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ISSN 2176-1396 OS TEMAS TRANSVERSAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA E A COMPREENSÃO DO FUTEBOL COMO PRÁTICA CORPORAL E SOCIAL Roberto do Valle Mossa 1 - UFPR Deborah Helenise Lemes de Paula 2 - SME/PR Grupo de Trabalho Didática: Teorias, Metodologias e Práticas Agência Financiadora: CAPES/PIBID-UFPR Resumo O presente texto relata a experiência de uma prática pedagógica construída, a partir da escolha dos estudantes, com a temática Futebol, que, de certo modo, tencionam com o cenário da modalidade no contexto brasileiro. A proposta foi realizada numa Unidade de Educação Integral da Rede Municipal de Ensino de Curitiba, no ano de 2016, com estudantes do 6° ao 9° ano. Objetivando romper com práticas que enfatizam apenas os gestos motores e de treinamento esportivo no ambiente escolar, identificamos possíveis temas transversais que permeiam a modalidade esportiva - futebol - e influenciam diretamente a opinião dos jovens, como, por exemplo, a interferência que a mídia exerce no esporte, os altos investimentos financeiros a alguns times em detrimento de outros, a função das torcidas organizadas e a presença da mulher no futebol. Estabelecemos como objetivos de aprendizagem: reconhecer a origem desta modalidade e as possíveis transformações sociais que compõem esta cultura corporal, além de compreender criticamente o papel das torcidas comunse das torcidas organizadas, expondo questões sobre fundamentalismo e extremismo na sociedade a partir do futebol A partir disso, foram quatro aulas planejadas, com diferentes estratégias metodológicas teórico-prático, sendo que, os resultados atingidos, indicaram a importância da reflexão acerca dos problemas sociais no contexto da Educação Física, possibilitando ao estudante compreender sua realidade social. Ao final da proposta de trabalho, concluímos que muito mais do que ensinar gestos técnicos corretamente, cabe ao professor de Educação Física problematizar e oferecer aos estudantes formas de interpretar e ressignificar manifestações corporais e sociais das práticas de movimento, ultrapassando o saber fazer (dimensão procedimental) e atingindo valores transversais (dimensão atitudinal), garantindo ao estudante o direito de questionar e de se livrar de padrões impostos pela mídia e sociedade. Palavras-chave: Educação Física Escolar. Futebol. Temas transversais. 1 Acadêmico do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação pela UFPR. Especialista em Educação Física escolar. Professora de Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Curitiba. E-mail: [email protected].

OS TEMAS TRANSVERSAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA E A … · na sociedade a partir do futebol. Desenvolvimento Para Darido (2012), ensinar Educação Física não significa tratar apenas

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ISSN 2176-1396

OS TEMAS TRANSVERSAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA E A

COMPREENSÃO DO FUTEBOL COMO PRÁTICA CORPORAL E

SOCIAL

Roberto do Valle Mossa1 - UFPR

Deborah Helenise Lemes de Paula2 - SME/PR

Grupo de Trabalho – Didática: Teorias, Metodologias e Práticas

Agência Financiadora: CAPES/PIBID-UFPR

Resumo

O presente texto relata a experiência de uma prática pedagógica construída, a partir da escolha

dos estudantes, com a temática Futebol, que, de certo modo, tencionam com o cenário da

modalidade no contexto brasileiro. A proposta foi realizada numa Unidade de Educação

Integral da Rede Municipal de Ensino de Curitiba, no ano de 2016, com estudantes do 6° ao 9°

ano. Objetivando romper com práticas que enfatizam apenas os gestos motores e de treinamento

esportivo no ambiente escolar, identificamos possíveis temas transversais que permeiam a

modalidade esportiva - futebol - e influenciam diretamente a opinião dos jovens, como, por

exemplo, a interferência que a mídia exerce no esporte, os altos investimentos financeiros a

alguns times em detrimento de outros, a função das torcidas organizadas e a presença da mulher

no futebol. Estabelecemos como objetivos de aprendizagem: reconhecer a origem desta

modalidade e as possíveis transformações sociais que compõem esta cultura corporal, além de

compreender criticamente o papel das torcidas “comuns” e das torcidas organizadas, expondo

questões sobre fundamentalismo e extremismo na sociedade a partir do futebol A partir disso,

foram quatro aulas planejadas, com diferentes estratégias metodológicas teórico-prático, sendo

que, os resultados atingidos, indicaram a importância da reflexão acerca dos problemas sociais

no contexto da Educação Física, possibilitando ao estudante compreender sua realidade social.

