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OS FIOS DA ARTE E DA COMUNICAÇÃO NOS LABIRINTOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES Monica Fantin, UFSC 1 Resumo Pensar a Educação Infantil a partir de diversos olhares é, mais do que uma necessidade, um desaio e, dependendo do lugar em que queremos chegar, escolheremos os caminhos para tal. Ainal, a Educação Infantil pode ser pensada a partir de suas relações com a Sociologia, Filosoia, Antropologia, Psicologia, Arte, Comunicação; a partir de olhares e falas das crianças a respeito de suas experiências nos espaços institucionais; a partir dos proissionais e seus cursos de formação inicial e continuada, e muitos outros pontos de vista. O olhar escolhido neste artigo é o da formação inicial, que se intercruza com os demais a im de melhor circunscrever a questão, problematizar e apontar suas relações. Ao situar alguns desaios no contexto das reformas curriculares dos cursos de Pedagogia, o artigo problematiza algumas lacunas existentes e busca, na imagem do labirinto, os ios da arte e da comunicação para tecer outra perspectiva de formação. Palavras-chave: formação de professores; educação infantil; arte; comunicação; mídia-educação 1. DOS LABIRINTOS DA FORMAÇÃO Reletir sobre a formação do proissional da Educação Infantil para crianças implica pensar o peril deste proissional e, para tal, há que caracterizar os objetivos que se pretende 4 Professora Adjunta do Departamento de Metodologia do Ensino e do Programa de Pós-graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação e Comunicação, da Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância, Comunicação e Arte, UFSC/CNPq. [email protected]

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OS FIOS DA ARTE E DA COMUNICAÇÃO NOS LABIRINTOS DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Monica Fantin, UFSC1

ResumoPensar a Educação Infantil a partir de diversos olhares é, mais do que uma necessidade, um desai o e, dependendo do lugar em que queremos chegar, escolheremos os caminhos para tal. Ai nal, a Educação Infantil pode ser pensada a partir de suas relações com a Sociologia, Filosoi a, Antropologia, Psicologia, Arte, Comunicação; a partir de olhares e falas das crianças a respeito de suas experiências nos espaços institucionais; a partir dos proi ssionais e seus cursos de formação inicial e continuada, e muitos outros pontos de vista. O olhar escolhido neste artigo é o da formação inicial, que se intercruza com os demais a i m de melhor circunscrever a questão, problematizar e apontar suas relações. Ao situar alguns desai os no contexto das reformas curriculares dos cursos de Pedagogia, o artigo problematiza algumas lacunas existentes e busca, na imagem do labirinto, os i os da arte e da comunicação para tecer outra perspectiva de formação.Palavras-chave: formação de professores; educação infantil; arte; comunicação; mídia-educação

1. DOS LABIRINTOS DA FORMAÇÃO

Rel etir sobre a formação do proi ssional da Educação Infantil para crianças implica pensar o peri l deste proi ssional e, para tal, há que caracterizar os objetivos que se pretende

4 Professora Adjunta do Departamento de Metodologia do Ensino e do Programa de Pós-graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação e Comunicação, da Universidade Federal de Santa Catarina. Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo Infância, Comunicação e Arte, UFSC/CNPq. [email protected]

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alcançar no trabalho desenvolvido com educação de crianças. Ao considerar a diversidade de instituições, as modalidades de atendimento e as diferentes ênfases na educação infantil, poderíamos dizer que não existe uma, mas muitas “educações”, e consequentemente, não existe um peri l, mas muitos peri s da i gura deste proi ssional. Diante de tal complexidade, os peri s, papéis e identidades dos proi ssionais da educação para a infância serão plurais: professores, pesquisadores, coordenadores. Assim, em vez de um peri l especíi co, poderíamos falar de áreas de competência proi ssional que sugerem diversos peri s e identii cações que vão sendo delineados a partir das transformações provocadas pelas demandas da sociedade.

Um dos desai os na busca da qualidade da Educação Infantil é o da formação e valorização do proi ssional que atua na área, o que faz da formação inicial um dos indicadores da qualidade que a educação pode ter. No campo da Educação Infantil, Bondioli (2004) discute a qualidade negociada e destaca os indicadores para a creche articulados com a natureza formadora dessa qualidade, de onde podemos inferir diversos aspectos para pensar um projeto de formação.

Se na década de 1990 discutíamos a questão da formação a partir das propostas contidas na Política de Formação do Proi ssional de Educação Infantil (BRASIL,1994), hoje precisamos avaliar tais propostas e suas atualizações. Além de estabelecer diretrizes e estratégias da formação inicial e continuada do proi ssional de Educação Infantil, aquelas propostas analisavam a qualidade da formação oferecida e os mecanismos de formação que deveriam contemplar a dupla função de cuidar e educar. Hoje essa dupla dimensão pode ser entendida apenas como educar, como sugere Tiriba, perguntando: “se educar e cuidar são dois polos que precisam estar integrados, ao invés de assumirmos o binômio, não seria o caso de questionarmos a manutenção da dualidade, propondo, simplesmente, educar?” (2005, p.5).

