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Os Livros de Magia (06) - Ajuste de Contas

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    Obras publicadas na coleo Os Livros de Magia: 1 Os Livros de Magia O Convite 2 Os Livros de Magia Laos 3 Os Livros de Magia A Cruzada das Crianas 4 Os Livros de Magia Conseqncias 5 Os Livros de Magia Lugares Perdidos 6 Os Livros de Magia Ajuste de Contas

    Carla Jablonski

    Criao de

    Neil Gaiman e John Bolton

    Ttulo original: The Books of Magic 6 Reckonings

    Traduo de Maria Teresa Costa Pinto Pereira Capa: estdios P. E. A.

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    Para Neil, Onde toda a magia comeou, Com gratido.

    CJ

    Prlogo

    Era uma vez uma bela rainha que governava com o

    marido o Pas Encantado. Ela adorava ser rainha, delici-ando-se com o fausto e a Magia, a beleza da terra e da sua corte. Mas ser rainha pode ser muito triste. O marido, Auberon, desposara-a para formar uma aliana. Talvez a amasse um pouco; ela amava-o s vezes. Mas nunca es-quecera que o seu verdadeiro valor para ele era poltico. Isso e a esperana de que lhe desse um herdeiro e assim garantisse a ascendncia real.

    E, embora Titnia tivesse sempre companhia, no tinha amigos verdadeiros. Com tanta bisbilhotice e tanta intriga, como podia confiar em algum? Confiara muitas vezes em Amadan, mas no tinha certeza se podia confiar nele. Aparecia nos lugares mais estranhos, como se tivesse estado escuta ou a espiar. No lhe parecia que informas-se o marido, pois Auberon parecia facilmente irritado com

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    a minscula criatura, mas Amadan tinha sempre uma a-genda isso ela podia ver.

    Todavia, Amadan fora-lhe til quando se tornou rainha. No era da realeza por nascimento. Fora lanada na vida real sem preparao; foi Amadan que a ensinou, aconselhou e protegeu. Mas um vira-casaca adulador no era um amigo verdadeiro. E no havia nenhum lugar onde pudesse ser ela mesma.

    Por isso, comeou a visitar o mundo dos humanos. Os portes estavam sempre abertos; era fcil entrar e es-conder a maravilha do Pas Encantado por baixo dos en-cantos que dava sua pele o tom humano. A paisagem estranha e a promessa de tempo contnuo faziam com que se sentisse livre. Suficientemente livre para se sentar e chorar pela famlia que deixara para trs quando foi viver na corte, pelo corao solitrio, pelos sonhos romnticos frustrados.

    Senhora triste, por que chora? O que posso fa-zer para ajud-la?

    Estas foram as primeiras palavras que Tamlin lhe dirigiu. Tamlin, talvez o humano mais belo que alguma vez vira. Era quase to belo como o povo do Pas Encan-tado.

    No tenha medo disse ele. O meu nome Tamlin e nunca lhe faria mal.

    Eu... eu creio que melhor regressar agora balbuciou Titnia, sentindo-se to ridcula como uma mo-cinha. Fez palpitar o seu corao, e isso assustou-a. Queria afastar-se dele e, no entanto, no o queria deixar. Levan-tou-se. Sim, tenho de regressar.

    Ento, deixe que a acompanhe insistiu Ta-mlin. Estes bosques no so para uma mulher sozinha.

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    Deixe-me ir at sua casa. Quer ir para o lugar onde vivo? perguntou

    Titnia. De livre vontade? Formava-se uma idia na sua mente.

    Claro replicou Tamlin. Ento, vem, Tamlin. Vem comigo de livre von-

    tade. E assim levou o humano para o Pas Encantado,

    sabendo que nunca mais poderia regressar terra onde nascera. Visitar, sim. Mas teria sempre de voltar para junto dela como seu prisioneiro, por vontade prpria.

    Por vontade prpria, porque, pouco tempo depois, apaixonaram-se, e Tamlin no quis abandon-la. Ensi-nou-lhe certos passos de magia mudar de forma, por exemplo, e remdios feitos de ervas e passaram muitos dias e muitas noites de felicidade juntos.

    Mas a felicidade no podia durar. Tamlin ficou fu-rioso por Titnia no deixar o marido para ficar com ele. Recusou-se a desistir do reino do Pas Encantado para viver com ele. Quando anunciou que estava grvida e que o filho seria o herdeiro do Rei, Tamlin, irado, recor-dou-lhe que no podia saber quem era o pai da criana. Era ele o pai ou era Auberon? A criana seria do Pas En-cantado ou tambm correria sangue humano nas suas vei-as?

    Titnia ocultou o medo das conseqncias e afas-tou Tamlin. No queria perder o ttulo, a posio. Mesmo que o filho fosse dele, nunca lhe diria. Dar-lhe-ia demasi-ado poder sobre ela, teria demasiados direitos a reclamar. Talvez, mesmo que a criana fosse de Tamlin, Auberon nunca tivesse de saber. Afinal, o filho podia parecer-se com ela. No entanto, podia parecer uma criana do Pas

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    Encantado. Se fosse necessrio, podia transformar a sua natureza humana.

    Porm, para no correr riscos, pediu, em segredo, a Amadan, que contratasse uma parteira uma que fosse de confiana. E naquele dia fatdico, com o Rei Auberon ausente, deu luz o filho... uma criana com sinais evi-dentes dos humanos.

    A existncia desta criana ser uma ameaa para vs enquanto fores viva avisou-a Amadan. Pode ser acusada de traio pela vossa infidelidade. Esta criana a prova disso.

    O que posso fazer? perguntou ela. Aquilo que deve. Isto , se prezar o vosso trono. Sim murmurou Titnia. Sim. Faz isso. A parteira tirou-lhe o beb rosado e saudvel dos

    braos. Fui sempre de confiana disse a parteira.

    Conte comigo. Envolveu o beb na capa e saiu do quarto. Informaremos o Rei e a corte de que o beb

    nasceu morto disse Amadan. No ser uma mentira por muito tempo.

    As lgrimas brotaram dos olhos de Titnia. Por favor, deixe-me a ss. Amadan fez uma vnia e voou, saindo pela janela. A rainha triste olhou atravs da janela para o cu da

    noite. Oh, Tamlin gemeu. O que fiz? Agora, ja-

    mais me perdoar. Talvez nunca me perdoe a mim mes-ma.

    Os dias passaram. Auberon sofria e consolava a esposa infeliz com a perda do filho. Amadan pairava e

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    vigiava para manter Tamlin afastado. Mas Tamlin seguira a parteira at o bosque. Ficou

    surpreso quando ela e o beb desapareceram num portal envolto em bruma. No havia nenhuma prova de que fi-zera aquilo que tinha em mente; ela no regressou. Nunca disse uma palavra a Titnia. Ela quisera ver-se livre do fi-lho do seu filho por isso, que adiantaria? Deixou de se aproximar da porta dela, deixou de suspirar por ela.

    E, apesar de tudo, Titnia estava convencida de que o filho estava vivo. Em algum lugar.

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    Captulo Um

    Timothy Hunter estremeceu quando a me de

    Molly OReilly fez uma tirada. J disse para no telefonar mais replicou a

    Sra. OReilly no outro lado da linha. A Molly no tem autorizao para falar com voc. E, se voltar a falar, terei de ter uma conversa com o seu pai.

    A fria fria da Sra. OReilly soou no telefone com tal intensidade que Tim imaginou pingentes de gelo a formarem-se ao longo da linha. Tentou afastar o pensa-mento. Sendo mgico, aprendera que s vezes, se imagi-nava alguma coisa, ela podia acontecer. A ltima coisa que precisava era ter de explicar ao pai exasperado, irritado e melanclico como congelara o telefone.

    Fui suficientemente clara, jovem? perguntou a Sra. OReilly.

    Mas... Tim comeou a protestar, depois se calou. A Sra. OReilly estava sendo insensata, mas se dis-sesse isso s faria com que ele e Molly ficassem em piores lenis. Os adultos detestavam quando eram corrigidos por garotos de treze anos. Ele e Molly j estavam em a-puros.

    Mas? repetiu a Sra. OReilly, e a palavra saiu como um aviso glacial e incrdulo.

    Tim encolheu-se. Realmente precisa aprender a fi-car calado, disse para si mesmo.

    Corno te atreve a defender-se, Timothy Hunter admoestou.

    Se ele tinha alguma dvida, percebeu que estava

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    metido numa grande encrenca. A me de Molly simpati-zava com ele, e apenas usava o nome completo se estava particularmente irritada ou muito preocupada. Como no tempo em que tinha oito anos e cuidava dele e de Molly, e conseguira saltar da rede de balano. Nessa altura tambm o chamou de Timothy Hunter.

    Depois de ficar toda a noite na rua com a minha filha bradou , sem uma explicao! S Deus sabe o que vocs andaram fazendo...

    Nada! balbuciou Tim. No fizemos nada de mal, juro.

    A Sra. OReilly bufou. Pode ser verdade. Tambm pode no ser. Por

    isso, deixe a Molly em paz. O telefone foi desligado com brusquido. Tim,

    macambzio, pousou o auscultador. Bem, aquilo era desnecessrio murmurou. Voltou vagarosamente para o quarto e deitou-se na

    cama por fazer. Nunca se vira numa situao to difcil nem mesmo quando se esgueirou da escola durante a aula de ginstica. Tambm tinha certeza absoluta de que os pais de Molly nunca tinham ficado to furiosos com ela. E o culpado era ele. Bem, no propriamente ele. Para ser mais preciso, a culpa era da magia!

    O mundo de Tim virara desde que descobrira que era mgico. E no apenas mgico tinha o potencial pa-ra se tornar o mgico mais poderoso de todos os tempos. O que era uma parte do problema. Essa possibilidade fa-zia com que todas as outras espcies de mgicos de-mnios, por exemplo tivessem demasiado interesse por Tim e pelo seu futuro. Na verdade, Tim descobrira que havia uma srie de criaturas poderosas que queriam fazer

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    tudo para que ele no tivesse um futuro. Fora por isso que ele e Molly se tinham metido em tantas encrencas. Molly fora raptada e levada para a Terra dos Brinquedos dos Demnios. Tim no entendia bem o motivo, mas sabia que Molly fora raptada por demnios por causa dele. Le-varam algum tempo para escapar, e fora isso que os obri-gara a passar a noite longe de casa.

    Os pais de Molly tinham ficado furiosos, e ela esta-va de castigo. Mais como se estivesse em priso domicili-ar, pensou Tim. Os demnios eram muito menos assus-tadores do que os pais enraivecidos de Molly, constatara Tim e, embora a magia os tivesse metido naquela fria, no ia livr-los dela. Pelo menos, nenhum passo de magia de que Tim se lembrasse.

    Tim estendeu a mo e pegou numa bola que estava no cho. Virou-se de costas e atirou a bola de uma mo para a outra. Tambm fora castigado, mas o pai no ficara to fantico. Tim interrogou-se se isso se devia, em parte, ao fato do pai no ser o seu pai verdadeiro. Essa era outra das pragas que viera com a magia. O pai verdadeiro de Tim era um sujeito chamado Tamlin, que vivera noutro mundo, um mundo chamado Pas Encantado.

    Tim comeou a atirar a bola contra a parede e a apanh-la. Tump. Apanha. Tump. Apanha. Fazia um som agradvel.

    Outra vez, pensou Tim. Tump. Apanha. Talvez o papai nem sequer tenha dado pela minha ausncia.

    Quando Tim chegou em casa nessa manh, o Sr. Hunter nem sequer estava l. Estivera sentado no carro desfeito, que mantinha num parque de estacionamento a vrias ruas de distncia. O carro estava to danificado que nunca mais andaria, mas o Sr. Hunter no se desfazia dele.

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    s vezes, sentava-se nele nos dias piores. O Sr. Hunter estava ao volante daquele mesmo carro quando sofreu o acidente que matou a me e deixou o Sr. Hunter apenas com um brao. Tim chamava o carro de Culpamvel.

