OS HABITANTES DO GUAJU - Um Olhar Etnográfico Sobre o Bairro Guajuviras

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

    Instituto de Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia

    Dissertao

    OS HABITANTES DO GUAJU:

    Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.

    Leandro Barbosa dos Santos

    Pelotas, 2016

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    Leandro Barbosa dos Santos

    OS HABITANTES DO GUAJU:

    Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia, do Instituto deCincias Humanas da Universidade Federal dePelotas, como requisito parcial obteno dottulo de Mestre em Antropologia.

    Orientadora: Claudia Turra Magni

    Pelotas, 2016

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    Leandro Barbosa dos Santos

    OS HABITANTES DO GUAJU:

    Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.

    Dissertao aprovada, como requisito parcial, para obteno do grau de Mestre emAntropologia, Programa de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de CinciasHumanas, Universidade Federal de Pelotas.

    Data da Defesa: Pelotas, 31 de maio de 2016.

    Banca examinadora:

    Prof. Dra. Claudia Turra Magni (Orientadora)Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela Ecole des Hautes tudes enSciences Sociales

    Prof. Dra. Ana Luiza Carvalho da RochaDoutora em Antropologia pela Universit Paris Descartes

    Prof. Dra. Flavia Maria Silva RiethDoutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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    Agradecimentos

    Dedico este trabalho minha esposa Amanda

    a pessoa que mais acreditou em mim

    nestes anos de incertezas.

    Gratido deveria ser mais do que gestos e palavras bem intencionadas.

    Necessitaria ser o reconhecer a alegria da convivncia, o prazer da caminhada com

    o amigo, o deleite de ser amparado e aceito, e o encanto de compartir a beleza da

    vida em serenidade. Gratido no careceria ser medida em versos, ou precisar de

    presentes ou demonstraes de afeto exageradas. A gratido necessitaria apenasconter a simplicidade do gesto, o singelo olhar verdadeiro, e a multido de palavras

    que so descritas no silncio. Gratido o ato de recorrer memria em busca de

    imagens vivas, aquelas lembranas que s encontramos nos verdadeiros amigos,

    em especial a esperana de continuar caminhando junto. A gratido a maior

    recompensa de quem sabe que a vida se constituiu no ato de compartilhar, de abrir

    e descobrir caminhos, de doar-se sem pretenso, de acreditar no outro. Gratido

    acima de tudo uma expresso da verdadeira humanidade.

    Momentos que roubamos de amigos

    Encontramos o feliz prazer e sentido,

    O sabor audaz que rouba o medo

    Que zomba da tristeza ou perigo

    Deleite este possuir um verdadeiro amigo

    O Feliz saber que de almas somos ligados

    Levando mesmo a distncia uma parte consigoO que de mais fiel do que contar segredos com sorrisos?

    Sim, ter a fascinao deste fiel amigo.

    Dedico minha gratido a todos que no intimo compartilharam comigo um

    pouco de si, estou seguro de que vocs sabem que so parte de tudo que sou e

    estaro sempre comigo onde eu estiver.

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    Se o sinh no t lembrado

    D licena de contar

    Aqui onde agora est

    Este ardifcio arto

    Era uma casa velha

    Um palacete assobradado

    Foi a, seu moo, que eu, Mato Grosso e o Joca

    Construmo nossa maloca

    Mas, um dia, nis nem pode se alembr

    Veio os home com as ferramenta

    O dono mandou derrub

    Peguemo todas nossas coisa

    E fumo pro meio da rua

    Apreci a demolio

    Que tristeza que nis sentia

    Cada taubua que caia

    Doia o corao

    Mato Grosso quis grit

    Mas em cima eu falei

    Os home t com a razo

    Nis arranja outro lugar

    S se conformemo

    Quando o Joca falou

    "Deus d o frio conforme o cobert"

    E hoje nis pega as palhaNa grama do jardim

    E pra isquece nis cantemo assim

    Saudosa maloca, maloca querida

    Dim dim dom de nis passemos dias feliz de nossa vida

    Saudosa maloca, maloca querida

    Dim dim dom de nis passemos dias feliz de nossa vida

    Saudosa MalocaAdoniran Barbosa

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    Resumo

    SANTOS, Leandro Barbosa. Os habitantes do Guaju: Um olhar etnogrfico sobre oBairro Guajuviras. 2016. 194f. Dissertao (Mestrado em Antropologia) Programa

    de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de Cincias Humanas, Universidade

    Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

    Esta pesquisa versa sobre as memrias coletivas e prticas cotidianas dehabitantes do Bairro Guajuviras, Canoas, Rio Grande do Sul, considerando-se os

    arranjos temporais que ritmam o viver cotidiano dos moradores de cidadesbrasileiras, configurados em suas expresses, imagens e narrativas. A partir de umaabordagem antropolgica visual, utilizou-se, como mtodo, a etnografia emcontextos urbanos, atentando-se linha de estudos relativos s sociedadescomplexas, e, como objetivo a anlise do fenmeno da memria e da durao,entendido como cerne das afinidades sociais dos habitantes do espao urbanocontemporneo. Com base nos estudos concernentes narrativa biogrfica e trajetria social, buscou-se compreender o fenmeno da durao e da memria dolugar, tendo como princpio as interpretaes das formas de negociao doshabitantes locais. Diante do carter inacabado do viver urbano, o destaque seencontra nas estruturas espao temporais que evidenciam o fenmeno da alteridadee da experincia humana com a cidade. Investigou-se como esses habitantes seidentificam reciprocamente, incluindo a perspectiva solidria local, revelando nasnarrativas o traado que transcende o tempo, conduzindo muitos dos modos deestabelecer vnculos no espao.

    Palavras-chave: Memria, Narrativa Biogrfica, Trajetria Social, AntropologiaUrbana e Visual, Guajuviras, Canoas.

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    Abstract

    SANTOS, Leandro Barbosa. The Inhabitants of Guaju:An ethnographic glance atthe neighborhood Guajuviras. 2016. 194f. Dissertation (Master Degree inAntropologia)Programa de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de CinciasHumanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.

    This research turns on the collective memories and everyday practices ofinhabitants of neighborhood Guajuviras, Canoas, Rio Grande do Sul, considering thetemporary arrangements that rhythm the daily lives of the dwellers of Brazilian cities,

    set in their expressions, images and narratives. From a visual anthropologicalapproach it was used as method ethnography in urban contexts, paying attention tothe line studies on complex societies, and as objective to analyze the phenomenon ofmemory and duration, understood as the core of social affinities of the inhabitants ofcontemporary urban space. Based on studies concerning to the biographicalnarrative and social trajectory, it aims to understand the phenomenon of life andmemory of the place, with the principle interpretations of forms of negociation of thelocals. Faced the unfinished character of urban living, the highlight is the temporalspace structures that evidence the phenomenon of alterity and human experiencewith the city. It was examined how these people identify with each other, includinglocal solidarity perspective, revealing the narratives tracing that transcends time,leading many ways to establish links in space.

    Key-words: Memory, Biographical Narrative, Social Trajectory, Urban and VisualAnthropology, Guajuviras, Canoas.

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    Lista de Figuras

    Figura 1 Localizao do Bairro........................................................................ 11

    Figura 2 Delimitao do Territrio................................................................... 12

    Figura 3 Mapa das Invases Posteriores........................................................ 13

    Figura 4 Vista Area 70 metros....................................................................... 14

    Figura 5 Entrada do Guajuviras....................................................................... 20

    Figura 6 Com alunos da Turma 82b................................................................ 23

    Figura 7 Diferentes vistas dos prdios............................................................. 42

    Figura 8 Guajuviras recm-ocupado................................................................ 43

    Figura 9 Guajuviras atualmente....................................................................... 44Figura 10 Algumas fotografias que compe a constelao dos smbolos de

    coexistncia e religiosidade............................................................... 48

    Figura 11 Algumas fotografias que compe a constelao Os Caminhos da

    Memria............................................................................................. 50

    Figura 12 Esquema do Blog.............................................................................. 57

    Figura 13 Blog.................................................................................................... 59

    Figura 14 Facebook........................................................................................... 59Figura 15 Twitter................................................................................................ 60

    Figura 16 YouTube............................................................................................ 60

    Figura 17 Imagem retirada de mdia social....................................................... 62

    Figura 18 Trajetos............................................................................................. 66

    Figura 19 Jferson Cristian................................................................................ 84

    Figura 20 Roberto dos Santos e grupo de samba no Colgio Guajuviras......... 87

    Figura 21 Pe. Armindo Cattelan......................................................................... 92Figura 22 Moradores e policiais beirando o confronto....................................... 99

    Figura 23 As construes inconclusas j ocupadas.......................................... 99

    Figura 24 Gerson Rocha.................................................................................... 100

    Figura 25 Salvo conduto oferecido pela COHAB............................................... 101

    Figura 26 Jorge Grin e Joo de Iemanj......................................................... 104

    Figura 27 Festividade realizada no dia das Crianas 2015............................... 106

    Figura 28 Edimar Dias...................................................... ................................. 113

    Figura 29 Jrson Cristian................................................................................... 118

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    Figura 30 Modificaes nos prdios.................................................................. 123

    Figura 31 Evoluo das reas verdes e institucionais....................................... 124

    Figura 32 Mapa de Localizao........................................................................ 127

    Figura 33 Sistema Virio.................................................................................... 128

    Figura 34 Avenida 17 de Abrilintensidade de usos........................................ 130

    Figura 35 Avenida 17 de Abril............................................................................ 132

    Figura 36 Edio 19 de abril de 1997................................................................ 138

    Figura 37 Edio 23 de junho de 1997.............................................................. 140

    Figura 38 Guajuviras sujando a cidade............................................................. 141

    Figura 39 Dados IHA......................................................................................... 146

    Figura 40 Grfico observatrio de Segurana Pblica Canoas......................... 148Figura 41 Foto da ocupao com diversas personalidades da poltica brasileira.. 149