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A pesquisa em Educação Infantil tem mostrado a necessidade de abrir horizontes e ampliar os campos teórico-práticos da formação de seus proi ssionais. Sintonizados com perspectivas socioculturais, alguns estudos apontam os desai os expressivo-comunicativos, ético-estéticos, afetivo-cognitivos na formação (OSTETTO E LEITE, 2004).

Para pensar a formação inicial de professores nesta perspectiva, poderíamos retomar o entendimento de formação como política cultural, proposto por Kramer (1994, p.28) ou discutir a “formação cultural do professor”, sugerido por Guimarães, Nunes e Leite (1999, p.169). Em ambas as possibilidades, é necessário pensar a formação de crianças e professores numa perspectiva integrada de educação, cultura e arte na sociedade contemporânea. Isso implica pensar esta relação no constante movimento entre continuidades e rupturas, efêmero e permanente, e na normatização e transgressão desses elementos que vêm se construindo nas diferentes reformas curriculares.

E para entender as rupturas presentes nessa relação entre educação, cultura e sociedade, o método como desvio proposto por Benjamin pode ser um instrumento fundamental, pois nele,

renunciar ao curso ininterrupto da intenção é sua primeira característica. Incansavelmente, o pensamento começa sempre de novo, volta minuciosamente à própria coisa. Esse incessante tomar fôlego é a mais autêntica forma de existência da contemplação (BENJAMIN,1985, p.50).

Essa renúncia à discursividade linear em proveito de um pensamento hesitante, que volta ao seu objeto por diversos caminhos e desvios pode ser uma imagem do atual momento da formação em diferentes cursos de Pedagogia, que diante das implicações das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia, parece que ainda encontra-se perdida

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diante dos peri s proi ssionais, suas áreas de competências e suas diversas possibilidades.

Ao recuperar alguns elementos históricos das Diretrizes Básicas para uma Política Nacional de Formação de Proi ssionais de Educação Infantil nos anos 90, observamos que o conhecimento técnico para realizar atividades diversas e interagir com crianças destacava as atividades expressivas a partir da referência ao trabalho de formação desenvolvido na abordagem da Reggio Emilia. Ao enfatizar a tarefa da universidade na pesquisa sobre o conhecimento sistematizado e interdisciplinar acerca do desenvolvimento de crianças dentro de contextos da realidade brasileira, Oliveira destacava a necessidade de confrontar tais conhecimentos com aqueles construídos pelos educadores em suas experiências de vida e em sua formação, argumentando que “a formação daqueles proi ssionais em nível superior necessita aliar um estudo teórico-crítico com uma formação em pesquisa” (1994, p.67).

Naquela mesma época, ao sugerir alternativas de estruturação curricular para a formação de proi ssionais da Educação Infantil, Kramer apresentava três polos de sustentação do currículo: 1) conhecimentos cientíi cos básicos (língua portuguesa, matemática, ciências naturais e sociais) e os necessários para trabalhar com crianças (saúde, psicologia, história, antropologia, estudos da linguagem, etc.); 2) processo de desenvolvimento e construção de conhecimento do proi ssional; 3) valores e saberes culturais dos proi ssionais produzidos a partir de sua história e contexto de vida, etnia, classe, etc. Para ela, “o eixo norteador seria a prática efetiva aliada à constante rel exão crítica. E o que torna possível essa rel exão é a linguagem, central no currículo porque central na vida humana” (1994, p.27).

Hoje não deixa de ser curioso que, ao mesmo tempo que se destacava a abordagem da Reggio Emília, notadamente uma escola de infância com atividades expressivas baseadas no trabalho com as múltiplas linguagens, tal dimensão não tenha sido contemplada no polo de sustentação proposto

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para a estruturação curricular da formação dos proi ssionais da Educação Infantil, enfatizando-se apenas a linguagem no singular. Do mesmo modo, é instigante a ausência da Arte e da Comunicação como campos de conhecimento básicos e necessários na sustentação do currículo para a formação que pretendia “redimensionar a política educacional brasileira como política cultural” (KRAMER, 1994, p.28), a i m de articular a formação proi ssional com a política nacional de leitura e com a formação de leitores.

Se ampliarmos o conceito de leitura para além da palavra escrita e considerarmos a importância que as imagens possuem na vida das pessoas na sociedade contemporânea, podemos pensar que a ausência da Arte na estruturação da proposta do currículo para a formação inicial, de certa forma, foi e está sendo parcialmente suprida como demanda necessária nos cursos de formação permanente. O que também não deixa de ser interessante, pois, na medida que aparece como necessidade da prática trazida por seus proi ssionais, indica que é algo que deve ser teoricamente pensado, rel etido e sistematizado na formação inicial. A esse respeito, se considerarmos que grande parte de estudantes dos cursos de Pedagogia já trabalha como professores, a formação inicial também pode ter sentido de formação permanente que dialoga com a prática, e participa de elaboração de pautas e agendas a serem discutidas na formação.

