1
Tiragem: 43576 País: Portugal Period.: Diária Âmbito: Informação Geral Pág: 57 Cores: Cor Área: 18,71 x 30,54 cm² Corte: 1 de 1 ID: 44883286 23-11-2012 Os novos inquisidores e hereges (do Direito) V enho hoje ao tema da lei n.º 46/2005, de 29 de Agosto, a qual, no que interessa, estabelece limites à renovação sucessiva dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais. O assunto tem merecido alguns comentários por parte de opositores da candidatura do Dr. Luís Filipe Menezes à Câmara Municipal do Porto. Escrevem e verbalizam esses opositores que a lei de limitação de mandatos impede, cumpridos três mandatos, as candidaturas em qualquer concelho ou freguesia que seja. Mas já toda a gente percebeu que é doutra coisa que se trata, seja alcançar, rapidamente e em força, um pretexto no recolhimento da lei para travar aquela concreta intenção de conquista da Câmara do Porto. O tema do impedimento da candidatura constitui um mero fait-divers jurídico e um ato falhado político, ninguém o colocou em nenhuma outra circunstância ou em qualquer outra autarquia. Mas nem por isso deixa de se me impor, ao menos por pedagogia jurídica, colocar o acento nesta questão de que falam analfabetos do direito ou juristas sem créditos. Como dizia o grande Manuel de Andrade, o intérprete, o aplicador do Direito, tem de recusar o reino confuso do palpite, do arbítrio, do sentimento anárquico ou da intuição irrefletida. E é isso que temos visto escrito. Os que até agora têm perorado contra a candidatura do Dr. Luís Filipe Menezes, com armaduras de um res nullius jurídico, com esse pretexto da lei, atuam sem seriedade intelectual. E sabem-no. Para esses, a lei dirá o que a sua vontade gostaria que dissesse e até existe quem, numa asneira que faria indignar qualquer professor de introdução ao Direito, venha dar como decisiva a vontade do redator (se fosse verdadeiro, quod erat demonstrandum) da lei. Ora, o que decide é o conteúdo da própria lei, o sentido objetivo da lei. Uma vez publicada, observa o Mestre Francisco Ferrara, a lei desprende-se dos seus autores, tem uma vida própria e um espírito próprio e é este que tem de ser averiguado. E de entre os vários pensamentos da lei, há-de preferir-se aquele mediante o qual a lei exteriorize o sentido mais razoável e produza o efeito mais benéfico. A falsa mania da interpretação subjetiva, evocamos Baptista Machado, esquece a alta e capital missão da interpretação das leis: servir pela razão do Direito a vida do Direito. O Direito e a função criadora da interpretação das leis são coisas demasiado sérias para serem arremessadas, em ignorância incontida e, por isso, muito atrevida, para alimentar raivenças pessoais. A vida e o espírito postulam um Direito reto (richtig), quer dizer, justo e oportuno. São valores éticos e morais que estão em causa e por isso deve repudiar-se a inaptidão da palavra daqueles que, restritos de horizonte e cristalizados para sempre, prejudicam num grau absolutamente escandaloso o sentido da norma legal e visam apenas, diremos de forma patética, decepar “na secretaria” uma candidatura de cujo espírito vigoroso e vencedor têm medo e temor reverencial, visando furtar-se a Advogado, professor universitário e ex-vereador da Câmara Municipal do Porto eleições livres e apresentar-se com a sua própria tábua de candidatos a essas eleições. Mas isto só alcança quem nunca leu uma linha de Direito ou quem não sabe o que seja a ciência jurídica. Sejamos claros e racionais: a lei de limitação de mandatos visou combater, na área territorial do concelho ou da freguesia, a melindrosa situação de proliferação de interesses ou influências para além de três mandatos sucessivos. A lei é singela e linear: o presidente de câmara e o presidente da junta de freguesia não podem voltar a candidatar-se decorridos que sejam três mandatos. Se é essa função, nesse território da junta ou do concelho (“o presidente” daquela câmara e o “presidente da junta” daquela freguesia) com que atrevimento se defende uma perseguição pessoal a um cidadão, impedindo-o de exercer o mais nobre direito de ser eleito, noutra freguesia e noutro concelho? Estamos no domínio dos direitos, liberdades e garantias; e nesse domínio, por muito que custe a quem gostaria (helas) de colocar um garrote na democracia representativa, não pode haver extensões, interpretações por analogia e quejandos transportes aventurosos. O assunto, na comunidade jurídica, é pacífico. Defendem o postulado de que a lei não impede candidaturas noutros concelhos ou noutras freguesias nomes como os políticos e juristas Marques Guedes, Marques Mendes ou Vitalino Canas, que negociaram a lei e o seu objetivo, ou Professores de Direito como Vital Moreira, Vieira de Andrade, Bacelar Gouveia, Pacheco de Amorim. Numa coleção, publicada há escassos dias, de homenagem ao Prof. Jorge Miranda, com origem na Faculdade de Direito de Lisboa, o Professor António Cândido de Oliveira, em clarividente estudo sobre o exercício de cargos políticos eletivos dos eleitos locais (Vol. I, pp. 361 ss), escreve sobre a lei n.º 46/2005: “Os titulares (dos cargos de presidente da câmara municipal e de presidente da junta de freguesia, que tenham completado três mandatos consecutivos) não estão impedidos de se candidatarem a outros órgãos ou a outras autarquias. Na verdade, a limitação de mandatos regulada nesta lei diz respeito ao exercício de cargos na mesma autarquia. A lei, tendo em conta a sua história e os termos em que está redigida, nomeadamente no número 2 do artigo 1.º pretende apenas evitar a manutenção de uma mesma pessoa no mesmo lugar de uma dada autarquia”. Os bem intencionados, leiam, compreendam e reflitam. Os outros, os inimigos da democracia, os novos seguidores de Torquemada, já denunciaram, por néscios, a fogueira do seu desengano. Vale mais recolherem de vez a garrucha, para se não cobrirem, em definitivo, de ridículo e prepararem-se, como adultos e em lealdade, em eleições livres, para o combate eleitoral autárquico do próximo ano, no Porto. Em pousio humano, maninho de ilusões (Miguel Torga o refere), não se dignifica a lei e o Direito. Nem a vida. Tristemente, alguns não agem assim. Mas como já assinalava, ainda no tempo da ditadura, Francisco Sá Carneiro, aos “bem pensantes não agrada nunca a desmistificação, nem a simplicidade crua da verdade”. Debate Limitação de mandatos Alberto Amorim Pereira A lei é singela e linear: o presidente de câmara e o presidente da junta de freguesia não podem voltar a candidatar- se decorridos que sejam três mandatos. Se é essa função, nesse território da junta ou do concelho (...) com que atrevimento se defende uma perseguição pessoal a um cidadão, impedindo-o de exercer o mais nobre direito de ser eleito, noutra freguesia e concelho?

