Os maîtres à penser e a moda.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    1/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 147

    Barthes e Bourdieu

    Os matres pensere a moda

    Maria do Carmo Teixeira Rainho

    Pesquisadora do Arquivo Nacional.Doutoranda em Histria pela Universidade Federal Fluminense.

    Este artigo aborda as obras de Roland Barthese Pierre Bourdieu dedicadas moda, em

    especial aquelas que tratam do universo

    simblico do consumo, dos discursos

    construdos em torno do tema e das lutas

    concorrenciais travadas no mbito da alta-costura

    nas dcadas de 1960 e 1970.

    Palavras-chave: moda; consumo; imprensa;

    distino.

    Thi s article analyses the works of RolandBarthes and Pierre Bourdieu dedicated

    to fashion. It specially focuses those

    that approach the symbolic universe of

    consumption, the speeches built around the

    subject and the competitive conflicts established

    inside the haute couture in the 1960s and 1970s.

    Keywords: fashion; consumption; press;

    distinction.

    Na virada do sculo XIX para o XX

    a moda fez sua inscrio como

    objeto de interesse das cincias

    humanas. Graas aos trabalhos de Herbert

    Spencer (1883), Gabriel Tarde (1890),

    Georg Simmel (1895) e Thorstein Veblen

    (1899)1 foram institudas as bases para

    que se problematizassem temas como a

    diferena entre modos e modas, a abran-

    gncia e historicidade da moda e o papel

    desempenhado por ela na configurao de

    laos sociais e de novas sociabilidades, en-

    tre outros. Simmel, especialmente, firmou

    alicerces tericos que vm embasando,

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    2/18

    A C E

    pg. 148, jan/jun 2010

    ainda hoje, as anlises da moda sustenta-

    das no binmio imitao-distino como

    explicao para as suas mudanas.2

    O fato de as obras desses quatro autores

    terem sido produzidas no final do sculo

    XIX no gratuito. Sculo da moda por

    excelncia, no oitocentos surgiram a alta-

    costura, com o estabelecimento da maison

    de Charles Frederick Worth,3 em 1857, em

    Paris; a produo txtil em larga escala,

    graas inveno e aos aprimoramentos

    da mquina de costura; a comercializao

    de roupas prontas em lojas de departa-

    mento; as colunas e sees especializadas

    nos jornais femininos que se encarrega-

    vam da difuso regular das tendncias de

    cada estao. Nesse contexto de acele-

    rao da produo, da difuso e do con-

    sumo de vestimentas, entende-se que os

    cientistas sociais dedicassem sua ateno

    a pensar relaes de poder, diferenas de

    classe, sociabilidades e estilos de vida sob

    a perspectiva da roupa e da moda.

    Curiosamente, a despeito do protagonismo

    da moda produzida em Paris no sculo XIX,

    e da sua importncia para a Frana onde

    um negcio de Estado desde Lus XIV ,

    pelos menos at os anos de 1960 a moda

    foi ignorada por boa parte dos intelectuais

    franceses: apenas seus historiadores da

    Miss Diorprt --porter, Paris, 12 de agosto de 1970

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    3/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 149

    indumentria, arquelogos e arquivistas se

    voltaram para as formas de vestir.4

    Conforme nos lembra Leyla Perrone-

    Moiss, coube a Roland Barthes dar

    moda um status de assunto nobre, uni-

    versitrio, que no lhe era concedido

    at ento,5 o que ser consubstanciado

    com a publicao, em 1963, de Sistema

    da moda, livro que marcaria seu percurso

    na semiologia.6

    Na mesma medida e j na dcada de 1970,Pierre Bourdieu publicou A distino, no

    qual, por meio da sociologia do gosto,

    dedica-se a pensar os mecanismos de di-

    ferenciao ou de afirmao da distncia

    nos grupos sociais dominantes, incluindo

    entre estes mecanismos o consumo de

    vestimentas.

    Para alm destas obras que esto entre

    as mais relevantes dos dois autores , Bar-

    thes e Bourdieu produziram outros textos7

    que propem uma perspectiva crtica ao

    campo da moda, sempre amparados em

    mtodos inovadores. Escrevendo no mo-

    mento em que a alta-costura era abalada

    pela emergncia do prt--porter, ambos

    se dedicaram a analisar as lutas concorren-

    ciais travadas entre os novos costureiros

    e os criadores de moda tradicionais e as

    estratgias de subverso e conservao

    empregadas por eles. A confluncia do

    interesse de Barthes e Bourdieu por esses

    conflitos um dos temas do nosso artigo,

    que se prope, antes de tudo, a discutir

    como cada um traduziu a produo de

    sentidos proporcionada pela moda naque-

    le momento.

    Bartheseocdigovestimentrio

    A

    origem do interesse de

    Roland Barthes pela moda

    provavelmente a mes-

    ma do seu interesse pela

    semiologia: deve-se ao contato com o

    linguista lituano Algirdas-Julien Greimas

    em 1949. Formado na Frana e seguidor

    de Saussure, Greimas estava no Egito tra-

    balhando como professor quando Barthes,

    contratado pela Universidade de Alexan-

    dria, trava o primeiro contato com ele.

    Tendo desenvolvido sua tese de doutorado

    sobre o vocabulrio da moda,8 defendida

    no ano anterior, Greimas estimula Barthes

    a ler Saussure e Hjelmslev. E ajuda-o a

    buscar um orientador para o trabalho que

    Barthes desejava que fosse sua tese de

    doutorado, no qual se dedicaria anlise

    estrutural do vesturio feminino.9 Publica-

    do em 1967, o livro Sistema da moda, tese

    jamais defendida, fruto de longa pesqui-

    sa, realizada entre 1957 e 1963, e, ainda

    que no tenha dado a Barthes a esperada

    consagrao universitria, tornou-se um

    sucesso editorial, recebendo grande aten-

    o dos peridicos e crticos franceses.

    De todo modo, mesmo para aqueles

    acostumados aos seus textos anteriores,

    em especial os j iniciados na semiologia

    barthesiana com a srie de artigos publi-

    cados em Mitologias, a leitura de Sistema

    da modano fcil, com sua linguagem

    hermtica, para muitos indecifrvel.