Nesse sentido, poderíamos analisar em que medida o documento proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia, através do Parecer 3/2006, preenche certas lacunas das discussões anteriores percebidas no campo da prática pedagógica. Ao estabelecer as diretrizes para a formação inicial e a docência na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o documento enfatiza que o curso de Pedagogia, através de estudos teórico-práticos, da investigação e da rel exão crítica, propiciará o planejamento, a realização e avaliação das atividades educativas e “a aplicação ao campo da educação, de contribuições, entre outras [grifo

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meu], de conhecimentos como o i losói co, o histórico, o antropológico, o ambiental-ecológico, o psicológico, o linguístico, o sociológico, o político, o econômico e o cultural” (parágrafo II do inciso dois no artigo 2º). Esta pluralidade de conhecimentos seria fundamentada em “princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética” (artigo 3º).

Poderíamos perguntar em que medida tal fundamentação proposta pelo documento - ainda marcada pelos ideais do pensamento moderno e da racionalidade iluminista -, realmente instrumentalizará o estudante de Pedagogia quando não considera a Arte (campo das múltiplas linguagens) como campo de conhecimento e fruição necessário no currículo, e quando a situa apenas como princípio de “sensibilidade afetiva e estética”. Embora haja uma brecha nas contribuições das áreas dos conhecimentos através da ressalva “entre outras”, em um momento em que a necessidade de trabalhar com as múltiplas linguagens é quase senso comum na área da educação, a ausência da Arte contemplada com estatuto próprio nesta fundamentação revela que a hierarquização e a hegemonia do conhecimento cientíi co parecem legitimar apenas a valorização da racionalidade e da objetividade do pensamento na formação, continuando a reproduzir as dicotomias entre teoria e prática, ação e rel exão, corpo e mente, razão e sensibilidade, etc. Por outro lado, também não se trata de considerar que só o conhecimento sensível seja sui ciente - pois aí estaríamos também reproduzindo a dicotomia -, e sim que ambos estejam contemplados e articulados dialeticamente nas áreas de conhecimento como o são nas diversas dimensões da vida.

Nesse mesmo raciocínio, considerando que não existe educação sem comunicação e que a nova realidade sociocultural da sociedade da comunicação - caracterizada pelo protagonismo da mídia - tem apresentado imensos desai os à formação de educadores e à educação de crianças

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que vivem nesta sociedade (FANTIN, 2008), como explicar o motivo de a Comunicação também não estar contemplada no documento como um campo de conhecimento necessário para pensar, fundamentar e interpretar a educação?

Entendendo que a arte está ao lado da ciência, já que ambas trabalham com imaginação e criação, e que a sociedade contemporânea está cada vez mais pautada pela comunicação, trazendo um novo paradigma para pensar a educação, que é a mídia-educação, a lacuna no documento pode comprometer a formação inicial de professores da Educação Infantil. Ai nal, as linguagens das mídias não apenas promovem a ampliação de redes de comunicação em diversos níveis e usos contextuais como asseguram diversas formas de interação das pessoas entre si e com o conhecimento.

Desta forma, contextualizar uma sociedade em mudança como um pressuposto da formação signii ca pensar o contexto da Comunicação, as formas de interação das crianças com as mídias e as tecnologias e as possibilidades de apropriação das formas e dos conteúdos dos meios na construção da expressividade. E se essas questões devem ser trabalhadas com as crianças, consequentemente deve ser uma pauta a constar na formação de professores.

Diversas experiências educativas têm problematizado a expansão das redes e das linguagens dos meios de comunicação, propondo os sistemas simbólico-culturais na forma de organização do conhecimento. A esse respeito, Malaguzzi considera as linguagens, ciências e artes articuladas entre si, e destaca as mensagens, formas e mídias como campo importante de experiência educativa (1999, p.79) Assim, não deixa de ser curioso que as diretrizes do referido parecer não contemplem esta questão ligada ao campo da Comunicação como um conhecimento importante na formação do professor. Tal ausência revela uma lacuna que pode parecer resistência, mas que não pode passar indiferente para quem se propõe a pensar a formação articulada com as questões da sociedade contemporânea.

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Diante disso, quando me rei ro às diretrizes que apresentam caminhos ao mesmo tempo que parecem estar perdidas, o faço diante da percepção de algumas contradições, incoerências e omissões que o documento revela. Por exemplo, no artigo 5º, o documento diz que os egressos do curso de Pedagogia devem estar aptos a “aplicar modos de ensinar diferentes linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geograi a, Artes, Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às diferentes fases do desenvolvimento humano” (item VI do artigo 5º); e “relacionar as linguagens dos meios de comunicação à educação, nos processos didático-pedagógicos demonstrando domínio das tecnologias de informação e comunicação adequadas ao desenvolvimento de aprendizagens signii cativas” (item VII). No entanto, ao mesmo tempo que não apresenta a Arte e a Comunicação como campos do conhecimento que fundamentam a educação no artigo 2º, no artigo 5º, enfatiza que os egressos do curso deverão saber aplicar as linguagens da arte e relacionar as linguagens dos meios de comunicação à educação. E esta é uma pequena amostra da incoerência que o documento revela, demonstrando que, por vezes, certas diretrizes da formação parecem estar perdidas.

