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1 O universo do campo e seus habitantes Antonino Ferro e Roberto Basile OS HABITANTES DO CAMPO O campo analítico é habitado por inúmeras presenças reais e virtuais no pro- cesso de agregação, e se poderia fazer uma comparação válida com o univer- so tal como é entendido hoje, pois o campo analítico coincide com o “univer- so” irrepetível que nasce no início de cada sessão, apenas para ser tempora- riamente suspenso quando a sessão chega ao fim. O campo é habitado por certos personagens principais, que poderiam ser chamados de protagonistas, bem como de coadjuvantes e, finalmente, de figurantes. Além disso, todas essas presenças podem mudar constantemente de papel. No entanto, os per- sonagens humanos (ou até mesmo os não antropomórficos) representam a parte mais madura do campo. Eles poderiam ser comparados às constelações visíveis em um céu estrelado. O campo é o lócus de um número infinito de outros fenômenos, a maioria deles desconhecida. Um axioma do campo pode ser que o “Big Bang” ocorre no início de cada sessão e a contração do “Big Crunch,” no final. Os personagens são o resultado de operações realizadas na contracorrente. Sua condição é sempre complexa, e eles não correspondem às pessoas com quem têm uma semelhança superficial. Os personagens da ses- são são fruto de operações mentais realizadas pelo analista e pelo paciente, e refletem o funcionamento mental de ambos, bem como suas protoemoções, suas emoções e seus aspectos desconhecidos. Em outras palavras, são holo- gramas do funcionamento mental do par analítico, mas também incluem ti- pos de funcionamento que, em outras línguas, seriam chamados de clivados, ou ainda não acessíveis à pensabilidade. Os personagens entram e saem da sessão tangencialmente; outros, tendo entrado tangencialmente, tornam-se protagonistas, ao passo em que outros, ainda, imediatamente assumem pa-

OS HABITANTES DO CAMPO - larpsi.com.br · cesso de agregação, e se poderia fazer uma comparação válida com o univer - ... fica o meu consultório!] e uma vez, eu vi O Exorcista,

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  • 1O universo do campo e seus habitantes

    Antonino Ferro e Roberto Basile

    OS HABITANTES DO CAMPO

    O campo analtico habitado por inmeras presenas reais e virtuais no pro-cesso de agregao, e se poderia fazer uma comparao vlida com o univer-so tal como entendido hoje, pois o campo analtico coincide com o univer-so irrepetvel que nasce no incio de cada sesso, apenas para ser tempora-riamente suspenso quando a sesso chega ao fim. O campo habitado por certos personagens principais, que poderiam ser chamados de protagonistas, bem como de coadjuvantes e, finalmente, de figurantes. Alm disso, todas essas presenas podem mudar constantemente de papel. No entanto, os per-sonagens humanos (ou at mesmo os no antropomrficos) representam a parte mais madura do campo. Eles poderiam ser comparados s constelaes visveis em um cu estrelado. O campo o lcus de um nmero infinito de outros fenmenos, a maioria deles desconhecida. Um axioma do campo pode ser que o Big Bang ocorre no incio de cada sesso e a contrao do Big Crunch, no final. Os personagens so o resultado de operaes realizadas na contracorrente. Sua condio sempre complexa, e eles no correspondem s pessoas com quem tm uma semelhana superficial. Os personagens da ses-so so fruto de operaes mentais realizadas pelo analista e pelo paciente, e refletem o funcionamento mental de ambos, bem como suas protoemoes, suas emoes e seus aspectos desconhecidos. Em outras palavras, so holo-gramas do funcionamento mental do par analtico, mas tambm incluem ti-pos de funcionamento que, em outras lnguas, seriam chamados de clivados, ou ainda no acessveis pensabilidade. Os personagens entram e saem da sesso tangencialmente; outros, tendo entrado tangencialmente, tornam-se protagonistas, ao passo em que outros, ainda, imediatamente assumem pa-

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    pis essenciais. Desse ponto de vista, independentemente do assunto de que fale, o paciente est descrevendo uma forma de funcionamento do campo.

    Examinemos uma sesso real, do quarto ano de anlise de um paciente chamado Salvatore. Como eu viajaria para participar de um congresso, segui-do de alguns feriados, estvamos prestes a ter duas semanas com apenas duas sesses em cada, em vez das quatro habituais.

    Paciente: Eu me sinto muito animado hoje: finalmente comprei a moto. Eu tive problemas terrveis ontem: um paciente turco na cadeia teve algumas convulses pseudoepilpticas em que batia a cabea, se coava desesperadamente e rolava no cho. Ento os guardas cha-maram um padre, porque achavam que ele poderia estar possudo pelo diabo, que o prprio demnio estava l, e o padre veio, com a sua cruz. A, ele teve outro ataque, e eles acharam que era neces-srio um exorcista.

    Analista: (pensando que a moto nos fala sobre ter que andar em duas rodas em vez de quatro, e que o turco representa uma reao ainda indeci-frvel do paciente, na forma de raiva e desespero diante do cancela-mento de duas sesses, e mais duas, se limita, no entanto, ao seguinte comentrio). Bom, os analistas sempre fizeram cursos de exorcis-mo, e talvez, por um lado, voc esteja satisfeito de ter que ficar so-bre duas rodas [a moto] durante as duas semanas em que teremos apenas duas sesses, mas, por outro lado, temos as cruzes, como cruzamento das duas sesses, e pode ser que esses cruzamentos de sua parte orbital turca provoquem convulses.

    Paciente: (Rindo) Pois quando eu era pequeno, eu costumava assistir a fil-mes com um amigo meu que morava na Corso Cavour [a rua onde fica o meu consultrio!] e uma vez, eu vi O Exorcista, que me dei-xou apavorado de verdade.

    Analista: (Pensando que o paciente estava com medo de que eu me aproximas-se demais do seu lado turco potencial, digo apenas o seguinte). Que coincidncia, o endereo!

    Paciente: (Gargalhando). Minha me e meu pai no esto se falando: a me gostaria que ele levasse o trabalho mais a srio e fizesse as coisas de maneira mais exata e correta; o pai faz o que pode, mas no consegue que tudo funcione com perfeio, s vezes h lacunas na organizao.

    Analista: (Pensando que ele est descrevendo dois modos diferentes em que funcionamos eu mesmo, o campo e ele prprio). Ento, sua me uma Habsburgo e seu pai um Bourbon, e ainda tem eu causando todas essas lacunas!

    Paciente: Eu no acho que eu esteja muito incomodado com as quatro ses-ses que ns vamos perder. O porto de casa est enferrujado e

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    tem que aplicar Ferox [um produto que remove a ferrugem de fer-ro, e Ferro o meu sobrenome] e a se acaba a ferrugem.

    Analista: (Pensando que ele est com raiva de mim, o homem com o sobreno-me de ferro). Em latim, seria Ferox/ferocis em outras palavras, ficando ferozmente enraivecido em vez de acumular ferrugem em segredo!

    Paciente: Mas eu estou com raiva, eu posso ficar com raiva agora, talvez no com voc, mas no meu trabalho, dois funcionrios no aparece-ram e eu realmente consigo expressar a raiva que me deu.

