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Os quatro paradoxos da campanha Por José Natanson, publicado no Le Monde argentino em abril/2015 (também disponível em http://mundotario.blogspot.com.br/2015/04/las-cuatro- paradojas-de-la-campana-por.html ) A política é sempre muitas coisas: luta pelo poder, claro, mas também defesa de ideias, construção discursiva, mascaramento de interesses, astúcia. A seis meses das eleições presidenciais e a quatro meses da PASO 1 , a campanha se vai definindo em torno a quatro paradoxos, que explicam os frenéticos movimentos táticos dos últimos dias. Analisemos. Paradoxo 1 Segundo as medições inclusive das encostas da oposição, o kichnerismo deixará o poder com a adesão de um setor importante da sociedade. O núcleo duro kichnerista é mais amplo que o que acompanhou o final agonizante do alfonsinismo e do menemismo 2 , os dois ciclos largos da democracia recuperada, que de qualquer forma contaram com um respaldo considerável: o alfonsinismo seguiu gravitando politicamente muitos anos depois da renúncia do ex- presidente e Menem arranhou os 25% nas eleições de 2003; logo se apagou sua estrela. Mas esse apoio militante não alcança. Nem suficientemente populista como para forçar uma reforma constitucional ao estilo venezuelano ou equatoriano, nem suficientemente institucionalista para apoiar-se em uma organização partidária que permita designar um sucessor ao estilo brasileiro ou uruguaio, o kichnerismo enfrenta agora o paradoxo de não poder transformar sua sólida minoria primária em uma opção de continuidade que expresse sua 1 Eleições primarias obrigatórias que decidem quais partidos podem participar (os com mais de 1,5% dos votos) e quais serão os candidatos. 2 Ex-presidentes (Alfonsin, 1983 – 89, e Menem,1989 – 99).

Os Quatro Paradoxos Da Campanha, José Natanson

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Publicado no Le Monde argentino em abril/2015 (tradução livre)

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Page 1: Os Quatro Paradoxos Da Campanha, José Natanson

Os quatro paradoxos da campanha

Por José Natanson, publicado no Le Monde argentino em abril/2015 (também disponível em http://mundotario.blogspot.com.br/2015/04/las-cuatro-paradojas-de-la-campana-por.html )

A política é sempre muitas coisas: luta pelo poder, claro, mas também defesa de ideias, construção discursiva, mascaramento de interesses, astúcia. A seis meses das eleições presidenciais e a quatro meses da PASO1, a campanha se vai definindo em torno a quatro paradoxos, que explicam os frenéticos movimentos táticos dos últimos dias. Analisemos.

Paradoxo 1

Segundo as medições inclusive das encostas da oposição, o kichnerismo deixará o poder com a adesão de um setor importante da sociedade. O núcleo duro kichnerista é mais amplo que o que acompanhou o final agonizante do alfonsinismo e do menemismo2, os dois ciclos largos da democracia recuperada, que de qualquer forma contaram com um respaldo considerável: o alfonsinismo seguiu gravitando politicamente muitos anos depois da renúncia do ex-presidente e Menem arranhou os 25% nas eleições de 2003; logo se apagou sua estrela.

Mas esse apoio militante não alcança. Nem suficientemente populista como para forçar uma reforma constitucional ao estilo venezuelano ou equatoriano, nem suficientemente institucionalista para apoiar-se em uma organização partidária que permita designar um sucessor ao estilo brasileiro ou uruguaio, o kichnerismo enfrenta agora o paradoxo de não poder transformar sua sólida minoria primária em uma opção de continuidade que expresse sua vibração ideológica e, ao mesmo tempo, que seja eleitoralmente competitiva: nem F. Randazzo3, o candidato que mais se ajusta a esse molde difícil, pode desempenhar cabalmente o papel por sua origem duhaldista, sua distancia do entorno presidencial e sua estratégia de evitar definições fortes para concentrar seus discursos em seus êxitos ferroviários.