No entanto esse estar perdido pode não ser de todo ruim. Se, por um lado, reconhecer que, ao assumir desvios e descaminhos, corre-se o risco de perder-se, por outro, só pode se achar quem está perdido. Considerando que o mito pode ser um “componente decisivo da criatividade primária do ser humano”, como diz Bolognese (1988, p.17), diversos autores têm trabalhado com os inúmeros sentidos que os mitos podem ter na educação (BARTHES, 1999, CAMPBELL, 1990). Na mitologia grega, um arquétipo do perder-se está relacionado ao labirinto do Minotauro, e trazer esta imagem para aludir à falta (ou excesso) de caminhos pode ser sugestivo. Por mais usada que seja a metáfora, ela continua poderosa, não só porque revela e esconde caminhos ou porque apresenta o herói que deve encontrar a saída vencendo o perigo representado pela

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instigante i gura do Minotauro, mas sobretudo porque o herói o faz a partir da ajuda dos i os de Ariadne. E essa imagem leva a perguntar como a formação tece seus fundamentos, didáticas e metodologias numa espécie de i os em cores, tipos e texturas para encontrar saídas de certos labirintos da formação inicial?

Outro sentido que pode ser dado à imagem do labirinto é entendê-lo como metáfora das relações temporais entre presente, passado e futuro, e das relações que o sujeito tem consigo mesmo, e esse motivo do labirinto é usado por Benjamin para ilustrar a transformação de si. Referindo-se à criança nesse percurso, no limiar do labirinto, ela não manifesta medo, pois o desejo de exploração predomina como se soubesse, confusamente, que só poderá se reencontrar se ousar perder-se, destaca Gagnebin (1994).

O labirinto não é apenas uma estrutura onírica vertiginosa, mas constitui o avesso escondido mais signii cativo das obras culturais, das cidades, dos livros, das artes. A criança penetraria nesses espaços como o adulto na cidade desconhecida, para se perder num “labirinto de histórias” e seguir seus corredores subterrâneos que podem levar a viagens surpreendentes, revelando que a inversão do olhar de crianças, artistas e poetas, e suas atenções pelos detalhes do processo, dos bastidores, dos restos e dos rastros podem ensinar muitas coisas. O labirinto também pode revelar a estrutura misteriosa do desejo humano que não acaba com a conquista de sua meta, mas que tem prazer em inventar e reinventar desvios, imagens, gestos, palavras, sendo o “outro lado” da cultura.

Nesse sentido, perder-se e achar-se nos caminhos e desvios é particularmente especial no trabalho com crianças, pois esse é seu movimento, seu caminhar, seu i car parada, seu esperar escondida, seu estar atrasada, eni m, sua hesitação. E a formação de professores para trabalhar com crianças muito tem a aprender com esse movimento, pois

o i o de Ariadne que guia as crianças no labirinto não é só o da intensidade do amor e do desejo; também é o i o da linguagem, às vezes entrecortado, às vezes rompido, o i o

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da história que nós amarramos uns aos outros, a história que lembramos, também a que esquecemos e a que, tateantes, enunciamos hoje (GAGNEBIN, 1994, p.105).

Em face a essa relação passado-presente-futuro que a imagem do labirinto também remete, como possibilidade de entender a “história a contrapelo”, como diz Benjamin, temos diversas possibilidades de olhares: um olhar antropofágico para propostas desenvolvidas em outros momentos e contextos socioculturais que permitiram consideráveis avanços na área; um olhar questionador para a proposta de formação atual a partir da ressignii cação de suas políticas de formação anteriores; um olhar de estranhamento para a formação inicial a partir das demandas da formação permanente antecipando uma prática futura; e um olhar memória para o passado através da infância a i m de entender a relação criança-cultura mediada pela experiência de estudantes-professores numa perspectiva que também pode se apresentar como um desvio metodológico para pensar a elaboração de uma crítica desta formação na cultura contemporânea.

Diante de tais olhares e imagens, poderíamos pensar nos i os da Arte e da Comunicação como parte da meada composta para mostrar algumas saídas dos labirintos da formação inicial. Entre tantos, destacamos os i os da arte e das múltiplas linguagens como saberes e fazeres tecendo outras práticas de formação e signii cação e desenhando outros espaços e coni gurações para a sala de aula; e os i os da comunicação e da mídia-educação indicando novas formas de mediações culturais que coni guram novos cenários e desai os.

2. A TESSITURA DA ARTE E SUAS MÚLTIPLAS LINGUAGENS

A partir de experiências com formação de professores por meio de disciplinas-oi cinas, focalizando a rel exão sobre as linguagens como eixo da organização pedagógica na Educação Infantil, podemos discutir algumas possibilidades a respeito

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das múltiplas linguagens na formação inicial, reconi gurando a ideia do espaço da sala de aula.

Ao considerar as formas em que as crianças se expressam, faz-se necessário problematizar as linguagens utilizadas pelos professores no sentido de provocar e ampliar seus saberes e fazeres sensíveis, que não se localizam apenas na dimensão cognitiva e conceitual nem se situam somente na dimensão sensível do fazer pelo fazer. Assim, propor vivências nas diferentes linguagens signii ca possibilitar experiências que toquem num aspecto considerado central no “ser professor”, que é o trabalho com a sua criação, imaginação e fantasia, através de situações que envolvam descoberta, experimentação, divertimento, estranhamento, curiosidade, razão e sensibilidade.

