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Os sete saberes necessários à educação do futuro · PDF fileOS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO 93 CAPÍTULO VI ENSINAR A COMPREENS ÃO A situação é paradoxal

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Edgar Morin

Os sete saberes necessáriosà educação do futuro

Tradução deCatarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya

Revisão Técnica deEdgard de Assis Carvalho

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Edições UNESCO Brasil

Conselho Editorial

Jorge Werthein

Maria Dulce de Almeida Borges

Célio da Cunha

Comitê para Área de Educação

Maria Dulce de Almeida Borges

Célio da Cunha

Lúcia Maria Gonçalves Resende

Marilza Machado Gomes Regattiere

Assistente Editorial

Rachel Dias Azevedo

Morin, Edgar, 1921-Os sete saberes necessários à educação do futuro / Edgar Morin ; tradução de

Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya ; revisão técnica de Edgard de AssisCarvalho. – 2. ed. – São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO, 2000.

Título original: Les sept savoirs nécessaires à l’éducation du futur.Bibliografia.ISBN 85-249-0741-X (Cortez)

1. Educação – Filosofia 2. Educação – Finalidades e objetivos3. Interdisciplinaridade e conhecimento 4. Interdisciplinaridade na educaçãoI. Título.

00-1830 CDD-370.11

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:

1. Educação : Finalidade e objetivos 370.11

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CAPÍTULO VI

ENSINAR A COMPREENSÃO

A situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdepen-dências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários com avida e a morte, de agora em diante, une os humanos uns aosoutros. A comunicação triunfa, o planeta é atravessado por re-des, fax, telefones celulares, modems, Internet. Entretanto, aincompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes emúltiplos progressos da compreensão, mas o avanço daincompreensão parece ainda maior.

O problema da compreensão tornou-se crucial para os hu-manos. E, por este motivo, deve ser uma das finalidades da edu-cação do futuro.

Lembremo-nos de que nenhuma técnica de comunicação,do telefone à Internet, traz por si mesma a compreensão. A com-preensão não pode ser quantificada. Educar para compreendera matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; edu-car para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a mis-são propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensãoentre as pessoas como condição e garantia da solidariedade inte-lectual e moral da humanidade.

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O problema da compreensão é duplamente polarizado:

• Um pólo, agora planetário, é o da compreensão entre huma-nos, os encontros e relações que se multiplicam entre pes-soas, culturas, povos de diferentes origens culturais.

• Um pólo individual é o das relações particulares entre próxi-mos. Estas estão cada vez mais ameaçadas pela incom-preensão (como será indicado mais adiante). O axioma “quan-to mais próximos estamos, melhor compreendemos” é ape-nas uma verdade relativa à qual se pode opor o axioma con-trário “quanto mais estamos próximos, menos compreende-mos”, já que a proximidade pode alimentar mal-entendidos,ciúmes, agressividades, mesmo nos meios aparentemente maisevoluídos intelectualmente.

1. AS DUAS COMPREENSÕES

A comunicação não garante a compreensão.

A informação, se for bem transmitida e compreendida, trazinteligibilidade, condição primeira necessária, mas não suficien-te, para a compreensão.

Há duas formas de compreensão: a compreensão intelec-tual ou objetiva e a compreensão humana intersubjetiva. Com-preender significa intelectualmente apreender em conjunto, com-prehendere, abraçar junto (o texto e seu contexto, as partes e otodo, o múltiplo e o uno). A compreensão intelectual passa pelainteligibilidade e pela explicação.

Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objetoe aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A expli-cação é, bem entendido, necessária para a compreensão intelec-tual ou objetiva.

A compreensão humana vai além da explicação. A explica-ção é bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das

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coisas anônimas ou materiais. É insuficiente para a compreensãohumana.

Esta comporta um conhecimento de sujeito a sujeito. Porconseguinte, se vejo uma criança chorando, vou compreendê-la,não por medir o grau de salinidade de suas lágrimas, mas porbuscar em mim minhas aflições infantis, identificando-a comigoe identificando-me com ela. O outro não apenas é percebidoobjetivamente, é percebido como outro sujeito com o qual nosidentificamos e que identificamos conosco, o ego alter que setorna alter ego. Compreender inclui, necessariamente, um pro-cesso de empatia, de identificação e de projeção. Sempreintersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e genero-sidade.

