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O Arqueiro

Geraldo Jordão Pereira (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos,

quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes

como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de

leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992,

fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro

que deu origem à Editora Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele ser

lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante, foi certeira:

o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo

desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessíveis

e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta figura

extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente importantes

e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafios e contratempos da vida.

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Este romance é dedicado a dois cavalheiros:David Thomas Jr.,

que me recebeu na Inglaterra,apresentando-me a certo agente, e

Patrick Walsh,o agente a quem ele me apresentou.

Agradeço a vocês dois por toda a confiança demonstrada ao longo dos anos.

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Personagens

No Caminho das Mãos

Icarium, viajante mestiço jaghutMappo, companheiro trell de IcariumIskaral Pust, sumo sacerdote da SombraRyllandaras, o chacal branco, um d’iversMessremb, um soletakenGryllen, um d’iversMogora, uma d’ivers

Os malazanos

Felisin, a filha mais nova da Casa ParanHeboric Toque Leve, historiador exilado e ex-sacerdote de FenerBaudin, companheiro de Felisin e HeboricViolinista, Nono Pelotão, Queimadores de PontesCrokus, visitante vindo de DarujhistanApsalar, Nono Pelotão, Queimadores de PontesKalam, cabo do Nono Pelotão, Queimadores de PontesDuiker, historiador imperialKulp, mago do quadro do Sétimo ExércitoMallick Rel, conselheiro-chefe do Alto Punho das Sete CidadesSawark, comandante da guarda em Copo de Crânio, campo minerador

de otataralPella, soldado alocado em Copo de CrânioPormqual, Alto Punho das Sete Cidades, em ArenBlistig, comandante da Guarda de ArenTopper, comandante da GarraBonança, capitão dos soldados navais de Sialk

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Chenned, capitão do Sétimo ExércitoSulmar, capitão do Sétimo ExércitoLista, cabo do Sétimo ExércitoMoedor, sapadorLula, sapadorGesler, cabo da Guarda CosteiraTempestade, soldado da Guarda CosteiraVerdade, recruta da Guarda CosteiraVesgo, arqueiroPérola, um GarraCapitão Keneb, refugiadoSelv, esposa de KenebMinala, irmã de SelvKesen, filho mais velho de Keneb e SelvVaneb, filho mais novo de Keneb e SelvCapitão, dono e comandante da embarcação mercante Tampa de TrapoTorto, cão pastor wickanoBarata, cachorrinho de estimação hengês

Wickanos

Coltaine, Punho, Sétimo ExércitoTemul, jovem lanceiroSormo E’nath, bruxoNil, bruxoNether, bruxaBult, comandante veterano e tio de Coltaine

Os Lâminas Vermelhas

Baria Setral (Dosin Pali)Mesker Setral, seu irmão (Dosin Pali)Tene Baralta (Ehrlitan)

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Aralt Arpat (Ehrlitan)Lostara Yil (Ehrlitan)

Nobres da Corrente de Cães (malazanos)

NethparaLenestroPullyk AlarTumlit

Seguidores do Apocalipse

Sha’ik, líder da rebeliãoLeoman, capitão do Apocalipse no RarakuToblakai, guarda-costas e guerreiro do Apocalipse no RarakuFebryl, mago e ancião conselheiro de Sha’ikKorbolo Dom, Punho renegado que lidera o exército do OdhanKamist Reloe, Alto Mago com o exército do OdhanL’oric, mago do Apocalipse no RarakuBidithal, mago do Apocalipse no RarakuMebra, espião em Ehrlitan

Outros

Salk Elan, viajante dos maresShan, Cão da SombraEngrenagem, Cão da SombraCega, Cão da SombraBaran, Cão da SombraCrucifixo, Cão da SombraMoby, um familiarHentos Ilm, Invocadora de Ossos t’lan imassLegana Raça, t’lan imass

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Olar Ethil, Invocador de Ossos t’lan imassKimloc, andarilho espectral tannoBeneth, senhor do crimeIrp, pequeno servoRudd, servo igualmente pequenoApto, demônio aptório femininoPanek, criançaKarpolan Demesand, comercianteBula, estalajadeiraCotillion, deus patrono dos assassinosTrono Sombrio, governante da Alta Casa da SombraRellock, servo

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Prólogo

O que você vê no borrão ferido do horizonteque não pode ser escondido

por sua mão erguida?

Queimadores de Pontes, Jovem Toc

Ano 1163 do Sono da IncineraçãoNono ano do governo da imperatriz LaseenAno da Matança

Arrastando-se para o Círculo de Julgamento, ele veio da avenida das Almas, uma massa disforme de moscas. Saliências negras e brilhantes fervilhavam sobre seu corpo, rastejando em migração caótica, ocasionalmente caindo em aglomerados que explodiam num voo fragmentado ao atingirem os paralelepípedos.

A Hora da Sede chegava ao fim e o sacerdote cambaleava em sua esteira, cego, surdo e silencioso. Honrando seu deus naquele dia, o servo do Encapu-zado, o Senhor da Morte, tinha se unido a seus companheiros, despindo-se e besuntando-se com o sangue dos assassinos executados, armazenado nas gi-gantescas ânforas que delineavam as paredes da nave do templo. Os irmãos, então, haviam saído em procissão pelas ruas de Unta a fim de saudar os espíri-tos do deus, continuando a dança mortal que marcava o último dia da Estação da Putrefação.

Os guardas, alinhados ao redor do Círculo, abriram caminho para deixar o sacerdote passar. Em seguida, abriram um caminho maior para a nuvem rodo-piante que o seguia zumbindo. O céu sobre Unta ainda se encontrava mais cinza do que azul, já que as moscas que haviam vasculhado a capital do Império Ma-lazano ao amanhecer agora se erguiam e vagarosamente voavam sobre a baía na direção dos pântanos salgados e das ilhas submersas do outro lado dos recifes. A peste vinha com a Estação da Putrefação, e a Estação viera três vezes nos últimos dez anos, uma marca sem precedentes.

O ar do Círculo ainda zumbia, sarapintado como se estivesse repleto de cas-

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calho flutuante. Em algum lugar nas ruas do outro lado, um cão ganiu. O animal parecia próximo da morte, mas não próximo o bastante. Perto da fonte central do Círculo, a mula abandonada que tinha desabado mais cedo ainda chutava debilmente o ar. Moscas haviam invadido a criatura por todos os orifícios e ela agora se encontrava inchada pelos gases. O animal, teimoso por natureza, estava moribundo fazia mais de uma hora. Quando o sacerdote passou cambaleando por ela, indiferente, moscas se ergueram da mula numa cortina veloz para se unirem àquelas que já envolviam o homem.

Ficou claro para Felisin, de onde ela e os outros esperavam, que o sacerdote do Encapuzado caminhava diretamente em sua direção. Seus olhos eram dez mil olhos, mas a moça tinha certeza de que todos estavam fixos nela. Entretanto, esse horror crescente não era capaz de dissolver o entorpecimento que cobria sua mente como um lençol asfixiante; estava ciente do pavor que crescia em seu âmago, mas tal consciência parecia mais uma lembrança de medo do que medo de verdade, vivo dentro dela.

Mal se recordava da primeira Estação da Putrefação a que sobrevivera, mas ti-nha lembranças claras da segunda. Naquele dia, apenas três anos antes, ela estava segura na propriedade de sua família, em uma casa sólida com as janelas fechadas e seladas com tecido. Braseiros soltavam ondas de fumaça azeda das folhas de istaarl, postados do lado de fora das portas e nos muros altos do pátio, os quais eram rematados por cacos de vidro. O último dia da Estação e sua Hora da Sede haviam sido um momento de repugnância distante para ela: memórias irritantes e inconvenientes, nada mais. Na época, mal tinha pensado nos incontáveis men-digos da cidade e nos animais sem dono, privados de abrigo, ou sequer nos mora-dores mais pobres, recrutados para as equipes de limpeza nos dias subsequentes.

A mesma cidade, mas um mundo diferente.Felisin se perguntou se os guardas tentariam impedir o sacerdote enquanto

ele se aproximava das vítimas da Matança. Ela e os demais da fila eram encargos da imperatriz agora – responsabilidade de Laseen –, e o caminho do sacerdote poderia ser encarado como cego e aleatório, a colisão iminente parecendo mais acidental do que proposital, embora no fundo Felisin soubesse que não. Será que os guardas de elmo dariam um passo à frente, procurando guiar o sacerdote para o lado e conduzi-lo em segurança através do Círculo?

– Acho que não – disse o homem agachado à sua direita. Seus olhos en-treabertos, enterrados fundo nas órbitas, cintilaram com algo que poderia ser divertimento. – Vi você olhando dos guardas para o sacerdote, do sacerdote para os guardas.

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O imenso homem silencioso à sua esquerda se levantou devagar, trazendo a corrente consigo. Felisin estremeceu quando os grilhões lhe deram um puxão no instante em que o homem cruzou os braços sobre o peito nu e cheio de cicatrizes. Ele lançou um olhar fulminante ao sacerdote que se aproximava, mas nada disse.

– O que ele quer comigo? – perguntou Felisin num sussurro. – O que fiz para merecer a atenção de um sacerdote do Encapuzado?

O homem agachado se balançou sobre os calcanhares, inclinando o rosto para o sol do fim da tarde.

– Rainha dos Sonhos, é a juventude egocêntrica que ouço desses lábios doces e carnudos? Ou apenas a costumeira postura do sangue nobre, ao redor da qual o universo orbita? Responda-me, eu imploro, rainha inconstante!

Felisin fez uma careta.– Eu me sentia melhor quando achava que você estava dormindo... ou morto.– Homens mortos não ficam agachados, mocinha; ficam estirados. O sacerdo-

te do Encapuzado não vem para você, mas para mim.Felisin o encarou. A corrente tiniu entre eles. Ele parecia mais um sapo de

olhos fundos do que um homem. Era careca, com o rosto repleto de tatuagens minúsculas e negras, símbolos quadrados gravados, ocultos dentro de um pa-drão maior que cobria a pele como um pergaminho enrugado. Encontrava-se nu, exceto por uma tanga esfarrapada, vermelha e desbotada. Moscas rasteja-vam sobre todo o seu corpo; relutantes em se afastar, continuavam a dançar. No entanto, Felisin percebeu que não o faziam de acordo com a orquestração sombria do Encapuzado. O desenho tatuado cobria o homem: o rosto do javali se sobrepondo ao dele próprio; o labirinto intrincado de pelagem encaracolada, entrançada pelo desenho, descia sinuosamente por seus braços, cobrindo suas coxas e canelas expostas, e patas detalhadas estavam gravadas na pele dos pés. Felisin até então estivera preocupada demais consigo mesma, entorpecida de-mais pelo choque para prestar atenção a seus companheiros na fila da corrente. Agora via que aquele homem era um sacerdote de Fener, o Javali do Verão, e as moscas pareciam saber disso, compreendendo o bastante para alterarem seus movimentos frenéticos. A jovem observou, com fascinação mórbida, enquan-to elas se reuniam nos cotos nas extremidades dos pulsos do homem, sendo as velhas cicatrizes as únicas partes não reclamadas por Fener. Os caminhos que os pequenos espíritos alados tomavam até aqueles cotos não tocavam uma única linha tatuada. As moscas faziam uma dança de fuga... mas, apesar disso, estavam ansiosas para dançar.

