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7/25/2019 OS HABITANTES DO GUAJU - Um Olhar Etnogrfico Sobre o Bairro Guajuviras.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Instituto de Cincias Humanas
Programa de Ps-Graduao em Antropologia
Dissertao
OS HABITANTES DO GUAJU:
Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.
Leandro Barbosa dos Santos
Pelotas, 2016
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Leandro Barbosa dos Santos
OS HABITANTES DO GUAJU:
Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia, do Instituto deCincias Humanas da Universidade Federal dePelotas, como requisito parcial obteno dottulo de Mestre em Antropologia.
Orientadora: Claudia Turra Magni
Pelotas, 2016
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Leandro Barbosa dos Santos
OS HABITANTES DO GUAJU:
Um olhar etnogrfico sobre o Bairro Guajuviras.
Dissertao aprovada, como requisito parcial, para obteno do grau de Mestre emAntropologia, Programa de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de CinciasHumanas, Universidade Federal de Pelotas.
Data da Defesa: Pelotas, 31 de maio de 2016.
Banca examinadora:
Prof. Dra. Claudia Turra Magni (Orientadora)Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela Ecole des Hautes tudes enSciences Sociales
Prof. Dra. Ana Luiza Carvalho da RochaDoutora em Antropologia pela Universit Paris Descartes
Prof. Dra. Flavia Maria Silva RiethDoutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Agradecimentos
Dedico este trabalho minha esposa Amanda
a pessoa que mais acreditou em mim
nestes anos de incertezas.
Gratido deveria ser mais do que gestos e palavras bem intencionadas.
Necessitaria ser o reconhecer a alegria da convivncia, o prazer da caminhada com
o amigo, o deleite de ser amparado e aceito, e o encanto de compartir a beleza da
vida em serenidade. Gratido no careceria ser medida em versos, ou precisar de
presentes ou demonstraes de afeto exageradas. A gratido necessitaria apenasconter a simplicidade do gesto, o singelo olhar verdadeiro, e a multido de palavras
que so descritas no silncio. Gratido o ato de recorrer memria em busca de
imagens vivas, aquelas lembranas que s encontramos nos verdadeiros amigos,
em especial a esperana de continuar caminhando junto. A gratido a maior
recompensa de quem sabe que a vida se constituiu no ato de compartilhar, de abrir
e descobrir caminhos, de doar-se sem pretenso, de acreditar no outro. Gratido
acima de tudo uma expresso da verdadeira humanidade.
Momentos que roubamos de amigos
Encontramos o feliz prazer e sentido,
O sabor audaz que rouba o medo
Que zomba da tristeza ou perigo
Deleite este possuir um verdadeiro amigo
O Feliz saber que de almas somos ligados
Levando mesmo a distncia uma parte consigoO que de mais fiel do que contar segredos com sorrisos?
Sim, ter a fascinao deste fiel amigo.
Dedico minha gratido a todos que no intimo compartilharam comigo um
pouco de si, estou seguro de que vocs sabem que so parte de tudo que sou e
estaro sempre comigo onde eu estiver.
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Se o sinh no t lembrado
D licena de contar
Aqui onde agora est
Este ardifcio arto
Era uma casa velha
Um palacete assobradado
Foi a, seu moo, que eu, Mato Grosso e o Joca
Construmo nossa maloca
Mas, um dia, nis nem pode se alembr
Veio os home com as ferramenta
O dono mandou derrub
Peguemo todas nossas coisa
E fumo pro meio da rua
Apreci a demolio
Que tristeza que nis sentia
Cada taubua que caia
Doia o corao
Mato Grosso quis grit
Mas em cima eu falei
Os home t com a razo
Nis arranja outro lugar
S se conformemo
Quando o Joca falou
"Deus d o frio conforme o cobert"
E hoje nis pega as palhaNa grama do jardim
E pra isquece nis cantemo assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim dom de nis passemos dias feliz de nossa vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim dom de nis passemos dias feliz de nossa vida
Saudosa MalocaAdoniran Barbosa
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Resumo
SANTOS, Leandro Barbosa. Os habitantes do Guaju: Um olhar etnogrfico sobre oBairro Guajuviras. 2016. 194f. Dissertao (Mestrado em Antropologia) Programa
de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de Cincias Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.
Esta pesquisa versa sobre as memrias coletivas e prticas cotidianas dehabitantes do Bairro Guajuviras, Canoas, Rio Grande do Sul, considerando-se os
arranjos temporais que ritmam o viver cotidiano dos moradores de cidadesbrasileiras, configurados em suas expresses, imagens e narrativas. A partir de umaabordagem antropolgica visual, utilizou-se, como mtodo, a etnografia emcontextos urbanos, atentando-se linha de estudos relativos s sociedadescomplexas, e, como objetivo a anlise do fenmeno da memria e da durao,entendido como cerne das afinidades sociais dos habitantes do espao urbanocontemporneo. Com base nos estudos concernentes narrativa biogrfica e trajetria social, buscou-se compreender o fenmeno da durao e da memria dolugar, tendo como princpio as interpretaes das formas de negociao doshabitantes locais. Diante do carter inacabado do viver urbano, o destaque seencontra nas estruturas espao temporais que evidenciam o fenmeno da alteridadee da experincia humana com a cidade. Investigou-se como esses habitantes seidentificam reciprocamente, incluindo a perspectiva solidria local, revelando nasnarrativas o traado que transcende o tempo, conduzindo muitos dos modos deestabelecer vnculos no espao.
Palavras-chave: Memria, Narrativa Biogrfica, Trajetria Social, AntropologiaUrbana e Visual, Guajuviras, Canoas.
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Abstract
SANTOS, Leandro Barbosa. The Inhabitants of Guaju:An ethnographic glance atthe neighborhood Guajuviras. 2016. 194f. Dissertation (Master Degree inAntropologia)Programa de Ps-Graduao em Antropologia, Instituto de CinciasHumanas, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.
This research turns on the collective memories and everyday practices ofinhabitants of neighborhood Guajuviras, Canoas, Rio Grande do Sul, considering thetemporary arrangements that rhythm the daily lives of the dwellers of Brazilian cities,
set in their expressions, images and narratives. From a visual anthropologicalapproach it was used as method ethnography in urban contexts, paying attention tothe line studies on complex societies, and as objective to analyze the phenomenon ofmemory and duration, understood as the core of social affinities of the inhabitants ofcontemporary urban space. Based on studies concerning to the biographicalnarrative and social trajectory, it aims to understand the phenomenon of life andmemory of the place, with the principle interpretations of forms of negociation of thelocals. Faced the unfinished character of urban living, the highlight is the temporalspace structures that evidence the phenomenon of alterity and human experiencewith the city. It was examined how these people identify with each other, includinglocal solidarity perspective, revealing the narratives tracing that transcends time,leading many ways to establish links in space.
Key-words: Memory, Biographical Narrative, Social Trajectory, Urban and VisualAnthropology, Guajuviras, Canoas.