2. EDUCAÇÃO PARA OS OBSTÁCULOS À COMPREENSÃO

Os obstáculos exteriores à compreensão intelectual ou obje-tiva são múltiplos.

A compreensão do sentido das palavras de outro, de suasidéias, de sua visão do mundo está sempre ameaçada por todosos lados:

• Existe o “ruído” que parasita a transmissão da informação,cria o mal-entendido ou o não-entendido.

• Existe a polissemia de uma noção que, enunciada em umsentido, é entendida de outra forma; assim, a palavra “cultu-ra”, verdadeiro camaleão conceptual, pode significar tudo que,não sendo naturalmente inato, deve ser aprendido e adquiri-do; pode significar os usos, valores, crenças de uma etnia oude uma nação; pode significar toda a contribuição das huma-nidades, das literaturas, da arte e da filosofia.

• Existe a ignorância dos ritos e costumes do outro, especial-mente dos ritos de cortesia, o que pode levar a ofender in-conscientemente ou a desqualificar a si mesmo perante o outro.

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• Existe a incompreensão dos Valores imperativos propagadosno seio de outra cultura, como o são nas sociedades tradicio-nais o respeito aos idosos, a obediência incondicional dascrianças, a crença religiosa ou, ao contrário, em nossas socie-dades democráticas contemporâneas, o culto ao indivíduo eo respeito às liberdades.

• Existe a incompreensão dos imperativos éticos próprios a umacultura, o imperativo da vingança nas sociedades tribais, oimperativo da lei nas sociedades evoluídas.

• Existe freqüentemente a impossibilidade, no âmago da visãodo mundo, de compreender as idéias ou os argumentos deoutra visão do mundo, como de resto no âmago da filosofia,de compreender outra filosofia.

• Existe, enfim e sobretudo, a impossibilidade de compreensãode uma estrutura mental em relação a outra.

Os obstáculos intrínsecos às duas compreensões são enor-mes; são não somente a indiferença, mas também o egocentrismo,o etnocentrismo, o sociocentrismo, que têm como traço comumse situarem no centro do mundo e considerar como secundário,insignificante ou hostil tudo o que é estranho ou distante.

2.1 O egocentrismo

O egocentrismo cultiva a self-deception, tapeação de si pró-prio, provocada pela autojustificação, pela autoglorificação e pelatendência a jogar sobre outrem, estrangeiro ou não, a causa detodos os males. A self-deception é um jogo rotativo complexo dementira, sinceridade, convicção, duplicidade, que nos leva a per-ceber de modo pejorativo as palavras ou os atos alheios, a sele-cionar o que lhes é desfavorável, eliminar o que lhes é favorável,selecionar as lembranças gratificantes, eliminar ou transformar odesonroso.

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O Cercle de la Croix, de Iain Peaars, mostra bem, em quatronarrativas diferentes dos mesmos acontecimentos e do mesmohomicídio, a incompatibilidade entre as narrativas devido nãosomente à dissimulação e à mentira, mas às idéias preconcebi-das, às racionalizações, ao egocentrismo ou à crença religiosa. AFéerie por une autre fois, de Louis-Ferdinand Céline, é testemu-nho único de autojustificação frenética do autor, de sua incapaci-dade de se autocriticar, de seu raciocínio paranóico.

De fato, a incompreensão de si é fonte muito importante daincompreensão de outro. Mascaram-se as próprias carências efraquezas, o que nos torna implacáveis com as carências e fra-quezas dos outros.

O egocentrismo amplia-se com o afrouxamento da discipli-na e das obrigações que anteriormente levavam à renúncia aosdesejos individuais, quando se opunham à vontade dos pais oucônjuges. Hoje a incompreensão deteriora as relações pais-filhos,marido-esposas. Expande-se como um câncer na vida cotidiana,provocando calúnias, agressões, homicídios psíquicos (desejosde morte). O mundo dos intelectuais, escritores ou universitários,que deveria ser mais compreensivo, é o mais gangrenado sob oefeito da hipertrofia do ego, nutrido pela necessidade de consa-gração e de glória.

