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OS INSTITUTOS DA REPRESENTAÇÃO E DA RENÚNCIA NA LEI DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR N. 11.340/06 E SUA APLICAÇÃO NA COMARCA DE
ASSIS CHATEAUBRIAND/PR NOS ANOS DE 2009 E 20101
SIMONE COVOLAN CARVALHO2
CAMILA MILAZOTTO RICCI3
RESUMO
O presente trabalho visa levantar dados, analisar e compreender como tem ocorrido a aplicação e qual a efetividade dos institutos da representação e da renúncia na Lei de Violência Doméstica e Familiar, Lei n.° 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, no âmbito da Comarca de Assis Chateaubriand/PR, nos anos de 2009 e 2010, passando por uma explanação bibliográfica acerca do tema, bem como uma abordagem prática com a demonstração dos resultados da pesquisa junto à delegacia de polícia e fórum da localidade. Uma breve passagem sobre o direito penal brasileiro é realizado no primeiro tópico do artigo, passando posteriormente pela descrição da origem da Lei n. 11.340/06, no segundo tópico. Em seguida, se esclarece o procedimento penal da referida lei quanto à atuação da autoridade policial e judicial, com a instauração de inquéritos policiais e ações penais, discutindo-se teoricamente suas tipologias. O ponto central faz referência aos institutos da representação e da renúncia na Lei n. 11.340/06, mencionando conceitos e divergências sobre os termos utilizados, e sua aplicação prática com a audiência preliminar prevista no artigo 16 da referida lei, em relação aos crimes de ação penal pública incondicionada e condicionada à representação. Ao final foram apresentados os dados coletados na Comarca, ilustrados por gráficos, percebendo-se que as ações penais propostas no fórum, são mínimas em relação aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, registrados na delegacia de polícia da Comarca de Assis Chateaubriand/PR no período de 21 meses, cuja atuação judicial passou a depender da manifestação e vontade da própria vítima de violência doméstica e familiar. PALAVRAS-CHAVES: Representação; Renúncia; Violência Doméstica e Familiar; Lei Maria da Penha.
1 Trabalho de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito pela Faculdade Assis Gurgacz, em novembro de 2010. 2 Acadêmica autora da pesquisa. 3 Professora Orientadora do Trabalho de Curso.
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 3
1 O DIREITO PENAL ................................................................................................. 5
2 A ORIGEM DA LEI N. 11.340/06 ............................................................................. 7
3 O PROCEDIMENTO PENAL DA LEI N. 11.340/06 ................................................ 11
3.1 A Autoridade Policial ......................................................................................... 14
3.1.1 Não Incidência da Lei n. 9.099/95 ...................................................................... 17
3.2 A Ação Penal ...................................................................................................... 20
3.3 Os Institutos da Representação e da Renúncia na Lei n. 11.340/06 .............. 22
3.3.1 Da Representação ............................................................................................. 22
3.3.2 Da Renúncia ...................................................................................................... 27
4 O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA NA COMARCA DE ASSIS
CHATEAUBRIAND/PR: UM ESTUDO DE CASO ..................................................... 30
4.1 Coleta de Dados na Delegacia de Polícia ......................................................... 31
4.2 Coleta de Dados no Fórum ................................................................................ 36
4.3 Análise dos Dados ............................................................................................. 39
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 41
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 44
BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS ........................................................................... 46
ANEXO I ..................................................................................................................... 48
3
INTRODUÇÃO
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, e durante todo esse
período de construção jurídica da sociedade brasileira, houve a procura pela
equiparação entre o homem e a mulher, em termos de igualdade de tratamento e em
relação à dignidade da pessoa humana, sem distinção de sexo.
A realidade, entretanto, demonstra que a diferença continua presente, em todos
os âmbitos da sociedade, de forma que a proteção da mulher necessitou ser mais
efetiva no que tange a sua integridade física e psicológica, abarcando inclusive a
ciência do direito penal.
Neste ínterim, em vigor desde setembro de 2006, a Lei n. 11.340 surge como
mecanismo para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, por
sua fragilidade natural, que muito tem sofrido com agressões físicas, verbais e
psicológicas nas relações afetivas dentro e fora do lar (DIAS, 2007).
Certo é que a comprovação da violência praticada contra a mulher, vítima de
violência doméstica e familiar, decorre de sua vulnerabilidade e hipossuficiência.
Surge, então, o interesse pelo presente trabalho, cujo intuito é estudar os
institutos da representação e da renúncia na Lei n. 11.340/06 (Lei de Violência
Doméstica), bem como sua aplicação no âmbito da Comarca de Assis
Chateaubriand/PR, pelo período dos anos de 2009 e 2010, tendo esta como área de
pesquisa, verificando sua efetividade.
Evidencia-se o estudo justamente destes institutos na aplicação da lei em
comento a fim de procurar analisar a efetividade dessa legislação, observando como as
mulheres ofendidas, pela sua manifestação em audiência especial, têm o poder de
evitar o processo criminal contra seus ofensores, mesmo após medidas policiais e
judiciais terem sido tomadas contra o agressor.
Diante de tais considerações, o presente trabalho se estrutura em quatro tópicos,
dos quais os três primeiros têm abordagem eminentemente bibliográfica e expositiva, e
o quarto tópico com apresentação dos dados reais coletados na Comarca da Assis
Chateaubriand/PR para subsídio da pesquisa.
Desta forma, o primeiro tópico estuda genérica e superficialmente o direito penal
4
e sua aplicação na sociedade como sistema de controle para segurança da liberdade
das pessoas, cujas normas se encontram inseridas num Código Penal e leis diversas,
observando dentre elas a existência da Lei n. 11.340/06 para salvaguardar a
mulher em casos de violência doméstica e familiar.
O segundo tópico expõe de modo sintetizado o surgimento da Lei de Violência
Doméstica e Familiar contra a mulher, passando pelo seu momento histórico de
construção e vigência, que ensejaram nos motivos de criação da referida lei,
descrevendo o caso da mulher que inspirou sobremaneira tal legislação em estudo.
O terceiro tópico deste artigo está direcionado à apresentação doutrinária e
jurisprudencial do procedimento penal para aplicação da Lei n. 11.340/06, abordando
sobre a previsão que existe na norma especial, suas medidas e conceitos.
Também aborda, este tópico, a atuação da autoridade policial frente aos crimes
cometido no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher, já que autoridade
competente para que seja instaurado inquérito policial e a não incidência da Lei dos
Juizados Especiais n. 9.099/95 nestes casos.
A par, ainda apresenta o momento do procedimento para constituição da ação
penal, explicando conceitos penais gerais sobre os tipos de ação existentes, e quais
são mais comumente vistos perante a aplicação da Lei n. 11.340/06, como os de ação
penal pública condicionada à representação e incondicionada.
Complementando o terceiro tópico, a abordagem do tema se concentra nos
institutos da representação e da renúncia da Lei n. 11.340/06, pelo qual se expõem
seus conceitos básicos e discussões existentes quanto à prática da representação e da
utilização do termo renúncia, e sua aplicação na audiência prevista junto ao artigo 16 da
Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.
No quarto tópico, estão apresentados os dados correspondentes à pesquisa
realizada junto à Comarca de Assis Chateaubriand/PR, relativo aos boletins de
ocorrência registrados junto à delegacia de polícia da localidade, bem como seu
andamento para que seja instaurado o inquérito policial correspondente, demonstrando
como e quantos chegam ao fórum local, e tornam-se ações penais, a repreender o
ofensor da vítima nos termos da lei.
O presente trabalho é finalizado com considerações sobre o que preconiza a lei
5
teoricamente, e o que a pesquisa de dados realizada demonstra na prática,
principalmente em relação à efetividade de aplicação da Lei de Violência Doméstica e
Familiar, no sentido da punição do agressor, frente às ocorrências registradas na
Delegacia de Polícia.
1 O DIREITO PENAL
Com o surgimento da sociedade organizada, em que os seres humanos se
agrupam de forma permanente ou mesmo alternativa, para satisfazer as necessidades
primordiais de sobrevivência, os conflitos surgem naturalmente, já que cada ser
humano é único, racional, e os interesses existentes são, de fato, divergentes.
Entretanto, algumas regras de convivência foram estabelecidas desde os
primórdios, para que a harmonia entre os seres gerasse estabilidade na sociedade,
bem como transmitisse o pensamento e o sentimento de segurança, necessários à
própria sobrevivência.
Cesare Beccaria, em 1764, já dizia em sua obra, Dos Delitos e das Penas, que
"as leis foram as condições que agruparam os homens, no início independentes e
isolados, à superfície da terra" (2006, p. 18), complementando o que Montesquieu já
publicara em 1748, no Espírito das Leis, o qual expôs que "logo que os homens se
reúnem em sociedade, perdem o sentido da própria fraqueza, a igualdade que entre
eles existia desaparece, e principia o estado de guerra [...] que ocasiona o
estabelecimento de leis entre os homens." (2002, p. 20-1)
Nesse caso, a saída encontrada para o controle social se deu através da
designação de poder e da criação de um direito que impusesse punição para algumas
condutas tipificadas, consideradas inadmissíveis na convivência coletiva, pelo qual a
um delito se estabelecia uma pena, de forma que o Estado exercia, e ainda exerce sua
função punitiva ou repressiva, garantindo os bens jurídicos essenciais à vida social. É o
que explicava Beccaria.
Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda a parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir do restante com mais segurança. [...] Não era suficiente, contudo, a formação desse depósito [...]. Eram necessários meios sensíveis e muito poderosos
6
para sufocar esse espírito despótico, que logo voltou a mergulhar a sociedade em seu antigo caos. Tais meios foram as penas estabelecidas contra os que infringiam as leis. [...] A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. (2006, p. 19)
Não obstante, a lei penal brasileira vigente encontra amparo em seu Código
Penal, instituído em 1940, em que se encontram tipificados a maioria dos crimes, sendo
também amparado por leis esparsas que tipificam outros delitos ou regulam os já
existentes, e seu procedimento penal.
De qualquer forma, desde os tempos mais antigos da sociedade, até o presente,
os conflitos são constantes, e enquanto persistem, ostentam soluções diversificadas.