Ao final da proposta de trabalho, concluímos que muito mais do que ensinar gestos técnicos

corretamente, cabe ao professor de Educação Física problematizar e oferecer aos estudantes

formas de interpretar e ressignificar manifestações corporais e sociais das práticas de

movimento, ultrapassando o saber fazer (dimensão procedimental) e atingindo valores

transversais (dimensão atitudinal), garantindo ao estudante o direito de questionar e de se livrar

de padrões impostos pela mídia e sociedade.

Palavras-chave: Educação Física Escolar. Futebol. Temas transversais.

1 Acadêmico do curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal do Paraná. E-mail:

[email protected]. 2 Mestre em Educação pela UFPR. Especialista em Educação Física escolar. Professora de Educação Física da

Rede Municipal de Ensino de Curitiba. E-mail: [email protected].

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Introdução

O presente texto relata a experiência de uma prática pedagógica construída, a partir da

escolha dos estudantes, com a temática futebol, que, de certo modo, tencionam com o cenário

da modalidade no contexto brasileiro.

O trabalho foi realizado com uma turma mista do ensino fundamental II, em uma

Unidade de Ensino Integral (UEI), da Rede Municipal de Curitiba, no ano de 2016. Conforme

o Portal Educação de Curitiba3, nas UEI são trabalhados o desenvolvimento de potencialidades

humanas, havendo equilíbrio entre os aspectos biológicos, cognitivos, afetivos, psicológicos,

culturais, motores e sociais. Nas unidades, há diversificação nas práticas educativas, com o

acompanhamento pedagógico e oficinas que propiciam o aprofundamento científico, cultural,

artístico e tecnológico aos estudantes.

Sendo uma ampliação dos conteúdos escolares, estes regidos pelas diretrizes

municipais, as UEI possuem a incumbência de explorar temáticas de forma mais aprofundada,

despertando no estudante um maior interesse e olhar crítico acerca dos assuntos trabalhados.

Conforme o Portal Educação há uma função social diferenciada nas UEI, remetendo ao ensino-

aprendizagem de todos os estudantes em integralidade, embasada na discussão, planejamento,

acompanhamento e avaliação do conjunto de ações que marcam o trabalho pedagógico da

instituição.

A partir dessa proposta, dialogamos com os estudantes sobre quais saberes poderíamos

aprofundar nas aulas de Educação Física. Neste sentido, os estudantes, muito acostumados a

“jogar bola” sugeriram um trabalho com o futebol. Assim, surgiu nos docentes a preocupação

em trabalhar a temática de forma diferenciada, isto é, para além daquilo que os estudantes

estavam acostumados a fazer.

Neste sentido, sem valorizar somente o caráter técnico e prático do futebol, buscando

contemplar questões inerentes à modalidade, listamos possíveis temas transversais (BRASIL,

1997b) que poderiam ser trabalhados a partir da modalidade esportiva, futebol, e seus

tencionamentos frente à sociedade.

Nesse processo, identificamos que torcidas organizadas seria um tema de importante

debate, uma vez que na fase de desenvolvimento que os estudantes encontravam-se, suas

escolhas pelos esportes e times de futebol parecem ser delineadas e de certo modo influenciadas

pela mídia. Essa, por sua vez, enfatiza os maiores e mais rentáveis clubes, em detrimento de

3 www.cidadedoconhecimento.org.br

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outros menores que não oferecem retorno financeiro aos veículos de comunicação,

principalmente a televisão.

A partir disso, estabelecemos como objetivo de trabalho com a prática pedagógica sobre

o futebol: reconhecer a origem desta modalidade e as possíveis transformações sociais que

compõem esta cultura corporal, além de compreender criticamente o papel das torcidas

“comuns” e das torcidas organizadas, expondo questões sobre fundamentalismo e extremismo

na sociedade a partir do futebol.

Desenvolvimento

Para Darido (2012), ensinar Educação Física não significa tratar apenas de técnicas e

táticas, mais do que isso, oferecer uma formação ampla voltada à formação do cidadão crítico.

Conforme a autora, a finalidade é possibilitar aos estudantes que, durante e após as suas práticas,

possam usufruir do esporte para o lazer, reflexão crítica e também melhoria da qualidade de

vida. Pretende-se assim que o estudante, a partir das aulas, tenha condições de reivindicar

espaços de lazer, repudiar formas de violência no esporte e na sociedade, compreender o papel

do futebol na cultura brasileira, respeitar diferentes grupos étnicos, compreender diferenças

entre homens e mulheres, cuidar de seu meio ambiente etc. (DARIDO, 2012).