O sacerdote de Fener tinha sido acorrentado no tornozelo, ocupando o último

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lugar da fila. Todos os outros traziam as bandas estreitas de ferro presas ao redor do pulso. Os pés dele estavam molhados de sangue e as moscas pairavam ali, mas não pousavam. Felisin viu os olhos dele se abrirem quando a luz do sol foi bloqueada de repente.

O sacerdote do Encapuzado tinha chegado. A corrente se agitou quando o homem à esquerda de Felisin recuou o máximo que os elos permitiam. O muro às costas dela estava quente; os tijolos, pintados com cenas de um cortejo cívico imperial, escorregavam através da malha fina da túnica de escrava dela. Felisin encarou a criatura envolta em moscas que agora se encontrava parada, muda, diante do sacerdote de Fener agachado ali. Não conseguiu ver a pele nem nada do homem em si; as moscas o haviam reivindicado por inteiro e, sob elas, o sacerdote vivia na escuridão, onde o calor do sol não podia tocá-lo. A nu-vem ao seu redor se espalhou e Felisin se encolheu quando incontáveis pernas frias de inseto tocaram suas pernas, arrastando-se rapidamente por suas coxas, para cima. Ela apertou a bainha da túnica ao seu redor, fechando as pernas com força.

O sacerdote de Fener falou, com o rosto largo partido num sorriso forçado:– A Hora da Sede já passou, acólito. Volte para o seu templo.O servo do Encapuzado não respondeu, mas o zumbido pareceu mudar de

timbre e a música das asas vibrou nos ossos de Felisin. Os olhos profundos do sacerdote agachado se estreitaram e seu tom mudou:

– Ah, ora. De fato já fui um servo de Fener, mas não sou mais, há anos. O toque de Fener não pode ser arrancado de minha pele. Mas parece que, apesar de o Javali do Verão não ter amor por mim, tem menos ainda por você.

Felisin sentiu algo estremecer em sua alma quando o zumbido rapidamente se transformou, formando palavras que ela conseguia entender:

– Segredo... para mostrar... agora...– Continue, então – grunhiu o outrora servo de Fener. – Mostre-me.Talvez Fener tenha agido naquele instante, como a mão esmagadora de um

deus furioso, e Felisin iria se lembrar daquele momento e pensar nele com fre-quência. Ou então o segredo era a zombaria dos imortais, uma piada muito além de sua compreensão. A maré crescente de horror dentro dela se libertou; o en-torpecimento de sua alma ardeu quando as moscas explodiram em todas as dire-ções, dispersando-se para todos os lados para revelar... ninguém.

Com os olhos arregalados, o antigo sacerdote de Fener se sobressaltou, como se tivesse sofrido um golpe. Do outro lado do Círculo, meia dúzia de guardas gritaram, sons mudos arrancados a murro de suas gargantas. Correntes estala-

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ram quando os outros da fila se agitaram, como se estivessem prestes a fugir. Os ilhoses de ferro fixos no muro se enrijeceram, mas aguentaram, assim como as correntes. Os guardas se adiantaram e a fila recuou, em submissão.

– Bom, isso foi desnecessário – resmungou o homem tatuado, tremendo.

Uma hora se passou; uma hora em que o mistério, o choque e o horror causa-dos pelo sacerdote do Encapuzado afundaram dentro de Felisin até se transfor-marem em apenas mais uma camada, a mais recente, mas não a última naquilo que se tornara um pesadelo interminável. Um acólito do Encapuzado... que não estava lá. O zumbido de asas que formou palavras. Aquele era o próprio Encapuzado? O Senhor da Morte tinha vindo andar entre mortais? E por que parar justamente diante de um ex-sacerdote de Fener? Qual era a mensagem por trás da revelação?

Entretanto, as perguntas esvaneceram devagar em sua mente, a apatia voltou a se infiltrar e o desespero frio retornou. A imperatriz tinha mandado matar a nobreza, despojando as Casas e famílias de sua riqueza, passando então a uma acusação sumária e à condenação por traição, que terminaria naqueles grilhões. Quanto ao ex-sacerdote à sua direita e ao homem gigantesco e bestial com todas as qualificações de um criminoso comum à sua esquerda, claramente nenhum dos dois podia alegar ter sangue nobre.

Ela riu baixinho, sobressaltando ambos.– O segredo do Encapuzado foi revelado para você, mocinha? – indagou o

ex-sacerdote.– Não.– O que você acha tão divertido, então?Ela balançou a cabeça. Eu havia esperado ficar em boa companhia. Isso não é

um pensamento otimista? Aí está, a mesma postura que os camponeses tinham ânsia de destruir, o mesmo combustível que a imperatriz incendiou...

– Criança!Aquela voz era de uma mulher idosa, ainda arrogante, mas com um ar de an-

siedade desesperada. Felisin fechou os olhos brevemente, depois se endireitou e acompanhou a fila com o olhar até a velha esquelética do outro lado. A mu-lher vestia roupas de dormir rasgadas e sujas. Com sangue nobre, e nada menos.

– Lady Gaesen.A senhora estendeu a mão trêmula.– Sim! Esposa de lorde Hilrac! Eu sou lady Gaesen...

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As palavras vieram como se ela antes tivesse se esquecido de quem era e a mulher franziu o cenho por detrás da maquiagem rachada que cobria suas rugas. Seus olhos vermelhos se fixaram em Felisin.

– Eu a conheço – sibilou. – Casa Paran. Filha mais nova. Felisin!Felisin congelou. Virou-se e olhou diretamente para a frente, para o recinto

em que os guardas se encontravam apoiados em lanças, passando garrafas de cer-veja entre si e espantando as últimas moscas. Uma carroça chegava para buscar a mula, com quatro homens sujos de cinzas descendo dela portando cordas e gan-chos. Para além dos muros que cercavam o Círculo, erguiam-se os pináculos e os domos pintados de Unta. Ela ansiava pelas ruas sombreadas entre eles, pela vida cheia de mimos de uma semana antes, com Sebry rosnando-lhe ordens ríspidas enquanto ela guiava o trote de sua égua preferida. Felisin olharia para cima ao incitar a égua a uma volta delicada e precisa a fim de ver a fileira de árvores que separava a área de hipismo dos vinhedos da família.

Ao lado dela, o bandido grunhiu:– Pelos pés do Encapuzado, a vadia tem senso de humor.Que vadia?, perguntou-se Felisin, mas conseguiu manter a expressão neutra,

ainda que tivesse perdido o conforto de suas lembranças.O ex-sacerdote se espreguiçou.– Briga de irmãs, não é? – Ele fez uma pausa, depois acrescentou secamente: –

Parece um pouco exagerado.O bandido grunhiu outra vez e se inclinou para a frente; sua sombra cobriu

Felisin.– Sacerdote deposto, então? – disse ele. – Não é costume da imperatriz fazer

favores a templos.– Ela não fez. Minha perda de devoção aconteceu há muito tempo. Tenho

certeza de que a imperatriz teria preferido que eu ficasse no claustro.– Como se ela fosse se importar... – disse o bandido, zombeteiro, voltando à

sua pose.Lady Gaesen se agitou.– Você deve falar com ela, Felisin! Uma súplica! Eu tenho amigos ricos...O bandido se virou com um rosnado.– Vá mais para a frente da fila, bruxa velha. É lá que você encontrará seus

amigos ricos!Felisin apenas balançou a cabeça. “Falar com ela.” Faz meses. Nem mesmo

quando o Pai morreu.Fez-se silêncio, persistindo, aproximando-se do que existira antes daquele

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monte de tagarelice, mas então o ex-sacerdote limpou a garganta, cuspiu e resmungou:

– Não vale a pena procurar salvação em uma mulher que está apenas seguindo ordens, lady. Não importa que aquela seja a irmã da menina...

Felisin se encolheu, depois fulminou o ex-sacerdote com o olhar.– Você está presumindo...– Ele não está presumindo nada – grunhiu o bandido. – Esqueça o que há no

sangue, ou o que deveria haver nele, considerando a forma como você vê o mun-do. Isso é obra da imperatriz. Talvez você ache que é pessoal, talvez até tenha de achar isso, sendo o que é...

– E o que eu sou? – Felisin riu asperamente. – Que Casa reclama você como um dos seus?

O bandido sorriu.– A Casa da Vergonha. E daí? A sua não parece menos maltrapilha.– Como pensei – disse Felisin, ignorando, com alguma dificuldade, a verdade

da última observação feita pelo homem. Olhou feio para os guardas. – O que está acontecendo? Por que só ficamos sentados aqui?

O ex-sacerdote cuspiu outra vez.– A Hora da Sede passou. A multidão lá fora precisa ser organizada. – Sob sua

testa alta, os olhos do homem encararam Felisin. – Os camponeses precisam ser agitados. Somos os primeiros, menina, e alguém deve servir de exemplo. O que acontece aqui em Unta perturbará cada nobre do Império.

– Bobagem! – disparou lady Gaesen. – Havemos de ser bem tratados. A impe-ratriz há de nos tratar bem...

O bandido grunhiu uma terceira vez, soltando o que servia como uma risada, Felisin percebeu.

– Se estupidez fosse um crime, lady – disse ele –, você teria sido presa anos atrás. O ogro está certo. Poucos de nós chegarão aos navios de escravos. Esse cortejo descendo a avenida Colunata será um longo massacre. Agora, pode ter certeza de uma coisa... – acrescentou, estreitando os olhos na direção dos guardas – O velho Baudin aqui não vai ser despedaçado por nenhuma multidão de camponeses...

Felisin sentiu medo de verdade despertar em seu estômago. Reprimiu um calafrio.

– Você se importa se eu ficar na sua sombra, Baudin?O homem a encarou.– Você é um pouco gorducha para o meu gosto. – Deu-lhe as costas e acres-

centou: – Mas faça o que quiser.

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O ex-sacerdote se inclinou para perto.– Pensando bem, menina, essa rivalidade de vocês duas não me parece bri-

guinha de unha ou disse me disse. É provável que sua irmã queira ter certeza de que você...

– Ela é a conselheira Tavore – interrompeu Felisin. – Não é mais a minha irmã. Renunciou à nossa Casa ao chamado da imperatriz.

– Mesmo assim, tenho uma suspeita de que ainda seja pessoal.Felisin fez uma careta.– Como você saberia qualquer coisa a respeito disso?O homem fez uma leve reverência irônica.– Ladrão um dia, depois sacerdote, agora historiador. Eu conheço bem a posi-

ção tensa em que a nobreza se encontra.Os olhos de Felisin se arregalaram devagar e ela se amaldiçoou por sua es-

tupidez. Mesmo Baudin, que não poderia ter deixado de escutar a conversa, se inclinou para a frente, com um olhar penetrante.