    Por isso, era bem possvel que o Sr. Hunter tivesse passado a noite enfiado no Culpamvel e no percebeu que Tim se ausentou. Quando a Sra. OReilly veio gritar, como se tivesse havido um homicdio, o Sr. Hunter foi muito brando. A resposta foi, Os garotos so garotos, e estes dois fazem um belo par. Isto enfureceu ainda mais a Sra. OReilly.

    No me venha com esse conversa de garotos, Wil-liam Hunter.

    No era isso que eu... protestara o Sr. Hunter, mas o rosto irado da Sra. OReilly fizera-o calar.

    Ento, o Sr. Hunter concordou em castigar Tim tambm. No s Tim ficou de castigo, como tambm o skate foi confiscado.

    Isso acontecera h dois dias. Desde ento o Sr. Hunter mal falara com Tim. Tim tinha a impresso de que o pai talvez temesse que a Sra. OReilly pensasse que no era um bom pai. Ou talvez o Sr. Hunter estivesse aborre-cido por ter berrado com ele, por uma coisa que Tim fi-zera.

    Para agravar a situao, as frias da Primavera ti-nham comeado h pouco, por isso ele e Molly no pode-riam se encontrar na escola. E precisava de estar com ela, de lhe contar tudo o que estava acontecendo. Alm disso, agora tudo era diferente. Eram oficialmente namorados; at tinham se beijado! Mais de uma vez!

    Os namorados tm de se ver resmungou Tim, apanhando a bola mais uma vez. uma das re-

  • 11

    gras. Saiu da cama, rolando, e abriu a porta do quarto. O

    habitual som montono da televiso ouviu-se no primeiro andar.

    O pai vai passar a noite l em baixo conjec-turou Tim. O Sr. Hunter passava muito tempo em frente do aparelho, sobretudo quando apresentavam um musical antigo em preto e branco. No vai perceber se no es-tiver no quarto.

    Tim pegou a capa de chuva, depois desceu as esca-das devagar, tendo o cuidado de evitar as tbuas que pu-dessem ranger. Susteve a respirao e transps rapida-mente a porta que dava para a sala de estar, parando, por instantes, e pondo-se escuta. O pai no se mexeu. Se for apanhado a sair escondido, o que far? No estava muito zangado comigo, disse Tim para si mesmo. Foi a Sra. OReilly que o exasperou. Alm disso, estarei de novo no meu quarto antes que ele se d conta que sa.

    Tim rodou o puxador da porta, com todos os ner-vos tensos quando se preparou para a chiadeira, mas a porta abriu-se silenciosamente. Como se quisesse que eu v ver a Molly, concluiu Tim. Excelente.

    Caramba, l fora est chovendo e escuro. Molly vi-via umas ruas mais frente, mas os tnis ficaram ensopa-dos quase instantaneamente, amolecendo as meias. Quando chegou casa de Molly, o cabelo estava colado cabea e a chuva gotejava dos culos.

    Ol, Farrusco Tim saudou o gato cinzento empoleirado numa vedao prxima. O Farrusco era um gato vadio que Molly adotara recentemente. O que faz aqui? Pensei que os gatos no gostavam de chuva.

    O gato ignorou Tim e continuou a olhar fixamente

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    para a janela por cima deles. Havia outro gato no lado de dentro do peitoril, seco e contente, olhando para baixo.

    Tim acenou com a cabea. Oh, entendo. Bem, se te serve de consolo, tam-

    bm no posso encontrar-me com a minha namorada disse Tim ao gato. A Sra. OReilly foi bem clara. Se no me deixa falar com a Molly pelo telefone, no me deixar entrar.

    O Farrusco abanou a cauda, com os olhos amarelos ainda fixos no gato branco por cima deles.

    pena que no possa ir falar com a Molly por mim disse Tim, alisando o plo cinzento e molhado do gato. Sorriu ironicamente criatura, quando lhe ocorreu uma idia ao esprito.

    Afinal, talvez a magia me possa ajudar. Deu um passo, afastando-se do gato, examinando-o.

    Tamlin era capaz de se transformar num falco disse Tim. Talvez mudar de forma seja um dom de famlia. Afinal, o meu verdadeiro pai.

    Tim fechou os olhos para se concentrar. Tocou no Farrusco com a mente, sentindo a forma do gato, son-dando-o em busca da essncia. No queria apoderar-se do corpo do gato; queria conhec-lo, entend-lo. Assim que sentiu com o ntimo do seu ser o que era ser gato, deixou de se concentrar no Farrusco e focou a ateno interior-mente.

    Tamlin fazia com que isto parecesse muito fcil murmurou e tinha de se lembrar daquelas penas todas.

    Respirou fundo e fez com que a energia percorresse o corpo. Gato, pensou, sou um gato. Tenho bigodes e uma cauda e quatro patas. Imaginou-se com a forma de

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    um gato, imaginou os movimentos, pensou nas caracters-ticas bsicas de um gato.

    Fez esforo para no entrar em pnico quando sen-tiu uma transformao no corpo. O rosto ficou achatado, as orelhas moveram-se para cima da cabea. Sentiu um formigueiro na pele, como se corresse eletricidade nas veias em vez de sangue. O seu centro de gravidade mu-dou, fazendo-o inclinar para frente, mas no caiu pou-sou com as quatro patas.

    Ento, todo o seu corpo sentiu um intenso e insu-portvel comicho, um comicho estranho e, no momen-to em que pensou que o corpo ia explodir, brotou plo na pele.

    Enquanto o corpo mudava dramaticamente de forma, Tim tambm sentia mudanas interiores. Os sen-tidos ficaram mais apurados, os cheiros e os sons provo-caram-lhe arrepios de excitao. Os pensamentos sobre o passado e o futuro pareceram dissipar-se, o seu nico in-teresse era o momento.

    Uh, oh, pensou. Esta transformao talvez seja mais completa do que imaginava.

    No se perca por completo, admoestou-se. Vai precisar de se lembrar quem e como fez isto, para poder voltar a ser o que era.

    Voc Tim Hunter! declarou. S que saiu um Miiaaauuuuu! Agudo.

    Os olhos de Tim arregalaram-se. Olhou para baixo e viu patas. Patas!

    Conseguira. Era um gato!

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    Captulo Dois

    Nada mau pra primeira tentativa! exclamou,

    fazendo sons ronronantes de triunfo. Os culos caram no cho. Os focinhos dos gatos

    no so feitos para culos, suponho, pensou Tim. O nariz demasiado achatado, e as orelhas esto no lugar errado. Pestanejou e percebeu que via melhor do que quando u-sava culos. Os gatos tm uma viso excelente. como se fosse equipado automaticamente com lentes de contado.

    Um miado terrvel chamou-lhe a ateno. Farrusco, qual o problema? Ficou confuso

    com os dentes arreganhados e as orelhas espalmadas do Farrusco. Tim aproximou-se e o Farrusco fez um som sibilante.

    Ento, Tim entendeu olhava Farrusco nos olhos e o Farrusco estava em cima de uma vedao! Tim transformara-se mesmo num gato... s que ainda tinha o tamanho de um humano! No era de admirar que o pobre gato estivesse apavorado. O plo estava to eriado que parecia redondo como um balo.

    Ento, fiz um pequeno erro de clculo. Tim examinou uma vez mais o Farrusco. O dorso do gato es-tava arqueado como uma criatura numa banda desenhado do Dia das Bruxas. Est bem, talvez no tenha sido pequeno. Mas, eh, tem d! Fiquei com a parte mais dif-cil... sou um gato, por favor. Acertar no tamanho seria mais fcil do que comear do nada!

    Tim concentrou-se de novo, pensando em enco-lher, ficar compacto. O plo ficou eriado, e sentiu um

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    formigueiro no corpo mais uma vez. Pouco tempo depois ele e Farrusco tinham o mesmo tamanho.

    O Farrusco ainda estava muito desconfiado. Ser que no cheiro bem? Interrogou-se Tim, quando o Far-rusco miou e fugiu.

    Foi alguma coisa que eu disse? gritou Tim ao gato, que desaparecia. Mas s saiu um Miaaauu?

    Est na hora de pr o plano em prtica, decidiu Tim.

    Hora? O que foi aquilo? perguntou uma voz na ca-bea de Tim. A voz soou como a de Tim, mas era mais suave e lnguida.

    Est na hora de comer uma coisa boa? Algo macio onde me deitar? perguntou a voz.

    No, no, nada disso replicou Tim. Por que somos dois aqui?

    Que raio voc? perguntou a voz. Tim notou que rolava os erres; fazendo um ronrom, e ele comeou a ter uma idia daquilo que estava acontecendo.

    Sou eu disse Tim voz. O garoto de treze anos.

    Ento, quem sou eu? No repita o que digo, mas tenho certeza de que

    veio com o corpo. Deve ser o Gato. Todo gato. Isto pareceu satisfazer a voz. Quando me d de, comer? perguntou Tim-Gato. Mais tarde. Agora vamos visitar a Molly. En-

    caminhou-se furtivamente para a porta dos fundos da casa de Molly.

    Molhado. Est demasiado molhado, pensou Tim-Gato.

    Deveras concordou Tim.

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    Prefiro as patas secas. No so as tuas patas replicou Tim. So

    os meus ps. E se tm de ficar molhados, ento ficaro molhados.

    timo, concordou a parte de gato. Quando vai me dar de comer?

    J te disse. Mais tarde. Tim passou pela pe-quena portinhola para os gatos no painel do fundo na porta dos fundos.

    Foi um deslize admirvel. o maior. D-me de comer agora?

    No tente me bajular. No estamos aqui para comer, estamos aqui para falar com a Molly. Subiu as escadas at o quarto dela e entrou sorrateiramente.

    Aqui no tem ningum. Estou vendo disse Tim, com brusquido. O

    quarto da Molly estava ainda mais desarrumado do que o de Tim, apesar dos montes de roupa espalhados no cho, dos livros, dos cadernos, das mochilas e dos tnis, Tim pde ver que o quarto era efetivamente a zona franca de Molly.

    Por que no est aqui? Tim sabia que ela foi castigada como ele, provavelmente com regras mais rgi-das. Calculava que os pais no a tivessem posto apenas em priso domiciliar, mas tambm a obrigassem a cumprir pena na solitria, fechada no quarto.

    Tim viu a janela aberta e a corda grossa amarrada cama de Molly.

    Saiu pela janela percebeu. E aposto que foi me procurar! Provavelmente est neste momento em minha casa, sem saber onde estou.

    Tim-Gato bocejou, fazendo com que Tim pergun-

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    tasse a si mesmo quem controlava efetivamente aquela forma. Quem quereria sair numa noite fria e chuvosa co-mo esta? pensou Tim-Gato. A parte de gato levou-o a sal-tar para cima da cama de Molly, a esticar as garras e co-mear a arranhar o agasalho de l.

    Pra ordenou Tim a Tim-Gato. Temos de ir procura da Molly. O fato de ter visto a corda ga-rantiu-lhe que ela sara do quarto sem ajuda, pelo menos. Aquilo no parecia uma sada induzida por um demnio.

    A cauda de Tim-Gato abanou de irritao. Mas est to bom, quente e seco, e h uma tigela de

    Boletas de Gato no cho! Tim usou toda a concentrao e fez com que o seu

    corpo de gato saltasse da cama, descesse as escadas e sas-se pela portinhola. A chuva caiu no plo, fazendo-o tiritar.

    Isto uma idiotice. Correr para cima e para baixo na chuva. Sem parar para comer.

    Bem, seja como for, isso que estamos fazendo retorquiu Tim. Alm disso, essa comida para o Farrusco.

    Por que d ordens? Porque voc nem sequer um gato disse

    Tim. apenas a forma dentro da qual eu estou. Abanou a cabea. Bolas. Tenho passado quase toda a vida a discutir comigo mesmo, mas nunca foi nada que se parecesse com isto!