    Analista: ... e tem mais algum que vai faltar em seguida, se eu no estou enganado!

    Assim como o universo cheio de estrelas que se aproximam do fim de suas vidas e outras acabam de nascer, e esses processos tm por trs de si toda uma srie de fenmenos subatmicos, eltricos, magnticos e outros, o cam-po tem uma matriz de gerao prpria, que se baseia em estados protoemo-cionais, arcaicos, fragmentados, e os processa em personagens. Esses magos da formao de matria psicanaltica so as funes que habitam o campo e, por nela habitarem, constituem-na.

    o que Grotstein (2007) chama de conjunto sonhador (dreaming en-semble), ou seja, todas as funes que transformam o protossensorial e o pro-toemocional em pictogramas (Elias Mallet da Rocha Barros, 2000), pensa-mento onrico (sonho) e hologramas. Podem-se usar esses termos como a fun-o alfa do campo, o pensamento onrico do campo ou da barreira de contato do campo, mas me preocupo menos com o nome a ser dado a essas funes do que com a descrio das operaes mentais que so realizadas. Essas ope-raes mentais podem avanar em duas direes ao tentar criar novas cons-trues de sentido. A primeira delas envolve a transformao de elementos beta oriundos de lugares obscuros no campo (elementos beta so os equiva-lentes de Bion a protossensaes) em elementos alfa (equivalentes de Bion a material para pensamentos onricos) (Bion, 1962). A segunda, por sua vez, diz respeito realizao de possveis composies novas, mas s aps um pro-cesso de desconstruo como em uma situao de planejamento urbans-tico, onde preciso haver uma mudana de funo: as estruturas obsoletas devem ser desconstrudas em primeiro lugar. Todas essas operaes cons-trutivas poderiam ser descritas como aquilo que promove a alfabetizao de elementos beta.

    No entanto, no existem s foras construtivas, pois, no universo do campo, dois drages diferentes se enfrentam, a saber, os fenmenos con-trastantes de transformao em sonhos e transformao em alucinose. Enquanto o primeiro pretende produzir imagens sentidos provisrios e di-nmicos o segundo inverte o funcionamento onrico e d origem a certezas e bloqueios do campo.

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    Outra bipolaridade que caracteriza fortemente a vida do campo a os-cilao entre a interpretao insaturada e a saturada. Antes de se tornar uma interpretao transferencial clssica, muitas vezes uma interpretao precisa empreender uma longa viagem, que vamos agora tentar acompanhar, atravs de seus vrios estgios entre a insaturao e a saturao.

    .......\......... + *****........::::::::: ****-------

    No incio da anlise de muitos pacientes, esto presentes fragmentos de protoemoes:

    Poderiam ser chamados de protossememas.Os protossememas devem ser coletados, organizados e transformados a

    um nvel superior, gerando, por fim, microssememas:

    G/-- AC I I Y-L I N A I I [F] E L - I Z S

    Os microssememas devem, por sua vez, ser organizados de forma a criar sememas bsicos, por exemplo, CIME. Isto, por si s ou em combinao com outros sememas bsicos, deve ser contextualizado a seguir, para se adequar situao aparente:

    King Kong fica com cimes de X quando...

    Uma nova etapa no trabalho do campo a contextualizao aparente, em conjunto com uma personificao explcita:

    Na escola, voc fica com cimes de X quando...

    Assim, chegamos contextualizao e personificao explcita invertida:

    Voc est com receio de que eu tenha cimes quando voc...

    Por fim, no fim da jornada, temos contextualizao com personificao explcita direta:

    Parece-me que voc fica com cimes quando eu...

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    claro que escola ou King Kong sero, naturalmente, considerados como locais no campo presente, em outras palavras, a interpretao viaja, com efeito, de uma interpretao insaturada no campo para uma interpreta-o insaturada do campo, e a seguir, para uma interpretao insaturada na transferncia e, por fim, a uma interpretao saturada na transferncia.

    Isso sugere que os pacientes tambm esto sempre falando sobre o nvel onrico do funcionamento do par analtico e, ainda, que aquilo que o pacien-te diz aps uma interpretao tambm um sonho sobre essa interpretao; portanto, os personagens que aparecem denotam a maneira como o paciente ouviu a interpretao.

    Nesse contexto, vejamos o que acontece, e como sinalizado pelo cam-po, quando o analista d uma bola fora.

    Uma analista competente traz um caso clnico superviso, dizendo que no respeitou o setting, pois respondeu mensagem de texto urgente de uma paciente e aceitou se encontrar com o cirurgio que operaria o ouvido inter-no dela.

    Na sesso, a paciente tinha mencionado a operao auditiva a que se submeteria em breve. Aps a cirurgia, ela havia descrito como ouvir se tor-nou algo terrvel para ela, dizendo que os sons eram devastadores. A equipe cirrgica inclura um engenheiro que modulara a receptividade do complexo implante que tinham colocado, em uma operao neurocirrgica difcil.

    A paciente havia comeado sua anlise de quatro sesses por semana com um contato frente a frente, pois era surda e tinha que fazer leitura labial. Sua histria era devastadora. A situao emocional em que tinha crescido era pssima: sua me era uma prostituta de alto nvel e a prpria paciente tinha sofridos repetidos abusos desde o incio da adolescncia por parte de parentes e clientes de sua me. O pai era um homem violento que passou muitos anos na priso. A paciente se descreveu como lsbica, atrada apenas por mulhe-res. Ela tinha aparncia de um menino feio e forte, com um elemento simies-co uma mulher-gorila, segundo sua analista. Mesmo assim, debaixo da su-perfcie, podia-se vislumbrar uma espcie de beleza escondida e obscurecida.

    A situao emocional da paciente pode ser ilustrada pelo seguinte dia-grama:

    Isto , sua mente est sujeita ao abuso contnuo por contedos proto-mentais, representados pelo smbolo , que ressurge em formato no pass-

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    vel de ser contido, imetabolizvel, porque as partes continentes da mente () no tm a capacidade necessria.

    A analista d uma bola fora no por exemplos veniais de atuao (acting out), e sim quando redireciona seus vrtices de escuta a uma reali-dade externa que, devido sua natureza bruta e degradada, impe-se a essa escuta. Isso dificulta a especificidade da escuta analtica na sesso, que deve sempre vir em primeiro lugar, como uma espcie de filtro mgico aplicado ao material do paciente: Eu tive um sonho. Ao no usar o filtro mgico anal-tico, a analista perde a especificidade da comunicao analtica: ela descuida da mensagem do paciente que, atravs do trabalho de anlise, atravs do im--Pianto (impianto implante em italiano contm a palavra pianto, que sig-nifica chorar) e atravs da dolorosa introjeo de uma nova funo, est se tornando capaz de ouvir e sentir (a mesma palavra, sentire, significa as duas coisas em italiano), as emoes que j tinha tido que deixar passar desper-cebidas porque eram muito excruciantes. A anlise exatamente o conjunto de operaes, cirrgicas ou no, que lhe permitem no ser mais surda em re-lao sua dor e s intensas emoes que manteve contidas para conseguir sobreviver. Agora, h um novo mundo de som com uma analista-cirurgi e um analista-engenheiro de som que permite uma forma cada vez mais mo-dulada para a escuta dos estados emocionais.