Dentre elas, a doutrina é incisiva em afirmar que o direito penal deve ser utilizado
como ultima ratio (a última razão), devendo, portanto, ser aplicado somente nos casos
que, de nenhuma outra forma possam ser resolvidos, já que é o meio mais gravoso de
controle social, ainda mais quando se adentra em searas específicas. Assim, segundo
Prado (2007, p. 43),
[...] a intervenção da lei penal só poderá ocorrer quando for absolutamente necessário para a sobrevivência da comunidade – como ultima ratio legis –, ficando reduzida a um mínimo imprescindível. E, de preferência, só deverá fazê-lo na medida em que for capaz de ter eficácia. [grifos no original]
Tal é o que dita o princípio da intervenção mínima no direito penal, pois dentre as
demais sanções jurídicas, a pena em si, há de ser uma última escolha para aplicação,
apenas quando não se é mais possível garantir de outra forma os bens jurídicos
essenciais ao indivíduo e à sociedade.
Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli (1997, p. 59) explicam que "em qualquer
situação conflitiva a solução punitiva do conflito é somente uma das soluções possíveis.
[...] nem todos os conflitos que atualmente se resolvem pela via punitiva têm sido
sempre resolvidos de uma única maneira."
De tal modo, os crimes, assim considerados, abrangem uma infinidade de temas,
já que praticados contra a pessoa, contra o patrimônio, a organização do trabalho, a
dignidade sexual, a família, a incolumidade pública, contra o meio ambiente, drogas
ilícitas, dentre outros.
Nucci (2008a) já apontava para a necessidade do estudo do direito penal,
7
principalmente na atualidade, tendo em vista que a criminalidade aumenta
consideravelmente e as mudanças na legislação tornam-se reflexos concretos da
evolução humana, mesmo que superficiais e frágeis.
Contudo, quando a situação de violência não é resolvida por si, ou mesmo
quando as tipificações delitivas e punições existentes não são mais suficientes a
proteger a dignidade da pessoa, ou sua integridade física ou psíquica, outra lei, mais
severa, acaba por surgir para atender aos anseios da sociedade.
É o que ocorre em relação à Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a
mulher – Lei n. 11.340/06, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e a
familiar contra a mulher, nos termos do artigo 226, §8º, da Constituição Federal de
1988, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, conforme disposições preliminares da própria lei.
Sob esse aspecto, a Lei n. 11.340/06, advinda como mecanismo de combate
premente a esta situação, antes de ser um instituto penal, tem o objetivo de resolver
especificamente a situação de violência em relação ao âmbito doméstico e familiar
contra a mulher, em relação às pessoas de convívio permanente, com ou sem vínculo
familiar, aos parentes, ou outros de qualquer relação íntima de afeto, presente ou
passada, nos termos do artigo 5º da referida lei.
É, pois, a necessidade de frear certas condutas sociais, cujas penas e
procedimento penal existentes não são mais suficientes a evitar o cometimento de
crimes, que gera a obrigação de criar leis específicas, e por vezes mais severas, como
acontece com a Lei n. 11.340/06.
2 A ORIGEM DA LEI N. 11.340/06
A Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, n. 11.340/06,
popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, como tantas outras leis – cite-se a
Lei dos Crimes Hediondos n. 8.072/90 – surge como uma resposta às situações
verídicas, para as quais o direito penal existente já não se mostra eficaz na luta contra a
violência. Neste caso específico, aborda-se a violência versus a mulher, realizada em
8
âmbito doméstico ou familiar.
Ao tratar sobre a origem da lei, buscou-se analisar as obras doutrinárias de
Cunha e Pinto (2007) e Dias (2007), as quais expunham que Maria da Penha Maia
Fernandes, farmacêutica na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, mesmo após
reiteradas ocorrências de agressão por seu marido, lavradas perante autoridade
competente, fora vítima de duas tentativas de homicídio.
Assim, destacam os referidos autores (op. cit.) que no ano de 1983, de forma
premeditada, seu então marido, em simulação de um assalto e, fazendo uso de uma
espingarda, desferiu um tiro contra Maria da Penha enquanto a mesma dormia,
atingindo-a em sua coluna vertebral, que resultou em paralisia permanente de seus
membros inferiores, conhecida como paraplegia.
Ainda, os citados autores (op. cit.) destacam que dias depois, Maria da Penha
sofreu nova tentativa de homicídio por parte de seu marido, buscando eletrocutá-la,
enquanto a mesma tomava banho, recebendo uma descarga elétrica.
As investigações sobre os crimes se iniciaram no ano de 1983, cujas provas
obtidas demonstraram e confirmaram que os atos foram de fato premeditados, já que o
autor dias antes da primeira tentativa de homicídio tentou convencer a esposa a
celebrar contrato de seguro de vida, sendo ele o beneficiário, bem como a vítima teria
assinado em branco, um recibo de venda de veículo, a pedido do marido. (CUNHA e
PINTO, 2007)
Desta forma, a denúncia fora ofertada pelo Ministério Público no ano de 1984,
pelo que o acusado foi pronunciado em 1986, sendo levado a julgamento popular
apenas no ano de 1991, condenado a oito anos de prisão, podendo o réu recorrer em
liberdade, conforme tais autores. (op. cit.)
Destacam também que a defesa apelou da decisão, acabando por anular o júri
realizado por falha na elaboração dos quesitos, sendo o réu submetido a novo
julgamento em 1996, restando na condenação de dez anos e seis meses de reclusão.
(op. cit.)
Após recorrer em liberdade novamente, o réu foi preso em 2002, permanecendo
sob custódia por apenas dois anos, já que o crime de homicídio, quando fora praticado,
não era ainda considerado crime hediondo. (DIAS, 2007)
9
Ante a morosidade no julgamento do processo, a vítima Maria da Penha,
juntamente com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional, CEJIL, e o Comitê
Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, CLADEM, no ano
de 1998, formularam denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, cujo órgão pertence à Organização dos Estados Americanos, OEA, que
culminou na elaboração de um relatório, que serviu como incentivo à elaboração da Lei
n. 11.340/06. (CUNHA e PINTO, 2007)
Nesse relatório, a Comissão ressaltou que "a ineficácia judicial, a impunidade e a
impossibilidade de a vítima obter uma reparação mostra a falta de cumprimento do
compromisso [pelo Brasil] de reagir adequadamente ante a violência doméstica". (op.
cit., p. 13-4)
Em virtude da inércia do Estado brasileiro, deixando de responder aos
questionamentos da Comissão por três anos desde a denúncia, no ano de 2001, o
Brasil fora condenado ao pagamento de uma indenização à vítima Maria da Penha em
vinte mil dólares, como reparação pelo dano sofrido. (op. cit.)
Tendo em vista toda essa situação, o projeto da Lei n. 11.340/06 teve início em
2002, com a participação de quinze organizações não governamentais que trabalham
com a violência doméstica, enviado ao Congresso Nacional em 2004, sendo
sancionada pelo Presidente da República em 7 de agosto de 2006, estando em vigor
desde de 22 de setembro de 2006. (op. cit.)
Não obstante, os crimes tipificados no Código Penal englobarem as situações de
violência doméstica, como por exemplo, as lesões corporais e ameaças, antes da
vigência da lei em comento, o procedimento utilizado, muitas vezes incidindo na lei dos
Juizados Especiais, deixava transparecer a consciência de impunidade na violência
contra a mulher.
Após quatro anos de aplicação da lei, dados da Secretaria Especial de políticas
para as Mulheres demonstram o aumento no número de registro de ocorrências da
violência que as mulheres vinham sofrendo4, embora ainda existam vítimas que relutam
em se dirigir a uma delegacia de polícia e registrar o boletim de ocorrência para que o
agressor seja punido nos termos da lei.
4 Ver mais informações em <http://200.130.7.5/spmu/docs/release_central_4.3.08.pdf>.
10
E, não raras vezes, quando realizam a comunicação da violência, pouco tempo
depois se arrependem ou não auxiliam com dados e informações nos atos necessários
ao andamento da investigação e indiciamento do agressor, observando a pesquisa
demonstrada mais adiante no presente estudo.
Contudo, a promulgação da lei de violência doméstica e familiar, ante seu
histórico de violência contra a mulher, demonstra que um tipo de direito penal
imediatista ainda é praticado, através dos legisladores que verificam, por meio das
situações diárias de grande repercussão, a necessidade de criação de leis que visam
coibir crimes há muito praticados, mas que por vezes, ficavam sem solução, por falta de
legislação mais rigorosa.
Demonstrar-se-á, ao longo do texto, certos procedimentos mais céleres, como os
juizados especiais, acabam por repassar à sociedade o sentimento de impunidade, já
que conta com medidas mais brandas para determinados crimes, que antes da lei n.
11.340/06 também englobava aqueles delitos praticados no âmbito doméstico e
familiar.
Não obstante, a cultura do homem em ser o sexo forte, incute no pensamento da
coletividade, que determinadas atitudes, principalmente as que ocorrem dentro de casa
ou dentro de uma relação, não devem ser expostas a nenhuma pessoa, nem mesmo à
justiça, o que impedia, e talvez ainda impeça a mulher de levar à conhecimento de
autoridade competente a violência que sofre, de forma que a lei específica em comento,
visa justamente evitar tais erros.
Cite-se uma parte da exposição de motivos da parte geral do Código Penal, que,
em 1984, já expunha que
[...] apesar de inegáveis aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica ao delito, a rejeição social dos apenados e seus reflexos no incremento da reincidência, [...], que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, são fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, [...].
Sob esse prisma, ressalte-se que, em matéria penal, na realidade, os crimes
previstos no Código Penal, que podem ser cometidos sob a violência doméstica e
familiar contra a mulher, já estão tipificados, como os crimes de homicídio, lesão
11
corporal, ameaça, estupro e outros. A conduta criminosa, desse modo, já se encontra
tipificada. Na realidade, é o contexto da violência e a qualidade da vítima que inserem
essa criminalidade na Lei Maria da Penha.
Ocorre, portanto, que a Lei n. 11.340/06 abrange a aplicação desses tipos, de
forma especial, e com maiores restrições à aplicação de pena, quando incidem sobre a
mulher em relação de afeto familiar presente e passado, e no âmbito de sua residência,
por aqueles que mantêm convívio permanente com a vítima.
Tal criação legislativa objetiva a redução dos índices de violência doméstica e
familiar contra a mulher, iniciada no ano de 2006, e não fosse a pressão de organismos
internacionais, como a Comissão Interamericana de Direito Humanos, ao tomar
conhecimento do caso "Maria da Penha", como afirma Cunha e Pinto (2007), é possível
que o Brasil continuasse inerte e não reagisse à violência contra a mulher neste âmbito.
3 O PROCEDIMENTO PENAL DA LEI N. 11.340/06
A Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher n. 11.340/06, prevê em
seus artigos, além de medidas protetivas, preventivas e de urgência à ofendida e ao
agressor (artigos 18 a 24), assistência à mulher na situação de vítima, com atendimento
multidisciplinar, por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de
saúde (artigos 29 a 32).