O ponto de partida pode ser o que entendemos por “linguagens” e como elas estão presentes na nossa vida e na prática pedagógica. Sabemos que a linguagem pode ser entendida a partir de diversos olhares: como forma de expressão do sujeito e da cultura, como meio de comunicação, como forma de interação e desenvolvimento humano, e também com objeto sociocultural de conhecimento. É através das diferentes linguagens que a criança utiliza - verbais e não verbais - que ela se expressa e expressa a riqueza de seu imaginário e de sua cultura. Nessa perspectiva, a fala, o choro, o gesto, o olhar, o silêncio, o jogo, a brincadeira, as artes cênicas, o teatro, a dança, a música, o canto e as artes visuais, o desenho, a pintura, a escultura, a fotograi a, o vídeo, o cinema, etc., são uma espécie de signos que fazem parte desses sistemas simbólicos que são as diversas linguagens.

Ao priorizar algumas linguagens das crianças para entender melhor seus códigos, podemos escolher alguns elementos da brincadeira, das artes visuais, da música, da dança e das narrativas para discutir sua presença na organização do trabalho pedagógico com as crianças. A brincadeira e as artes sempre estiveram presentes na Educação Infantil, assumindo diversos contornos conforme o momento histórico e os

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diferentes contextos socioculturais, mas é a partir da década de 1990 que tais temáticas ganham maior relevância no estudo, na pesquisa e nas práticas educativas da Educação Infantil.

Grande parte da discussão sobre a abordagem das múltiplas linguagens foi impulsionada pela experiência da Escola da Infância de Reggio Emília, na Itália, sendo considerada referência nos estudos sobre a escola infantil em nível internacional. Essa experiência desai ou com sucesso as falsas dicotomias entre arte-ciência, prazer-estudo, indivíduo-coletivo, criança-adulto, etc. e, segundo Gardner, atingiu uma “harmonia singular que cobre todos esses contrastes” reconi gurando nosso sistema categórico ultrapassado (apud EDWARDS, GANDINI, FORMANN, 1999, p.xi).

Diferente do que ocorre em muitos países, nessa experiência a arte não é considerada apenas uma atividade acessória, agradável, episódica e sem necessidade de uma programação voltada para produção, pois o conceito de arte é entendido como “comunicação, como potencialização da imaginação e da criatividade, e o vocábulo é, muitas vezes, empregado como sinônimo de conhecimento. Assim, “educação artística” torna-se sinônimo de educação em sentido amplo” (RABITTI, 1999, p.148).

Com uma “abordagem ecológica” em que cada sujeito está relacionado com o outro, com o ambiente físico, social, simbólico e imaterial, podemos dizer que há uma integração de linguagens expressivas como fusão de experiências diversas. E, se entre todas as artes algumas propostas de formação ainda privilegiam as artes visuais em vez da dramatização, da música e da dança, isso pode ocorrer porque as artes visuais possuem uma função unii cadora que funciona como catalisadora de um projeto completo, diz Rabitti (1999).

Problematizar esse histórico privilégio da cultura da imagem e das artes visuais na educação possibilita redimensionar a relação do local com o universal, destacando o hibridismo e a singularidade de nossa cultura a partir de ênfases na música ou na dança. Nessa perspectiva, Leite (2008)

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sugere uma forma de apropriação crítica de outras abordagens, vislumbrando formas de articulações mais contextualizadas com a diversidade cultural de nossas formas artísticas.

Num processo formativo, a construção do conhecimento e o desenvolvimento de certas competências tornam-se mais consistentes com a aplicação direta, e “transformar experiências em pensamentos, os pensamentos em rel exões e estas em novos pensamentos e novas ações” (MALAGUZZI, 1999, p.82) é fundamental para a formação de professores. Para o autor, esse processo é complexo, pois “não é possível sequer começar se os professores não possuem um conhecimento básico acerca das diferentes áreas de conteúdos de ensino, a i m de transformar esse conhecimento em 100 linguagens e 100 diálogos com as crianças” (idem, p.83).

Em tal perspectiva de formação, o atelier tem um lugar de destaque e representa um espaço subversivo gerador de “complexidades e novas ferramentas para o pensamento”, o que permite novas possibilidades criadoras entre as diferentes linguagens das crianças. Para Malaguzzi, o atelier é uma alternativa às longas aulas expositivas e às ideias comportamentalistas que reduzem a mente humana a uma espécie de “recipiente” a ser enchido (1999, p.84).

Sendo um espaço rico em experiências estéticas e diversii cadas, o atelier também pode se tornar espaço de encontro e diálogos os mais diversos na escola: espaço de produção, observação, registros, pesquisas, encontros com o outro. Ali, os professores também experimentam modalidades, técnicas, instrumentos e materiais alternativos com o cuidado de não ser entendido como espaço separado, como se, apenas ali, as linguagens da arte encontram sua expressão.

Considerar o espaço do atelier como construtor de outras identidades educativas pode inspirar e redimensionar outros espaços da formação inicial que rel etem sobre a arte e a estética do cotidiano: “De que forma a arte faz parte de nossa vida?”, “Onde a arte está presente no nosso cotidiano?”, “Isso

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é arte?”, “Criança faz arte?”, “Professor é artista?” para discutir e entrar nos campos conceituais e experimentais da arte.