– Heboric – disse, dirigindo-se ao ex-sacerdote. – Heboric Toque Leve.Heboric ergueu os braços.– Leve como sempre.– Você escreveu aquele livro de revisão da história – disse Felisin. – Cometeu

traição...As sobrancelhas espessas de Heboric se arquearam quando ele fingiu estar

surpreso.– Pelos deuses! Uma divergência filosófica de opiniões, nada mais! As próprias

palavras de Duiker no julgamento, em minha defesa. Que Fener o abençoe.– Mas a imperatriz não ouviu – disse Baudin, sorrindo. – Afinal, você a cha-

mou de assassina e depois fez a menina dizer que ela ferrou com o trabalho!– Achou uma cópia ilícita, foi? – perguntou o ex-sacerdote. Baudin piscou. –

Em todo caso – continuou Heboric, agora para Felisin –, é meu palpite que sua irmã, a conselheira, está planejando que você chegue inteira aos navios de escra-vos. O desaparecimento de seu irmão em Genabackis tirou a vida de seu pai... Foi o que eu ouvi – acrescentou, sorrindo. – Mas foram os rumores de traição que atingiram sua irmã, certo? Limpar o nome da família e tudo mais...

– Você faz isso parecer plausível, Heboric – disse Felisin, ouvindo a amargura em sua voz, mas sem se importar mais. – Divergimos de opinião, Tavore e eu, e está aí o resultado.

– Divergiram de opinião sobre o quê, precisamente?Ela não respondeu.

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Houve uma agitação repentina na fila. Os guardas se empertigaram e encara-ram o portão oeste do Círculo. Felisin empalideceu ao ver a irmã: a conselheira Tavore, agora herdeira de Lorn, que tinha morrido em Darujhistan. Ela caval-gava em seu garanhão, um animal criado nos estábulos de Paran. A seu lado vinha a sempre presente T’âmbar, uma jovem bonita cujo nome se justificava pelos cabelos compridos e amarelo-acastanhados. De onde tinha vindo, não dava para saber ao certo, mas agora era a ajudante pessoal de Tavore. Atrás das duas cavalgavam um grupo de vinte oficiais e uma companhia de cavalaria pesada. Os soldados tinham aparência exótica, estrangeira.

– Um toque de ironia – resmungou Heboric, fitando os soldados a cavalo.Baudin esticou a cabeça para a frente e cuspiu.– Lâminas Vermelhas, esses bastardos de sangue-frio.O historiador olhou, entretido, para o homem.– Viajou bastante na sua profissão, Baudin? Viu os muros marítimos de Aren,

foi?O homem trocou o peso de perna, apreensivo, depois deu de ombros.– Fiquei em um ou dois conveses na minha época, ogro. Além disso, faz uma

semana ou mais que há rumores de que eles estão na cidade.Houve uma agitação na tropa de Lâminas Vermelhas e Felisin viu mãos re-

vestidas de guantes se fecharem nos punhos de suas armas. Elmos pontudos se viraram como um só na direção da conselheira. Irmã Tavore, o desaparecimento de nosso irmão a feriu tão profundamente assim? Quão grande você deve ima-ginar o fracasso dele para buscar esta compensação... E, então, para tornar sua lealdade absoluta, você escolheu entre mim e a Mãe para o sacrifício simbólico. Você não percebeu que o Encapuzado estava ao lado de ambas as escolhas? Pelo menos a Mãe está com seu amado marido agora... Ela observou Tavore vasculhar brevemente sua guarda, depois dizer algo para T’âmbar, que avançou com sua montaria na direção do portão leste.

Baudin grunhiu mais uma vez:– Parece animado. A hora interminável está para começar.

Uma coisa era acusar a imperatriz de assassinato e outra, bem diferente, era adi-vinhar sua próxima jogada. Se ao menos eles tivessem dado atenção ao meu aviso... Heboric se encolheu quando foram arrastados para a frente, as corren-tes cortando gravemente seus tornozelos.

Pessoas de semblante civilizado expuseram o ponto fraco de suas psiques;

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decadentes e sensíveis eram as espécies de mais fina criação. Tudo era fácil e seguro para eles, e esta era a questão no fim das contas: aquela afirmação de opu-lência mimada queimava a garganta dos pobres mais do que qualquer demons-tração ostensiva de riqueza.

Heboric tinha dito isso em seu tratado e agora conseguia admitir uma admira-ção amarga pela imperatriz e pela conselheira Tavore, o instrumento de Laseen. A brutalidade excessiva das prisões noturnas, com portas arrombadas e famílias arrancadas da cama em meio a servos queixosos, forneceu a primeira camada de choque. Atordoados pela privação do sono, os nobres foram amarrados e acorrentados, forçados a ficar de pé diante de um juiz bêbado e um júri de mendigos trazidos das ruas. Tratava-se de uma paródia óbvia e azeda da jus-tiça, que despiu o pouco de expectativas que ainda restavam de um compor-tamento minimamente cortês. Despiu a própria civilização, sem deixar nada exceto o caos da selvageria.

Choque após choque, uma laceração daqueles finos pontos fracos. Tavore co-nhecia a própria classe, conhecia suas fraquezas e foi implacável ao explorá-las. O que poderia levar uma pessoa a tamanha crueldade?

Os pobres encheram as ruas quando ouviram os detalhes, gritando adoração por sua imperatriz. Seguiram-se revoltas cuidadosamente provocadas, pilhagem e carnificina por todo o Bairro Nobre. Caçaram aqueles poucos nobres escolhi-dos que ainda não haviam sido presos, apenas o bastante deles para aguçar a sede de sangue da multidão, fornecendo rostos nos quais os pobres poderiam focar sua raiva e seu ódio. Seguiu-se, depois, a reimposição da ordem, a fim de evitar que a cidade pegasse fogo.

A imperatriz cometia poucos erros. Aproveitara a oportunidade para apanhar desafetos e acadêmicos desajustados, para fechar o punho da presença militar na capital, martelando a necessidade de mais tropas, mais recrutas, mais proteção contra a conspiração traiçoeira da classe nobre. Os bens confiscados pagaram tal expansão marcial. Uma jogada requintada, mesmo que pudesse ter sido prevista, depois da repercussão da força do decreto imperial por todo o Império, com sua fúria cruel varrendo cada cidade.

Admiração amarga. Heboric continuava sentindo a necessidade de cuspir, algo que não fizera desde seus dias de cortador de bolsas no Bairro do Rato, na cidade de Malaz. Podia ver o choque gravado na maioria dos rostos na fila de acorrentados. Na maior parte, era gente em vestes de dormir encardidas e grudentas por causa dos fossos, privando seus donos até da armadura social de uma roupa normal. Cabelos desgrenhados, expressões atordoadas, posturas

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submissas... Tudo que a multidão do outro lado do Círculo ansiava por ver, por flagelar.

Bem-vindos às ruas, Heboric pensou consigo mesmo quando os guardas cutucaram a fila para que ela andasse, sob o olhar da conselheira, altiva em sua sela, com seu rosto magro tão fechado que apenas os contornos se manti-nham: a fenda dos olhos, os parênteses ao redor da boca reta e de lábios finís-simos. Cacete, ela não nasceu com muitas qualidades. A boa aparência ficara toda para sua irmã mais nova, para a menina que cambaleava um passo à frente dele.

Os olhos de Heboric se fixaram na conselheira Tavore, curiosos, procurando alguma coisa, uma fagulha de prazer malicioso talvez, enquanto seu olhar gélido varria a fila e permanecia pelo mais breve dos momentos em sua irmã. Mas a pausa foi tudo o que ela revelou, um reconhecimento confesso, e nada mais. O olhar apenas seguiu seu caminho.

Os guardas abriram o portão leste duzentos passos adiante, perto do início da fila acorrentada. Um rugido se derramou através daquela antiga passagem arqueada, como uma onda de som que esbofeteou tanto soldados quanto prisio-neiros, ricocheteando nos muros altos e erguendo-se em meio a uma explosão de pombos aterrorizados, saídos dos beirais superiores. O som de asas batendo flutuou para baixo como um aplauso educado, apesar de parecer a Heboric que somente ele apreciou aquele toque irônico dos deuses. Não desejando negar um gesto, ele conseguiu fazer uma leve reverência.

Que o Encapuzado guarde seus malditos segredos. Aqui, Fener, seu porco velho, está aquela comichão que nunca consegui coçar. Fique olhando agora, bem de perto. Veja o que será de seu filho indócil.

Alguma parte da mente de Felisin tentava se agarrar à sanidade, segurando-se com uma garra brutal à espera de um turbilhão. Soldados formavam três fileiras na avenida Colunata, mas várias vezes a multidão pareceu encontrar os pontos fracos daquela linha fortificada. Ela observava friamente, mesmo enquanto mãos tentavam rasgá-la, punhos vinham para esmurrá-la e faces desfocadas se preci-pitavam em sua direção, com montes de cuspe. E, assim como a sanidade ainda resistia nela, também um par de braços firmes a envolveu: braços sem mãos, com suas extremidades cheias de cicatrizes e pus, que a empurravam adiante, sempre adiante. Ninguém tocou no sacerdote. Ninguém ousou. Enquanto isso, à frente estava Baudin, mais apavorante que a própria multidão.

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Ele matava sem o menor esforço. Jogava corpos para o lado com desdém, rugindo, gesticulando, chamando. Até mesmo os soldados o encaravam por debaixo de seus elmos, virando a cabeça para suas provocações, apertando lan-ças ou punhos de espada com as mãos.

Baudin, aquele Baudin risonho, teve seu nariz esmagado por um tijolo bem atirado. As pedras quicavam sobre ele e sua túnica de escravo estava em farrapos e banhada de sangue e cuspe. Todos que o atacavam dentro de seu alcance, ele agarrava, torcia, curvava e quebrava. A única pausa nesse ritmo acontecia quan-do algo ocorria à frente, alguma brecha nas tropas... ou quando lady Gaesen va-cilou. Ele a agarrou pelas axilas, sem nenhuma gentileza, e a atirou para a frente, xingando durante todo o tempo.

Uma onda de medo corria diante dele, um toque do terror infligido retor-nando à multidão. O número de atacantes tinha diminuído, embora os tijolos voassem em um bombardeio constante, alguns acertando, a maioria errando.

A marcha pela cidade continuou. Os ouvidos de Felisin zumbiam dolorosa-mente. Todos os sons vinham a ela através de um torpor barulhento, mas seus olhos viam claramente, buscando e encontrando – com frequência demais – imagens que ela jamais esqueceria.

Os portões estavam à vista quando o rompimento mais selvagem das barreiras aconteceu. Os soldados pareceram se dissolver e a maré de fome feroz varreu a rua, engolfando os prisioneiros.

Felisin ouviu as palavras grunhidas por Heboric atrás dela enquanto o ex-sa-cerdote a empurrava com força:

– É este, então.Baudin rugiu. Corpos se amontoavam, mãos rasgavam, unhas arranhavam.

