saiam.
(As crianças saem)
Prefeito (Abraça a mala de dinheiro) _ Esse dinheiro é para comprar minhas casas e
carros. Quem precisa dessas crianças?
155
(Enquanto ele fala, as crianças ficam escondidas vigiando. Depois aparecem)
Adriano_ O que tem dentro dessa mala?
Carol_ Deixe a gente ver.
Prefeito_ É minha...
Caio_ É o dinheiro da prefeitura que está aí dentro!(O prefeito corre com a mala e as crianças vão atrás. Conseguem alcançá-lo e puxam a
mala. Ela abre e o dinheiro cai)
Prefeito_ Desculpem-me! Estou arrependido. Peçam aos seus pais para votarem
em mim na próxima eleição.
Adriano_ Nós não acreditamos mais em você.
Carol_ Vamos fazer um protesto pedindo a sua saída.
Prefeito_ Por favor, não!
(As crianças saem e fazem o protesto)
Adriano_ Conseguimos tirar esse prefeito.
Carol_ Esperamos que o próximo prefeito seja honesto.
Letícia_ Temos muitas necessidades, mas não é só de comida.
Caio_ Queremos comida, casa, amigos, diversão, escola, saber ler e escrever,
liberdade, praticar esporte, viver a vida em paz, com alegria, brincar e exigir nossos
direitos.
Deveres e direitos29
(Crianças entram brincando. Lelê chega e não é bem recebida)
29 Música cantada por Toquinho.
156
Lelê_ Posso brincar com vocês?
Kaká_ Não!
Bruno_ Você é pobre! É diferente da gente e é muito chata também.
Bruna_ Se você entrar na brincadeira, eu saio.
(Eles brigam e Lelê sai chorando. Gabriel está passando e vê a confusão)
Gabriel_ O que está acontecendo? Por que você está chorando?
Lelê_ Porque eles não querem me deixar brincar, só porque sou pobre.
(Lelê vai para casa e Gabriel conversa com as crianças)
Gabriel_ Por que vocês não querem brincar com ela?
Bruna_ Porque ela é pobre e chata.
Kaká_ A gente pode escolher com quem brincar.
Gabriel_ Vocês não podem ter preconceito. Todos nós temos as nossas diferenças.
Precisamos aceitar as pessoas como elas são. Pensem nisso, meninos!
Bruno_ Vamos na casa da Lelê para nos desculparmos.
(Eles saem e chegam na casa da Lelê e a encontram chorando)
Bruna_ Lelê, desculpe-me pelo jeito que te tratei.
Kaká_ Quer ir brincar conosco?
Lelê_ Quero sim!
Bruno_ Aprendemos que não podemos julgar as pessoas pela aparência. Todos
nós temos deveres e direitos.
Kaká_ Nós sabemos uma música que fala sobre isso. Vamos cantar?
Todos_ Vamos!
(Cantam a música)
157
Ilumina30
Jorge: Priscila, vamos à igreja?
Priscila: Vamos!
Jorge: Então arrume as crianças.
(Eles saem para arrumar as crianças e retornam na igreja)
Jorge: A minha prece de pai é que meus filhos sejam felizes.
Priscila: Minha prece de mãe é que meus filhos vivam em paz.
Jaqueline: Minha prece é que eu ganhe um rádio.
Júnior: Minha prece é que eu quero ganhar uma bicicleta.
Juliana: Minha prece é que eu ganhe uma boneca.
Jorge: Não é pra pedir isso!
Priscila: É pra pedir para sermos iluminados.
Júnior: Mãe, será que a gente já foi iluminado?
Priscila: Se Deus quiser!
Jaqueline: Papai, o sol já está iluminando a gente?
Jorge: Não, é iluminar de outra maneira.
Juliana: Como assim?
Jorge: É Deus quem ilumina a gente, nossa família e os vizinhos.
Priscila: Se ele não iluminar, o mal vem para o nosso lado.
Juliana: Então, vamos voltar às nossas preces.
(Cantam ilumina. Depois de algumas horas, a missas acaba )
Temos que ter paz
Senadora_ Nós temos muita coisa para conversar.
Prof. Pedro_ Precisamos de segurança nas escolas.30 Música cantada pelo Padre Zezinho.
158
Profª Cecília_ Os alunos não estão mais respeitando os direitos uns dos outros.
João Coser_ É por isso que estamos aqui para discutir nesta assembléia a
formação de um novo partido político: o PSC- Partido Social da Comunidade.
Prof. Pedro_ Está mais parecendo Partido com sigla de escola.
Profª Cecília_ Vou ligar a Tv para sabermos as notícias de hoje.
Fátima Bernardes_ Boa noite! Estamos começando o Globo Notícias. Hoje está
acontecendo uma reunião para a formação de mais um partido político: o PSC-
Partido Social da Comunidade que tem representantes da política e também da
educação.