    Logo na primeira pgina, Barthes deixa

    claro seu propsito: aquele um livro

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    4/18

    A C E

    pg. 150, jan/jun 2010

    de mtodo que, se a princpio buscava

    reconstituir a semntica do vesturio real

    aquele que todo mundo usa , acabou

    se dedicando ao que qualifica de objeto

    mais puro possvel, o vesturio escrito

    ou como refratado na linguagem das

    revistas Ellee Jardin de Modesem suas

    edies de junho de 1958 a junho de

    1959. Assim, deixa de lado no apenas o

    vesturio real como tambm o vesturio

    imagem (a roupa exibida nas fotografias

    ou ilustraes).

    Conforme Barthes, diferente da socio-

    logia da moda que deve inventariar o

    vesturio real, procurando sistematizar

    comportamentos que ela pode pr em

    relao com condies sociais, nveis de

    vida e papis , a semiologia no busca

    reconhecer prticas e volta-se para um

    conjunto de representaes coletivas. O

    autor em seu vocabulrio da moda se pro-

    pe, ento, a tratar somente da estrutura

    dos signos escritos e, para tanto, cria a

    categoria vestema, unidade mnima sig-

    nificante do vesturio que, segundo ele,

    no deixa de lembrar os fonemas ou mor-

    femas da lngua de A. Martinet, ou ainda

    os gustemas analisados por Lvi-Strauss

    a propsito da alimentao.10

    Uma chave para a compreenso da propos-

    ta semiolgica de Sistema da modapode

    ser encontrada na leitura do texto Neste

    ano o azul est na moda, publicado em

    1960, e que contm os pressupostos te-

    ricos e metodolgicos do livro ainda em

    redao. Nele, Barthes comea por apon-

    tar que no vesturio escrito h sempre a

    imposio de uma relao de equivalncia

    entre um conceito (primavera, juventude,

    moda deste ano) e uma forma (acessrio,

    tailleur, azul), ou seja, entre um signifi-

    cado e um significante. Nas revistas de

    moda ora so apresentados os significa-

    dos como qualidades inerentes s formas

    sugerindo uma espcie de causalidade

    fsica entre a moda e o azul, o acessrio e

    a primavera , ora, ao contrrio, reduz-se

    o significado simples funo utilitria

    (uma capa para viagem), o que mascara,

    segundo Barthes, o carter semntico das

    relaes que prope.11

    Causalidade ou finalidade, a fraseolo-

    gia da revista de moda sempre tende a

    transformar sub-repticiamente o estatuto

    lingustico do vesturio em estatuto na-

    tural ou utilitrio, a investir o signo de

    um efeito ou de uma funo; nos dois

    casos, trata-se de transformar uma rela-

    o arbitrria em propriedade natural ou

    em afinidade tcnica, em suma de dar

    criao de moda a garantia de uma

    ordem eterna ou de uma necessidade

    emprica.12

    A primeira tarefa que Barthes se impe,portanto, reduzir a fraseologia da re-

    vista de moda, o que permite perceber

    as relaes simples, de um modelo nico,

    entre significados e significantes, relaes

    simples, mas no puras, pois se os sig-

    nificantes pertencem a uma ordem fsica

    (um tailleur, uma prega), os significados

    so fatalmente dados por meio de uma

    ordem escrita, uma literatura (romntico,

    desinibido, coquetel). Teramos aqui, se-

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    5/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 151

    gundo ele, os significados de um lado e os

    significantes de outro, um texto e seu lxi-

    co. Assim, Barthes organiza um inventrio

    das classes homogneas de significantes

    indumentrios; fatias do vesturio que

    contemplam uma primeira lista de classes

    de vestemas.13

    O autor alerta que seu objeto de pesquisa

    puramente sincrnico, ou seja, traos

    e formas documentados ao longo de um

    ano.14 Mas adverte tambm que no a

    quantidade de uma forma que a faz signifi-

    car; a sua relao com as outras formas.

    Isso porque a renovao da moda est

    essencialmente na novidade aparente das

    combinaes, no na novidade dos tra-

    os.15 E conclui que a superabundncia de

    formas, sobre a qual construda toda a

    mitologia da moda, uma iluso possvel

    apenas porque, sendo a sincronia muito

    curta, o jogo de combinaes ultrapassa

    facilmente a memria que temos dessas

    formas.

    Assim, Barthes antecipa a tese que ir de-

    senvolver em Sistema da moda, a saber, a

    ideia da arbitrariedade da moda. Conforme

    o autor, a moda no evolui, muda: seulxico que novo a cada ano, como

    o de uma lngua que guardasse sempre

    o mesmo sistema, mas mudasse brusca

    e regularmente a moeda de suas pala-

    vras.16 Embora construa um sistema bas-

    tante estrito de signos, a moda, segundo

    ele, busca dar a esses signos a aparncia

    de uma racionalidade; ela seria tirnica

    porque busca converter o que arbitrrio

    em natural.17 Fica claro o projeto poltico

    do autor: tentar desmistificar a moda, as-

    sim como havia feito com a publicidade,

    em sua anlise das propagandas de sa-

    bo em p, do novo modelo de carro da

    Citron,18 ou ainda das massas Panzani,19

    entre outras. O grande mrito de Barthes

    apresenta-se ento: ao desconstruir a

    mensagem contida nos pequenos mitos

    da vida cotidiana, exibidos como naturais,

    demonstra como funcionam seus cdigos

    internos, revelando sua histria e sua ar-

    tificialidade.20

    o vesturioeamodanascincias

    sociais

    Ao longo dos seis anos dedicados

    redao de Sistema da moda,

    Roland Barthes escreveu uma

    srie de artigos nos quais analisa a produ-

    o dos cientistas sociais relacionada ao

    tema da indumentria e da moda.21 Mais

    do que as suas proposies na obra em

    questo, esses textos talvez sejam hoje

    mais ricos no sentido de apontar possveis

    caminhos para socilogos e historiadores

    interessados em pensar a sociedade sob

    a perspectiva da produo, difuso e con-

    sumo da moda.