    Figura 42 Relato de Edimar sobre habitar o Guajuviras.................................... 151

    Figura 43 Guajuvirenses Vida Loka................................................................... 156

    Figura 44 Imagens produzidas sobre os moradores do bairro.......................... 157

    Figura 45 Irmo Antonio Cechin em sua residncia.......................................... 164

    Figura 46 Gruta em homenagem a N. Sra. Aparecida no Guajuviras.............. 170

    Figura 47 Aulas de educao patrimonial na Escola Municipal Guajuviras...... 171

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    Lista de Abreviaturas e Siglas

    ABNG Agncia da Boa Notcia Guajuviras

    CAIC Centro de Ateno Integral Criana

    COHAB/RS Companhia de Habitao do Rio Grande do Sul

    DOPS Departamento de Ordem Poltica e Social

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IHA ndice de Homicdios na Adolescncia

    NECHA Ncleo de Extenso, Histria e Cultura Afro-brasileira

    PDUA Plano Diretor Urbano Ambiental

    PIBID Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia

    PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania

    PRVL Programa de Reduo da Violncia Letal

    SICONV Sistema de Gesto de Convnios e Contrato de Repasses do

    Governo Federal

    UNISEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia

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    Sumrio

    1 Introduo ....................................................................................................................... 11

    2 Trajetria de pesquisa .................................................................................................... 20

    2.1 De Historiador a aprendiz de Antroplogo atravs do estudo das narrativas................ 20

    2.2 Elementos terico-metodolgicos na incurso de pesquisa em campo ......................... 26

    2.3 O uso da imagem como fundamento para constituio da pesquisa .............................. 33

    2.4 Uma viagem entre colees e constelaes....................................................................... 45

    2.5 Copresena em comunidades virtuais e weblogs.............................................................. 51

    2.6 A proposta de documentrio.................................................................................................. 63

    2.7 O DVD interativo...................................................................................................................... 652.8 Por uma antropologia da imagem......................................................................................... 66

    3 Guajuviras: De espao de conquista a territrio da paz (um olhar de dentro e deperto) .................................................................................................................................. 71

    3.1 A trajetria do bairro enquanto espao ocupado: rotinas e conflitos............................... 81

    3.2 Tenses entre formas de habitar: diferentes usos e significados de espaos que soconsiderados pblicos................................................................................................................. 111

    3.3 Caminhar na rua.................................................................................................................... 120

    3.4 Avenida 17 de abril, o ponto de observao..................................................................... 1264 Guajuviras sitiado: um espao merc do estigma? (Um olhar de longe e de fora).......................................................................................................................................... 136

    4.1 Guajuviras sob constante observao: um bairro na mdia............................................ 137

    4.2. Guajuviras: um territrio da paz?....................................................................................... 143

    4.3 Do bairro para o municpio: o trajeto do bairro.................................................................. 150

    4.4 Do municpio para o bairro: fluxos e percursos......................................................... 154

    5 No Guajuviras quem lembra quem conta ................................................................. 159

    5.1. A memria do espao, o ontem e o hoje.......................................................................... 163

    5.2 A memria e seus espaos de compartilhamento............................................................ 168

    6 Consideraes Finais ................................................................................................... 173

    Referncias ...................................................................................................................... 176

    Anexos.............................................................................................................................. 186

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    1 Introduo

    O Conjunto Habitacional Guajuviras, situado na cidade rio-grandense de

    Canoas, foi ocupado no dia 17 de abril de 1987, sendo considerada a maior invaso

    urbana do sul do Brasil. Para os atuais habitantes do Guajuviras, este dia se

    constitui em uma data de extrema importncia, correspondendo ao principio das

    ocupaes que foram articuladas a partir de um longo processo de tomada de posse

    do Conjunto Habitacional Ildo Meneguetti, como era anteriormente conhecido. O

    bairro Guajuviras surge na poca, sendo considerado o maior aglomerado de

    habitaes populares do Rio Grande do Sul, em um perodo marcado pela luta por

    moradia na Regio Metropolitana de Porto Alegre e tambm no Estado. Localizadona parte nordeste da cidade, considerado um dos mais populosos, conforme censo

    do IBGE de 2010, l atualmente residem mais 40 mil pessoas em 5.924 moradias,

    casas e blocos de quatro andares, devido s invases das reas verdes.

    Figura 1Localizao do BairroFonte: PDUA Canoas, 2008

    Segundo as associaes de moradores, esse nmero j ultrapassa os 60 mil

    habitantes. Ponderando sobre as motivaes dos ocupantes, Penna et Al. (1998) faz

    referncia narrativa de Luiz Carlos Zacher, um dos ocupantes no perodo:

    O preo muito alto dos aluguis, a poltica de salrios do governo Sarney, ofracasso do Plano Cruzado e a imigrao massiva da populao do campopara a cidade, foram elementos que contriburam para que a situaochegasse a esse ponto (PENNA, et al, 1998, p.32).

    Em decorrncia da crise que o pas enfrentava no perodo, fazia-senecessria uma interveno que enfatizasse a importncia de polticas pblicas

    habitacionais na Regio Metropolitana de Porto Alegre.

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    Figura 2Delimitao do TerritrioFonte: Google Earth

    Aps seis meses de enfrentamentos e resistncia, foram abertas as

    negociaes com a Companhia de Habitao do Estado COHAB/RS, e atravs de

    uma assembleia geral, os ocupantes aprovaram a proposta sugerida pelo governo, e

    os 5.924 imveis invadidos comearam a ser regularizados, dando inicio ao

    surgimento do bairro, hoje conhecido como Guajuviras. Considerado um exemplo de

    xito na militncia e luta por moradia, tornou-se um referencial ainda pouco

    explorado em sua importncia, principalmente para os movimentos sociais e debates

    sobre as articulaes pela conquista de territrio e apropriao do espao urbano.

    Em 2009, o Guajuviras tornou-se o primeiro alvo para aplicao de diferentes

    programas sociais promovidos pelo PRONASCI1. Dentre estes, destacam-se o

    Mulheres da Paz, Pacificar, Justia Comunitria, Casa das Juventudes e Agncia deBoas Notcias. Alm disso, houve um reforo do policiamento na regio, integrando

    uma ao em parceria entre a Brigada Militar, Polcia Civil e Guarda Municipal,

    atravs do Observatrio da Segurana Pblica. Hoje o Guajuviras novamente

    assume destaque nacional, sendo considerado o primeiro territrio pacificado do

    Brasil.

    1 Desenvolvido pelo Ministrio da Justia, o PRONASCI marca uma iniciativa no enfrentamento criminalidade no pas. O projeto articula polticas de segurana com aes sociais, prioriza apreveno e busca atingir as causas que levam violncia, sem abrir mo das estratgias deordenamento social e segurana pblica.

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    Figura 3Mapa das Invases PosterioresFonte: Prefeitura de Canoas

    Esta pesquisa etnogrfica versa sobre as memrias coletivas e prticas

    cotidianas de habitantes do Bairro Guajuviras, considerando os arranjos temporais

    que ritmam a vida dos moradores das cidades, configurados em suas expresses,

    imagens e narrativas. Situa-se, portanto, dentre os estudos etnogrficos em

    contextos urbanos, na linha de pesquisas relativas s sociedades complexas.

    Tomo, por fundamento, as contribuies de Eckert e Rocha (2013) sobre o

    fenmeno da memria e da durao entendida como cerne das afinidades sociais

    dos habitantes do espao urbano contemporneo. Com base nos estudos

    concernentes narrativa biogrfica e trajetria social, pretendi refletir sobre a

    construo de sentidos de espaos do bairro em meio metrpole brasileira, sobre

    sua relao com as formas de interpretao e negociao dos habitantes locais, que

    evidenciam o carter inacabado do viver urbano, e sobre as estruturas espao

    temporais, que destacam o fenmeno da alteridade e da experincia humana com a

    cidade.

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    Figura 4Vista Area 70 metrosFonte: Google Earth

    Diante das transformaes produzidas no Guajuviras, foram observados os

    diferentes ritmos temporais, atravs da anlise das pluralidades, dos estilos de vida,das cosmovises, dos cdigos tico-morais e universos simblicos de seus

    moradores, com intuito de destacar esta diversidade de formas sociais descontnuas

    evidenciadas no decorrer do processo de ocupao e estabelecimento do bairro.

    Trata-se do estudo do fenmeno da durao e da memria coletiva, tomando-se

    como ponto de partida os processos interativos vivenciados na relao do

    pesquisador com os moradores, os quais tambm articulam suas reminiscncias

    com o cotidiano do bairro, conectando as distintas maneiras que, em distintosperodos, relatam as suas experincias do habitar na cidade.

    Emprego a pesquisa qualitativa baseada no mtodo etnogrfico, tendo por

    base a tcnica da observao participante (MALINOWSKI, 1984), associada a

    entrevistas semi-dirigidas com moradores do bairro, O recurso videogrfico,

    fotogrfico e ao dirio de campo com dados parcialmente publicados em blog, e

    redes sociais que constru especialmente para este fim - foi o meio de consolidar os

    dados, partilh-los com meus interlocutores e demais interessados no tema,

    incorporando suas reaes a estas informaes e interpret-los luz de teorias

    antropolgicas.

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    Roberto Cardoso de Oliveira (1998) destaca que as entrevistas combinadas

    com observao participante complementam-se dialogicamente, possibilitando o

    exato encontro etnogrfico. J em acordo com a Antropologia Interpretativa de

    Geertz, assinalamos que a cultura ou realidade social do grupo a ser estudado deve

    ser explanada como um documento um manuscrito estranho, desbotado, cheio de

    elipses, incoerncias, emendas suspeitas e comentrios tendenciosos (GERTZ,

    1978, p.321).