    Isso no quer dizer que o resultado da escuta analtica deva ser comuni-cado ao paciente de forma explcita e direta; em vez disso, pode ser necess-ria uma mediao por meio dos personagens do cirurgio, do engenheiro, do implante, da operao e da cirurgia. No entanto, o que no pode ser evitado uma espcie de escuta onrica, do tipo que ativamos antecedendo a narrao do paciente com o eu tive um sonho mencionado acima, porque isso, e s isso, especfico para ns. O objetivo da anlise desenvolver a ca-pacidade do paciente de sonhar e, assim, transformar, metabolizar e, conse-quentemente, esquecer os excessos de sensorialidade e protoemoes que, se no forem digeridos e sonhados, levam a sofrimento e sintomas.

    Nossa ateno deve ser dirigida no homossexualidade como compor-tamento genital real, mas a seu significado metafrico. Por exemplo, nesse caso, estou pensando na busca que a paciente faz de uma relao com uma mente receptiva e disponvel, que deve proporcionar um modelo de recepti-vidade. O lado simiesco deve encontrar um lugar e ser ouvido, constituindo uma relao , que metaforicamente heterossexual e poder ento ser in-trojetada pela paciente.

    Quanto mais objetiva, real e dramtica for a situao narrada pelo paciente, mais o analista corre o risco de perder o encantamento mgico. O campo, ento, permeado por turbulncias, por turbilhes e, s vezes, por tsunamis de elementos beta, que encontram, no processo de transformao em sonhos, o continente de transformao que leva de potencialidades desor-ganizadas a formas possveis de representao.

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    O conceito de campo complexificado ainda mais por todas as virtua-lidades que esto em funcionamento nele por assim dizer, mundos ou uni-versos paralelos, convergindo posteriormente a narraes que ganham vida de acordo com a capacidade receptiva do conjunto sonhador. Desmembran-do at este, deparamo-nos com sonhos noturnos, que se tornam sonhos do campo no momento em que so narrados. Na teoria do campo, os sonhos no so materiais que falam apenas do estado mental do paciente na noite em que foram sonhados, mas tambm compartilham o aqui e agora da situao analtica pela escolha do momento em que so trazidos e a forma em que isso acontece, bem como, claro, seu contedo.

    Outro aspecto que vale a pena explorar a contribuio do estado men-tal do analista para a criao do campo. Se a mente do analista tiver suas tur-bulncias prprias (ou, pelo menos, predominantemente prprias) ou estiver envolvida nas turbulncias do campo, no ser necessariamente uma desvan-tagem, desde que o analista esteja ciente de que o que acontece no campo codeterminado pelas contribuies de paciente e analista. Isso ser ilustrado a seguir pelo exemplo clnico.

    Em uma segunda-feira, pensei ter tido uma boa sesso com Lucilla. No encontro seguinte, ela traz um sonho: est em um lugar desolado, uma esp-cie de depsito cheio de lixo; caminhando nesse espao repleto de lixo joga-do, ela v trs mulheres com cara de bruxas, feias, sujas, maltratando sadi-camente um gatinho. Ao avanar na escurido do lixo, mais e mais bruxas aparecem, despertando cada vez mais ansiedade. Ela est com muito medo, mas em seguida, um carro cheio de Virgili Urbani (ato falho para vigili Ur-bani: em italiano, vigili so policiais, mas a palavra similar em som do nome do poeta e figura do mentor latino Virglio) chega e a recolhe.

    O carro dirigido por uma policial gorda, que parece no levar a his-tria a srio, mas, embora tenha medo de ser jogada do carro, a paciente mantida nele. Em um segundo sonho, um casal estabelecido, para sua surpre-sa, mergulha em uma crise, ela pega a filhinha deles nos braos, mas a criana escorrega e cai no cho embora ela no parea ter sofrido uma leso fatal.

    Reflito sobre esses sonhos. Penso em quando falei a ela sobre as datas das minhas frias, mesmo tendo sido h vrias sesses, e s ento percebo que, na sesso anterior, eu estava preocupado com uma questo pessoal que me fez perder algumas frases pronunciadas pela paciente, embora eu tives-se, pensei, retornado em seguida frequncia dela. Agora eu lhe pergunto se alguma coisa a tinha marcado em relao ltima sesso. Ela responde ime-diatamente: Em um momento eu achei que voc no estava me ouvindo.

    Isso me permite lhe mostrar o que acontece quando ela sente que eu es-tou menos presente na sesso: ela se sente jogada, intil, no mais do que lixo a ser eliminado, em minha opinio. A seguir, vai sendo tomada por sen-timentos de dor, raiva e desespero, os quais teme que estejam pairando sobre si (as bruxas), mas ento, sente que estou prximo a ela novamente, embora

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    insegura da minha confiabilidade. Tem medo de ser jogada mais uma vez e, quando tudo isso acontece, um bom casal ns dois mergulhado em cri-se, e a confiana (a menininha) cai no cho, embora no tenha havido dano permanente.

    Voc no poderia ter resumido os meus sentimentos com mais preciso do que isso, diz ela, acrescentando: Absolutamente perfeito, sem qualquer ruga ou mcula. Sim, respondo, no toa que o meu nome significa fer-ro* (em nossa linguagem analtica, meu nome significa um ferro para se li-vrar das rugas).

    Agora podemos comear a trabalhar as razes do medo e da experincia de no ser escutado, desta vez em outro estgio, o da sua infncia e histria.

    Porm, como veremos essa fase? medida que nos aventuramos cada vez mais nas profundezas e nas margens do campo, deparamo-nos com as reas de funes onricas incipientes e de turbulncia sensorial.

    O campo que estamos considerando aquele que multiespacial, multi-dimensional, hologrfico e onrico; um campo que se concretiza no encon-tro analtico. Cada indivduo portador de um campo psquico prprio, ha-bitado por turbulncias e possibilidades intrapsquicas de todos os tipos. No campo analtico, os campos subjetivos de cada participante fluem juntos, dando origem a uma nova entidade que muito mais do que a mera soma dos seus antecessores. O campo assume caractersticas (Ferro, 2005 e 2009) que podem ser descritas da seguinte forma:

    O campo se torna um lugar e um momento em que se manifestam as turbulncias emocionais ativadas pelo encontro analtico.

    O campo se torna hora e lugar de promoo de histrias e narraes que so resultado do processo de alfabetizao das protoemoes presentes no par.

    O campo a matriz que, por meio da capacidade de reverie da dis-ponibilidade para estar em unssono, promove o desenvolvimento da capacidade de conter e da funo alfa (Ferro, 2006).

    As transformaes do campo so mediadas por um processo contnuo de conarrao entre analista e paciente, que se tornam dois autores em busca de personagens (Ferro, 1992, 2002), alfabetizando as protoemoes e facili-tando a sua constante evoluo.

    No campo, o halo semntico do conceito de interpretao expandido de modo a incluir todas as outras contribuies insaturadas, aparentemente

    * N. de T.: a expresso italiana no comentrio do paciente significa, literalmente, Voc no deixa uma ruga, e o nome do analista (Ferro) indica uma aluso a um ferro de passar rugas.