    Neles, Barthes provoca os socilogos

    afirmando que o vesturio nunca foi um

    objeto realmente sociolgico; as melhores

    reflexes pertenciam at ento a escritores

    e filsofos que estavam libertos do mito

    da futilidade que cercava o assunto.22

    Mas critica, sobretudo, as histrias da

    indumentria que ainda no teriam se be-

    neficiado, segundo ele, das contribuies

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    6/18

    A C E

    pg. 152, jan/jun 2010

    da Escola dosAnnales. Conforme o autor,

    as histrias da indumentria eram, ainda

    naquele momento, histrias historicistas

    e guardavam distncia da revoluo

    historiogrfica empreendida por Lucien

    Febvre,23 falhando por no abordar as

    relaes entre vesturio e fatos de sen-

    sibilidade.

    Devedoras de uma tradio que remon-

    tava ao romantismo, quando eram feitas

    para fornecer informaes a pintores ou

    teatrlogos, as histrias da indumentria

    falhavam ainda, para Barthes, por buscar

    uma equivalncia entre as formas das

    vestimentas e o zeitgeist, o esprito do

    tempo, o clima histrico de uma deter-

    minada poca.24 Acabaram imprensadas

    entre o recenseamento das diferenas

    internas ao prprio sistema indumentrio

    (mudanas de silhueta) e as mudanas

    externas (poca, pas, classes sociais),

    sem se preocupar em definir o que poderia

    ser, num determinado momento, o con-

    junto axiolgico que constitui o sistema

    indumentrio (imposies, proibies,

    tolerncias, aberraes, transgresses,

    caprichos, congruncias e excluses).

    Para o autor, nem a histria, tampouco a

    psicologia ou a sociologia, conseguiram

    apresentar a indumentria realmente

    como um sistema, ou seja, como uma es-

    trutura cujos elementos nunca tm valor

    prprio, mas so significantes por estarem

    interligados por um conjunto de normas

    coletivas.

    Barthes ressalta, ainda, que a histria do

    significante evoluo das silhuetas no

    segue a mesma cronologia da histria do

    significado reinos, naes. Se a histria,

    conforme Braudel, feita de um tempo

    social de mil velocidades e mil lentides,

    nos lembra Barthes que a histria da in-

    dumentria no pode ser entendida como

    algo linear nem estar atrelada histria

    de um pas ou de uma classe social, uma

    vez que as formas possuem uma relativa

    independncia.

    Outra dificuldade epistemolgica apresen-

    tada pelas histrias da indumentria, para

    o autor, o fato de elas praticamente s se

    dedicarem indumentria rgia ou aristo-

    crtica e de reduzirem as classes sociais a

    uma imagem (o nobre, a dama etc.); alm

    disso, ele aponta que, habitualmente, a

    indumentria no est relacionada com

    a profisso ou atividade de quem a usa,

    ou seja, a funcionalizao do vesturio

    omitida.

    Finalmente, no que se refere periodiza-

    o, as histrias da indumentria tambm

    apresentariam problemas: muitas vezes

    confunde-se o aparecimento de uma de-

    terminada moda com a sua adoo; mais

    abusivo ainda atribuir a uma pea umfim rigorosamente datado, o que, segundo

    Barthes, acontece em funo do prestgio

    cronolgico da monarquia: o rei fica a

    magicamente investido de uma funo

    carismtica: considerado, por essncia,

    o Usurio da Roupa.25

    A grande contribuio de Barthes est nas

    suas pertinentes advertncias aos cientis-

    tas sociais quanto a se fazer uma histria

    da indumentria que fuja das generaliza-

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    7/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 153

    es, das simplificaes e da tentao de

    descrever apenas as formas vestimentares

    das classes mais altas. Lembra ainda que

    cabe aos cientistas sociais, ao analisar

    historicamente as mudanas operadas

    nas roupas, levar em conta que diferentes

    atores operam na sua criao e difuso.

    E, por fim, reitera que moda e roupa no

    so sinnimos e nem toda a roupa est

    relacionada moda.

    Lidos estes textos constata-se, ento,

    a atualidade de boa parte das anlises

    de Barthes: no tanto pela abordagem

    estruturalista que prope, mas por nos

    fazer compreender como os objetos so

    carregados de sentido e como podem ser

    mitificados.

    Pierre Bourdieu: amodacomo

    distino

    Assim como para Roland Barthes,

    o estruturalismo tambm foi

    o horizonte terico de Pierre

    Bourdieu at o comeo da dcada de 1970

    e, em numerosos aspectos, ainda est

    presente em A distino, publicado em

    1979. Conforme Franois Dosse, mesmo

    j distanciado do estruturalismo formal,

    a postura estruturalista a base deste

    trabalho que visa demonstrar que existir

    simbolicamente diferir.26

    A distinotambm tem em comum com

    Sistema da moda o fato de ser fruto de

    uma extensa pesquisa. Bourdieu parte de

    uma investigao realizada em 1963, por

    meio de entrevistas aprofundadas, e da

    observao etnogrfica de 692 homens e

    mulheres de Paris, Lille e de uma pequena

    cidade do interior da Frana. Em 1967-

    1968, uma pesquisa complementar eleva a

    1.217 o nmero de pessoas entrevistadas.

    Construdo em torno da hiptese da unida-

    de dos gostos, o questionrio comportava,

    alm de um conjunto de questes sobre a

    prtica fotogrfica e as atitudes a respeito

    da fotografia, vinte e cinco itens sobre

    decorao da casa, vesturio, msica,

    culinria, leitura, cinema, pintura, msica,

    fotografia, audio de rdio, artes amado-

    ras.27 Somam-se pesquisa quatro inves-

    tigaes realizadas pelo Instituto Nacional

    de Estatstica e de Estudos Econmicos

    da Frana (INSEE)28 e dados extrados de

    pesquisas complementares.29

    De posse de todas essas informaes,

    Bourdieu vai fundamentar a ideia de queas representaes do mundo social, ou

    seja, a representao que o indivduo ou o

    grupo tem de si mesmo e a representao

    que tem dos outros, traduzem-se atravs

    dos estilos de vida. Para tanto opera, entre

    outros, com o conceito de habitusque ele

    define como

    o princpio gerador de prticas obje-

    tivamente classificveis e, ao mesmo

    tempo, sistema de classificao de tais

    prticas. Na relao entre essas duas

    capacidades que definem o habitus, ou

    seja, capacidade de produzir prticas e

    obras classificveis, alm da capacidade

    de diferenciar e apreciar essas prti-

    cas e esses produtos (gosto), que se

    constitui o mundo social representado,

    ou seja, o espao dos estilos de vida.30

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    8/18

    A C E

    pg. 154, jan/jun 2010

    Assim, o espao social e as diferenas

    que nele se desenham funcionariam, sim-

    bolicamente, como espao dos estilos de

    vida, ou como um conjunto de grupos ca-

    racterizados por estilos de vida diferentes.