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Lista de Figuras
Figura 1 Localizao do Bairro........................................................................ 11
Figura 2 Delimitao do Territrio................................................................... 12
Figura 3 Mapa das Invases Posteriores........................................................ 13
Figura 4 Vista Area 70 metros....................................................................... 14
Figura 5 Entrada do Guajuviras....................................................................... 20
Figura 6 Com alunos da Turma 82b................................................................ 23
Figura 7 Diferentes vistas dos prdios............................................................. 42
Figura 8 Guajuviras recm-ocupado................................................................ 43
Figura 9 Guajuviras atualmente....................................................................... 44Figura 10 Algumas fotografias que compe a constelao dos smbolos de
coexistncia e religiosidade............................................................... 48
Figura 11 Algumas fotografias que compe a constelao Os Caminhos da
Memria............................................................................................. 50
Figura 12 Esquema do Blog.............................................................................. 57
Figura 13 Blog.................................................................................................... 59
Figura 14 Facebook........................................................................................... 59Figura 15 Twitter................................................................................................ 60
Figura 16 YouTube............................................................................................ 60
Figura 17 Imagem retirada de mdia social....................................................... 62
Figura 18 Trajetos............................................................................................. 66
Figura 19 Jferson Cristian................................................................................ 84
Figura 20 Roberto dos Santos e grupo de samba no Colgio Guajuviras......... 87
Figura 21 Pe. Armindo Cattelan......................................................................... 92Figura 22 Moradores e policiais beirando o confronto....................................... 99
Figura 23 As construes inconclusas j ocupadas.......................................... 99
Figura 24 Gerson Rocha.................................................................................... 100
Figura 25 Salvo conduto oferecido pela COHAB............................................... 101
Figura 26 Jorge Grin e Joo de Iemanj......................................................... 104
Figura 27 Festividade realizada no dia das Crianas 2015............................... 106
Figura 28 Edimar Dias...................................................... ................................. 113
Figura 29 Jrson Cristian................................................................................... 118
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Figura 30 Modificaes nos prdios.................................................................. 123
Figura 31 Evoluo das reas verdes e institucionais....................................... 124
Figura 32 Mapa de Localizao........................................................................ 127
Figura 33 Sistema Virio.................................................................................... 128
Figura 34 Avenida 17 de Abrilintensidade de usos........................................ 130
Figura 35 Avenida 17 de Abril............................................................................ 132
Figura 36 Edio 19 de abril de 1997................................................................ 138
Figura 37 Edio 23 de junho de 1997.............................................................. 140
Figura 38 Guajuviras sujando a cidade............................................................. 141
Figura 39 Dados IHA......................................................................................... 146
Figura 40 Grfico observatrio de Segurana Pblica Canoas......................... 148Figura 41 Foto da ocupao com diversas personalidades da poltica brasileira.. 149
Figura 42 Relato de Edimar sobre habitar o Guajuviras.................................... 151
Figura 43 Guajuvirenses Vida Loka................................................................... 156
Figura 44 Imagens produzidas sobre os moradores do bairro.......................... 157
Figura 45 Irmo Antonio Cechin em sua residncia.......................................... 164
Figura 46 Gruta em homenagem a N. Sra. Aparecida no Guajuviras.............. 170
Figura 47 Aulas de educao patrimonial na Escola Municipal Guajuviras...... 171
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Lista de Abreviaturas e Siglas
ABNG Agncia da Boa Notcia Guajuviras
CAIC Centro de Ateno Integral Criana
COHAB/RS Companhia de Habitao do Rio Grande do Sul
DOPS Departamento de Ordem Poltica e Social
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IHA ndice de Homicdios na Adolescncia
NECHA Ncleo de Extenso, Histria e Cultura Afro-brasileira
PDUA Plano Diretor Urbano Ambiental
PIBID Programa Institucional de Bolsas de Iniciao Docncia
PRONASCI Programa Nacional de Segurana Pblica com Cidadania
PRVL Programa de Reduo da Violncia Letal
SICONV Sistema de Gesto de Convnios e Contrato de Repasses do
Governo Federal
UNISEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia
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Sumrio
1 Introduo ....................................................................................................................... 11
2 Trajetria de pesquisa .................................................................................................... 20
2.1 De Historiador a aprendiz de Antroplogo atravs do estudo das narrativas................ 20
2.2 Elementos terico-metodolgicos na incurso de pesquisa em campo ......................... 26
2.3 O uso da imagem como fundamento para constituio da pesquisa .............................. 33
2.4 Uma viagem entre colees e constelaes....................................................................... 45
2.5 Copresena em comunidades virtuais e weblogs.............................................................. 51
2.6 A proposta de documentrio.................................................................................................. 63
2.7 O DVD interativo...................................................................................................................... 652.8 Por uma antropologia da imagem......................................................................................... 66
3 Guajuviras: De espao de conquista a territrio da paz (um olhar de dentro e deperto) .................................................................................................................................. 71
3.1 A trajetria do bairro enquanto espao ocupado: rotinas e conflitos............................... 81
3.2 Tenses entre formas de habitar: diferentes usos e significados de espaos que soconsiderados pblicos................................................................................................................. 111
3.3 Caminhar na rua.................................................................................................................... 120
3.4 Avenida 17 de abril, o ponto de observao..................................................................... 1264 Guajuviras sitiado: um espao merc do estigma? (Um olhar de longe e de fora).......................................................................................................................................... 136
4.1 Guajuviras sob constante observao: um bairro na mdia............................................ 137
4.2. Guajuviras: um territrio da paz?....................................................................................... 143
4.3 Do bairro para o municpio: o trajeto do bairro.................................................................. 150
4.4 Do municpio para o bairro: fluxos e percursos......................................................... 154
5 No Guajuviras quem lembra quem conta ................................................................. 159
5.1. A memria do espao, o ontem e o hoje.......................................................................... 163
5.2 A memria e seus espaos de compartilhamento............................................................ 168
6 Consideraes Finais ................................................................................................... 173
Referncias ...................................................................................................................... 176
Anexos.............................................................................................................................. 186
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1 Introduo
O Conjunto Habitacional Guajuviras, situado na cidade rio-grandense de
Canoas, foi ocupado no dia 17 de abril de 1987, sendo considerada a maior invaso
urbana do sul do Brasil. Para os atuais habitantes do Guajuviras, este dia se
constitui em uma data de extrema importncia, correspondendo ao principio das
ocupaes que foram articuladas a partir de um longo processo de tomada de posse
do Conjunto Habitacional Ildo Meneguetti, como era anteriormente conhecido. O
bairro Guajuviras surge na poca, sendo considerado o maior aglomerado de
habitaes populares do Rio Grande do Sul, em um perodo marcado pela luta por
moradia na Regio Metropolitana de Porto Alegre e tambm no Estado. Localizadona parte nordeste da cidade, considerado um dos mais populosos, conforme censo
do IBGE de 2010, l atualmente residem mais 40 mil pessoas em 5.924 moradias,
casas e blocos de quatro andares, devido s invases das reas verdes.
Figura 1Localizao do BairroFonte: PDUA Canoas, 2008
Segundo as associaes de moradores, esse nmero j ultrapassa os 60 mil
habitantes. Ponderando sobre as motivaes dos ocupantes, Penna et Al. (1998) faz
referncia narrativa de Luiz Carlos Zacher, um dos ocupantes no perodo:
O preo muito alto dos aluguis, a poltica de salrios do governo Sarney, ofracasso do Plano Cruzado e a imigrao massiva da populao do campopara a cidade, foram elementos que contriburam para que a situaochegasse a esse ponto (PENNA, et al, 1998, p.32).
Em decorrncia da crise que o pas enfrentava no perodo, fazia-senecessria uma interveno que enfatizasse a importncia de polticas pblicas
habitacionais na Regio Metropolitana de Porto Alegre.
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Figura 2Delimitao do TerritrioFonte: Google Earth
Aps seis meses de enfrentamentos e resistncia, foram abertas as
negociaes com a Companhia de Habitao do Estado COHAB/RS, e atravs de
uma assembleia geral, os ocupantes aprovaram a proposta sugerida pelo governo, e
os 5.924 imveis invadidos comearam a ser regularizados, dando inicio ao
surgimento do bairro, hoje conhecido como Guajuviras. Considerado um exemplo de
xito na militncia e luta por moradia, tornou-se um referencial ainda pouco
explorado em sua importncia, principalmente para os movimentos sociais e debates
sobre as articulaes pela conquista de territrio e apropriao do espao urbano.
Em 2009, o Guajuviras tornou-se o primeiro alvo para aplicao de diferentes
programas sociais promovidos pelo PRONASCI1. Dentre estes, destacam-se o
Mulheres da Paz, Pacificar, Justia Comunitria, Casa das Juventudes e Agncia deBoas Notcias. Alm disso, houve um reforo do policiamento na regio, integrando
uma ao em parceria entre a Brigada Militar, Polcia Civil e Guarda Municipal,
atravs do Observatrio da Segurana Pblica. Hoje o Guajuviras novamente
assume destaque nacional, sendo considerado o primeiro territrio pacificado do
Brasil.
1 Desenvolvido pelo Ministrio da Justia, o PRONASCI marca uma iniciativa no enfrentamento criminalidade no pas. O projeto articula polticas de segurana com aes sociais, prioriza apreveno e busca atingir as causas que levam violncia, sem abrir mo das estratgias deordenamento social e segurana pblica.
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Figura 3Mapa das Invases PosterioresFonte: Prefeitura de Canoas
Esta pesquisa etnogrfica versa sobre as memrias coletivas e prticas
cotidianas de habitantes do Bairro Guajuviras, considerando os arranjos temporais
que ritmam a vida dos moradores das cidades, configurados em suas expresses,
imagens e narrativas. Situa-se, portanto, dentre os estudos etnogrficos em
contextos urbanos, na linha de pesquisas relativas s sociedades complexas.
Tomo, por fundamento, as contribuies de Eckert e Rocha (2013) sobre o
fenmeno da memria e da durao entendida como cerne das afinidades sociais
dos habitantes do espao urbano contemporneo. Com base nos estudos
concernentes narrativa biogrfica e trajetria social, pretendi refletir sobre a
construo de sentidos de espaos do bairro em meio metrpole brasileira, sobre
sua relao com as formas de interpretao e negociao dos habitantes locais, que
evidenciam o carter inacabado do viver urbano, e sobre as estruturas espao
temporais, que destacam o fenmeno da alteridade e da experincia humana com a
cidade.
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Figura 4Vista Area 70 metrosFonte: Google Earth
Diante das transformaes produzidas no Guajuviras, foram observados os
diferentes ritmos temporais, atravs da anlise das pluralidades, dos estilos de vida,das cosmovises, dos cdigos tico-morais e universos simblicos de seus
moradores, com intuito de destacar esta diversidade de formas sociais descontnuas
evidenciadas no decorrer do processo de ocupao e estabelecimento do bairro.
Trata-se do estudo do fenmeno da durao e da memria coletiva, tomando-se
como ponto de partida os processos interativos vivenciados na relao do
pesquisador com os moradores, os quais tambm articulam suas reminiscncias
com o cotidiano do bairro, conectando as distintas maneiras que, em distintosperodos, relatam as suas experincias do habitar na cidade.
Emprego a pesquisa qualitativa baseada no mtodo etnogrfico, tendo por
base a tcnica da observao participante (MALINOWSKI, 1984), associada a
entrevistas semi-dirigidas com moradores do bairro, O recurso videogrfico,
fotogrfico e ao dirio de campo com dados parcialmente publicados em blog, e
redes sociais que constru especialmente para este fim - foi o meio de consolidar os
dados, partilh-los com meus interlocutores e demais interessados no tema,
incorporando suas reaes a estas informaes e interpret-los luz de teorias
antropolgicas.
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Roberto Cardoso de Oliveira (1998) destaca que as entrevistas combinadas
com observao participante complementam-se dialogicamente, possibilitando o
exato encontro etnogrfico. J em acordo com a Antropologia Interpretativa de
Geertz, assinalamos que a cultura ou realidade social do grupo a ser estudado deve
ser explanada como um documento um manuscrito estranho, desbotado, cheio de
elipses, incoerncias, emendas suspeitas e comentrios tendenciosos (GERTZ,
1978, p.321).