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    em tom de conversao, do analista. Central ao campo o reverie do analista, ou seja, a capacidade de fazer contato com seu pensamento onrico em viglia (e suas subunidades constitutivas) e de narr-lo em palavras, gerando, assim, transformaes no prprio campo. Os derivados narrativos desse pensamento onrico em viglia do paciente e dos elementos alfa que o compem so igual-mente importantes. A narrativa do paciente pode ser vista, a partir de um de-terminado vrtice, como uma renarrativa em andamento de como ele apre-senta na forma de fotogramas de um filme os elementos, eventos e linhas de fora do campo. Nesse sentido, no h material trazido pelo paciente que no seja relevante ao campo. Para a complexidade do campo atual, que de na-tureza horizontal e vive no aqui e agora, essencial ser complementada por uma complexidade vertical equivalente, que inclui tambm o aspecto multi-geracional: assim o tempo entra no consultrio do analista.

    Portanto, encontramo-nos em uma geometria no s do mundo inter-no e da relao, mas tambm de histrias e sua transmisso. J no so o analista e o paciente os ativos e presentes com as suas fotografias bidi-mensionais de pais, tios e tias, e avs a ser interpretados e despojados de seus disfarces por interpretao transferencial. Em vez disso, estamos na presena de personagens tridimensionais que pertencem a diferentes temporalidades e que solicitam, ou necessitam, poder subir ao palco por si ss. Neste momen-to, qualquer interpretao no campo uma interpretao transferencial. Nessa dimenso, o analista deve se submeter, em minha opinio, a ser perme-ado por esses elementos transgeracionais liofilizados (Faimberg, 2005), que aguardam apenas o meio fluido da recepo do campo para assumir subs-tncia e histria.

    Desse modo, somos confrontados com uma complexidade para a qual nem sempre estamos capacitados. Alguns outros pontos tambm valem a pe-na considerar aqui, por exemplo, como a funo narrativa do campo pode se estender a reas de impensabilidade no analista, assim como no paciente. Os aspectos transgeracionais do analista entram na sala na forma do elemento pessoal e da transmisso da funo analtica de uma gerao de analistas para a prxima, incluindo os pontos cegos do analista (aos quais o campo, se lhe escutarmos, pode, felizmente, chamar a ateno!). A necessidade aqui re-traar a histria, incluindo nossa prpria histria como analistas no como rito, mas como uma forma de descobrir legados transgeracionais.

    H muito que pensar aqui sobre os conceitos de identificao projetiva e turbulncia emocional; em termos de cinema, a situao pode ser comparada ao incio de Jurassic Park, o parque dos dinossauros, em que traos residuais de DNA no solo superam a extino de animais, e dinossauros ferozes e misterio-sos ganham vida novamente: da mesma forma, a mente no pode se desen-volver a menos que certos elementos cindidos sejam restaurados ao presente.

    J tendo aberto caminho para uma infinidade de universos possveis ao longo do eixo do espao, agora, inevitavelmente, o par de mltiplas perso-

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    nalidades (Baranger M. e W., 1961-1962) formado por analista e paciente nos revela uma infinidade de ramificaes no tempo. Nas palavras de Borges, encontramo-nos em uma trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram: o mundo da ucronias, ou utopias na histria. O mundo da ucronias aquele cuja histria divergiu da histria como a conhecemos, com os eventos histricos sendo substitudos por outros hipoteticamente possveis. Isso abre caminho a possibilidades que so meros exerccios em termos da histria da civilizao (e se o General Custer tivesse vencido a batalha de Little Big Horn...?); No caso de uma histria pessoal, no entanto, pelo processo de Nachtrglichkeit e a atribuio de um novo signifi-cado, elas podem se tornar pensamentos novos, realidades novas do futuro e por que no? tambm do passado. Na verdade, parece-me que a possvel reescrita de uma histria que nunca aconteceu pode abrir perspectivas novas e vastas e o dom mais precioso que a anlise pode proporcionar.

    Um lugar para Cochise

    Uma operao importante e, de certa forma, arbitrria o fato que escolhe-mos como organizador do discurso do paciente (arbitrria apenas em certa medida, se tem origem em uma inspirao que o analista capaz de detec-tar/aceitar). claro que essa operao se baseia na capacidade negativa do analista e em sua habilidade para reverie.

    Um colega experiente me pede consultoria devido a uma dramtica situ-ao por que est passando. Recebo as primeiras informaes por telefone, j que ele mora em um pas no extremo Norte. Nas ltimas semanas, ele e sua famlia tm estado protegidos por guarda-costas em funo de ameaas feitas por um de seus pacientes. O paciente, fico sabendo pelo colega, ameaou-o durante uma sesso porque a anlise lhe fez perder a alegria de viver, fez com que se casasse, tivesse filhos, conseguisse emprego em um banco, mas tudo isso o impediu de encontrar a verdadeira vida. Ele perdeu todas as mulheres que poderia ter tido, teve de abrir mo dos carros personalizados que costu-mava possuir quando era jovem, as viagens que poderia ter feito. Em suma, o preo era alto demais, e agora ele quer se vingar de seu analista se matando depois de assassinar a famlia do analista. O analista tambm me diz que o paciente continua a receber alguns cremes especiais da Sua para tratar uma erupo cutnea preocupante.

    O que se manifesta a mim como fato escolhido a erupo, a pele verme-lha, um elemento tangencial, ou seja, a pele-vermelha. A pele-vermelha que aterroriza todos os rostos plidos (homens brancos). Contudo, pergunto-me por que, pois a pele-vermelha no pode ser to assustadora.

    Pergunto a idade do paciente e do analista. O primeiro vai completar 40 anos e, na mesma poca, o segundo far 50.

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    Aqui est a chave: a pele-vermelha do paciente, com a suas flechas fla-mejantes, pe fogo na pele-vermelha do analista. A mesma pele-vermelha com a qual o analista tinha perdido o contato e que pegou fogo na crise de seu quinquagsimo aniversrio (e os quarenta anos do paciente).

    Uma vida passada a trabalhar em um banco, uma vida passada no con-sultrio, absolutamente inaceitvel para o pele-vermelha (os peles-verme-lhas!), que quer vingana e faz ameaas. preciso realizar um processo de luto doloroso, pelos muitos potenciais existenciais a que se renunciou um processo de luto para aceitao da realidade precedido por choques telri-cos de raiva.

    A ajuda cuidadosa para que meu colega restabelecesse contato com seu prprio pele-vermelha lhe permitiu conter o pele-vermelha do paciente sem temer tanto o seu prprio, para que cada um deles conseguisse encontrar uma maneira de dar algum alvio e espao a seu prprio pele-vermelha.

    Devo dizer que ns trs conseguimos, j que eu mesmo estava prestes a completar 60 anos, e, quando criana, um dos meus heris favoritos era Co-chise, que aproveita ao mximo as circunstncias para que seu prprio espa-o e direito de existir fossem reconhecidos, e ambos tinham sido ignorados por muito tempo.