Os novos inquisidores - por Amorim Pereira

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo de Opinião do Dr. Amorim Pereira sobre a Lei da Limitação de Mandatos. Público 23-11-2012

Citation preview

Tiragem: 43576

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 57

Cores: Cor

Área: 18,71 x 30,54 cm²

Corte: 1 de 1ID: 44883286 23-11-2012

Os novos inquisidores e hereges (do Direito)

Venho hoje ao tema da lei n.º 46/2005, de

29 de Agosto, a qual, no que interessa,

estabelece limites à renovação sucessiva

dos mandatos dos presidentes dos órgãos

executivos das autarquias locais.

O assunto tem merecido alguns

comentários por parte de opositores da

candidatura do Dr. Luís Filipe Menezes à

Câmara Municipal do Porto.

Escrevem e verbalizam esses

opositores que a lei de limitação de mandatos

impede, cumpridos três mandatos, as candidaturas

em qualquer concelho ou freguesia que seja.

Mas já toda a gente percebeu que é doutra coisa que

se trata, seja alcançar, rapidamente e em força, um

pretexto no recolhimento da lei para travar aquela

concreta intenção de conquista da Câmara do Porto.

O tema do impedimento da candidatura constitui

um mero fait-divers jurídico e um ato falhado político,

ninguém o colocou em nenhuma outra circunstância

ou em qualquer outra autarquia. Mas nem por isso

deixa de se me impor, ao menos por pedagogia

jurídica, colocar o acento nesta questão de que falam

analfabetos do direito ou juristas sem créditos.

Como dizia o grande Manuel de Andrade, o

intérprete, o aplicador do Direito, tem de recusar o

reino confuso do palpite, do arbítrio, do sentimento

anárquico ou da intuição irrefl etida.

E é isso que temos visto escrito. Os que até agora

têm perorado contra a candidatura do Dr. Luís Filipe

Menezes, com armaduras de um res nullius jurídico,

com esse pretexto da lei, atuam sem seriedade

intelectual. E sabem-no.

Para esses, a lei dirá o que a sua vontade gostaria

que dissesse e até existe quem, numa asneira que faria

indignar qualquer professor de introdução ao Direito,

venha dar como decisiva a vontade do redator (se fosse

verdadeiro, quod erat demonstrandum) da lei.

Ora, o que decide é o conteúdo da própria lei, o

sentido objetivo da lei. Uma vez publicada, observa o

Mestre Francisco Ferrara, a lei desprende-se dos seus

autores, tem uma vida própria e um espírito próprio e

é este que tem de ser averiguado.

E de entre os vários pensamentos da lei, há-de

preferir-se aquele mediante o qual a lei exteriorize o

sentido mais razoável e produza o efeito mais benéfi co.

