108
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE UERN CAMPUS AVANÇADO PROF.ª “MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM DEPARTAMENTO DE LETRAS DL PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM LETRAS PPGL MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO LINHA DE PESQUISA: TEXTO, ENSINO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS. OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO Ana Alice de Freitas Neta Araújo Pau dos Ferros/RN 2012

OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS ...§ões 2012/arquivos... · Martelotta (2008, 2011), among others, adopting thus the paradigms and methods of approaches that characterizes

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN CAMPUS AVANÇADO PROF.ª “MARIA ELISA DE A. MAIA” – CAMEAM

DEPARTAMENTO DE LETRAS – DL PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DO DISCURSO E DO TEXTO

LINHA DE PESQUISA: TEXTO, ENSINO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS.

OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO

Ana Alice de Freitas Neta Araújo

Pau dos Ferros/RN 2012

ANA ALICE DE FREITAS NETA ARAÚJO

OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras, da

Universidade do Estado do Rio Grande do

Norte, como requisito para obtenção do título

de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Rosângela Maria

Bessa Vidal

Pau dos Ferros/RN

2012

Araújo, Ana Alice de Freitas Neta.

Os usos dos verbos vender e alugar em anúncios classificados de jornal impresso. / Ana Alice de Freitas Neta Araújo. – Pau dos Ferros, RN, 2012.

108 f.

Orientador (a): Prof.ª Dra. Rosângela Maria Bessa Vidal.

Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Departamento de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de Concentração: Estudos do Discurso e do Texto.

1. Funcionalismo – Linguística – Dissertação. 2. Gramática – Dissertação. 3. Flexão Verbal – Dissertação. 4. Vender – Verbo – Dissertação. 5. Alugar – Verbo – Dissertação. I. Vidal, Rosângela Maria Bessa. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/BC CDD 401.41

Catalogação da Publicação na Fonte.

Bibliotecário: Tiago Emanuel Maia Freire / CRB - 15/449

ANA ALICE DE FREITAS NETA ARAÚJO

OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Mestre em Letras pela:

_______________________________________ Profa. Dra. Rosângela Maria Bessa Vidal - UERN

Presidente da Banca

__________________________________ Prof. Dr. Edvaldo Balduino Bispo – UFRN

Examinador Externo

_____________________________________ Prof. Dr. João Bosco Figueiredo Gomes - UERN

Examinador

________________________________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro Maia Fernandes Barbosa - UERN

Suplente

Pau dos Ferros/RN 2012

Dedicatória A Bianca, que vivencia o mundo da linguagem de forma encantadora, mágica. Desejo que a “magia dessa linguagem” jamais deixe de inundar sua alma.

AGRADECIMENTOS

Mesmo sendo o ato de produzir um trabalho acadêmico uma atividade solitária, sua tessitura exige esforços, apoio de outras pessoas e instituições. Nesse sentido, meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que contribuíram para a realização desse trabalho. À Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN/CAMEAM/PPGL. Aos companheiros do PPGL, que mesmo sem perceberem deram grandes contribuições com seus conhecimentos durante as aulas. À acolhida, compreensão e grande paciência da minha orientadora Dra. Rosângela Maria Bessa Vidal. Ao Setor administrativo do PPGL, através do trabalho de Marília e Ricardo, pelo tratamento gentil e por todas as providências tomadas que me beneficiaram. Ao professor Nilson Barros que, mesmo em meio às atividades do seu Doutorado, aceitou fazer a revisão do Abstract. Ao meu esposo Miguel Arcanjo (in memoriam). Aos meus pais Claudionor Medeiros de Carvalho (in memoriam) e Francisca das Chagas de Freitas Carvalho. À minha filha Bianca (razão maior de minha perseverança). Aos meus irmãos: Sales, Dimas, Elias, Zé Edmilson, Antonio, Celina, Nila e Raimundo. Aos meus “filhos de coração”: Ruth e Júnior. Aos meus sobrinhos, pelo convívio carinhoso. Um agradecimento especial ao apoio que tive de minha amiga Francimeire, colega de curso. Aos amigos que construí durante esses dois anos de estudo, bem como aos que conservo de épocas anteriores. À Escola Municipal Elisiário Dias e à Secretaria de Educação do Município de São Miguel, por minha liberação do trabalho durante o período em estudo.

LISTA DE TABELAS E FIGURAS.

TABELAS

Tabela 01 – Ocorrências do item linguístico vender no jornal Gazeta do Oeste

(p.86)

Tabela 02 – Ocorrências do item linguístico alugar no jornal Gazeta do Oeste (p.88)

Tabela 03 – Concordância verbal do item linguístico vender + clítico se (p.97)

Tabela 04 – Concordância verbal do item linguístico alugar + clítico se (p.97)

FIGURAS

Figura 01: Item linguístico vender/alugar verbo – 3ª pessoa (p.89)

Figura 02: Item linguístico vender/alugar verbo – 1ª pessoa (p.90)

Figura 03 – Classificados – verbo vender/alugar. (p.96).

QUADRO

Quadro 01: Parâmetros da transitividade (p. 35)

Quadro 02: Sentença contendo a clítico se (p. 78)

RESUMO

A presente pesquisa tem como propósito compreender o uso dos verbos vender e

alugar, a partir de textos reais – gênero anúncio classificado – em um jornal

impresso, veiculado, diariamente, na seção de classificados. O estudo foi feito à luz

da linguística funcional norte-americana, como concebido por Hopper (1980; 1991);

Givón (2001); Neves (1997; 2006); Furtado da Cunha, Tavares (2007); Furtado da

Cunha (2008); Wilson; Martelotta e Cezario (2006); Martelotta (2008; 2011), entre

outros, adotando, assim, os paradigmas e métodos de abordagem que caracterizam

esse campo de investigação. Trata-se de uma pesquisa explicativa que adota o

método indutivo de investigação. Procuramos elucidar que aspectos têm contribuído

para que haja escolhas no uso dos itens vender e alugar em anúncios classificados

de jornais impressos. Partirmos de um levantamento do conteúdo apresentado sob a

ótica da gramática normativa, da linguística para confrontá-los com os textos reais:

anúncios classificados de um jornal impresso: Gazeta do Oeste, veiculado,

diariamente no Estado do Rio Grande do Norte. Os resultados apontam para uma

tendência de variação no uso dos vender e alugar por meio da flexão – 1ª, 3ª

pessoa, infinitivo, bem como no que diz respeito às ocorrências desses verbos em 3ª

pessoa quando, seguidos do clítico se, cujo sintagma nominal ora aparece no

singular, ora no plural, o que se constitui um indicativo de variação no trato da

concordância verbal, com relação à voz passiva sintética.

PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo. Gramática. Flexão verbal. Vender. Alugar.

Clítico se.