    Neste sentido procurei desenvolver uma leitura das experincias vivenciadas

    em campo por meio de uma descrio densa de uma hierarquia estratificada de

    estruturas significantes em termos dos quais gestos so produzidos, percebidos e

    interpretados (GEERTZ, 1978, p.17). Com base nas crticas propostas por esteautor (GEERTZ, 1998) sobre a autoridade etnogrfica, indiquei um modelo dialgico

    e polifnico de textualizao e contextualizao do encontro etnogrfico, em que

    busquei interpretar estas narrativas e perspectivas, que em si, constituem

    interpretaes de meus interlocutores sobre suas vivncias. Nos escritos

    etnogrficos, o que se evocou enquanto nossos dados seriam a prpria

    constituio das construes de outros.

    Conforme DaMATTA (1978), atravs do registro no dirio de campo levei emconta, no apenas os dados objetivos, mas tambm a dimenso intersubjetiva da

    experincia etnogrfica, objetivando-a, atravs do registro das surpresas, emoes e

    dilemas ao qual esta sujeito o antroplogo em trabalho de campo, no contato direto

    e humano com seus interlocutores. Esta articulao entre teoria e dados empricos

    sugeriu-nos o prprio processo de escrita e construo de narrativas imagticas, que

    buscou interpretar a gama de informaes obtidas para melhor tecer a sua trama de

    significados. Conforme James Clifford,:A observao participante serve como uma frmula para o contnuo vaivmentre o interior e o exterior dos acontecimentos de um lado, captando osentido de ocorrncias e gestos especficos, atravs da empatia; de outro,d um passo atrs, para situar esses significados em contextos maisamplos. (CLIFFORD, 2002, p. 33)

    Com intuito de alcanar uma maior abrangncia nos debates sobre a

    constituio do biogrfico no contexto do mtodo etnogrfico, vamos recorrer ao

    conceito de etnobiografia proposto por Gonalves et. al. (2012). Neste sentido,

    rejeitamos a produo de uma viso autnticaou essencialista que vise alcanar oponto de vista do nativo, mas, diversamente, buscamos dar conta das complexas

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    relaes de alteridade implcitas no encontro etnogrfico e nesta representao

    sobre o outro, realizada com ele a partir de construes dialgicas.

    A noo de etnobiografia problematiza o etnogrfico e o biogrfico, junto com

    as experincias do sujeito e as suas percepes culturais, estruturando uma

    narrativa que abranja estes dois aspectos simultaneamente e a tensa relao entre

    subjetividade e objetividade, cultura e personalidade.

    Quanto ao material imagtico produzido no trabalho etnogrfico, partiremos

    da proposta de Gilbert Durand (2001) atravs da constituio da Teoria do

    Imaginrio, na qual destaca que os seres humanos so habitados por imagens, se

    refletem por meio delas e emolduram o tempo e o mundo, partindo de determinadas

    constelaes de imagens acionadas em suas tradies culturais. Destacamos que,como elemento primordial na composio desta dissertao, foi constitudo um

    acervo udiovisual, atravs do qual tornou-se possvel uma aproximao maior do

    material e corporal. O corpus fotogrfico e videogrfico produzido encontrou um

    campo frtil para o registro, a reflexo, o dilogo e as trocas em todo o processo de

    pesquisa, fomentando a experincia de campo e permitindo ao etngrafo figurar em

    imagens as problemticas de pesquisa, que assumiam uma visibilidade prpria.

    Conforme destacado por Eckert e Rocha (2011) diante dos jogos da memria,a manifestao da forma de uma imagem no encerra todos os sentidos. Nesta

    perspectiva o registro imagtico do encontro etnogrfico foi preconizado de forma a

    estimular a esta experincia de maneira multilateral. As imagens produzidas em

    campo, a posteriori, so incorporadas narrativa, atribuindo matria ao tempo

    narrado, acrescendo densidade e vibrao em um ritmo singular s distintas faces

    do tempo. Neste sentido foi proposto que o mtodo de tratamento da imagem em

    uma etnografia da durao possibilitasse um desvendamento destas estruturassubjacentes implcitas nas narrativas.

    Extrapolando sua produo e uso documental como meio de registro do

    trabalho de campo, foi proposta a problematizao do uso da imagem no decorrer

    da anlise antropolgica. a partir de uma perspectiva proposta por Samain (2012)

    que assumimos a ideia de que as imagens so pensantes, pois nos instigam a uma

    reflexo, indiferentemente da mesma estar ligada ao real, ou acionada atravs do

    imaginrio. Tambm se destaca o fato de que as imagens so portadoras de

    pensamentos comportando a reflexo de quem a produziu, e congregando os

    pensamentos daqueles que as observaram. Neste sentido as imagens tornam-se

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    lugares de memria coletiva que assumem o carter de objetos que pensam,

    conversam e se transmitem, independentemente de nossa ao.

    Ponderando sobre tal elemento, entendemos a potncia da utilizao da

    fotografia e do vdeo enquanto meios de proporcionarem pesquisa uma base

    tangvel e expressiva para elaborar essas comparaes e fundamentar visualmente

    essas inter-relaes ou encadeamentos. Ou seja, somando-se sua importncia

    para o registro de situaes em campo, assim como para a construo dialgica da

    anlise do material emprico produzido, foi ainda possvel recorrer linguagem

    fotogrfica e flmica enquanto elemento fundamental para a elaborao de narrativas

    etnogrficas que integram os produtos finais desta pesquisa, seja em forma de

    textos e imagens impressos que estruturam a presente dissertao, seja em formade arranjos possveis por meio do blog etnogrfico, ou diferentes mdias sociais.

    Ainda atravs de ensaios videogrficos e fotogrficos que acompanham a

    dissertao, mas tambm tm a sua autonomia de circulao. A reflexo sobre as

    caractersticas da mensagem etnogrfica so articuladas diante de alguns princpios

    da construo das mensagens fotogrficas, procurando destacar sua eficincia para

    lidar com algumas categorias empregadas na antropologia.

    Em acordo com esta perspectiva, deu-se o processo de incurso a umespecifico espao da cidade de Canoas. O bairro Guajuviras atualmente esta com

    28 anos de existncia, e tambm pode ser considerado perifrico por sua

    localizao junto aos limites da cidade, mas transpe esta condio devido ao

    histrico, e enquanto espao de lutas e conquistas. A questo central levantada

    nesta pesquisa, no diz respeito somente admirvel histria desta parte da cidade

    de Canoas, mas se refere em especial experincia destes habitantes com o seu

    bairro. A pergunta que foi lanada como plataforma da incurso era: como poderiamser entendidas as diferentes articulaes da memria e prticas individuais e

    coletivas dos habitantes em relao ao processo poltico de ocupao deste territrio

    perifrico do municpio de Canoas/RS?

    Tornou-se evidente que estas percepes transcendiam o habitar, remetendo

    ao transito que relaciona as diferentes temporalidades vividas no espao durante e

    ps a ocupao ocorrida em 1987. No decorrer do perodo de pesquisa, a

    elaborao de dados deu-se por meio de uma abordagem etnogrfica que envolveu

    situaes de observao participante nos espaos de sociabilidade. Procurei prezar

    por uma flexibilidade na realizao das entrevistas, por vezes indo residncia dos

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    entrevistados, e em outros momentos realizando as mesmas em locais pblicos. O

    percorrer estes espaos era uma inciativa que visava ressaltar a experincia de

    flneur2, no intuito de atiar as memrias em relao experincia do habitar.

    Embora os participantes fossem informados acerca dos temas a serem abordados,

    procurei fazer com que a conversao fosse realizada de maneira informal

    mantendo a caracterstica de entrevistas semi-diretivas, bem como, o carter

    individualizado da entrevista. Elas foram gravadas e parcialmente transcritas, e em

    algumas foram feitos apenas registros e atribudos nomes fictcios a pedido dos

    interlocutores.

    Em termos metodolgicos, procurei compreender os fenmenos sociais

    referente ao universo de pesquisa do bairro Guajuviras, por meio da experinciaetnogrfica. A metodologia utilizada em campo foi constituda pela aderncia s

    tcnicas de pesquisa referentes antropologia visual, envolvendo o trabalho de

    campo com cmeras e tcnica de observao participante. Tal perspectiva nos

    conduziu possibilidade de aprofundar a experincia de insero em campo junto

    aos moradores e ex-habitantes da regio. Buscou-se ampliar este dilogo com

    especialistas e profissionais que haviam atuado no bairro atravs de processos

    desenvolvidos por programas sociais aplicados na regio. Diversos foram os meiosacessados que buscaram o aprendizado das lgicas de ocupao e aproximao

    dos moradores, manifestos atravs de experincias temporalmente distintas.

    Esta dissertao ser dividida em seis captulos que buscam descrever a

    trajetria e a diversidade de reflexes provenientes do processo de desenvolvimento

    da pesquisa em campo. Recobro entrevistas e relatos dos encontros e desencontros

    urbanos, desenvolvendo um texto igualmente combinado por palavras e imagens.

    No presente captulo, ofereo ao leitor a introduo do trabalho, com umpanorama do universo de pesquisa, localizando-o geograficamente e apresentando,

    em termos gerais, a metodologia utilizada para composio deste trabalho.

    J no captulo dois ser proposta uma reflexo referente ao processo de

    formao acadmica, e como se deu esta transio interdisciplinar diante de um

    universo de implicaes que exigiam meu deslocamento, tornando-me um aprendiz

    de antroplogo. Nesta reterritorializao de meus paradigmas, procuro aprofundar

    2 Flneur personagem objeto das reflexes de Walter Benjamin (1992) sobre a obra de CharlesBaudelaire. O caminhar pode ser percebido como meio atravs do qual possvel dilatar o sentido denoo de espao, conforme se constitui em uma prtica que infringi e subverte as normas quedisciplinam e regulam.

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    os fundamentos terico-metodolgicos da pesquisa, principalmente no que concerne

    prtica etnogrfica com a atravs de imagens e dos recursos da WEB.