    Tim percorreu as ruas molhadas, mantendo-se per-to dos muros, tentando passar por entre as gotas de chu-va. O corpo de gato detestava ficar molhado. Cheiros in-teressantes das altas latas do lixo, que se erguiam por cima dele, distraiam de tempos em tempos o estmago de gato esfomeado, mas Tim conseguiu levar o seu eu de gato ra-

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    pidamente para casa. S que Molly no estava l. No estava na frente,

    nem nos fundos, nem na calada tentando descobrir uma forma de entrar. Tim trepou em uma rvore e espreitou pela janela. Tambm no estava l.

    Pensei que tinha dito que ela estava aqui. Pensei que estaria replicou Tim. Se ainda ti-

    vesse um rosto humano, estaria a franzir a testa de desa-pontamento. Molly infringira regras rgidas, fugindo sor-rateiramente. Quem queria ver para as infringir, se no era ele? O que estava fazendo?

    Saltou para o cho. Tem muito que aprender sobre a aterrissagem.

    Chama isso de pulo? Pode ficar calado? Estou tentando decidir o que

    fazer. Agora vamos fazer uma sesta e lanchar. O nariz do

    gato ergueu-se no ar. Cheira-me a hambrguer. Tenta farejar para ver se descobre o rastro da

    Molly e no de comida disse Tim. No sou co. No sigo rastros. Alm do mais o

    gato aproximou o focinho do passeio aqui no h ne-nhum cheiro da Molly.

    Como que vou encontr-la? Pode estar em qualquer lugar.

    No precisamos ficar na chuva. O corpo do gato saltou para baixo de um carro estacionado. Assim me-lhor.

    No vamos encontr-la aqui em baixo pro-testou Tim. No podemos ver nada a no ser poas de gua!

    Mas estamos secos.

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    Ajudaria ter um daqueles helicpteros das re-portagens, como aqueles que tm na televiso. Podamos ter uma vista de toda a cidade e descobri-la.

    H lama nas minhas patas. No gosto de porcaria. Subitamente, Tim sentiu-se inspirado.

    Cala-se ordenou parte de gato, enquanto elaborava um plano. Saiu de baixo do carro. Preciso de me concentrar.

    No me mande... Estou falando srio! A menos que queira ficar

    com asas na cauda! O qu? Tim pde sentir a estupefao do gato e tirou par-

    tido da mudez momentnea. Fez com que uma onda de energia lhe percorresse o corpo, deixando-a assentar ao longo da espinha. Visualizou um par de asas a crescer nas costas.

    Asas murmurou. Quero asas. Ouviu-se a soltar um miado estridente e puf!

    Quando deu conta, tinha um par de asas fortes. Olhou para os lados para v-las. Uau! Estou ficando um s comentou. So

    asas de roedor, queixou-se Tim-Gato. Suponho que sim disse Tim. Parece que

    asas de morcego se cravaram na cabea. Como se atreve a me pr asas! O gato torceu o

    corpo, como se pudesse arrancar as asas. O plo ficou todo eriado da fria.

    Preferia ter asas de pssaro? perguntou Tim. Nunca nos mantero no ar. Estas pequeninas nos da-ro a viso geral que precisamos. Bateu as asas. Fize-ram um som agradvel, vussh.

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    Muito bem, preparar para a descolagem. Respirou fundo. Os avies zumbem ao longo da pista para ganhar velocidade suficiente para descolar. Tentarei a mesma tcnica.

    No posso te persuadir? No olhou para um lado e para o outro da

    rua deserta. O tempo e aquela hora da noite tornara-a de-serta: nem pees, nem carros. Podemos descolar. Pre-parado... Tim acocorou-se, preparando-se para saltar. A postos... Abanou o traseiro de gato. Partida! Desatou a correr pelo meio da rua. No meio do quar-teiro comeou a bater as asas. Sentiu erguendo-se do cho. Bateu-as com mais fora. Momentos depois Tim sobrevoava a cidade.

    Uoou-uou! Olhou para a vista magnfica dos prdios encharcados pela chuva, das ruas e das luzes por baixo dele. Sou um garoto, um gato e um morcego. E falam de desdobramento de personalidade!

    No nos meus sonhos mais loucos... ou pesade-los..., a voz do gato arrastou-se, incapaz de concluir o pensamento.

    Tim percebeu como se sentia a parte de gato. A magia de tudo aquilo era avassaladora. Era surpreendente e completamente bizarra e assustadora e excitante si-multaneamente. Bateu as asas com mais fora e comeou a viagem em busca de Molly.

    Um garoto chamado Daniel, ostentando o traje e a

    fuligem de um limpador chamins vitoriano, estava sen-tado num telhado de Londres, indiferente chuva. A es-curido condizia perfeitamente com o seu estado de esp-rito.

  • 21

    Oh, Marya suspirou, tristemente, como fazia muitas vezes. Por que no consigo esquec-la? S quero consertar as coisas, mas como.

    Nunca quis fazer mal a Marya ou assust-la, mas foi justamente isso que fizera. Depois de ter deixado o mun-do deles, o Pas Livre, e decidido ficar naquele, Daniel pensou que enlouqueceria com as saudades. Por isso, se-guira-a at ali e fizera uma trapalhada.

    Cerrou os punhos e bateu nas pernas. Se no tivesse sido to ciumento censu-

    rou-se. Mas foi, cego por uma raiva to forte que cometeu loucuras. Culpou aquele mgico, Timothy Hunter, de ter roubado Marya. Tentou matar o sujeito, na verdade, e tambm criticou Marya.

    Agora que estava sozinho h semanas, vagueando por Londres, sem ningum com quem falar e com muito tempo livre, compreendia que estava errado. Em relao a tudo.

    Ser que o desgraado conseguiu sair dos tneis? murmurou, tiritando com a chuva. Tudo o que o m-gico fizera foi tentar ajud-lo e como que Daniel lhe a-gradecera? Deixando Tim afogar-se nos tneis, foi o que fez. Como poderia enfrentar Marya depois de lhe pregar uma pea como aquela? Agora, certamente que o odiava. Prometeu a si mesmo que no se aproximaria dela at es-tar completamente bem, ser suficientemente bom para ela. E no sabia se alguma vez estaria.

    Mas era to duro saber que ela estava longe, em al-gum lugar. A prpria cidade de Londres era dura. Queria proteg-la, embora soubesse que talvez estivesse a passar muito melhor do que ele. Tinha amigos. Ele tinha... o qu? Pombos que lutavam por um pedao de telhado seco.

  • 22

    Tudo o que podia fazer era imaginar o seu rosto suave, bonito, e isso consumia-o, deixando-o to vazio por dentro que nenhuma comida podia ench-lo. Seria agradvel se pudesse ter companhia, talvez algum que o conhecesse, que lhe sorrisse e o deixasse falar ou ficar ca-lado conforme quisesse. Como fazia Marya l no Pas Li-vre. Mas...

    A sua litania de mgoas e recriminaes foi inter-rompida por uma viso surpreendente. Um estranho mo-vimento por cima dele atraiu-lhe a ateno. Olhou para cima e ficou boquiaberto.

    Diabos me levem! exclamou Daniel. Um gato voador florescente.

    Levantou-se, com os olhos a seguirem a estranha criatura, e percebeu um pormenor espantoso como se um gato voador no fosse suficientemente espantoso.

    O plo do gato est seco. No est chovendo na criatura.

    Soltou uma gargalhada estridente. Aquilo magia, se alguma vez a vi! Se aquele

    gato-morcego-pssaro Timothy Hunter, ento no pro-voquei a sua morte! Talvez tenha sobrevivido! Ooooh... preciso ter certeza.

    Daniel saltou por cima da beira do telhado e pou-sou na escada de incndio, com um rudo surdo.

    E talvez percebeu, com o corao a palpitar enquanto descia os degraus de metal , talvez saiba onde est Marya.

  • 23

    Captulo Trs

    Tim tinha esperana de encontrar Molly em breve.

    Estava ficando cansado. Foi necessria muita energia para manter sossegada e contente a parte gato, repelindo a chuva, e voar era duro.

    Esta distribuio de peso est errada quei-xou-se Tim, quando tentou desviar-se dos ramos mais al-tos de uma rvore na entrada do parque.

    Devia ter-me escutado. Os gatos ficam no cho. J percebi, est bem? Tim fez passar o corpo

    de garoto-morcego-gato por cima da copa das rvores. Agora percebo porque os gatos no tm asas. A parte posterior pesada demais.

    O meu traseiro perfeito. Espera. Parece que estou vendo. Tim bateu

    as asas com fora e voou em direo a uma rvore gigan-tesca no centro do parque. Debaixo dela estavam sentadas duas garotas. Uma garota era um pouco mais velha do que Tim, com cabelo ruivo e comprido e rosto delicado... Marya. A outra garota era da sua idade, com cabelo escuro e forte, usava jeans, camiseta e umas botas pesadas. Era Molly. As duas garotas estavam muito juntas, tentando manter-se secas por baixo dos ramos da enorme rvore.

    L est ela! exclamou Tim. Os olhos de gato ajudavam-no muito, distinguindo os movimentos mais tnues e as criaturas por baixo dele.

    Preparou-se para a aterrissagem, com a parte de gato evitando pousar as patas no solo encharcado e enla-meado.

  • 24

    Controle-se ordenou Tim. Voc um ga-to! Um animal. suposto que esteja na lama e nesse tipo de coisas.

    O focinho do gato fungou. Deve estar me confundindo com aqueles ces hor-

    rveis. Seja l o que for. Tim caminhou sorrateira-

    mente na direo de Molly e Marya, esperando com ansi-edade pelo momento surpreendente em que se transfor-maria na frente delas. Seria um truque impressionante!

    No que sentisse que devia impression-las muito menos Molly. Mas seria legal demonstrar algo es-petacular, agora que j ia dominando a magia. Tambm seria agradvel mostrar a Marya que a magia podia ser mais do que demnios, ser raptada e ficar de castigo.

    Antes, contudo, queria livrar-se das asas. Eram to incmodas, e calculou que as garotas ficassem apavoradas se um hbrido de gato e morcego comeasse a fazer pa-lhaadas na frente delas.

    Assim que as asas desapareceram, a parte de gato de Tim ronronou.

    Muito melhor. Agora vamos comida? Chiu! Fique srio comentou Tim. O que seria

    to importante que levara Molly a fugir s escondidas de casa para se encontrar com Marya no meio da noite? De-cidiu ficar escutando por uns instantes... no propriamente a bisbilliotar... s para ter certeza de que no interrompia uma conversa embaraosa entre garotas.

    Ento, que acha que devo fazer? dizia Molly. Devo contar ao Tim?

    As orelhas pontiagudas de Tim arrebitaram-se. Contar-lhe o qu?

  • 25

    O que te impede? perguntou Marya. Nunca lhe escondeu um segredo, no ?

    Claro que no disse Molly. Mas este to importante. Quero contar, mas tenho medo. No sei o que far.

    O que quer dizer? o Tim. Far o que for cer-to.

    Mltiplas emoes apoderaram-se de Tim. Choque por Molly estar escondendo alguma coisa. Orgulho por Marya presumir que ele trataria bem disso. Medo. Porque Molly tinha medo. Molly solto um suspiro de desespero e levantou-se.

    Ouviu bem o que eu estive dizendo? Imagina esta breve conversa. Ps-se como se estivesse a falar com um Tim invisvel.

    Oh, Tim, que simptico ter trazido chocolates. Como sabia que eram os meus prediletos? disse ela, efusivamente. A propsito, h uma coisa que queria contar-lhe. Aquele drago, que encontramos na Terra dos Brinquedos dos Demnios... era voc! Fez um sorriso rasgado, manaco, como se estivesse excitada com aquilo que dizia. Oh, sim, tivemos uma conversa animada enquanto voc se armava em cavaleiro disse, com uma voz melada.

    Disse que ele... voc... vendeu as recordaes a demnios para ter cada vez mais poder.

    Tocou no queixo com o dedo como se tentasse lembrar-se da conversa.

    Ah, sim, e o Tim do futuro disse-me que me amava tanto que fizera centenas de cpias de mim. Isso mesmo! E no apenas que... oh, alegria... me mantinha presa para ser treinada para me tornar a sua esposa perfei-

  • 26

    ta. Tim estava demasiadamente chocado para se me-

    xer. Marya comeou a dar risadinhas e Molly lanou-lhe um olhar furioso.