ABSTRACT

This research aims to understand the use of the verbs vender (to sell) and alugar (to rent) in authentic texts - genre classified ad - in a newspaper aired daily in the classified section. The study has the theoritical support of American Functional Linguistics, as conceived by Hopper (1980, 1991), Givón (2001), Neves (1997, 2006); Furtado da Cunha (2007, 2008); Martelotta, Oliveira, Cezário et . al. (2008); Martelotta (2008, 2011), among others, adopting thus the paradigms and methods of approaches that characterizes this field of research. It is an explanatory research that adopts the inductive method of investigation. We seek to elucidate what aspects have contributed to the choices of the forms vender and alugar in printed newspaper classified ads. We started, therefore, from a survey of the presented content under the perspective of normative grammar and linguistic, in order to confront them with real texts: classified ads of Gazeta do Oeste newspaper, aired daily on Rio Grande do Norte State. The results point to a tendency of variation in the use of the verbal forms vender and alugar through the flexion – 1st, 3rd person, infinitive, as well as in respect to the occurrences of these verbs in the 3rd person when followed by the clitic se, whose nominal syntagma appears sometimes in the singular, sometimes in the plural, what is an indicative of variation in the way of managing the verbal concordance, with relation to the synthetic passive voice. KEYWORDS: Functionalism. Grammar. Verbal flexion. Vender (to sell). Alugar (to rent). Clitic se.

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 1 A LINGUÍSTICA FUNCIONAL NORTE-AMERICANA ......................................... 16 1.1 O FUNCIONALISMO LINGUÍSTICO NORTE-AMERICANO ............................... 17 1.2 LINGUAGEM, LÍNGUA, TEXTO, GRAMÁTICA E SINTAXE NA ÓTICA FUNCIONALISTA ...................................................................................................... 21 1.2.1 LINGUAGEM, LÍNGUA E TEXTO .................................................................... 21 1.2.2 GRAMÁTICA E SINTAXE ................................................................................ 29 2 O CLÍTICO SE: DA ABORDAGEM TRADICIONAL À LINGUÍSTICA...................51 2.1 SAID ALI ([1908] 2008) ....................................................................................... 52 2.2 ROCHA LIMA ([1985]1999) ................................................................................. 54 2.3 ALMEIDA (1999) ................................................................................................. 55 2.4 A CONCORDÂNCIA VERBAL: VERBO + CLÍTICO SE À LUZ DA LINGUÍSTICA .................................................................................................................................. 64 2.4.1 LADEIRA (1986) ............................................................................................... 65 2.2.2 SCHERRE (2005)..............................................................................................70 2.4.3 CASTILHO (2010).............................................................................................72 2.4.4 OLIVEIRA (2010)...............................................................................................76 2.4.5 BAGNO (2011)..................................................................................................81

3 OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO: ANÁLISE E DISCUSSÃO ................ 83 3.1 VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DO JORNAL IMPRESSO GAZETA DO OESTE ............................................................................. 84 3.2 ASPECTOS DA CONCORDÂNCIA VERBAL DAS FORMAS PROTOTÍPICAS VENDER E ALUGAR ................................................................................................ 93 3.2.1 VERBOS VENDER E ALUGAR: ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAIS VS. GRAMÁTICA NORMATIVA ................................................................................. 93 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 101 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 105

11

INTRODUÇÃO

A manifestação da língua em uso tem sido objeto de investigação de muitos

estudiosos, nos últimos anos, principalmente, no que se refere à influência que

passa a ter sobre as práticas pedagógicas de Língua Materna, alvo de uma

constante preocupação, uma vez que são muitas as dificuldades dos alunos no que

diz respeito à aprendizagem nessa área de conhecimento. A verdade é que muitos

dos resultados das pesquisas não romperam ainda os muros escolares da Educação

Básica, resultando, portanto, em um quadro insatisfatório de aprendizagem.

Pode ser que um dos fatores que contribuam para essa realidade seja a

formação do profissional de Língua Materna que vive o dualismo: ensinar utilizando

a tradição da gramática normativa ou aderir à proposta de ensino baseada na

linguística. A primeira alternativa ainda é bastante adotada pelas escolas do Brasil.

Entretanto, não podemos esquecer de que é papel da escola como um todo

tornar nossos alunos capazes de utilizar a linguagem como instrumento de

aprendizagem, sabendo fazer uso de informações contidas nos textos, bem como

conhecer e analisar criticamente os usos da língua como veículo de valores, sem

preconceitos de classe, credo, gênero etnia, entre outros.

Partindo do pressuposto de que a língua é um sistema centrado na interação

que se faz por meio de textos ou discursos falados ou escritos – ação linguística

entre sujeitos –, uma proposta de ensino de língua precisa priorizar o uso desta em

diferentes situações ou contextos sociais, com suas múltiplas funções e sua

variedade de estilos. Assim sendo, nosso trabalho se justifica pelo fato de tratar da

língua em funcionamento, em tempo real, com suas especificidades.

Nesse sentido, a perspectiva funcionalista vem ganhando espaço, uma vez

que dá um tratamento textual-discursivo à gramática. Trata, pois, a língua atentando

para as condições de produção, ou seja, para as manifestações que ocorrem em

situações reais de comunicação, a língua em sua pluralidade, de caráter

heterogêneo, com múltiplas variações. Na visão de Neves (2006), para dominar bem

uma língua não basta conhecer as estruturas frasais, mas combinar as unidades

sintáticas em situações comunicativas de modo eficiente, sendo capaz de usar os

enunciados conforme os propósitos comunicativos.

12

Considerando esse contexto e com base na vivência como professora de

Língua Portuguesa, nossa pesquisa pretende investigar os usos dos verbos vender

e alugar em anúncios classificados de jornal impresso. Para realizar a presente

pesquisa, contamos com as contribuições da teoria funcionalista, de inspiração

givoniana.

Na verdade, o ensino de língua já é objeto de discussão (e de severas críticas),

principalmente, quando se trata da língua em uso que, por sua vez, é objeto de

preconceito. Basta observar o fato recentemente posto em pauta, pela mídia

televisiva global, sobre o livro didático que aborda a língua em uso – o português

brasileiro – considerado por ela como disseminador de “erros”. Por incrível que

pareça, o trecho gerador de tantas polêmicas é sobre concordância e faz parte do

capítulo “Escrever é diferente de falar”, aspecto que discutimos quando envolve

nosso objeto de estudo – verbos vender e alugar + clítico se. No tópico intitulado

como “concordância entre palavras”, os autores discutem a existência de variedades

do português falado, as quais fazem uso do substantivo e adjetivo não flexionados

quando concorda com o artigo no plural1. Mediante tais discussões, vimos a

necessidade de uma análise, que priorize o uso, fazendo-nos refletir sobre as

diferentes possibilidades de emprego da língua.

Portanto, a nossa pesquisa, pretendeu responder à seguinte questão: Como

acontecem os usos de construções com as formas verbais vender e alugar em

anúncios classificados de jornal impresso, com ênfase nos procedimentos

linguístico-discursivos?