A história se repete, não necessariamente como farsa. Em 1989 e 1999, Alfonsin e Menem se resignaram a que o candidato oficialista, respectivamente Angeloz e Duhalde, representassem uma linha diferente da que eles seguiam. Afora, com Scioli liderando as pesquisas da Frente pela Vitória, poderia acontecer o mesmo. A diferença é o contexto: em tempos de pós-modernidade partidária, Scioli mantém uma distancia ideológica similar a que em seu momento exibiam Angeloz e Duhalde, mas a dilui em uma série de gestos equívocos e “buena onda”, como se a única forma de expressar sua

1 Eleições primarias obrigatórias que decidem quais partidos podem participar (os com mais de 1,5% dos votos) e quais serão os candidatos.2 Ex-presidentes (Alfonsin, 1983 – 89, e Menem,1989 – 99).3 Possível candidato kichnerista tido como mais a esquerda – mas que perderia as internas do partido para Scioli -, é desde 2012 Ministro do Interior e do Transporte da Argentina, onde dirigiu uma reestatização e modernização de parte do transporte ferroviário.

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dissidência fosse através da imagem e do silencio: Scioli é um anti-kichnerista implícito.

Paradoxo 2

O segundo paradoxo é ideológico. (...) o kichnerismo, independentemente do resulto das eleições de outubro, permanecerá como uma cultura política. A que me refiro extamente? Durante anos, os estudos politológicos descartaram a cultura política como uma dimensão a ser levada em consideração, um enigma impossível de capturar analiticamente, comparável ao “ser nacional” dos fascistas. Ultimamente, no entanto, começaram a elaborar-se investigações que, através de complexos estudos de opinião, permitem capturar o espectro e tirar dali Aldo claro, como o disparados nuclear de prótons com que os Caça-fantasmas capturavam suas vítimas. Nesse sentido, as principais investigações realizadas na Argentina coincidem em que as grandes orientações políticas da última década – intervencionismo estatal, políticas sociais, latinoamericanismo, direitos humanos – constituem um núcleo de valores compartilhados pela maioria da sociedade.

E ainda assim, considerando o giro a esquerda experimentado pela sociedade, as eleições de outubro aparecem como uma espécie de interna da centro-direita, incluindo dentre essas opções a Scioli, que no quiosque de sua casa na Villa La Ñata comnina estátuas de tamanho natural de Menem e dos Pimpinela com fotos junto a Lula, ao Papa e a Kichner: El “Aleph de Scioli”, como descrevem seus biógrafos esse espaço de sua casa, é uma espécie de museu dele mesmo que exibe sem complexos a trajetória de um dirigente que se escondia para jogar cartas para evitar as assembleias do hiperpolitizado Colegio Pellegrini durante os anos 70, que quando se lançou pela primeira vez a um cargo público, aspirante a uma banca de deputado por um menemismo declinante, recorreu a uma frase muito sua (“eu sou a contracara da pálida”4) e que o acompanhou até o final, fazendo pagar inclusive a seus três chefes políticos: Menem, Duhalde e Kichner.

Paradoxo 3

O terceiro paradoxo é opositor. Tendo aprendido após vários experimentos presidenciais falidos (formula própria com Leopoldo Morreau em 2003, candidatura extra-partidaria de Roberto Lavagna em 2007, aliança com De Narváez em 2011), o radicalismo se inclina a única opção taticamente possível: um acordo elleitoral com Macri e Elisa Carrió, que havia se adiantado uns meses na mobilização confirmando sua capacidade para conduzir seu velho partido apesar de carecer de um volume eleitoral importante, o qual, por outro lado, demonstra que é possível conduzir a UCR (União Cívica Radical) sem votos, algo impensável no peronismo: alguém imagina um líder peronista minoritário?

Mas não nos desviemos. O giro radical foi possível pela fraqueza ideológica de uma força política que, pese ao que se costuma crer, não é menos ampla que o peronismo: o

4 Algo como ser o outro lado do pessimismo.

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radicalismo, para além da lembrança do Alfonsín-kichnerismo, remete a tradição de Alem-Yrigoyen-Alfonsín tanto como a de Alvear-Balbín-De La Rúa. Mas se explica principalmente pelo paradoxo de um partido que conserva uma cota de poder institucional importante com os segundos blocos nas duas câmaras, uns 320 prefeitos e a perspectiva de recuperar os governos de uns cinco estados, e que ao mesmo tempo sofre a ausência de um candidato presidencial expressivo.