Os últimos trapos de roupa de Felisin foram arrancados. Uma mão se fechou em uma mecha de seus cabelos e puxou com força, com a intenção de quebrar algumas vértebras. Ela ouviu gritos e percebeu que vinham da própria garganta. Um grunhido bestial soou atrás da moça, que sentiu a mão se fechando convul-sivamente, para depois sumir. Mais gritos encheram seus ouvidos.

Um impulso os atingiu, puxando ou empurrando, ela não saberia dizer, e o rosto de Heboric apareceu em seu campo de visão, cuspindo pele sangrenta da boca. De uma só vez, um círculo se abriu ao redor de Baudin. Ele se agachou, vo-ciferando uma torrente de xingamentos dignos de um estivador com seus lábios moídos. Sua orelha direita fora arrancada, levando junto cabelo, pele e carne. O osso de sua têmpora brilhava, úmido. Corpos jaziam ao seu redor e poucos deles se moviam. A seus pés estava lady Gaesen. Baudin segurou a mulher pelos cabelos,

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puxando seu rosto até que ele ficasse visível. O momento pareceu congelar e o mundo se fechou naquele único lugar.

Baudin exibiu seus dentes e riu.– Não sou um nobre chorão – grunhiu, encarando a massa de gente. – O que

vocês querem? Querem o sangue de uma nobre? – A multidão gritou, estenden-do mãos ávidas. Baudin riu de novo. – Vamos passar, estão ouvindo? – Emperti-gou-se, puxando a cabeça de lady Gaesen para cima.

Felisin não conseguia dizer se a senhora estava consciente. Seus olhos perma-neciam fechados, sua expressão, serena, quase juvenil, sob a sujeira e os hema-tomas. Talvez estivesse morta. Felisin rezou para que sim. Algo estava prestes a acontecer, algo que condensaria aquele pesadelo em uma única imagem. A tensão estava no ar.

– Ela é sua! – gritou Baudin. Com a outra mão agarrando o queixo da nobre, ele torceu a cabeça dela. O

pescoço estalou e o corpo cedeu, em convulsões. Baudin enrolou um trecho da cor-rente ao redor do pescoço da mulher. Puxou-a até deixá-la tensa, depois começou a serrar. Sangue brotou, deixando a corrente parecida com um cachecol lacerado.

Felisin o fitava, horrorizada.– Fener tenha misericórdia – murmurou Heboric.A multidão ficou em silêncio, pasma, recuando até mesmo em meio à sua sede

de sangue, encolhendo-se para trás. Um soldado apareceu, sem elmo, com seu rosto jovem pálido e os olhos fixos em Baudin, parando diante dele. Além do soldado, os elmos pontudos brilhantes e as lâminas largas dos Lâminas Verme-lhas lampejaram acima da multidão enquanto os cavaleiros lentamente abriam caminho na direção da cena.

Nenhum movimento, exceto a corrente serrando. Nenhum suspiro, exceto os grunhidos de Baudin. Qualquer revolta que continuasse a ferver fora daquele lugar parecia estar a milhares de quilômetros de distância.

Felisin assistiu à cabeça da mulher dando solavancos para a frente e para trás, uma paródia da própria movimentação da vida. Lembrava-se de lady Gaesen, arrogante, imperiosa, ainda que seus anos de beleza já tivessem passado e, mes-mo assim, ela procurasse prestígio com base nesse atributo. Que outras escolhas aquela mulher teria? Muitas, mas isso não importava agora. Se ela tivesse sido uma avó meiga e bondosa, não teria importado, não teria mudado o horror capaz de entorpecer a mente naquele momento.

A cabeça se soltou com um som de soluço. Os dentes de Baudin reluziram ao encarar a multidão.

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– Tínhamos um acordo – disse ele com voz áspera. – Aqui está o que vocês querem, algo para se lembrarem deste dia de hoje em diante.

Lançou a cabeça de lady Gaesen na multidão, um redemoinho de cabelos e fios de sangue. Gritos responderam à aterrissagem, que ninguém chegou a ver.

Mais soldados apareceram, apoiados pelos Lâminas Vermelhas, se aproxi-mando devagar, empurrando para os lados os espectadores ainda silenciosos. A paz estava sendo restabelecida por toda a fila, com violência e sem misericórdia em todos os lugares, exceto naquele. Assim que as pessoas começaram a morrer sob golpes de espada, o resto fugiu.

Cerca de trezentos prisioneiros tinham saído da arena. Felisin, olhando para a fila adiante, se deu conta pela primeira vez do que tinha restado dela. Alguns grilhões seguravam apenas antebraços, outros se encontravam completamente vazios. Menos de cem prisioneiros permaneciam em pé. Muitos se debatiam no chão, gritando de dor; o restante não se movia.

Baudin olhou feio para o grupo mais próximo de soldados.– Bem na hora, cabeças de lata.Heboric cuspiu pesadamente, contorcendo o rosto e fulminando o bandido

com o olhar.– Imaginou que você compraria sua saída daqui, foi, Baudin? Deu o que eles

queriam. Mas foi um desperdício, não foi? Os soldados estavam vindo. Ela po-deria ter sobrevivido...

Baudin se virou devagar. Seu rosto era um lençol de sangue.– Para quê, sacerdote?– Era essa a sua linha de raciocínio? Que ela teria morrido na detenção de

qualquer modo?Baudin mostrou os dentes e disse, devagar:– Eu odeio fazer acordos com bastardos.Felisin fitou a extensão de 1 metro de corrente entre ela e Baudin. Mil pen-

samentos poderiam ter se seguido, elo por elo: o que ela tinha sido, o que era agora; a prisão que ela descobrira, por dentro e por fora, amalgamada como uma lembrança viva. Mas tudo que ela pensou, tudo que disse, foi:

– Não faça mais acordos, Baudin.Os olhos dele se estreitaram e pousaram sobre a moça. Suas palavras e seu tom

tinham tocado o bandido de alguma forma.Heboric se aprumou com um olhar duro ao contemplá-la. Felisin virou para

outro lado, meio por desafio, meio por vergonha.Um momento depois, tendo limpado a fila dos mortos, os soldados os em-

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purraram para fora dos portões, na direção da estrada leste e rumo à cidade por-tuária chamada Azarenta. Lá aguardavam a conselheira Tavore e sua comitiva, assim como os navios de escravos de Aren.

Fazendeiros e camponeses se postavam às margens da estrada, sem mostrar nada do frenesi que acometera seus primos na cidade. Felisin viu em seus rostos uma tristeza obtusa, uma paixão nascida de cicatrizes diferentes. Não conseguiu entender de onde tinham vindo e percebeu que sua ignorância era a diferença entre ela e eles. Também percebeu, em seus hematomas, seus arranhões e sua nudez desamparada, que suas lições haviam começado.

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L I V R O I

Raraku

Ele nadou aos meus pés,Braços poderosos em braçadas largasVarrendo a areia.Então perguntei a este homem:– Em que mares você nada?E a isso ele respondeu:– Eu vi conchas e afinsNeste chão deserto,Então nado na memória desta terraHonrando seu passado assim.– A jornada é longa? – inquiri.– Não posso dizer – respondeu ele –,Pois hei de afundar muito antesDe acabar.

Provérbios do ToloThenys Bule

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CaPítulo 1

E tudo veio para estamparA passagem deles

No caminho,Para perfumar seus ventos secos,

Sua reivindicação enjoativaÀ ascendência.

O Caminho das Mãos, Messremb

Ano 1164 do Sono da IncineraçãoDécimo ano do governo da imperatriz LaseenO sexto dos sete anos de Dryjhna, a Apocalíptica

Um penacho espiralado de poeira percorreu a depressão, afundando-se no de-serto inexplorado do Pan’potsun Odhan. Embora se encontrasse a menos de dois mil passos de distância, parecia nascido do nada.

De seu poleiro na borda do planalto, moldada pelo vento, Mappo Coto o acompanhava com olhos implacáveis, da cor da areia, fundos em um rosto páli-do de ossos robustos. Ele segurava uma cunha de cacto emrag na mão cheia de cerdas, ignorando os espinhos envenenados enquanto a mordia. O sumo pingava de seu queixo, manchando-o de azul. Mastigava devagar, pensativo.

A seu lado, Icarium atirou um seixo na direção do precipício. A pedra estalou e retiniu em seu caminho para o fundo, repleto de outros pedregulhos. Sob a veste esfarrapada de andarilho espectral, com seu laranja desbotado pelo sol in-findável até ficar de uma cor de ferrugem poeirenta, sua pele cinzenta escurecera e se tornara verde-oliva, como se o sangue de seu pai houvesse respondido ao chamado antigo daquele descampado. De seu cabelo comprido e preto trançado pingava um suor negro na rocha clareada pelo sol.

Mappo puxou um espinho esmagado do meio de seus dentes da frente.− Sua tintura está escorrendo − comentou, fitando o pedaço de cacto antes de

dar outra mordida.Icarium deu de ombros.

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− Não importa mais. Não aqui.− Nem minha avó cega teria engolido esse seu disfarce. Os olhos se estreita-

ram para nós em Ehrlitan. Eu os sentia rastejando nas minhas costas dia e noite. Afinal de contas, a maioria dos tannos é baixa e tem a perna torta. − Mappo tirou os olhos da nuvem de poeira e analisou seu amigo. Grunhiu, em seguida: − Da próxima vez, melhor escolher uma tribo em que todas as pessoas tenham 2 me-tros de altura.

O rosto de Icarium, enrugado e maltratado pelo clima, se contorceu em algo parecido com um sorriso, apenas uma insinuação, antes de retomar sua expres-são plácida.

− Aqueles que saberiam de nós nas Sete Cidades com certeza sabem de nós agora. Os que não sabem, por sua vez, podem até ficar curiosos a nosso respeito, mas não passa disto: curiosidade. − Estreitando os olhos diante da luminosidade, apontou na direção do penacho. − O que você vê, Mappo?

− Cabeça chata, pescoço comprido, corpo negro e peludo. Se fosse só isso, eu poderia estar descrevendo um dos meus tios.

− Mas há mais.− Uma perna na frente e duas atrás.Icarium deu batidinhas no nariz, refletindo.− Então não é um dos seus tios. Um aptório?Mappo aquiesceu devagar.− A convergência está a meses de distância. Suponho que Trono Sombrio te-

nha ouvido algo a respeito do que está a caminho e mandou alguns patrulheiros...− E esse?Mappo sorriu largamente, expondo seus caninos gigantescos.− Um negocinho qualquer, longe demais de casa. Ele é o bichinho de estimação

de Sha’ik agora. Terminou de comer o cacto, secou as mãos em forma de espátula e se levantou.

Arqueando as costas, estremeceu. Ele não sabia como, mas, na noite anterior, uma massa de raízes se acumulara sob a areia abaixo de seu saco de dormir e agora os músculos dos dois lados de sua coluna condiziam com cada nó e curva daqueles ossos desarborizados. Esfregou os olhos. Fazendo uma análise rápida pela extensão de seu corpo, percebeu o estado esfarrapado e imundo de suas roupas. Suspirou.