2.2 Etnocentrismo e sociocentrismo

O etnocentrismo e o sociocentrismo nutrem xenofobias eracismos e podem até mesmo despojar o estrangeiro da qualida-de de ser humano. Por isso, a verdadeira luta contra os racismosse operaria mais contra suas raízes ego-sócio-cêntricas do quecontra seus sintomas.

As idéias preconcebidas, as racionalizações com base empremissas arbitrárias, a autojustificação frenética, a incapacidadede se autocriticar, os raciocínios paranóicos, a arrogância, a

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recusa, o desprezo, a fabricação e a condenação de culpados sãoas causas e as conseqüências das piores incompreensões, oriun-das tanto do egocentrismo quanto do etnocentrismo.

A incompreensão produz tanto o embrutecimento quantoeste produz a incompreensão. A indignação economiza o examee a análise. Como disse Clément Rosset: “A desqualificação pormotivos de ordem moral permite evitar qualquer esforço de inte-ligência do objeto desqualificado de maneira que um juízo moraltraduz sempre a recusa de analisar e mesmo a recusa de pen-sar”.12 Como Westermarck assinalava: “O caráter distintivo daindignação moral continua sendo o desejo instintivo de devolverpena por pena.”

A incapacidade de conceber um complexo e a redução doconhecimento de um conjunto ao conhecimento de uma de suaspartes provocam conseqüências ainda mais funestas no mundodas relações humanas que no do conhecimento do mundo físico.

2.3 O espírito redutor

Reduzir o conhecimento do complexo ao de um de seuselementos, considerado como o mais significativo, tem conse-qüências piores em ética do que em conhecimento físico. Entretan-to, tanto é o modo de pensar dominante, redutor e simplificador,aliado aos mecanismos de incompreensão, que determina a re-dução da personalidade, múltipla por natureza, a um único deseus traços. Se o traço for favorável, haverá desconhecimentodos aspectos negativos desta personalidade. Se for desfavorável,haverá desconhecimento dos seus traços positivos. Em um e emoutro caso, haverá incompreensão. A compreensão pede, porexemplo, que não se feche, não se reduza o ser humano a seucrime, nem mesmo se cometeu vários crimes. Como dizia Hegel:

12. C. Rosset. Le démon de la tautologie, suivi de cinq pièces morales. Minuit, 1997, p. 68.

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“O pensamento abstrato nada vê no assassino além desta quali-dade abstrata (retirada de seu complexo) e (destrói) nele, com aajuda desta única qualidade, o que resta de sua humanidade.”

Além disso, lembremo-nos de que a possessão por uma idéia,uma fé, que dá a convicção absoluta de sua verdade, aniquilaqualquer possibilidade de compreensão de outra idéia, de outrafé, de outra pessoa.

Assim, os obstáculos à compreensão são múltiplos emultiformes: os mais graves são constituídos pela cadeiaegocentrismo/autojustificação/self-deception, pelas possessões ereduções, assim como pelo talião e pela vingança — estruturasarraigadas de modo indelével no espírito humano, que ele nãopode arrancar, mas que ele pode e deve superar.

A conjunção das incompreensões, a intelectual e a humana,a individual e a coletiva, constitui obstáculos maiores para amelhoria das relações entre indivíduos, grupos, povos, nações.

Não são somente as vias econômicas, jurídicas, sociais, cul-turais que facilitarão as vias da compreensão; é preciso tambémrecorrer a vias intelectuais e éticas, que poderão desenvolver adupla compreensão, intelectual e humana.

3. A ÉTICA DA COMPREENSÃO

A ética da compreensão é a arte de viver que nos demanda,em primeiro lugar, compreender de modo desinteressado. De-manda grande esforço, pois não pode esperar nenhuma recipro-cidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático com-preende por que o fanático quer matá-lo, sabendo que este ja-mais o compreenderá. Compreender o fanático que é incapaz denos compreender é compreender as raízes, as formas e as mani-festações do fanatismo humano. É compreender porque e comose odeia ou se despreza. A ética da compreensão pede que secompreenda a incompreensão.

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A ética da compreensão pede que se argumente, que se re-fute em vez de excomungar e anatematizar. Encerrar na noçãode traidor o que decorre da inteligibilidade mais ampla impedeque se reconheçam o erro, os desvios, as ideologias, as derivas.

A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evitea condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmosnunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Sesoubermos compreender antes de condenar, estaremos no cami-nho da humanização das relações humanas.