    O SONHO DO CAMPO

    As medalhas de Loredana

    Loredana era uma mulher de cerca de 35 anos que se apresentou com um tipo de patologia narcisista. Ela alegava no precisar de anlise como pacien-te, mas a queria apenas por motivos profissionais, como psiquiatra traba-lhando com pacientes difceis. Bom, eu tambm tenho algumas dificuldades emocionais. Percebi sua necessidade de negar seu prprio sofrimento, mas no a mencionei explicitamente, e fiquei impressionado com o interesse que ela expressou no mundo rabe: quase estudou lnguas orientais em vez de medicina, e era fascinada por esse mundo pela enorme riqueza e pela gran-de pobreza desses pases.

    Desde o incio, essa anlise corria um grande risco de ser interrompida, e foi marcada por atuao (acting out) e indcios de uma reao teraputica negativa at que percebi que, como sugeriu um sonho, Loredana no tinha recursos para o tratamento, cujo custo era muito alto (em nvel emocional).

    Lembro-me de que, depois de algumas de minhas interpretaes, subiu ao palco uma criana levada ala de reanimao aps engolir pregos, e que, depois de qualquer interpretao que eu pensava poder apresentar dire-tamente, aparecia imediatamente uma menina quase cega por ter recebido oxignio demais na incubadora. Por outro lado, se eu visse uma overdose de

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    interpretao que estava administrando e atenuasse meus comentrios, isso era recebido e sinalizado pela chegada na sesso de um oftalmo que ajudava a menina com tratamentos no invasivos, de modo que ela tinha boas pers-pectivas de recuperar a viso. Mais uma vez, se me sentisse demasiado efi-ciente, ela imediatamente mencionava o mdico-chefe que tinha feito um curso de gesto e funcionava o tempo todo em modo de crebro eletrnico. Em um sesso especialmente significativa, depois de eu apresentar uma inter-pretao direta relacionando a raiva intensa que ela era capaz de sentir de-pois de um sonho enraivecido com algo que a tinha feito sofrer muito uma ferida profunda que sempre tinha sido negada Loredana me interrompia apavorada, exclamando: O que est acontecendo, o que est acontecendo? Eu estou vendo a mscara no quadro em frente se levantando... Nem preciso dizer que, na imagem da parede oposta, no havia mscara em movimento e, na verdade, nem havia mscara alguma.

    Percebi que minhas interpretaes estavam estourando os limites do continente () e dando origem a uma perseguio extrema. Ento, se eu interpretasse essa perseguio ou os sentimentos gerados por minhas inter-pretaes (cime, inveja, intolerncia ou dependncia), ela faltava a sesses, trazia relatos de ataques de fria ou falava sobre a pssima relao que tinha com o irmo, que rejeitava qualquer coisa que viesse dela rejeio e des-prezo. Ficou claro para mim que no havia por que interpretar tudo isso na transferncia e que eu deveria mudar minha tcnica habitual. Ento, apare-ceu Luigi, seu novo namorado, que se deixa dirigir por mim, atencioso, carinhoso e nem um pouco burro, mas menos experiente do que eu. Eu usei interpretaes cuidadosamente dosadas para acompanhar seu relato des-sa histria de amor, que deixou de lado outros pretendentes possveis: Ulis-ses, que queria sexo mais do que qualquer outra coisa (ele aparecia sempre que eu a tocava com interpretaes transferenciais), e Carlo, que s con-seguia ter uma amizade platnica (ele subia ao palco quando eu estava muito reservado e distante). Luigi parecia ser o terreno intermedirio adequado, e em pouco tempo eles se casaram. Ela ficou grvida em seguida, e o beb pa-recia ter duas conotaes: uma defensiva, relativa ao custo de sua anlise, e uma criativa.

    A gravidez enriqueceu a vida emocional de Loredana, que comeou a ser vivenciada e narrada atravs das emoes ativadas, que ela descobriu na menininha. Durante muito tempo, sua prpria ansiedade de separao era trazida na forma da ansiedade da Martinha (a criana chorava desespe-rada quando sua me se afastava); seu prprio cime era chamado de ci-me da Marta, quando ouve que um novo irmozinho est a caminho e suas prprias necessidades eram a fome incontrolvel de Tommy, que se aproxi-mava de ganncia.

    Assim, por muito tempo, tivemos que nos contentar com a histria como era narrada (apesar de minha convico absoluta de que estvamos falando

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    e trabalhando exclusivamente sobre os fatos emocionais e mentais do con-sultrio), at que finalmente foi possvel encontrar uma forma mais explcita de permitir que Loredana abordasse as emoes reconhecendo-as como suas.

    As vrias medalhas de um sonho do incio de sua anlise deram lugar a vrios buracos (necessidades) de um sonho posterior, que tinham sido ocul-tados pelas medalhas, na condio de prteses.

    Agora comeava um perodo em que Loredana se dispunha a retomar a posse de reas geogrficas cindidas de sua mente. Seus sonhos passaram a ser povoados de ciganos, imigrantes vendendo produtos na rua, rabes, que eram, por vezes, furiosos como Marta (quando estava com raiva, Marta era to incompreensvel que poderia muito bem estar falando rabe) e por vezes procuravam asilo... Depois veio Lassie, a criatura fiel capaz de encontrar seu prprio caminho para casa.

    As crianas muito doentes que ela estava comeando a tratar com psico-terapia agora subiam ao palco; cada uma representava o problema especfico que nos preocupava no momento, e aqui, mais uma vez, era necessrio seguir uma rota interpretativa longa e indireta.

    A prxima a aparecer foi Claudia, que tinha uma fobia escolar devido ao medo de um professor demasiado exigente (sempre que eu aumentava mi-nha dosagem interpretativa), ou fobia de frutas porque significava ou indica-va o fim da hora do jantar, quando o pai sairia; Marina, que estava to apai-xonada por seu namorado, que no cuidava dela como ela gostaria, e muitos outros personagens, cada um com o seu prprio tema.

    Agora, apresentarei duas sesses que ilustram esse estilo de trabalho.

    Sesso

    Anuncio um aumento dos meus honorrios a partir do Ano Novo ( outubro). A paciente falta s prximas duas sesses. O que significa quando um analis-ta aumenta o preo a partir do Ano Novo? Nas palavras do ditado italiano, anno nuovo, vita nuova [ano novo, vida nova]: talvez o analista estivesse tra-balhando com a ideia de comear uma nova vida analtica, em um nvel mais elevado (e com maior custo emocional).

    Segunda-feira

    Paciente: Os ltimos dias foram terrveis: uma inacreditvel carga de traba-lho na clnica, eu no consegui dar conta, depois a Marta teve uma otite e, ainda por cima, o carro no pegava... A Marta no aguen-ta o Tommy: trata mal, bate nele porque tem muita raiva dele. A ela teve um episdio de terror noturno... e se seu pai passasse per-

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    to dela, ela se escabelava gritando... tem que ser o complexo de dipo!