− Dizem que há um charco por aí, em algum lugar...− Com o exército de Sha’ik acampado ao redor.Mappo grunhiu.Icarium também se endireitou, notando mais uma vez toda a massa de seu

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companheiro, grande até mesmo para um trell: os ombros largos e cobertos de pelo preto, os músculos vigorosos dos braços compridos e os milhares de anos que saltavam como um bode alegre por trás dos olhos de Mappo.

− Você consegue rastreá-lo?− Se você quiser.Icarium fez uma careta.− Há quanto tempo nos conhecemos, amigo?Mappo lançou-lhe um olhar cortante, depois deu de ombros.− Muito. Por que pergunta?− Percebo relutância de longe. A perspectiva perturba você?− Qualquer possibilidade de esbarrar com demônios me perturba, Icarium.

Assustado como uma lebre é o trell Mappo.− Estou sendo guiado pela curiosidade.− Eu sei.A dupla improvável voltou para o pequeno acampamento, escondido entre

dois pináculos muito altos de rocha esculpida pelo vento. Não havia pressa. Ica-rium se sentou sobre uma rocha plana e começou a lubrificar seu arco longo, empenhado em impedir que a madeira-chifre ficasse seca demais. Uma vez sa-tisfeito com a condição da arma, pegou a espada de um gume, tirando a arma antiga da bainha de couro fervido com uma tira de bronze e em seguida passando sua borda dentada em uma pedra de amolar lubrificada.

Mappo golpeou a tenda de couro cru, dobrando-a sem cuidado antes de en-fiá-la em sua bolsa grande de couro. Guardou também os utensílios de cozinha, assim como as camas. Amarrou os cordões e jogou a bolsa sobre um dos ombros; em seguida, olhou para o local em que Icarium aguardava, com o arco novamen-te embrulhado e preso às costas.

Icarium assentiu e os dois, o mestiço de jaghut e o trell puro-sangue, iniciaram a caminhada para o vale.

No céu, as estrelas pairavam radiantes, lançando no vale luz suficiente para tingir de prateado a encosta rachada. Moscas-vampiro haviam sumido junto com o fim do calor do dia, deixando a noite para enxames ocasionais de mariposas-do-lixo e lagartos rhizanos semelhantes a morcegos, que delas se alimentavam.

Mappo e Icarium fizeram uma pausa para descansar no pátio de uma constru-ção em ruínas. As paredes de tijolos de barro estavam erodidas, deixando apenas trechos da altura da canela, dispostos em padrões geométricos ao redor de um ve-

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lho poço seco. A areia que cobria os ladrilhos do pátio era fina e tinha sido soprada pelo vento, parecendo brilhar fracamente aos olhos de Mappo. Arbustos retorci-dos se agarravam às extremidades da construção com suas raízes emaranhadas.

O Pan’potsun Odhan e o Deserto Sagrado Raraku, que o ladeava a oeste, eram o lar de incontáveis restos de civilizações, extintas muito tempo antes. Em suas viagens, Mappo e Icarium haviam encontrado tels altos, montanhas de topo plano construídas com camadas e camadas de cidades, situados em uma sucessão desi-gual ao longo de quase 280 quilômetros entre as colinas e o deserto, evidência clara de que um povo rico e próspero tinha vivido no que agora era um descampado seco castigado pelo vento. Do Deserto Sagrado surgira a lenda de Dryjhna, a Apocalíptica. Mappo se perguntou se a calamidade que acometera as cidades daquela região e seus habitantes contribuíra de algum modo para o mito sobre uma era de devastação e morte. Exceto pelas esparsas propriedades abandona-das, como aquela em que descansavam naquele momento, muitas ruínas mostra-vam sinais de um fim violento. Mappo fez uma careta quando seus pensamentos percorreram caminhos familiares mas desagradáveis. Nem todos os passados po-dem ser colocados diante de nós, e aqui e agora não estamos mais perto do que já estivemos. E não tenho nenhuma razão para duvidar de minhas palavras. Ele se afastou desses pensamentos também.

Perto do centro do pátio havia uma única coluna de mármore rosa, esbu-racada e sulcada em um dos lados, em que os ventos nascidos no Raraku so-pravam sem cessar na direção da cordilheira de Pan’potsun. O lado oposto do pilar ainda conservava o padrão espiralado esculpido por artesãos mortos havia muito tempo.

Ao entrar no pátio, Icarium caminhara diretamente para a coluna de 1,80 me-tro, examinando suas laterais. Seu grunhido disse a Mappo que ele encontrara o que estava procurando.

− E esta aqui? − perguntou o trell, colocando a bolsa de couro no chão.Icarium se aproximou, limpando a sujeira das mãos.− Embaixo, perto da base, há rastros de minúsculas mãos com garras. Os ca-

çadores estão na Pista.− Ratos? Mais de um grupo?− D’ivers − concordou Icarium.− Eu me pergunto quem será.− Provavelmente Gryllen.− Hum... Desagradável.Icarium contemplou a planície lisa que se estendia para oeste.

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− Virão outros. Tanto soletaken quanto d’ivers. Aqueles que se sentem próxi-mos à Ascendência, e mesmo aqueles que não estão, mas procuram o Caminho ainda assim.

Mappo suspirou, olhando para seu velho amigo. Um pavor vago despertou dentro dele. D’ivers e soletaken, as maldições gêmeas da metamorfose, a febre para a qual não há cura, reunindo-se... aqui, neste lugar.

− Isso é sensato, Icarium? − perguntou o trell, baixinho. − Ao procurarmos seu objetivo eterno, nós aos poucos nos metemos em uma convergência das mais desagradáveis. Se os portais se abrirem, veremos nossa passagem impedida por uma horda de indivíduos com sede de sangue, ávidos em sua crença de que os portais oferecerão Ascendência.

− Se tal caminho existir, talvez eu também venha a achar lá as respostas que procuro − disse Icarium, com os olhos ainda no horizonte.

Respostas não são bênçãos, amigo. Confie em mim, por favor.− Você ainda não me explicou o que vai fazer depois de conseguir essas

respostas.Icarium se virou para ele com um ligeiro sorriso.− Eu sou minha maldição, Mappo. Estou vivo há séculos, mas o que sei do

meu passado? Onde estão as minhas lembranças? Como posso julgar a minha vida sem esse conhecimento?

− Alguns considerariam sua maldição uma dádiva − disse Mappo, com um lampejo de tristeza perpassando suas feições.

− Eu, não. Enxergo essa convergência como uma oportunidade. Ela pode mui-to bem me dar respostas. Espero não ter de pegar minhas armas para consegui--las, mas farei isso, se necessário.

O trell suspirou mais uma vez e ficou de pé.− Sua decisão pode ser posta à prova em breve, amigo. − Olhou para sudoeste.

− Há seis lobos do deserto seguindo nossos rastros.Icarium desembrulhou seu arco e colocou nele a corda com um movimento

rápido e fluido.− Lobos do deserto nunca caçam pessoas.− Não mesmo − concordou Mappo. Levou mais uma hora até a lua se erguer. Ele observou Icarium enfileirar seis

flechas compridas com ponta de pedra e semicerrou os olhos na direção da es-curidão. Um medo gelado rastejou por sua nuca. Os lobos ainda não estavam visíveis, mas os sentia mesmo assim.

− Há seis, mas são um só... D’ivers.

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Seria melhor se fosse um soletaken. Dar de cara com uma única fera já é bastante desagradável, mas várias...

Icarium franziu o cenho.− Um poderoso, então, para assumir a forma de seis lobos. Você sabe quem

pode ser?− Tenho uma suspeita − disse Mappo em voz baixa.Ambos ficaram em silêncio, esperando.Meia dúzia de formas castanho-avermelhadas apareceram de uma escuridão

que parecia criada por si só, a menos de trinta passos de distância. A vinte passos, os lobos se espalharam, formando uma meia-lua e encarando Mappo e Icarium. O cheiro picante do d’ivers encheu o ar parado da noite. Uma das feras avançou lentamente e parou quando Icarium ergueu o arco.

− Não seis; um − murmurou Icarium.− Eu o conheço − disse Mappo. − Uma pena ele não poder dizer o mesmo

sobre nós. Ele é inconstante, mas tomou uma forma adequada ao derramamento de sangue. Esta noite, Ryllandaras está caçando no deserto. Mas me pergunto se seu alvo somos nós ou alguma outra coisa.

Icarium deu de ombros.− Quem fala primeiro, Mappo?− Eu − respondeu o trell, dando um passo adiante. Aquilo exigia malícia e

astúcia. Um erro seria fatal. Manteve a voz baixa e seca: − Longe de casa, não é? Seu irmão Treach achou que tinha matado você. Onde era aquele abismo mes-mo? Dal Hon? Ou Li Heng? Vocês eram d’ivers chacais naquela época, se não me falha a memória.

Ryllandaras falou dentro da mente deles, com uma voz falha e hesitante por conta do desuso. Estou tentado a entrar num combate intelectual com você, trell, antes de matá-lo.

− Pode não valer a pena − respondeu Mappo sem dificuldade. − Com a com-panhia com que tenho andado, estou tão fora de prática quanto você, Ryllandaras.

Os olhos azul-claros do lobo líder foram para Icarium.− Eu tenho pouco intelecto com que combater − disse o mestiço jaghut, sua-

vemente, e sua voz mal se ouvia. − E estou perdendo a paciência.Tolice. Ser encantadores é tudo o que pode salvar vocês. Diga-me, arqueiro: você

entrega sua vida aos ardis de seu companheiro?Icarium balançou a cabeça.− Claro que não. Eu compartilho com ele a opinião que tem de si mesmo.Ryllandaras pareceu confuso. Uma questão de conveniência, então, vocês dois

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estarem viajando juntos. Companheiros sem confiança, sem fé um no outro. As apostas devem ser altas.

− Estou ficando entediado, Mappo − disse Icarium.Os seis lobos se enrijeceram como um só, meio que se encolhendo. Mappo Coto

e Icarium. Ah, estamos entendendo. Saibam que não temos contendas com vocês.− Intelectos equiparados − disse Mappo, seu sorriso se alargando antes de

desaparecer completamente. − Cace em outro lugar, Ryllandaras, antes que Ica-rium faça um favor a Treach. − Antes que você liberte tudo o que jurei impedir. − Fui claro?

Nossos caminhos... convergem sobre a pista de um demônio da Sombra, disse o d’ivers.

− Não é mais da Sombra − replicou Mappo. − É de Sha’ik. O Deserto Sagrado não está mais adormecido.

Assim parece. Você proíbe nossa caçada?Mappo olhou para Icarium, que baixou o arco e deu de ombros.− Se você quiser se atracar com um aptório, a escolha é sua. Só temos interesse

em passar.Então nossas mandíbulas se fecharão sobre a garganta do demônio.− Você faria de Sha’ik sua inimiga? − perguntou Mappo.O lobo líder inclinou a cabeça.Esse nome não significa nada para mim.Os dois viajantes assistiram aos lobos correrem dali com passos leves, desapa-

recendo mais uma vez em uma escuridão de feitiçaria. Mappo mostrou os dentes, depois suspirou, e Icarium assentiu, dando voz ao que ambos haviam pensado:

− Vai significar em breve.