Neste sentido procurei desenvolver uma leitura das experincias vivenciadas
em campo por meio de uma descrio densa de uma hierarquia estratificada de
estruturas significantes em termos dos quais gestos so produzidos, percebidos e
interpretados (GEERTZ, 1978, p.17). Com base nas crticas propostas por esteautor (GEERTZ, 1998) sobre a autoridade etnogrfica, indiquei um modelo dialgico
e polifnico de textualizao e contextualizao do encontro etnogrfico, em que
busquei interpretar estas narrativas e perspectivas, que em si, constituem
interpretaes de meus interlocutores sobre suas vivncias. Nos escritos
etnogrficos, o que se evocou enquanto nossos dados seriam a prpria
constituio das construes de outros.
Conforme DaMATTA (1978), atravs do registro no dirio de campo levei emconta, no apenas os dados objetivos, mas tambm a dimenso intersubjetiva da
experincia etnogrfica, objetivando-a, atravs do registro das surpresas, emoes e
dilemas ao qual esta sujeito o antroplogo em trabalho de campo, no contato direto
e humano com seus interlocutores. Esta articulao entre teoria e dados empricos
sugeriu-nos o prprio processo de escrita e construo de narrativas imagticas, que
buscou interpretar a gama de informaes obtidas para melhor tecer a sua trama de
significados. Conforme James Clifford,:A observao participante serve como uma frmula para o contnuo vaivmentre o interior e o exterior dos acontecimentos de um lado, captando osentido de ocorrncias e gestos especficos, atravs da empatia; de outro,d um passo atrs, para situar esses significados em contextos maisamplos. (CLIFFORD, 2002, p. 33)
Com intuito de alcanar uma maior abrangncia nos debates sobre a
constituio do biogrfico no contexto do mtodo etnogrfico, vamos recorrer ao
conceito de etnobiografia proposto por Gonalves et. al. (2012). Neste sentido,
rejeitamos a produo de uma viso autnticaou essencialista que vise alcanar oponto de vista do nativo, mas, diversamente, buscamos dar conta das complexas
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relaes de alteridade implcitas no encontro etnogrfico e nesta representao
sobre o outro, realizada com ele a partir de construes dialgicas.
A noo de etnobiografia problematiza o etnogrfico e o biogrfico, junto com
as experincias do sujeito e as suas percepes culturais, estruturando uma
narrativa que abranja estes dois aspectos simultaneamente e a tensa relao entre
subjetividade e objetividade, cultura e personalidade.
Quanto ao material imagtico produzido no trabalho etnogrfico, partiremos
da proposta de Gilbert Durand (2001) atravs da constituio da Teoria do
Imaginrio, na qual destaca que os seres humanos so habitados por imagens, se
refletem por meio delas e emolduram o tempo e o mundo, partindo de determinadas
constelaes de imagens acionadas em suas tradies culturais. Destacamos que,como elemento primordial na composio desta dissertao, foi constitudo um
acervo udiovisual, atravs do qual tornou-se possvel uma aproximao maior do
material e corporal. O corpus fotogrfico e videogrfico produzido encontrou um
campo frtil para o registro, a reflexo, o dilogo e as trocas em todo o processo de
pesquisa, fomentando a experincia de campo e permitindo ao etngrafo figurar em
imagens as problemticas de pesquisa, que assumiam uma visibilidade prpria.
Conforme destacado por Eckert e Rocha (2011) diante dos jogos da memria,a manifestao da forma de uma imagem no encerra todos os sentidos. Nesta
perspectiva o registro imagtico do encontro etnogrfico foi preconizado de forma a
estimular a esta experincia de maneira multilateral. As imagens produzidas em
campo, a posteriori, so incorporadas narrativa, atribuindo matria ao tempo
narrado, acrescendo densidade e vibrao em um ritmo singular s distintas faces
do tempo. Neste sentido foi proposto que o mtodo de tratamento da imagem em
uma etnografia da durao possibilitasse um desvendamento destas estruturassubjacentes implcitas nas narrativas.
Extrapolando sua produo e uso documental como meio de registro do
trabalho de campo, foi proposta a problematizao do uso da imagem no decorrer
da anlise antropolgica. a partir de uma perspectiva proposta por Samain (2012)
que assumimos a ideia de que as imagens so pensantes, pois nos instigam a uma
reflexo, indiferentemente da mesma estar ligada ao real, ou acionada atravs do
imaginrio. Tambm se destaca o fato de que as imagens so portadoras de
pensamentos comportando a reflexo de quem a produziu, e congregando os
pensamentos daqueles que as observaram. Neste sentido as imagens tornam-se
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lugares de memria coletiva que assumem o carter de objetos que pensam,
conversam e se transmitem, independentemente de nossa ao.
Ponderando sobre tal elemento, entendemos a potncia da utilizao da
fotografia e do vdeo enquanto meios de proporcionarem pesquisa uma base
tangvel e expressiva para elaborar essas comparaes e fundamentar visualmente
essas inter-relaes ou encadeamentos. Ou seja, somando-se sua importncia
para o registro de situaes em campo, assim como para a construo dialgica da
anlise do material emprico produzido, foi ainda possvel recorrer linguagem
fotogrfica e flmica enquanto elemento fundamental para a elaborao de narrativas
etnogrficas que integram os produtos finais desta pesquisa, seja em forma de
textos e imagens impressos que estruturam a presente dissertao, seja em formade arranjos possveis por meio do blog etnogrfico, ou diferentes mdias sociais.
Ainda atravs de ensaios videogrficos e fotogrficos que acompanham a
dissertao, mas tambm tm a sua autonomia de circulao. A reflexo sobre as
caractersticas da mensagem etnogrfica so articuladas diante de alguns princpios
da construo das mensagens fotogrficas, procurando destacar sua eficincia para
lidar com algumas categorias empregadas na antropologia.
Em acordo com esta perspectiva, deu-se o processo de incurso a umespecifico espao da cidade de Canoas. O bairro Guajuviras atualmente esta com
28 anos de existncia, e tambm pode ser considerado perifrico por sua
localizao junto aos limites da cidade, mas transpe esta condio devido ao
histrico, e enquanto espao de lutas e conquistas. A questo central levantada
nesta pesquisa, no diz respeito somente admirvel histria desta parte da cidade
de Canoas, mas se refere em especial experincia destes habitantes com o seu
bairro. A pergunta que foi lanada como plataforma da incurso era: como poderiamser entendidas as diferentes articulaes da memria e prticas individuais e
coletivas dos habitantes em relao ao processo poltico de ocupao deste territrio
perifrico do municpio de Canoas/RS?
Tornou-se evidente que estas percepes transcendiam o habitar, remetendo
ao transito que relaciona as diferentes temporalidades vividas no espao durante e
ps a ocupao ocorrida em 1987. No decorrer do perodo de pesquisa, a
elaborao de dados deu-se por meio de uma abordagem etnogrfica que envolveu
situaes de observao participante nos espaos de sociabilidade. Procurei prezar
por uma flexibilidade na realizao das entrevistas, por vezes indo residncia dos
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entrevistados, e em outros momentos realizando as mesmas em locais pblicos. O
percorrer estes espaos era uma inciativa que visava ressaltar a experincia de
flneur2, no intuito de atiar as memrias em relao experincia do habitar.
Embora os participantes fossem informados acerca dos temas a serem abordados,
procurei fazer com que a conversao fosse realizada de maneira informal
mantendo a caracterstica de entrevistas semi-diretivas, bem como, o carter
individualizado da entrevista. Elas foram gravadas e parcialmente transcritas, e em
algumas foram feitos apenas registros e atribudos nomes fictcios a pedido dos
interlocutores.
Em termos metodolgicos, procurei compreender os fenmenos sociais
referente ao universo de pesquisa do bairro Guajuviras, por meio da experinciaetnogrfica. A metodologia utilizada em campo foi constituda pela aderncia s
tcnicas de pesquisa referentes antropologia visual, envolvendo o trabalho de
campo com cmeras e tcnica de observao participante. Tal perspectiva nos
conduziu possibilidade de aprofundar a experincia de insero em campo junto
aos moradores e ex-habitantes da regio. Buscou-se ampliar este dilogo com
especialistas e profissionais que haviam atuado no bairro atravs de processos
desenvolvidos por programas sociais aplicados na regio. Diversos foram os meiosacessados que buscaram o aprendizado das lgicas de ocupao e aproximao
dos moradores, manifestos atravs de experincias temporalmente distintas.
Esta dissertao ser dividida em seis captulos que buscam descrever a
trajetria e a diversidade de reflexes provenientes do processo de desenvolvimento
da pesquisa em campo. Recobro entrevistas e relatos dos encontros e desencontros
urbanos, desenvolvendo um texto igualmente combinado por palavras e imagens.
No presente captulo, ofereo ao leitor a introduo do trabalho, com umpanorama do universo de pesquisa, localizando-o geograficamente e apresentando,
em termos gerais, a metodologia utilizada para composio deste trabalho.
J no captulo dois ser proposta uma reflexo referente ao processo de
formao acadmica, e como se deu esta transio interdisciplinar diante de um
universo de implicaes que exigiam meu deslocamento, tornando-me um aprendiz
de antroplogo. Nesta reterritorializao de meus paradigmas, procuro aprofundar
2 Flneur personagem objeto das reflexes de Walter Benjamin (1992) sobre a obra de CharlesBaudelaire. O caminhar pode ser percebido como meio atravs do qual possvel dilatar o sentido denoo de espao, conforme se constitui em uma prtica que infringi e subverte as normas quedisciplinam e regulam.
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os fundamentos terico-metodolgicos da pesquisa, principalmente no que concerne
prtica etnogrfica com a atravs de imagens e dos recursos da WEB.
Apresentarei uma perspectiva terica dos autores e conceitos que acompanharam o
transcorrer do texto, fundamentando os usos da imagem e composio dos
diferentes recursos sonoros e visuais. Abordarei temas que permearam a proposta
da constituio de colees etnogrficas e blog, estas que conduziram as
estratgias e uso das mdias sociais, bem como, nos instigaram na produo do
documentrio e DVD interativos.