    Analista: (isso escapa, e na mesma hora me dou conta de que excessivo, no est bem elaborado). Deve ser o aumento! (Ento, acrescento o se-guinte, sem perceber no momento que poderia talvez ter assumido para mim a raiva dos rabes.) Eu fico pensando se podemos li-gar a sesses faltadas tudo o que aconteceu nos ltimos dias ao aumento que eu pedi: talvez tenha despertado emoes que voc no conseguiu enfrentar... O seu ouvido di quando voc ouve cer-tos pedidos... Voc no conseguiu se mobilizar para vir aqui... Voc est to brava comigo e com medo de mim... (e, quem sabe, talvez a carga de trabalho incrvel, mencionada pela paciente seja o n-vel mais elevado que o analista deseja comear no trabalho anal-tico).

    Paciente: (depois de alguns minutos de silncio, durante o qual eu sinto uma espcie de desconforto e aguardo sua resposta ao que eu disse). Algo terrvel aconteceu com Marcella (de quem eu lhe falei h algum tempo): ela foi estuprada em uma garagem por um ex-namorado que se viciou em drogas. Como vingana porque ela o deixou, ele a estuprou.

    Analista: (note como a paciente responde interpretao transferencial, em parte, introduzindo um novo personagem no campo, o ex-namorado de Marcella, viciado em drogas e estuprador... abstenho-me da in-terpretao transferencial, que se mostrou demasiado violenta para a paciente nessa conexo, e dou preferncia a uma interpretao insaturada, isto , que no revela abertamente a transferncia, e sim permanece no nvel dos personagens da sesso. Uma interpreta-o transferencial saturada descreveria de forma explcita e direta como a paciente recebeu as minhas palavras como um estupro, em minha raiva por ela ter me abandonado durante duas sesses, pois acho que teriam sido intolerveis. Em vez disso, eu comento o se-guinte). Deve ter sido uma experincia terrvel para a Marcella, ser violentamente agredida, e por algum de quem ela tinha sido ntima, em quem ela pode muito bem ter confiado.

    Paciente: Sim, mas, ao mesmo tempo, ela sempre tem seu novo namorado por perto, com quem ela pode conversar, ele carinhoso e a com-preende bem.

    Analista: Isso pode ajud-la a digerir a agresso de alguma forma. (Aqui no-vamente, opto por no descongelar a transferncia, mas claro que considero a comunicao da paciente como uma referncia a minha ltima interpretao, e que eu tinha sido vivenciado como um namo-rado carinhoso, com quem ela pode finalmente conversar e em quem ela pode confiar livremente.)

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    Paciente: (Depois de alguns minutos de silncio). Enquanto brincava com a Marta, eu pensava na grande diferena que h entre um camun-dongo de verdade e o Mickey Mouse, o personagem do desenho, e ento eu pensei num filme que eu vi na TV sobre formigas que tinham crescido at ficarem enormes, depois de ser expostas ra-diao: elas atacaram duas pessoas que gostavam uma da outra... Animais como os camundongos realmente podem dar medo.

    Analista: (qual aspecto do paciente Marta, que ela trouxe neste momento na anlise? Imagino que possa ser uma referncia aos elementos criati-vos, geradores da sesso. Abstenho-me de uma interpretao que de-codificaria os camundongos como emoes vivas e assustadoras, e Mickey Mouse como o sentimento contido na interpretao narra-tiva, e no interpreto a radiao como sendo as minhas palavras perigosas que desencadeiam frias terrveis). Ento os camundon-gos so perigosos: eles tambm carregam raiva!... (Em italiano, o termo rabbia [raiva] serve tanto para o sentimento quanto para a enfermidade, a hidrofobia).

    Paciente: E a praga tambm... Me lembro de uma histria em quadrinhos na qual formigas enormes invadem a terra sob a orientao de extra-terrestres... e as pessoas no sabiam como se defender... E me lem-bro de um sonho que eu tinha com muita frequncia, com formi-gas enormes saindo de uma ferida no meu corpo.

    Analista: (abstenho-me de interpretar a invaso de sentimentos que infestam sua mente, dos quais ela no sabe defender a si prpria, a mim, nem anlise). Mas existem remdios tanto para o sentimento de rai-va quanto para a doena raiva e, alm disso, esse sentimento e as formigas no vm do nada: no sonho elas saem de uma ferida, de modo que algum deve ter machucado voc...

    Paciente: Ummm, sim, o aumento... Sabe como , no consultrio onde eu trabalho, minha amiga, que tambm minha colega, quer aumen-tar o aluguel, e isso est me causando muitos problemas, porque ela est pedindo demais.

    Analista: (no abordo a diviso evidente entre o aumento do aluguel e o au-mento dos meus honorrios, e reflito sobre o custo incluindo o custo emocional da anlise para esta paciente). Mas sua amiga to in-flexvel de modo que voc no pudesse, talvez, retomar o assunto e chegar a um acordo?

    Paciente: (depois de alguns minutos de silncio). Eu li no jornal que o Super--homem tinha morrido...

    Analista: (desisto de interpretar a retrao da sua projeo de onipotncia em mim). E talvez os tempos de Supermulher tenham terminado, ago-ra que voc pode ser ferida e ter dificuldades econmicas (estou pensando no custo emocional da anlise).

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    Paciente: Bom, agora eu estou confiante de que minha amiga vai me dar um pouco mais de tempo, com certeza vou falar com ela sobre isso na prxima semana, quando ns combinamos de nos encontrar aqui em Pavia.

    Alguns meses depois

    Paciente: Eu me senti muito mal na tera-feira: deixar as crianas sozinhas eu simplesmente no conseguia fazer isso, ento eu no vim...

    Analista: E ento, na quarta-feira, l estava o meu telefonema (cancelando a sesso dela e deixando que se sentisse sozinha, como seus filhos).

    Paciente: Sim, eu fiquei com receio de que voc tivesse feito isso para se vingar de mim... Ento eu disse a mim mesma que no podia ser isso... A eu tive um sonho. Primeiro eu tenho que dizer que eu tinha visto um documentrio na TV sobre Pigmeus que estavam muito incomodados com a devastao que os brancos estavam causando na floresta; no documentrio, eles contavam que lima-vam os dentes para deixar bem afiados, o que era muito til para a carne, em vez de usar facas, mas era terrivelmente doloroso, por-que eles tambm chegavam na dentina e na polpa, embaixo das partes duras... Bom, no sonho, meu irmo chegou em casa choran-do e gritando de dor, tinham feito alguma coisa nos dentes dele, talvez uma limpeza. Ele estava sofrendo muito, e eu tentei dar algo aspirina ou algo do tipo mas no adiantava. Eu fiquei ali um tempo, tentei ajud-lo, e depois eu sa.

    Analista: O que tudo isso lhe sugere? (Tambm importante ajudar o pacien-te a ampliar o seu prprio pensamento. Por um lado, isso pode aju-dar o par analtico a permitir que novos aspectos assumam o palco talvez alguns em que o analista ainda no tenha pensado e, por outro, geram uma capacidade narrativo-poitica no paciente.)

    Paciente: Bom, isso no difcil, me faz pensar que eu estou sentindo dor e sofrimento... nas sesses em que no vamos nos ver... antes, eu nunca teria sido capaz de admitir... se eu estou sofrendo assim, como que um dia eu vou conseguir me virar sem voc? Bom, ba-sicamente, devo dizer que uma razo por que eu no vim na tera--feira era que eu no queria ouvir voc me dizer quando seriam as suas frias de vero...