    Desculpa disse Marya, tentando controlar o riso. Sei que um assunto muito srio, mas a forma como fala, com caretas e tons de voz diferentes, to en-graada.

    Engraada? repetiu Molly. Foi engraado quando o Daniel ficou maluco e quase te bateu? No! Fi-cou perturbada e triste... e nem sequer gosta do Daniel como namorado.

    Os ombros de Molly tombaram. Pensa na minha situao disse ela, suave-

    mente. Saber que Tim se pode tornar demonaco e querer transformar-me numa coisa infeliz. Esse pode ser o futuro. srio.

    Como isto pode estar acontecendo? disse Tim para si mesmo. Como pode dizer estas coisas?

    Foi voc que insististe em vir. Acho que vou ficar agoniado murmurou

    Tim. A erva ajuda. Come um pouco. Tim sentia-se como se o crebro fosse rebentar. Cale-se! Voc no entende. Entendo muito de erva. de mim que a Molly est falando. De mim!

    O corao batia violentamente por baixo do plo de gato. No podia crer que aquilo que a Molly dizia fosse verdade, mas sabia que ela no mentiria. Precisava ouvir mais, por isso aquietou os pensamentos de gato e tentou prestar a-teno, apesar dos sentimentos torturados.

  • 27

    Desculpa disse Marya. Levantou-se e cin-giu os ombros da Molly com o brao. Sei que isso terrvel.

    Molly acenou com a cabea e Tim percebeu que no estava furiosa com Marya. Apenas aborrecida.

    No sei o que seria pior disse Molly. Contar ou no contar. E devo romper com ele por causa de uma coisa que pode acontecer?

    Romper comigo? Tim sentiu um n na gar-ganta felpuda e ficou contente com o fato dos gatos no poderem gritar.

    Pode acontecer? Quere dizer que no defini-tivo? perguntou Marya.

    O drago disse-me que era possvel que ele crescesse e fizesse aquelas coisas disse Molly. O futuro pode ser mudado.

    Bem, ento isso bom! disse Marya. Cer-to?

    A cauda de Tim abanou. Sim! Certo! O futuro pode ser mudado! Ento,

    vamos mud-lo. Certo balbuciou Molly. E o Tim prome-

    teu-me acrescentou, com o rosto um pouco mais ani-mado. Prometeu que nunca faria acordos com dem-nios. Isso consertaria tudo.

    Sim, claro. Uma voz gutural riu perto de Tim. Uma mulher alta saiu de trs dos arbustos e aproxi-mou-se das duas garotas. E os homens cumprem sem-pre as promessas. Principalmente aqueles que fazem com a tenra idade de treze.

    As duas garotas olharam para a mulher de boca a-berta, e Tim tambm. Era deslumbrante. Uma brasa talvez

  • 28

    fosse a palavra que os garotos da sua turma teriam usado para descrev-la. Envergava um macaco de couro, sem alas e muito justo, que lhe realava as curvas. O delinea-dor, preto e grosso, fazia com que os olhos verdes pare-cessem enormes, e o cabelo louro estava amarrado num rabo-de-cavalo. Intensa foi a impresso que causou em Tim. Trazia uma gaiola, que fez com que sentisse mais curiosidade em saber quem era e o que fazia no parque na chuva. E por que razo resolvera meter-se na conversa de Molly e Marya.

    Tim aproximou-se sorrateiramente. Tanto ele como a parte de gato ficaram intrigados com aquela desconhe-cida, embora talvez tivesse sido o pssaro na gaiola que atrara o gato. Usando a excelente viso, pde ver que Marya estava intrigada com a mulher e que Molly estava alerta. Tim confiava no bom senso de Molly.

    Ol disse Marya. Sou a Marya, esta a Molly.

    A mulher acenou com a cabea. Dainas cumprimentou-as, com um sorriso.

    No era minha inteno interromper a sua conversa. Pensei que talvez pudessem se beneficiar com o conselho de uma pessoa mais velha e talvez mais sbia.

    Refere-se a si mesma? Molly deu uma passa-da de olhos demorada na mulher. No me parece que uma pessoa sensata usasse uns saltos to altos.

    A mulher riu. Gosto de voc. espevitada. Estvamos falando do namorado da Molly

    explicou Marya. Tim viu Molly cerrando os dentes: tinha certeza de que ela no queria que aquela mulher metesse o nariz na sua vida pessoal. No era o seu estilo.

  • 29

    Deduzi disse a mulher. Suponho que ele mgico. Bom, mau ou estpido?

    Molly ps as mos nas ancas. Estpido, o que quer dizer? perguntou. De-

    pois abanou a cabea. Esquea. Anda, Marya, vamos embora.

    Ora, ora, no vo embora disse a mulher. Afinal, ainda no resolvemos o problema do teu namora-do. Pousou a gaiola. Vejamos se posso fazer alguma coisa em relao ao tempo, est bem?

    Tim arregalou os olhos quando a mulher inclinou a cabea para trs e ergueu os braos para o cu. Os lbios mexiam, mas mesmo com o ouvido apurado de gato, no conseguiu entender o que ela dizia. Enquanto a mulher cantava suavemente, comeou a cintilar, e Marya agarrou a mo da Molly. As garotas, estupefatas, deram uns passos atrs, com os olhos sempre fixos na mulher.

    O claro irradiou da mulher e espalhou-se no ar em volta dela. Quanto mais se afastava dela, menos intenso se tornava.

    Est usando aquela energia para afastar dela a chuva murmurou Tim. Podia fazer aquilo para manter seco o seu corpo de gato, mas a mulher evitava que a chuva casse no parque inteiro. Possui uma magia po-derosa percebeu. Significava que Molly e Marya corri-am perigo? No sentia perversidade nela, mas tudo era possvel.

    Pouco tempo depois, a mulher deixou de brilhar. Baixou os braos e sorriu para as garotas.

    Muito melhor. O lugar melhor assim para conversas de garotas, no parece?

    Curvou-se e abriu a gaiola. Tirou o pssaro e colo-

  • 30

    cou-o na palma da mo. melhor para ti, tambm disse ao pssaro.

    O pssaro fitou-a nos olhos, depois levantou vo, subindo atrs das folhas de uma rvore alta e desaparecendo.

    Como se parar a chuva fosse a coisa mais natural do mundo, sentou-se de pernas cruzadas na relva.

    Ento, Menina Molly, s entre ns, como se fossemos irms, o que se passa com o teu namorado?

    Molly olhou para ela, boquiaberta. Quem voc? A mulher fez um sorriso malicioso. Sou conhecida como a Artista do Corpo. Sou a

    princesa do conto de fadas que se livra do prncipe e se salva, depois conquista o reino sozinha. Sou a resposta para as perguntas que no so feitas naqueles concursos na Ragazza e na Cosmo. No fao mal a ningum e nunca deixo que me faam mal;

    Como fez aquilo? perguntou Marya. Bri-lhar e parar a chuva?

    Ah, uma das primeiras coisa que uma bruxa como eu aprende. Estamos muito viciadas em sistemas naturais: o tempo, as plantas, o corpo.

    Os olhos de Molly semicerraram-se. Ento boa, m ou estpida? A mulher soltou uma gargalhada gutural, grave. Touch. No te escapa nada, no ? Bem, diga-

    mos que passei muito tempo nas zonas cinzentas da vida. Vivo segundo um cdigo e sou um ser virtuoso e tico, mas h aqueles... que no gostam de mim. No tenho na-da a ver com demnios e no gosto daqueles que tm.

    Isto pareceu satisfazer Molly. Sentou-se ao lado da mulher.

  • 31

    A relva est mesmo seca! exclamou, com surpresa.

    Nunca faa nada pela metade, este um dos meus lemas.

    Marya tambm se sentou, enfiando os ps por bai-xo do vestido.

    Tem outro? A mulher encolheu os ombros. Invento-os enquanto ando por a. O que foi que ouviu? - perguntou Molly Que o teu namorado mgico pode tornar-se um

    sujeito mau e, se assim for, ir domin-la. O resumo duro e simples da situao fez com que

    Molly mordesse o lbio. Tim pde ver que ela pestanejava para reter as lgrimas; e saber que era a causa do medo. O seu futuro potencialmente miservel.

    No imagino o Tim fazer-me uma coisa dessas... nunca. Ele muito meigo e gosta realmente de mim. A voz de Molly era melanclica, mas depois a expresso do seu rosto tornou-se dura. Mas conheo outras pessoas que pensavam o mesmo dos namorados e acabaram por sofrer. Sofrer muito.

    Sim... disse Marya, suavemente. Tim sabia que estava pensando em Daniel. Daniel era louco por Marya mas, mesmo assim, tentara fazer-lhe mal.

    Pensei contar-lhe tudo o que o seu eu do futuro me disse prosseguiu Molly , contar-lhe tudo, sem rodeios. Mas j tem tanto com que se preocupar desde que aconteceu aquela coisa da magia. E sentiu-se pssimo por aqueles dinossauros nojentos terem me raptado.

    Molly suspirou e afastou o cabelo escuro do rosto perturbado.

  • 32

    Tambm pensei dizer-lhe que nunca mais posso v-lo. Mas no isso que eu quero. No quero desistir. Alm disso, no seria justo. Ainda no fez nada de mal.

    Aquele drago devia ser convincente, percebeu Tim. Ainda lhe custava entender as implicaes daquilo que ouvia. Como podia acreditar que quando fosse mais velho faria coisas terrveis, incluindo fazer Molly sofrer? Molly no estaria to perturbada se no acreditasse que podia ser verdade. E se ela tivesse razo, como poderia viver com esse peso na conscincia?

    Creio que h outra razo para estar to confusa disse Marya. Teme que se romper com o Tim, isso faa com que fique louco e perverso.

    Molly acenou com a cabea, depois ergueu os joe-lhos at o peito. Apertou os joelhos com os braos e pousou a testa neles, por isso Tim deixou de ver o seu rosto.

    Marya virou-se para a Artista do Corpo. Foi isso que aconteceu comigo e com o Daniel

    explicou. Era sempre simptico comigo. At que percebeu que eu no queria ser namorada dele. Ento, ficou...

    Subitamente, Daniel saiu de trs dos arbustos. Desculpa, Marya! exclamou ele. Daniel! balbuciou Marya. O plo de Tim eriou-se e uma rosnada baixa soou

    na garganta de gato. Por experincia, Tim sabia que Daniel podia ser perigoso; a parte de gato respondeu ao garoto perturbado por instinto.

    Te amo, Marya Daniel apressou-se a dizer. Lamento o momento em que gritei contigo e quase te bati. Quero acertar tudo contigo para voltarmos a ser co-

  • 33

    mo ramos antes. Molly estava de p e meteu-se no meio de Daniel e

    Marya. Ei, afaste-se, garoto. Daniel ignorou-a e continuou a falar com Marya

    por cima do ombro dela. Tem que me perdoar, Marya. E aceitar-me de

    novo... seno me mato disse ele. Mas no posso te aceitar, Daniel replicou

    Marya. Para comear, nunca foi meu namorado. Eu nunca fui tua namorada. isso que no entende.

    Tim viu perpassar raiva no rosto do garoto. Se no quiser me amar, eu... eu atiro-me no rio e

    morro afogado. Controle-se disse Molly. Por que no ou-

    ve? E se voc no se metesse onde no chamada?

    respondeu Daniel. Tim aproximou-se mais, acocorando-se, preparan-

    do-se para saltar. Nesse preciso momento, a Artista do Corpo estendeu o brao e agarrou-o pelo cangote. Ficou demasiado surpreendido para miar.

    Ei sussurrou ela nas orelhas de gato, quando lhe acariciou a cabea. Para qu tanta pressa? Ele no vai fazer nada at explorar ao mximo esta cena melodra-mtica.

    Ela segurou o gato de forma a ficarem frente a frente, olhos nos olhos.

    Gato. Dou-lhe o nome Gato disse ela. Do nariz cauda. Dos bigodes s patas. Gato. Garras para dentro. Mente vazia. Boca fechada. Gato.