No captulo trs proponho a apresentao de alguns dos interlocutores de
pesquisa, onde sero explorados os espaos e aspectos histricos contidos nas
narrativas, elucidando ao leitor a especificidade de vida no bairro enquanto territriode ocupao em relao cidade de Canoas. Neste capitulo o leitor descobrir a
construo de personagens, protagonistas e suas narrativas, encontrando a
solidariedade enquanto elemento que une os habitantes, manifestando as trajetrias
familiares e coletivas.
O capitulo quatro estabelecer uma proposta de analise distinguindo as
tenses existentes entre a cidade e os habitantes do bairro. Consideraremos as
dificuldades e problemas, compreendendo com isso os efeitos de um longo processode estigmatizao que hoje implica diretamente na relao dos moradores com a
metrpole.
Por fim no captulo cinco, proponho a anlise das memrias produzidas pelos
interlocutores, destacando elementos do passado e do presente que compem a
memria do espao. Neste sentido receber nfase o posicionando do olhar em
direo ao cotidiano, comrcio, e trajetos estabelecidos por seus habitantes no
bairro. Igualmente aponto para diferentes espaos, os qualificando enquantofundamentais na preservao e conservao da memria. Igualmente neste mesmo
captulo me encaminho para as consideraes finais.
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2 Trajetria de pesquisa
Figura 5Entrada do GuajuvirasFonte: do autor
2.1 De Historiador a aprendiz de Antroplogo atravs do estudo das narrativas
Como forma de introduzir esta etnografia e o tema proposto, vejo como
necessrio traar um relato que identifique a minha trajetria acadmica/profissional,
e contextualize esta pesquisa, explicitando o modo como, de historiador, vim a me
inserir na perspectiva da Antropologia Urbana e Visual, e, em especial, nos estudos
de Memria e das Sociedades Complexas.
Em 2011, quando integrei o Ncleo de Extenso, Histria e Cultura Afro-
brasileira (NECHA), atravs da produo de um documentrio histrico intitulado,
Chcara das Rosas, Um Quilombo Urbano, teve inicio o meu interesse por
questes como narrativa, memria e registro da oralidade. Esta reflexo foi
reforada com a descoberta de um universo de possibilidades derivadas do uso de
fotografias e vdeos, tornando possvel a consolidao do projeto enquanto mtodo e
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fundamento epistemolgico na produo da pesquisa. Hoje no posso deixar de
pensar que, no momento em que me propus a sair com uma pequena cmera de
mo, com vdeo e udio sincronizados, estava lanando as sementes do que viria a
ser uma experincia etnogrfica, ainda incompleta e carente de fundamentao,
mas carregada de significados que me acompanharam durante a formao
acadmica, norteando meu caminho em direo ao que me proponho na atualidade.
Assim como indicado por Eckert e Rocha (2002), em seu texto Etnografia de
rua e cmera na mo, pude iniciar meu aprendizado sobre cidade como matria
moldada pelas trajetrias humanas, e no como mero traado do deslocamento
indiferente de um corpo no espao. Foi a tentativa de, atravs do registro histrico
contido nas falas de meus interlocutores, recompor muitos destes traados, que aliforam depositados por homens e mulheres atravs do tempo. Ao observar as
dinmicas daquele bairro, pude perceb-lo como objeto temporal que circulava em
torno de um espao reivindicado em constante contraste. Hoje entendo o destaque
de Elias e Scotson (2000), quando ressaltam as tenses entre estabelecidos e
outsiders:pude perceber os trajetos e o poder dos lugares, em especial na forma
como estes outsiders (naquele momento, os indesejados ocupavam uma nesga de
terra, resqucio de suas habitaes ancestrais) usaram, reutilizaram e modificaramseu territrio, designado, pelos estabelecidos, de planeta dos macacos. Foi
tamanha a inquietude, que minha sensibilidade instigou-me a explorar esta relao -
tempo e paisagem - contida nas narrativas de meus entrevistados.
Tambm neste mesmo ano comecei a ocupar o cargo de funcionrio do setor
de Educao Patrimonial do Museu Jos Joaquim Felizardo, onde, atravs deste
envolvimento, acabei por integrar-me na pesquisa intitulada Narrar Outras
Memrias, Construir Outras Histrias: Histria Oral no Museu de Porto AlegreJoaquim Felizardo, sob coordenao da Dr Maria Anglica Zubaran. Nesta
pesquisa, me foi proposta a funo de operador de cmera e entrevistador, alm de
transcritor de parte de algumas das entrevistas gravadas.
Este processo de ouvir e reouvir, recortar e selecionar partes das falas
contidas nas narrativas constituiu-se em um exerccio de reflexo sobre como era
pensado o mtodo de registro da oralidade. Outro ponto importante era perceber
como contrastavam as diferentes narrativas populares e institucionais quanto a um
espao poltico de memria, que, por vias da oralidade, agora passava a assumir um
statusde patrimnio imaterial para os moradores, tornando a manifestao dessas
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reminiscncias coletivas, um elemento que vinha a contemplar a diversidade social,
tnica, cultural, fundamentando os laos de pertencimento desses moradores com o
seu bairro.
No foram poucas as referncias tericas que me acompanharam nesta
construo intelectual. Destas, ressalto a importncia de Alistair Thonsom (1997) em
seu texto, Recompondo a Memria, questes sobre a relao entre histria oral e
memorias, em que o autordestaca a sua experincia com seus interlocutores (ex -
soldados australianos), enfatizando a importncia dos silncios e subjetividades que
surgem junto com os traumas, e todo um universo particular que se estabelece entre
entrevistador e entrevistado. Trata-se de uma discusso relacionada com outros
debates propostos pela Antropologia, que dizem respeito postura do antroplogo,e que so habilmente articulados por Oliveira (1998), Silva (2000), Magnani (2009),
Eckert & Rocha (2008).
Hoje posso identificar que o teor antropolgico destes textos foi o que
caracterizou a minha empatia pelos escritos de Thonsom (2002). Tambm destaco a
presena de outros autores que me introduziram a uma discusso mais profunda
sobre oralidade enquanto mtodo, como no caso da Verena Alberti (2005), com o
Manual de Histria Oral, livro que me desvelou este mtodo da Historia como via deproduo de pesquisa. Outro importante debate entre oralidade, tempo e idade foi
aquele proposto por Eclea Bosi (2003), ao explorar a dinmica das memrias
temporais de idosos. No menos importante para a minha trajetria de pesquisa foi
Alessandro Portelli (1997), que me instigou a atentar para uma sensibilidade tica
enquanto entrevistador, em especial na relao com os entrevistados. Estas so
discusses, prprias do campo histrico, que esto igualmente presentes no
cotidiano do etngrafo, em especial no que tange o tratamento das narrativas e oolhar antropolgico.
J na segunda metade de 2012, acabei por integrar o Programa Institucional
de Bolsas de Iniciao Docncia (PIBID), na Universidade Luterana do Brasil.
Conhecendo minha trajetria, a responsvel pelo programa, Dr Evangelia Aravanis,
props que eu elaborasse um projeto de Educao Patrimonial para que o mesmo
fosse desenvolvido atravs de oficinas em parceria com a proposta de estgio
docente.
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Figura 6Com alunos da Turma 82bFonte: Arquivo Escola Municipal Guajuviras
Depois de um tempo de reflexo, e pensando j em um possvel tema de
monografia ou mestrado, usei a oportunidade como laboratrio e cheguei
produo de uma proposta intitulada Construindo Identidades a partir da MemriaCanoense no Bairro Guajuviras. Refletindo sobre distintas questes relacionadas
imaterialidade do patrimnio, em especial na forma como os indivduos oferecem
sentido aos espaos atravs de suas reminiscncias, logo me vi cercado de
discusses referentes ao tema. De minhas reflexes, fizeram parte autores como
Maurice Halbwachs (1990) e Stuart Hall (2003), seja atravs do conceito de memria
coletiva, seja pela prpria temtica da cultura, que j me aproximou ainda mais dos
debates antropolgicos, pela critica a uma viso essencialista. Parafraseando Hall(2003, p.44), cultura no uma arqueologia e sim uma produo sujeita aos
indivduos e ao espao que ocupam.
Ponderando tambm a necessidade de relacionar o patrimnio imaterial
questo da dualidade da memria, Astor Antnio Diehl (2002) afirma que esta
capaz de conceber probabilidades de aprendizagem e de socializao que
influenciam a constituio de uma identificao cultural. Mas, j no final de minha
trajetria enquanto professor na Escola Guajuviras, vindo a consolidar meu interesse
pela Antropologia, destaco o antroplogo Jol Candau (2011), que aborda uma
multiplicidade de conceitos, estabelecendo um dilogo com o historiador Pierre Nora
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(1993), com o socilogo Maurice Halbwachs (1990) e com o filsofo Paul Ricoeur
(2007), a respeito de noes como lugar de memria, memria coletiva, quadros
sociais de memria, memria justa, tradio e tradicionalidade.