Complementando essa ideia, o Coletivo de Autores (1992) menciona a importância e

necessidade que a Educação Física possui em tratar grandes problemas sociais nas aulas, como

ecologia, questões de gênero, relações sociais do trabalho, distribuição de solo urbano,

preconceito de variadas formas, como racial, de deficiências, velhice, dentre outras questões.

Conforme os autores, a reflexão e crítica quanto estes problemas é necessária, onde existe o

intuito de possibilitar ao estudante a compreensão de sua realidade social e seu contexto.

Neste sentido, os temas transversais assumem de forma concreta a possibilidade de

trabalho educativo da Educação Física com temáticas que problematizem as diferentes questões

sociais. Entretanto, vale frisar que o termo “transversalidade” passou por todo um processo de

construção e conhecer esse processo possibilita um melhor e mais pleno entendimento e

utilização do conceito. Seu início se deu na reforma do sistema educacional espanhol,

assumindo diferentes significados até chegar ao atual. Conforme menciona Gavídia (2002, p.

15):

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A construção do conceito de transversalidade foi realizada em pouco tempo, com

contribuições diversas que foram acrescentando significados novos ao termo. Esses

significados foram aceitos rapidamente, enriquecendo a representação que temos hoje.

Se antes transversal significava certos conteúdos a serem considerados nas diversas

disciplinas escolares – a higiene, o recibo de luz, a moradia, etc. –, agora representa o

conjunto de valores, atitudes e comportamentos mais importantes que devem ser

ensinados.

No Brasil, o conjunto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997a) foi o

pioneiro quanto ao surgimento do termo, inspirado pela reforma espanhola.

A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa,

uma relação entre aprender na realidade e da realidade conhecimentos teoricamente

sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real e sua

transformação (aprender na realidade e da realidade). (BRASIL, 1997b, p. 30).

Atualmente, os Temas Transversais constituem-se como centro das mais variadas

preocupações sociais, neste sentido, Busquets (2003) sugere que ele seja o principal eixo de

trabalho das áreas curriculares.

Assim, os conteúdos curriculares são compreendidos como meios através dos quais se

objetiva ampliar a capacidade de refletir, significar, interpretar e ressignificar propriamente o

mundo que nos envolve. A partir da organização dos conteúdos, entorno dos eixos que

manifestam a problemática do cotidiano, estes se transformarão em instrumentos destacados à

ampliação da capacidade crítica e de reflexão. Para Busquets (2003, p.38) "sem um contexto

para situá-los, para grande parte dos estudantes os conteúdos curriculares transformam-se em

algo absolutamente carente de interesse ou totalmente incompreensível".

Ainda conforme a autora, se a cultura, e consequentemente o ensino, são produtos das

ideias predominantes ao longo da história, e se estas ideias avançam, é natural que estes avanços

também se reflitam nos conteúdos escolares. Para a autora, não se pode esperar que os campos

de pensamento que se iniciaram com a ciência clássica, na Grécia Antiga, proporcionem

conhecimentos sobre tudo aquilo que os homens e as mulheres do presente precisam saber,

visto que vivemos em uma sociedade que clama pela paz, desenvolvimento da afetividade e da

sexualidade, da vida mais saudável, igualdade de direitos e oportunidades, preservação e

melhora do meio ambiente etc. (BUSQUETS, 2003).

Os temas transversais destinam-se a superar alguns efeitos perversos – aqueles dos

quais a sociedade atual se conscientizou – que, junto com outros de grande validade,

herdamos da cultura tradicional. (BUSQUETS, 2003, p. 36).

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Assim, compreendendo a Educação Física como uma linguagem, entendemos que

através dela é possível construir um trabalho pedagógico com os estudantes que tenha como

escopo a transversalidade, como a ética, pluralidade cultural, trabalho e consumo, gênero e

sexualidade, dentre outros possíveis de serem agregados ao Futebol, conteúdo vivido no

presente trabalho.

Encaminhamentos Metodológicos

Neste tópico iremos apresentar os encaminhamentos metodológicos adotados para o

trabalho pedagógico com a temática: futebol, transversalidade e o diálogo com a Educação

Física.