    Analista: E a a ideia de que as crianas iam ficar sozinhas fez voc se sen-tir horrvel.

    Paciente: Eu entendo o que voc quer dizer... verdade. Analista: Tambm verdade que agora essa dor por ter sido deixada sozi-

    nha pode ser tomada para si, voc pode cuidar dela e procurar so-

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    lues, mesmo que ela fique insuportvel... e depois voc vai embo-ra, como no sonho. Outra coisa que me ocorreu que as sesses per-didas, ou feriados, so como danos causados floresta dos pigmeus ... e os pigmeus me fizeram lembrar das crianas Calimero,* cria-turinhas pretas, porque so negligenciadas. Ento, me deixe lhe dizer as datas das frias de vero: de... at...

    Paciente: (depois de alguns minutos de silncio). Na ala do hospital, tem al-gum chamado Michele, que est muito zangado. Ele no supor-ta o mdico-chefe, que quem toma as decises... ele diz que vai embora daqui a um ano... que no quer vir mais... ele ficou furioso porque uma menininha no conseguiu fazer a anlise de que pre-cisava, ele estava espumando de raiva...

    Analista: Michele ameaa ir embora quando acha que algo injusto, um ato autoritrio, e basicamente, tambm, porque est tentan-do defender uma menina que precisa de anlise... ele est meio que se vingando, como voc receava que eu estivesse fazendo ao cancelar a sesso de quarta-feira depois que voc faltou na tera. (Nesta interpretao, estou cautelosamente trazendo a transferncia de forma mais explcita, mesmo que a nfase principal ainda esteja na interpretao do personagem Michele, a quem eu vejo como uma referncia a mim.)

    Paciente: Sim, Michele muito bravo, ele realmente iria embora, mas, por outro lado, a ele comearia tudo de novo, e depois sairia de novo... cada vez que ele se sente em uma situao...

    Analista: Ummm: a raiva do Michele, os dentes dos pigmeus afiados para rasgar e penetrar a carne, como facas, eu acho que eles tambm esto nos falando da raiva que voc sentiu quando eu mencionei as frias; mas no vamos nos esquecer de que limar os dentes muito doloroso, como no sonho, para o seu irmo... e que suas partes ternas e afetivas esto sofrendo por tudo isso, e Michele reservado, mas talvez, tambm, compreendido na sua raiva, e aci-ma de tudo, em seu sofrimento. como o seu irmo no sonho, quando voc quer lhe dar um remdio, a aspirina. O que poderia ser a aspirina?

    Paciente: Bom, eu decidi viajar por um ms neste vero... Eu estou indo para a Siclia, para ficar bem longe da minha me, eu vou me sentir mais calma l...

    Analista: Ento talvez voc v matar dois coelhos com uma cajadada: O Michele gostar de ficar longe por um ms... longe da me ou

    * N. de T.: Calimero um personagem de quadrinhos, desajeitado, com ar infantil, dos comerciais italianos.

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    quem quer que lhe cause dor... mas a polpa e a dentina tambm ficaro felizes de estar na Siclia, onde voc imagina que eu tam-bm vou estar... (o analista siciliano).

    Paciente: (aps um silncio de cinco minutos.) Finalmente eu consigo ver o que diz abaixo daquela imagem: colorido mo. Uma imagem que colorida mo pelo artista vale mais e melhor...

    Analista: Ah, a imagem... essa imagem tem sido importante para ns dois. Paciente: Sim... as sacadas em frente minha casa (a referncia a uma me-

    nininha psictica que ela viu e sobre a qual trabalhamos por um longo tempo).

    Analista: O outro tambm... (referindo-se s alucinaes/quadros de um fil-me de sonho acordado, quando ela viu a mscara se mexer.)

    Paciente: Quando eu estava tentando fazer Valentina dizer algo hoje, ela me desenhou um cachorro de culos, usando um leno e fumando cachimbo, um cachorrinho farejador bonito, e colocou a mo na frente de sua boca como se quisesse dizer: chega por hoje!

    Analista: Para bom entendedor, meia palavra basta... (a transferncia tambm onipresente, embora apenas insinuada, nas ltimas interaes dessa sesso. Esse estilo nos permitiu farejar a situao da paciente, sem muitas experincias persecutrias e, no final do encontro, um novo personagem faz sua apario: o cozinho farejador agradvel...)

    Apesar de eu achar que essa abordagem ajudou na provocao, metabo-lizao e transformao de emoes muito primitivas, a sesso seguinte, aqui reproduzida de forma indireta, mostrou-me que era insuficiente.

    Tenho que adiar a sesso de Loredana por uma hora.1 No incio da ses-so, quando ela comeava a falar, distraio-me com sentimentos de raiva in-tensa em relao ao servio ruim do correio, que faz com que as cartas no sejam entregues a tempo e tambm tenham probabilidade de se perder. En-to, consigo ouvir a paciente de novo: enquanto isso, ela est dizendo que viu um filme em cores e outro em preto e branco. No primeiro, uma menininha indesejada em uma casa comete suicdio e seu irmo se vinga matando todos os responsveis por sua morte. O outro uma histria triste, ambientada em Pavia, sobre a esposa de um mdico que morre no parto, mas sua filhinha so-brevive.

    No me difcil produzir, eu mesmo, uma interpretao exaustiva de contedo (os sentimentos furiosos inicialmente desencadeados em EP por meu adiamento desespero, fria e vingana e os mesmos sentimentos revi-sitados no modo depressivo, com aceitao da perda da sesso e do nascimen-to da nova sesso). Em outras ocasies, a paciente tem mostrado que ainda no tm um lugar para acomodar as interpretaes que vm de mim, ento eu dou uma interpretao insaturada, simplesmente chamando ateno para os tons afetivos diferentes dos dois filmes.

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    Depois de um breve silncio, a paciente diz: Acabo de me lembrar de um sonho: Eu estava lavando umas blusas com o programa superdelicado, que muito bom para ls finas, mas como o ciclo de centrifugao desse pro-grama tambm superdelicado, as blusas ainda estavam molhadas e eu fiquei com receio de que elas estivessem pesadas demais para o varal.

    Vejo a mquina de lavar roupa como a funo de transformao, de ela-borao da mente, que recebe material sujo e devolve lavado e seco para que possa ser usado. No entanto, a transformao ideal de elementos beta (a rou-pa suja) em elementos alfa (roupa limpa e seca) aqui no funciona, pelo me-nos em parte, e o resultado apenas parcialmente satisfatrio: a roupa est limpa, mas ainda no pode ser usada. Eu pergunto se ela acha que uma lava-gem normal poderia estragar as blusas, para explorar se uma interpretao transferencial mais explcita pode estragar o nosso trabalho. Ela responde que no, porque j foram lavadas vrias vezes com o ciclo superdelicado, por isso no esto mais propensas a estragar. Ela acrescenta que estava pensando em sua irm Carmen, que uma vez lavou e pendurou um tapete no varal, mas no pode us-lo at ele secar, e isso a fez chorar muito.