E isso remete para pensar o espaço do atelier ou da oi cina na formação do professor, no sentido de propiciar experimentações a respeito de diversas propostas, materiais, técnicas e suportes; de organizar formas de intervenção a i m de ampliar o repertório e desconstruir estereótipos; de discutir o cuidado necessário com as interpretações dos trabalhos das crianças; de rel etir sobre a qualidade dos materiais trabalhados; de utilizar repertórios para informar, encantar e provocar; de buscar uma estética que revele o percurso feito nas produções; e de alimentar esse percurso com apreciações de obras, visitas a galerias, museus, exposições, teatro, shows, espetáculos etc. Assim, além de educar o olhar para a estética do cotidiano, pode-se oportunizar o desenvolvimento da sensibilidade como um momento fundamental na construção de outras possibilidades de atuação pedagógica.

3. OS FIOS DA COMUNICAÇÃO E DA MÍDIA-EDUCAÇÃO

Diversos autores têm enfatizado a importância da comunicação na escola e formação de professores (BUCKINGHAM, 2002, BELLONI, 2010; FANTIN E RIVOLTELLA, 2010). Pensar a educação a partir da comunicação tem sido um desai o, uma vez que a capacidade de ler e escrever hoje implica também a capacidade de ver, interpretar e problematizar as imagens da TV, de assistir aos i lmes e entendê-los, de analisar as publicidades criticamente, de ler e problematizar as notícias dos jornais, de escutar e de identii car programas de rádio, de saber usar o computador, de navegar nas redes, de produzir e postar conteúdos digitais, de interagir nas redes sociais, destaca Fantin (2007). Estas e outras mídias não podem mais estar excluídas de um processo de alfabetização-letramento, pois, além da capacidade de decodii car e codii car mensagens, de interpretar, de compreender e de produzir, supõe-se que estar alfabetizado-

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letrado no século XXI envolve múltiplas alfabetizações e letramentos que dizem respeito à construção da cidadania “real e virtual”(RIVOLTELLA, 2006) e à possibilidade de participar da sociedade de maneira diferenciada, através de experiências culturais diversas, e não só pela linguagem escrita.

Mas em que medida, nós, professores, estamos alfabetizados nessas linguagens e estamos trabalhando com esses múltiplos letramentos nos cursos de formação universitária? Em que medida, nós, “imigrantes digitais”, estamos dialogando com as crianças, consideradas como “nativos digitais”, como denomina Prenski (2001).

Pensar noutras possibilidades para a prática pedagógica em relação aos “usos da mídia” nos espaços de formação pode ser fundamentado numa concepção ecológica de mídia-educação que se refere a fazer educação usando todos os meios e tecnologias disponíveis: celular, internet, computador, videogame, televisão, cinema, fotograi a, livro, CD, DVD, integrando-os com a dimensão da corporeidade, da expressividade, e do contato com a natureza. Considerando as dimensões crítico-rel exivas, metodológico-instrumentais e expressivo-produtivas da mídia-educação (FANTIN, 2006), as mediações educativas podem atuar no sentido de ir além das recepções críticas para uma possibilidade de autoria responsável, unindo as dimensões de fruição e conhecimento.

Sabemos que muito de nossa cultura hoje é imaterial, ou seja, os conhecimentos são produzidos sobre questões mediadas pelos meios e pela representação, e assim grande parte daquilo que conhecemos, conhecemos mais pela experiência mediada do que pela experiência direta. Sendo a sociedade da informação mediada, a história, o conhecimento de mundo e até mesmo a dimensão social são mediadas, e a imaterialidade da cultura contemporânea faz com que muitas vezes não tenhamos consciência do que verdadeiramente está acontecendo, surgindo o problema de saber lidar com os simulacros e de recuperar a dimensão do fazer e do conhecer fazendo, que vimos anteriormente.

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Embora hoje seja comum falar nos múltiplos letramentos, na perspectiva da digital literacy e das multiliteracies, Fantin (2010) contextualiza essa discussão destacando que tal noção diz respeito à necessidade que hoje temos de circular por outros tipos de representações da realidade que não acontecem só pela escrita e envolvem as representações visuais, musicais, corporais, digitais, informáticas e outras que vão além. Tais dimensões poderiam ser trabalhadas transdisciplinarmente ou como eixo transversal, a partir das diferentes representações do próprio conhecimento, que não é só de códigos, mas de formas culturais que assumem um valor importante na sociedade contemporânea. Ou seja, poderíamos identii car essa noção de multiliteracies com a perspectiva da alfabetização-letramento nas múltiplas linguagens enfatizando a circulação e a interação entre as linguagens.

Pensar esse novo conceito de alfabetização-letramento, que inclui não apenas as mídias escritas, implica pensar nas bases teóricas que fundamentam e legitimam tal conceito, bem como nas políticas públicas, no investimento e na formação para trabalhar com essa nova perspectiva. E isso não se reduz aos cursos especializados, pois implica pensar o lugar potencial para a mídia-educação nos cursos de formação inicial e no interior das instituições educativas em seus diversos níveis de ensino.