    Apresentarei uma perspectiva terica dos autores e conceitos que acompanharam o

    transcorrer do texto, fundamentando os usos da imagem e composio dos

    diferentes recursos sonoros e visuais. Abordarei temas que permearam a proposta

    da constituio de colees etnogrficas e blog, estas que conduziram as

    estratgias e uso das mdias sociais, bem como, nos instigaram na produo do

    documentrio e DVD interativos.

    No captulo trs proponho a apresentao de alguns dos interlocutores de

    pesquisa, onde sero explorados os espaos e aspectos histricos contidos nas

    narrativas, elucidando ao leitor a especificidade de vida no bairro enquanto territriode ocupao em relao cidade de Canoas. Neste capitulo o leitor descobrir a

    construo de personagens, protagonistas e suas narrativas, encontrando a

    solidariedade enquanto elemento que une os habitantes, manifestando as trajetrias

    familiares e coletivas.

    O capitulo quatro estabelecer uma proposta de analise distinguindo as

    tenses existentes entre a cidade e os habitantes do bairro. Consideraremos as

    dificuldades e problemas, compreendendo com isso os efeitos de um longo processode estigmatizao que hoje implica diretamente na relao dos moradores com a

    metrpole.

    Por fim no captulo cinco, proponho a anlise das memrias produzidas pelos

    interlocutores, destacando elementos do passado e do presente que compem a

    memria do espao. Neste sentido receber nfase o posicionando do olhar em

    direo ao cotidiano, comrcio, e trajetos estabelecidos por seus habitantes no

    bairro. Igualmente aponto para diferentes espaos, os qualificando enquantofundamentais na preservao e conservao da memria. Igualmente neste mesmo

    captulo me encaminho para as consideraes finais.

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    2 Trajetria de pesquisa

    Figura 5Entrada do GuajuvirasFonte: do autor

    2.1 De Historiador a aprendiz de Antroplogo atravs do estudo das narrativas

    Como forma de introduzir esta etnografia e o tema proposto, vejo como

    necessrio traar um relato que identifique a minha trajetria acadmica/profissional,

    e contextualize esta pesquisa, explicitando o modo como, de historiador, vim a me

    inserir na perspectiva da Antropologia Urbana e Visual, e, em especial, nos estudos

    de Memria e das Sociedades Complexas.

    Em 2011, quando integrei o Ncleo de Extenso, Histria e Cultura Afro-

    brasileira (NECHA), atravs da produo de um documentrio histrico intitulado,

    Chcara das Rosas, Um Quilombo Urbano, teve inicio o meu interesse por

    questes como narrativa, memria e registro da oralidade. Esta reflexo foi

    reforada com a descoberta de um universo de possibilidades derivadas do uso de

    fotografias e vdeos, tornando possvel a consolidao do projeto enquanto mtodo e

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    fundamento epistemolgico na produo da pesquisa. Hoje no posso deixar de

    pensar que, no momento em que me propus a sair com uma pequena cmera de

    mo, com vdeo e udio sincronizados, estava lanando as sementes do que viria a

    ser uma experincia etnogrfica, ainda incompleta e carente de fundamentao,

    mas carregada de significados que me acompanharam durante a formao

    acadmica, norteando meu caminho em direo ao que me proponho na atualidade.

    Assim como indicado por Eckert e Rocha (2002), em seu texto Etnografia de

    rua e cmera na mo, pude iniciar meu aprendizado sobre cidade como matria

    moldada pelas trajetrias humanas, e no como mero traado do deslocamento

    indiferente de um corpo no espao. Foi a tentativa de, atravs do registro histrico

    contido nas falas de meus interlocutores, recompor muitos destes traados, que aliforam depositados por homens e mulheres atravs do tempo. Ao observar as

    dinmicas daquele bairro, pude perceb-lo como objeto temporal que circulava em

    torno de um espao reivindicado em constante contraste. Hoje entendo o destaque

    de Elias e Scotson (2000), quando ressaltam as tenses entre estabelecidos e

    outsiders:pude perceber os trajetos e o poder dos lugares, em especial na forma

    como estes outsiders (naquele momento, os indesejados ocupavam uma nesga de

    terra, resqucio de suas habitaes ancestrais) usaram, reutilizaram e modificaramseu territrio, designado, pelos estabelecidos, de planeta dos macacos. Foi

    tamanha a inquietude, que minha sensibilidade instigou-me a explorar esta relao -

    tempo e paisagem - contida nas narrativas de meus entrevistados.

    Tambm neste mesmo ano comecei a ocupar o cargo de funcionrio do setor

    de Educao Patrimonial do Museu Jos Joaquim Felizardo, onde, atravs deste

    envolvimento, acabei por integrar-me na pesquisa intitulada Narrar Outras

    Memrias, Construir Outras Histrias: Histria Oral no Museu de Porto AlegreJoaquim Felizardo, sob coordenao da Dr Maria Anglica Zubaran. Nesta

    pesquisa, me foi proposta a funo de operador de cmera e entrevistador, alm de

    transcritor de parte de algumas das entrevistas gravadas.

    Este processo de ouvir e reouvir, recortar e selecionar partes das falas

    contidas nas narrativas constituiu-se em um exerccio de reflexo sobre como era

    pensado o mtodo de registro da oralidade. Outro ponto importante era perceber

    como contrastavam as diferentes narrativas populares e institucionais quanto a um

    espao poltico de memria, que, por vias da oralidade, agora passava a assumir um

    statusde patrimnio imaterial para os moradores, tornando a manifestao dessas

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    reminiscncias coletivas, um elemento que vinha a contemplar a diversidade social,

    tnica, cultural, fundamentando os laos de pertencimento desses moradores com o

    seu bairro.

    No foram poucas as referncias tericas que me acompanharam nesta

    construo intelectual. Destas, ressalto a importncia de Alistair Thonsom (1997) em

    seu texto, Recompondo a Memria, questes sobre a relao entre histria oral e

    memorias, em que o autordestaca a sua experincia com seus interlocutores (ex -

    soldados australianos), enfatizando a importncia dos silncios e subjetividades que

    surgem junto com os traumas, e todo um universo particular que se estabelece entre

    entrevistador e entrevistado. Trata-se de uma discusso relacionada com outros

    debates propostos pela Antropologia, que dizem respeito postura do antroplogo,e que so habilmente articulados por Oliveira (1998), Silva (2000), Magnani (2009),

    Eckert & Rocha (2008).

    Hoje posso identificar que o teor antropolgico destes textos foi o que

    caracterizou a minha empatia pelos escritos de Thonsom (2002). Tambm destaco a

    presena de outros autores que me introduziram a uma discusso mais profunda

    sobre oralidade enquanto mtodo, como no caso da Verena Alberti (2005), com o

    Manual de Histria Oral, livro que me desvelou este mtodo da Historia como via deproduo de pesquisa. Outro importante debate entre oralidade, tempo e idade foi

    aquele proposto por Eclea Bosi (2003), ao explorar a dinmica das memrias

    temporais de idosos. No menos importante para a minha trajetria de pesquisa foi

    Alessandro Portelli (1997), que me instigou a atentar para uma sensibilidade tica

    enquanto entrevistador, em especial na relao com os entrevistados. Estas so

    discusses, prprias do campo histrico, que esto igualmente presentes no

    cotidiano do etngrafo, em especial no que tange o tratamento das narrativas e oolhar antropolgico.

    J na segunda metade de 2012, acabei por integrar o Programa Institucional

    de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID), na Universidade Luterana do Brasil.

    Conhecendo minha trajetria, a responsvel pelo programa, Dr Evangelia Aravanis,

    props que eu elaborasse um projeto de Educao Patrimonial para que o mesmo

    fosse desenvolvido atravs de oficinas em parceria com a proposta de estgio

    docente.

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    Figura 6Com alunos da Turma 82bFonte: Arquivo Escola Municipal Guajuviras

    Depois de um tempo de reflexo, e pensando j em um possvel tema de

    monografia ou mestrado, usei a oportunidade como laboratrio e cheguei

    produo de uma proposta intitulada Construindo Identidades a partir da MemriaCanoense no Bairro Guajuviras. Refletindo sobre distintas questes relacionadas

    imaterialidade do patrimnio, em especial na forma como os indivduos oferecem

    sentido aos espaos atravs de suas reminiscncias, logo me vi cercado de

    discusses referentes ao tema. De minhas reflexes, fizeram parte autores como

    Maurice Halbwachs (1990) e Stuart Hall (2003), seja atravs do conceito de memria

    coletiva, seja pela prpria temtica da cultura, que j me aproximou ainda mais dos

    debates antropolgicos, pela critica a uma viso essencialista. Parafraseando Hall(2003, p.44), cultura no uma arqueologia e sim uma produo sujeita aos

    indivduos e ao espao que ocupam.

    Ponderando tambm a necessidade de relacionar o patrimnio imaterial

    questo da dualidade da memria, Astor Antnio Diehl (2002) afirma que esta

    capaz de conceber probabilidades de aprendizagem e de socializao que

    influenciam a constituio de uma identificao cultural. Mas, j no final de minha

    trajetria enquanto professor na Escola Guajuviras, vindo a consolidar meu interesse

    pela Antropologia, destaco o antroplogo Jol Candau (2011), que aborda uma

    multiplicidade de conceitos, estabelecendo um dilogo com o historiador Pierre Nora

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    (1993), com o socilogo Maurice Halbwachs (1990) e com o filsofo Paul Ricoeur

    (2007), a respeito de noes como lugar de memria, memria coletiva, quadros

    sociais de memria, memria justa, tradio e tradicionalidade.