Os soldados wickanos da cavalaria soltavam gritos ferozes de júbilo enquanto conduziam seus cavalos de dorso largo pela prancha de desembarque do navio. A cena no cais do porto imperial de Hissar era caótica: uma massa desordenada de homens e mulheres das tribos. O lampejo de lanças com pontas de ferro on-dulava acima de cabelos negros trançados e elmos de crânio cheios de espinhos. Do parapeito da torre de entrada do porto, Duiker olhou para baixo, na direção da selvagem comitiva estrangeira, com algum ceticismo e crescente inquietação.

Ao lado do historiador imperial estava o representante do Alto Punho, Mal-lick Rel, com suas mãos gordas e macias unidas e pousadas sobre a pança. Sua pele era da cor de couro hidratado e cheirava a perfumes de Aren. Mallick Rel

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não parecia nem um pouco o conselheiro-chefe do comandante do exército ma-lazano das Sete Cidades. Sendo um sacerdote jhistal do deus ancestral dos mares, Mael, sua presença ali, para transmitir oficialmente as boas-vindas do Alto Pu-nho ao novo Punho do Sétimo Exército, era precisamente o que parecia: um insulto calculado. Apesar disso, Duiker se corrigiu em silêncio, o homem ao lado tinha subido a uma posição de poder entre os figurões imperiais daquele conti-nente em pouquíssimo tempo. Corriam nas línguas dos soldados mil rumores a respeito do sacerdote sereno de fala mansa e de qualquer que fosse a carta que ele tinha na manga contra o Alto Punho Pormqual. E cada rumor não passava de um sussurro, pois a subida de Mallick Rel até o lado de Pormqual estava repleta de histórias sobre misteriosos infortúnios para aqueles que ficaram em seu cami-nho. Infortúnios fatais, valia lembrar.

O lamaçal político entre os ocupantes malazanos nas Sete Cidades era tão obs-curo quanto potencialmente mortal. Duiker suspeitava que o novo Punho enten-deria pouco dos gestos velados de desprezo, já que lhe faltavam as nuances mais civilizadas dos cidadãos mais submissos do Império. A pergunta que permanecia para o historiador era, então, por quanto tempo Coltaine do clã dos Corvos so-breviveria à sua nova designação.

Mallick Rel comprimiu os lábios e exalou devagar.− Historiador − disse em voz baixa, com o sibilar de seu sotaque falari-gedo-

riano bem sutil −, feliz pela sua presença. Curioso também. Longe da corte de Aren já há um tempo... − Ele sorriu sem mostrar os dentes de coloração verde. − Cautela criada a partir de matança distante?

Palavras como o bater das ondas, a afetação amorfa e a paciência insidiosa do deus Mael, esta minha quarta conversa com Rel. Ah, como detesto esta criatura! Duiker pigarreou.

− A imperatriz presta pouca atenção a mim, jhistal...A risada baixa de Mallick Rel soou como o chocalho de uma cobra.− Historiador que recebe pouca atenção ou que presta pouca atenção à histó-

ria? Um quê de amargura diante de conselho rejeitado ou, pior, ignorado. Acal-me-se, crimes não voam de volta das torres de Unta.

− Feliz em ouvir isso − resmungou Duiker, perguntando-se a respeito das fon-tes do sacerdote. E explicou, depois de um momento: − Continuo em Hissar para fins de pesquisa. O precedente de enviar prisioneiros para minas de otataral na ilha remonta à época do imperador, embora ele costumasse reservar esse destino aos magos.

− Magos? Rá-rá.

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Duiker assentiu.− Eficaz, sim, embora imprevisível. As propriedades específicas do otataral como

metal supressor de magia continuam imensamente misteriosas. Ainda assim, a lou-cura acabou atingindo a maior parte daqueles feiticeiros, mesmo que não se saiba se isso resultou da exposição ao pó do minério ou à privação de seus Labirintos.

− Há magos em meio à próxima remessa de escravos?− Alguns.− A pergunta será logo respondida, então.− Logo − concordou Duiker.O cais em forma de “T” continha uma multidão de wickanos agressivos, es-

tivadores assustados e cavalos de guerra irritadiços. Um cordão de guardas de Hissar era a rolha do gargalo na extremidade da doca, onde ela se abria em um meio-círculo pavimentado. Nascidos nas Sete Cidades, os guardas haviam ergui-do seus escudos circulares e desembainhado suas cimitarras, sacudindo, como forma de intimidação, as lâminas largas e curvas na direção dos wickanos, que responderam com gritos e ameaças.

Dois homens apareceram no parapeito. Duiker maneou a cabeça, cumpri-mentando. Mallick Rel não se dignou a perceber nenhum dos dois: um capitão rude e o único sobrevivente do quadro de magos do Sétimo, ambos com posição baixa demais para merecer qualquer atenção do sacerdote.

− Bem, Kulp, sua chegada pode se mostrar oportuna − disse Duiker ao mago atarracado de cabelos brancos.

Kulp torceu o rosto estreito e queimado pelo sol, fazendo uma careta.− Subi aqui para manter meus ossos e minha carne intactos, Duiker. Não es-

tou interessado em me tornar o tapete de Coltaine em sua subida até o posto. Eles são o povo dele, afinal de contas. Eu diria que o fato de ele não ter tomado uma maldita providência para suprimir esse motim em ebulição não traz bons presságios.

O capitão a seu lado grunhiu em concordância.− Dá nos nervos. Metade dos oficiais ali viu sangue pela primeira vez enfren-

tando o desgraçado do Coltaine e agora aqui está ele, prestes a assumir o co-mando. − E cuspiu: − Pelas juntas do Encapuzado, não haverá muitas lágrimas derramadas se a Guarda de Hissar retalhar Coltaine e cada um de seus selvagens wickanos aqui no cais. O Sétimo não precisa deles.

− Verdade atrás da ameaça de insurreições − disse Mallick Rel a Duiker, com olhos velados. − Continente aqui, um ninho de víboras. Coltaine uma escolha esquisita...

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− Não tão esquisita − disse Duiker, dando de ombros. Voltou sua atenção à cena abaixo. Os wickanos mais próximos à Guarda de

Hissar haviam começado a andar altivamente de um lado para outro diante da linha blindada. A situação estava a ponto de se transformar em uma batalha de proporções reais e o gargalo parecia prestes a se transformar no palco de uma grande matança. O historiador sentiu algo gelar seu estômago ao ver arcos de chifre já envergados entre os soldados wickanos. Outro destacamento de guardas apareceu, vindo da avenida à direita da colunata principal, com as lanças erguidas.

− Você pode explicar isso? − perguntou Kulp.Duiker se virou e ficou surpreso ao ver os três homens olhando para ele. Re-

lembrou seu último comentário e deu de ombros outra vez.− Coltaine uniu os clãs wickanos em uma insurreição contra o Império. O

imperador teve dificuldades de subjugá-lo, como alguns de vocês sabem melhor do que eu. O imperador, fiel a seu estilo, obteve a lealdade de Coltaine...

− Como? − latiu Kulp.− Ninguém sabe. − Duiker sorriu. − O imperador raramente explicava seus

atos. Em todo caso, já que Laseen não tinha nenhuma afeição pelos comandan-tes escolhidos por seu antecessor, Coltaine foi abandonado para apodrecer em algum buraco em Quon Tali. Então a situação mudou. A conselheira Lorn foi assassinada em Darujhistan, o Alto Punho Dujek e seu exército se tornaram de-sertores, rendendo com eficácia toda a campanha de Genabackis, e o Ano de Dryjhna se aproxima aqui nas Sete Cidades, profetizado como o ano da rebelião. Laseen precisa de comandantes competentes antes que tudo escape de seu con-trole. A nova conselheira Tavore não foi testada. Então...

− Coltaine... − O capitão aquiesceu e sua carranca se aprofundou. − Enviado para cá a fim de assumir o comando do Sétimo e derrubar a rebelião...

− Afinal, quem melhor para lidar com uma insurreição do que um guerreiro que guiou uma? − perguntou Duiker secamente.

− Se ocorrer um motim, escassas suas chances − disse Mallick Rel, com os olhos na cena abaixo.

Duiker viu meia dúzia de cimitarras cintilarem, observou os wickanos recua-rem e desembainharem as próprias facas longas. Pareciam ter encontrado um líder, um guerreiro alto de aparência feroz, com feitiços em suas tranças compri-das e que agora berrava palavras de incitação, brandindo a própria arma acima da cabeça.

− Pelo Encapuzado! − praguejou o historiador. − Onde raios está Coltaine?O capitão riu.

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− O alto só com uma faca comprida.Os olhos de Duiker se arregalaram. Aquele demente é Coltaine? O novo Punho

do Sétimo?− Não mudou nadinha, pelo que vejo − continuou o capitão. − Se você quer

se manter como líder de todos os clãs, é melhor ser mais sórdido do que todo o resto junto. Por que acha que o velho imperador gostava tanto dele?

− Que Beru nos guarde − sussurrou Duiker, estarrecido.Um sopro, depois um grito ululante de Coltaine silenciou o destacamento

wickano de repente. As armas retornaram às bainhas, os arcos foram baixados e flechas voltaram às aljavas. Até os cavalos resfolegantes ficaram imóveis, com as cabeças erguidas e orelhas eretas. Um espaço se abriu ao redor de Coltaine, que tinha dado as costas aos guardas. O guerreiro alto gesticulou e os quatro homens no parapeito assistiram em silêncio enquanto cada cavalo era selado com abso-luta precisão. Menos de um minuto depois a cavalaria estava montada, guiando seus cavalos para uma formação de desfile compacta que rivalizaria com os sol-dados da elite imperial.

− Isso foi soberbo − disse Duiker.Um suspiro leve escapou de Mallick Rel.− Distribuição do tempo digna de selvagens, o senso de desafio de uma fera e

depois desprezo. Recado para guardas. Para nós também?− Coltaine é uma cobra, se é isso que você está perguntando − disse o capi-

tão. − Se o comando central de Aren acha que pode dar voltas nele, vai ter uma surpresa cruel.

− Conselho generoso − reconheceu Rel.O capitão pareceu ter engolido algo cortante e Duiker percebeu que ele tinha

falado sem pensar na posição que o sacerdote ocupava no comando central.Kulp pigarreou.− Ele os fez entrarem em formação. Acho que a ida até os quartéis será pacífi-

ca, no fim das contas.− Admito que estou ansioso para conhecer o novo Punho do Sétimo − disse

Duiker ironicamente.Com os olhos semicerrados e fixos na cena abaixo, Rel aquiesceu.− Concordo.