    Tudo aconteceu muito depressa. Tim no conse-

  • 34

    guia desviar os olhos dos olhos verde-claros. Sentiu-se levemente tonto. Pestanejou e olhou fixamente para a ce-na frente dele. Garotas, pensou. E um garoto. Nenhuma comida.

    Hah! A Artista do Corpo sorriu afetadamen-te. Tem muito que aprender, garoto. Tem que ser cui-dadoso quando andar por a mudando de forma, Tim-Gato. Pode ficar preso ao nome e forma. Assim.

    Enfiou-o rapidamente na gaiola e trancou a peque-na porta.

    Agora, deixa de abanar a cauda, gatinho. Ficarei contigo. Preciso fazer umas alteraes neste pequeno drama nossa frente.

    Isto entre eu e a Marya disse Daniel a Mol-ly, com uma voz sibilante.

    Vai ser entre voc e os meus punhos se no pa-rar de nos apoquentar disse Molly.

    Daniel baixou a cabea e o corpo curvou-se. Estraguei tudo. Marya colocou a mo no brao de Molly. Ele parece diferente. Mais triste e menos... Homicida? Molly concluiu a frase por ela. Acho. No creio que nos faa mal. No confio nele resmungou Molly. Isso porque ele ainda no digno de confiana

    disse a Artista do Corpo. Como pode ser? uma ofensa ambulante.

    O qu? perguntou Daniel, com os olhos de novo inflamados. Agora h outra pessoa com uma o-pinio?

    Daniel! declarou a Artista do Corpo. Afastou os ps e olhou fixamente para ele. Luz brilhou volta de-

  • 35

    la, e os trs garotos fitaram-na. Molly protegeu os olhos do claro ofuscante.

    Raios de luz branca projetaram-se da mulher na di-reo de Daniel, erguendo-o do cho.

    Ponha-me no cho! berrou. Deixe-me em paz! Nunca quis fazer mal a ningum.

    O que est fazendo? gritou Molly. A Artista do Corpo pousou Daniel.

    Oh, queima gemeu ele, contorcendo-se de gatas. Queima.

    Daniel! gritou Marya. No lhe faa mal, por favor!

    Daniel tremeu e contorceu-se, soltando um grito de agonia, que se transformou num uivo, que se transformou num soluo. Molly e Marya olharam boquiabertas para a cena surpreendente: Daniel desapareceu e no seu lugar estava um cachorro amoroso.

    O que voc fez? perguntou Marya. Ajoe-lhou-se e o cachorro ps as patinhas nos seus joelhos. Lambeu-lhe o queixo, e Marya soltou uma risadinha.

    Dei-lhe um corpo para condizer com as suas necessidades explicou a Artista do Corpo.

    Marya levantou-se e atirou um pau para o cachorro ir buscar. Ele correu atrs dele, abanando a cauda.

    Transformou-o num co? doida? gritou Molly. Isso cruel.

    ? Como assim? desafiou a Artista do Cor-po. Recebe todos os benefcios de uma reencamao de primeira e nem sequer teve de morrer. O que tem isto de cruel?

    O cachorrinho, que fora Daniel, regressou, trazen-do o pau todo orgulhoso. Marya pegou-o.

  • 36

    Lindo cachorrinho sussurrou, acariciando-o. A cauda do co abanou violentamente.

    Olha para eles, Molly continuou a Artista do Corpo. Aquele cachorro vai ter todo o amor e carinho que sempre desejou e que lhe foram negados por toda a vida.

    Agora Marya corria em pequenos crculos, com o cachorrinho correndo alegremente atrs dela.

    A falta desse afeto que tornou Daniel frio e amargo disse a Artista do Corpo. Assim que receber amor que preencha o vazio dentro dele, poder voltar a ser humano.

    Molly revirou os olhos. Continuo a achar que isto mrbido. Agora

    pode seguir a Marya a toda a hora, e ela adorar. Mas o que lhe parece que acontecer quando for outra vez hu-mano? Molly abanou a cabea. Quero que no meta o seu nariz abelhudo na minha vida amorosa! No posso crer que lhe contei tudo sobre mim e o Tim. Se transfor-mar o Daniel num cachorro a sua idia de soluo, no gostaria de pensar no conselho que teria para mim!

    A Artista do Corpo encolheu os ombros. Muito bem. Entendo, namorada. Segue o teu

    caminho e eu seguirei o meu. A mulher pegou na gaiola com o gato l dentro e

    afastou-se. O gato gostou do ritmo cadenciado enquanto ela o transportava, mas por um motivo que no sabia ex-plicar, a cauda abanou nervosamente enquanto as duas garotas iam ficando cada vez menores atrs dele.

    Tem ali uma namorada e tanto, Tim-Gato comentou a Artista do Corpo. Talvez um dia a merea.

  • 37

    Captulo Quatro

    A Artista do Corpo levou o garoto-mgico-gato a-

    travs das ruas escuras de Londres. A chuva parara, o que lhe agradou. Significava que no teria de se dar ao trabalho de usar a sua energia para se manter seca.

    Passou por vrios bares e cafs de bomios; lojas pequenas com portas trancadas; e algumas pessoas furti-vas e vestidas de negro. No queria que dessem por ela, por isso ningum deu, apesar do aspecto atraente.

    Chegou a uma rua suja, dobrou a esquina e abriu a porta de uma loja escura. As palavras Tatuagens, Piercing e Outras Alteraes da Circe estavam gravadas na porta de vidro.

    Acendeu as luzes e pousou a gaiola com o gato em cima de uma mesa de ao inoxidvel.

    Ento, diz-me, Tim-Gato, h quanto tempo an-da por a a mudar de forma?

    O gato bocejou e girou em torno de si mesmo. Tim-Gato? Est a? Enfiou um dedo com

    uma unha comprida e pintada de violeta entre as barras da gaiola e coou o gato por baixo do queixo. Estou fa-lando com voc.

    O gato encostou o focinho no dedo e ronronou. Oh, esqueci disse a Artista do Corpo. A-

    inda ests enfeitiado. Que pateta. Desculpa. Detesto monlogos.

    Curvou-se tanto que pde fitar os olhos do gato. Gato, ouve o teu nome. Gato, acorda. De vista

    apurada. De ouvido apurado. Perspicaz. Acorda.

  • 38

    O gato abanou a cabea e, de repente, pareceu mais alerta.

    Assim est melhor declarou a Artista do Corpo. Talvez agora possamos ter uma pequena con-versa.

    Tim-Gato olhou por entre as barras da gaiola. Miaauuu! queixou-se. Quero sair. H? Os pensamentos de Tim estavam todos

    embaralhados, e sentia-se muito calmo no interior do c-rebro tonto. Os pensamentos do gato eram mais fortes e mais altos.

    Sair! Insistiu Tim-Gato. Sair imediatamente. Os o-lhos de Tim, viram, finalmente, aquilo que o rodeava. As grades, o lugar estranho. A mulher ardente do parque.

    Neste momento no parece ser uma opo explicou Tim ao gato. Mas l fora h pombos para caar-mos.

    Estamos numa gaiola, seu pateta disse Tim ou no reparou?

    O gato sentou-se nas patas traseiras e ps as dian-teiras nas grades, tentando ver os pombos empoleirados no lado de fora do peitoril.

    Mas vejo pombos para brincar. No v? Tim-Gato, no se importa? disse a Artista do

    Corpo. Gostaria de falar contigo. Ento, est a tomar algum medicamento? Tem alguma alergia? Para dizer sim mia uma vez, para no duas vezes.

    Olha! O pombo gordo voou contra a parede! Que pateta.

    A Artista do Corpo levantou a cabea e olhou para ele.

    Tim-Gato? O que se passa contigo?

  • 39

    Quero sair, insistiu Tim-Gato. Sair repetiu Tim. Como se fosse possvel um

    crebro bocejar, o de Tim bocejou. Sair. Quer ir...? A Artista do Corpo soltou uma

    gargalhada estridente. Anime-se, Tim. Est ficando todo emaranhado em pensamentos fsicos. Est deixando a parte de gato apoderar-se de ti.

    Ela bateu com as unhas cor de violeta nas grades da gaiola, depois abanou-a.

    Iuu-uu! Acorda, Tim! O movimento sacudiu Tim. O qu? perguntou. Lanou um olhar pelo

    compartimento. Vamos ver pombos, replicou Tim-Gato. Pra de falar nos malditos pombos ordenou

    Tim. No quero pensar em pssaros estpidos. Quero pensar numa maneira de sair daqui!

    Ouve, Timmy-Gatinho disse a Artista do Corpo. Eis o teu problema. Prendeu sua conscincia no sistema nervoso autnomo. Est errado.

    Vou te dizer o que est errado retrucou Tim. Ser um gato est errado. Estar aqui ... Os seus o-lhos vaguearam pela sala. Avistou uma coleo de instru-mentos e material com aspecto terrvel que imaginou que os mdicos lunticos usavam em experincias cientficas estranhas. Estar aqui um erro.

    Ei, quem mandou se transformar num gato? contra-atacou a Artista do Corpo. Mudar de forma como dirigir. No se enfia no motor para fazer com que o carro ande, senta-se ao volante. Deu-lhe outra olhada. Oh, espera. Esse exemplo no d para voc... muito novo para dirigir. Provavelmente nem sequer faz a barba.

  • 40

    Riu estridentemente e fez um sorriso afetado. A mulher fazia Tim se lembrar de algum, mas Tim-Gato ocupava muito espao no crebro para se poder lembrar quem era. Tambm reparara nisso no parque, uma carac-terstica familiar, particularmente no modo como falou com Marya e Molly.

    Seria muito injusto da minha parte estudar-te como se fosse um adulto, mas creio que tenho de fazer isso disse ela, batendo com as unhas roxas na gaiola. Depois disto provvel que no me d outra oportu-nidade de te abrir. E demasiado poderoso para ser de confiana.

    Abrir-me? O que quer dizer? Aquilo no pa-recia promissor para Tim. No lhe agradava o fato de po-der, obviamente, ler os pensamentos... tanto os dele como os do gato. Que outros estudos teria em mente?

    Mas se a Artista do Corpo ouviu estas perguntas, ignorou-as. Comeou a limpar uma mesa prxima.

    Sabe quanto tempo tive de estudar para moldar at conseguir o corpo de um gato? Mas voc... voc fez isso de improviso, no foi?

    Na altura pareceu-me uma boa idia respon-deu Tim. No me lembro, disse Tim-Gato.

    A Artista do Corpo pestanejou e ficou com ar per-plexo. Ento, os olhos semicerraram-se, com desconfian-a.

    Espera murmurou ela. Parou em frente da gaiola, a olhar fixamente para Tim.

    Tim teve uma sensao estranha na cabea, quase um formigueiro. Uma onda quente percorreu-lhe o corpo e depois tudo voltou a ficar normal.

    A Artista do Corpo ficou boquiaberta e afastou-se

  • 41

    dele. No acredito exclamou. No pediu esse

    corpo. Voc o fez. Do nada. Que poder voc tem? Os sentidos de gato de Tim perceberam o medo

    nela. Tambm lhe meteu medo, porque o seu medo estava imbudo de raiva. Andou de um lado para o outro na sala.

    Ento, os rumores sobre o teu poder so ver-dadeiros. E a tua namorada, Molly, tem bons motivos para sentir medo. Tem todo o potencial para se tornar exata-mente naquilo que ela descreveu no teu futuro.

    Ela controleu-se e aproximou-se de novo da gaiola. J no estou to preocupada por te tratar como

    um adulto. Devia tratar-te como um inimigo declarado, at que se prove o contrrio. Nunca vi este tipo de poder.

    Mas... Est na hora de dormir, gatinho. Chamado Ga-

    to. Gato preso. Tim-Gato. Dorme. Dorme agora. Tim no pde resistir. Os olhos fecharam-se e os

    msculos ficaram moles. Lindo gatinho disse a Artista do Corpo. Soou

    como um ronrom.

