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CRÔNICA Os relógios nos dominaram Daniela Flor Consultas caras com terapeutas, psiquiatras e gurus. Livros de autoajuda que não saem das listas dos mais vendidos. Todos prometem resolver a angústia da ansiedade, o suposto mal-do-século. Quem sabe uns finais de semana na praia ou alguns remédios para dormir. Até livros de colorir para adultos esgotam nas editoras como a solução para o estresse da modernidade. Porém, o problema é mais antigo: a culpa é dos relógios. Os vilões apontados são sempre os smartphones, as redes sociais ou o Whatsapp. Os culpados por não deixarem ninguém descansar. Afinal, “é impossível se concentrar olhando para esse celular o tempo todo”, dizem os mais avessos às tecnologias. Pois, assumo, de todas as vezes que olho de relance para o aparelho, mais da metade das vezes é só para saber as horas. Mesmo que não queira, lá estão elas na tela principal, no canto do computador, nos termômetros da rua. Os números lembram o atraso, o compromisso, a reunião e o encontro. Nos obrigam a pensar no que vem depois. Ao longo dos anos, tantas tecnologias sumiram. O telégrafo se foi, o pager, o Discman e se fala até no fim do papel. Mas ainda não vi ninguém cogitar o fim do relógio. A Apple, gigante das inovações, resolveu reinventar um relógio de pulso. Uma versão mais bonita e funcional daquele mesmo de ponteiros, que alguém prendeu à própria mão no século XIX de tão necessário que era ficar perto dele. Todas as outras tarefas dos caríssimos smartwatches são secundárias aos números que gritam na tela. Um objeto que parece inofensivo perturba até os momentos de lazer. É o propulsor daquela onda de raiva na rodada de Imagem e Ação que quase sabíamos a resposta, até que a ampulheta acabou. Para os mais ansiosos, nem é viável jogar. Travamos só de olhar o tempo passar tão evidente e sem controle. Nem mostra números e já é estressante, essa bisavó do relógio. Não vimos os ponteiros nos dominarem e agora somos nós seus escravos. O prognóstico parece pessimista, mas é reconfortante: se sobrevivemos desde o relógio sol até o Apple Watch, continuaremos vivos. A ansiedade não vai acabar

Os relógios nos dominaram

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Crônica escrita para disciplina de Redação e Produção de Revista - 2015/1 Autora: Daniela Bruno Flor Orientação dos professores Flávia Quadros, Luiz Adolfo Lino de Souza e Vitor Necchi

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CRÔNICA

Os relógios nos dominaram

Daniela Flor

Consultas caras com terapeutas, psiquiatras e gurus. Livros de autoajuda que

não saem das listas dos mais vendidos. Todos prometem resolver a angústia da

ansiedade, o suposto mal-do-século. Quem sabe uns finais de semana na praia ou

alguns remédios para dormir. Até livros de colorir para adultos esgotam nas editoras

como a solução para o estresse da modernidade. Porém, o problema é mais antigo:

a culpa é dos relógios.

Os vilões apontados são sempre os smartphones, as redes sociais ou

o Whatsapp. Os culpados por não deixarem ninguém descansar. Afinal, “é

impossível se concentrar olhando para esse celular o tempo todo”, dizem os mais

avessos às tecnologias. Pois, assumo, de todas as vezes que olho de relance para o

aparelho, mais da metade das vezes é só para saber as horas. Mesmo que não

queira, lá estão elas na tela principal, no canto do computador, nos termômetros da

rua. Os números lembram o atraso, o compromisso, a reunião e o encontro.

Nos obrigam a pensar no que vem depois.

Ao longo dos anos, tantas tecnologias sumiram. O telégrafo se foi, o pager,

o Discman e se fala até no fim do papel. Mas ainda não vi ninguém cogitar o fim do

relógio. A Apple, gigante das inovações, resolveu reinventar um relógio de pulso.

Uma versão mais bonita e funcional daquele mesmo de ponteiros, que alguém

prendeu à própria mão no século XIX de tão necessário que era ficar perto dele.

Todas as outras tarefas dos caríssimos smartwatches são secundárias aos números

que gritam na tela.

Um objeto que parece inofensivo perturba até os momentos de lazer. É o

propulsor daquela onda de raiva na rodada de Imagem e Ação que quase sabíamos

a resposta, até que a ampulheta acabou. Para os mais ansiosos, nem é viável jogar.

Travamos só de olhar o tempo passar tão evidente e sem controle. Nem mostra

números e já é estressante, essa bisavó do relógio.

Não vimos os ponteiros nos dominarem e agora somos nós seus escravos. O

prognóstico parece pessimista, mas é reconfortante: se sobrevivemos desde o

relógio sol até o Apple Watch, continuaremos vivos. A ansiedade não vai acabar

Page 2: Os relógios nos dominaram

conosco. Talvez só precisemos aceitar as horas como elas são, às vezes curtas ou

longas demais. Afinal, a culpa é toda nossa: a humanidade condenou o tempo

quando resolveu contá-lo.