    A distino, ou capital simblico, seria a

    diferena inscrita na prpria estrutura do

    espao social quando percebida segundo

    categorias apropriadas a essa estrutura.

    Conforme Bourdieu, a dinmica da dis-

    tino social no se esgota no conflito

    simblico pela imposio de uma determi-

    nada representao da sociedade, mas se

    estende na produo de novos gostos so-

    cialmente diferenciadores e no abandono

    progressivo das prticas culturais quando

    estas so apropriadas pelas camadas in-

    feriores, pois a distino

    no implica necessariamente, comofrequentemente se cr, na esteira de

    Veblen e da sua teoria do conspicuous

    consumption, a procura da distino.

    Todo o consumo e, mais geralmente,

    toda a prtica, conspicuous, visvel,

    quer tenha sido ou no realizado a fim

    de ser visto, ele distintivo quer tenha

    sido ou no inspirado pela inteno dedar nas vistas, de se singularizar, de se

    distinguir ou de agir com distino.31

    Nessa perspectiva, o autor insere a moda

    num vasto conjunto de prticas culturais.

    Para ele, na classe dominante poder-se-ia

    distinguir, simplificando, trs estruturas de

    consumo assim distribudas: alimentao;

    cultura; despesas com apresentao de si

    e com representao (vesturio, cuidados

    de beleza, artigos de higiene).

    O interesse que as diferentes classes

    atribuem apresentao de si, a ateno

    que lhe prestam e a conscincia que tm

    dos ganhos que ela traz, assim como os

    investimentos de tempo, esforos, pri-

    vaes, cuidados que elas lhe dedicam,

    seriam proporcionais s oportunidades de

    lucros materiais ou simblicos que podem

    esperar como retorno.

    Assim, no que se refere especialmente

    ao consumo de roupas, Bourdieu observa

    que as classes populares fazem um uso

    realista do vesturio ou, em outras pala-

    vras, um uso funcionalista. Privilegiam a

    funo em relao forma, escolhendo

    algo que pode durar muito tempo e

    ignorando a preocupao burguesa de

    introduzir a boa apresentao no universo

    domstico, e desleixam a distino entre

    a roupa de cima, visvel, destinada a ser

    vista, e a roupa de baixo, invisvel ou es-

    condida, ao contrrio das classes mdias

    que comeam a ficar inquietas [...] com

    sua aparncia externa, incluindo vesturio

    e cosmtica.32

    Em contraposio aos gostos de neces-

    sidade, que caracterizariam as classespopulares, esto os gostos de luxo, que

    caracterizam os indivduos que se distin-

    guem pela distncia da necessidade, pela

    liberdade, ou pelas facilidades garantidas

    pela posse de um capital. Dialogando com

    Norbert Elias, Simmel e Veblen, Bourdieu

    entende que a fora propulsora da produ-

    o de novos gostos inclusive no que

    se refere moda deve-se s estratgias

    de diferenciao utilizadas pelas classes

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    9/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 155

    mais altas em relao s mais baixas. Ou

    seja, to logo o vesturio das classes mais

    altas perde a sua exclusividade, tem de ser

    substitudo por novas modas que possam

    funcionar como marcadores de classe.

    Isto porque, quanto maior for o nmero

    de pessoas que tm acesso a um determi-

    nado bem, menor ser o seu valor distin-

    tivo. Assim, como aponta Svendsen, para

    Bourdieu todo capital relacionalmente

    determinado no sentido de que o valor de

    qualquer coisa depende do que os outros

    tm. Para que algo tenha um valor alto

    imperativo que outros no o possuam.

    Uma coisa pode ter valor simplesmente

    por haver uma escassez. E por isso que

    importante fazer distines.33

    Est claro que a posse de um bem distin-

    gue e a questo do gosto define e reforaposies sociais; certo tambm que o

    gosto, longe de algo inerente, culti-

    vado e apreendido conforme o habitus.

    Contudo, difcil explicar a difuso e o

    consumo da moda apenas sob a pers-

    pectiva da distino social. Sobretudo

    na contemporaneidade, o gosto uma

    questo individual e a criao da modase apoia cada vez mais em estilos e ten-

    dncias advindos de diversas subculturas.

    E, embora a disseminao da moda ain-

    da esteja em grande parte nas mos de

    estilistas associados alta-costura, e as

    camadas mais altas ajudem a valorizar e a

    tornar distintos determinados bens, para

    boa parte dos sujeitos as escolhas ves-

    timentares so definidas por interesses

    pessoais e no por interesses de classe.

    Mais do que isso, a identidade e a coeso

    de grupos no so construdas tendo em

    vista exclusivamente hierarquias ou po-

    sies sociais.