O encaminhamento ora apresentado teve duração de aproximadamente 1 mês, isto é, 4

aulas, tendo em vista a organização das atividades com a prática da Educação Física na UEI.

A primeira estratégia metodológica construída para contemplar o futebol no Brasil e as

temáticas transversais, foi questionar quantas crianças na turma já haviam ido a um estádio de

futebol e para qual time torciam. Esse levantamento já nos indicou o conhecimento prévio que

os estudantes possuíam acerca da modalidade e nos conduziu ao segundo encaminhamento, que

foi, a apresentação de forma expositiva e interativa sobre o surgimento da modalidade e sua

chegada ao Brasil, embasado por dados históricos.

Num segundo momento, investigamos o conhecimento que os estudantes tinham acerca

das torcidas organizadas, questionando-os sobre o que eles sabiam sobre o tema. A partir das

respostas dadas e com o auxílio de vídeos selecionados, como um vídeo documentário que

mostra a relação do Clube Atlético Juventus – SP, um dos primeiros times de futebol do país,

junto a sua torcida, foi possível problematizar/demonstrar o papel do torcedor, bem como boas

práticas dos grupos de torcida, em contraste aos maus exemplos de violência e extremismo de

minorias, que não aceitam, ou oprimem, seu semelhante devido a escolha pela torcida de uma

equipe adversária.

O conceito de exclusão também foi problematizado através da presença mínima das

mulheres no Futebol, tanto no âmbito recreacional como no profissional, além de haver, neste

último caso, salários notadamente menores que dos homens. Também foi colocado em

discussão a influência que a mídia exerce neste esporte, favorecendo grandes clubes e

mitificando determinados atletas em detrimento de outros, principalmente quando se pensa em

Futebol feminino.

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Outra questão abordada foi: Por que torna-se comum lembrar da versão feminina de

todos esportes, seja Voleibol, Natação, Judô, enquanto jogos de Futebol feminino são

esquecidos, com a maior parte do público fã da modalidade sequer conhecendo as jogadoras da

seleção brasileira? Esse questionamento feito às crianças complementou a problematização

acerca do dinheiro envolvido com este esporte, com referências a patrocínios, investimentos e

interesses de grandes empresas.

Como uma das atividades práticas, foi elaborada a brincadeira “Lobo e Ovelha”,

adaptada em situação alusiva à intolerância e exclusão social. Assim, foi proposto às crianças

a formação de um círculo, todas com os braços entrelaçados, onde uma, de fora, buscava

adentrá-lo, ao mesmo tempo em que os demais impediam, utilizando o próprio corpo, a

passagem do “excluído”, formando uma parede humana, conforme a Figura 1.

Figura 1 - Atividade prática "Lobo e Ovelha"

Fonte: Os autores (2016)

A Figura 1 mostra que, apesar do lúdico envolvido, que contagiou e divertiu as crianças

no desafio proposto, tanto o estudante que buscava entrar na roda, quanto os que estavam

impedindo sua entrada, manifestaram o desconforto por impedir a entrada ou por não obter

êxito entrando. Isto foi detectado nos momentos em que a criança cessava as tentativas, com

intuito de descansar e, frente a dificuldade enfrentada, pensar em novos meios de atingir o

objetivo.

A atividade prática observada na Figura 1 também teve como intuito remeter a ideia de

exclusão, ou afastamento, de determinados indivíduos de grupos sociais ao qual não são aceitos

por suas escolhas individuais, como no caso das mulheres no universo do Futebol. Seja no

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âmbito profissional, de lazer e recreacional, ou mesmo no ambiente escolar, as meninas tendem

a ser, ou se sentir, excluídas dos jogos, como, por exemplo, ao notarem que são afastadas da

atividade pelos meninos que apresentam maior destreza e posse da bola durante os jogos, além

da força física feminina, geralmente menor a partir da fase púbere. Ou ainda por apresentarem

dificuldades em realizar habilidades motoras básicas, como o ato do chute, justamente por terem

recebido pouco estímulo ambiental, seja por falta da prática em aulas de Educação Física, ou

mesmo por influência do ambiente social/familiar, que podem considerar o ato de chutar uma

bola como sendo algo que pertencente ao universo masculino, incentivando as meninas apenas

às práticas corporais historicamente impostas a elas.