Para obter resposta à pergunta de partida, buscamos, em nossos objetivos

específicos, identificar as formas verbais vender e alugar apresentadas pelas

gramáticas normativas e pela linguística; investigar como são empregadas as formas

dos verbos vender e alugar em anúncios classificados do jornal impresso Gazeta do

Oeste; comparar o uso regras de concordância quando há o emprego do clítico se –

pronomes átonos, monossílabos átonos – que dependem, quanto à acentuação, das

palavras que seguem, precedem ou intercalam-nos junto aos verbos vender e

alugar apresentadas em anúncios classificados de jornal impresso.

1Para maiores detalhes sobre a discussão, cf. http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5137669-

EI8425,00-Aceitam+tudo.html; http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/marcos-bagno-discussao-sobre-livro-didatico-so-revela-ignorancia-da-grande-imprensa.html

13

Para compreender os usos dos verbos vender e alugar, partirmos, portanto,

de um levantamento do conteúdo apresentado sob a ótica da gramática normativa,

da linguística para confrontá-los na análise com os textos reais, no gênero anúncio

classificado do jornal impresso Gazeta do Oeste, veiculado, diariamente no Estado

do Rio Grande do Norte. Para essa investigação adotamos os estudos da linguística

funcional.

Trata-se de uma pesquisa explicativa que adota o método indutivo de

investigação. Considera-se explicativa porque “É a pesquisa que busca esclarecer

que fatores contribuem de alguma forma para a ocorrência de algum fenômeno”

(COSTA; COSTA, 2011, p.36). No nosso caso, procuramos elucidar que aspectos

têm contribuído para que haja escolhas no uso dos itens verbais vender e alugar (e

suas variantes) em anúncios classificados de jornais impressos. Utiliza o método

indutivo porque parte da observação dos dados particulares, com base nos quais

será possível fornecer respostas mais generalizadas sobre a realidade em questão,

apoiando-se nas discussões teóricas levantadas.

Além disso, é adotado o paradigma qualitativo, haja vista o objeto de estudo

ser uma atividade de uso da linguagem, sendo necessária a realização de um

trabalho interpretativo acerca dos significados do fenômeno que envolve o uso dos

referidos verbos, considerando toda a sua complexidade, a fim de fornecer

explicações eficazes e abrangentes. Como sabemos, uma das características que

constitui os estudos qualitativos é a maneira como direcionamos nossa investigação.

Nesse sentido, nossas reflexões se voltam para a análise das construções que

empregam os itens vender e alugar. Além de apontar as escolhas no uso dos verbos

vender e alugar (e suas variantes), observamos se o fenômeno da concordância

verbal ocorre (ou não ocorre), ou seja, a maneira, o propósito, o porquê da (não)

concordância entre os verbos vender e alugar + o clítico se.

Nessa perspectiva, investigamos o discurso escrito do jornal, com base nos

usos dos itens vender/alugar, para observação de como ocorre ou não o processo

de concordância, já que o conhecimento não se reduz pura e simplesmente aos

dados de forma isolada. É o olhar do observador que atribui um significado aos

fenômenos que o mesmo interpreta. Na fase de coleta de dados, cerca de três

meses, obtivemos informações acerca das práticas de produções dos textos

veiculados como, efetivamente, acontecem. Nesse sentido, os dados se constituem

a partir de descrições discursivas: textos publicados no jornal, analisando aspectos

14

relacionados à escolha no uso desses verbos (e suas variantes), o uso de

construções com o clítico se junto às formas vender e alugar modificadas pelas

pressões de uso.

Para seleção do material empírico, utilizamos como critérios a questão do

acesso ao jornal e a composição do gênero anúncio classificado. O primeiro critério

ocorre em razão do jornal circular diariamente na região do Alto-Oeste potiguar, local

em que a pesquisa foi realizada. O segundo, por sua vez, relaciona-se à composição

dos textos que fazem parte do corpus – anúncios classificados –, os quais

apresentam semelhança em sua estrutura e propósito comunicativo, bem como

exibem os itens a serem investigados, ou seja, os verbos vender e alugar + clítico

se.

Além dessa introdução, momento em que expomos informações acerca da

investigação, de um ponto de vista global, justificando e especificando os objetivos

do estudo, dividimos a dissertação em três capítulos.

No primeiro, apresentamos a teoria que norteia nossa pesquisa: o

funcionalismo linguístico contemporâneo. Delimitando um pouco nosso trabalho,

priorizamos o funcionalismo “norte-americano”, perspectiva de Givón, sem

desmerecer, portanto, o mérito das vertentes europeias. Neste capítulo, discorremos

também sobre os conceitos de linguagem, língua, texto, gramática e sintaxe na visão

funcionalista. Apresentamos ainda o anúncio classificado, uma vez que é nesse

gênero que se concentra o nosso objeto de investigação: os itens vender e alugar.

No segundo capítulo, direcionamos nosso olhar para a concordância verbal, à

luz da gramática tradicional sob as perspectivas de Said Ali ([1908]2008), Rocha

Lima (1985/1999), bem como a de Almeida (1999), com ênfase no emprego do

clítico se. Além de discutir o uso do clítico se na visão tradicional de gramática,

demonstramos seu uso também na perspectiva da linguística, do ponto de vista de

Ladeira (1986), Scherre (2005), Castilho (2010), Oliveira (2010).

No terceiro capítulo, trazemos a análise dos dados, partindo da busca de

ocorrências dos usos dos verbos vender e alugar, do clítico se nos anúncios

classificados, presentes no jornal Gazeta do Oeste – nosso corpus. Além da

quantificação dos dados, neste capítulo, tratamos também da análise dos aspectos

qualitativos, buscando descrever e analisar a regularidade da construção com os

verbos vender e alugar em seu uso interativo.

15

Nas considerações finais, fazemos comentários sobre os achados da

pesquisa. Dessa forma, os resultados obtidos, durante a investigação, permitem

inferir alguns usos emergentes da língua. Ressaltamos, ainda, que tanto a pesquisa

em si, quanto a compreensão dos seus resultados, serão úteis para a descrição da

língua portuguesa na perspectiva do uso, por consequência, para a formação do

professor. Em linhas gerais, esse é o delineamento da pesquisa realizada.

A LINGUÍSTICA FUNCIONAL NORTE-AMERICANA

17

1 A LINGUÍSTICA FUNCIONAL NORTE-AMERICANA

Nesse capítulo, apresentamos a teoria que norteia nossa pesquisa: o

funcionalismo linguístico norte-americano. Num primeiro momento, abordamos as

considerações gerais sobre a linguística funcionalista, especificamente a “norte-

americana”, perspectiva de Givón, cuja abordagem advoga uma linguística baseada

no uso, tendo como tendência principal observar a língua do ponto d]e vista do

contexto linguístico e da situação extralinguística. Num segundo momento, tratamos

das concepções de linguagem, língua, texto, gramática e sintaxe sob a ótica

funcionalista, enfatizando o anúncio classificado, uma vez que é nesse gênero que

se concentra o nosso objeto de investigação: os itens vender e alugar.