  • 42

    Captulo Cinco

    A Artista do Corpo deitou o gato, que dormia, na

    mesa de ao inoxidvel. Esse teu poder deve ter uma criatura interior a

    acion-lo murmurou. Ou, graas tua idade, uma fora do exterior a gui-lo. Abanou a cabea. Como convenceu aquela doce menina de que um ser humano completo? Molly parecia muito esperta. E, no entanto... Mordeu o lbio, pensando na conversa no parque. Suponho que por isso que ela se sente to preocupada. A contradio entre aquilo que sabe e aquilo que parece.

    A Artista do Corpo olhou para o corpo do gato modificado, tentando adivinhar que espcie de pessoa es-taria dentro dele.

    O que voc ? perguntou criatura adorme-cida. Algum instrumento criado pelos demnios? Um deus demonaco? Bem, descobrirei agora.

    Estendeu a mo e um instrumento cirrgico cinti-lante apareceu nela. Era imaterial, feito apenas de energia, mas podia segur-lo com firmeza.

    Posicionou o instrumento por cima do gato. Agora vejamos o que podemos descobrir aqui. Usando o instrumento mgico, abriu o corpo do

    gato, meteu a mo e extraiu uma forma estranha. Era o eu interior de Tim com a Camiseta e os culos.

    No uma m imagem de si prprio, pensou, er-guendo-o para examin-lo. E est repleto de eletricidade pois se tem de se associar s foras das trevas, isso a-inda no aconteceu.

  • 43

    No entanto, tinha certeza de que o potencial para o mal devia estar l. S precisava procurar.

    Arrancou o eu estranho de Tim forma do gato e, quando fez isso, a forma do gato ondulou, depois entrou novamente no garoto, como acontecera anteriormente.

    Adeus, gatinho disse a Artista do Corpo. Examinou rapidamente o corpo normal de Tim, depois colocou o eu estranho noutra mesa para iniciar o seu tra-balho.

    Bisturi ordenou, e um instrumento saltou para a mo dela. Olhou rapidamente para ele. No voc. Aquele com o punho isolado.

    Ela comeou a cortar o corpo etreo. H. estranho. Nenhuma resistncia. En-

    quanto continuava a trabalhar, ia ficando cada vez mais admirada.

    No entendo. J devia ter atingido alguma escuri-do, se ele vai crescer para se transformar no monstro que a Molly descreveu. Alguma coisa deve estar errada. Pou-sou o instrumento e bateu com as unhas compridas na mesa de ao. Bem, podia ser um caso de bestialidade inte-rior, suponho. Pelo menos isso pode consertar-se.

    Sonda do corao ordenou. Um dispositivo com aspecto macabro materializou-se no ar frente dela. No abra o corao. Pelo menos por enquanto mandou. Nem o arranhe. S quero v-lo bem. Corta uma janela.

    O instrumento fez o trabalho. Pairou a uns cent-metros da cabea do corpo flutuante e etreo de Tim e, quando o corao de Tim foi mostrado, a Artista do Cor-po caiu no cho, inundada pela luz que o garoto irradiava.

    Timothy Hunter sentiu frio. Abriu os olhos e pes-

  • 44

    tanejou vrias vezes, tentando entender o que se passava. Os culos tinham desaparecido, por isso as coisas estavam um pouco toldadas, como estava o crebro. Esfregou os olhos e viu uma coisa uma coisa importante.

    Mos disse, com voz empastada. J tenho mos outra vez.

    Rolou e avistou a mulher loura do parque, sentada numa cadeira na frente dele.

    Quem voc? E o que me fez? Ela fitou-o com os olhos verdes e enormes. Uh, menina? Tudo bem? perguntou Tim,

    com nervosismo. um garoto murmurou ela. Apenas um

    garoto. Bem, podia ter-lhe dito resmungou Tim.

    Poupava-lhe muito trabalho. No compreende disse a mulher. O que h para compreender? Sei que me meteu

    numa gaiola! Quando Tim se sentou, fez a descoberta surpreendente de que estava sem roupa. Quando... e como aconteceu isto?

    Enxugou-me com uma toalha? Sentiu-se co-rar, e no sabia se estava mais humilhado com o fato de ter sido visto sem roupa ou pela voz soar como um guin-cho quando gritava com ela.

    A expresso da mulher passou de espantada a di-vertida.

    Pra de corar disse. Levantou-se e espregui-ou-se, distendendo os msculos como se estivesse sen-tada h muito tempo. Estive sempre com os olhos fe-chados.

    Esteve?

  • 45

    Bem, no, mas no precisa ficar embaraado. Sou uma profissional.

    Oh, genial zombou Tim, apertando a ponta da toalha. Isso torna tudo muito melhor. Uma profis-sional de qu?

    Artista do Corpo. Acenou com a mo na di-reo dos posters atrs dela de pessoas com muitas tatua-gens.

    Tim no percebia o que que as tatuagens tinham a ver com a presente situao ou a magia que a vira exe-cutar no parque.

    No vejo nada de artstico em hipnotizar pesso-as enquanto so gatos argumentou ele. Ou tran-c-las em gaiolas ou tirar-lhes a roupa.

    No tirei suas roupas retorquiu a Artista do Corpo, com um sorriso irnico. No vestia nada quando fez o truque do gato.

    Tim abriu a boca, depois voltou a fech-la. Estava preso ali. Os jeans, a Camiseta, os tnis e os culos ainda deviam estar na vedao atrs da casa da Molly, onde fi-zera a transformao.

    Seja o que for. No h desculpa para... A Artista do Corpo interrompeu-o. - Ouviu o que a Molly disse no parque. Desco-

    briu que pode vir a ser uma pessoa que far coisas terr-veis. No apenas a ela, mas tambm ao mundo. Trouxe-te para c para impedir que isso acontea.

    Tim olhou fixamente para ela. Isso possvel? Ela soltou uma gargalhada sinistra. Bem, o problema que todas as minhas teorias

    estavam erradas. Sou uma feiticeira honesta, mas voc

  • 46

    um indivduo nico. Por isso, a tcnica que tencionava usar no dar certo.

    Porqu? Por vrios motivos. A Artista do Corpo sen-

    tou-se de novo na cadeira e ps os ps em cima de uma das mesas, cruzando os tornozelos enfiados em botas. Para comear, posso ter escrpulos duvidosos, mas tenho um cdigo. Nunca alteraria um no-demnio sem o seu consentimento.

    A postura dela fez com que Tim se lembrasse com quem se parecia: John Constantine. John era um dos des-conhecidos da Brigada dos Encapotados que mostrara pela primeira vez a Tim o mundo da magia. Tim simpati-zara muito com John, e os modos bruscos, a mentalidade obscura e a arrogncia daquela mulher eram muito pare-cidos com os de John.

    Quando descobri que no era perverso por na-tureza continuou ela , pensei que talvez fosse um problema animal, interno.

    H? As sobrancelhas de Tim levantaram-se. Muitas pessoas tm uma espcie de interior a-

    nimal explicou a Artista do Corpo. No me per-gunte porqu. Para a maioria, faz parte do corao ou da alma, e no tem de ser mau. Mas noutras, os seus animais consumiram a Humanidade... treparam sorrateiramente para cima dela enquanto no estava olhando e devora-ram-na, tornando-as perigosas. Pensei que se pudesse descobrir a sua besta, podia for-lo a enfrent-la. E a domestic-la.

    O que teria acontecido se no pudesse ser do-mesticada?

    Teria arrancado suas presas ou as garras re-

  • 47

    plicou a Artista do Corpo. Mas no interessa. No h nenhum animal dentro de ti.

    O corao de Tim ficou destroado. Ento, esse eu perverso do futuro ainda pode

    surgir. E a Molly ainda corre perigo. Aquilo que ser baseia-se nas opes que fizer e

    da forma como usar a tua magia disse-lhe a Artista do Corpo. E, uma vez que no tem nenhum mal interno, no posso alterar nenhum aspecto sem obter o teu con-sentimento.

    Ela soltou um longo suspiro de frustrao. D uma olhada pela sala, procura alguma coisa

    para vestir e direi como pode ir para casa. E dinheiro para o txi, se precisar.

    No h nada que possa fazer? Para ter certeza de que nunca farei mal Molly? perguntou Tim.

    Algumas coisas disse a mulher, laconicamen-te. Nenhuma delas agradvel.

    Ento faa declarou Tim. Eu consinto. Desde que continue vivo, isto , e fique como sou. Faa os passes de magia que tiver de fazer para proteg-la de mim.

    As sobrancelhas da Artista do Corpo levantaram-se. Tem certeza? Se tenho certeza de que quero que uma bruxa

    moralmente duvidosa brinque comigo, usando magia? No. Se tenho a certeza de que prefiro morrer a fazer mal Molly? Sim. Mas veja se no vai to longe, est bem? acrescentou rapidamente.

    No fcil avisou a Artista do Corpo. doloroso, e o sofrimento continua.

    Por que ser que no fico surpreendido? co-

  • 48

    mentou Tim. Estou a pr todas as cartas em cima da mesa. Tim acenou com a cabea. Decidi. A mulher, admirada, sorriu-lhe. mais corajoso do que supunha. Afinal, talvez

    sejas suficientemente bom para a Molly.

  • 49

    Captulo Seis

    No me sinto diferente, pensou Tim. Bem, alm de

    muito respeitvel. Olhou para a roupa que a Artista do Corpo lhe dera

    para voltar para casa. Calas de imitao de couro, ecolo-gicamente perfeitas, uma Camiseta preta, presa com alfi-netes de segurana, e umas botas pontiagudas.

    Arrependeu-se de no ter lembrado de tirar uns -culos de sol. Pestanejou com a luz brilhante do sol. Passa-ra outra noite fora de casa.

    Oh, belo trabalho murmurou. Ia ser apa-nhado pelo pai, com certeza. Soltou um suspiro e enco-lheu os ombros. Quanto a isso no podia fazer nada.

    Afinal ela muito legal, concluiu Tim, pensando na Artista do Corpo, enquanto se dirigia para a estao do metropolitano do Soho. No havia nada de falso nela apesar da maquiagem teatral e da indumentria. Chamava as coisas pelo seu nome, quer achasse que concordavam com ela ou no, ou lhes agradasse aquilo que ouviam. Tim respeitava isso. Era muito melhor do que os adultos que tratavam as pessoas com a idade dele como se fossem be-bs ou fingiam sempre que estava tudo bem. A honesti-dade frontal era o seu estilo, e Tim pensou que talvez ten-tasse fazer deste tambm o seu estilo.

    Mas at que ponto est a ser sincero? perguntou a si mesmo. Ouviu a conversa de Molly, o que foi bastante mau. Depois foi embora e pediu Artista do Corpo que te modificasse para no fazer mal Molly, porque no confia em ti. Por isso, de certa forma, agora uma espcie de

  • 50

    fraude. Puxou a gola da Camiseta emprestada para a afastar

    do corpo e tentou ver as tatuagens que a Artista do Corpo lhe fizera no peito. L estavam: um escorpio, com as-pecto feroz, desenhado por cima de uma borboleta enor-me. Tudo em cor viva... dolorosa.

    H tanto poder em ti, avisara a Artista do Corpo. Tive de usar um instrumento com dois dentes. Atual-mente preciso especializao.

    Ela no estava brincando. Ser tatuado doa muito. Tim no sabia ao certo se a dor era to intensa, porque os talisms eram mgicos, ou se a tatuagem era uma espcie de experincia que punha os ns dos dedos brancos, fazia ranger os dentes e uivar lua. Levara algum tempo mas, quando deixou a casa da Artista do Corpo, sentia o corpo de novo como o seu, e as pontas dos nervos j no pare-ciam estar em fogo.

    Pelo menos posso confessar tudo quando estiver com a Molly, disse para si mesmo. Me sentirei muito me-lhor depois de esclarecermos tudo. Pagou o bilhete com as moedas que a Artista do Corpo lhe dera e precipitou-se para o trem.

    O movimento oscilante do trem quase o adorme-ceu. Tinha sido uma noite longa, difcil. Despendera muita energia quando se transformou num gato. Depois ficara de p toda noite a tratar do problema do seu futuro mise-rvel. Estava ansioso por fazer uma longa sesta assim que chegasse em casa. Essa era uma coisa que podia fazer en-quanto estivesse de castigo.