Destarte, também dispõe sobre mudanças em relação ao Código Penal,
notadamente quanto ao crime de lesões corporais (artigo 44), e incluindo agravante
específica para os casos de crimes cometidos com prevalência de relações domésticas,
de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher (artigo 43).
A lei ainda relacionou mudanças no Código de Processo Penal sendo admitida a
possibilidade de decretação da prisão preventiva nos crimes dolosos que envolvem
violência doméstica e familiar contra a mulher para garantir a execução das medidas
protetivas de urgência (artigo 42).
Por fim, houve igualmente alteração na Lei de Execuções Penais, determinando
o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação,
evidenciando o caráter social das penas, principalmente em casos que envolvem
12
diretamente a relação de afetividade entre os envolvidos (artigo 45).
De acordo com Cunha e Pinto (2007, p. 20), "a Lei n. 11.340/06 extraiu do caldo
da violência comum uma nova espécie, qual seja, aquela praticada contra a mulher [...]
no seu âmbito doméstico, familiar ou de intimidade [...]."
Assim sendo, a lei representa um novo método de abordagem sobre os casos de
lesão corporal e agressão verbal e psicológica contra a mulher, dando tratamento
diferente aos casos em que o agressor comete o fato numa relação de afetividade ou
convivência, pois a simples punição com restrição de liberdade ou de direitos, não
cumpre a função social desta legislação.
O próprio artigo 7º da Lei n. 11.340/06 prevê expressamente as formas de
manifestação da violência contra a mulher podendo assumir a forma física, psicológica,
sexual, patrimonial, e moral5.
De acordo com Nucci (2008a, p. 623), com as referidas mudanças trazidas pela
lei, criou-se uma nova figura do crime de lesão corporal a fim de "atingir os variados e,
infelizmente, numerosos casos de lesões corporais [e outros crimes] praticadas no
recanto do lar, dentre integrantes de uma mesma vida familiar, onde deveria imperar a
paz e jamais a agressão".
Ressalte-se que, nos termos de seu artigo 5º, a Lei n. 11.340/06 prevê-se maior
punição ao agressor da mulher no entorno da vida doméstica e familiar6, a qual se
relaciona diretamente com sua família, entes queridos, ou pessoas que de uma forma
5 Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
13
ou outra, possuem vínculo afetivo, consideradas como entidade familiar ou apenas de
convívio permanente, aplicável aos casos em que a mulher for objeto de ação ou
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico, e dano moral ou patrimonial.
Deste modo, Leal (2006, p. 100-1) afirma que existe
[...] uma nova categoria jurídica que precisa ser devidamente apreendida em seus contornos fáticos e jurídicos. [...] Para a lei, o local em que pode ser praticada a violência doméstica e familiar contra a mulher não se restringe ao espaço demarcado pelo recinto do lar ou do domicílio em que esteja vivendo a vítima. [...] Verifica-se, portanto, que a lei amplia o espaço de ocorrência da violência domiciliar e familiar, que pode ser praticada em qualquer lugar, desde que motivada por uma relação de afeto ou de convivência familiar entre agressor e mulher-ofendida. [grifos no original]
Além de punição mais severa aos agressores que praticam violência contra a
mulher em âmbito doméstico e familiar, a Lei n. 11.340/06 prevê, como já dito, várias
medidas que visam à proteção da ofendida, incluindo a prisão e o afastamento do autor
do fato do domicílio familiar (artigos 20 e 22), além de acompanhamentos posteriores e
ingresso em programas oficiais de atendimentos multidisciplinares (artigos 23, 24, 29 e
30).
Insta ressaltar que, não obstante a prevenção e punição das agressões em
domínio doméstico e familiar, a lei veio reforçar a proteção ao direito que as mulheres
têm, principalmente em relação à dignidade da pessoa humana, expressamente
disposto na Constituição Federal de 1988, junto ao artigo 1º, inciso III, além de incluir no
próprio texto constitucional o §8º ao artigo 226, em que o Estado assegurará a
assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, coibindo a violência no
âmbito de suas relações.
Outrossim, o artigo 14 da Lei n. 11.340/06 prevê a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, JVDFM, em decorrência da matéria, a
6 Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
14
fim de facilitar a tramitação dos procedimentos de sua competência, tanto cíveis quanto
criminais, já que os demais problemas decorrentes da violência domésticas (separação
de corpos, divisão de bens, guarda dos filhos entre outros) são inerentes a essa
situação, de acordo com Nucci (2009).
Entretanto, até que estejam completamente estruturados tais juizados, as varas
criminais deverão acumular as competências cível e criminal para conhecer e julgar as
causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,
subsidiadas pela legislação processual pertinente, cujos processos terão a garantia do
direito de preferência, conforme o artigo 33 da referida lei em estudo.
Ocorre que a instalação dos juizados especializados, bem como a
implementação de certas medidas assistenciais previstas na lei, não dependem
exclusivamente dessa previsão legislativa, mas sim de aparato e infra-estrutura estatal
e funcional, ainda não solucionados na prática.
Ressalte-se ainda que, quanto ao procedimento, "a lei em exame não indicou o
rito procedimental para os processos criminais de sua competência" e ante a omissão
legislativa, conclui o autor que "a determinação do procedimento dependerá do crime
cometido" (CUNHA e PINTO, 2007, p. 68).
Tal supressão acaba por determinar diferentes abordagens quanto à aplicação
da lei, especialmente no que tange à necessidade ou não de representação nos crimes
cometidos sob o âmbito da violência doméstica e familiar, e seu regular andamento
processual às instaurações de inquéritos policiais e oferecimento de denúncias, como
se verá adiante.
A par de toda essa previsão legislativa da Lei de Violência Doméstica e Familiar
contra a mulher, tem ainda estabelecido como deverá ser o atendimento da autoridade
policial na hipótese de iminência ou prática dessa violência.
3.1 A Autoridade Policial
Juridicamente, o início das investigações criminais parte do registro da
ocorrência pela vítima ou assemelhado perante uma autoridade, geralmente policial,
cujo objetivo é o atendimento e assistência à solução do ilícito, colhendo dados e
15
provas a serem entregues ao poder judiciário, como processo preliminar ou preparatório
da ação penal, como elemento subsidiário a posteriores providências judiciais, nos
termos do Título II do Código de Processo Penal.
Tal legislação determina, em seu artigo 4º, que o inquérito policial tem por fim a
apuração das infrações penais, e da autoria de tais tipificações.
Não é meio obrigatório ao oferecimento de denúncia por parte do Ministério
Público ou Queixa-Crime do ofendido, entretanto, se constitui como o meio mais comum
para aferição dos ilícitos penais. (OLIVEIRA, 2010)
Não obstante, é o que também ocorre com o procedimento da Lei n. 11.340/06,
visando coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Parte-se do princípio de que a autoridade policial é a primeira a ter contato com a
ofendida, quando ela já não suporta mais as agressões de seu companheiro, marido ou
alguém de convivência, presente ou passada, sejam elas físicas, verbais ou de
qualquer outra forma, e procura uma delegacia de polícia, especializada ou não, com o
intuito de por fim àquela situação.
Prevê, portanto, a Lei n. 11.340/06, em seu Capítulo III, o atendimento e as
providências a serem adotadas pela autoridade policial, no momento em que a vítima
lhe procura, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Assim, a autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará o
procedimento previsto em lei, abrangendo desde a garantia de proteção policial,
encaminhamento da ofendida à rede de saúde para o fim de atestar o tipo e o grau da
lesão sofrida, encaminhamento a abrigos, acompanhamento da ofendida para retirada
de seus pertences no local do fato, e informação sobre seus direitos e serviços
disponíveis conforme prevê artigo 11 da Lei n. 11.340/06.
Inclusive, Nucci (2009) critica não haver qualquer inovação profunda, junto ao
artigo 12 da lei que complementa o artigo anterior, com procedimentos para efeito do
registro da ocorrência pela autoridade policial, vislumbrando que a lei processual penal
já dispunha da maioria de tais providências, sendo elas de praxe e rotineiras em
qualquer abordagem policial, sobretudo quanto ao encaminhamento médico e
informação sobre os direitos à vítima, e todos os mecanismos burocráticos de lavratura
do boletim de ocorrência.
16
Com efeito, mesmo com importantes inclusões da Lei n. 11.340/06, observando
o encaminhamento a abrigos especializados e acompanhamentos policiais da ofendida
para retorno à sua residência, a realidade nem sempre condiz com a previsão legal.
Vê-se que, assim como os juizados especializados, JVDFM, que ainda não se
encontram instalados de forma correta em todos os Estados brasileiros7, alguns dos
serviços a serem disponibilizados e oferecidos pela autoridade policial, também não são
passíveis de cumprimento como os já citados, vez que não existem locais apropriados
ao acolhimento da ofendida e de seus dependentes, nem mesmo efetivo policial capaz
de suprir a demanda de acompanhamento da vítima para qualquer outra atividade que
não a simples lavratura de boletim de ocorrência nas dependências da própria
delegacia de polícia.
Além das previsões assistenciais, a autoridade policial deve cumprir com seu
dever seguindo os procedimentos padrões do Código de Processo Penal para instrução
do caderno investigatório.
Ora, deverá o delegado de polícia, ou os funcionários designados para o ato,
ouvir a ofendida, lavrar boletim de ocorrência, tomar a representação a termo, colher
todas as provas imprescindíveis ao esclarecimento dos fatos, com realização dos
exames necessários e oitivas do agressor e testemunhas, segundo o já citado artigo 12
da Lei n. 11.340/06.
Contudo, inova o artigo, em seu inciso III, ao determinar a remessa de
expediente apartado do caderno investigatório policial ao juízo com o pedido da
ofendida para concessão de medidas protetivas de urgência, no prazo de quarenta e
oito horas, cuja previsão não existe na lei processual penal.
Tal disposição intenta adiantar manifestação de vontade da vítima em adotar as
medidas urgentes previstas na Lei de Violência Doméstica e Familiar, as quais não
podem aguardar a conclusão do expediente policial para envio ao fórum da localidade,
principalmente porque os crimes cometidos dificultam a própria convivência familiar e
doméstica, e diante de suas características, previstas nos artigos 22, 23 e 24 da citada
7 Segundo dados do Ministério da Justiça em seu portal sobre a Reforma do Judiciário, desde 2006 foram instalados 46 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em 22 estados e no Distrito Federal. Ver mais informações em: <http://portal.mj.gov.br/data/Pages/ MJBB93AF25PTBRNN.htm>.
17
lei8, a remessa antecipada do procedimento, em apartado dos autos de inquérito
policial, se faz necessária.