1.1 O Funcionalismo linguístico norte-americano

Para compreender os fenômenos da linguagem, por meio de análise

linguística, devemos eleger um dos paradigmas teóricos correspondentes ao nosso

propósito de estudo, ou seja, procurar o que melhor se adapta para analisar o que

queremos. O que não falta, na Linguística, são discussões acerca de qual

paradigma teórico utilizar, já que cada estudioso (linguista) acredita ser o seu o

melhor método de análise.

Diante desse embate, surge como alternativa a criação de novos paradigmas

teóricos, o que leva outros pesquisadores a continuarem investigando, (re)criando o

conhecimento a partir do que já dispõe em termos de conhecimentos sobre o

fenômeno linguístico. Seria ingenuidade nossa atribuirmos a Saussure, bem como a

Chomsky, Givón, Dik entre outros estudiosos da ciência linguística um caráter

totalmente inédito.

Em outras palavras, parece ser comum em qualquer ciência partirmos das

ideias anteriores para a expansão e propagação de outras mais modernas. Isso faz

com que a ciência da linguagem seja considerada como um campo vasto e

propenso a incontáveis pesquisas, cujo entusiasmo criador está centrado em seu

caráter efêmero por natureza, provisório em essência. Cabe a nós, portanto,

enquanto pesquisadores, estarmos cautelosos às pressões de uso da linguagem e

preparados para investigá-las com cientificidade.

18

Como nosso propósito é estudar o fenômeno linguístico, levando em conta

aspectos comunicativos sociais e cognitivos, decidimos eleger como paradigma

teórico o Funcionalismo Linguístico, mais especificamente, o norte-americano, já

que, sob esta ótica, a língua é um sistema produtor de significados. Essa

perspectiva leva em consideração um conjunto de situações comunicativas nas

quais ocorre um processo linguístico quando estudamos a linguagem. Nesse

conjunto de situações comunicativas, estão inscritos os interlocutores, as condições

de produção, enfim, a própria dinâmica do ato comunicativo.

A linguística funcionalista norte-americana se fortaleceu a partir da década de

1970, cuja maior expressão está nos trabalhos de linguistas como: Sandra

Thompson, Paul Hopper e Talm Givón, os quais “[...] passaram a advogar uma

linguística baseada no uso, cuja tendência principal é observar a língua do ponto de

vista do contexto linguístico e da situação extralinguística” Martelotta; Areas (2003,

p.23).

Partindo desse pressuposto, assumimos o postulado de que duas propostas

básicas caracterizam o modelo funcionalista de análise linguística, a saber: “a) a

língua desempenha funções que são externas ao sistema linguístico em si; b) as

funções externas influenciam a organização interna do sistema linguístico” Furtado

da Cunha (2008, p.158). Dessa forma, a língua não se apresenta como um sistema

autônomo, dissociada do convívio social, mas está, intrinsecamente, a ele

relacionada, fazendo com que o falante se adapte às diferentes situações

comunicativas. Assim, a situação social imediata determina nossas enunciações. Em

outras palavras, a teoria funcionalista trata o fenômeno linguístico tomando por base

o uso real da língua, e a gramática é analisada como resultado da interação dos

usuários (Cf. VIDAL, 2009).

Nesse sentido, a linguística funcional propõe novas maneiras de abordar a

linguagem, fornecendo alternativas de reflexão sobre a complexidade revelada pela

língua. Segundo Neves, (2006, p.17), “o funcionalismo é uma teoria que se liga,

acima de tudo, aos fins a que servem as unidades linguísticas, o que é o mesmo que

dizer que o funcionalismo se ocupa, certamente, das funções dos meios linguísticos

de expressão”. A reflexão se direciona para os itens sob uma ótica multifuncional, ou

seja, referindo-se aos parâmetros cognitivos e comunicativos, processamento da

mente, interação entre os interlocutores (sua cultura), mudança e variação,

aquisição e evolução (Cf. GIVÓN, 1995).

19

Os estudos gramaticais, segundo o pensamento funcionalista, não devem se

limitar à análise de frases ou períodos isolados, mas aos atos enunciativos dos

diferentes tipos de discursos, pois “quando falamos, criamos frases, que, juntas

formam um texto coeso e coerente com a situação em que é empregado. O

processamento desse texto é o discurso” Martelotta (2006, p. 234). Há, pois, uma

identificação entre o termo discurso e o uso real da língua, já que nossas escolhas

feitas, na produção do discurso, não se dão aleatoriamente, mas decorrem das

condições de produção desse discurso.

Assim sendo, os defensores dessa perspectiva teórica procuram observar as

regularidades do uso da língua e analisar as condições discursivas que refletem em

seu emprego. Assim, o objeto de análise dos funcionalistas são os enunciados e os

textos, efetivamente realizados, os quais estão relacionados ao desenvolvimento da

comunicação interpessoal, isto é, a corrente funcionalista trabalha com os dados

reais da fala ou escrita retirados de determinados contextos de comunicação. O

funcionalismo linguístico contemporâneo diverge das abordagens formalistas:

estruturalismo e gerativismo por dois motivos:

[...] primeiro por conceber a linguagem como um instrumento de interação social e segundo porque seu interesse de investigação linguística vai além da estrutura gramatical, buscando no contexto discursivo a motivação para os fatos da língua. A abordagem funcionalista procura explicar as regularidades observadas no uso interativo da língua, analisando as situações discursivas em que se verifica esse uso (FURTADO DA CUNHA; COSTA; CEZARIO, 2003, p.29).

Conforme essa abordagem, uma característica que marca o processo

linguístico do funcionalismo é o conjunto complexo de atividades comunicativas,

sociais e cognitivas, integradas ao enunciador ou produtor do enunciado. Na

verdade, se levarmos em conta que a língua é um sistema produtor de significados,

estaremos abordando-a numa perspectiva funcionalista. Perspectiva essa que leva

em consideração um conjunto de situações comunicativas nas quais ocorre um

processo linguístico quando estudamos a linguagem.

Diante disso, percebemos que a língua não formula um conhecimento

individual, independente, mas reflete várias maneiras de o falante interpretá-la em

diferentes situações comunicativas. Assim, o funcionalismo constitui-se como uma

corrente linguística baseada no uso da língua, cuja tendência principal é observar a

língua desde seu contexto linguístico até a situação extralinguística.