As atividades com bola não poderiam ser desprezadas no planejamento, entretanto, com

intuito de contemplar o conteúdo proposto, foram planejadas atividades lúdicas de forma a não

valorizar somente a técnica ou o esporte em si. Assumimos a preocupação em não reproduzir

espaços de treinamento, bem como não valorizar, neste momento, regras oficiais da modalidade

sob orientações pré-concebidas ao esporte.

Assim, visando a familiarização de todos da turma, tanto dos que possuíam maior

habilidade por razões de estímulos, como dos que tinham pouca ou nenhuma ambientação,

selecionamos variados tipos de bola (tamanhos e pesos) para a realização de uma adaptação ao

Curling.4

O jogo, em sua versão oficial, é praticado em uma pista de gelo, cujo objetivo é deslizar

pedras de granito o mais próximo possível do alvo, contando com o auxílio de jogadores que

“enxugam” o gelo, com auxílio de rodos, no sentido de deixá-lo mais ou menos deslizante,

assim controlando a velocidade da pedra. A prática, em si, adaptada, consistiu em impulsionar

a bola com os pés, tanto o dominante quanto o oposto, tendo como objetivo atingir o alvo

principal desenhado no chão do espaço, disposto dentro de grandes círculos sobrepostos um

dentro ao outro, cada qual com respectivo valor de pontuação, estipulada de acordo com o nível

de dificuldade e distância, também sendo permitido às crianças atingir e afastar a bola lançada

pelas demais participantes, a fim de tornar o jogo mais dinâmico e estratégico. Na Figura 2 é

possível observar a proposta do Curling adaptado ao futebol.

4 Modalidade esportiva tradicional das Olímpiadas de Inverno e prevista como exemplo na Base Nacional

Comum Curricular (2017), estando inserida dentro do modelo de classificação “Precisão”, da unidade temática

“Esportes”, que compõe as práticas corporais.

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Figura 2 - Criança chutando bola de basquete esvaziada no jogo alusivo ao Curling

Fonte: Os autores (2016)

A Figura 2 revela o momento de participação de uma criança na prática do Curling

adaptado, o qual, do ponto de vista da prática corporal, a habilidade trabalhada foi o chute.

Além disso, exigiu dos estudantes noção de espaço, tempo e força empenhada na realização do

movimento. A atividade possibilitou problematizar as diferenças corporais de movimento que

se assumem nas práticas, isto é, que cada corpo deve ser respeitado a partir de suas capacidades

e habilidades.

Em outro momento, foi realizada atividade alusiva ao Boliche, utilizando pinos de

plástico, cujo objetivo era derrubá-los impulsionando a bola com os pés, conforme Figura 3.

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Figura 3 - Brincadeira de boliche

Fonte: Os autores (2016)

Na figura 3 é possível observar a brincadeira sendo vivenciada, também realizada como

estratégia metodológica no trabalho com o Futebol, desvelando a possibilidade de forma lúdica

para além do jogo e da técnica pura. Todavia, ainda é preciso deixar claro que o trabalho com

a técnica também é fundamental, no entanto no contexto escolar não deve assumir essa única

forma.

Ambas atividades transcorreram sem grandes diferenciações de nível de habilidade

motora. Essas práticas ocorreram com o uso de diferentes tipos de bolas, inclusive esvaziadas,

de modo a elevar o grau de dificuldade e estimular o aspecto sensorial nas crianças. As

atividades transcorreram de forma inclusiva, proporcionando a participação de todas as

crianças, independente do grau de destreza com relação ao chute e buscando a não formação de

fila, em ações colaborativas, no sentindo de distribuir tarefas aos participantes: a criança

responsável por levantar os pinos derrubados, a que realizava a contagem e soma, a que

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recolocava a bola na marcação e as que auxiliavam o chutador, em esforço para não gerar a

ociosidade da espera pela vez.

Resultados e Discussão

Pudemos perceber, através dos encaminhamentos realizados, resultados interessantes

frente à proposta. Percebemos que os estudantes reconheceram as transformações sociais que

compõem esta cultura corporal e compreenderam criticamente o papel das torcidas organizadas,

bem assim como a influência que a mídia e o envolvimento do dinheiro podem exercer no

Futebol.

Isso pôde ser constatado principalmente na fala dos estudantes durante as discussões e

na produção de um cartaz que utilizamos como instrumento/procedimento avaliativo.