Posteriormente realizao das oficinas para Educao Patrimonial sobre o
bairro Guajuviras, foi possvel perceber a riqueza dos materiais resultantes das
atividades propostas para os alunos, incluindo uso de mapas, fotografias antigas,
escrita e exerccios prticos dos educandos com seus familiares, moradores do
bairro. Neste sentido, a proposta de um projeto etnogrfico surge a partir da anlise
de alguns vdeos produzidos por alunos, nos quais percebi que as narrativas e
memrias articuladas, por vezes no conferiam com as propostas educativas
organizadas no projeto.Perceber que elas eram, em certa medida, divergentes da histria oficial
despertou uma reflexo sobre as minhas prprias falhas diante da preocupao em
ordenar a narrativa com intuito de reproduzi-la para os seus habitantes. Gilberto
Velho (2008) descreve as dificuldades causadas por uma perspectiva sociologizante,
que por vezes descarta o protagonismo dos sujeitos, tornando-os meros
coadjuvantes de suas prprias histrias. como se o pesquisador, no decorrer de
um evento, no acreditasse que estes se constitussem em agentes, com poder denarrativa, sendo que tal atitude uma negativa ao reconhecimento dos processos
sociais que condicionam e afetam os indivduos.
No esforo de fugir de um voluntarismo psicologista, a cincia socialconstantemente cai num fatalismo sociologizante em que a explicao postfacto se torna rotina. Assim que os comportamentos, acontecimentos,eventos so considerados, muitas vezes, como resultados de determinaode foras sociais e histricas atravs das quais os indivduos e grupos solevados a agir, em boa parte inconscientes das causas Reais de suasaes. a velha idia de que os atores so joguetes de foras impessoais epoderosas, nada mais fazendo do que confirmar atravs de suas aes o
sentido da histria. (VELHO, 2008, p. 109-10).
Magnani (2002) tambm apresenta a necessidade desta mudana de
perspectiva para uma percepo do urbano de maneira mais ampla. Com intuito de
guiar o etngrafo para captar uma maior abrangncia de percepes, o autor
incentiva o deslocamento em direo ao ato de imergir na perspectiva da
constituio da etnografia. Assim, atravs do mtodo etnogrfico sobre a cidade, o
pesquisador poder perceber a sua dinmica, resgatando este olhar de perto e de
dentro que permite identificar, descrever e refletir sobre elementos que sodescartados por enfoques que priorizam uma perspectiva defora e de longe.
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A mudana de foco que a perspectiva antropolgica possibilita,principalmente em funo do mtodo etnogrfico, tem a vantagem de evitaraquela dicotomia que ope, no cenrio das grandes metrpolescontemporneas, o indivduo e as megaestruturas urbanas [...] A simplesestratgia de acompanhar um desses indivduos em seus trajetos
habituais revelaria um mapa de deslocamentos pontuado por contatossignificativos, em contextos to variados como o do trabalho, do lazer, dasprticas religiosas, associativas etc. neste plano que entra a perspectivade perto e de dentro, capaz de apreender os padres de comportamento,no de indivduos atomizados, mas dos mltiplos, variados e heterogneosconjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem dacidade e depende de seus equipamentos.(MAGNANI, 2002, p.17)
Conforme Elias e Scotson (2000) o ato de apresentar a histria do bairro
como um elemento alheio que precisava ser reconhecido e institucionalizado como
forma de organizar aqueles outsiders, referia-se mais a uma alocuo que
reproduzia um ideal carregado de estigmas, representado atravs da relao da
cidade com o bairro.
No artigo, Quando cada caso no um caso, Cludia Fonseca (1999)
destaca este elemento essencial na constituio de uma etnografia, distinguindo os
muitos equvocos no desenvolvimento de um mtodo etnogrfico que se detm
somente na aplicao de tcnicas ou orientaes tericas focadas no individual, no
levando em conta a importncia do aspecto social. A autora destaca que a ideia
proposta na premissa cada caso um caso no compatvel com o mtodo
etnogrfico, sendo necessria a competncia por parte do etngrafo na aplicao
metodolgica. Para a autora, a etnografia no seria to aberta quanto se presume,
em especial por fazer parte das Cincias Sociais contando com um enquadramento
politico histrico do comportamento humano (FONSECA, 1999, p.62).
Este lugar de imprecises onde se encontra o perigo de uma transio, em
especial na transdisciplinar, em que o pesquisador, ao invs de agregar as
vantagens da etnografia, apenas permaneceria em um limbo onde prevalece aarmadilha do senso comum quanto ao assunto em questo. importante destacar
que, diante desta problemtica, muitos trabalhos tidos por etnogrficos acabam por
no s-lo, representando apenas a descrio de uma realidade observada, para
uma narrativa textual densa.
Outro elemento importante evidenciado naquela experincia docente acima
narrada estava no fato de os professores da escola em que eu estava inserido no
serem residentes do bairro, foco do projeto em questo, mas sim, moradores deoutras localidades do municpio, que se deslocam at o Guajuviras para trabalhar, o
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que tornava o ambiente escolar um espao permeado por discursos de pessoas
estabelecidas. O bairro, tal como representado constantemente pelas mdias,
reduzido s pginas criminais, feito um animal selvagem a ser domado por
programas de pacificao. Para que eu pudesse superar estas representaes
estigmatizantes, agora enquanto etngrafo, ficou clara a necessidade de meu
processo de imerso junto aos moradores exigir mais do que apenas uma mudana
de local, pois seria necessrio uma reformulao que afetaria diretamente a minha
condio enquanto pesquisador. No eram somente as entrevistas que me fariam
entender o bairro de perto e de dentro, seria preciso aproximar-me dos moradores
sem tantos a priorise descolado do statusde que eu desfrutava; compreender e ser
compreendido por aquele grupo. Neste sentido, era imprescindvel um esforo dedesconstruo de meu papel social enquanto professor, estabelecendo outros fluxos
em minha trajetria que me conduzissem ao encontro direto, sem mediaes
institucionais, com aqueles moradores.
2.2 Elementos terico-metodolgicos na incurso de pesquisa em campo
Diante das expectativas referentes ao ingresso em campo, o perodo em que
optei por esta experincia constituiu-se em um momento muito singular. Aps um
tempo de preparo, propondo-me, atravs das disciplinas cursadas para o mestrado,
a fundamentar este estudo, a incurso veio a consolidar os diversos debates sobre
os temas considerados. Embora a minha convivncia com o grupo remontasse a
meados de 2012, atuando como docente em duas escolas no bairro, foi em 2014,
atravs das minhas primeiras investidas enquanto etngrafo, que pude perceber oquanto era necessrio questionar tudo o que eu achava saber sobre aqueles
habitantes.
Em uma reflexo sobre o texto Observando o Familiar, de Gilberto Velho
(1978), compreensvel que nem sempre o familiar seja notrio. Mesmo nas
grandes metrpoles habitadas pelo pesquisador existem situaes que provocam
um estranhamento to grande quanto em sociedades exticas, pois so muitas as
descontinuidades existentes. O fato de estar vivendo em meio a uma sociedade
complexa, altamente hierarquizada, torna perceptvel como ela organiza as suas
camadas sociais e seus sujeitos com estigmas e esteretipos. Considerar a minha
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posio nessa hierarquia pr-estabelecida foi fundamental para a reconstituio de
um trajeto e projeo de uma futura pesquisa, em especial no que se referia a minha
proposta de estudo.
Eu estava diante de um contexto urbano onde imperava a fragmentao de
papis e descontinuidades simblicas. Neste sentido, a noo de projeto, de Gilberto
Velho (1981) orientou-me quanto aos caminhos relativos constituio da pesquisa.
Segundo o autor, a famlia, o trabalho, o lazer, as opes polticas, dentre outros,
configuram um campo de possibilidades em que os atores individuais movimentam-
se, impelidos e pressionados, mas com uma distino de alternativas e opes. A
heterogeneidade dos papis e domnios conectados a um possvel trnsito entre
eles origina uma diversidade de identidades multifacetadas e de permannciarelativa.
A princpio, havia destacado uma srie de critrios sobre qual seria o perfil
dos meus entrevistados. Inicialmente pensei em compor perfis que remetessem ao
critrio da ocupao do Bairro em determinado recorte de tempo. Mas conforme a
reflexo sobre a constituio destes espaos urbanos se aprofundava, percebia que
a escolha de interlocutores por este parmetro deveria corresponder pluralidade
com que este espao foi sendo constitudo. Preferi, ento, estabelecer por critrio dedefinio de meu universo de pesquisa, apenas o conhecimento dos narradores em
relao ao habitar o bairro, independente de serem ou j terem sido moradores. O
destaque estaria na intensidade desta experincia do habitar, em relao a este
especfico espao urbano.
O enfoque estaria na capacidade de articulao destas memrias, em
conjunto com a facilidade em discorrer sobre as mesmas. Refletir sobre quem iria
produzir as narrativas a respeito do bairro, era tambm pensar que a cidade composta por esta pluralidade. Este fato me impulsionava a perceber que estes
narradores produziam percepes distintas e imaginadas sobre aquele lugar
compartilhado em meio urbe. Assim como descrito por Agier (2011) a cidade no
pode ser pensada como uma totalidade ou um objeto, ela coisa humana, a forma
mais complexa e sofisticada da civilizao. Neste sentido, o cuidado e o empenho
na constituio de uma pesquisa relacional, local e microlgica, como define o
autor, o que torna possvel a elaborao de uma antropologia da cidade.
Assim, por mtodo, o antroplogo tem necessidade de se emancipar dequalquer definio normativa e a prioride cidade para poder procurar a suapossibilidade por toda parte, trabalhando para descrever o processo
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posio que d ao saber antropolgico um lugar parte e reconhecvel noconjunto dos conhecimentos da e sobre a cidade, disponibilizando-os paratodos. Cidade vivida, cidade sentida, cidade em processo... Trata-se de umainterrogao que diz respeito aos citadinos e a sua experincia de cidades.A cidade j no considerada uma coisa que eu possa ver nem um
objeto que eu possa aprender como totalidade. Ela transforma-se num tododecomposto, um holograma perceptvel, apreensvel e vivido em situao.(AGIER, 2011, p.37-8)
Certamente este era o objetivo da pesquisa enquanto estabelecimento de
uma relao com os interlocutores, entender as distintas articulaes da memria
em relao ao Guajuviras. Estas percepes esto para alm do habitar, mas
tambm remetem ao transito que relaciona as temporalidades diferentes, e que
foram vividas no espao durante e aps a ocupao do Bairro, ocorrida em 1987.