3.1.1 Não Incidência da Lei n. 9.099/95
O artigo 41, da Lei n. 11.340/06, faz restrição à aplicação da Lei dos Juizados
Especiais, estabelecendo que aos crimes praticados com violência doméstica e familiar
contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099/95,
ou seja, não se poderão aplicar os benefícios nela contidos, nem mesmo o próprio
procedimento sumaríssimo.
Dispõe a Lei dos Juizados Especiais que aos crimes cominados com pena
máxima de até dois anos (artigo 61), considerados de menor potencial ofensivo, serão
concedidos certos benefícios previstos na lei e que poderão ser ofertados ao noticiado,
8 Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; IV - determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
18
mediante aceitação, evitando-se a aplicação de medidas que restrinjam a liberdade do
acusado (artigo 72 e 89).
O objetivo da própria lei dos juizados é dar celeridade ao procedimento penal,
em relação aos crimes cometidos, uma vez considerados de menor potencial ofensivo,
nos termos daquela lei, com aplicação de medidas despenalizadoras, cuja lesividade
não é considerada extremada para intervenção rigorosa do Estado.
Uma vez que a Lei de Violência Doméstica e Familiar procurou inibir mais
rigorosamente os crimes cometidos nesse âmbito contra a mulher, que comumente
vinham sendo praticados sem a devida atenção, a aplicação da Lei dos Juizados
Especiais poderia transparecer falta de rigor na punição do agressor, quando pudesse
ser beneficiado, por exemplo, pela suspensão condicional do processo.
Tinha-se a impressão que agredir a mulher nos termos da Lei de Violência
Doméstica e Familiar traria ao agressor apenas o ônus de comparecimento mensal ao
juízo e certas restrições em freqüentar determinados lugares e em relação à
saídas da comarca do delito.
Nesse sentido, Cunha e Pinto (2007, p. 127) afirmam que "o principal argumento
para essa postura se funda, em síntese, na banalização do crime praticado contra a
mulher, decorrente da brandura da resposta penal proposta pela Lei 9.099/95."
Portanto, quando a Lei n. 11.340/06 proíbe a incidência da Lei dos Juizados
Especiais, tenta, na realidade, impedir a aplicação de transação penal, da composição
civil dos danos, a suspensão condicional do processo e o próprio procedimento
sumaríssimo, uma vez que a criação da lei específica contra a violência doméstica e
familiar da mulher, não permite que os crimes contra ela cometidos sejam considerados
de menor potencial ofensivo, ou que simples acordo entre os envolvidos afastasse a
gravidade do problema.
Não faria qualquer sentido a existência de lei especial, com intuito de coibir crime
específico, para tratar dos crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a
mulher, e a permanência do mesmo tratamento processual tido anteriormente.
Assim, Nucci (2009, p. 1185) assevera que o artigo 41 da Lei n. 11.340/06,
[...] firmou o entendimento de que os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher não são de menor potencial ofensivo, pouco importando o
19
quantum da pena, motivo pelo qual não se submetem ao disposto na Lei 9.099/95, afastando, inclusive, o benefício da suspensão condicional do processo, previsto no art. 89 da referida Lei do JECRIM. [...] a edição da Lei 11.340/06 tentou, por todas as formas, coibir tal abuso de brandura, vedando a 'pena de cesta básica', além de outros benefícios (art. 17 desta Lei), bem como impondo a inaplicabilidade da Lei 9.099/95. [grifos no original]
Se os crimes cometidos com violência doméstica e familiar, nos termos do artigo
7º da Lei n. 11.340/06, não são considerados de menor potencial ofensivo, não poderá
a autoridade policial lavrar simples Termo Circunstanciado para encaminhamento e
julgamento competente ao Juizado Especial Criminal, pois o rito a ser adotado deverá
ser o rito ordinário do Código de Processo Penal.
Deverá, portanto, a autoridade policial, instaurar inquérito a fim de investigar os
fatos, como dispõe o procedimento da lei processual penal, cuja remessa ao juízo
respectivo, terá intervenção do Ministério Púbico procedendo à denúncia, se for o caso,
e dando início à instrução processual, como em quaisquer outros autos da justiça penal
comum.
São as conclusões citadas por Cunha e Pinto (2007, p. 132) de que
[...] em se configurando a violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja o crime e sua pena, não cabe transação penal nem suspensão condicional do processo nem composição civil dos danos extintiva de punibilidade, não se lavra termo circunstanciado (em caso de prisão em flagrante, deve ser lavrado auto de prisão em flagrante e, se for o caso, arbitrada fiança), deve ser instaurado inquérito policial [...], a denúncia deverá vir por escrito, o procedimento será o previsto no Código de Processo Penal [...].
Ressalte-se que a restrição à aplicação da Lei dos Juizados Especiais, evita seja
permitido ao autor do fato receber qualquer medida mais branda, a fim de que os
próprios crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher sejam
banalizados.
Contrario sensu9, existem manifestações minoritárias que apontam ser a
legislação mais gravosa desestímulo para o registro das agressões, ainda mais quando
o agressor é o provedor da família, contribuindo para a impunidade, conforme se vê na
critica de Gomes e Bianchini (2006a, p. 04), afirmando que
9 Locução latina que qualifica processo de argumentação contrário ao apresentado anteriormente, contrapondo-se sobremaneira.
20
O sistema penal clássico, que é fechado e moroso, que gera medo, opressão etc., com certeza, continuará cumprindo seu papel de fonte de impunidade e, pior que isso, reconhecidamente não constitui meio hábil para a solução desse tenebroso conflito humano que consiste na violência que (vergonhosamente) vitimiza, no âmbito doméstico e familiar, quase um terço das mulheres brasileiras
Entrementes, a Lei dos Juizados Especiais Criminais não vem sendo aplicada
frente aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, atendendo ao
estabelecido na própria Lei n. 11.340/06, ou seja, o inquérito policial é instaurado para
apuração do crime, e então encaminhado ao juízo criminal competente, para
propositura ou não de ação penal em relação aos crimes cometidos.
3.2 A Ação Penal
Regra geral, conforme dispõe o Código de Processo Penal, uma vez reunidos os
elementos suficientes sobre a autoria e materialidade do crime, o prosseguimento do
feito é realizado com o encaminhamento da documentação ao órgão do Ministério
Público para ajuizamento de ação penal, excetuando-se apenas os casos de ação
penal privada, quando o próprio agente dá início à persecução penal, com o
oferecimento de queixa-crime.
De fato, o Estado é o único ente que possui atribuição para o exercício da
jurisdição, aplicando a pena que entenda justa em face dos fatos eventualmente
apurados e confirmados com a instrução penal sob o crivo do contraditório. (BONFIM,
2009)
A propósito, a aplicação da lei penal em si, pressupõe a tramitação de um
processo, no que explica Machado, Junqueira e Fuller (2008, p. 19) que
O processo assume a feição de verdadeira garantia aos acusados, posto que, para assegurar a defesa e tutelar o direito de liberdade, o Estado tornou obrigatória a aplicação do Direito Penal pela via jurisdicional, interpondo, assim, o processo entre o cometimento da infração penal e a efetiva aplicação da sanção penal.
Ora, dentre as características e condições exigidas para a constituição da ação
penal, passando desde o seu caráter público e autônomo, interesse de agir,
21
legitimidade ad causam10, possibilidade jurídica do pedido, os elementos de convicção
como indícios de autoria e prova da materialidade, assim como as condições de
procedibilidade em determinados casos, é o que demonstram a justa causa para a
viabilidade do processo criminal. (MACHADO, JUNQUEIRA e FULLER, 2008)
Nesse contexto, a ação penal pode ser pública ou privada, de acordo com a
natureza do delito e suas especificações no Código Penal, conforme o artigo 100.
Ora, a ação penal de iniciativa privada é aquela em que o próprio ofendido, ou
quem tenha legitimidade, realiza a propositura da ação penal, com ajuizamento de
queixa-crime, oferecida por causídico habilitado, provocando a manifestação do Estado
para análise de seu caso. (NUCCI, 2008b)
Entretanto, aos delitos abrangidos pela Lei de Violência Doméstica e Familiar n.
11.340/06, interessa ressaltar a procedibilidade da ação penal pública, em que o Estado
exerce o poder jurisdicional penal através do Ministério Público, vez que na ação penal
privada, à própria vítima é permitido usar dos mecanismos processuais, através de
causídico habilitado.
Destarte, a ação pública pode ser condicionada ou incondicionada, não obstante
o Código de Processo Penal, em seu artigo 24, prescreva que a regra para a ação
penal é ser pública, sem qualquer condição, sendo que dependerá do cumprimento de
requisitos apenas quando a lei o exigir expressamente em determinados crimes.
Sob tal ótica, salienta Bonfim (2009, p. 168) que, a ação penal pública
incondicionada "é aquela promovida pelo Ministério Público sem que haja a
necessidade de manifestação de vontade de terceira pessoa (representação do
ofendido ou requisição do Ministro da Justiça) para sua propositura."
Portanto, se a lei nada prever, a ação será considerada como pública
incondicionada, bastando o convencimento do parquet11 para oferecimento da denúncia
e prosseguimento da ação penal, como nos crimes contra o patrimônio e contra a vida
no âmbito da violência doméstica e familiar.
Contudo, "em determinados casos, a lei sujeitará expressamente [...] a
propositura da ação penal pública ao implemento de uma condição, qual seja, a
10 Locução latina que indica atributo jurídico dirigido à alguém para atuar no processo. 11 Refere-se ao órgão do Ministério Público.
22
representação do ofendido (ou de quem o represente), ou a requisição do Ministro da
Justiça" (BONFIM, 2009, p. 169).
Assim, a representação será necessária quando a lei determinar expressamente
que o ajuizamento da ação penal fica a ela condicionado, como por exemplo, nos
crimes de ameaça, lesão corporal ou dano.
Na realidade, a tipologia da ação penal a ser adotada nos crimes de violência
doméstica e familiar contra a mulher, dependerá essencialmente do delito cometido
pelo autor do fato e qual a condição de procedibilidade exigida pelo Código Penal.
3.3 Os Institutos da Representação e da Renúncia na Lei n. 11.340/06
3.3.1 Da Representação
A autoridade policial, tendo o primeiro contato direto com a situação de violência
doméstica e familiar, e principalmente com os envolvidos, a fim de colher todas as
provas necessárias a instruir o caderno investigatório para possível ação penal, obtém
da ofendida todas as informações imprescindíveis ao andamento judicial do feito e para
esclarecimento dos fatos.