    Nesse sentido, a perspectiva do socilogo

    Herbert Blummer34 talvez seja hoje mais

    elucidativa do que as teorias de Veblen,

    Simmel e Bourdieu no que se refere s

    mudanas da moda. Para Blummer, o me-

    canismo da moda aparece no em resposta

    a uma necessidade de diferenciao e

    emulao, mas em resposta a uma neces-

    sidade de estar na moda, de se manter em

    dia com as novidades, ou at mesmo por

    um desejo de antecip-la. Enquanto Bour-

    dieu opera com a diferenciao de classe

    antes do processo da moda e considera

    que esta reproduz aquela, Blummer sugere

    que uma elite constituda pelo prprio

    processo da moda, ou seja, aqueles que

    conseguem segui-la mais rapidamente

    adquirem um statuspor manter-se em dia

    com o seu tempo.35

    certo que isso no diminui a importn-

    cia da obra de Bourdieu, sobretudo pelos

    vnculos que estabelece entre produo,

    circulao e consumo. Longe do econo-micismo produtivista que no reconhece

    o papel do consumo na constituio das

    classes e na organizao das suas dife-

    renas, para o autor as classes se dife-

    renciam tal como no marxismo, pela sua

    relao com a produo, pela propriedade

    de certos bens, mas tambm pelo aspecto

    simblico do consumo, ou seja, pela ma-

    neira de usar os bens, transformando-os

    em signos.36

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    10/18

    A C E

    pg. 156, jan/jun 2010

    a moda: umcamPodeBatalhana

    ticade Barthese Bourdieu

    Oaspecto simblico do consumo,

    que permitiu a Bourdieu desen-

    volver, a partir da alta-costura e

    dos conflitos entre antigos e novos cria-

    dores, um dos seus principais conceitos,

    o de campo,37 tambm estava presente

    no pequeno artigo redigido por Roland

    Barthes, para a revista Marie Claire, em

    1967.38 Nesses textos os autores propem

    novas chaves de leitura para a questo do

    valor dos objetos no universo da moda.

    Roland Barthes deixa claro o modo como

    vai tratar das disputas na esfera da moda

    logo no ttulo de seu artigo: O duelo

    Chanel-Courrges. Tendo os dois costu-

    reiros como paradigma dos conflitos entre

    antigos e modernos, Barthes entende que

    a base da disputa est na valorizao da

    juventude e do corpo por Courrges, mas,

    sobretudo, pelo discurso que este constri

    para assumir essa valorizao. Mais do que

    isso, Barthes entende que na relao que

    cada um deles tem com o tempo que se

    inscreve a origem do duelo.

    O autor contrape a autoridade e o prest-

    gio concedidos a Chanel que sintetizava

    o classicismo na moda, destacando-se

    no por surpreender, mas pelo prazer

    Coco Chanel fotografada em seu apartamento em Paris, 1957

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    11/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 157

    de agradar ao futurismo de Courrges,

    ungido com as qualidades de um inova-

    dor absoluto. Para Barthes, o que separa

    Chanel de Courrges mais profundo do

    que a moda: so as ideias de cada um a

    respeito do tempo e do corpo. De Chanel

    a Courrges agramticados tempos muda.

    Segundo ele, Chanel e suas criaes con-

    testam a prpria ideia de moda, pois esta,

    tal qual a concebemos, baseia-se num

    sentimento violento do tempo. A cada

    ano, a moda destri o que acaba de adorar,

    adora o que acaba de destruir.39 Chanel,

    ao contrrio disso, trabalha sempre o mes-

    mo modelo, acreditando numa espcie de

    beleza eterna da mulher. Por isso, rejeita

    materiais perecveis como papel e plstico.

    Para a estilista, o que importa o chique,

    qualidade que rene seduo e durao;

    assim, tem horror aparncia de novo. O

    chique, esse tempo sublimado, o valor

    chave do estilo Chanel.40 Os modelos de

    Courrges, por sua vez, no apresenta-

    riam, segundo Barthes, essa obsesso: so

    frescos e coloridos, moda voluntariamente

    jovem, com referncias infantis. Assim,

    conforme Barthes, o tempo, que estilo

    para Chanel e moda para Courrges, o

    que os separa, tanto quanto a concepo

    de cada um acerca do corpo.

    A inveno tpica de Chanel, o tailleur,

    est bem prxima do vesturio do homem,

    distinguindo-se pela sua sobriedade e

    pela ausncia de ostentao: veste no a

    jovem ociosa, mas a mulher que trabalha

    e que tem nele uma roupa prtica e refi-

    nada. Para Barthes, o que o estilo Chanel

    rejeita so as vulgaridades do vesturio

    pequeno-burgus muito mais do que as

    provocaes estticas de Courrges. Este

    dedica suas criaes a traduzir e a codi-

    ficar a juventude, algo que no existia

    quando do aparecimento da estilista. A

    mulher Courrges jovem, necessria

    e suficientemente jovem. Para Barthes,

    o corpo o nico bem da juventude e a

    moda de Courrges parece ter assumido

    a seguinte funo: fazer do vesturio um

    signo muito claro de todo o corpo.

    De um lado a tradio e de outro a inova-

    o; de um lado o classicismo, de outro o

    modernismo; segundo Barthes, h muito

    tempo a sociedade desejava instaurar esse

    duelo em todos os domnios da arte e com

    formas infinitamente variadas; se hoje ele

    explode na moda, porque a moda tam-

    bm uma arte tanto quanto a literatura,

    a pintura, a msica.41 E se Barthes atribui

    moda a dimenso de objeto artstico,

    compreende que, naquele momento, ela

    no era consumida apenas enquanto pro-

    duto, mas tambm visualmente.

    Moda no s o que algumas mulheres

    usam, tambm o que todas as mulhe-

    res (e todos os homens) olham e leem:

    as invenes de nossos costureiros

    agradam ou irritam, exatamente como

    um romance, um filme, um disco. Nos

    tailleursde Chanel e nos shortsde Cour-

    rges projeta-se tudo o que se agita de

    crenas, preconceitos, sentimentos e

    resistncias, enfim toda essa histria de

    cada um, que denominamos com uma

    palavra talvez simples demais: gosto.42

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    12/18

    A C E

    pg. 158, jan/jun 2010

    Embora no restrinja o conceito de campo

    moda, o aparecimento dos novos cria-

    dores da alta-costura, na dcada de 1960,

    possibilitou a Pierre Bourdieu desenvolver

    suas ideias em torno dos conflitos inter-

    nos pelo poder, uma luta caracterizada

    pela distino dos que tm e a pretenso

    dos que aspiram. Para Bourdieu, o campo

    um espao de jogo, onde indivduos ou

    instituies competem por um mesmo

    objeto. Dois elementos constituem o cam-

    po: a existncia de um capital comum e

    a luta pela sua apropriao. Esta ocorre

    tanto em campos mais autnomos, ha-

    bitualmente chamados culturais, como

    naqueles mais dependentes da estrutura

    socioeconmica geral.