    Posteriormente realizao das oficinas para Educao Patrimonial sobre o

    bairro Guajuviras, foi possvel perceber a riqueza dos materiais resultantes das

    atividades propostas para os alunos, incluindo uso de mapas, fotografias antigas,

    escrita e exerccios prticos dos educandos com seus familiares, moradores do

    bairro. Neste sentido, a proposta de um projeto etnogrfico surge a partir da anlise

    de alguns vdeos produzidos por alunos, nos quais percebi que as narrativas e

    memrias articuladas, por vezes no conferiam com as propostas educativas

    organizadas no projeto.Perceber que elas eram, em certa medida, divergentes da histria oficial

    despertou uma reflexo sobre as minhas prprias falhas diante da preocupao em

    ordenar a narrativa com intuito de reproduzi-la para os seus habitantes. Gilberto

    Velho (2008) descreve as dificuldades causadas por uma perspectiva sociologizante,

    que por vezes descarta o protagonismo dos sujeitos, tornando-os meros

    coadjuvantes de suas prprias histrias. como se o pesquisador, no decorrer de

    um evento, no acreditasse que estes se constitussem em agentes, com poder denarrativa, sendo que tal atitude uma negativa ao reconhecimento dos processos

    sociais que condicionam e afetam os indivduos.

    No esforo de fugir de um voluntarismo psicologista, a cincia socialconstantemente cai num fatalismo sociologizante em que a explicao postfacto se torna rotina. Assim que os comportamentos, acontecimentos,eventos so considerados, muitas vezes, como resultados de determinaode foras sociais e histricas atravs das quais os indivduos e grupos solevados a agir, em boa parte inconscientes das causas Reais de suasaes. a velha idia de que os atores so joguetes de foras impessoais epoderosas, nada mais fazendo do que confirmar atravs de suas aes o

    sentido da histria. (VELHO, 2008, p. 109-10).

    Magnani (2002) tambm apresenta a necessidade desta mudana de

    perspectiva para uma percepo do urbano de maneira mais ampla. Com intuito de

    guiar o etngrafo para captar uma maior abrangncia de percepes, o autor

    incentiva o deslocamento em direo ao ato de imergir na perspectiva da

    constituio da etnografia. Assim, atravs do mtodo etnogrfico sobre a cidade, o

    pesquisador poder perceber a sua dinmica, resgatando este olhar de perto e de

    dentro que permite identificar, descrever e refletir sobre elementos que sodescartados por enfoques que priorizam uma perspectiva defora e de longe.

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    A mudana de foco que a perspectiva antropolgica possibilita,principalmente em funo do mtodo etnogrfico, tem a vantagem de evitaraquela dicotomia que ope, no cenrio das grandes metrpolescontemporneas, o indivduo e as megaestruturas urbanas [...] A simplesestratgia de acompanhar um desses indivduos em seus trajetos

    habituais revelaria um mapa de deslocamentos pontuado por contatossignificativos, em contextos to variados como o do trabalho, do lazer, dasprticas religiosas, associativas etc. neste plano que entra a perspectivade perto e de dentro, capaz de apreender os padres de comportamento,no de indivduos atomizados, mas dos mltiplos, variados e heterogneosconjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem dacidade e depende de seus equipamentos.(MAGNANI, 2002, p.17)

    Conforme Elias e Scotson (2000) o ato de apresentar a histria do bairro

    como um elemento alheio que precisava ser reconhecido e institucionalizado como

    forma de organizar aqueles outsiders, referia-se mais a uma alocuo que

    reproduzia um ideal carregado de estigmas, representado atravs da relao da

    cidade com o bairro.

    No artigo, Quando cada caso no um caso, Cludia Fonseca (1999)

    destaca este elemento essencial na constituio de uma etnografia, distinguindo os

    muitos equvocos no desenvolvimento de um mtodo etnogrfico que se detm

    somente na aplicao de tcnicas ou orientaes tericas focadas no individual, no

    levando em conta a importncia do aspecto social. A autora destaca que a ideia

    proposta na premissa cada caso um caso no compatvel com o mtodo

    etnogrfico, sendo necessria a competncia por parte do etngrafo na aplicao

    metodolgica. Para a autora, a etnografia no seria to aberta quanto se presume,

    em especial por fazer parte das Cincias Sociais contando com um enquadramento

    politico histrico do comportamento humano (FONSECA, 1999, p.62).

    Este lugar de imprecises onde se encontra o perigo de uma transio, em

    especial na transdisciplinar, em que o pesquisador, ao invs de agregar as

    vantagens da etnografia, apenas permaneceria em um limbo onde prevalece aarmadilha do senso comum quanto ao assunto em questo. importante destacar

    que, diante desta problemtica, muitos trabalhos tidos por etnogrficos acabam por

    no s-lo, representando apenas a descrio de uma realidade observada, para

    uma narrativa textual densa.

    Outro elemento importante evidenciado naquela experincia docente acima

    narrada estava no fato de os professores da escola em que eu estava inserido no

    serem residentes do bairro, foco do projeto em questo, mas sim, moradores deoutras localidades do municpio, que se deslocam at o Guajuviras para trabalhar, o

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    que tornava o ambiente escolar um espao permeado por discursos de pessoas

    estabelecidas. O bairro, tal como representado constantemente pelas mdias,

    reduzido s pginas criminais, feito um animal selvagem a ser domado por

    programas de pacificao. Para que eu pudesse superar estas representaes

    estigmatizantes, agora enquanto etngrafo, ficou clara a necessidade de meu

    processo de imerso junto aos moradores exigir mais do que apenas uma mudana

    de local, pois seria necessrio uma reformulao que afetaria diretamente a minha

    condio enquanto pesquisador. No eram somente as entrevistas que me fariam

    entender o bairro de perto e de dentro, seria preciso aproximar-me dos moradores

    sem tantos a priorise descolado do statusde que eu desfrutava; compreender e ser

    compreendido por aquele grupo. Neste sentido, era imprescindvel um esforo dedesconstruo de meu papel social enquanto professor, estabelecendo outros fluxos

    em minha trajetria que me conduzissem ao encontro direto, sem mediaes

    institucionais, com aqueles moradores.

    2.2 Elementos terico-metodolgicos na incurso de pesquisa em campo

    Diante das expectativas referentes ao ingresso em campo, o perodo em que

    optei por esta experincia constituiu-se em um momento muito singular. Aps um

    tempo de preparo, propondo-me, atravs das disciplinas cursadas para o mestrado,

    a fundamentar este estudo, a incurso veio a consolidar os diversos debates sobre

    os temas considerados. Embora a minha convivncia com o grupo remontasse a

    meados de 2012, atuando como docente em duas escolas no bairro, foi em 2014,

    atravs das minhas primeiras investidas enquanto etngrafo, que pude perceber oquanto era necessrio questionar tudo o que eu achava saber sobre aqueles

    habitantes.

    Em uma reflexo sobre o texto Observando o Familiar, de Gilberto Velho

    (1978), compreensvel que nem sempre o familiar seja notrio. Mesmo nas

    grandes metrpoles habitadas pelo pesquisador existem situaes que provocam

    um estranhamento to grande quanto em sociedades exticas, pois so muitas as

    descontinuidades existentes. O fato de estar vivendo em meio a uma sociedade

    complexa, altamente hierarquizada, torna perceptvel como ela organiza as suas

    camadas sociais e seus sujeitos com estigmas e esteretipos. Considerar a minha

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    posio nessa hierarquia pr-estabelecida foi fundamental para a reconstituio de

    um trajeto e projeo de uma futura pesquisa, em especial no que se referia a minha

    proposta de estudo.

    Eu estava diante de um contexto urbano onde imperava a fragmentao de

    papis e descontinuidades simblicas. Neste sentido, a noo de projeto, de Gilberto

    Velho (1981) orientou-me quanto aos caminhos relativos constituio da pesquisa.

    Segundo o autor, a famlia, o trabalho, o lazer, as opes polticas, dentre outros,

    configuram um campo de possibilidades em que os atores individuais movimentam-

    se, impelidos e pressionados, mas com uma distino de alternativas e opes. A

    heterogeneidade dos papis e domnios conectados a um possvel trnsito entre

    eles origina uma diversidade de identidades multifacetadas e de permannciarelativa.

    A princpio, havia destacado uma srie de critrios sobre qual seria o perfil

    dos meus entrevistados. Inicialmente pensei em compor perfis que remetessem ao

    critrio da ocupao do Bairro em determinado recorte de tempo. Mas conforme a

    reflexo sobre a constituio destes espaos urbanos se aprofundava, percebia que

    a escolha de interlocutores por este parmetro deveria corresponder pluralidade

    com que este espao foi sendo constitudo. Preferi, ento, estabelecer por critrio dedefinio de meu universo de pesquisa, apenas o conhecimento dos narradores em

    relao ao habitar o bairro, independente de serem ou j terem sido moradores. O

    destaque estaria na intensidade desta experincia do habitar, em relao a este

    especfico espao urbano.

    O enfoque estaria na capacidade de articulao destas memrias, em

    conjunto com a facilidade em discorrer sobre as mesmas. Refletir sobre quem iria

    produzir as narrativas a respeito do bairro, era tambm pensar que a cidade composta por esta pluralidade. Este fato me impulsionava a perceber que estes

    narradores produziam percepes distintas e imaginadas sobre aquele lugar

    compartilhado em meio urbe. Assim como descrito por Agier (2011) a cidade no

    pode ser pensada como uma totalidade ou um objeto, ela coisa humana, a forma

    mais complexa e sofisticada da civilizao. Neste sentido, o cuidado e o empenho

    na constituio de uma pesquisa relacional, local e microlgica, como define o

    autor, o que torna possvel a elaborao de uma antropologia da cidade.

    Assim, por mtodo, o antroplogo tem necessidade de se emancipar dequalquer definio normativa e a prioride cidade para poder procurar a suapossibilidade por toda parte, trabalhando para descrever o processo

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    posio que d ao saber antropolgico um lugar parte e reconhecvel noconjunto dos conhecimentos da e sobre a cidade, disponibilizando-os paratodos. Cidade vivida, cidade sentida, cidade em processo... Trata-se de umainterrogao que diz respeito aos citadinos e a sua experincia de cidades.A cidade j no considerada uma coisa que eu possa ver nem um

    objeto que eu possa aprender como totalidade. Ela transforma-se num tododecomposto, um holograma perceptvel, apreensvel e vivido em situao.(AGIER, 2011, p.37-8)

    Certamente este era o objetivo da pesquisa enquanto estabelecimento de

    uma relao com os interlocutores, entender as distintas articulaes da memria

    em relao ao Guajuviras. Estas percepes esto para alm do habitar, mas

    tambm remetem ao transito que relaciona as temporalidades diferentes, e que

    foram vividas no espao durante e aps a ocupao do Bairro, ocorrida em 1987.