Isto significa que, como forma de viabilizar a celeridade da análise pelo órgão do
Ministério Público, o delegado de polícia ou autoridade responsável da fase
investigatória, nas declarações da vítima, e dependendo do requisito de procedibilidade
exigido pelo crime, já deixa transcrita a manifestação da mesma em representar seu
agressor, desde que necessária.
Ressalte-se que nos crimes de ação penal pública condicionada, a
representação é requisito indispensável para denúncia e prosseguimento do feito na
esfera judicial penal, conforme exigência do artigo 24 do Código de Processo Penal.
Assim, a representação constitui requisito indispensável de procedibilidade para
oferecimento da denúncia pelo Ministério Público nos crimes de ação pública
condicionada à representação, cujo conceito do termo é definido por Bitencourt (2005,
p. 335) como sendo a
23
Representação criminal, manifestação de vontade do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, visando a instauração de ação penal contra seu ofensor. A representação, em determinadas ações, constitui condição de procedibilidade para que o Ministério Público possa iniciar a ação penal.
Nesse sentido, o instituto da representação junto à Lei n. 11.340/06, gera certas
controvérsias quanto à necessidade ou não em alguns delitos, bem como as
formalidades exigidas para que a manifestação da vontade da vítima seja
expressamente aposta em documento válido à persecução penal.
A par dessa situação, a representação em si, por parte da ofendida, levando-se
em conta a situação emocional no momento da agressão, não pode ser exigida de
formalidades que estão aquém de suas capacidades, o que, certamente, desencorajaria
a mulher a fazer a denúncia das agressões recebidas, alegando burocracia no sistema,
demora nas investigações e resultados que satisfaçam seus anseios de segurança.
Inexistem regras formais rígidas para o oferecimento de representação, bastando a intenção inequívoca da vítima, cujo entendimento do Supremo Tribunal Federal já se manifestou que 'a representação nos crimes de ação penal pública condicionada prescinde de qualquer formalidade, bastando o elemento volitivo, ainda que manifestado na fase policial'. (CUNHA e PINTO, 2007, p. 62) [grifos no original]
Uma vez finalizada a colheita de elementos, junto com a representação, se for o
caso, o caderno investigatório é remetido ao fórum da comarca competente para
apreciação do órgão do Ministério Público.
Entretanto, discussão existe, desde a edição desta lei em estudo, justamente em
relação à necessidade ou não do instituto da representação, para alguns crimes em
especial.
Certo é que, quaisquer crimes que se enquadrem no âmbito doméstico e familiar,
tipificados no Código Penal ou em outras leis, nos termos do artigo 7º da Lei n.
11.340/06, podem ser assim considerados, embora os tipos de crimes mais comuns
estejam relacionados com o ilícito da lesão corporal e da ameaça.
Saliente-se que a questão da violência doméstica, por si só, no ano de 2004,
através da Lei n. 10.886, já qualificou o crime de lesão corporal, através da inclusão do
§9º ao artigo 129 do Código Penal, e com vigência da Lei n. 11.340/06, houve apenas a
alteração da pena de seis meses a um ano, para três meses a três anos, afastando
completamente a incidência da Lei dos Juizados Especiais.
24
Regra geral, a ação penal é tida como pública incondicionada, salvo quando a lei
expressamente exigir a representação do ofendido, nos termos do artigo 100, §1º do
Código Penal.
Sob esta leitura, certo é que o delito de lesões corporais, disposto no artigo 129
do mesmo Código Penal, se trata de um crime de ação penal pública incondicionada.
Apesar disso, com o advento da Lei dos Juizados Especiais – Lei n. 9.099/95 e o
disposto em seu artigo 88, a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e
culposas passou a depender de representação, tornando-se, a partir de então, ação
penal pública condicionada à representação.
Não obstante, o artigo 41 da Lei n. 11.340/06, já citado, afastou a incidência da
Lei dos Juizados Especiais para os crimes cometidos no âmbito da violência doméstica
e familiar contra a mulher, de forma que, a análise fria da lei, faz supor que o delito de
lesões corporais voltou a ser de ação penal pública incondicionada.
A Lei não fez expressamente qualquer menção à natureza da ação penal nas infrações de que trata, no entanto, a interpretação sistemática do ordenamento jurídico, observando-se os princípios que regem a matéria, e os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, induz à conclusão de que tais crimes não mais dependem da vontade das vítimas para seu processamento. Significa dizer que os crimes de lesão corporal leve cometidos contra mulher na violência doméstica não dependem de representação, ou seja, voltaram a ser considerados de ação penal pública incondicionada. (GONÇALVES e LIMA, 2006, p.02)
No mesmo sentido, Cabette (2006, p. 06) também entende que no silêncio da lei,
a interpretação deve ser tida como uma ação penal pública incondicionada, como cita
em seu artigo sobre a Lei de Violência Doméstica e Familiar.
Com o advento da Lei 10.886/04, que acrescentou o § 9º. ao artigo 129, CP, criando uma nova hipótese típica para os casos de 'violência doméstica', inclusive com apenação autônoma, cogitou-se a possibilidade de que houvera uma alteração quanto à ação penal, qual seja, a de que, com a criação da nova figura típica, a ação penal teria passado a ser novamente incondicionada, uma vez que a nova lei não chegou a tratar da questão da ação penal, voltando a ser aplicável a regra do artigo 100, CP, determinante de que no caso de silêncio da lei a ação é pública incondicionada. [grifos no original]
Em relação ao crime de ameaça, comumente pratica no âmbito das relações
domésticas e familiares, nada mudou quanto a sua necessidade de representação da
vítima para prosseguimento judicial, já antes exigido nos delitos comuns.
No entanto, ao delito de lesões corporais, a discussão se mantém,
25
principalmente na seara em que a ingerência do Estado, na abrangência da violência
doméstica e familiar, retiraria da vítima o poder de solver seus conflitos sem a
incidência do poder penal contra seu agressor, já que a relação encontra-se envolta em
sentimentos afetivos complexos.
Ademais, deve-se ter em mente que um direito apartado de bases reais flutua na abstração e se torna um instrumento inútil [...]. Foi por isso que outrora constatou-se que a ação penal pública incondicionada naufragava frente ao desinteresse da vítima que ocasionava terrível prejuízo probatório e distorção na aplicação da lei. Percebeu-se que não se pode esquecer que os conflitos domésticos são muito mais complexos do que a simplista e maniqueísta divisão entre agressor e vítima, comportando relevantes aspectos afetivos e emocionais que não podem ser desconsiderados nem obliterados por alguma magia legal. (op. cit., 2006, p. 08-9)
Igualmente, Porto (2006, p. 13) entende que a manutenção da representação,
mesmo aos delitos de ação pública incondicionada, beneficia a própria vítima, criando
mecanismos diferenciados de despenalização, ou seja,
[...] deixar esta decisão no poder da vítima, que pode então utilizá-la como instrumento de barganha para uma justa reparação de danos civis, atende a dois objetivos: punir o sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a própria vítima. Com efeito, é importante lembrar que o poder de representar pressupõe o de conciliar, de sorte que, mantida a representação, mantém-se também a conciliação [...].
Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, já no ano de 2008, firmou
entendimento de que nos crimes contra a pessoa, ou a vida, que incidem a Lei de
Violência Doméstica e Familiar contra Mulher, e especialmente no que tange ao crime
de lesões corporais leves e culposas, a ação penal será pública incondicionada, tendo
em vista que o artigo 41 da Lei n. 11.340/06 derrogou o artigo 88 da Lei n. 9.099/95,
nestes casos.
Em relação ao tema, vale destacar o referido julgamento em Habeas Corpus
n. 96992-DF, em que foi relatora a Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, cuja publicação ocorreu apenas no ano de 2009,
tendo a seguinte ementa.
Violência doméstica. Lesão corporal simples ou culposa praticada contra mulher no âmbito doméstico. Proteção da família. Proibição de aplicação da lei 9.099/1995. Ação penal pública incondicionada. [...] 2. As famílias que se erigem em meio à violência não possuem condições de ser base de apoio e desenvolvimento para os seus membros, [...], daí a preocupação do Estado em proteger especialmente essa instituição,
26
criando mecanismos, como a Lei Maria da Penha, para tal desiderato. 3. Somente o procedimento da Lei 9.099/1995 exige representação da vítima no crime de lesão corporal leve e culposa para a propositura da ação penal. 4. Não se aplica aos crimes praticados contra a mulher, no âmbito doméstico e familiar, a Lei 9.099/1995. (Artigo 41 da Lei 11.340/2006). 5. A lesão corporal praticada contra a mulher no âmbito doméstico é qualificada por força do artigo 129, § 9º do Código Penal e se disciplina segundo as diretrizes desse Estatuto Legal, sendo a ação penal pública incondicionada. 6. A nova redação do parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal, feita pelo artigo 44 da Lei 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos a lesão corporal qualificada, praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando por mais um motivo, a exigência de representação da vítima. [grifos no original]
A orientação do Tribunal é correta na esfera do Direito Criminal, de modo que o
julgamento trazido ao estudo trouxe à baila discussões no sentido de definir qual seria a
espécie de ação penal a ser manejada no caso de crimes de lesão corporal,
relacionada à violência doméstica e familiar com o advento da Lei n. 11.340/06.
Assim, por maioria, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que tal caso trata-se
de ação penal pública incondicionada, apoiado no argumento de que o artigo 88 da Lei
9.099/95 fora derrogado em relação à Lei de Violência Doméstica e Familiar, em razão
de seu artigo 41 ter expressamente afastado a aplicação, por inteiro, daquela lei ao tipo
descrito no artigo 129, §9º do Código Penal, já que as referidas leis possuem escopos
absolutamente opostos. (BRASIL, 2009)
Enquanto a Lei dos Juizados Especiais busca evitar o início do processo penal, que poderá culminar em imposição de sanção ao agente, a Lei Maria da Penha procura punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua família. [op. cit., p. 04-5]
Ademais, apresentou tal decisão do tribunal superior que "a nova redação do
parágrafo 9º do artigo 129 do CP, feita pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo
pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito
familiar, proíbe a utilização do procedimento dos Juizados Especiais", afastando assim
a exigência de representação da vítima, vez que o crime não se enquadra como de
menor potencial ofensivo. (op. cit., p. 07)
Portanto, ante o entendimento jurisprudencial, a aplicação da Lei n. 11.340/06
aos crimes de lesões corporais, deve ter em mente ser a ação penal pública
incondicionada, pelo que a representação, ante a autoridade policial ou judicial, torna-
se dispensável.
27
3.3.2 Da Renúncia
A Lei n. 11.340/06 prevê em seu artigo 16 que nas ações penais públicas
condicionadas à representação da ofendida, de que trata a lei, somente será admitida
renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com
tal finalidade, antes do recebimento da denúncia, e ouvido o Ministério Público.