Deixando para trás as ilhas Skara ao seguir diretamente para o sul, o barco de pesca adentrou o mar Kansu com sua vela triangular rangendo, esticada. Se a

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ventania continuasse, alcançariam a costa ehrlitana em quatro horas. A careta de Violinista aumentou. Costa ehrlitana, Sete Cidades. Odeio esse maldito conti-nente. Odiei na primeira vez e odeio ainda mais agora. Apoiou-se na amurada e cuspiu bile azeda nas ondas quentes e verdes.

− Está se sentindo melhor? − perguntou Crokus da proa, com seu rosto jovem e bronzeado franzido por uma preocupação genuína.

O velho sabotador queria socar aquele rosto; em vez disso, apenas grunhiu e se curvou ainda mais contra o casco da barca.

A risada de Kalam ressoou de onde ele estava sentado, junto à cana do leme.− Violinista e água são duas coisas que não combinam, moleque. Olhe para

ele. Está mais verde do que aquele seu maldito macaco alado.Um fungar solidário soprou contra a bochecha de Violinista. Ele entreabriu

um olho vermelho, encontrando um rosto pequeno e enrugado a olhá-lo.− Vá embora, Moby − gritou Violinista. O animal, outrora servo do tio de Crokus, Mammot, parecia ter adotado o

sapador da forma que cachorros e gatos abandonados costumavam fazer. Kalam diria que era o contrário, é claro.

− Uma mentira − sussurrou Violinista. − Kalam é bom nelas...... como ficar fazendo hora em Rutu Jelba por uma porcaria de semana intei-

ra só para o caso de um comerciante de Skrae aparecer. “Agende a passagem no conforto, hein, Vi?” Ah, claro, bem diferente da maldita travessia do oceano – e aquela deveria ter sido no conforto também. Uma semana inteira em Rutu Jelba, uma fossa de cidade infestada por lagartos e feita de tijolos laranja. E depois o quê? Oito jakatas por aquele barril de cerveja serrado ao meio, tampado com farrapos.

O movimento sem fim de subida e descida embalava Violinista enquanto pas-savam as horas. Sua mente vagou para aquela jornada terrivelmente longa, que os tinha levado tão longe, e depois para a jornada terrivelmente longa que ainda estava por vir. Nós nunca fazemos as coisas do jeito fácil, fazemos?

Ele preferiria que todos os mares secassem. Homens têm pés, não nadadei-ras. Mesmo assim, estamos prestes a atravessar por terra... Por um descampado árido infestado por moscas, onde as pessoas só sorriem para anunciar que vão matar você.

O dia se arrastava, esverdeado e trêmulo.Violinista pensou nos companheiros que tinha deixado para trás em Ge-

nabackis, desejando que pudesse estar marchando com eles naquele momento. Para uma guerra religiosa. Não se esqueça disso, Vi. Guerras religiosas não são divertidas. Em guerras e circunstâncias desse tipo, não se aplicava a capacidade

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de raciocinar necessária para se negociar uma rendição. Ainda assim, o batalhão era tudo o que ele conhecia fazia anos. Sentia-se abandonado fora de sua sombra. Só Kalam de velho companheiro, e ele chama de lar a terra que se aproxima. E sorri antes de matar. Quais são os planos de Kalam e Ben Ligeiro que eles ainda não me contaram?

− Há mais daqueles peixes-voadores − disse Apsalar, sua voz identificando a mão suave que tinha pousado em seu ombro. − Centenas deles!

− Alguma coisa grande vinda do fundo está atrás deles − observou Kalam.Gemendo, Violinista se aprumou. Moby aproveitou a oportunidade para re-

velar a motivação por trás do barulhinho que fazia naquele dia e subiu no colo do sapador, enrolando-se e fechando os olhos amarelos. Violinista agarrou a amu-rada e se aproximou dos três companheiros, a fim de estudar o cardume de pei-xes-voadores a estibordo, a cerca de 100 metros da lateral da embarcação. Com o comprimento do braço de um homem, os peixes brancos como leite transpu-nham as ondas, singrando mais ou menos 10 metros, depois deslizando de volta para baixo da superfície. No mar Kansu, peixes voadores caçavam como tuba-rões; os cardumes eram capazes de reduzir um cachalote a ossos em minutos. Usavam sua habilidade de voar para se lançarem às costas de uma baleia quando ela subia à superfície para respirar.

− O que, em nome de Mael, está atrás deles?Kalam enrugou a testa.− Não deveria haver nada capaz disso aqui no Kansu. Lá no Abismo dos Ca-

çadores há as dhenrabi, claro.− Dhenrabi! Ah, isso ajuda bastante, Kalam. Ajuda mesmo!− Algum tipo de serpente marinha? − perguntou Crokus.− Pense em uma centopeia de oitenta passos de comprimento − respondeu Vio-

linista. − Se enrola tanto em baleias quanto em navios. Então solta todo o ar em-baixo de sua pele couraçada e afunda como uma pedra, levando sua presa junto.

− São raras − disse Kalam. − E nunca vistas em águas rasas.− Até agora − salientou Crokus, com a voz se alteando, alarmada.A dhenrabi surgiu na superfície em meio aos peixes-voadores, açoitando a

cabeça de um lado para outro; a boca larga e anavalhada esquartejava presas aos montes. A cabeça da criatura era imensa, com talvez 20 metros de largura. Sua couraça segmentada era de um verde escuro, sob escamas incrustadas, e cada segmento revelava membros quitinosos.

− Oitenta passos de comprimento? − sibilou Violinista. − Só se uma dessas foi cortada ao meio!

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Kalam se ergueu no leme.− Apronte as velas, Crokus. Vamos fugir. Sentido oeste.Violinista arrancou o Moby reclamão do colo e abriu a mochila, lutando para

tirar sua besta dali.− Se ela decidir que parecemos deliciosos, Kalam...− Eu sei − ressoou o assassino.Montando depressa a arma metálica, Violinista ergueu o olhar e encontrou

os olhos arregalados de Apsalar, cujo rosto estava branco. O sabotador piscou.− Tenho uma surpresa, caso a coisa venha pra cima de nós, menina.Ela assentiu.− Eu me lembro...A dhenrabi tinha visto o barco. Desviando-se do cardume de peixes-voadores,

ela se adiantou na direção deles, cortando sinuosamente as ondas.− Aquela não é uma fera comum − resmungou Kalam. − Você está sentindo

esse cheiro, Violinista?Picante, amargo.− Pelo sopro do Encapuzado, é um soletaken!− Um o quê? − perguntou Crokus.− Metamorfo − disse Kalam.Uma voz rouca soou na mente de Violinista e as expressões de seus compa-

nheiros lhe disseram que eles também ouviram:Mortais, lamento que vocês estejam aqui testemunhando minha passagem.O sapador grunhiu; a criatura não parecia estar lamentando coisa alguma. E

continuou:Por causa disso, vocês todos devem morrer, embora eu não vá desonrar sua

carne comendo vocês.− Que gentil da sua parte − resmungou Violinista, pondo na abertura da besta

uma seta sólida, cuja ponteira de ferro tinha sido substituída por uma bola de argila do tamanho de um melão.

Mais um barco de pescadores misteriosamente perdido, o soletaken pensou, irônico. Que pena.

Violinista trepou na proa, se agachando ao lado de Kalam. O assassino se em-pertigou para encarar a dhenrabi, mantendo a mão no leme.

− Soletaken! Siga seu caminho. Não nos importamos com sua passagem!Serei misericordioso ao matar vocês. A criatura se aproximou da traseira do

barco cortando a água como um navio de quilha afiada. Suas mandíbulas esta-vam bem abertas.

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− Você foi avisado − disse Violinista, que ergueu a besta, mirou e atirou. A seta foi direto para a boca aberta da fera. Rápida como um relâmpago, a

dhenrabi fechou a boca sobre a haste e seus dentes finos e serrilhados destruíram a seta e esmagaram a bola de argila, soltando no ar a mistura poeirenta que ha-via lá dentro. O contato resultou em uma explosão instantânea que estourou a cabeça do soletaken.

Fragmentos de crânio e carne cinza agitavam as águas por todos os lados. O pó incendiário continuava a queimar ferozmente tudo a que se agarrara, soltando um vapor sibilante. A explosão carregou o corpo acéfalo para uma distância de 8 metros da popa do barco antes de ele se inclinar para baixo e deslizar suave-mente para fora de vista enquanto os últimos ecos da explosão enfraqueciam. A fumaça flutuava sobre as ondas.

− Você escolheu os pescadores errados − disse Violinista, baixando a arma.Kalam retornou ao leme e virou a embarcação de volta ao curso, no sentido

sul. Uma quietude estranha pairava no ar. Violinista desmontou a besta e guar-dou a arma de volta, envolta no tecido lubrificado. Ao retomar seu assento a meia-nau, Moby rastejou de volta para seu colo. Suspirando, Violinista coçou a parte de trás da orelha do animalzinho.

− E então, Kalam?− Não tenho certeza − admitiu o assassino. − O que trouxe um soletaken ao

mar Kansu? Por que ele queria manter sua passagem em segredo?− Se Ben Ligeiro estivesse aqui...− Mas não está, Vi. É um mistério com o qual teremos de conviver... e espero

que não venhamos a dar de cara com outros.− Você acha que está relacionado a...Kalam fechou a cara.− Não.− Relacionado a quê? − Crokus exigiu saber. − O que vocês dois estão taga-

relando?− Só pensando alto − disse Violinista. − O soletaken estava indo para o sul.

Como nós.− E daí?Violinista deu de ombros.− E daí... nada. Só isso. − Cuspiu outra vez para fora do barco e se deixou cair.

− A agitação me fez esquecer o enjoo. Agora a agitação passou, cacete.Todos ficaram em silêncio, embora a expressão severa de Crokus dissesse ao

sabotador que o rapaz não deixaria a questão de lado por muito tempo.

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O vento continuou empurrando o barco com força na direção sul. Menos de três horas depois, Apsalar anunciou que conseguia ver terra adiante e, quarenta minutos mais tarde, Kalam direcionou a embarcação de modo a deixá-la paralela à costa ehrlitana, a cerca de 3 quilômetros de distância. Contornaram a costa no sentido oeste, seguindo a cordilheira revestida de cedros, enquanto o dia morria devagar.

− Acho que estou vendo cavaleiros − disse Apsalar.Violinista ergueu a cabeça, se juntando aos demais para observar a linha de

cavaleiros que seguia a trilha ao longo da cordilheira.− Conto seis deles − disse Kalam. − O segundo cavaleiro...− Tem um pendão imperial − completou Violinista, contorcendo o rosto por

causa do gosto em sua boca. − Mensageiro e lanceiros...− Dirigem-se a Ehrlitan − acrescentou Kalam.Violinista se virou sem se levantar e encontrou os olhos do cabo.Problemas?Talvez.A troca foi silenciosa, fruto de anos lutando lado a lado.− Alguma coisa errada? Kalam? Violinista? − perguntou Crokus.O rapaz é esperto.− Difícil dizer − resmungou Violinista. − Eles nos viram... Mas o que viram?