A melhor comparação é com o PMDB brasileiro, a força que, como a UCR, se impôs na primeira eleição pós-ditatorial, com Tancredo Neves, mas que logo não mais foi capaz de construir uma alternativa nacional.Com 18 senadores (contra 15 do PT), a segunda bancada de deputados e o maior número de governadores (7), o PMDB é o principal partido político do Brasil (seu slogan, de fato, é “o partido do Brasil), apesar de não apresentar um candidato próprio a presidência... a 20 anos.

Paradoxo 4

Por último, um paradoxo territorial. Os principais candidatos presidenciais (Scioli, Macri e Massa) e o quarto ator fundamental da campanha (Cristina) carecem de candidatos próprios em distritos importantes. Se aproximam as PASO da Cidade (Buenos Aires) e nem Scioli nem Massa tem nada a oferecer, do mesmo modo que o kichnerismo não conta com figuras importantes em Córdoba e Santa Fé, e que o PRO sofre de um propagandista negativo: o fato de sua vice-chefa do governo de Buenos Aires (!) é sintomático.

A causa de essa aparente anomalia é a territorialização do sistema partidário argentino. Nascidos a partir da irradiação de um centro a uma periferia, os principais partidos (o peronismo, o radicalismo e o socialismo) atravessam, ao menos desde a década de 90, um processo de relocalização de seus centros de poder, da nação aos territórios. Isso é resultado das políticas de descentralização implementadas durante o menemismo, que fortaleceram aos Estados provinciais através do controle dos serviços de saúde e educação e converteram aos governadores em atores políticos de um peso indispensável alguns anos atrás. A tendência se acentuou durante a crise de 2001, quando o Estado nacional se viu obrigado a estabelecer diálogos diretos e urgentes com os municípios para atender as urgências sociais: (...) o governo nacional passou aos prefeitos a execução dos programas de assistência social (o Plan Jefas y Jefes del Hogar, primeiro, e o Argentina Trabaja, entre outros, depois). Assim, se os governadores haviam aparecido na política grande nos 90, os prefeitos o fizeram a partir de 2001: Massa é, nesse sentido, um filho da crise.

Como resultado de essas mutações profundas, os partidos políticos se espalharam em fragmentos que estabelecem entre si articulações contingentes e oportunistas, com o Estado como o único ator capaz de ordena-las e de dar sentido a elas (até certo ponto). Os principais candidatos são chefes territoriais, mas tem dificuldades para projetar se além de seus territórios.

Doble T

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Rebobinemos antes de concluir. As duas “minorias intensas” da política argentina, o kichnerismo e o anti-kichnerismo intransigente, carecem de candidatos a altura do ruído midiático que fazem: sua hegemonia comunicacional não se traduz em êxitos eleitorais, porque a representação é mais complicada que a televisão e porque o rating não equivale a votos (políticos que aparecem mas que não ganham eleições: Elisa Carrió, Luis D’Elia, Diana Conti, Patrícia Bullrich...).

Longe de esses polos ardentes, a sociedade parece inclinar-se ao amplo centro dos “políticos-commoditie”, um ecossistema viscoso onde eles nadam lentamente, cuidando para não se equivocarem.É porque a política é televisão mas também território, é o duplo T que contém a cifra dos êxitos e dos seus fracassos. Se olharmos bem, as estratégias dos principais atores se explicam em última instancia pelas necessidades dos que contam com altos níveis de conhecimento e aceitação pública mas aos quais falta estrutura territorial (Macri, Massa, Scioli), frente aos que controlam municípios e provinciais, acumulam poder institucional e dispõem de amplos contingentes militantes mas que sofrem da ausência de figuras nacional representativas (o radicalismo, os governadores peronistas, a Cámpora). Os quatro paradoxos enunciados acima constituem a explicação mais básica dessa necessidade cruzada.