Senadora_ Já estão falando do nosso partido tão rápido assim?
Fátima Bernardes_ O mundo inteiro está presenciando muitas tragédias que nunca
aconteceram com tanta intensidade: crimes, assaltos, assassinatos, bombas
explodindo e destruindo casas e matando pessoas, acidentes de trânsito, aviões
caindo, corrupção na política, no futebol, o surgimento de doenças... Estamos
vivendo num mundo de muitas guerras e drogas. Voltaremos à tarde com mais
notícias. Esperamos que sejam melhores.
(Cecília desliga a televisão e a coloca em outro lugar)
João Coser_ É verdade! Precisamos mudar esse mundo. Criamos esse partido para
sonharmos juntos com um mundo diferente. E tomara que esse sonho se realize!
Prof. Pedro_ Isso mesmo! Até nas aulas de capoeira podemos aprender a nos
respeitar. Por isso, vamos fazer uma revolução chamando todas as pessoas para
sonhar conosco.
Senadora_ Precisamos de paz no mundo, paz nas cidades, nas escolas, nas casas,
na natureza... Precisamos de paz!
Profª Cecília_ Há uma música com esse tema. Podemos começar chamando todos
para cantar conosco.
(Cantam a música “Paz” de Abdulla)
Prece da criança
Jamilly_ Pessoal, precisamos ensaiar!
Jany_ É mesmo! Escolhemos a música “Ilumina” do Padre Zezinho.
159
Daiane_ Estou com medo de apresentar porque ensaiamos pouco.
Jonathan_ Eu não quero pagar mico, não!
Lucas_ Mas tem que ser logo porque eu quero brincar.
Jamilly_ Então, a gente se encontra mais tarde na pracinha!
(Eles saem e retornam na pracinha)
Jany_ Tem gente que ainda não chegou!
Daiane_ Esse pessoal marca horário e não chega.
Jamilly_ Oi pess… (tropeça e cai)... ai!
(Jonathan e Lucas chegam atrasados e brincando)
Jany_ Vamos ensaiar logo!
Jamilly_ Pombas! Vocês não estão vendo que eu caí, não?
(Os meninos riem dela)
Jany_ Chega!
(Eles começam a ensaiar, mas acontecem muitas brincadeiras)
Daiane_ Agora, vamos para a escola porque precisamos enfeitar as garrafas.
(Retornam com as garrafas enfeitadas e com uma vela dentro de cada uma delas)
Jany_ Pessoal, nós preparamos essa música para o dia da família.
(Eles começaram a dançar numa grande roda. No meio da música Jonathan, sem querer,
queima o cabelo de Jany e ela grita)
Jany_ Ai, queimou meu cabelo!
Jamilly_ Caraca! Chama o bombeiro!
(Eles correm de um lado para o outro e depois se acalmam)
160
Jamilly_ Calma, Jany, isso tudo vai passar! Depois seu cabelo cresce de novo!
Jany_ Meu cabelo, snif...
Daiane_ Calma, deixa de ser chatinha.
Jonathan_ Foi sem querer...
Lucas_ É, né... foi sem querer querendo...
Jonathan_ Foi sem querer mesmo! Eu não vi nada!
Jamilly_ Chega! Tá todo mundo olhando! Vamos terminar essa apresentação!
Jany_ Mas sem queimar cabelo!
(Eles terminam a apresentação)
A menina que não sabia desenhar
Henrique_ Oba! Hoje tem aula de arte!
Júlia_ Nós vamos fazer trabalhos sobre a cultura afro!
Luana_ Esse é um tema muito interessante!
Carlos_ E você Beatriz, o que acha?
Beatriz_ Eu não gosto das aulas de arte!
Henrique_ Mas você e a Thaís são tão estudiosas e têm boas notas!
Júlia_ E por que você não gosta dessa aula?
Beatriz_ Por que a aula é chata!
Carlos_ Mas é tão bom ir para a sala de arte! Lá não é como é a sala de aula! Tem
muitas coisas novas para a gente ver!
Beatriz_ Eu não quero falar sobre isso! (Ela sai deixando os colegas intrigados)
Luana_ O que será que ela está nos escondendo?
Júlia_ Eu acho que ela não falou a verdade!
Henrique_ Vamos, vai começar a aula!
(Eles saem e retornam com os desenhos. Beatriz fica calada e não quer mostrar o seu)
Carlos_ Vamos mostrar os nossos desenhos.
161
(Eles mostram os desenhos)
Luana_ E o seu Beatriz? Mostra pra gente!
Beatriz_ Eu não quero!
Henrique_ Deixe a gente ver!
Júlia_ Eu quero ver!