    No passado, era vital submeter o material trazido s sesses a uma la-vagem delicada, em outras palavras, eu tinha de ficar no nvel das interpre-taes insaturadas por muito tempo. Agora, porm, acho que posso progra-mar uma lavagem normal (que agora esperada e desejada), e relaciono, na transferncia, os sentimentos do primeiro sonho aos do segundo: as expe-rincias da irm que no pode esperar e a nova capacidade de tolerar suas emoes. Percorrer o caminho para uma interpretao transferencial muitas vezes pode demorar bastante, principalmente nos primeiros anos de anlise, mesmo com pacientes que tm problemas menos graves, ou mesmo quando o trabalho est em estgio avanado, onde so iminentes novas partidas, par-ticularmente difceis.

    A paciente comenta: Agora eu entendo toda a raiva que eu estava sen-tindo ontem, brigando com todo mundo... (e eu, por outro lado, compre-endo a raiva que senti dos carteiros que no conseguiam entregar o correio a tempo).

    Um ano depois, a situao parece muito diferente. Tornou-se necessrio que falssemos um ao outro com clareza, e eu tentei entender vrias coisas que aconteceram nos ltimos meses, que eu no tinha entendido. Eu tambm era capaz de enfrentar o problema do no: Loredana no conseguia pro-nunciar a palavra no nem aceit-la quando algum lhe dizia isso essa foi uma das razes do seu bom comportamento, a todo custo. Eu conseguia di-zer no a ela e descobrir, com alvio, que os rabes j no eram mais to perigosos.

    Consideremos os eventos em ordem.Loredana inesperadamente me pergunta se podemos trocar as quatro

    sesses que costumvamos fazer por semana para trs, j que a cidade onde

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    ela mora bem longe de Pavia e as crianas precisam dela. No estou se-guro de como tratar esse pedido, e fico ainda mais desconcertado quando ela pergunta se eu acho que vai demorar muito mais at ela poder encerrar a anlise.

    No estou preparado. Ela comea a me contar sobre um conflito que eclodiu na ala onde trabalha, entre ela e o Dr. Sirti, um neurologista eficiente e energtico que, no entanto, no quer se preocupar com problemas psicol-gicos. Quem ser que o mdico-chefe escolher como assistente? Tenho difi-culdades de me orientar. Tento ganhar tempo, pois a situao no est clara para mim.

    Uma segunda-feira

    Ela chega tossindo, com um forte resfriado, diz que est com raiva do mdico-chefe, porque no sabe se ele vai lhe dar o cargo de assistente, que lhe permitiria administrar seus prprios casos. Ela certamente tem o tempo de trabalho e a experincia, mas tem medo que ele a puna pela licena que ela tirou para suas duas gestaes.

    Ela tambm teve um sonho: estava em uma loja de comida e tinha um cobertor grande no carrinho; achando que talvez no precisasse, ela no sa-bia se dava a uma mulher que estava perto ou ficava com ele. Houve tambm um segundo fragmento: ela estava com o carrinho fora da loja, com muitas coisas teis que tinha comprado, mas o caminho da estrada ainda no tinha sido marcado, a realidade era difcil, no havia nenhuma conexo com qual-quer outro lugar, e ela no sabia o que fazer.

    Em italiano, o mdico-chefe assistente chamado de aiuto, palavra que tambm significa ajuda. Digo que me parece haver duas partes nela, ainda em guerra entre si: uma gostaria de desistir da quarta sesso e depois disso, da anlise geral, como um cobertor, pois acha que no precisa mais dela, mas talvez isso no seja tudo, porque ela tambm tem tosse e resfriado, ento ser que j pode pensar em abrir mo do cobertor? Mesmo assim, ela se esforou muito e aprendeu muito, e tem um carrinho, um lugar para colocar suas coi-sas e no podia tolerar que eu, seu mdico-chefe, no levasse em conta seus pedidos.

    Ainda no estou satisfeito. O que que ainda me preocupa? razovel reduzir o nmero de sesses? Terminar? Chegou a hora? Ou tem alguma coi-sa errada? Talvez eu possa aceitar o plano dela... sensato... Falo com ela so-bre ele em termos de algo que podemos pensar, mas no estou totalmen-te convencido.

    Ela chega sesso seguinte incomodada e em lgrimas, 20 minutos atra-sada: o mdico-chefe no tem confiana nela e certamente vai escolher seu colega neurologista como assistente; ele no d qualquer valor investigao

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    de problemas mentais. Ela ainda tem alguma esperana de conseguir se de-fender diante do velho e respeitado mdico-chefe em Pavia.

    Ento, ela menciona um sonho: com Daniela, uma psicloga que est fazendo um curso de psicoterapia, mas que no quer fazer anlise, e trs ou quatro ingleses lendo um jornal... e ela est procurando os culos.

    Agora eu me sinto capaz de juntar as coisas: a distncia da qual ela esta-va se queixando, a necessidade das crianas de ter sua me perto; a pergun-ta Quem eu vou escolher para me ajudar [aiuto]?, Loredana e seu interesse em mergulhar nas profundezas psicolgicas contra o neurologista eficiente, junto com a Daniela, que no quer ir s profundezas.

    Eu lhe digo que o sonho nos abre alguns caminhos: Daniela est nos dizendo que no quer mergulhar nas profundezas de sua anlise, ento chega atrasada, que quer reduzir as sesses, que est com raiva porque receia que eu no tenha tomado seu partido imediatamente; que reagiu fleumaticamen-te e com reserva, como um ingls, e que agora eu acho que, usando os meus velhos culos de mdico-chefe redescobertos, posso escolh-la como Assisten-te [ou seja, como aiuto para ajuda]. Portanto, digo-lhe que discordo de Da-niela em relao s trs sesses e ao encerramento.

    Ela sai em silncio. Na prxima vez, ela me diz que este foi o primeiro no de toda a sua vida, que no a matou, e que o mdico-chefe a escolheu como assistente.

    O no do analista, na verdade, funciona como limite expanso do processo de conteno. Nesse caso, no um limite imposto pela severidade como tal, mas pela fora da capacidade mental do analista de ter um novo pensamento naquela situao. O analista poderia, alternativamente, ter dito algo como Voc deve ficar em anlise com quatro sesses por semana por-que isso que dita a regra da psicanlise. Tal resposta teria constitudo um recurso ortodoxia, o que teria sido incompreensvel para a paciente. Em vez disso, a analista gera um no prprio, depois de ter conseguido permanecer por um longo perodo na incerteza, com base em sua prpria capacidade de sonhar sobre o sonho da paciente.

    Esse processo recebido pela mente da paciente, e, alm disso, que a histria dela tambm est sendo reescrita: o mdico-chefe escolhe a ela como sua assistente [para ajudar] e no Daniela. Assim, mais uma vez, a pacien-te a melhor assistente/ajudante e colega do analista.

    NOTA

    1. Em geral, eu simplesmente diria paciente que no posso fazer uma sesso na hora de sempre, esperaria que ela pedisse um adiamento e aceitaria ou faria o possvel para adequar realidade da minha agenda; neste caso, contudo, por saber que ela quereria reagendar a sesso quando fosse possvel, eu mesmo sugeri o adiamento.

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