Importante ressaltar, neste momento, o significado do instituto da renúncia,
verificando sua utilização no texto legal.
Assim é que, segundo Oliveira (2010, p. 149), o termo representação expressa
uma medida de discricionariedade consistente na "manifestação explícita do ofendido,
no sentido de autorizar a persecução estatal, revelando, de modo inequívoco, o seu
interesse em ver apurado o fato contra ele praticado."
Isto significa que os crimes de ação penal pública condicionada à representação,
mesmo na Lei de Violência Doméstica e Familiar, necessitam de manifestação da
vítima confirmando sua intenção na propositura da ação penal contra seu ofensor.
Gomes e Bianchini (2006b) explicam que o termo "renúncia significa abdicação
do direito de representar", e que o Código de Processo Penal "só prevê renúncia em
relação ao direito de queixa (ação penal privada)". [grifos no original]
Na mesma perspectiva, Dias (2007, p. 110-1) esclarece que a
desistência é gênero que compreende a renúncia e a retratação. [...] Na esfera penal, 'renúncia' significa não exercer o direito, abdicar do direito de representar. [...] Já 'retratação' é ato posterior, é desistir da representação já manifestada. Retratação é ato pelo qual alguém retira a sua concordância para a realização de determinado ato, que dependia de sua autorização. [grifos no original]
Ocorre que o termo renúncia, utilizado na lei, torna-se impróprio ante o seu
significado, pois no momento em que o artigo 16 da Lei n. 11.340/06 afirma que poderá
ser realizada audiência judicial especialmente para o fim de "renúncia à representação",
faz referência à desistência de representação anteriormente manifestada pela ofendida.
Logo, deveria a lei ter usado o termo retratação, já que a audiência devia
acontecer somente nos casos em que a ofendida pretendesse não dar continuidade à
representação que fez, possivelmente perante a autoridade policial.
28
Embora a lei disponha em seu texto o termo "renúncia à representação", junto ao
artigo 16 da Lei n. 11.340/06, para efeitos deste estudo, o termo "retratação" será
utilizado, deste ponto em diante, para a mesma referência, uma vez que mais
adequado ao significado imposto para realização da audiência judicial prevista, mesmo
que ainda apresente divergências conceituais para aplicação ao texto legal.
Ocorre que, na vigência da Lei n. 11.340/06, muitas mulheres que requisitam ao
juízo a sua aplicação, após a passagem do momento crítico da agressão, usam da
previsão legislativa da retratação e desistem da ação penal, demonstrando ser o
problema da violência doméstica e familiar, situação que vai além da mera aplicação da
lei penal.
Assim é que o próprio legislador previu essa circunstância ao inserir o dispositivo
do artigo 16 da Lei de Violência Doméstica e Familiar permitindo que fosse realizada
audiência especialmente para o fim da retratação à representação já manifestada,
desde que a ofendida o faça perante o juízo.
Não obstante, Oliveira (2010, p. 150) faz apontamentos no sentido de que,
Todavia, a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, dispõe que a renúncia ao direito de representação – no caso de ação penal pública condicionada, pois quanto se tratar dos crimes mencionados na citada legislação, que cuida da proteção da mulher contra a Violência Doméstica e Familiar, haverá de ser feita perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público (art. 16). A curiosidade é que o CPP não cuida, ao menos expressamente, da renúncia da representação, só o fazendo o art. 74 da Lei n. 9.099/95, no âmbito dos Juizados Especiais.
Ocorre que, o objetivo primordial da designação de tal audiência, de maneira
especialmente designada para este fim, é cercar de maiores formalidades a desistência
da representação, que deve ocorrer somente perante o juízo justamente para que não
se tenha como acontecia com a aplicação da Lei dos Juizados Especiais o caminho da
impunidade.
A par, o que se impõe de maior rigor à vitima não são formalidades para que
realize a representação, mas apenas para que não desista dela facilmente, seja por
arrependimento, seja por coação do agressor, pois uma vez iniciada a persecução
penal, mesmo que em fase investigatória, se torna inútil o trabalho do judiciário, se
bastasse à ofendida desistir de tudo, a qualquer momento.
29
Em regra, seguindo texto estrito da lei, no que tange ao referido artigo, a
audiência para fins de retratação da ofendida deveria ser designada somente quando a
interessada manifestasse o seu desejo de desistência da representação feita
anteriormente, pois a redação é clara ao impor que a audiência é especialmente
designada para tal finalidade.
Portanto, o juízo ao tomar conhecimento da vontade da ofendida em retratar-se,
deveria designar a aludida audiência, e somente neste caso, não fazendo da disposição
ato obrigatório nos crimes de violência doméstica e familiar.
Ora, não se discute que o desejo de tornar sem efeito a representação,
formalizada anteriormente, constitui direito à ofendida em manter conciliável sua relação
familiar, tendo em vista muitas mulheres agredidas reconciliarem-se com seus
agressores logo após a ofensa, o que permite a continuidade da relação familiar e
doméstica. (DIAS, 2007)
Como já citado, a aplicação da lei penal não deve ser a solução dos conflitos em
primeira instância. Deve ser a ultima ratio, ainda mais quando se trata das relações
afetivas, em que se tem em jogo não apenas a situação de agressão, física ou verbal,
mas um estado emocional encontra-se constantemente presente.
É tal prática que Nucci (2009, p. 1176) apresenta, abordando que
não é incomum que mulheres, quando o crime depende de representação [...] registrem ocorrência na delegacia de polícia, apresentem representação e, depois, reconciliadas com seus companheiros ou maridos, busquem a retratação da representação, que, alguns autores denominam de renúncia, evitando-se, com isso, o ajuizamento da ação penal [...]. [grifos no original]
A necessidade da audiência pretende é dificultar meras desistências da vítima,
após todo o trabalho estatal para protegê-la, quando a mesma procura a justiça logo
após a agressão.
Argumenta Dias (2007) que a Lei de Violência Doméstica e Familiar possui
caráter eminentemente protetivo à vítima do que punitivo ao agressor, de forma que a
realização da audiência preliminar disposta no referido artigo permite a descontinuidade
de demanda penal, quando resolvido o conflito por outras vias, pelo que a vítima
provavelmente deixará de contribuir para a persecução penal, ensejando a
absolvição do ofensor.
30
Destaca-se ainda que, o artigo 16 da Lei n. 11.340/06 faz alusão de que a
audiência designada especialmente para o fim de que se proceda a retratação à
representação ocorra antes do "recebimento da denúncia" e ouvido o órgão do
Ministério Público, podendo já existir anterior oferecimento da peça inicial acusatória.
Entrementes, tal disposição da lei contraria o artigo 25 do Código de Processo
Penal que estabelece ser irretratável a representação, depois de "oferecida a
denúncia", ou seja, uma vez que a denúncia seja oferecida pelo parquet, não se pode
mais haver desistência, necessitando da continuidade do processo.
O que se pode concluir é que a Lei n. 11.340/06 inovou tal regra processual,
permitindo a retratação, desde que ela ocorra antes do recebimento da denúncia,
subentendendo-se que mesmo havendo oferecimento da denúncia, a audiência
disposta no artigo 16 da referida lei, pode acontecer até o recebimento da peça inicial
da ação penal pelo magistrado.
Ressalte-se novamente que a realização de tal audiência, na letra da lei, deve
ocorrer somente quando a vítima demonstra a vontade o interesse em retratar-se, e
desde que, tal manifestação aconteça antes do recebimento da denúncia.
Entretanto, a prática tem demonstrado que, a audiência inicial, a fim de evitar
fracasso das ações penais pelo Estado, vem sendo realizada em qualquer
circunstância, como primeiro ato do procedimento da Lei de Violência Doméstica e
Familiar, como se demonstra no estudo de caso a seguir.
Convém apenas apontar que, não fosse a audiência designada, independente de
sua manifestação de vontade em retratar-se, a vítima não procuraria a justiça para
apresentar a desistência sem que fosse intimada para tal ato, ante a simplicidade e falta
de conhecimento do que lhe é de direito em procurar o juízo criminal, nestes casos.
4 O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA NA COMARCA DE ASSIS
CHATEAUBRIAND/PR: UM ESTUDO DE CASO
A Comarca de Assis Chateaubriand encontra-se situada no noroeste do Estado
do Paraná, com abrangência sobre os Municípios de Assis Chateaubriand/PR e
Tupãssi/PR, num total de área de 1.281km2, cuja população é de aproximadamente
31
40.970 habitantes, e economia eminentemente agrícola, segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, do ano de 2009, em seus relatórios.
(BRASIL, 2010)
O estudo de caso apresentado se concentrou na coleta de dados eminentemente
estatísticos, que subsidiaram a pesquisa, realizados junto à Delegacia de Polícia que
abrange os municípios de Assis Chateaubriand/PR e Tupãssi/PR, e junto ao Cartório
Criminal do Juízo da Comarca de Assis Chateaubriand/PR, através da contagem do
número de denúncias e representações realizadas na Comarca abrangidas pela Lei de
Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, envolvendo os citados municípios, bem
como o número de retratações às representações, referentes ao período dos anos de
2009 e 2010.
Não se objetivou na coleta de dados, a busca pelos atributos sociais, relativos
aos motivos que ensejaram a violência doméstica ou familiar, tampouco a faixa etária
das vítimas ou suas caracterísiticas pessoais, econômicas e familiares, ante o foco
deste estudo estar direcionado especialmente às representações e retratações.
Há que se ressaltar que a pesquisa fora autorizada pelas autoridades
competentes, bem como foi seguido todo o protocolo junto ao Comitê de Ética e
Pesquisa da Faculdade Assis Gurgacz, com obtenção de aprovação para que o
trabalho fosse realizado.
Na demonstração dos resultados, não foram utilizados dados pessoais ou
qualquer informação sigilosa que necessitasse de autorização pessoal dos envolvidos
para divulgação, sendo pertinente à pesquisa apenas a quantificação numérica dos
casos de crimes ocorridos no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher
na Comarca de Assis Chateaubriand/PR nos anos de 2009 e 2010, como se mostra a
seguir.