    Tim saiu do metropolitano e dirigiu-se ao aparta-mento. Parou.

    No declarou. Primeiro vou falar com a

  • 51

    Molly. Antes de ficar preso em casa outra vez, digo-lhe que no tem de se preocupar... j no posso fazer magia.

    Tocou nas tatuagens do peito, franzindo as so-brancelhas. Pelo menos, no creio que seja capaz. Parou. Talvez devesse fazer um pequeno teste, s para ter certe-za.

    Entrou por uma ruela. OK. Que magia devo fazer? Perscrutou a vi-

    ela deserta. Sem os culos, ficava tudo um pouco toldado. Uma coisa simples. Mordeu o lbio, decidindo. Os olhos fixaram-se numas latas de lixo amontoadas. Esten-deu as mos. Concentrou-se nas tampas, pretendendo no fazer nada mais elaborado do que as trocar. Concentre-se, disse para si mesmo, deixando clarear o esprito, como fazia sempre antes de realizar um passe de mgica, prepa-rando-se para o preencher de novo com imagens, inteno e vontade.

    A energia familiar comeou a causar formigamento nos braos, mas depois uma dor lancinante trespassou-lhe o peito. Tim caiu no cho, quebrando o elo mgico com as latas de lixo. Assim que a magia foi libertada, a dor passou.

    Tim ficou estendido no passeio sujo, arfando. Sen-tia o peito como se tivesse sido queimado de dentro para fora, enquanto um milho de agulhas quentes se cravavam na pele.

    Parece-me que estas tatuagens so a srio gemeu. Iriam impedi-lo de usar a magia. No queria voltar a sentir aquela dor.

    Rolou devagar e ps-se de joelhos e levantou-se. A chuva da noite anterior deixara grandes poas, por isso os jeans de imitao de couro tinham grandes tiras molhadas

  • 52

    nos joelhos. Limpou as palmas das mos enlameadas na Camiseta, esperando que a Artista do Corpo no contasse que ele lhe devolvesse a roupa que lhe emprestara.

    Oh, caramba. Aquilo foi magia nvel um, percebeu Tim. A dor provavelmente pior se fizer alguma coisa que exija mais poder.

    Voltou para a rua, sentindo uma estranha mistura de emoes. Estava aliviado por poder dizer Molly que no precisava ter medo da magia. No entanto, tambm se sentia triste. Como se tivesse perdido alguma coisa uma coisa importante.

    Esquece a magia disse para si mesmo. O que ela fez por voc alm de te meter em encrencas?

    Chegou casa de Molly e descobriu o monte de roupa e os culos precisamente no mesmo lugar onde os deixara, quando se transformara num gato na noite ante-rior. Juntou a roupa e ps os culos, depois foi para a frente da casa da Molly tentando descobrir o que iria fa-zer.

    Talvez no seja uma boa idia murmurou. Olhou para a roupa emprestada, e agora molhada e suja. Sobretudo vestido desta maneira.

    No momento em que se virava para ir embora, a porta da rua se abriu. Uma das primas mais velhas de Molly, a alta chamada Bridget, saiu precipitadamente de casa. Havia sempre parentes na cada da Molly. Bridget parou de repente quando viu Tim.

    O que faz aqui? perguntou ela. Pode dar um recado meu Molly? perguntou

    ele. Bridget agarrou-o pelo brao e arrastou-o para a ruela. Olhou-o da cabea aos ps.

    Improvvel. Aqui o inimigo pblico nmero

  • 53

    um, lembra-se? Os ombros de Tim tombaram. Eu sei, eu sei, mas juro, no fizemos nada de

    mal. A expresso de Bridget ficou mais suave. Acredito em voc, mas isso no quer dizer nada.

    Posso me meter numa encrenca s por falar contigo. Ento por que est aqui ? perguntou Tim.

    Podia ter corrido para dentro de casa e ter-me denuncia-do.

    Acho que tenho pena de voc. admitiu Brid-get Alm disso, no preciso de te proteger da Molly. Ela no est aqui.

    Onde est? Era uma boa notcia! Talvez Tim pudesse encontrar-se com a Molly! Est na biblioteca? Na Escola de Dana Swan?

    Bridget abanou a cabea. Quero dizer que no est realmente aqui. Os

    pais a mandaram para a casa da av no campo. O qu-qu? gaguejou Tim. Sim, at esto pensando em tir-la da escola

    tambm, s para ficar longe de voc confidenciou Bridget. Acham que voc uma m influncia. Os olhos desviaram-se das botas pontiagudas e fixaram-se na Camiseta presa com alfinetes de segurana. No posso censur-los.

    Ele olhou fixamente para Bridget, tentando pro-cessar aquilo que dizia. Molly partira possivelmente para sempre? Para que serviam aquelas tatuagens ridculas se nem podiam estar juntos?

    O corao de Tim comeou a bater violentamente e um ardor intenso espalhou-se no peito. Tinha medo de

  • 54

    dizer alguma coisa, caso o fato de falar agravasse a dor. Alm disso, o que havia para dizer? Por isso virou-se e desatou a correr.

    Tim? Voc est bem? gritou Bridget atrs dele.

    Tim prendeu a Camiseta, afastando-a do peito a arder. Quanto mais perturbado ficava, mais intensa se tornava a irritao. Acocorou-se numa rua secundria e esfregou as costas num muro, precisando dos tijolos para se sustentar. Tomou golfadas de ar para tentar acalmar-se.

    Tambm no posso sentir nada? balbuciou. E esse acordo aqui? Nem magia, nem emoes?

    A dor o fez suar, fazendo arder os olhos. Fe-chou-os com fora por trs dos culos.

    OK! gritou, batendo no muro atrs dele. Venceram! Nunca mais sentirei nada! Neste momento deixarei de ser natural! Esto satisfeitos?

    Para se distrair, contou enquanto inspirava e expi-rava. O peito subia e descia quando respirava fundo e, gradualmente, as ondas de dor dissipavam-se.

    Exausto, curvou-se, colocando as mos nos joe-lhos, tentando recompor-se. O corao voltou ao ritmo normal, e ele pde pensar com mais clareza.

    Acho, mesmo assim, que foi uma boa idia ter feito estas tatuagens, tranqilizou-se quando se endireitou e dirigiu-se para casa. Ainda h toda a Humanidade com que me preocupar se me tornar perverso. A minha magia no afeta apenas a Molly.

    Tim chegou em casa, esgotado, molhado e desola-do. Nem sequer tentou entrar sorrateiramente pelos fun-dos; meteu a chave na fechadura. Antes de poder girar, a porta escancarou-se, arrancando a chave da mo de Tim.

  • 55

    Tenho estado sua espera resmungou o Sr. Hunter. Devia estar esperando do lado de dentro da porta, percebeu Tim. Esteve a patrulhar a entrada a noite toda?

    Onde esteve? perguntou o Sr. Hunter. Eu... estive fora disse Tim, debilmente. Sabia

    que parecia uma estupidez, mas, pelo menos, era verdade. O Sr. Hunter olhou fixamente para Tim. Deduzi. Se vai passar a noite na rua, sem ne-

    nhuma considerao por mim e pelas minhas preocupa-es, ento melhor ficar na rua para sempre!

    Sem mais palavras, o Sr. Hunter bateu com a porta na cara de Tim.

    Tim ficou de boca aberta e pestanejou algumas ve-zes.

    O qu-qu? gaguejou para a porta fechada. O meu pai me ps no olho da rua?

    Afastou-se da porta aos tropees, consciente do ardor no peito, e depois correu o mais depressa possvel pela rua abaixo. No sabia para onde ia, s sabia que tinha de chegar l sem demora.

    O Sr. Hunter ficou em casa, encostado porta, a contar at dez. Quando chegou ao dez, ainda estava furi-oso, por isso contou de novo at dez. Precisava controlar as emoes antes de falar com Tim. Estava preocupado com o garoto; devia ter acontecido alguma coisa h pouco tempo e que pusera o garoto numa espcie de ataque de pnico. Fora sempre um pouco sonhador, mas nos lti-mos tempos parecia to perdido, to distrado.

    S rezo para que no seja droga. O Sr. Hunter tinha certeza de que as drogas no eram a causa do comporta-mento errtico de Tim. As drogas teriam levado Tim a fazer perguntas sobre a paternidade. Embora pense que a

  • 56

    resposta que eu no sou o pai biolgico pudesse faz-lo enveredar por aquele caminho da auto-destruio.

    O Sr. Hunter estava convencido de que Tim fora sempre demasiado senhor de si quando era criana para se meter com drogas. Tim no pessoa para ceder presso dos colegas, pensou o Sr. Hunter. E o garoto pareceu sempre demasiado interessado na realidade para as drogas o atrarem. Na verdade, pensou o Sr. Hunter, com inquie-tao, o Tim tem-me atirado sempre na cara que ando perdido no meu mundo de iluso da televiso e no carro no parque de estacionamento. No, no era um problema de drogas. Era outra coisa. E o Sr. Hunter queria ajudar Tim, s que no sabia como.

    Muito mais calmo, sentiu-se preparado para ter uma conversa com o garoto. Abriu novamente a porta e ficou desolado. A rua estava deserta.

    Tim! gritou numa direo, depois noutra. Tim! chamou outra vez. No valia de nada. O garoto desaparecera.

    Espero no o ter afastado de vez. O Sr. Hunter sa-bia que jamais perdoaria a si mesmo se o tivesse feito.

  • 57

    Captulo Sete

    Tim correu e correu, e depois correu um pouco

    mais. No tinha nenhum destino em mente, exceto talvez o esquecimento. Apenas correr para o vazio, para um lu-gar onde no fosse ningum, onde pudesse recomear tudo de novo, onde Molly estivesse, onde no desapon-tasse o pai ou enfurecesse as pessoas. Correr, correr e correr, at o crebro ficar vazio.

    A respirao era ofegante, mas no parou. Para onde podia ir? Onde podia descansar? No o respeitavam em lugar nenhum. No, desde a maldita magia arruinar a sua vida.

    Dobrou rapidamente uma esquina e desejou ter o skate. A velocidade seria ainda maior, a brisa mais forte, a sensao de movimento mais intensa. Bateu com os ps na calada, saltou por cima de poas.

    Devia ter ido para as corridas, pensou. O esforo, porm, comeava a cans-lo. Sem dormir, sem comer desde a vspera, mais a dor que suportara nas mos da Artista do Corpo.

    Ela ajudara-o; talvez fosse at l. Mas no sabia ao certo o que poderia fazer por ele.

    Tim precipitou-se para a rua, quando um carro, su-bitamente, dobrou a esquina e embicou em sua direo. Sem pensar, Tim estendeu a mo e fez com que o carro rodopiasse sua volta.

    Estpido murmurou Tim, quando o carro se dirigiu a uma ruela. Olhou para trs. O carro ainda seguia aos ziguezagues atravs das ruas a uma velocidade incrvel,

  • 58

    sem nunca diminuir. Idiota! berrou. Tim dobrou-se com dores horrveis. As tatuagens! Arrgh! Tim apertou a roupa amarrotada con-

    tra o peito e caiu no cho. Largando os jeans e a Camiseta que trouxera da casa de Molly, ps-se de quatro, tentando sobreviver ao ataque de dor.

    Parem! suplicou. Muito bem. Estava furi-oso! E usei a magia! Mas aquele condutor merecia. Era uma ameaa para a sociedade.

    As tatuagens causavam um ardor mais intenso, como um milho de agulhas.

    Ele no travou disse Tim, arfando, ainda a protestar por tanta injustia. Nem sequer buzinou. Po-dia ter sido... A dor impediu-o de falar.

    O suor gotejava pelo rosto abaixo, pelas costas. Muito bem balbuciou. J entendi. Nada

    de emoes fortes. Nem magia. Mais no, por favor. A dor abrandou; e exausto, Tim arrastou-se at ao

    muro e sentou-se, encostando-se na porta dos fundos de uma loja. Olhou para a camiseta e dirigiu a palavra s ta-tuagens.