Figura 4 - Crianças no momento da produção do cartaz

Fonte: Os autores (2016)

A Figura 4 mostra a turma em momento de concentração, debatendo ideias para a

confecção de um cartaz, de forma livre, com recortes, desenhos, frases etc, meio com o qual

tiveram a oportunidade de reproduzir seus sentimentos acerca do que viram, sentiram e

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compreenderam, produzindo, em conjunto, e materializando desta maneira, uma crítica às

questões do extremismo, fanatismo, exclusão, desrespeito e hostilização.

Quanto a vivência de uma nova prática corporal – Curling – típica a outras culturas, no

caderno-diário (instrumento de memórias quanto a sentimentos e impressões das práticas

realizadas) de uma das crianças, foi visto a reprodução em forma de desenho acerca do jogo

experenciado, como é possível verificar na Figura 5.

Figura 5 - Desenho no caderno de uma das crianças como memória da prática do Curling adaptado.

Fonte: Os autores (2016)

Na Figura 5 é possível observar o desenho da prática vivenciada pelo estudante, além

disso, nesse mesmo registro, ele relata que teve dificuldade em realizar a atividade proposta,

concluindo que precisava brincar mais vezes com o movimento para que o aprendizado se

concretizasse. Esse processo de autoavaliação, identificado neste diário, revela o impacto

positivo que as discussões e práticas provocaram nele. Do ponto de vista dos temas transversais

percebemos que o estudante compreendeu as diferenças corporais e respeitou a diferença de

movimentação do seu próprio corpo.

Foi notado também que a turma, integralmente, se lembrou de momentos de violência

por parte das torcidas organizadas dos grandes clubes, mencionando cenas de violência vistas

na televisão. Usualmente os veículos de comunicação – emissores de informação – delineando

o pensamento e opinião do receptor (sociedade), se reportam a tais grupos sempre mencionando

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referindo situações de violência e extremismo, em detrimento aos torcedores não envolvidos

com tais atos e a ações apreciáveis e notáveis, como campanhas de doação e outras atividades

de lazer.

Contratos de patrocínio, retorno financeiro e lucratividade de empresas utilizando o

Futebol também foram discutidos com a turma e foi tema abordado na construção dos cartazes.

No que versa às atividades práticas realizadas, pudemos ver crianças enfrentando suas

dificuldades e respeitando seu movimento e o movimento do outro. Também percebemos que

os estudantes ajustaram suas habilidades às necessidades das práticas propostas e

transformaram um não saber em saber. Vale destacar também o debate que fizemos após a

brincadeira “Lobo e ovelha” enriquecendo a reflexão sobre os grupos excluídos, levando os

estudantes a perceberem corporalmente como este processo se dá na sociedade.

Conclusão

Os resultados atingidos corroboram com o Coletivos de Autores (1992), afirmando que

a reflexão acerca dos problemas sociais é necessária, possibilitando ao estudante compreender

sua realidade social. Concluímos que muito mais do que ensinar gestos técnicos corretamente,

cabe ao professor de Educação Física problematizar e oferecer aos estudantes formas de

interpretar e ressignificar manifestações corporais e sociais das práticas de movimento,

ultrapassando o saber fazer (dimensão procedimental) e atingindo valores transversais

(dimensão atitudinal), garantindo ao estudante o direito de questionar e de se livrar de padrões

impostos pela mídia e sociedade.

Corroborando com o discurso de BUSQUETS (2003), inclusive no universo do Futebol

há possibilidades concretas de identificar grande gama de temáticas que permeiam as

transversalidades envolvidas à modalidade, superando efeitos maléficos herdados da cultura

tradicional e assimilados pela sociedade atual, devendo os temas transversais estar em posição

igualitária no ensino escolar, sem detrimento frente às ciências clássicas, entretanto revisando

e adequando conteúdos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:

introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental.

– Brasília: MEC/SEF, 1997a.

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BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:

apresentação dos temas transversais, ética / Secretaria de Educação Fundamental. –

Brasília: MEC/SEF, 1997b.

BUSQUETS, M. S. et al. Temas transversais em educação: bases para uma formação

integral. São Paulo: Ática, 2003.

DARIDO, S. C., Temas Transversais e a Educação Física escolar. In: Suraya Cristina Darido.

(Org.). Cadernos de Formação: Conteúdos e Didática de Educação Física. São Paulo:

Cultura Acadêmica, 2012, v. 1, p. 76-89.

GAVÍDIA, Valentin. A construção do conceito de transversalidade. In: ÁLVAREZ,

María Nieves et al. Valores e temas transversais no currículo. Porto Alegre, Artmed, 2002.

(p. 15-30)

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo:

Cortez, 1992.