Ai nal, se a maior parte da experiência cultural de estudantes e professores dos cursos de Pedagogia (e não só) vem do repertório das mídias, sobretudo a partir das imagens em movimento dos programas de televisão e dos i lmes, e, considerando que, na nossa cultura, a televisão tem uma enorme inserção na vida das pessoas, a formação inicial não pode deixar de problematizar essa questão. Envolvida em uma relação de poder e comprometida com interesses os mais diversos, não podemos negar o papel socializador que a TV também desempenha ao tornar disponível um repertório comum a todas as pessoas. Embora o contraponto disso seja a massii cação, sabemos também que a apropriação é ativa e que

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a recepção é contextualizada a partir de diversos fatores, como a história pessoal e cultural, o grupo, o gênero, a classe, etc., como enfatiza h ompsom (1998).

A maior parte de estudantes-professores dos cursos de Pedagogia convive com as linguagens das mídias há muito tempo, e nem sempre eles consegue ter um distanciamento crítico em relação a personagens reais ou i ctícios de sua infância e/ou adolescência. O fato de as mídias serem usadas equivocadamente e fornecerem conteúdos questionáveis do ponto de vista da educação não signii ca que a mediação deva ser necessariamente de resistência e negativa. Em vez de desprezar tudo o que eles assistem, poderíamos tomá-los como objetos de estudo e procurar entender o que eles podem ter aprendido, problematizando as consequências do consumo de mídias por parte das crianças, jovens e adultos de uma maneira crítica, “nem apocalíptica nem integrada”, aprofundando questões ligadas ao desenvolvimento humano, às produções culturais e aos espaços sociais destinados à infância, à adolescência e à juventude.

Pesquisas sobre a compreensão na televisão e na leitura sugerem que essa capacidade de compreensão não acontece de qualquer modo, “naturalmente”, apenas com a prática de ler ou de assistir a TV, o que implica dizer que a TV por si só seria sempre imediatamente compreensível à criança e evidentemente não o é, necessitando de mediações. E para fazer tais mediações, há que reconhecer os códigos, as gramáticas e as convenções que as mídias possuem, bem como as regras através das quais o tempo é gestado, as imagens apresentadas, as categorias assinaladas, as analogias expressas e a atmosfera sonoramente indicada na narração (BAZALGETTE, 2005).

Neste sentido, precisamos ir além da ideia de considerar o vídeo, a televisão e os i lmes recursos ou aspectos importantes da educação como experiências audiovisuais que encorajam as pessoas a falarem sobre elas, ajudando-as a serem leitoras e escritoras. Este argumento é válido, mas seu valor, limitado, porque é sustentado em uma ideia de

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alfabetização que se restringe à capacidade de ler e escrever. É fundamental pensarmos nas multiliteracies como um repertório, “um continuum de capacidades correlacionadas a diversas mídias e em relação com a nossa experiência cultural total” (BAZALGETTE, 2005, p.4). Ou seja, capacidades correlacionadas, gerais ou especíi cas das mídias, mas todas com o mesmo valor.

Diante disso, é fundamental que o professor saiba que, na relação das crianças com a cultura digital, e mais especii camente com o computador, a atenção que deve ser dada não é à tecnologia em si, mas à criança e suas relações com as tecnologias, destacam Mantovani e Ferri (2008). Se o contexto da aprendizagem está mudando e é completamente outro, ainda há poucos estudos sobre tecnologias e crianças, e, considerando que as pesquisas existentes são recentes e iniciaram com experiências na escola fundamental, faltam pesquisas sobre o sentido da relação das crianças com o computador na Educação Infantil. “O computador é um brinquedo para as crianças?”, “Se o computador é um elemento importante e faz parte da vida de todos nós e da cultura das crianças, que respostas familiares e escolares de mediação dessa experiência cultural estamos propiciando?”, “Nosso medo frente ao computador não será o mesmo que anteriormente tivemos com o livro?”, pergunta Mantovani. Para ela, a escola da infância não pode deixar de pensar a relação da criança com as tecnologias justamente pela possibilidade de rel etir, desconstruir, e descondicionar esta relação, visto que, se o computador existe, seus usos podem ser redimensionados e suas interações podem ser mais ativas e interativas, consentindo a possibilidade de comunicar de modo rel exivo. E isso implica a necessidade de caracterizar o objeto, o contexto, o papel do adulto, o papel do grupo, os programas utilizados bem como problematizar os processos de metacognição envolvidos nessa relação. E tal mediação só será possível se o professor tiver elementos para fazê-la.

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Na relação das crianças com as tecnologias, pode-se observar a ampliação das experiências de vida pautada nas diferentes formas de comunicação e diversii cação das formas de expressão do conhecimento no âmbito da produção da cultura. No entanto, tal interação deve ser mediada, pois para haver signii cação na cultura de crianças e de estudantes e professores nos cursos de formação, eles teriam que interagir de forma relevante com os objetos que alimentam o pensar e o fazer, ou seja, com a cultura produzida: livros, i lmes, programas de televisão, teatro, dança, videogames, celulares, sites e navegações da web. Aproximar essa cultura para emocionar e instigar o pensar, implica também problematizar e rel etir sobre as objetivações ali presentes e as mediações sociais capazes de fazer com que essas culturas possam ser vividas de diferentes formas e não apenas como consumo e substituição, como enfatiza Perrotti (1990). Implica também pensar nos riscos e nas possibilidades das atividades online, como destacam Livingstone e Haddon (2009). E isso implica analisar tais atividades a partir das dimensões de conteúdos ali encontrados, dos contatos ali estabelecidos e dos comportamentos ali desenvolvidos, argumentam Ponte e Cardoso (2008).