    Vocs tm uma forma estranha de tentar me salvar de mim mesmo disse ele. isso que devem fazer, certo? Quero dizer, podiam ter me matado quando ca. E se tivesse batido com a cabea na borda da calada? Ou deixado que o carro me batesse?

    Suspirou e ficou sentado, com o olhar fixo durante algum tempo, sem saber quanto passara. Sentia-se vazio. Como se tivesse perdido a memria. Era uma sensao reconfortante.

    Timothy Hunter, voc? Tim olhou na direo da voz familiar. Marya estava

  • 59

    na entrada da ruela, com o cachorrinho que j tinha sido Daniel na corrente.

    Em vez de se sentir aliviado por ter encontrado uma amiga, ver Marya fez com que Tim se sentisse pior. Em parte porque ela e Molly eram to ntimas, e Tim no estava preparado para falar de nada. Tambm era por Marya fazer parte daquela vida mgica, que lhe causava tantos problemas. Salvara o seu mundo, o Pas Livre, e depois ela ficou para viver em Londres. Ela era humana, claro, mas no tivera a vida humana normal de um ser humano. E no ajudava em nada Daniel estar com ela os garotos transformavam-se em cachorrinhos e garotas de reinos mgicos. Era muita coisa para digerir.

    Marya aproximou-se e ajoelhou-se ao lado dele, seguida por Daniel, com a cauda abanando. Tim pde ver porque Daniel gostava tanto dela. Era muito bonita, mas tambm era por haver nela algo de meigo. Talvez fosse por ter passado tanto tempo no Pas Livre, onde as crian-as nunca precisavam de se preocupar que algum lhes fizesse mal. A magia m quase destrura aquele santurio porque a magia parecia estragar tudo.

    Tim disse ela, mais uma vez, pondo o cabelo ruivo e comprido atrs das orelhas. Voc ests bem? Est com um aspecto horrvel.

    No me admiro admitiu ele. Sinto-me pssimo. O cachorro aproximou o focinho do rosto de Tim e farejou-o. Tim afastou suavemente o co. Quie-to, Daniel. S me faltava um co limpador de chamins a babar em cima de mim.

    Marya puxou a correia do cachorro e ele recuou para se sentar aos seus ps. Em cima dos ps, efetivamen-te.

  • 60

    Escute, Marya disse Tim. No nada pessoal, mas pode ir embora?

    O qu? Ela abanou a cabea. No, se est mal, no deve ficar sozinho.

    Na verdade, neste momento preciso estar s. Tim levantou uma mo para que ela no protestasse. srio. Estou muito cansado e muito confuso para conver-sar. Est bem?

    No precisamos falar. Podemos ficar sentados. Daniel e eu costumvamos jazer isso. Ela sorriu. Agora costumamos fazer isso muitas vezes. Afagou o co. Ele lambeu-lhe o nariz, fazendo-a soltar uma risadi-nha.

    Estou falando srio, Marya. Por favor. Se re-almente minha amiga, vai. Tenho de clarear as idias. No poderei faz-lo se ficar aqui.

    O rosto de Marya ainda estava preocupado e con-fuso. Tim tinha de inventar alguma coisa que a obrigasse a deix-lo ali sozinho.

    Ficarei muito constrangido contigo a sentada e sem falarmos disse Tim. No me apetece falar.

    Essa boa, pensou. No pode argumentar, sobre-tudo porque tambm verdade.

    Marya mordeu o lbio. Bem... levantou-se, segurando o co nos

    braos. Se tem certeza... A voz arrastou-se, ainda sem estar convencida.

    Tim acenou com a cabea. Tenho certeza. Adeus. Est bem. Adeus. Marya desceu a ruela, o-

    lhando longamente para Tim e depois desapareceu. Tim baixou-se. A troca de palavras com Marya es-

  • 61

    gotara-o, tendo em conta o elevado grau de exausto. Juntou a roupa, que trocara, e pousou a cabea nela. Sem comer e sem dormir e um violento turbilho de emoes podem faz-lo rastejar. Pouco tempo depois caiu num sono sem sonhos, agitado.

    Uma criatura estranha e aterradora, uma criatura feita de artigos variados, de desperdcios e de lixo, blo-queou a entrada da ruela.

    Wobbly. A criao da imaginao infantil de Tim, tornada

    real pela magia de Tim, o Wobbly era uma criatura que se livrava dos indesejveis, dos excludos. O Wobbly tinha um rosto como uma caveira, que se assemelhava a outro necrfago, o abutre. Pairou no ar, a uns centmetros do solo, com as garras raspando a calada. Se Tim tivesse a-cordado, teria visto que o Wobbly crescera desde o ltimo encontro.

    Abridor, agora um dos inteis? disse o Wobbly, com voz spera. Dirigiu-se a Tim. Se assim for, farei com que tenha alguma utilidade. Eu... reciclarei, como me disse uma vez que era uma maneira nova.

    O Wobbly aproximou-se do corpo prostrado de Tim.

    Sim, vejo como contigo, Abridor. Ser til pa-ra revestir de penas o meu ninho. Em pedacinhos. Ati-rou-me no lixo e agora vou te levar para reciclar. Es-tendeu uma garra esqueltica na direo do garoto ador-mecido.

    No. Uma voz fez Wobbly parar. Atirado no lixo no. Um homem corpulento, que remexia nu-ma lata do lixo prxima, levantou-se. Ele, tambm, era uma espcie de necrfago. O casaco caqui esfarrapado j

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    tivera muitos donos. Os jornais, que enrolara nos ps co-mo se fossem sapatos, tinham sido encontrados num banco de jardim perto do lugar onde dormia.

    O homem virou-se para olhar para o Wobbly e co-ou a barba farta e da cor do sal e da pimenta.

    No entendeu a situao dele. O garoto per-deu-se, simplesmente. Ele no se jogou no lixo.

    Ahhhhh? O Wobbly parecia perplexo. H alguma diferena?

    Oh, sim, meu amigo. Uma grande diferena. No para ser levado? perguntou o Wobbly. No por voc, Sr. Cabea de Pssaro. O ho-

    mem forte abaixou-se e pegou Tim com os braos pode-rosos. O garoto dormia to profundamente que se limitou a balbuciar e a cair no ombro do homem. O garoto vai comigo. Pegou na roupa, que Tim usara como almo-fada, apanhou o grande saco do lixo com os seus perten-ces e saiu com passadas largas da ruela.

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    Captulo Oito

    Tim sentia-se muito tonto. Esteve dormindo pro-

    fundamente durante algum tempo; os msculos estavam tensos, e nem queria pensar como seria o seu hlito. Es-fregou o rosto, tentando pr o crebro a funcionar.

    Caramba, que caminho me atropelou? murmurou.

    O caminho da realidade, talvez? Sei o que es-tar tonto.

    Tim sentou-se, instantaneamente alerta. O quarto estava escuro e Tim levou alguns minutos para descobrir onde estava. Um homem de idade e corpulento estava sentado no cho sua frente.

    Kenny? Tim reconheceu o homem. Era um sem-teto que o pai verdadeiro de Tim, Tamlin, lhe apre-sentara. Na verdade, o primeiro passo de magia de Tim foi impedir que a neve casse em cima de Kenny no Inverno anterior. Agora parecia ter sido h uma eternidade.

    Em carne e osso replicou o homem. Ain-da bem que acordou finalmente. Estava comeando a pensar se o Wobbly no tinha razo.

    Viu o Wobbly? Embora Tim, como Abridor, tivesse criado o Wobbly, a estranha criatura enervava-o. Tambm ficou surpreendido que Kenny tivesse podido ver Wobbly; geralmente, aquelas criaturas no podiam ser vistas por muitas pessoas alm de Tim.

    Vi-o realmente. O Wobbly pensou que voc ti-vesse se jogado no lixo. No fez isso, no ? Detestaria que um garoto como voc me tivesse mentido.

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    Que eu saiba, no replicou Tim , embora a idia seja tentadora. Tim passou as pernas por cima da borda da cama e examinou o quarto: a cama estreita, com o colcho fino, a tinta descascando, a forma bvia de um banheiro ou de uma cozinha.

    Onde estou? No Hotel Lua Cheia replicou Kenny. No

    tem estrelas, mas as condies so razoveis. aqui que vive? perguntou Tim. Pensava

    que Kenny era um sem-teto. Pelo menos, era no Inverno anterior.

    Eu? Ficar num lugar? Dentro de casa? Nunca. O homem soltou uma gargalhada ofegante.

    Mas se arranjou um lugar para mim, por que ra-zo no arranja um lugar para voc? perguntou Tim.

    O homem tremeu. Estive preso uma vez. No gostei. Esteve... Esteve numa priso? perguntou

    Tim, esperando no estar sendo muito intrometido. Oh, no. Nada disso. Bem, efetivamente, algo

    parecido com isso, da forma como me sentia. Prefiro es-paos abertos. H sempre alguma luz sob o cu aberto. No gosto da escurido.

    Oh! disse Tim, embora no compreendesse bem.

    Esta casa explorada por antigos amigos disse Kenny.

    Aqui est em segurana. Tim acenou com a cabea, depois bocejou. Desculpe-me disse ele. No sei porque

    estou to cansado. A fadiga a companheira constante de algum

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    em guerra. Em guerra? repetiu Tim. No estou tra-

    vando nenhuma guerra. No est? perguntou Kenny. Ostenta os

    sinais. Tim quis perguntar a Kenny o que queria dizer,

    mas s pensava em dormir. No era capaz de manter os olhos abertos, por isso acabou desistindo de combat-lo. Adormeceu rapidamente.

    Assim que teve certeza de que Tim dormia, Kenny acendeu uma vela e colocou-a no centro do quarto.

    Mesmo durante o sono sente a batalha disse ao garoto adormecido. Juntos talvez possamos encon-trar uma forma de acabar com ela.

    Kenny acocorou-se no canto do pequeno quarto de hotel e esperou. Sabia que veria a mesma luta que vira nas duas ltimas noites desde que recolhera o filho de Tamlin. Mas ele tambm era um inocente, e perturbado, e ele per-dera o nico homem que o podia orientar bem. Cabia a Kenny, como amigo de Tamlin, ajudar o garoto a encon-trar de novo o caminho. Isto , se o garoto estivesse dis-posto a ser ajudado.

    A Camiseta de Tim vibrou. Duas criaturas insubs-tanciais, bidimensionais, saram sorrateiramente de baixo da roupa do garoto adormecido. Quando se afastaram de-le, assumiram uma forma tridimensional.

    No admira que estivessem a causar-lhe sofri-mento comentou Kenny, em voz baixa. O escorpi-o e a borboleta odeiam-se. Lutam para te controlar e de-testam ter de partilhar. Uma luta pelo poder sempre as-sustadora.

    A borboleta pairou por cima da chama da vela, en-

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    quanto o escorpio avanou para ela, com o aguilho muito levantado.

    Tamlin no quereria isto para o filho mur-murou Kenny mas a opo do Tim.

    Kenny aproximou-se de Tim, tendo o cuidado de evitar o escorpio mortfero. O que te levou a isto? inter-rogou-se. Ajoelhou-se ao lado do garoto adormecido e sacudiu-o.

    Levante-se disse Kenny, mesmo antes do garoto ter aberto os olhos. Se continuarem a te fazer sofrer, deix-los ir doer mais ainda.

    H balbuciou Tim. No queria que o acor-dassem. Estar acordado era muito duro. Di? repe-tiu. O que vai doer?

    Tudo depende. Tim foi bruscamente despertado por uma luz es-

    tranha. Uma borboleta e um escorpio andavam em cr-culos no meio do quarto, como se se preparassem para um confronto.

    Aquelas... aquelas so as minhas tatuagens? perguntou ele.

    No as reconhece? Kenny parecia surpreen-dido.

    No parece possvel. Por que fez isto? Vejo que o Wobbly talvez ti-

    vesse razo. Foi por isso que tentei recolhe-lo. O que quer dizer? perguntou Tim. Kenny

    apontou para as tatuagens vivas. Ter estes guardas prisionais gravados na carne,