20

Conforme Martelotta; Areas (2003), a teoria funcionalista da Linguística

caracteriza-se pela concepção que tem da língua como um instrumento de

comunicação, não podendo ser analisada como um objeto autônomo, mas como

uma estrutura sujeita a mudanças em suas diferentes situações de uso as quais

ajudam a determinar a estrutura gramatical. A fim de resumir a concepção

funcionalista da linguagem, citamos nove premissas fundamentais que a norteiam:

a linguagem é uma atividade sociocultural; a estrutura serve a funções cognitivas e comunicativas; a estrutura é não-arbitrária, motivada, icônica; mudança e variação estão sempre presentes; o sentido é contextualmente dependente e não-atômico; as categorias não são discretas; a estrutura é maleável e não rígida; as gramáticas são emergentes; as regras de gramática permitem algumas exceções (GIVÓN, 1995 apud MARTELOTTA; ÁREAS, 2003, p. 28).

De acordo com as premissas apresentadas, percebemos que a proposta de

Givón (1995) postula a não autonomia do sistema linguístico, cuja estruturação

interna da gramática é concebida como “[...] um organismo que unifica sintaxe,

semântica e pragmática (sendo a sintaxe a codificação dos domínios funcionais que

são: a semântica, proposicional; a pragmática, discursiva) e nos aspectos icônicos

da gramática” Neves (2006, p.19). Assim como Givón (1995), acreditamos que a

língua não pode ser considerada um sistema autônomo, uma vez que a gramática

não pode ser compreendida por si mesma; precisa tomar por referências aspectos

como cognição, comunicação, processamento mental, interação social e cultura,

mudança e variação, aquisição e evolução. É tanto que Givón assegura:

The grammatical code is probably the latest evolutionary addition to the arsenal of human communication (Givón 1979a, 1995; Lieberman 1984; Bickerton 1981, 1990). While the evolutionary argument remains conjectural, it is supported by a coherent body of suggestive evidence GIVÓN, 2001, p.10)

2

Em síntese, o funcionalismo linguístico é um modelo de análise que se

contrapõe ao formalismo. Enquanto este concebe a língua como um sistema

autônomo, limitando-se ao estudo das formas linguísticas, aquele a concebe como

um sistema não-autônomo, o qual se insere em um contexto de interação social, ou

2 O código gramatical é, provavelmente, a mais recente adição ao arsenal evolutivo da comunicação

humana (Givon 1979a, 1995; Lieberman 1984; Bickerton 1981, 1990). Embora o argumento evolucionário permaneça conjectural, é apoiada por um corpo coerente de evidências sugestivas (tradução livre).

21

seja, as formas linguísticas são estudadas levando em consideração o seu uso, sua

significação em atos comunicativos. Notamos, portanto, que ambos os modelos

tratam do mesmo fenômeno: a língua. Entretanto, o que os diferencia é a forma com

que os mesmos a observam. Isso pressupõe o uso de métodos diferentes para o

estudo desse fenômeno.

Dessa forma, não faz sentido dizer que um paradigma é melhor do que outro,

ou que o uso de um exclui o outro. Pensar dessa maneira implica limitar os estudos

linguísticos, uma vez que a escolha de um paradigma teórico depende do tratamento

que pretendemos dar ao nosso objeto de investigação. Como nosso objeto de

análise é a língua em funcionamento, optamos pelo paradigma funcional, cujo

pensamento foi justificado no início desse tópico. Salientamos, no entanto, que nos

deteremos à corrente funcionalista norte-americana, modelo instituído por Givón.

1.2 Linguagem, língua, texto, gramática e sintaxe na ótica funcionalista

1.2.1 Linguagem, língua e texto

A linguagem surgiu nos primórdios de nossa existência e se relaciona,

totalmente, à evolução de todos os indivíduos tanto quanto o seu modo de

relacionamento. Ela é, pois, um dos instrumentos mais importantes conquistados

pelo humano ao longo da história, a qual o permite se desenvolver e aprender sobre

si mesmo e o mundo que o cerca. A linguagem está ligada à sociedade de forma

inquestionável. Ninguém se atreve a pôr em dúvida essa relação, não devendo, pois,

estar distante das reflexões sobre o fenômeno linguístico. (Cf. ALKMIM, 2005).

O homem tem se dedicado a estudar a linguagem desde a Antiguidade e,

pelo que observamos, não tem data prevista para deixar de fazer suas

investigações, devido à complexidade da mesma.

O termo “linguagem” apresenta múltiplos sentidos. Geralmente, o

empregamos para nos referir aos processos comunicativos: a linguagem dos

animais, a linguagem corporal, a linguagem das artes e assim por diante. Nesse

sentido, as línguas naturais – idiomas – são formas de linguagem, uma vez que

constituem instrumentos, os quais permitem o processo comunicativo entre os

membros de determinada comunidade. No entanto,

22

[...] os linguistas – cientistas que se dedicam à linguística – costumam estabelecer uma relação diferente entre os conceitos de linguagem e língua. Entendendo linguagem como habilidade, os linguistas definem o termo como a capacidade que apenas os seres humanos possuem de se comunicar por meio da língua. Por sua vez, o termo “língua” é normalmente definido como um sistema de signos vocais [...] utilizado como meio de comunicação entre os membros de um grupo social ou de uma comunidade linguística. (FURTADO DA CUNHA, COSTA; MARTELLOTTA, 2008, p. 16).

Ao dizermos que os linguistas estudam a linguagem, pressupomos que,

apesar de observarem as línguas naturais, eles não estão interessados em estudá-la

somente em sua estrutura particular, mas nos processos baseados em sua

utilização como formas de comunicação.

Diferentes correntes teóricas constituem a linguística. Apesar de todas

estudarem o fenômeno da linguagem, elas diferem na maneira de compreendê-lo.

Segundo Martelotta (2006, p. 29), “a linguística está relacionada, desde sua origem,

aos estudos filosóficos, gramaticais e filológicos [...], porém deles se desvincula, a

partir de Saussure, ganhando autonomia teórica e metodológica.” No entanto,

permaneceu incluindo em suas investigações tanto fenômenos de natureza

gramatical e filológica quanto filosófica, dependendo da forma como o fenômeno

linguístico era analisado, uma vez que se interessa pelos fenômenos da linguagem.

Para compreendermos melhor como as correntes linguísticas abordam os

estudos da linguagem, necessitamos antes compreender essa capacidade de que o

homem dispõe e que implica um conjunto de características. Algumas das

características propostas sobre a capacidade da linguagem são: uma técnica

articulatória complexa; uma base neurológica que se compõe de centros nervosos,

que utilizamos na comunicação verbal; uma base cognitiva, que rege as relações

entre o homem e o mundo biossocial e, em consequência, a simbolização desse

mundo em termos linguísticos; uma base sociocultural que atribui à linguagem

humana os aspectos variáveis que ela apresenta no tempo e no espaço; uma base

comunicativa que fornece os dados reguladores da interação entre os falantes (Cf.

FURTADO DA CUNHA; COSTA; MARTELOTTA, 2008).