A falsa mania da interpretação subjetiva, evocamos

Baptista Machado, esquece a alta e capital missão da

interpretação das leis: servir pela razão do Direito a

vida do Direito.

O Direito e a função criadora da interpretação

das leis são coisas demasiado sérias para serem

arremessadas, em ignorância incontida e, por isso,

muito atrevida, para alimentar raivenças pessoais.

A vida e o espírito postulam um Direito reto (richtig),

quer dizer, justo e oportuno.

São valores éticos e morais que estão em causa

e por isso deve repudiar-se a inaptidão da palavra

daqueles que, restritos de horizonte e cristalizados

para sempre, prejudicam num grau absolutamente

escandaloso o sentido da norma legal e visam apenas,

diremos de forma patética, decepar “na secretaria”

uma candidatura de cujo espírito vigoroso e vencedor

têm medo e temor reverencial, visando furtar-se a

Advogado, professor universitário e ex-vereador da Câmara Municipal do Porto

eleições livres e apresentar-se com a sua própria tábua

de candidatos a essas eleições.

Mas isto só alcança quem nunca leu uma linha de

Direito ou quem não sabe o que seja a ciência jurídica.

Sejamos claros e racionais: a lei de limitação de

mandatos visou combater, na área territorial do

concelho ou da freguesia, a melindrosa situação de

proliferação de interesses ou infl uências para além de

três mandatos sucessivos.

A lei é singela e linear: o presidente de câmara e o

presidente da junta de freguesia não podem voltar a

candidatar-se decorridos que sejam três mandatos.

Se é essa função, nesse território da junta ou

do concelho (“o presidente” daquela câmara e o

“presidente da junta” daquela freguesia) com que

atrevimento se defende uma perseguição pessoal a um

cidadão, impedindo-o de exercer o mais nobre direito

de ser eleito, noutra freguesia e noutro concelho?

Estamos no domínio dos direitos, liberdades e

garantias; e nesse domínio, por muito que custe a quem

gostaria (helas) de colocar um garrote na democracia

representativa, não pode haver extensões, interpretações

por analogia e quejandos transportes aventurosos.

O assunto, na comunidade jurídica, é pacífi co.

Defendem o postulado de que a lei não impede

candidaturas noutros concelhos ou noutras freguesias

nomes como os políticos e juristas Marques Guedes,

Marques Mendes ou Vitalino Canas, que negociaram

a lei e o seu objetivo, ou Professores de Direito como

Vital Moreira, Vieira de Andrade, Bacelar Gouveia,

Pacheco de Amorim.

Numa coleção, publicada há escassos dias, de

homenagem ao Prof. Jorge Miranda, com origem na

Faculdade de Direito de Lisboa, o Professor António

Cândido de Oliveira, em clarividente estudo sobre o

exercício de cargos políticos eletivos dos eleitos locais

(Vol. I, pp. 361 ss), escreve sobre a lei n.º 46/2005:

“Os titulares (dos cargos de presidente da câmara

municipal e de presidente da junta de freguesia, que

tenham completado três mandatos consecutivos) não

estão impedidos de se candidatarem a outros órgãos

ou a outras autarquias. Na verdade, a limitação de

mandatos regulada nesta lei diz respeito ao exercício

de cargos na mesma autarquia. A lei, tendo em conta

a sua história e os termos em que está redigida,

nomeadamente no número 2 do artigo 1.º pretende

apenas evitar a manutenção de uma mesma pessoa no

mesmo lugar de uma dada autarquia”.

Os bem intencionados, leiam, compreendam e

refl itam.

Os outros, os inimigos da democracia, os novos

seguidores de Torquemada, já denunciaram, por

néscios, a fogueira do seu desengano.

Vale mais recolherem de vez a garrucha, para se não

cobrirem, em defi nitivo, de ridículo e prepararem-se,

como adultos e em lealdade, em eleições livres, para o

combate eleitoral autárquico do próximo ano, no Porto.

Em pousio humano, maninho de ilusões (Miguel

Torga o refere), não se dignifi ca a lei e o Direito. Nem

a vida.

Tristemente, alguns não agem assim. Mas como já

assinalava, ainda no tempo da ditadura, Francisco

Sá Carneiro, aos “bem pensantes não agrada nunca

a desmistifi cação, nem a simplicidade crua da

verdade”.

Debate Limitação de mandatosAlberto Amorim Pereira

A lei é singela e linear: o presidente de câmara e o presidente da junta de freguesia não podem voltar a candidatar-se decorridos que sejam três mandatos. Se é essa função, nesse território da junta ou do concelho (...) com que atrevimento se defende uma perseguição pessoal a um cidadão, impedindo-o de exercer o mais nobre direito de ser eleito, noutra freguesia e concelho?