    Encontrar o bairro como um personagem que instigaria estas narrativas, queinteragiria e se comunicaria com estes interlocutores, estabeleceria a reflexo

    sugerida por Latour (2012) em sua Teoria Ator-Rede.

    O autor prope uma anlise, tomando as interaes como objeto inicial de

    seu estudo. Seria ponderar que estes intercmbios adquirem relevncia conforme

    manifestam mediaes, conexes estas que so capazes de produzir transformao

    na medida em que as informaes nelas presentes so articuladas, afetando-se

    reciprocamente. Os elementos materiais e imateriais, as organizaes e as relaesde poder na vida social, seriam parte destas afinidades de interao, sem que uma

    determine a outra, embora possuam influncia de atuao mtua. Nesta perspectiva,

    no existe diferena de natureza entre os diferentes atores, j que todos tem a

    possibilidade de serem mediadores ou intermedirios no transcorrer da mediao.

    Dando consistncia a este tema, Latour indica um princpio de simetria, destacando

    que os atores oferecem as mesmas probabilidades de produo de interferncia ou

    mediao, no hierarquizveis. Este princpio est abertamente ligado aoestabelecimento das relaes de poder, e de como estas so constitudas.

    Desta maneira, seria possvel perceber o bairro como um ator, um

    intermedirio que produz sinais, um causador de efeitos e mediaes, intervindo e

    originando cruzamentos em uma rede de fluxos, movimentos, negociaes, unies,

    afetando os espaos onde os atores intervm e sofrem intervenes,

    simultaneamente. Como ator, o bairro contribui na constituio destas identidades,

    estabelecendo um campo de relacionamentos e afinidades.

    Uma importante questo pautou minha reflexo: como eu poderia ajustar

    minha entrada em campo, ou como refletir o modo de debater os dados sem me

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    propor a este deslocamento enquanto etngrafo? Evidenciei que meus interlocutores

    estavam em constante movimento neste campo instvel que a cidade, sendo que

    para acompanha-los eu tambm deveria me adicionar a este fluxo como modo de

    alcanar uma proximidade daqueles a quem pretendia captar as narrativas.

    Neste sentido, encontro a importante provocao lanada por minha

    orientadora, Claudia Turra Magni, quando me prope o desafio de abandonar a

    condio hierrquica da posio social que ocupava enquanto professor e me lanar

    no campo das alteridades, permitindo-me significar e ser significado. De certa

    maneira, o desafio, converge para o texto de Silva (2000) quando prope o adentrar

    em campo, criticando a ideia de que o antroplogo poderia pairar como uma

    entidade acima da vida dos seus interlocutores, como se esta relao no resultasseem nenhum tipo de interferncia. Esta seria uma percepo contraditria diante dos

    fundamentos epistemolgicos que guiam a observao participante no trabalho de

    campo.

    Em um primeiro momento, enquanto professor, eu estabelecia meu ponto de

    observao em um lugar protegido e assegurado pelo sistema hierrquico da escola.

    Agora, como aprendiz de antroplogo, era necessrio envolver-me com esta

    proposta de uma etnografia, que demandaria um deslocamento em direo alteridade. Foi neste ponto que compreendi o quo difcil seria tencionar minha

    incurso atravs de observao participante, sem envolvimento com os conflitos,

    articulaes, e limitaes do cotidiano destes habitantes do bairro. Seria

    imprescindvel a submisso a este aprendizado sobre o grau de proximidade e

    distanciamento que deveria manter para concretizar esta pesquisa.

    Antes, conhecia parcialmente as rotinas do bairro, a partir de um ponto

    relativamente fixo de observao: a escola onde eu atuava. Agora, em meu novostatus, permiti-me exercitar deslocamentos, percorrendo vias, becos e avenidas,

    propondo-me a experincia de uma etnografia de rua. J ciente de que estava

    transitando em um campo distinto de conhecimento, tornou-se evidente que seria

    necessrio desbravar este trajeto municiando-me de instrumentos antropolgicos

    como forma de interpretar as experincias propostas. O campo realmente vem a se

    materializar atravs de leituras, em acordo com relatos e dados diversos, obtidos por

    diferentes vias. Esta reflexo sintetizada na fala de Silva (2000), ao destacar que o

    campo no s nossa experincia concreta, situada entre o projeto e a escrita

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    etnogrfica. No existe uma produo linear, esta no a realidade de como se d o

    desenvolvimento da pesquisa de campo.

    Neste sentido, conforme destacado por Magnani (2003), foi possvel perceber

    que a antropologia tem uma contribuio especifica para a compreenso do espao

    urbano, que abrange questes da dinmica cultural e das formas de sociabilidade,

    sendo este legado terico-metodolgico o que torna possvel a concretizao destes

    estudos. No caso especfico de minha pesquisa, percebi que as motivaes e

    expectativas em relao ao campo, ao invs de tornarem-se um obstculo,

    acenderam estas perspectivas para o questionamento dos dados obtidos. No era

    necessria uma correspondncia entre documentos oficiais e narradores, as

    discordncias tornaram-se essenciais para a compreenso destes eventos descritose fotografados. Como destacado por Thomson, o ato de abranger estas contradies

    o que instigava-me a perceber a pluralidade que reflete as tenses do tempo e da

    memria. "Ouvindo os mitos, as fantasias, os erros e as contradies da memria, e

    prestando ateno s sutilezas da lngua e da forma narrativa, podemos entender

    melhor os significados subjetivos da experincia histrica"(THOMSON, 2002, p. 12).

    Na presena destes relatos irregulares, que pude compreender que atravs

    da produo das narrativas dos interlocutores, o tempo articulado de maneiradistinta por diferentes pessoas. Ao perceber o processo da construo destas

    diversas falas, foi possvel ponderar sobre a discusso originada pelo conceito de

    etnobiografia proposto por Gonalves et. al. (2012). Este destaca que o indivduo

    no s uma manifestao da representao coletiva, como muitas vezes

    considerado pelo conceito de memria proposto por Halbwachs (1990), mas que a

    individuao criativa dospersonagens-pessoasdesenvolve tambm uma autonomia

    que no esta totalmente submetida fora que emana da sociedade.Neste entremeio ocorreria um improviso, uma narrao que no neutra, mas

    que assume um papel agenciador, agregando novos significados, ao mesmo tempo

    em que estes elementos tambm afetam o etngrafo. O relato no uma via de mo

    nica, em que o interlocutor apenas fala, e o etngrafo escuta. A constituio desta

    relao o que materializa um processo de objetificao da cultura, como citado por

    Wagner (2010); a possibilidade dada ao antroplogo para compreender o seu

    objeto de estudo. Na consolidao de um dilogo que se materializa este

    processo, chamando a ateno do pesquisador para a cultura daquele indivduo e,

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    percebendo o que ela quer dizer, em um exerccio que acontece junto com a

    objetificao dentro da cultura do pesquisador.

    apenas mediante uma "inveno" dessa ordem que o sentido abstrato de

    cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser apreendido, e apenas pormeio do contraste experienciado que sua prpria cultura se torna "visvel".No ato de inventar outra cultura, o antroplogo inventa a sua prpria eacaba por reinventar a prpria noo de cultura. (WAGNER, 2010, p.31)

    Pois assim como o pesquisador tem curiosidades em relao ao que o

    interlocutor pode narrar, o mesmo tambm possui duvidas e expectativas sobre o

    pesquisador. Neste mesmo significado, encontrei apoio na critica proposta por

    Goldman em sua anlise da obra de Wagner:

    Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da

    criatividade daqueles que estudam , para Wagner, condio depossibilidade da prtica antropolgica. Mais do que isso, o antroplogo deveestar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naquelesque estuda o mesmo nvel de criatividade que cr possuir; no assimilar aforma, ou o estilo, de criatividade que encontra no campo com aquele como qual est acostumado e que ele prprio pratica. (GOLDMAN, 2011, p.203)

    A realizao de um registro flmico da experincia etnogrfica de pesquisa

    deve contar com escolhas metodolgicas e estratgias de preciso, mas acima de

    tudo com a perspectiva pautada por procedimentos ticos. Quando decidi empregar

    a cmera como instrumento, busquei refletir sobre as possibilidades tcnicasdisponveis e questes ticas que se lanavam entre eu e meu objeto de estudo.

    Como idealizava a produo de um filme de carter etnogrfico e antropolgico,

    optei por um mtodo de trabalho realizando entrevistas semi-diretivas. Mas por

    vezes preferi adequar a minha perspectiva enquanto pesquisador a novas dinmicas

    de participao. Buscando proximidade e fluidez no deslocamento de perspectivas

    de viso, ofereci movimento s filmagens optando por caminhadas, percorrendo o

    bairro junto aos meus interlocutores. Com a cmera na mo, me movimentei no

    sentido de torn-la ativa e participante durante os dilogos. Por vezes no consegui

    um bom resultado em termos tcnicos, em decorrncia das mudanas bruscas nos

    trajetos e tambm das surpresas que nos advinham. Como descrito no texto de

    Eckert e Rocha (2003), percebi que a caminhada no era descompromissada ou

    inocente, mas estava operando em uma esfera de significados que surgiam

    conforme nos movamos atravs dos espaos.