Se nos interessa ampliar o repertório cultural de crianças, estudantes e professores, sabendo que grande parte consome aquilo que vem da cultura das mídias, não podemos abrir mão de discutir a complexa questão da qualidade, da construção do gosto e do que essas produções signii cam na sociedade contemporânea. Considerar que toda produção cultural pode ser educativa - pois educativa não é necessariamente a produção em si, e sim o processo que se instaura motivado pelo que ela traz - não é sui ciente. Precisamos pensar nas mediações e nos critérios para avaliar certas obras e tecnologias que escolhemos para serem apreciadas, analisadas e discutidas em situação formativa.

Uma condição para discutir critérios e qualidades de tais produções é ir além do moralismo presente em certos

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discursos adultos sem i car refém de uma “escolha perversa” das crianças, discutindo os três “p” que Bob e Annie Franklin destacam em relação aos direitos das crianças em relação às mídias: a proteção, a provisão e a participação (apud BUCKINGHAM, 2002). No caso da escolha de repertório, a provisão e sua qualidade parecem ser o “p” menos discutido hoje na educação, o que interpela ainda mais os que atuam com a formação e reforça a necessidade da presença dos quatro eixos da mídia-educação (FANTIN, 2006) na formação de professores: cultura (ampliação e possibilidades de diversos repertórios culturais), crítica (capacidade de análise, rel exão e avaliação) e criação (capacidade criativa de expressão, de comunicação e de construção de conhecimentos) e cidadania (autoria e participação na cultura).

PARA SAIR DO LABIRINTO: OS FIOS DA ARTE E COMUNICAÇÃO NA FORMAÇÃO

A perspectiva da inserção da Arte e da Comunicação na formação inicial por meio das múltiplas linguagens e da mídia-educação pode gradualmente permitir que educadores sensíveis, informados, preparados e competentes possam ter acesso a uma diversidade de conteúdos e linguagens necessárias aos cenários atuais, o que deve ser encorajado. A partir do conhecimento que o educador tem de sua competência e da sensibilidade para com as necessidades do grupo, é que ele fará suas escolhas e dependendo de seus objetivos, poderá trabalhar com obras clássicas e eruditas, como também com obras da indústria cultural e do consumo da comunicação de massas.

Considerando que imagens, sons e muitos outros meios provindos da cultura de mídias e da comunicação estão nos educando, a formação inicial precisa redimensionar tais potencialidades. Ai nal, hoje as mídias atuam como protagonistas dos processos culturais e educativos, assegurando formas de socialização e transmissão simbólica, e também participando como elementos importantes da nossa

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prática sociocultural na construção de signii cados da nossa inteligibilidade do mundo.

É no sentido de criar condições para uma mediação signii cativa, que a presença da Arte e da Comunicação se justii ca na formação do professor como i os que podem indicar pistas para a formação. A mídia-educação - a partir do ponto de vista das linguagens (transmissão cultural, usos e representações), do ponto de vista metodológico (formas de mediações, instrumentalização e suporte) e do ponto de vista crítico (consciência rel exiva e também cultura) - sugere o domínio de conhecimentos e competências especíi cas nos campos da Arte, da Educação e da Comunicação, da Semiótica e dos Estudos Culturais. Tais conhecimentos e competências se colocam ao lado de um processo histórico marcado por uma nova sensibilidade cultural e social que emerge, no i nal do século passado, com a convergência entre tecnologia digital, arte e mídia. E essa articulação entre estética, arte e novas mídias pode apontar uma saída do labirinto da formação inicial, vista como instrumento cultural e educativo que envolve uma experiência teórico-prática-estética-rel exiva como possibilidade da construção de outras tessituras na trama da educação.

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THE THREADS OF ART AND COMMUNICATION IN THE LABYRINTH OF TEACHER’S PROFESSIONAL DEVELOPMENT

Abstracth inking of Child Education from dif erent perspectives is more than a need, it is a challenge. Dif erent paths may be taken, depending on where we want to get to. After all, Child Education can be seen from dif erent angles, such as: its relationship with other i elds of knowledge; children’s points of view and declarations about their experiences in the institutions; education professionals and their university and ongoing education, and many other viewpoints. h is paper focuses on the aspect of university education, which is closely interrelated to the other aspects, covering the whole matter, raising questions, and pointing out the relationships between them. By addressing some current challenges in the context of curricular reforms in Teacher Education courses, the article raises questions about existing gaps in certain proposals. Based on the image of the labyrinth, it focuses on the aspects of art and communication, in search of another perspective of education.Keywords: teacher education; child education; arts; communication; media education

Data de recebimento: agosto 2010Data de aceite: março 2011