Quatro pescadores em um barco, alguma família de Skrae vindo ao porto que-rendo aproveitar um gostinho da civilização.

− Há uma vila bem ao sul da linha das árvores − disse Kalam. − Fique de olho e procure um ancoradouro, Crokus, e uma praia sem restos de madeira boiando. As casas devem ficar no trecho da cordilheira protegido pelo vento, o que quer dizer mais para o interior. Como anda minha memória, Vi?

− Boa o bastante para um nativo, que é o que você é. Quanto tempo da cidade?− Dez horas a pé.− Perto assim?− Perto assim.Violinista ficou em silêncio. O mensageiro imperial e sua guarda montada

saíram de vista, deixando a cordilheira ao virarem para o norte, na direção de Ehrlitan. O plano havia sido navegar direto para o porto antigo e lotado da Ci-dade Sagrada, chegando lá sem chamarem muita atenção. Era provável que o mensageiro estivesse entregando alguma informação que nada tinha a ver com eles: eles não haviam dado bandeira de nada desde que alcançaram o porto imperial de Karakarang, vindos de Genabackis, aonde chegaram em um navio

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mercante moranthiano azul, tendo pagado as passagens como membros da tri-pulação. A jornada por terra saindo de Karakarang, atravessando as montanhas Talgai e descendo até Rutu Jelba fazia parte da rota dos romeiros tannos, sendo uma jornada bastante comum. E passaram a semana em Rutu Jelba de forma discreta, com Kalam fazendo excursões noturnas para o distrito do cais a fim de providenciar a travessia pelo mar Otataral até o continente.

Na pior das hipóteses, um oficial qualquer tinha recebido um relatório, em algum lugar, dizendo que dois possíveis desertores, acompanhados de um ge-nabackiano e uma mulher, haviam alcançado território malazano, mas notícias assim dificilmente fariam o vespeiro imperial se abalar pelo longo caminho até Ehrlitan. Assim, era provável que Kalam estivesse apenas sendo paranoico, como de costume.

− Estou vendo a foz do riacho − disse Crokus apontando para um local na costa.Violinista olhou para Kalam.Em terra hostil, quão baixo rastejamos?Olhando gafanhotos de baixo, Vi.Pelo sopro do Encapuzado. Ele olhou para a costa.− Eu odeio as Sete Cidades − sussurrou. Em seu colo, Moby bocejou, reve-

lando uma boca cheia de presas semelhantes a agulhas. Violinista empalideceu. Disse à criatura, estremecendo: − Enrosque-se enquanto pode, filhote.

Kalam girou o leme. Crokus ajeitou as velas, bem ágil mesmo depois de uma viagem de dois meses através do Abismo dos Caçadores, para deixar o barco des-lizar facilmente no vento, com a vela esfarrapada mal conseguindo orçar. Apsalar se remexeu em seu lugar, estendeu os braços e lampejou um sorriso a Violinista. O sabotador fechou a cara e olhou para outro lado. Que Incineração me sacuda, pois tenho de impedir meu queixo de cair toda vez que ela faz isso. Ela já foi outra mulher um dia. Uma assassina, a faca de um deus. Ela fez coisas que... Além disso, está com Crokus, não? O menino tem toda a sorte, e as putas de Karakarang pa-reciam irmãs com varíola, vindas de alguma família gigantesca cheia de varíola e com todos aqueles bebês com varíola nos quadris... Ele se sacudiu. Ah, Violinista, muito tempo no mar, tempo demais!

− Não vejo nenhum barco − disse Crokus.− Lá no porto − murmurou Violinista, arrastando a unha na barba, em perse-

guição a uma lêndea. Depois de um momento, ele a arrancou e a jogou pela borda da embarcação.

Dez horas a pé, em seguida Ehrlitan, e um banho, e tirar a barba, e uma garota kansuana com um pente e a noite inteira livre depois.

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Crokus deu uma cotovelada nele.− Ficando empolgado, Violinista?− Você não sabe quanto.− Você estava aqui durante a conquista, não estava? Quando Kalam lutava

pelo outro lado, pelos Sete Falah’dan Sagrados, e os t’lan imass marcharam pelo imperador e...

− Basta. − Violinista balançou a mão. − Eu não preciso de lembranças, nem Kalam. Todas as guerras são feias, mas aquela foi mais feia que a maioria.

− É verdade que você estava na companhia que perseguiu Ben Ligeiro através do Deserto Sagrado Raraku e que Kalam era seu guia, só que ele e Ligeiro esta-vam planejando trair todos, mas Whiskeyjack já havia percebido isso...

Violinista olhou feio para Kalam.− Uma noite em Rutu Jelba com um cântaro de rum falariano e esse rapaz

fica sabendo mais do que qualquer historiador imperial vivo. − Olhou para Crokus. − Ouça, filho, é melhor você esquecer tudo o que aquele bárbaro bê-bado contou naquela noite. O passado já está em nosso encalço; não há motivo para facilitar.

Crokus passou a mão em seu cabelo comprido e preto, dizendo, em voz baixa:− Bem, se as Sete Cidades são tão perigosas, por que não vamos direto em

frente, até Quon Tali, onde Apsalar vivia, para podermos achar seu pai? Por que nos esgueiramos tanto... e no continente errado, aliás?

− Não é tão simples assim − grunhiu Kalam.− Por quê? Pensei que fosse essa a razão para esta jornada toda. − Crokus segu-

rou a mão de Apsalar entre as suas, mas guardou sua expressão dura para Kalam e Violinista. − Vocês dois disseram que deviam isso a ela. Não foi certo e vocês queriam consertar as coisas. Mas agora estou achando que essa é só uma parte da razão, que vocês dois planejaram mais alguma coisa, que levar Apsalar de volta para casa era só uma desculpa para voltar ao seu Império, apesar de estarem oficialmente banidos. E, seja lá o que estão planejando, isso significa não apenas viajarmos às Sete Cidades, mas também termos que nos esgueirar, aterrorizados por tudo, pulando nas sombras, como se o exército malazano estivesse atrás de nós. − Fez uma pausa, inspirou fundo e continuou: − Temos o direito de saber a verdade, já que vocês estão nos colocando em perigo e não sabemos nem que tipo de perigo é, nem por quê, nem nada. Então, desembuchem. Agora.

Violinista se apoiou na amurada. Olhou para Kalam e ergueu uma sobrancelha.− Então, cabo? É com você.− Faça uma lista, Violinista − disse Kalam.

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− A imperatriz quer Darujhistan. − O sabotador encontrou o olhar firme de Crokus. − Certo?

O rapaz hesitou, depois concordou.− Ela costuma conseguir o que quer, cedo ou tarde − continuou Violinista. −

Chame isso de precedente. Agora, ela já tentou tomar a cidade uma vez, certo, Crokus? E isso custou a ela a conselheira Lorn, dois demônios imperiais e a leal-dade do Alto Punho Dujek, para não dizer a perda dos Queimadores de Pontes. O suficiente para machucar qualquer um.

− Certo, mas o que isso tem a ver...− Não interrompa. O cabo Kalam disse para eu fazer uma lista. Estou fazendo.

Está acompanhando até aqui? Ótimo. Darujhistan a segurou uma vez, mas na próxima ela vai se certificar de que isso não aconteça. Supondo que haja uma próxima vez.

− Bem, por que não haveria? − Crokus fez uma careta. − Você disse que ela costuma conseguir o que quer.

− E você é leal à sua cidade, Crokus?− Claro...− Então faria qualquer coisa para impedir a imperatriz de conquistá-la?− Bem, sim, mas...− Senhor? − Violinista se virou para Kalam.O homem corpulento e de pele negra olhou as ondas, suspirou e assentiu para

si mesmo. Depois encarou Crokus.− É isso, moleque: chegou a hora. Eu vou atrás dela.A expressão do rapaz de Daru ficou vazia, mas Violinista viu os olhos de Ap-

salar se arregalarem e seu rosto empalidecer. Ela se recostou de repente e então deu um meio sorriso... e Violinista congelou ao vê-lo.

− Não sei o que você quer dizer − retorquiu Crokus. − Atrás de quem? Da imperatriz? Como?

− Ele quer dizer... − falou Apsalar, ainda dando um sorriso que tinha pertenci-do a ela um dia, muito tempo antes, quando era... outra pessoa − ... que vai tentar matá-la.

− O quê? − Crokus ficou de pé, quase se atirando pela borda. − Você? Você e um sabotador mareado com um violino quebrado preso às costas? Você acha que nós vamos ajudar nessa coisa insana e suicida...

− Eu me lembro − disse Apsalar de repente, estreitando os olhos para Kalam.Crokus se virou para ela.− Lembra o quê?

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− Kalam. Ele era o Punhal de Falah’dan, e o Garra lhe deu o comando de uma Mão. Kalam é um mestre assassino, Crokus. E Ben Ligeiro...

− Está a 15 mil quilômetros de distância! − berrou Crokus. − Ele é um mago de pelotão, pelo sopro do Encapuzado! É isso, um magozinho esquálido de pelotão!

− Não é, na verdade − disse Violinista. − E estar tão longe não significa nada, filho. Ben Ligeiro é o nosso osso raspado no buraco.

− Seu o quê? Onde?− Osso raspado, como no jogo da bugalha, sendo que um bom apostador cos-

tuma usar um osso raspado, como se diz na trapaça dos lances, se você sabe o que quero dizer. Quanto ao “buraco”, esse seria o Labirinto do Ben Ligeiro, o que o traz para o lado de Kalam no tempo de uma batida do coração, não importa a que distância ele esteja. Então, Crokus, aí está: Kalam vai tentar, mas isso requer algum planejamento, preparação. E isso começa aqui, nas Sete Cidades. Você quer Darujhistan livre para sempre? A imperatriz Laseen deve morrer.

Crokus se sentou devagar.− Mas por que as Sete Cidades? A imperatriz não está em Quon Tali?− Porque... − respondeu Kalam ao virar o barco para a boca do ancoradouro,

enquanto o calor opressivo da terra se erguia ao redor deles. − Porque, rapaz, as Sete Cidades estão prestes a se erguer.

− O que você quer dizer?O assassino exibiu os dentes.− Rebelião.Violinista vasculhou a vegetação rasteira e fétida que delineava as margens. E

essa é a parte do plano que mais odeio, disse a si mesmo, com um frio na barriga. Perseguir uma das ideias insanas de Ben Ligeiro com todo o campo em chamas.

Um minuto depois, contornaram uma curva e uma vila apareceu: um punha-do de cabanas de vime e argamassa formando um meio círculo irregular, virado para uma linha de esquifes sobre a praia arenosa. Kalam cutucou o leme e o barco flutuou até a costa. Quando a quilha arranhou o fundo, Violinista subiu na borda e pulou para a terra seca, com Moby já acordado e seus quatro membros agarra-dos à parte da frente de sua túnica. Ignorando a criatura aos guinchos, Violinista se aprumou, devagar.

− Bem... − Suspirou quando o primeiro dos cachorros vira-latas da vila anun-ciou sua chegada. − Começou.

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