Todas as características citadas são imprescindíveis para que os falantes

sejam capazes de utilizem a linguagem. Caso haja alterações orgânicas (de

natureza genética ou danosa) nas áreas de linguagem – regiões do cérebro que

respondem por aspectos específicos do uso da linguagem – do indivíduo, ele poderá

23

ficar impossibilitado de se comunicar de forma eficiente por meio da linguagem, ou

seja, esse indivíduo apresentará incapacidade linguística. Na o entraremos, pois, em

detalhes aqui sobre a incapacidade linguística, já que não é este o propósito do

referido trabalho. O foco é apresentar a concepção que os funcionalistas têm acerca

da linguagem.

Na linguística funcional norte-americana, a linguagem deve ser vista como um

instrumento de interação social, tendo como tendências, em sua análise, a relação

entre linguagem e sociedade. Por isso, em seus estudos, são investigados os

aspectos e os elementos que formam a linguística, indo além da estrutura

gramatical, levando em consideração suas intenções e o contexto, ou seja, são

investigados tanto a questão social como a linguística.

A língua é usada com a finalidade prática de comunicação, formulando um

conhecimento individual, independente, mas reflete várias maneiras de o falante

interpretá-la em diferentes situações comunicativas. Daí dizer que o funcionalismo

constitui-se como uma corrente linguística baseada no uso da língua, cuja tendência

principal é observar a língua tanto dentro do seu contexto linguístico quanto na

situação extralinguística.

Sob o ponto de vista funcional, tanto a língua quanto o falante são

compreendidos como historicamente situados. Nesse sentido, “[...] a noção de ideal

é substituída pela de real, pois a língua é manifestação concreta de atos linguísticos,

produzidos por um falante real em diversos contextos comunicativos nas múltiplas

variedades que a sua língua abriga” Wilson (2006, p. 57-58). Assim sendo, os

funcionalistas concebem a língua como uma atividade que envolve fatores

sociocognitivos e culturais situados, cujos frutos advêm das interações de

comunicação, pressupondo, pois, a ideia de que as línguas são heterogêneas e

evoluem de acordo com a interação dos indivíduos com a realidade social a que

pertencem.

Se os estudos funcionalistas privilegiam o uso linguístico, acatando a ideia de

ser o texto objeto de análise da língua, é válido explicitarmos aqui tanto a noção de

texto como a de gênero textual, já que os textos circulam socialmente por meio de

gêneros em contextos diversos de interação verbal, e o nosso objeto de estudo é

analisado a partir do gênero anúncio classificado. Caracterizamos, pois, o texto

como manifestação verbal. Em outras palavras, a noção de texto apresentada aqui

é aquela marcada por completude semântico-sintática – um todo de sentido e forma.

24

A noção de gênero (textual ou discursivo), atualmente, vem sendo tratada

pelos estudiosos da linguagem. Muitos pesquisadores têm recorrido a tal conceito

para compreender as interações sociais nas múltiplas esferas em que agem através

da linguagem. Nesse sentido, o conceito de gênero que foi, tradicionalmente,

teorizado pela Literatura e Retórica, passa a assumir, especialmente, a partir dos

estudos de Mikhail Bakhtin, um elo entre o uso da língua na sua forma espontânea e

as práticas de linguagem em sala de aula.

Bakhtin compreende a linguagem como uma atividade humana situada

cultural e historicamente, não como uma coisa morta em que cada palavra

representa algo definitivamente. Nesse sentido, a concepção dialógica de Bakhtin é

sua contribuição maior para as mudanças que se desenvolvem, atualmente, nos

diversos domínios de estudo da linguagem, inclusive no que diz respeito aos

estudos de gêneros do discurso realizados no Brasil.

Entretanto, o que observamos é uma grande diversidade de conceitos e

terminologias em pesquisas, cujo alicerce é a análise dos gêneros. Isto pode estar

atrelado a uma concepção não hegemônica de tal conceito, cuja origem pertence a

correntes teóricas diversas. Outro fator que pode estar envolvido é a questão das

diferentes interpretações e apropriação dessa noção pelos estudiosos da temática.

Além disso, pode ser considerado também o enfoque do estudo. Por exemplo, os

antropólogos e os linguistas têm motivações que divergem em relação às pesquisas

que envolvem o assunto.

Na verdade, os gêneros vão se modificando em consequência do momento

histórico em que se inserem. Toda situação social dá origem a um gênero, cujas

suas características lhe são peculiares. Percebemos em nosso meio uma infinidade

de gêneros. Eles existem em número ilimitado porque também é ilimitado o número

de situações comunicativas e que todas elas só são possíveis graças à utilização da

língua. Em outras palavras, a formação de novos gêneros está associada ao

aparecimento de novas esferas de atividade humana, cujas finalidades discursivas

são específicas (Cf. BAKHTIN, 2003).

Nesse sentido, não agimos sem ser por meio da linguagem, fora do processo

de interação. O que se diz se diz no agir que, por sua vez, produz certos tipos

relativamente estáveis de enunciados, o que pressupõe a criação de tipos

relativamente estáveis de enunciados dentro das esferas de atividade. Nesse

sentido, os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, que se

25

caracterizam por apresentar um conteúdo temático, uma construção composicional e

um estilo. São eles que estabelecem a conexão entre linguagem e a vida social,

refletindo, pois, as condições específicas de cada uma delas. (Cf. FIORIN, 2008).

Se o que pretendemos é analisar a linguagem em funcionamento, não

devemos priorizar o sistema da língua, pois apenas o conhecimento desse sistema é

insuficiente para entender determinados fatos linguísticos que ocorrem numa

situação concreta de comunicação/interação. É preciso conhecer, portanto, a

linguagem em seu contexto, envolvendo fatores internos e externos a ela. O estudo

da linguagem em funcionamento também é necessário porque, na troca verbal,

informamos muito mais do que as palavras realmente significam. “Quando alguém

diz a outro, que está se aprontando para sair, São oito horas, ele não está fazendo

uma simples constatação sobre o que marca o relógio, mas dizendo Apresse-se,

vamos chegar atrasados” Fiorin (2010, p.166).

Seguindo a concepção de linguagem enquanto instrumento de interação

social, passamos a acreditar que a língua se constitui muito mais do que de uma

gramática. Pensando assim, em nossas práticas pedagógicas, certamente

levaremos em conta questões relativas ao léxico, questões relativas à sua realização

em textos, bem como questões relativas às condições sociais da produção e da

circulação desses textos. E dizendo de outro modo, em qualquer estudo que se faça

a respeito da língua, o aprofundamento das modalidades dos gêneros, se constitui

um ponto imprescindível, pois os gêneros, a linguagem em uso, representam a

língua viva.