Encontrar o bairro como um personagem que instigaria estas narrativas, queinteragiria e se comunicaria com estes interlocutores, estabeleceria a reflexo
sugerida por Latour (2012) em sua Teoria Ator-Rede.
O autor prope uma anlise, tomando as interaes como objeto inicial de
seu estudo. Seria ponderar que estes intercmbios adquirem relevncia conforme
manifestam mediaes, conexes estas que so capazes de produzir transformao
na medida em que as informaes nelas presentes so articuladas, afetando-se
reciprocamente. Os elementos materiais e imateriais, as organizaes e as relaesde poder na vida social, seriam parte destas afinidades de interao, sem que uma
determine a outra, embora possuam influncia de atuao mtua. Nesta perspectiva,
no existe diferena de natureza entre os diferentes atores, j que todos tem a
possibilidade de serem mediadores ou intermedirios no transcorrer da mediao.
Dando consistncia a este tema, Latour indica um princpio de simetria, destacando
que os atores oferecem as mesmas probabilidades de produo de interferncia ou
mediao, no hierarquizveis. Este princpio est abertamente ligado aoestabelecimento das relaes de poder, e de como estas so constitudas.
Desta maneira, seria possvel perceber o bairro como um ator, um
intermedirio que produz sinais, um causador de efeitos e mediaes, intervindo e
originando cruzamentos em uma rede de fluxos, movimentos, negociaes, unies,
afetando os espaos onde os atores intervm e sofrem intervenes,
simultaneamente. Como ator, o bairro contribui na constituio destas identidades,
estabelecendo um campo de relacionamentos e afinidades.
Uma importante questo pautou minha reflexo: como eu poderia ajustar
minha entrada em campo, ou como refletir o modo de debater os dados sem me
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propor a este deslocamento enquanto etngrafo? Evidenciei que meus interlocutores
estavam em constante movimento neste campo instvel que a cidade, sendo que
para acompanha-los eu tambm deveria me adicionar a este fluxo como modo de
alcanar uma proximidade daqueles a quem pretendia captar as narrativas.
Neste sentido, encontro a importante provocao lanada por minha
orientadora, Claudia Turra Magni, quando me prope o desafio de abandonar a
condio hierrquica da posio social que ocupava enquanto professor e me lanar
no campo das alteridades, permitindo-me significar e ser significado. De certa
maneira, o desafio, converge para o texto de Silva (2000) quando prope o adentrar
em campo, criticando a ideia de que o antroplogo poderia pairar como uma
entidade acima da vida dos seus interlocutores, como se esta relao no resultasseem nenhum tipo de interferncia. Esta seria uma percepo contraditria diante dos
fundamentos epistemolgicos que guiam a observao participante no trabalho de
campo.
Em um primeiro momento, enquanto professor, eu estabelecia meu ponto de
observao em um lugar protegido e assegurado pelo sistema hierrquico da escola.
Agora, como aprendiz de antroplogo, era necessrio envolver-me com esta
proposta de uma etnografia, que demandaria um deslocamento em direo alteridade. Foi neste ponto que compreendi o quo difcil seria tencionar minha
incurso atravs de observao participante, sem envolvimento com os conflitos,
articulaes, e limitaes do cotidiano destes habitantes do bairro. Seria
imprescindvel a submisso a este aprendizado sobre o grau de proximidade e
distanciamento que deveria manter para concretizar esta pesquisa.
Antes, conhecia parcialmente as rotinas do bairro, a partir de um ponto
relativamente fixo de observao: a escola onde eu atuava. Agora, em meu novostatus, permiti-me exercitar deslocamentos, percorrendo vias, becos e avenidas,
propondo-me a experincia de uma etnografia de rua. J ciente de que estava
transitando em um campo distinto de conhecimento, tornou-se evidente que seria
necessrio desbravar este trajeto municiando-me de instrumentos antropolgicos
como forma de interpretar as experincias propostas. O campo realmente vem a se
materializar atravs de leituras, em acordo com relatos e dados diversos, obtidos por
diferentes vias. Esta reflexo sintetizada na fala de Silva (2000), ao destacar que o
campo no s nossa experincia concreta, situada entre o projeto e a escrita
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etnogrfica. No existe uma produo linear, esta no a realidade de como se d o
desenvolvimento da pesquisa de campo.
Neste sentido, conforme destacado por Magnani (2003), foi possvel perceber
que a antropologia tem uma contribuio especifica para a compreenso do espao
urbano, que abrange questes da dinmica cultural e das formas de sociabilidade,
sendo este legado terico-metodolgico o que torna possvel a concretizao destes
estudos. No caso especfico de minha pesquisa, percebi que as motivaes e
expectativas em relao ao campo, ao invs de tornarem-se um obstculo,
acenderam estas perspectivas para o questionamento dos dados obtidos. No era
necessria uma correspondncia entre documentos oficiais e narradores, as
discordncias tornaram-se essenciais para a compreenso destes eventos descritose fotografados. Como destacado por Thomson, o ato de abranger estas contradies
o que instigava-me a perceber a pluralidade que reflete as tenses do tempo e da
memria. "Ouvindo os mitos, as fantasias, os erros e as contradies da memria, e
prestando ateno s sutilezas da lngua e da forma narrativa, podemos entender
melhor os significados subjetivos da experincia histrica"(THOMSON, 2002, p. 12).
Na presena destes relatos irregulares, que pude compreender que atravs
da produo das narrativas dos interlocutores, o tempo articulado de maneiradistinta por diferentes pessoas. Ao perceber o processo da construo destas
diversas falas, foi possvel ponderar sobre a discusso originada pelo conceito de
etnobiografia proposto por Gonalves et. al. (2012). Este destaca que o indivduo
no s uma manifestao da representao coletiva, como muitas vezes
considerado pelo conceito de memria proposto por Halbwachs (1990), mas que a
individuao criativa dospersonagens-pessoasdesenvolve tambm uma autonomia
que no esta totalmente submetida fora que emana da sociedade.Neste entremeio ocorreria um improviso, uma narrao que no neutra, mas
que assume um papel agenciador, agregando novos significados, ao mesmo tempo
em que estes elementos tambm afetam o etngrafo. O relato no uma via de mo
nica, em que o interlocutor apenas fala, e o etngrafo escuta. A constituio desta
relao o que materializa um processo de objetificao da cultura, como citado por
Wagner (2010); a possibilidade dada ao antroplogo para compreender o seu
objeto de estudo. Na consolidao de um dilogo que se materializa este
processo, chamando a ateno do pesquisador para a cultura daquele indivduo e,
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percebendo o que ela quer dizer, em um exerccio que acontece junto com a
objetificao dentro da cultura do pesquisador.
apenas mediante uma "inveno" dessa ordem que o sentido abstrato de
cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser apreendido, e apenas pormeio do contraste experienciado que sua prpria cultura se torna "visvel".No ato de inventar outra cultura, o antroplogo inventa a sua prpria eacaba por reinventar a prpria noo de cultura. (WAGNER, 2010, p.31)
Pois assim como o pesquisador tem curiosidades em relao ao que o
interlocutor pode narrar, o mesmo tambm possui duvidas e expectativas sobre o
pesquisador. Neste mesmo significado, encontrei apoio na critica proposta por
Goldman em sua anlise da obra de Wagner:
Aqui tocamos num ponto fundamental, pois o reconhecimento da
criatividade daqueles que estudam , para Wagner, condio depossibilidade da prtica antropolgica. Mais do que isso, o antroplogo deveestar preparado e disposto a assumir duas premissas: reconhecer naquelesque estuda o mesmo nvel de criatividade que cr possuir; no assimilar aforma, ou o estilo, de criatividade que encontra no campo com aquele como qual est acostumado e que ele prprio pratica. (GOLDMAN, 2011, p.203)
A realizao de um registro flmico da experincia etnogrfica de pesquisa
deve contar com escolhas metodolgicas e estratgias de preciso, mas acima de
tudo com a perspectiva pautada por procedimentos ticos. Quando decidi empregar
a cmera como instrumento, busquei refletir sobre as possibilidades tcnicasdisponveis e questes ticas que se lanavam entre eu e meu objeto de estudo.
Como idealizava a produo de um filme de carter etnogrfico e antropolgico,
optei por um mtodo de trabalho realizando entrevistas semi-diretivas. Mas por
vezes preferi adequar a minha perspectiva enquanto pesquisador a novas dinmicas
de participao. Buscando proximidade e fluidez no deslocamento de perspectivas
de viso, ofereci movimento s filmagens optando por caminhadas, percorrendo o
bairro junto aos meus interlocutores. Com a cmera na mo, me movimentei no
sentido de torn-la ativa e participante durante os dilogos. Por vezes no consegui
um bom resultado em termos tcnicos, em decorrncia das mudanas bruscas nos
trajetos e tambm das surpresas que nos advinham. Como descrito no texto de
Eckert e Rocha (2003), percebi que a caminhada no era descompromissada ou
inocente, mas estava operando em uma esfera de significados que surgiam
conforme nos movamos atravs dos espaos.