4.1 Coleta de Dados na Delegacia de Polícia
Como já explicitado anteriormente, a pesquisa buscou dados quantitativos junto
à Delegacia de Polícia da Comarca de Assis Chateaubriand/PR, nos anos de 2009 e
2010, eminentemente em relação aos casos de delitos praticados no âmbito da Lei de
32
GRÁFICO 1: Boletins de Ocorrência - ano 2009
12%
88%
crimes Lei 11.340/06
outros crimes
GRÁFICO 2: Boletins de Ocorrência - ano 2009 - Lei n. 11.340/06
42%
56%
1%
1%art 129, §9o CP - lesão corporal
art 147 CP - ameaça
art 150 CP - violação de domicílio
art 163 CP - dano
Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, especialmente na quantidade de
ocorrências registradas, e inquéritos policiais instaurados para averiguação dos
referidos crimes.
Durante a coleta dos dados, foi possível observar que, durante todo o ano de
2009, o ergástulo público, recebeu um total de 1.239 ocorrências registradas, dos mais
variados crimes, sendo que 154 deles se referiram especialmente aos ilícitos que se
adéquam ao artigo 7º da Lei n. 11.340/06, o que determina 12% das ocorrências tidas
naquele local.
Tais dados são especificamente demonstrados junto ao Gráfico 1 a seguir.
De tal percentagem em relação aos crimes da Lei n. 11.340/06 cometidos no ano
de 2009, foi possível averiguar que 56% dos delitos se referem ao crime de ameaça, ou
seja, 88 ocorrências; 42% ao crime de lesões corporais, referentes a 64 ocorrências; e
outros 2% relativos aos crimes de violação de domicílio e dano, com uma ocorrência
registrada para cada tipo penal, ilustrado pelo Gráfico 2.
33
GRÁFICO 3: Boletins de Ocorrência - ano 2010
9%
91%
crimes Lei 11.340/06
outros crimes
GRÁFICO 4: Boletins de Ocorrência - ano 2010 - Lei n. 11.340/06
32%
65%
3%art 129, §9o CP - lesão corporal
art 147 CP - ameaça
art 150 CP - violação de domicílio
Já no ano de 2010, no período compreendido entre os meses de janeiro e
setembro, de um total de 1.005 boletins de ocorrência registrados perante a Delegacia
de Polícia da Comarca de Assis Chateaubriand/PR, apenas 87 deles fazem referência
aos delitos com aplicação da Lei n. 11.340/06, o que demonstra o Gráfico 3, a seguir,
sendo tal numeração referente a 9% das ocorrências registradas naquele ergástulo
público em relação aos 91% referentes aos outros tipos de delitos cometidos na
localidade.
Destes 87 boletins de ocorrência lavrados no referido período do ano de 2010,
65% estão relacionados com o crime de ameaça, ou seja, 56 ocorrências; 32% com o
crime de lesões corporais, que perfazem 28 ocorrências; e 3% ao crime de violação de
domicilio, com apenas 3 ocorrências registradas, demonstrado pelo Gráfico 4 abaixo.
Ante tais dados, é possível fazer um panorama geral em relação aos boletins de
ocorrência registrados no ano de 2009 por inteiro e no ano de 2010, contando os meses
de janeiro a setembro, no sentido de que existem no total 2.244 boletins de ocorrência,
34
GRÁFICO 5: Boletins de Ocorrência - anos 2009 e 2010
11%
89%
crimes Lei 11.340/06
outros crimes
GRÁFICO 6: Boletins de Ocorrência - Lei n. 11.340/06 - anos 2009 e 2010
42%
58%
representação
desistência
dos quais 11% se referem à aplicação da Lei n. 11.340/06, quais sejam 241 ocorrências
e o restante de 89% abrangem os outros delitos tipificados no Código Penal e leis
esparsas, ou seja, 2.003 ocorrências, conforme Gráfico 5 a seguir.
Ressalte-se, apenas para fins de conhecimento, que os demais delitos abrangem
crimes conta o meio ambiente, furtos, roubos, estelionatos, estupros, homicídios, porte
de armas e munições, bem como tráfico e uso de drogas ilícitas, entre outros.
Na delegacia de polícia, ainda foi possível constatar pela pesquisa efetuada, que
dos Boletins de Ocorrência registrados, sob a égide da Lei de Violência Doméstica e
Familiar contra a mulher, no período apresentado de 21 meses, apenas 42% seguem
para instauração de inquérito policial a fim de averiguar os fatos, isto é, 101 cadernos
investigatório; havendo a desistência da ofendida em 58% dos casos, na própria
delegacia, o que demonstra que as outras ocorrências são arquivadas in continenti
(imediatamente), ilustrado pelo Gráfico 6.
Tal desistência é motivada pela vontade da vítima, que dias após a ocorrência na
delegacia de polícia retorna requerendo que não haja o prosseguimento para
35
GRÁFICO 7: Inquéritos Policiais instaurados - anos 2009 e 2010
69%
31%
outros crimes
crimes Lei 11.340/06
instauração de inquérito policial, ou justamente pelo não retorno da vítima para coleta
dos dados necessários ao início do caderno investigatório.
Certo é que tal situação, de não instauração do inquérito policial após a
confecção do boletim de ocorrência, quando não existe representação da vítima, nos
casos em que ela é exigida, é a única alternativa viável à autoridade policial, sendo o
arquivamento da documentação necessário.
Entretanto, nos casos de lesão corporal, entendendo-se que a ação penal é
pública incondicionada, o arquivamento da ocorrência inicial pela ofendida, contraria
sobremaneira os dispositivos da lei e até mesmo o entendimento jurisprudencial do
Superior Tribunal de Justiça como já citado anteriormente, devendo os mesmos serem
levados a efeito, e instaurados os respectivos inquéritos policiais.
Desta forma, verificou-se ainda que foram instaurados, na Delegacia de Polícia
da Comarca de Assis Chateaubriand/PR, 31% dos inquéritos policiais com relação aos
delitos de violência doméstica e familiar contra a mulher, contabilizando 101 cadernos
investigatórios, contra 69% dos inquéritos relativos a outros crimes, referentes a 222
autos, de acordo com o Gráfico 7 abaixo.
Bem assim, da contagem de 31% dos inquéritos policiais instaurados com
abrangência da Lei n. 11.340/06, referentes a 101 autos criminais; 56% deles foram
através de Portaria do delegado de polícia atuante na Comarca de Assis
Chateaubriand/PR, relativos a 57 procedimentos investigatórios e 44% através de
Prisões em Flagrante da autoridade policial realizadas também na comarca, ou seja, 44
cadernos criminais, como demonstra o Gráfico 8.
36
GRÁFICO 8: Inquéritos Policiais - Lei n. 11.340/06 - anos 2009 e 2010
44%
56%
Prisão em Flagrante
Portaria
O que se observa é que o número de inquéritos policiais instaurados para
aplicação da Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, em comparação
com as ocorrências registradas na Delegacia de Polícia da Comarca de Assis
Chateaubriand/PR, é pequeno.
Entretanto, se for comparado o número de inquéritos instaurados para qualquer
ilícito penal e os de âmbito da Lei n. 11.340/06, o número torna-se expressivo, e
conclui-se que poderia ser ainda maior, caso as mulheres ofendidas dessem
continuidade a todas as ocorrências que registram perante a autoridade policial.
4.2 Coleta de Dados no Fórum
Diante da pesquisa realizada, verificou-se que ao juízo local da Comarca de
Assis Chateaubriand/PR são encaminhados apenas os cadernos investigatórios
instaurados na delegacia de polícia, em que se vislumbra a prática de delitos
relacionados com a abrangência da Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a
mulher.
Assim, foi possível verificar que o fórum recebeu, nos anos de 2009 e 2010, até
o momento (outubro/2010), 101 inquéritos policias relativos à Lei n. 11.340/06, como já
demonstrado através dos gráficos apresentados anteriormente.
Destes, constatou-se que todos os cadernos investigatórios passaram pela
abordagem inicial de encaminhamento ao órgão do Ministério Público, com a
designação da audiência preliminar prevista no artigo 16 da referida lei, independente
37
GRÁFICO 9: Inquéritos Policiais encaminhados ao fórum - Lei n. 11.340/06 - anos 2009 e 2010
50%37%
13% art 129, §9o CP - lesão corporal
art 147 CP - ameaça
art 129 e 147 CP
GRÁFICO 10: Andamento processual - Inquéritos Policiais Lei n. 11.340/06
34%
45%
6%15% denúncia
arquivados
prazo
andamento
do tipo de delito e de haver ou não representação expressa perante autoridade policial,
conforme o Gráfico 9 abaixo.
Após a realização das audiências preliminares, até o início do mês de outubro
deste ano de 2010, dos 101 inquéritos policiais encaminhados ao fórum da Comarca,
45% já se encontram arquivados pela retratação da ofendida, ou decurso do prazo para
representação, ou seja, em número de 46.
Do restante, 6% estão aguardando o prazo decadencial de seis meses previsto
no artigo 38 do Código Penal, no montante de 6 inquéritos; e apenas 34% foram
oferecidos denúncia e encontram-se em fase de instrução, consequentemente, 34
processos foram iniciados. Tudo conforme demonstra o Gráfico 10.
Insta observar ainda que 15% daqueles inquéritos policiais ainda se encontram
em andamento, com remessa à delegacia de polícia para conclusão das investigações
38
GRÁFICO 11: Denúncias - Lei n. 11340/06 - anos 2009 e 2010
65%
32%
3%
art 129, §9o CP - lesão corporal
art 147 CP - ameaça
art 121 CP - homicídio
ou aguardando a juntada de algum documento, para posteriormente ser designada data
para audiência preliminar do artigo 16 da Lei n. 11.340/06, momento em que a ofendida
será ouvida novamente.
Entretanto, alguns dos inquéritos já se encontram em vias de ocorrer decadência
do direito de representar, face ao andamento processual moroso, e até mesmo diante
da dificuldade encontrada pela autoridade policial em localizar a ofendida, o agressor,
bem como testemunhas que, por vezes, se recusam a auxiliar nas investigações, por
receio de envolvimento na relação alheia.
Ocorre que, das denúncias oferecidas pelo Ministério Público, verificou-se que
66% se referem ao crime de lesões corporais, previsto no artigo 129, §9º do Código
Penal, relativos a 22 inquéritos policiais; 32% ao crime de ameaça, previsto no artigo
147 do Código Penal, correspondente a 11 cadernos investigatórios; e apenas 3% ao
delito de homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal, relativo a 01 inquérito
policial, cujo crime de lesões corporais, na realidade fora enquadrado como tentativa de
homicídio, todos combinados com o artigo 7º da Lei n. 11.340/06, conforme ilustração
do Gráfico 11 a seguir.
Superficialmente, é passível a visualização de que, mesmo com todos os
arquivamentos já ocorridos na própria Delegacia de Polícia, dos poucos inquéritos
policiais que chegam ao fórum local, muitos ainda não conseguem chegar sequer a
uma instrução processual, pois a própria vítima desiste da continuidade, ou deixa
transcorrer in albis (em branco), o tempo que tem para exercer seu direito de
representação.