O que favorece a compreensão é:

3.1 O “bem pensar”

Este é o modo de pensar que permite apreender em conjun-to o texto e o contexto, o ser e seu meio ambiente, o local e oglobal, o multidimensional, em suma, o complexo, isto é, as con-dições do comportamento humano. Permite-nos compreenderigualmente as condições objetivas e subjetivas (self-deception,possessão por uma fé, delírios e histerias).

3.2 A introspecção

A prática mental do auto-exame permanente é necessária,já que a compreensão de nossas fraquezas ou faltas é a via paraa compreensão das do outro. Se descobrirmos que somos todosseres falíveis, frágeis, insuficientes, carentes, então podemos des-cobrir que todos necessitamos de mútua compreensão.

O auto-exame crítico permite que nos descentremos em re-lação a nós mesmos e, por conseguinte, que reconheçamos ejulguemos nosso egocentrismo. Permite que não assumamos aposição de juiz de todas as coisas.13

13. “É um idiota”, “É um crápula” são expressões que exprimem ao mesmo tempo a totalincompreensão e a pretensão à soberania intelectual e moral.

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4. A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE HUMANA

A compreensão do outro requer a consciência da complexida-de humana.

Assim, podemos buscar na literatura romanesca e no cinema aconsciência de que não se deve reduzir o ser à menor parte delepróprio, nem mesmo ao pior fragmento de seu passado. Enquanto,na vida comum, nos apressamos em encerrar na noção de crimino-so aquele que cometeu um crime, reduzindo os demais aspectos desua vida e de sua pessoa a este traço único, descobrimos em seusmúltiplos aspectos os reis gângsters de Shakespeare e os gângstersreais dos filmes policiais. Podemos ver como um criminoso pode setransformar e se redimir como Jean Valjean e Raskolnikov.

Podemos enfim aprender com eles as maiores lições de vida,a compaixão do sofrimento dos humilhados e a verdadeira com-preensão.

4.1 A abertura subjetiva (simpática) em relação ao outro

Estamos abertos para determinadas pessoas próximas privi-legiadas, mas permanecemos, na maioria do tempo, fechados paraas demais. O cinema, ao favorecer o pleno uso de nossa subjetivi-dade pela projeção e identificação, faz-nos simpatizar e compreen-der os que nos seriam estranhos ou antipáticos em tempos nor-mais. Aquele que sente repugnância pelo vagabundo encontradona rua simpatiza de todo coração, no cinema, com o vagabundoCarlitos. Enquanto na vida cotidiana ficamos quase indiferentesàs misérias físicas e morais, sentimos compaixão e comiseraçãona leitura de um romance ou na projeção de um filme.

4.2 A interiorização da tolerância

A verdadeira tolerância não é indiferente às idéias ou aoceticismo generalizados. Supõe convicção, fé, escolha ética e ao

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mesmo tempo aceitação da expressão das idéias, convicções,escolhas contrárias às nossas. A tolerância supõe sofrimento aosuportar a expressão de idéias negativas ou, segundo nossa opi-nião, nefastas, e a vontade de assumir este sofrimento.

Há quatro graus de tolerância: o primeiro, expresso porVoltaire, obriga-nos a respeitar o direito de proferir um propósitoque nos parece ignóbil; isso não é respeitar o ignóbil, trata-se deevitar que se imponha nossa concepção sobre o ignóbil a fim deproibir uma fala. O segundo grau é inseparável da opção demo-crática: a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversase antagônicas; assim, o princípio democrático conclama cada uma respeitar a expressão de idéias antagônicas às suas. O terceirograu obedece à concepção de Niels Bohr, para quem o contráriode uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; dito de outramaneira, há uma verdade na idéia antagônica à nossa, e é estaverdade que é preciso respeitar. O quarto grau vem da consciên-cia das possessões humanas pelos mitos, ideologias, idéias oudeuses, assim como da consciência das derivas que levam osindivíduos bem mais longe, a lugar diferente daquele onde que-rem ir. A tolerância vale, com certeza, para as idéias, não para osinsultos, agressões ou atos homicidas.