(Júlia toma o desenho de Beatriz)
Beatriz_ Por que você fez isso, Júlia? Eu não sei desenhar!
(Ela chora e os colegas tentam consolá-la)
Carlos_ Não fique assim, nós vamos te ajudar!
Henrique_ É vamos brincar com as cores que você vai ver que até já sabe
desenhar.
(Eles saem. Começa a música “Arco-Íris”, cantada por Xuxa. Eles retornam e dançam com
papéis, lápis, tinta, pincel)
Carlos_ E aí, Beatriz? Viu como é fácil e divertido?
Júlia_ Deixe-me ver o seu desenho.
Beatriz_ Não, ainda não! Mas agora eu já gosto da aula de arte.
Henrique_ E agora, o que faremos?
Luana_ Vamos brincar!
(Eles se despedem)
A família que não se respeitava
Era uma vez uma família que brigava muito e por qualquer coisa. Um dia, o sogro
estava chegando em casa e todos estavam discutindo.
162
(Entram bonecos brigando)
Ayrton_ O que é isto? O que está acontecendo nesta casa? Que família é essa?
Um está contra o outro! Um fazendo mal e falando mal do outro!
Bruno_ Cheguei do trabalho e não tinha nada na geladeira. Cadê o refrigerante que
eu comprei antes de ir pro trabalho?
Bianca_ Foi Breno!
Bianca _ Foi Daniele!
Daniele_ Na verdade foi todo mundo!
(Eles tornam a brigar)
Ayrton_ Então, cada um dê uma quantia em dinheiro para comprar outro
refrigerante.
(Eles não aceitam e tornam a brigar)
Ayrton_ A partir de hoje, compraremos refrigerante somente no horário do almoço
ou do jantar.
(Os outros saem e Ayrton fica sozinho)
Ayrton_ Tenho que fazer alguma coisa para que nossa família fique sempre unida e
que cada um respeite o outro e não brigue por qualquer coisa. Mas o que faço? Será
que existe outra família igual à nossa? Já tive uma idéia!
(Ayrton sai)
Daniele_ Vovô! Vovô! Cadê o vovô?... Nossa! Um bilhete!... Mãe, tem um bilhete
aqui! Parece que é sobre o vovô!
Bianca _ (Lê o bilhete) Meu Deus! Vamos chamar o seu pai! O vovô foi seqüestrado!
(Elas saem e retornam com Bruno)
163
Bruno_ Como isso aconteceu?
(Breno chega)
Breno_ O pai foi mesmo seqüestrado!
(Eles choram e lamentam o que aconteceu. Ayrton que estava escondido aparece)
Ayrton_ Que família unida! Estou muito feliz em saber que vocês agora entenderam
que as pessoas da família precisam umas das outras. Temos muitas diferenças mas
podemos nos unir em busca da paz e seremos felizes.
Romeu e Julieta
(Entram pai e filho, mãe e filha. Eles não se olham e não conversam)
Juliana_ Filha, não vamos nos misturar com essas pessoas pobres.
Julieta_ Mamãe, não é assim. Você está errada.
Juliana_ Eu não estou errada, não! Eu estou super certa!
(Eles ficam distantes)
Leonardo_ Essa gente rica é muito metida! Não quero que você se misture com
elas.
Romeu_ Eu não acho não, pai!
Leonardo_ Mas eu acho sim.(Eles saem e não se falam. Romeu retorna com Filipe)
Filipe_ Romeu, eu conheço uma menina muito legal, mas ela é muito rica.
Romeu_ Então eu não quero ser amigo dela. Meu pai diz que não devemos nos
misturar.
Filipe_ Mas ela é legal. Você vai gostar de conhecê-la.
164
Romeu_ Está bem.
(Julieta se aproxima e eles se apresentam)
Julieta_ Vamos ao shopping?
Romeu_ Vamos!
(Eles demoram muito e se perdem. Os pais ficam preocupados depois que são avisados por
Filipe que eles se perderam)
Leonardo_ Onde está esse menino?
Juliana_ A Julieta está demorando!
(Um não fala com o outro)
Filipe_ Sr. Leonardo, Sra. Juliana, Romeu e Julieta sumiram!
(Eles ficam desesperados)
Juliana_ O seu filho sumiu com a minha filha!
Leonardo_ É mentira! Eu proibi meu filho de conversar com ela.
Filipe_ Eu acho que não é culpa de ninguém. Nós temos que encontrá-los.
(Eles saem para procurar)
Leonardo_ Romeu, filho meu! Onde você se meteu?
Juliana_ Julieta! Julieta!(Eles se encontram)
Leonardo_ Meu filho!
Juliana_ Minha filha!
Julieta_ Mamãe, me deixe conversar com o Romeu!