39
2244
241 101 34
0
500
1000
1500
2000
2500
GRÁFICO 12: Resumo procedimentos - Lei n. 11.340/06
Boletins de Ocorrência
Boletins de Ocorrência -Lei n. 11.340/06
IPs instaurados - Lei n.11.340/06
Denúncias
4.3 Análise dos Dados
Após a pesquisa realizada, e diante de todos os dados apresentados, tanto na
delegacia de polícia, quanto no fórum, ambos da Comarca de Assis Chateaubriand/PR,
verifica-se claramente que o resultado judicial para aplicação das sanções da Lei de
Violência Doméstica e Familiar contra a mulher n. 11.340/06, é ínfima, se comparada às
ocorrências que a autoridade policial tem em seus registros, no período dos anos de
2009 e 2010.
É o que se demonstra, através da ilustração a seguir, com o resumo do
procedimento que leva à aplicação da Lei n. 11.340/06 na comarca pesquisada, em que
se tem do total de 2.244 Boletins de Ocorrência registrados, sobre os mais diversos
ilícitos penais, o número de 241 boletins do período pesquisado foram cometidos no
âmbito da violência doméstica e familiar, dos quais apenas 101 ocorrências tiveram
condições procedimentais de verem instaurados inquéritos policiais para apuração do
crime.
Assim é que, dos cadernos investigatórios encaminhados ao juízo local, com a
aplicação da audiência preliminar prevista no artigo 16 da Lei n. 11.340/06, reservada
para retratação da ofendida, somente nos casos em que assim se manifeste segundo a
norma, mas aplicada a qualquer situação como primeiro impulso, apenas 34 inquéritos
policiais receberam o oferecimento de denúncia com a concordância da vítima.
Nos casos em que a ofendida, mesmo já havendo representação perante a
40
autoridade policial, profere intenção em se retratar, tornando sem efeito aquela
representação anterior, os cadernos investigatórios são arquivados de plano, ante o
não interesse da própria vítima na continuidade processual.
Logo, mesmo nas ações penais tidas como públicas incondicionadas, tem-se
prevalecido o uso da ratificação em audiência para continuidade do processo, a fim de
confirmar o desejo de punir o agressor, verificando-se que tal atitude se revela
necessária, pois muitas vítimas, como demonstram os dados coletados na comarca de
Assis Chateaubriand/PR, como estudo de caso, desistem da continuidade processual.
De fato, não é este o procedimento correto. Se a ação é pública incondicionada,
independe ela de representação da ofendida, seja para instauração do inquérito policial,
seja para oferecimento da denúncia e continuidade processual, pois não prescinde
deste requisito.
Diferentemente ocorre com as ações públicas incondicionadas, cuja
representação da vítima é indispensável. Contudo, basta que a ofendida manifeste
perante autoridade policial sua manifestação em ver representado o agressor, não
necessitando de qualquer ratificação em audiência.
Insta esclarecer novamente que a audiência do artigo 16 da Lei n. 11.340/06
deveria ocorrer somente nos casos em que, já havendo representação anterior, a vítima
queira retratar-se, e o faça por vontade própria, e não como ato obrigatório à aplicação
da lei de violência doméstica e familiar.
Sob tal discussão, Nucci (2009) expõe em sua doutrina, com comentários à Lei
n. 11.340/06, que a praticidade do artigo 16 é relevante, vez que é comum as mulheres
registrarem a ocorrência na delegacia de polícia, apresentando representação, quando
necessário, e depois, já reconciliadas com os agressores, buscam a retratação,
evitando o ajuizamento da ação penal, ou lamentando-se por processarem seus
companheiros, parentes e outros abrangidos pela lei.
Contudo, o autor também questiona tal praticidade da audiência, quando
utilizada sob qualquer circunstância, afirmando que "a autêntica renúncia seria a vítima
manifestar, claramente, a sua intenção em não representar" (op. cit., p. 1176), e não ser
questionada sobre a possibilidade da retratação ou confirmação da representação
expressada anteriormente.
41
Conclui-se, então, diante dos dados analisados, que a criação da Lei de
Violência Doméstica e Familiar contra a mulher procurou, de fato, inibir as agressões
por que vinham passando, muitas vezes silenciosamente, e os dados demonstram que
a violência exercida contra a mulher nesse âmbito é significativa.
Entretanto, sua aplicação prática demonstra ao menos na Comarca de Assis
Chateaubriand/PR, que as punições às agressões que ocorrem corriqueiramente, são
mínimas, já que possíveis somente com o procedimento penal judicial com direito à
ampla defesa do acusado, sendo que as próprias interessadas deixam de realizar os
atos necessários ao cumprimento da justiça.
O Delegado de Polícia da Comarca, em entrevista ao jornal O Regional do
Município de Assis Chateaubriand/PR (ANEXO I), confirma tal situação, asseverando
que de cada 10 registros que se tem na delegacia, apenas em dois deles há
representação e somente um consegue chegar ao Ministério Público para análise do
crime. (MERLAK, 2010)
Assim, a utilização da audiência preliminar, para quaisquer tipos de crimes e
suas ações públicas, condicionadas ou incondicionadas, acaba por frear a atuação
estatal na tentativa de repressão dos crimes, pela própria vontade da ofendida de
manter impune o crime contra si cometido, seja por motivos pessoais ou afetivos, seja
até por receio de mais agressões.
Os dados só demonstram que, para a situação de agressão no âmbito da
violência doméstica e familiar contra a mulher, a punição judicial não é suficiente a
resolver os conflitos nesses aspectos, pois complexos ante a presença de sentimentos
de afeto, pois a mulher ofendida em sua integridade, fácil e costumeiramente desiste da
representação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, intitulada popularmente
como “Lei Maria da Penha”, em vigor no Brasil desde 2006, possui caráter de combate
e prevenção aos abusos praticados por parte do agressor no âmbito das corriqueiras
relações afetivas, visando levar ao conhecimento das autoridades competentes tais
42
atos, a fim de punir e coibir a prática pelo ofensor.
Entretanto, para que haja aplicação da norma, necessita-se do apoio da
autoridade policial, judicial e da própria vítima, a qual manifestará o interesse em ver o
agressor punido.
Vislumbrou-se que, ao menos na Comarca de Assis Chateaubriand/PR, no
período compreendido entre os anos de 2009 e 2010, a incidência penal da Lei n.
11.340/06 é de grande ocorrência, mas a punição final do acusado não acontece a
todas as ocorrências registradas junto à delegacia de polícia, em razão da desídia da
própria vítima e execução incorreta do procedimento penal.
Observou-se, ao longo do trabalho, que dentre os artigos que descrevem ilícitos
penais que são abrangidos pela Lei n. 11.340/06, tem-se mais comumente o crime de
ameaça (artigo 147 do Código Penal), e o crime de lesão corporal (artigo 129, §9º do
mesmo código), sendo este último alvo de divergente entendimento doutrinário quanto
ao tipo de ação penal deve ser considerado, se pública condicionada ou
incondicionada, dificultando a atuação estatal, mesmo havendo inteligência
jurisprudencial firmada de que não há necessidade de manifestação da ofendida.
Assim é que a lei prevê, em artigo específico, a possibilidade de retratação à
representação efetuada pela vítima, para os crimes em que for considerada ação penal
pública condicionada, o que se faz concluir a necessidade de representação da
ofendida em determinados casos, bem como sua dispensa em outros.
Porém, não é o que os números pesquisados na Comarca de Assis
Chateaubriand/PR demonstraram. Verificou-se que a representação é expressa em
todos os delitos no âmbito da violência doméstica e familiar, como requisito de
procedibilidade para instauração de inquérito policial e, consequentemente, o
oferecimento de denúncia para início da ação penal, ou arquivamento do feito, ante a
confirmação ou retratação pela vítima, em audiência prévia.
Há, assim, aplicação no dispositivo da lesão corporal com a representação da
vítima, para tal crime, quando envolve a violência doméstica e familiar, justificando-se a
necessidade de manifestação da ofendida para interesse na continuidade da ação
penal, tendo em vista a lei abordar tema que envolve relação multidisciplinar, e que a
opinião da vítima seria fundamental para ensejar ação penal.
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Verificou-se também que o problema da violência doméstica envolve muito mais
fatores sociais do que a lei penal consegue solucionar, de forma que sua aplicação, não
raras vezes, se mostra tímida ao tentar coibir a agressão nos termos do artigo 7º da Lei
n. 11.340/06.
Isto significa dizer que, apenas a aplicação da lei penal não seria efetiva a
resolver os problemas familiares de agressão no âmbito doméstico e familiar, pois a
violência é vislumbrada mais propensa a se relacionar com questões sociais, do que
penais propriamente ditas.
Sob todo esse contexto, muitos aplicadores acabam por permitir a retratação da
mulher em qualquer situação – de ameaça ou lesão corporal –, interrompendo o fluxo
normal do procedimento das ações penais, as quais se tornariam um problema para a
ofendida ao invés de ser solução, a fim de resguardar a convivência social no contexto
de sua família, bem como evitando o desgaste desnecessário do uso do judiciário em
processos que em nada beneficiariam a vítima.
Perante todo o exposto ao longo do trabalho, na apresentação bibliográfica e nas
ilustrações práticas do que tem ocorrido com o procedimento da Lei n. 11.340/06,
constata-se que, o direito penal, por si só, não oferece soluções plausíveis às mulheres
agredidas diariamente.
Mais que isso, elas precisam que seus ofensores sejam reeducados, a fim de
mudar a mentalidade da solução de problemas e de imposições através da agressão e
da ameaça, já que vulneráveis e hipossuficientes.
Com a entrada em vigor da Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a
mulher, a proteção das vítimas recebe atenção especial do sistema judiciário.
Entretanto, a mudança social de valores, e imposição à própria mulher de uma
mudança de postura, talvez fosse o caminho mais acertado a alterar definitivamente a
violência que as mulheres vêm sofrendo em suas casas e em suas famílias.
Não obstante, não é possível deixar à mercê o fato de que, nos casos em que a
ofendida não queira continuar com o andamento processual do crime em que fora
vítima, sua retratação e a não ingerência do Estado, significa a ela benefício, inclusive,
à reconstrução familiar, perturbada pelo episódio da violência.
O que não se pode permitir é que a lei seja considerada como entrave aos
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trabalhos da polícia e do judiciário, na sua aplicação, ou mesmo seja utilizada como
meio de vingança ou barganha pela mulher, a fim de solucionar a violência doméstica e
familiar por que tem passado.
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