    Tratando especificamente da alta-costura,

    Bourdieu observa que, neste campo, os

    dominantes so aqueles que exercem o

    poder de construir o valor dos objetos

    pela sua raridade ou escassez, em outras

    palavras, aqueles cuja marca tem o maior

    preo. Outra caracterstica exclusiva da

    moda que ela ocupa uma posio inter-

    mediria entre um campo que organiza a

    sucesso, como o campo da burocracia,

    onde por definio os agentes devem ser

    permutveis, e um campo onde as pessoas

    so radicalmente insubstituveis, como o

    Desfile de Andr Courrges no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1972

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    13/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 159

    da criao artstica ou literria.43 Da o

    interesse do autor por um campo que se

    afirma tanto pelo poder carismtico dos

    criadores quanto pela possibilidade de

    substituio do insubstituvel.

    Escrevendo num momento em que a

    moda vinha passando por uma revoluo

    no apenas pela emergncia de novos

    criadores, mas, sobretudo, pelo modo

    como estes se posicionavam perante os

    detentores da posio dominante, Bour-

    dieu analisa publicidade, entrevistas e

    reportagens sobre o estilo de vida dos

    costureiros para discutir aquilo que move

    a competio entre eles: a possibilidade de

    transmitir um poder criador, uma espcie

    de mana que faz com que realizem uma

    operao de transubstanciao. Esta seria,

    no dizer de Bourdieu, a possibilidade de,

    por exemplo, transformar um perfume

    vendido no supermercado Monoprix em

    um perfume Chanel valendo trinta vezes

    mais, afinal a griffe a marca que muda

    no a natureza material, mas a natureza

    social do objeto.44

    A questo de fundo nessa disputa a

    raridade do produtor e no a raridade doproduto. Mas, para que isto acontea,

    preciso haver o que Marcel Mauss qualifi-

    cava de crena coletiva, que no caso da

    alta-costura se daria pela capacidade do

    criador de mobilizar em torno dele todos

    os agentes do sistema de produo de

    bens sagrados: jornalistas, intermedi-

    rios e clientes, alm, naturalmente, dos

    outros criadores que legitimam a prpria

    concorrncia.

    Bourdieu opera com a ideia de que o cam-

    po da alta-costura estaria dividido entre

    direita e esquerda. direita estariam os

    antigos criadores e empresas, detento-

    res da posio dominante, que possuem

    maior capital especfico, como, naquele

    momento, Dior ou Balmain. esquerda,

    os recm-chegados, chegados-tarde ou

    arrivistas, que no possuem muito capital

    especfico, como Paco Rabanne e Ungaro.

    Em um polo, a austeridade no luxo e a

    elegncia sbria, a grande classe, que

    convm ao capitalista da velha cepa

    como disse Marx e, mais precisamente,

    s mulheres com idade cannica das

    fraes mais elevadas e estabelecidas,

    h mais tempo, na alta burguesia; no

    outro, as audcias um tanto agressivas

    e espalhafatosas de uma arte dita de

    pesquisa que, pela lei da concorrncia

    isto , a dialtica da distino , pode

    ser levada a proclamar o dio perfeio

    e a necessidade do mau gosto, por um

    desses exageros de artistas que convm

    a tal posio.45

    Para discutir a ascenso dos novos cos-

    tureiros, assim como Roland Barthes,Bourdieu faz de Courrges o tipo ideal.

    Para Bourdieu, na sua luta contra os

    outros criadores, Courrges transcende

    amplamente a moda e fala de um estilo

    de vida: ele no fala mais de moda, mas

    da mulher moderna, que deve ser livre,

    descontrada, esportiva, vontade.46

    Courrges prope uma oposio velha

    ordem dos costureiros, ao se dispor a

    vestir os jovens, respondendo ao gosto

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    14/18

    A C E

    pg. 160, jan/jun 2010

    de uma nova burguesia que tem amor

    novidade e horror ao luxo. Mas, sobretudo,

    conforme Bourdieu, Courrges percebe

    a necessidade de fazer roupas para as

    mulheres que querem mostrar o corpo.

    Assim, o socilogo percebe no costureiro

    uma capacidade de revolucionar a moda

    ao sincronizar uma necessidade interna

    com algo que se passa fora, no universo

    que o engloba.47

    Mas, se Bourdieu se aproxima de Barthesao considerar a dimenso do trabalho de

    Courrges, critica-o, expressamente, por

    descartar a funo do discurso no proces-

    so de produo dos bens da moda. Para

    Bourdieu, ao fazer isso, a leitura semio-

    lgica est condenada a oscilar entre o

    formalismo de uma transposio forada

    dos modelos lingusticos e o intuicionis-

    mo de anlises quase fenomenolgicas

    que se limitam a reproduzir, sob outras

    formas, as representaes nativas (por

    exemplo, sobre a lei da moda e sobre as

    relaes da moda com o tempo).48 Con-

    forme Bourdieu, a denncia dos mecanis-

    mos da produo e circulao dos bens e

    discursos da moda, que pauta o trabalho

    Modelo de Paco Rabane fotografada por Gunnar Larsen, Paris, 1969

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    15/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 161

    de Barthes em Sistema da moda, falha ao

    esquecer que, mais do que buscar a efi-

    ccia da operao ritual no prprio ritual,

    deve-se buscar as condies sociais que

    produzem a f no prprio ritual.

    Bourdieu, por sua vez, conquanto critique

    o dedutivismo mecnico comum a tantos

    trabalhos sociolgicos sobre arte e litera-

    tura, reduz sua anlise da moda questo

    da legitimidade dos costureiros dentro do

    campo. Como nos lembra Canclini, para

    entendermos, por exemplo, a emergncia

    de Courrges preciso pensar a rela-

    o entre os campos e a histria social,

    considerando as relaes entre moda

    e trabalho e as relaes entre gneros

    que, evidentemente, contriburam para

    o sucesso do estilista.49

    O estruturalismo, que norteou as obras

    dos dois autores dedicadas alta-cos-

    tura, talvez tenha restringido Barthes e

    Bourdieu com relao a um tema que,

    antes de tudo, merece estar relaciona-

    do s prticas diferenciais dos grupos

    envolvidos na sua produo, difuso e

    consumo.