    O personagem baudelairiano, o flneur, caminha na cidade: um percurso

    sem compromissos, sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo de indiferena, mas seus passos traam uma trajetria, um itinerrioque concebe a cidade, o movimento urbano, a massa efmera, o processode civilizao. Logo, esta no uma caminhada inocente. A cidade

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    estrutura e relaes sociais, economia e mercado; poltica, esttica epoesia. A cidade igualmente tenso, anonimato, indiferena, desprezo,agonia, crise e violncia. (ECKERT, ROCHA, 2003, p.1)

    Ao caminhar em companhia de meus interlocutores atravs das vias

    intrincadas e descontinuas daquele bairro, foi possvel intuir como ele era moldado

    por seus ocupantes. Propus-me a personificar a reflexo indicada por Roberto

    Cardoso de Oliveira (1998) sobre a necessidade de uma domesticao terica do

    olhar. Enquanto caminhava por aquelas ruas, percebia, sutilmente, que minhas

    antigas percepes eram gradualmente transformadas e substitudas por novas

    perspectivas no modo de observar o Guajuviras. A paisagem urbana permeada por

    construes semiacabadas, escurecidas pelo tempo, assumia uma vivacidade

    misteriosa, agora adquirindo um status que ao invs de provocar medo, causava

    interesse.

    Considerar estes trajetos percorridos pelos habitantes, percebendo os carros

    em seu ritmo vagaroso, seguindo pela avenida principal, ouvir e ver as crianas

    correndo em brincadeiras burlescas, chamando a ateno dos transeuntes, s

    intensificava a minha experincia etnogrfica. As dessemelhantes formas pintavam

    imagens em minha conscincia, traduzindo o ato de ocupar, de apropriar-me, de

    manipular o espao em sua maneira particular. Magnani aponta a importncia do

    olhar paciente do etngrafo, aquele olhar disposto a uma sensibilidade, passvel de

    constante aprendizado das diferentes classificaes, regras e diferenciaes.

    Na verdade, o olhar paciente do etngrafo terminou sim aprendendo que h,sim, classificaes, regras, diferenciaes. Assim, foi possvel descobrir quenaquele universo aparentemente montono, havia uma extensa rede delazer e diferenciaes na forma de, por exemplo, pratic-lo: Havia lazer dehomens solteiros e casados, de mulheres e moas, de crianas e adultos, etambm modalidades desfrutadas em casa e fora de casa. (MAGNANI,2003, p.6)

    Parece ilusrio pensar que cada espao urbano se constitui individualmente

    sem cair na tentao da aldeia, mas o processo de composio dos laos de

    pertencimento do lugar tambm constituem individualidades. Evocando Gonalves

    et. al. (2012) em uma referncia a Elias e Scotson (2000), ele ressalta diferenas

    entre indivduos culturalmente homogneos, fato este que acentuaria este espao da

    diferena e da idiossincrasia na construo social.

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    2.3 O uso da imagem como fundamento para constituio da pesquisa

    Um levantamento de material histrico/imagtico referente ao processo de

    ocupao do Bairro Guajuviras foi realizado antes de minha opo terico-

    metodolgica pelo trabalho com narrativas, o que veio a enriquecer a etnografia,

    atravs de uma pesquisa sobre o histrico do bairro, a partir de registros, tanto

    jornalsticos, quanto biogrficos, que remetiam ao desenvolvimento desta ocupao.

    Tambm enfatizei a importncia de entender as configuraes das sucessivas

    ocupaes que aconteceram no decorrer do perodo de 1987 a 1990, como forma de

    compreender que distintas regies eram ocupadas em tempos diferentes, fato que

    tambm influenciava a narrativa. Neste sentido, teria uma facilidade maior naescolha de meus interlocutores, entendendo suas dinmicas e trajetos, percebendo

    que esta relao tambm influi nas distintas construes dos relatos e usos do

    espao urbano.

    Ao sair com uma cmera na mo, no intuito de observar e registrar o bairro,

    procurei atravs de um ajustamento do olhar, captar imagens, observando a cidade

    como um objeto temporal, um espao desenhado por diversos trajetos e movimentos

    sobrepostos, forjados dentro de um tecido de aes produzidas no cotidiano.Lembrando o texto de Eckert & Rocha (2002), compreendi que acessando estes

    recursos audiovisuais em uma etnografia de rua, estava constituindo a minha

    caminhada enquanto antroplogo, conhecendo o meu objeto de estudo. Mas

    precisava tambm reconhecer que o momento do registro se constitua em uma

    interveno consentida com os interlocutores.

    Estar atento era tambm compreender que nesta perspectiva de interveno

    estabeleciam-se tenses e estas precisavam ser mediadas, de forma tal que aruptura no se constitusse em um momento de constrangimento incuo. Um

    importante ponto a ser destacado foi a forma como pude aprender a mediar esta

    relao com meu interlocutor, ao mesmo tempo em que mediava a presena da

    cmera, sendo que pude ser surpreendido por esta pluralidade emergindo atravs

    da constituio etnogrfica que exigia este desprendimento temporal, elemento

    essencial para experincia.

    Para se atingir tal componente narrativo, o etngrafo precisa contar

    com o tempo como amigo, pois ele s o atinge quando a densidade desobreposio cumulativa dos tempos vividos ao longo de um trabalho decampo, aparentemente fadado perda de tempo, se precipita diante dosseus olhos. Horas de um trabalho persistente de escritura depositadas na

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    tela do computador, fitas de vdeo, pelculas fotogrficas ou folhas de papel,sempre na tentativa do investigador aprisionar o efmero, so, finalmente,recompensadas e encontram, enfim, uma gama de sentidos desvendadospor um leque de conceitos. (ECKERT, ROCHA, 2002, p.4)

    Conforme se desenrola o momento em que se articula a interveno, possvel amenizar esta compleio atravs do desenvolvimento de uma relao

    mais interpessoal na composio da entrevista. O relacionamento humano supera

    esta presena incmoda a partir do momento em que o informante percebe que uma

    linha de confiana estabelecida com o pesquisador. A comunicao surgia

    naturalmente no momento em que se estabelecia esta relao. Em contrapartida,

    uma preocupao excedida com o tempo s ressaltava os estranhamentos em uma

    perspectiva negativa que coagia o informante.No desenvolvimento da pesquisa, a metodologia de tratamento dos dados

    obtidos baseou-se na proposta de composio de colees etnogrficas, com a

    constituio de acervos de imagens videogrficas, fotogrficas, sonoras e escritas.

    Ao refletir sobre este mtodo, segui as orientaes de Ana Luiza Carvalho da Rocha

    (2008) que enfatiza que este se estabelece na capacidade de reunir os dados em

    ncleos de sentido, constituindo constelaes de imagens que partem da

    convergncia destas, embora situadas em diferentes regimes.Assim, para a produo e gerao de colees etnogrficas sobre opatrimnio etnolgico de uma comunidade urbana qualquer, quanto maisconstelaes de imagens apresentarem desde um mesmo ponto deconvergncia, tanto mais direes para o antroplogo construirconhecimento sobre uma determinada ordem de fenmeno. Por outro lado,pesquisar o fenmeno da memria coletiva a partir da produo e geraode colees etnogrficas de conjuntos documentais de imagens, atravs doencadeamento de smbolos e das motivaes simblicas que as orientam,torna evidente que este ato de pesquisa no pode ser uma obra sistemticade um pensador nico uma vez que a pesquisa com a etnografia dadurao se revela, ela prpria, como integrando o patrimnio dahumanidade. (ROCHA, A. L. C. da.,2008,p.08)

    Assim, medida que fui realizando o trabalho de campo, coletei e produzi

    imagens recorrendo a diversos suportes, consecutivamente buscando organiz-las e

    acerv-las por ncleos de sentido, ou colees. Meu propsito, portanto, no se

    limitou elaborao de um documentrio, mas sim constituio de uma coleo

    imagtica que refletisse a riqueza do patrimnio etnolgico do bairro Guajuviras em

    Canoas tornando-o disponvel a seus habitantes. Para tal, constru um aporte que

    me conduziu a refletir sobre o potencial das imagens, percebendo que ao me

    deslocar em campo, realizando uma fotografia ou registro de vdeo, apreendia as

    rotinas e circulaes do cotidiano, entendendo como elas passavam a constituir a

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    memria coletiva naquele espao urbano. Assim, pretendo ressaltar o aporte terico

    que serviu de base para organizar e dispor este material imagtico em forma de

    coleo etnogrfica, integrada por ncleos de sentido. Assim, a autora segue

    enfatizando que:

    A produo e gerao de colees, a partir do mtodo de convergncia aquidescrito, comporta sempre adies, correes, subtraes e retoques noestudo das suas constelaes, aes estas que so o fruto da colaboraode todos aqueles que produziram tais documentos, no passado e/ou nopresente. A descoberta do isomorfismo das imagens responsveis por suapolarizao em categorias se d a partir das correlaes estabelecidasentre eles pela prpria participao da imaginao criadora do antroplogono sentido de suas formas seguindo o efeito de sua convergncia em tornode um ncleo de significados, tomados em constelaes, como um todo.(ROCHA, A. L. C. da.,2008,p.09)

    Refletindo sobre a composio das colees etnogrficas a partir das formas

    de sociabilidades e itinerrios urbanos no mundo contemporneo, tal como indicado

    por Eckert e Rocha (2001), procurei evidenciar as minhas motivaes adotando o

    estruturalismo figurativo durandiano. Foi recorrendo noo de imaginrio proposta

    por Gilbert Durand (2001) que enfatizei a sugesto do trajeto antropolgico como

    fundamento para tratar da coleo etnogrfica produzida nesta pesquisa. Segundo a

    indicao do autor, procurei me posicionar neste trajeto abrangendo o constante

    cmbio que existe no nvel do imaginrio, agindo em meio s pulses subjetivas eassimiladoras, e s intimaes objetivas que procedem do meio csmico e social

    (DURAND, 2001, p.29)

    Desta forma, situei a investigao antropolgica justamente no trajeto,

    permitindo que os imaginrios se constitussem por meio dele. A observao de tal

    condio foi o que me possibilitou resolver os problemas de anterioridade ontolgica

    na pesquisa, destacando que a gnese recproca oscila mutuamente entre o gesto

    pulsional e os meios material e social. O trajeto antropolgico tambm se comunicacom alguns debates produzidos sobre o smbolo por Piaget (1975). Atravs de um

    jogo do imaginrio, diz ele, a distino entre simbolismo inconsciente e consciente

    no possui clareza, o que ocorre tanto em crianas como em adultos, prevalecendo

    um estado de ausncia de diferenciao na assimilao do real ao eu. Neste sentido

    Piaget destaca:

    Supresso da conscincia do eu por absoro imaginria total do mundoexterior e, portanto, por confuso com este, tal o princpio do simbolismoinconsciente e v-se desde logo que ele constitui um simples caso-limitedessa assimilao do real ao eu que o simbolismo ldico (PIAGET, 1975,p. 256).