Considerando a língua como algo dinâmico, maleável devemos pensar a

análise gramatical atrelada à textual, considerando que os usos linguísticos

combinam estratégias mais regulares e sistemáticas, indispensáveis à interlocução

social, de caráter geral e coletivo, passando a usos de âmbito mais individual,

relativos a estruturas mais criativas e pessoais de apropriação da língua. Isso quer

dizer que há uma relação entre discurso e gramática, e as práticas linguísticas,

manifestadas nas produções textuais, configuram-se, como atividades em que se

mesclam usos mais rotineiros ou gramaticais e expressões mais criativas ou

discursivas. É por isso que Beaugrande (1997) apud Neves (2006, p.31) afirma que

“o trabalho com textos mudaria a paisagem teórica e prática da linguística [...]”. A

autora acrescenta que mudaria, sem dúvida, também a visão de gramática.

26

Ao nos referirmos a questões textuais – gêneros –, não podemos deixar de

mencionar Marcuschi (2008). O autor ressalta que o estudo dos gêneros é bastante

antigo e concentrava-se na literatura, cuja expressão está presente nos trabalhos de

Platão (tradição poética) e Aristóteles (tradição retórica). Ao sair das fronteiras

literárias, vem para a linguística, de forma especial, para as perspectivas discursivas.

Marcuschi ressalta a importância da propagação de publicações que se voltam para

o assunto bem como para as várias perspectivas de abordagem do tema. Ele

destaca como influência teórica para o seu trabalho alguns autores, como Bakhtin,

Schneuwly/Dolz, Bronckart, Swales, Bhatia, Halliday, Adam, Bazerman, Miller,

Fairclough e Kress. Uma observação importante que deve ser ressaltada em relação

ao estudo dos gêneros textuais “[...] é que uma fértil área interdisciplinar, com

atenção especial para o funcionamento da língua e para as atividades culturais e

sociais [...]” Marcuschi (2008, p.155-156).

Outra discussão que o autor traz à tona é a diferenciação entre gênero

textual, tipo textual e domínio discursivo, cuja complementação se dá pela reflexão

em torno da noção ainda inacabada de ‘suporte’. Marcuschi sugere a divisão entre

suportes de tipo convencional – os que foram elaborados tendo em vista a sua

função de portarem ou fixarem textos: livro, jornal – e incidental – suportes

ocasionais ou eventuais. No entanto, ressalta que esses conceitos ainda não estão

suficientemente claros. São apresentados gráficos e tabelas que exemplificam a

distribuição de gêneros textuais escritos e orais dentro do contínuo fala/escrita e em

domínios discursivos distintos.

Dentre os inúmeros domínios discursivos de circulação existentes,

escolhemos o jornalístico impresso, mais especificamente, o gênero anúncio

classificado, visto que é o que melhor atende o nosso propósito: analisar como

acontecem os usos dos verbos vender e alugar, bem como as ocorrências em que o

clítico se aparece junto a esses verbos, a fim de investigar o processo de

concordância verbal quando há construções com o referido clítico.

Como nosso objetivo é analisar o gênero anúncio classificado, faz-se

necessário conhecermos um pouco sobre esse gênero, tão recorrente em nosso dia

a dia e (acreditamos) ainda analisado como produto, tornando, muitas vezes, essa

análise normativa, tal qual acontecia (ou ainda acontece) com a gramática quando

se levamos em conta apenas os aspectos formais. A análise acerca de um gênero

vai depender da orientação teórica que adotamos, podendo, ser estabelecidos

27

parâmetros de natureza formal ou funcional para essa análise. Nesse sentido,

podemos postular que os gêneros textuais podem, num primeiro momento, ser

compreendidos como modos de organização da informação ou de estruturação

discursiva e, num segundo momento, como unidades de uso dessas estruturas

discursivas em situações comunicativas específicas.

Por levar em conta outros aspectos, além dos formais, partimos da definição

de “gênero do discurso”, proposta por Bakhtin (2003), para compreender a noção de

gênero textual, já que o autor se refere às formas “relativamente estáveis” – os

enunciados – sejam eles orais ou escritos, cuja utilização concreta e individual da

língua linguagem acontece pelos integrantes de determinada esfera da atividade

humana.

A noção de discurso atrelada à noção de enunciado por Bakhtin é, portanto, o

que justifica o uso do termo gênero do discurso. “Esse autor não pensa os gêneros

em si, isto é, não os toma apenas pelo viés estático das formas do produto, mas os

focaliza, sobretudo, pelo viés dinâmico da produção” Cabral (2011, p. 333). Bakhtin

observa o processo, a conexão viva entre os gêneros – enunciados – e a atividade

humana; entre os tipos de enunciados e suas respectivas funções no processo

socioverbal pelo qual os participantes interagem.

Costumamos dizer que o gênero apresenta, basicamente, três elementos que

o caracterizam: a) o conteúdo temático – o que se pode dizer em determinado

gênero; b) a construção composicional – que se refere à estrutura particular, cujo

gênero pertence; c) o estilo – a seleção de recursos disponíveis na língua, os quais

orientam o produtor do texto através da posição enunciativa. Além desses

elementos, Marcuschi (2008) já mencionara dois outros: a finalidade e suporte.

Assim com Marcuschi (2008), Figueiredo-Gomes (2011) sugere que seja levado em

consideração: o objetivo que se refere à finalidade do texto – o “para que” e

acrescenta o destinatário – “para quem” é produzido o texto. Por exemplo, “[...] uma

monografia é produzida para obter uma nota, uma publicidade serve para promover

a venda de um produto, uma receita culinária orienta na confecção de comida etc.”

Marcuschi (2008, p. 150). Todo gênero tem, portanto, um objetivo definido que o

determina, oferecendo-lhe uma esfera de circulação.

Nesse sentido, consideramos viável a nossa escolha, pois os anúncios

classificados, apesar de serem gêneros pouco utilizados (ainda) como material

didático-pedagógico (e nas pesquisas), atende às exigências enquanto gêneros, já

28

que cumprem suas funções sociocomunicativas (Cf. MARCUSCHI, 2008). São,

portanto, gêneros “[...] que objetivam convencer os consumidores da necessidade de

obter um produto/serviço, e divulgam, por meio da escrita, a oferta ou procura de

bens (compra, venda ou aluguel), utilidades públicas e serviços profissionais em

seções específicas de jornais” Figueiredo-Gomes (2011, p. 49).

Podemos considerar o anúncio classificado como ato sócio-histórico, cuja

construção e definição se dão conforme as condições específicas e as finalidades de

determinada esfera social (Cf. BAKHTIN, 2003). Em outros termos, os gêneros

podem, num primeiro momento, ser compreendidos como modos de organização da

informação ou de estruturação discursiva e, num segundo momento, como unidades

de uso dessas estruturas discursivas em situações comunicativas específicas.

Dizer que os gêneros são históricos pressupõe a ideia de que não são

estanques nem possuem estruturas rígidas (Cf. MARCUSCHI, 2008). Surgiram, pois,

em um determinado momento da história da humanidade. E, se os gêneros são

entidades dinâmicas, não estáticas, os anúncios classificados estão sujeitos a

mudanças que decorrem das transformações sociais, inclusive das novas atividades,

valores, propósitos e função dos participantes, sem esquecer das novas tecnologias

que acarretam tanto adaptações, adequações, como transformações nos modelos

dos gêneros (Cf. FIGUEIREDO-GOMES, 2011).