    Vestido de noite em organza da coleo pr imavera-vero de Pierre Balmain, Paris, 1972

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    16/18

    A C E

    pg. 162, jan/jun 2010

    N O T A S1. SPENCER, Herbert. Les manires et la mode. In: _____. Essais de morale, de science et desthetique.

    Paris: Germer Balliere et Cie., 1883; TARDE, Gabriel. Les lois de limitation. Paris: Kim, 1993;

    SIMMEL, Georg. La mode. In: ______. La tragdie de la culture et autres essays. Marselha: Rivages,1988; VEBLEN, Thorstein.A teoria da classe ociosa. So Paulo: Abril Cultural, 1985. Coleo OsPensadores.

    2. Conforme o socilogo alemo, a moda deriva de uma tenso bsica: por um lado, buscamosimitar aqueles a quem admiramos; por outro, satisfazer a necessidade de nos distinguirmos,de nos individualizarmos. Algumas pessoas tenderiam a imitar mais do que a se distinguir, en-quanto outras se caracterizariam por um forte componente criativo que as torna lanadoras detendncias e lderes de um grupo. Imitao de um modelo dado, a moda guiaria o indivduo pelocaminho que todos seguem, indica uma generalidade que reduz o comportamento de cada um aeste modelo. Ao mesmo tempo, satisfaz a necessidade de distino, a tendncia diferenciao, variedade, demarcao. Mas se para Simmel a moda sempre ditada pelas camadas maisaltas, to logo estas so copiadas pelas camadas inferiores, tratam de abandon-la, adotandonovas modas que, uma vez mais, so imitadas e abandonadas, gerando um processo contnuode cpia e estabelecimento de novos padres.

    3. A casa comercial aberta por Worth foi a primeira a promover os princpios da mudana regulardas vestimentas, graas produo de colees orientadas para o mercado e ao desenvolvimentode uma identidade de marca (cada pea de vesturio vendida por Worth ostentava o nome delee de sua empresa).

    4. Conforme Roland Barthes, at o incio do sculo XIX, no houve histria da indumentria propria-mente dita, mas apenas estudos de arqueologia antiga ou recenses de trajes por qualidade. Ostrabalhos cientficos sobre indumentria teriam aparecido por volta de 1860 e eram de autoriade arquivistas como Quicherat, Demay ou Enlart, em geral medievalistas. O principal objetivodaquelas obras era tratar a indumentria como uma soma de peas, e a pea indumentria emsi, como uma espcie de acontecimento histrico, convindo antes de tudo datar seu apareci-mento e dar sua origem circunstancial. BARTHES, Roland. Histria e sociologia do vesturio. In:______. Inditos, vol. 3: imagem e moda. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 257-259. Entre ostrabalhos mencionados por Barthes esto QUICHERAT, Jules. Histoire du costume en France.Paris: Hachette, 1875; DEMAY, G. Le costume au Moyen ge, daprs les sceaux. Paris: Dumoulin,1880; ENLART, C. Manuel darcheologie franaise. Paris: Picard, 1916.

    5. Ver Apresentao da autora em BARTHES, Roland. Inditos, vol. 3: imagem e moda, op. cit., p.XIII.

    6. Barthes define a semiologia a partir de Saussure para quem a lingustica apenas uma parteda cincia geral dos signos. Conforme Barthes, os objetos aparentemente mais utilitrios culi-nria, vesturio, moradia e, com mais razo, os que tm a linguagem como suporte, como aliteratura boa ou ruim , as narrativas da imprensa, da publicidade etc. convidam a uma anlisesemilogica. BARTHES, Roland. Sobre o sistema da moda. In: ______. Inditos, vol. 3: imageme moda, op. cit., p. 373-374.

    7. Conferir BARTHES, Roland. Histria e sociologia do vesturio (1957); Linguagem e vesturio(1959); Neste ano o azul est na moda (1960); Por uma sociologia do vesturio (1960); Da joia

    bijuteria (1961); Dandismo e moda (1962); A moda e as cincias humanas (1966); O dueloChanel-Courrges (1967), todos publicados em Inditos, vol. 3: imagem e moda, op. cit. DePierre Bourdieu, ver Alta-costura e alta cultura (1974). In: ______. Questes de sociologia. Rio de

    Janeiro: Marco Zero, 1983; e O costureiro e suagrif fe(1975). In: ______.A produo da crena:contribuio para uma economia dos bens simblicos. So Paulo: Zouk, 2002.

    8. La mode em 1830: essai de description du vocabulaire vestimentaire dprs les journaux demode de l poque. A tese defendida na Faculdade de Letras de Paris em 1948 foi publicadaapenas em 2000.

    9. Conforme Franois Dosse, sempre acompanhado de Greimas, a princpio Barthes busca a orien-tao de Andr Martinet, que concorda em orientar o trabalho observando, porm, que no setratava de lingustica. Diante da falta de entusiasmo de Martinet, Barthes procura Lvi-Strauss,que se recusa a orient-lo por considerar um aspecto restritivo do projeto: o sistema da modaescrita e no da moda em geral.

    10. BARTHES, Roland. Sistema da moda. So Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979, p. 64.

    11. BARTHES, Roland. Neste ano o azul est na moda, op. cit., p. 309.

    12. Idem.

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    17/18

    R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 147-164, jan/jun 2010 - pg. 163

    13. Ibidem, p. 325. Estas classes seriam as seguintes: material, cor, motivo; sendo as peas (definidaspor ponto de apoio): cabea, pescoo, ombros, quadris, ombros-quadros (pea inteiria), mos,ps; e os detalhes: golas, mangas, bolsos, cintura, fendas, tipo de abotoamento, pregueamento,orlas, pespontos, enfeites, uso e associao de elementos.

    14. Esse , alis, um dos aspectos mais originais de sua obra, posto que a maioria dos trabalhossobre o tema diacrnica e aborda a histria do vesturio.