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    Assim o trajeto antropolgico auxiliou a organizar o esqueleto dinmico que

    reproduz imagens na tela funcional do imaginrio. Durand (2001) segue

    relacionando o imaginrio enquanto um trajeto modelado por pulses do sujeito:

    Finalmente o imaginrio no outra coisa que este trajeto no qual arepresentao do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativospulsionais do sujeito, e no qual reciprocamente, como magistralmentePiaget mostrou, as representaes subjetivas explicam-se pelasacomodaes anteriores do sujeito ao meio objetivo (DURAND, 2001, p.38).

    O autor, por sua vez, dialoga com os estudos sobre a forma e a imagem

    numa perspectiva bachelardiana, discorrendo sobre temas referentes imaginao

    e ao imaginrio. Assim procurei destacar a prtica das colees etnogrficas

    ponderando sobre esta materializao do imaginrio que ocorre quando se pensa,sonha-se e vivencia-se a matria. Bachelard (1998) sugere que a imagem material

    vai ao encontro da profundidade, buscando uma intimidade substancial que d vida

    e movimento realidade metafrica. um universo subjacente e tambm

    inconsciente, em constante movimento, que existe alimentando organicamente o

    universo potico. O imaginrio no encontra suas razes profundas e nutritivas nas

    imagens, a princpio, ele tem necessidade de uma presena mais prxima, mais

    envolvente, mais material. (BACHELARD, 1998, p.126).Para Durand (apud Rocha, 2008), o mtodo de convergncia, utilizado para

    as colees, encontra-se conexo ao estruturalismo figurativo, em que as formas

    imagticas ocupariam um papel menor na classificao, pois as colees possuem

    um dinamismo transformador, contemplando o campo do imaginrio e da

    imaginao criadora. J no estruturalismo figurativo, a maneira que as imagens so

    interpretadas deriva da associao entre o devaneio e a matria, por meio da qual

    uma forma se faz percebida, potencializando a interpretao da prpria imagem. As

    formas utilizariam as imagens, manifestando traos que aqueles que as utilizam

    reproduzem para dar sentido ao seu mundo. A imagem, portanto, contempla ao e

    pensamento sobre o mundo. (ROCHA, A. L. C, 2008, p.1).

    Por meio do paradigma esttico, Maffesoli (2001), herdeiro intelectual de

    Durand, ressaltando a questo do imaginrio, destaca que podemos caracterizar o

    ser humano enquanto um ser de smbolos, que vive e constri sempre novas formas

    de imaginar. Para o autor, em um mundo que reflete a complexidade de uma

    conjuntura ps-moderna, faz-se necessrio o surgimento de novos conceitos ou

    noes, que levem em conta uma perspectiva fenomenolgica capaz de alcanar a

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    complexidade da diversidade e especificidade existentes no cotidiano do homem

    comum.

    Deste modo encontraramos o ponto de impreciso que advm desta relao

    do imaginrio com o simblico, mudando nosso enfoque para abranger estas

    relaes partindo de justaposies. Assim o imaginrio comunicaria o esttico na

    forma como percebemos as imagens, ou sonhos, ou por meio dos mitos, atravs de

    processos criativos e na criao de caminhos que alcanam a fantasia em direo

    ao fantstico. Para o autor, o ser humano possui singularidade, e considera-se como

    um ser nico, mas em contrapartida, ele tambm pertence a um grupo com distino

    e caractersticas que o diferencia dos outros. Este pode ser composto por uma

    pluralidade de elementos, mas tem sempre uma ambincia especfica que os tornasolidrios uns com os outros" (MAFFESOLI, 2000, p. 21).

    Assim, o que estimularia as pessoas a permanecer em um grupo, seria o

    prazer da convivncia, indiferente de finalidade ou teor ideolgico da relao, o

    modus vivendi que se faz presente na busca por sentido esttico. Deste modo , o

    ser humano seria um ente de vrias coletividades cimentadas pelas experincias

    sensoriais e sentimentais partilhadas. um processo de coletividade que surge em

    cada indivduo, onde o individualismo cede seu espao para o coletivismo "mscaraque pode ser mutvel e que se integra, sobretudo numa variedade de cenas, de

    situaes que s valem porque representadas em conjunto" (MAFFESOLI, 2000,

    p.15).

    Conforme Bachelard (1998) e Durand (2001), este universo potico encontra-

    se nas reflexes do antroplogo francs Pierre Sansot (1978) em seu livro a Potica

    da Cidade. O autor parte da percepo de que a reflexo urbanstica no deve

    deter-se somente a questes referentes ao planejamento urbano ou a uma analisedo ambiente construdo e habitado. Haveria a necessidade de se enfatizar a

    dinmica do processo de constituio do espao em real time. Assim poderamos

    nos aproximar da cidade a partir de sua potica, observando os atores envolvidos,

    captando suas narrativas e expresses que revelam as mltiplas formas de habitar e

    significar o espao. um conceito que ressalta este vnculo entre o espao urbano

    e os habitantes, indicando que estes sujeitos da cidade atuam tambm na condio

    de (serem) observadores. Ouvir a voz destes moradores, descobrir suas histrias,

    conhecer os diferentes acontecimentos no bairro por meio de suas narraes,

    tambm conhecer esta potica da cidade.

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    Agora vemos que um objeto urbano pode ser estendido por vrias linhaspoticas, referimo-nos a uma que leva em considerao a nossa inserona cidade. Por isso, devemos abandonar o esotrico em favor de umapotica que respeita os caminhos de percepo. [...] A Potica da natureza,pode ser a chance de sonhar junto com elementos permanentes. (SANSOT,

    1978, p.203)3

    Tambm evoco Georg Simmel (1983) e sua abordagem sobre a sociologia

    das formas, em que ressalta a importncia do conceito de forma social, e sua

    capacidade organizadora nas relaes sociais coletivas, tambm a capacidade de

    promover reciprocidade no transcorrer da socializao/sociao. Para o autor, o

    pesquisador deve buscar suas questes, no na matria da vida social, mas atravs

    de sua forma, pois esta forma que oferece carter social para os fatos de que se

    encarregam as cincias. a inteno de impulsionar o olhar sobre a sociedade,partindo das formas que circundam os agrupamentos humanos, unindo-os.

    A sociao s comea a existir quando a coexistncia isolada dosindivduos adota formas determinadas de cooperao e de colaborao quecaem sob o conceito geral de interao. A sociao , assim, a forma,realizada de diversas maneiras, na qual os indivduos constituem umaunidade dentro da qual realizam seus interesses (SIMMEL, 1983, p.60).

    Ainda recorrendo s indicaes de Eckert e Rocha (2001) para a constituio

    de uma coleo etnogrfica, recebe destaque a reflexo de Norbert Elias (1994) que

    introduziu a noo de uma sociologia figuracional, impulsionando a prtica

    sociolgica em direo dissoluo do pensamento de que devemos compreender

    termos como indivduo e sociedade de maneira desconexa, tratando estes como

    apenas termos opostos, ou entidades ontologicamente diferentes. Para o autor estes

    limites conceituais ressaltam uma falsa dicotomia entre o individuo e a sociedade em

    que habita. Para contrapor estes limites, ele prope a noo de figurao,

    destacando que o individuo e a sociedade no existem autonomamente, mas unem-

    se um ao outro por meio de uma pluralidade. Neste sentido poderamos

    compreend-los de maneira integrada, interdependente, por meio do convvio

    coletivo.

    Dispomos dos conhecidos conceitos de indivduo e sociedade, o primeirodos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma entidadeexistindo em completo isolamento, enquanto o segundo costuma oscilarentre duas idias opostas, mas igualmente enganosas. A sociedade entendida, quer como mera acumulao, coletnea somatria edesestruturada de muitas pessoas individuais, quer como objeto que existepara alm dos indivduos (ELIAS, 1994, p. 7).

    3Traduo livre do autor

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    Michel de Certeau (1994) com a teoria das prticas cotidianas conduziu o

    centro da anlise antropolgico-sociolgica para os temas concernentes s praticas

    do cotidiano, agregando teoricamente uma produo que ofereceu valor para a

    anlise da vida cotidiana. um desafio observarmos as maneiras de fazer dos

    habitantes da cidade, compreendendo-as em propores que transcendem as

    relaes entre indivduos e consumo. Essas formas de fazer compem as mltiplas

    prticas pelas quais os sujeitos se apropriam do espao, proliferando no interno das

    estruturas os seus modos, transformando o funcionamento, bem como o

    corrompendo e resinificando, por vezes at o prejudicando.

    Prticas cotidianas, como falar, ler, circular, comprar, cozinhar so maneirasde fazer, microscpicas vitrias do fraco sobre o forte. Performances

    operacionais dependem de saberes muito antigos [...] tempos imemoriais,inteligncias e astcias. Essas tticas mostram a indissociabilidade entrecombates e prazeres cotidianos que articula, j a estratgia escondemsobre clculos objetivos a sua relao com o poder que os sustenta(CERTEAU, 1994, p. 47).

    Certeau nos convida a acompanhar alguns processos, no intuito de

    percebermos a sua multiforma, resistncia, astcia, transgresso disciplina, e

    permanncia dentro do espao, elementos que nos conduzem a uma teoria das

    prticas do cotidiano e do espao vivenciado. Neste sentido, o praticar o espao reproduzir