O personagem baudelairiano, o flneur, caminha na cidade: um percurso
sem compromissos, sem destino fixo. O estado de alma deste personagem-tipo de indiferena, mas seus passos traam uma trajetria, um itinerrioque concebe a cidade, o movimento urbano, a massa efmera, o processode civilizao. Logo, esta no uma caminhada inocente. A cidade
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estrutura e relaes sociais, economia e mercado; poltica, esttica epoesia. A cidade igualmente tenso, anonimato, indiferena, desprezo,agonia, crise e violncia. (ECKERT, ROCHA, 2003, p.1)
Ao caminhar em companhia de meus interlocutores atravs das vias
intrincadas e descontinuas daquele bairro, foi possvel intuir como ele era moldado
por seus ocupantes. Propus-me a personificar a reflexo indicada por Roberto
Cardoso de Oliveira (1998) sobre a necessidade de uma domesticao terica do
olhar. Enquanto caminhava por aquelas ruas, percebia, sutilmente, que minhas
antigas percepes eram gradualmente transformadas e substitudas por novas
perspectivas no modo de observar o Guajuviras. A paisagem urbana permeada por
construes semiacabadas, escurecidas pelo tempo, assumia uma vivacidade
misteriosa, agora adquirindo um status que ao invs de provocar medo, causava
interesse.
Considerar estes trajetos percorridos pelos habitantes, percebendo os carros
em seu ritmo vagaroso, seguindo pela avenida principal, ouvir e ver as crianas
correndo em brincadeiras burlescas, chamando a ateno dos transeuntes, s
intensificava a minha experincia etnogrfica. As dessemelhantes formas pintavam
imagens em minha conscincia, traduzindo o ato de ocupar, de apropriar-me, de
manipular o espao em sua maneira particular. Magnani aponta a importncia do
olhar paciente do etngrafo, aquele olhar disposto a uma sensibilidade, passvel de
constante aprendizado das diferentes classificaes, regras e diferenciaes.
Na verdade, o olhar paciente do etngrafo terminou sim aprendendo que h,sim, classificaes, regras, diferenciaes. Assim, foi possvel descobrir quenaquele universo aparentemente montono, havia uma extensa rede delazer e diferenciaes na forma de, por exemplo, pratic-lo: Havia lazer dehomens solteiros e casados, de mulheres e moas, de crianas e adultos, etambm modalidades desfrutadas em casa e fora de casa. (MAGNANI,2003, p.6)
Parece ilusrio pensar que cada espao urbano se constitui individualmente
sem cair na tentao da aldeia, mas o processo de composio dos laos de
pertencimento do lugar tambm constituem individualidades. Evocando Gonalves
et. al. (2012) em uma referncia a Elias e Scotson (2000), ele ressalta diferenas
entre indivduos culturalmente homogneos, fato este que acentuaria este espao da
diferena e da idiossincrasia na construo social.
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2.3 O uso da imagem como fundamento para constituio da pesquisa
Um levantamento de material histrico/imagtico referente ao processo de
ocupao do Bairro Guajuviras foi realizado antes de minha opo terico-
metodolgica pelo trabalho com narrativas, o que veio a enriquecer a etnografia,
atravs de uma pesquisa sobre o histrico do bairro, a partir de registros, tanto
jornalsticos, quanto biogrficos, que remetiam ao desenvolvimento desta ocupao.
Tambm enfatizei a importncia de entender as configuraes das sucessivas
ocupaes que aconteceram no decorrer do perodo de 1987 a 1990, como forma de
compreender que distintas regies eram ocupadas em tempos diferentes, fato que
tambm influenciava a narrativa. Neste sentido, teria uma facilidade maior naescolha de meus interlocutores, entendendo suas dinmicas e trajetos, percebendo
que esta relao tambm influi nas distintas construes dos relatos e usos do
espao urbano.
Ao sair com uma cmera na mo, no intuito de observar e registrar o bairro,
procurei atravs de um ajustamento do olhar, captar imagens, observando a cidade
como um objeto temporal, um espao desenhado por diversos trajetos e movimentos
sobrepostos, forjados dentro de um tecido de aes produzidas no cotidiano.Lembrando o texto de Eckert & Rocha (2002), compreendi que acessando estes
recursos audiovisuais em uma etnografia de rua, estava constituindo a minha
caminhada enquanto antroplogo, conhecendo o meu objeto de estudo. Mas
precisava tambm reconhecer que o momento do registro se constitua em uma
interveno consentida com os interlocutores.
Estar atento era tambm compreender que nesta perspectiva de interveno
estabeleciam-se tenses e estas precisavam ser mediadas, de forma tal que aruptura no se constitusse em um momento de constrangimento incuo. Um
importante ponto a ser destacado foi a forma como pude aprender a mediar esta
relao com meu interlocutor, ao mesmo tempo em que mediava a presena da
cmera, sendo que pude ser surpreendido por esta pluralidade emergindo atravs
da constituio etnogrfica que exigia este desprendimento temporal, elemento
essencial para experincia.
Para se atingir tal componente narrativo, o etngrafo precisa contar
com o tempo como amigo, pois ele s o atinge quando a densidade desobreposio cumulativa dos tempos vividos ao longo de um trabalho decampo, aparentemente fadado perda de tempo, se precipita diante dosseus olhos. Horas de um trabalho persistente de escritura depositadas na
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tela do computador, fitas de vdeo, pelculas fotogrficas ou folhas de papel,sempre na tentativa do investigador aprisionar o efmero, so, finalmente,recompensadas e encontram, enfim, uma gama de sentidos desvendadospor um leque de conceitos. (ECKERT, ROCHA, 2002, p.4)
Conforme se desenrola o momento em que se articula a interveno, possvel amenizar esta compleio atravs do desenvolvimento de uma relao
mais interpessoal na composio da entrevista. O relacionamento humano supera
esta presena incmoda a partir do momento em que o informante percebe que uma
linha de confiana estabelecida com o pesquisador. A comunicao surgia
naturalmente no momento em que se estabelecia esta relao. Em contrapartida,
uma preocupao excedida com o tempo s ressaltava os estranhamentos em uma
perspectiva negativa que coagia o informante.No desenvolvimento da pesquisa, a metodologia de tratamento dos dados
obtidos baseou-se na proposta de composio de colees etnogrficas, com a
constituio de acervos de imagens videogrficas, fotogrficas, sonoras e escritas.
Ao refletir sobre este mtodo, segui as orientaes de Ana Luiza Carvalho da Rocha
(2008) que enfatiza que este se estabelece na capacidade de reunir os dados em
ncleos de sentido, constituindo constelaes de imagens que partem da
convergncia destas, embora situadas em diferentes regimes.Assim, para a produo e gerao de colees etnogrficas sobre opatrimnio etnolgico de uma comunidade urbana qualquer, quanto maisconstelaes de imagens apresentarem desde um mesmo ponto deconvergncia, tanto mais direes para o antroplogo construirconhecimento sobre uma determinada ordem de fenmeno. Por outro lado,pesquisar o fenmeno da memria coletiva a partir da produo e geraode colees etnogrficas de conjuntos documentais de imagens, atravs doencadeamento de smbolos e das motivaes simblicas que as orientam,torna evidente que este ato de pesquisa no pode ser uma obra sistemticade um pensador nico uma vez que a pesquisa com a etnografia dadurao se revela, ela prpria, como integrando o patrimnio dahumanidade. (ROCHA, A. L. C. da.,2008,p.08)
Assim, medida que fui realizando o trabalho de campo, coletei e produzi
imagens recorrendo a diversos suportes, consecutivamente buscando organiz-las e
acerv-las por ncleos de sentido, ou colees. Meu propsito, portanto, no se
limitou elaborao de um documentrio, mas sim constituio de uma coleo
imagtica que refletisse a riqueza do patrimnio etnolgico do bairro Guajuviras em
Canoas tornando-o disponvel a seus habitantes. Para tal, constru um aporte que
me conduziu a refletir sobre o potencial das imagens, percebendo que ao me
deslocar em campo, realizando uma fotografia ou registro de vdeo, apreendia as
rotinas e circulaes do cotidiano, entendendo como elas passavam a constituir a
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memria coletiva naquele espao urbano. Assim, pretendo ressaltar o aporte terico
que serviu de base para organizar e dispor este material imagtico em forma de
coleo etnogrfica, integrada por ncleos de sentido. Assim, a autora segue
enfatizando que:
A produo e gerao de colees, a partir do mtodo de convergncia aquidescrito, comporta sempre adies, correes, subtraes e retoques noestudo das suas constelaes, aes estas que so o fruto da colaboraode todos aqueles que produziram tais documentos, no passado e/ou nopresente. A descoberta do isomorfismo das imagens responsveis por suapolarizao em categorias se d a partir das correlaes estabelecidasentre eles pela prpria participao da imaginao criadora do antroplogono sentido de suas formas seguindo o efeito de sua convergncia em tornode um ncleo de significados, tomados em constelaes, como um todo.(ROCHA, A. L. C. da.,2008,p.09)
Refletindo sobre a composio das colees etnogrficas a partir das formas
de sociabilidades e itinerrios urbanos no mundo contemporneo, tal como indicado
por Eckert e Rocha (2001), procurei evidenciar as minhas motivaes adotando o
estruturalismo figurativo durandiano. Foi recorrendo noo de imaginrio proposta
por Gilbert Durand (2001) que enfatizei a sugesto do trajeto antropolgico como
fundamento para tratar da coleo etnogrfica produzida nesta pesquisa. Segundo a
indicao do autor, procurei me posicionar neste trajeto abrangendo o constante
cmbio que existe no nvel do imaginrio, agindo em meio s pulses subjetivas eassimiladoras, e s intimaes objetivas que procedem do meio csmico e social
(DURAND, 2001, p.29)
Desta forma, situei a investigao antropolgica justamente no trajeto,
permitindo que os imaginrios se constitussem por meio dele. A observao de tal
condio foi o que me possibilitou resolver os problemas de anterioridade ontolgica
na pesquisa, destacando que a gnese recproca oscila mutuamente entre o gesto
pulsional e os meios material e social. O trajeto antropolgico tambm se comunicacom alguns debates produzidos sobre o smbolo por Piaget (1975). Atravs de um
jogo do imaginrio, diz ele, a distino entre simbolismo inconsciente e consciente
no possui clareza, o que ocorre tanto em crianas como em adultos, prevalecendo
um estado de ausncia de diferenciao na assimilao do real ao eu. Neste sentido
Piaget destaca:
Supresso da conscincia do eu por absoro imaginria total do mundoexterior e, portanto, por confuso com este, tal o princpio do simbolismoinconsciente e v-se desde logo que ele constitui um simples caso-limitedessa assimilao do real ao eu que o simbolismo ldico (PIAGET, 1975,p. 256).