5. COMPREENSÃO, ÉTICA E CULTURA PLANETÁRIAS

Devemos relacionar a ética da compreensão entre as pes-soas com a ética da era planetária, que pede a mundialização dacompreensão. A única verdadeira mundialização que estaria aserviço do gênero humano é a da compreensão, da solidarieda-de intelectual e moral da humanidade.

As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgu-lhosa cultura ocidental, que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar também uma cultura-aprendiz. Compreender é tam-bém aprender e reaprender incessantemente.

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Como podem as culturas comunicar? Magoroh Maruyamafornece-nos uma indicação útil.14 Em cada cultura, as mentalida-des dominantes são etno ou sociocêntricas, isto é, mais ou me-nos fechadas em relação às outras culturas. Mas existem, dentrode cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas,desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos mis-tos, que constituem pontes naturais entre as culturas. Muitas ve-zes os desviantes são escritores ou poetas cuja mensagem podese irradiar tanto no próprio país quanto no mundo exterior.

Quando se trata de arte, de música, de literatura, de pensa-mento, a mundialização cultural não é homogeneizadora. For-mam-se grandes ondas transnacionais que favorecem ao mesmotempo a expressão das originalidades nacionais em seu seio. Foiassim na Europa no Classicismo, nas Luzes, no Romantismo, noRealismo, no Surrealismo. Hoje, os romances japoneses, latino-americanos, africanos são publicados nas grandes línguas euro-péias e os romances europeus são publicados na Ásia, no Orien-te, na África e nas Américas. As traduções dos romances, en-saios, livros filosóficos de uma língua para outra permitem a cadapaís ter acesso às obras dos outros países e de nutrir-se das cultu-ras do mundo, alimentando ao mesmo tempo, com suas obras, ocaldo de cultura planetária. Com certeza, aquele que recolhe ascontribuições originais de múltiplas culturas está ainda limitadoàs esferas restritas de cada nação; mas seu desenvolvimento éum traço marcante da segunda metade do século XX e deveriaestender-se até o século XXI, o que seria triunfal para a compre-ensão entre os humanos.

Paralelamente, as culturas orientais suscitam no Ocidentemúltiplas curiosidades e interrogações. O Ocidente já havia tra-duzido o Avesta e os Upanishads no século XVIII, Confúcio eLao-Tseu no século XIX, mas as mensagens da Ásia permane-

14.” Mindiscapes, individuals and cultures in management”, in Journal of ManagementInquiry, vol. 2, nº 2 junho 1993, p. 138-154. Sage Publication.

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ciam restritas a objetos de estudos eruditos. Foi apenas no séculoXX que a arte africana, os filósofos e místicos do Islã, os textossagrados da Índia, o pensamento do Tao, o do budismo transfor-maram-se fontes vivas para a alma ocidental isolada ao mundodo ativismo, do produtivismo, da eficácia, do divertimento, queaspira à paz interior e à relação harmoniosa com o corpo.

A abertura da cultura ocidental pode parecer para alguns aomesmo tempo não-compreensiva e incompreensível. Mas aracionalidade aberta e autocrítica decorrente da cultura européiapermite a compreensão e a integração do que outras culturasdesenvolveram e que ela atrofiou. O Ocidente deve também in-corporar as virtudes das outras culturas, a fim de corrigir oativismo, o pragmatismo, o “quantitativismo”, o consumismodesenfreados, desencadeados dentro e fora dele. Mas deve tam-bém salvaguardar, regenerar e propagar o melhor de sua cultura,que produziu a democracia, os direitos humanos, a proteção daesfera privada do cidadão.

A compreensão entre sociedades supõe sociedades demo-cráticas abertas, o que significa que o caminho da Compreensãoentre culturas, povos e nações passa pela generalização dassociedades democráticas abertas.

Mas não nos esqueçamos de que, mesmo nas sociedadesdemocráticas abertas, permanece o problema epistemológico dacompreensão: para que possa haver compreensão entre estrutu-ras de pensamento, é preciso passar à metaestrutura do pensa-mento que compreenda as causas da incompreensão de umasem relação às outras e que possa superá-las.

A compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comuni-cação humana. O planeta necessita, em todos os sentidos, decompreensões mútuas. Dada a importância da educação para acompreensão, em todos os níveis educativos e em todas as ida-des, o desenvolvimento da compreensão necessita da reformaplanetária das mentalidades; esta deve ser a tarefa da educaçãodo futuro.