Romeu_ Pai, qual é o problema da Julieta ser minha amiga?
165
(Eles se olham e balançam a cabeça dizendo que sim. Todos se abraçam)
Direitos e deveres (Racismo)
Um dia as crianças brincavam durante o recreio na escola. A mãe de Bruna passa
pelo portão e a chama.
Mãe Simone_ Pare de brincar com esses negros e com esse garoto todo diferente.
Bruna_ Mas eu quero brincar com eles porque são meus colegas.
Mãe Simone_ Se você continuar brincando com eles ficará de castigo.
(Bruna sai triste e encontra novamente os amigos)
Alan_ O que aconteceu? O que a sua mãe falou para você?
Bruna_ Minha mãe disse pra eu não brincar com vocês porque vocês são negros e
o Alan se veste de um jeito diferente.
Felipe_ E você vai brincar sozinha? Bruna, fale pra sua mãe que racismo é crime e
dá cadeia.
Bruna_ Eu tenho que brincar sozinha agora.
Fernando_ Eu trouxe um CD. Vamos dançar?
(Eles brincam, dançam e Bruna fica sozinha. Todos vão para suas casas. Bruna conversa
com sua mãe)
Bruna_ Mãe, hoje fiquei sozinha.
Mãe Simone_ Por que, filha?
Bruna_ Por que você não me deixou brincar com meus colegas.
Mãe Simone_ E não vai mesmo!
(Bruna sai chorando e a mãe vai atrás dela)
166
Bruna_ Cansei de ficar sozinha. Quero brincar com vocês aqui no parque.
Gabriela_ Mas sua mãe não deixou.
Fernando_ Com o tempo ela vai aceitar, afinal todos nós somos diferentes uns dos
outros e ninguém é igual.
(Bruna brinca com os colegas, escorrega e cai num buraco)
Felipe_ Bruna, o que aconteceu?
Bruna_ Tropecei e caí nesse buraco!Chamem a minha mãe!
(Todos saem e Gabriela surge conversando com a mãe de Bruna)
Gabriela_ Dona Simone!
Mãe Simone_ O que você está fazendo aqui, sua negra?!
Gabriela_ Eu vim aqui dizer que a sua filha caiu num buraco e não consegue sair.
Mãe Simone_ Leve-me onde ela está.
(As duas vão para o parque e encontram os demais)
Mãe Simone _ Filha, como está?
Bruna _ Eu estou com a perna doendo e não consigo sair daqui.
(A mãe tenta tirar a filha do buraco, mas não consegue. Então pede ajuda)
Mãe Simone _ Meninos, vocês podem me ajudar?
(Um segura a mão do outro e conseguem tirá-la)
Mãe Simone _ Obrigada, crianças. Desculpem-me porque eu chamava vocês de
negros e você, Alan, de diferente. Mas eu não conseguiria salvar minha filha sem
vocês. Prometo que vou deixar vocês brincarem com a minha filha. Vocês são
amigos dela e meus também.
167
Fernando _ É isso aí, Dona Simone! Viver em harmonia com as nossas diferenças é
bem melhor. Vamos todos brincar!
Crianças da terra
Era uma vez quatro crianças de países diferentes. Todas elas foram para um país
chamado Brasil para fazer parte de um coral.
No Brasil, o encontro foi na escola da Esperança.
Tiago _ Olá! Sejam bem-vindos!
Fred _ Hello! Good morning!
Bintou _ Bom dia! Obrigada!
Miuky _ Bom dia!
Tiago _ Fred, podemos falar em português porque eu sei que todos vocês falam a
nossa língua.
Miuky _ Assim não tem graça! Eu sei falar português, mas acho tão engraçado
quando as pessoas não entendem nada do que digo...
Bintou _ Mas é muito chato rir das pessoas...
Miuky _ Eu não acho.
Fred _ Tiago, você tem razão. Miuky, e se fosse com você? Você gostaria que
rissem porque não entende a língua de outra pessoa?
Miuky _ Claro que não!
Fred _ Então, não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você.
Tiago _ Vamos parar com a discussão e sermos amigos?
Todos _ Sim.
Bintou _ Estamos falando há um tempão... qual música cantaremos?
Fred _ É mesmo! Ainda não decidimos!
Tiago _ Eu conheço uma música chamada “Crianças da Terra”. Nós podemos
cantá-la.
Miuky _ Então ensina pra gente!
Tiago _ Vamos até a sala de ensaio e lá eu mostro pra vocês.
168
(Eles saem e retornam pra cantar e tocar)
Fred _ Nós gostamos tanto da música que resolvemos também tocá-la.
Miuky _ Tenho certeza que todos gostarão.
Bintou _ Essa música é linda! Somos crianças da Terra e queremos um mundo
melhor.
(Eles cantam e tocam)
169