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Assim o trajeto antropolgico auxiliou a organizar o esqueleto dinmico que
reproduz imagens na tela funcional do imaginrio. Durand (2001) segue
relacionando o imaginrio enquanto um trajeto modelado por pulses do sujeito:
Finalmente o imaginrio no outra coisa que este trajeto no qual arepresentao do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativospulsionais do sujeito, e no qual reciprocamente, como magistralmentePiaget mostrou, as representaes subjetivas explicam-se pelasacomodaes anteriores do sujeito ao meio objetivo (DURAND, 2001, p.38).
O autor, por sua vez, dialoga com os estudos sobre a forma e a imagem
numa perspectiva bachelardiana, discorrendo sobre temas referentes imaginao
e ao imaginrio. Assim procurei destacar a prtica das colees etnogrficas
ponderando sobre esta materializao do imaginrio que ocorre quando se pensa,sonha-se e vivencia-se a matria. Bachelard (1998) sugere que a imagem material
vai ao encontro da profundidade, buscando uma intimidade substancial que d vida
e movimento realidade metafrica. um universo subjacente e tambm
inconsciente, em constante movimento, que existe alimentando organicamente o
universo potico. O imaginrio no encontra suas razes profundas e nutritivas nas
imagens, a princpio, ele tem necessidade de uma presena mais prxima, mais
envolvente, mais material. (BACHELARD, 1998, p.126).Para Durand (apud Rocha, 2008), o mtodo de convergncia, utilizado para
as colees, encontra-se conexo ao estruturalismo figurativo, em que as formas
imagticas ocupariam um papel menor na classificao, pois as colees possuem
um dinamismo transformador, contemplando o campo do imaginrio e da
imaginao criadora. J no estruturalismo figurativo, a maneira que as imagens so
interpretadas deriva da associao entre o devaneio e a matria, por meio da qual
uma forma se faz percebida, potencializando a interpretao da prpria imagem. As
formas utilizariam as imagens, manifestando traos que aqueles que as utilizam
reproduzem para dar sentido ao seu mundo. A imagem, portanto, contempla ao e
pensamento sobre o mundo. (ROCHA, A. L. C, 2008, p.1).
Por meio do paradigma esttico, Maffesoli (2001), herdeiro intelectual de
Durand, ressaltando a questo do imaginrio, destaca que podemos caracterizar o
ser humano enquanto um ser de smbolos, que vive e constri sempre novas formas
de imaginar. Para o autor, em um mundo que reflete a complexidade de uma
conjuntura ps-moderna, faz-se necessrio o surgimento de novos conceitos ou
noes, que levem em conta uma perspectiva fenomenolgica capaz de alcanar a
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complexidade da diversidade e especificidade existentes no cotidiano do homem
comum.
Deste modo encontraramos o ponto de impreciso que advm desta relao
do imaginrio com o simblico, mudando nosso enfoque para abranger estas
relaes partindo de justaposies. Assim o imaginrio comunicaria o esttico na
forma como percebemos as imagens, ou sonhos, ou por meio dos mitos, atravs de
processos criativos e na criao de caminhos que alcanam a fantasia em direo
ao fantstico. Para o autor, o ser humano possui singularidade, e considera-se como
um ser nico, mas em contrapartida, ele tambm pertence a um grupo com distino
e caractersticas que o diferencia dos outros. Este pode ser composto por uma
pluralidade de elementos, mas tem sempre uma ambincia especfica que os tornasolidrios uns com os outros" (MAFFESOLI, 2000, p. 21).
Assim, o que estimularia as pessoas a permanecer em um grupo, seria o
prazer da convivncia, indiferente de finalidade ou teor ideolgico da relao, o
modus vivendi que se faz presente na busca por sentido esttico. Deste modo , o
ser humano seria um ente de vrias coletividades cimentadas pelas experincias
sensoriais e sentimentais partilhadas. um processo de coletividade que surge em
cada indivduo, onde o individualismo cede seu espao para o coletivismo "mscaraque pode ser mutvel e que se integra, sobretudo numa variedade de cenas, de
situaes que s valem porque representadas em conjunto" (MAFFESOLI, 2000,
p.15).
Conforme Bachelard (1998) e Durand (2001), este universo potico encontra-
se nas reflexes do antroplogo francs Pierre Sansot (1978) em seu livro a Potica
da Cidade. O autor parte da percepo de que a reflexo urbanstica no deve
deter-se somente a questes referentes ao planejamento urbano ou a uma analisedo ambiente construdo e habitado. Haveria a necessidade de se enfatizar a
dinmica do processo de constituio do espao em real time. Assim poderamos
nos aproximar da cidade a partir de sua potica, observando os atores envolvidos,
captando suas narrativas e expresses que revelam as mltiplas formas de habitar e
significar o espao. um conceito que ressalta este vnculo entre o espao urbano
e os habitantes, indicando que estes sujeitos da cidade atuam tambm na condio
de (serem) observadores. Ouvir a voz destes moradores, descobrir suas histrias,
conhecer os diferentes acontecimentos no bairro por meio de suas narraes,
tambm conhecer esta potica da cidade.
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Agora vemos que um objeto urbano pode ser estendido por vrias linhaspoticas, referimo-nos a uma que leva em considerao a nossa inserona cidade. Por isso, devemos abandonar o esotrico em favor de umapotica que respeita os caminhos de percepo. [...] A Potica da natureza,pode ser a chance de sonhar junto com elementos permanentes. (SANSOT,
1978, p.203)3
Tambm evoco Georg Simmel (1983) e sua abordagem sobre a sociologia
das formas, em que ressalta a importncia do conceito de forma social, e sua
capacidade organizadora nas relaes sociais coletivas, tambm a capacidade de
promover reciprocidade no transcorrer da socializao/sociao. Para o autor, o
pesquisador deve buscar suas questes, no na matria da vida social, mas atravs
de sua forma, pois esta forma que oferece carter social para os fatos de que se
encarregam as cincias. a inteno de impulsionar o olhar sobre a sociedade,partindo das formas que circundam os agrupamentos humanos, unindo-os.
A sociao s comea a existir quando a coexistncia isolada dosindivduos adota formas determinadas de cooperao e de colaborao quecaem sob o conceito geral de interao. A sociao , assim, a forma,realizada de diversas maneiras, na qual os indivduos constituem umaunidade dentro da qual realizam seus interesses (SIMMEL, 1983, p.60).
Ainda recorrendo s indicaes de Eckert e Rocha (2001) para a constituio
de uma coleo etnogrfica, recebe destaque a reflexo de Norbert Elias (1994) que
introduziu a noo de uma sociologia figuracional, impulsionando a prtica
sociolgica em direo dissoluo do pensamento de que devemos compreender
termos como indivduo e sociedade de maneira desconexa, tratando estes como
apenas termos opostos, ou entidades ontologicamente diferentes. Para o autor estes
limites conceituais ressaltam uma falsa dicotomia entre o individuo e a sociedade em
que habita. Para contrapor estes limites, ele prope a noo de figurao,
destacando que o individuo e a sociedade no existem autonomamente, mas unem-
se um ao outro por meio de uma pluralidade. Neste sentido poderamos
compreend-los de maneira integrada, interdependente, por meio do convvio
coletivo.
Dispomos dos conhecidos conceitos de indivduo e sociedade, o primeirodos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma entidadeexistindo em completo isolamento, enquanto o segundo costuma oscilarentre duas idias opostas, mas igualmente enganosas. A sociedade entendida, quer como mera acumulao, coletnea somatria edesestruturada de muitas pessoas individuais, quer como objeto que existepara alm dos indivduos (ELIAS, 1994, p. 7).
3Traduo livre do autor
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Michel de Certeau (1994) com a teoria das prticas cotidianas conduziu o
centro da anlise antropolgico-sociolgica para os temas concernentes s praticas
do cotidiano, agregando teoricamente uma produo que ofereceu valor para a
anlise da vida cotidiana. um desafio observarmos as maneiras de fazer dos
habitantes da cidade, compreendendo-as em propores que transcendem as
relaes entre indivduos e consumo. Essas formas de fazer compem as mltiplas
prticas pelas quais os sujeitos se apropriam do espao, proliferando no interno das
estruturas os seus modos, transformando o funcionamento, bem como o
corrompendo e resinificando, por vezes at o prejudicando.
Prticas cotidianas, como falar, ler, circular, comprar, cozinhar so maneirasde fazer, microscpicas vitrias do fraco sobre o forte. Performances
operacionais dependem de saberes muito antigos [...] tempos imemoriais,inteligncias e astcias. Essas tticas mostram a indissociabilidade entrecombates e prazeres cotidianos que articula, j a estratgia escondemsobre clculos objetivos a sua relao com o poder que os sustenta(CERTEAU, 1994, p. 47).
Certeau nos convida a acompanhar alguns processos, no intuito de
percebermos a sua multiforma, resistncia, astcia, transgresso disciplina, e
permanncia dentro do espao, elementos que nos conduzem a uma teoria das
prticas do cotidiano e do espao vivenciado. Neste sentido, o praticar o espao reproduzir