    15. BARTHES, Roland. Neste ano o azul est na moda, op. cit., p. 332.

    16. BARTHES, Roland. Sistema da moda, op. cit., p. 203.

    17. Ibidem, p. 249.

    18. BARTHES, Roland. Mitologias. So Paulo: Difel, 1982.

    19. BARTHES, Roland. A retrica da imagem. In: ______. O bvio e o obtuso: ensaios crticos III. Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

    20. Cf. WERNECK, Mariza. Roland Barthes, a moda e as assinaturas do mundo. IARA, Revista de Moda,Cultura e Arte, So Paulo, SENAC, v. 1, n. 1, p. 102-118, abr./ago. 2008.

    21. Histria e sociologia do vesturio (1957), Linguagem e vesturio (1959) e Por uma sociologiado vesturio (1960), este ltimo resenha do livro Le Vtement, la mode et lhomme: essaidinterpretation psychologique, de F. Kiener, publicada na revistaAnnales, mar.-abr. 1960.

    22. Em Linguagem e vesturio, Barthes cita Carlyle, Michelet e Balzac como autores que dedicaramuma reflexo moda, mas se abstm de discutir a obra dos filsofos e socilogos que haviamtratado do tema.

    23. BARTHES, Roland. Histria e sociologia do vesturio, op. cit., p. 258-259.

    24. Ibidem, p. 258.

    25. Ibidem, p. 262.

    26. DOSSE, Franois. Histria do estruturalismo. So Paulo: Editora da Unicamp, 1993, v. 2, p. 89.

    27. BOURDIEU, Pierre.A distino: crtica social do julgamento. So Paulo; Porto Alegre: Edusp; Zouk,

    2008, p. 462.28. Pesquisa de renda junto a 45 mil habitaes com base nas declaraes encaminhadas Direo

    Geral de Impostos em 1970; pesquisa Formao-qualificao profissional, tambm de 1970,abrangendo trinta mil pessoas e que descrevia as relaes entre a formao geral e profissionale a situao profissional dos entrevistados, fornecendo dados sobre mobilidade profissionale geogrfica dos indivduos e sobre a mobilidade entre as geraes; pesquisa permanente doINSEE sobre as condies de vida e consumo realizada em 1972 junto a 13 mil famlias, bus-cando dados como as caractersticas da famlia, equipamento da habitao, despesas; pesquisasobre o lazer realizada ao longo do ltimo trimestre de 1967, junto a uma amostra aleatriade 6.637 pessoas, representativa da populao francesa adulta. Utilizava um questionrio quecomportava questes sobre as condies de vida, o ritmo e o tempo de trabalho e, sobretudo,as diferentes prticas culturais, visitas a museus, exposies, monumentos, leitura, frequnciaa diferentes tipos de espetculos, cafs e restaurantes, passeios, recepes, audies de rdio,televiso e diferentes ocupaes como bricolagem, caa, pesca, aposta em cavalos, atividadesliterrias ou artsticas, coleo etc.

    29. Pesquisa Negcios e quadros superiores, realizada em 1966, junto a 2.257 pessoas com idadesa partir de 15 anos, vivendo em um domiclio cujo chefe de famlia era industrial, grande comer-ciante, membro de profisses liberais, engenheiro ou professor secundrio ou universitrio. Oquestionrio compreendia um conjunto de questes sobre os hbitos de leitura, a audincia dordio e da televiso, o nvel de vida, o equipamento do domiclio, o estilo de vida (frias, espor-tes, consumo), a vida profissional, as prticas culturais, bem como as principais informaesde base (nvel de estudos, renda, porte da residncia etc.). Outra pesquisa, realizada em 1970,abrangendo 2.682 pessoas ativas ou no que viviam em um domiclio cujo chefe de famliaera industrial, grande comerciante, membro das profisses liberais, professor secundrio ouuniversitrio, engenheiro ou assalariado de alto nvel em empresa ou rgo pblico. O objetoeram os centros de interesse, os equipamentos domsticos e de lazer, as residncias principal esecundria, as frias, as viagens de negcios, as prticas culturais e de leitura, discos, museus,

    cinema, as colees de obra de arte, os esportes, o automvel, os comportamentos econmicos.Recenseamento sobre as prticas culturais dos franceses abrangendo 1.987 pessoas com idadesa partir de 15 anos com questionrio sobre os comportamentos de lazer, prticas culturais, tiposde programa de televiso, discos possudos e escutados, obras de arte possudas. Alm delas, oautor buscou dados especficos em pesquisas referentes a prticas culturais, hbitos de leitura,

  • 7/28/2019 Os matres penser e a moda.pdf

    18/18

    decorao e mobilirio, esporte, despesas com a aparncia, opinio a respeito de temas comohomossexualidade, censura e justia, entre outros.

    30. BOURDIEU, Pierre.A distino: crtica social do julgamento, op. cit., p. 162.

    31. BOURDIEU, Pierre. Espao social e gnese das classes. In: ______. O poder simblico. So Paulo:

    Difel, 1989, p. 144.32. BOURDIEU, Pierre.A distino: crtica social do julgamento, op. cit., p. 190.

    33. SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 56.

    34. BLUMMER, Herbert. Fashion: from class differentiation to collective selection. In: BARNARD, Mal-colm (org.). Fashion theory: a reader. London; New York: Routledge, 2007, p. 232-246.

    35. Sobre essa questo, ver SVENDSEN, Lars, op. cit., p. 39-69.

    36. CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,2007, p. 73.

    37. Ver BOURDIEU, Pierre. Alta-costura e alta cultura, op. cit.; e O costureiro e sua grif fe, op. cit.

    38. BARTHES, Roland. O duelo Chanel-Courrges, op. cit.

    39. Ibidem, p. 367.

    40. Ibidem, p. 368.

    41. Ibidem, p. 371.

    42. Ibidem, p. 372.

    43. BOURDIEU, Pierre. Alta-costura e alta cultura, op. cit., p. 159.

    44. Ibidem, p. 160.

    45. BOURDIEU, Pierre. O costureiro e suagrif fe, op. cit., p. 116.

    46. BOURDIEU, Pierre. Alta-costura e alta cultura, op. cit., p. 157.

    47. Idem.

    48. BOURDIEU, Pierre. O costureiro e sua grif fe, op. cit., p. 160.

    49. CANCLINI, Nestor Garcia, op. cit., p. 77.

    Recebido em 28/9/2010

    Aprovado em 13/10/2010