Para constatar a relativa estabilidade dos gêneros, conforme a proposta de

Bakhtin (2003), Figueiredo-Gomes descreve “Annúncios” do século XIX,

comparando-os aos anúncios classificados do século XXI. Para tanto, leva em

consideração a situação de produção dos textos tanto em seus aspectos temporais

quanto espaciais.

O estudo feito por Figueiredo-Gomes (2011) comprova a concepção de que

os gêneros são “relativamente estáveis” conforme propôs Bakhtin (2003), uma vez

que os anúncios classificados do século XXI conservam características dos

“annúncios” do século XIX, como, por exemplo, o objetivo – que se refere à oferta e

à procura de bem de consumos – os constituintes – que dizem respeito à

apresentação e ajuste/contato – e o suporte – o jornal (Cf. FIGUEIREDO-GOMES,

2011).

Assim sendo, a análise do gênero se torna imprescindível pelo fato de tratar a

língua em funcionamento – a língua enquanto interação social –, em tempo real,

com suas especificidades.

29

1.2.2 Gramática e sintaxe

A concepção de linguagem enquanto instrumento de interação social

contraria, também, a concepção proposta pelas gramáticas prescritivas, cujo modelo

trabalhado é único, a norma padrão, deixando de lado as variedades linguísticas.

Martelotta descreve um modelo teórico, cujo propósito é analisar não somente

a estrutura gramatical, mas também a situação de comunicação inteira: a Gramática

Cognitivo-funcional. Este modelo de gramática associa-se às bases teóricas como o

Funcionalismo linguístico, mais precisamente, o de origem norte-americana, cuja

concepção, defendida por Givón e seus seguidores, é a de língua enquanto

atividade social, não autônoma, sujeita às pressões de uso.

O próprio Martelotta (2008) justifica a escolha do termo “cognitivo funcional”

retirado de Tomasello (1998, 2003), que tem como propósito nomear um conjunto de

sugestões de ordem teórico-metodológicas que caracterizam determinadas escolas

de caráter relativamente distinto, os quais, ao adotar princípios diferentes dos que

caracterizam o formalismo gerativista, apresentam pontos comuns, a saber:

Observam o uso da língua, considerando-o, fundamental para a compreensão da natureza da linguagem; Observam não apenas o nível da frase, analisando, sobretudo, o texto e o diálogo; Têm uma visão da dinâmica das línguas, ou seja, focalizam a criatividade do falante para adaptar as estruturas linguísticas aos diferentes contextos de comunicação; Consideram que a linguagem reflete um conjunto completo de atividades comunicativas, sociais e cognitivas, integradas com o resto da psicologia humana, isto é, sua estrutura é conseqüente de processos gerais de pensamento que os indivíduos elaboram ao criarem significados em situações de interação com outros indivíduos (MARTELOTTA, 2008, p.62).

Essas características são adaptadas a escolas como o Funcionalismo – norte

americano e europeu –, a Linguística Sociocognitiva, a Linguística Textual, a

Sociolinguística, a Linguística Sociointerativa, etc. Cada uma delas analisa o

fenômeno linguístico a sua maneira, com peculiaridades próprias, seja adotando

alguma dessas características, seja adotando todas elas.

Segundo essa concepção, portanto, a situação comunicativa motiva a

estrutura gramatical, o que pressupõe pensar que uma abordagem estrutural ou

formal não é apenas limitada a dados artificiais, mas inadequada como análise

estrutural. “[...] nos termos funcionalistas, a gramática não pode ser vista como

30

independente do uso concreto da língua, ou seja, do discurso [...]” (Op. cit. p.63). Em

outras palavras, ao falarmos, produzimos frases, que, ao se juntarem, compõem um

texto coeso e coerente com a situação na qual esse discurso é empregado; o

discurso é, pois, o processamento desse texto.

Dois tipos de habilidades, essencialmente, humanas regulam a atividade

verbal, os quais estão relacionados à gramática das línguas. “O primeiro deles tem

natureza sociointerativa e se relaciona com a nossa habilidade de compartilhar

informações com nossos semelhantes e de nos engajarmos em atividades

compartilhadas, cuja compreensão é fundamental para o processo comunicativo”

Martelotta (2008, p. 63-64).

Pensemos a seguinte situação: um cliente retorna a uma loja de

eletrodomésticos, onde comprara uma televisão e dialoga com o vendedor:

(01) Cliente: – Esta televisão não está funcionando.

Vendedor: – Não há problema, senhor. Vamos providenciar a troca do

aparelho. (MARTELOTTA, 2008, p.64).

Analisando a situação comunicativa por inteiro, pressupomos que o vendedor

não irá compreender a frase proferida pelo cliente como uma simples informação,

mas como um pedido de troca do aparelho por outro, já que se trata de um contexto

específico de interação, não podendo, pois ser entendida de outra forma. Isso nos

autoriza atestar que a estrutura gramatical deve ser estudada atrelada à semântica e

à pragmática, uma vez que o “conhecimento do sistema da língua é insuficiente para

entender certos fatos linguísticos utilizados numa situação concreta de fala [...]”

Fiorin (2002, p. 166).

O segundo tipo de habilidade a que o autor se refere está relacionado a

aspectos do funcionamento mental, os quais “[...] interferem no modo como

processamos as informações – e, consequentemente, o discurso. Nossa capacidade

de ver e interpretar o mundo [...]” Martelotta (2008, p. 64).

(02) O tempo fechou. Isso vai me fazer usar o guarda-chuva (MARTELOTTA, 2008,

p. 64)

A utilização do pronome isso, que, em sua forma original, funciona como um

dêitico, isto é, localiza os objetos no espaço físico, cuja referência é a localização

dos participantes da situação comunicativa, passa a fazer referência, no excerto

31

mencionado, a uma informação citada no interior do texto: “o tempo fechou”. O que

ocorre aqui, portanto, é uma expansão da dêixis “espacial” para a dêixis “textual”,

processo extremamente produtivo nas línguas naturais, ou seja, a organização de

espaço/tempo do mundo físico é empregada de forma análoga, caracterizando,

assim, o universo mais abstrato do texto (Cf. MARTELOTTA, 2008).

Partindo desse valor anafórico, a expressão pode desenvolver papel de

conjunção. Fato que pode ocorrer quando o isso se associa à preposição por, para

funcionar como conjunção conclusiva, como exposto em (03).

(03) O tempo fechou, por isso usei o guarda-chuva (MARTELOTTA, 2008, p.

64).

Procedimentos como esses são bastante produtivos nas línguas, e os

linguistas, cuja perspectiva de trabalho é a linguística cognitivo-funcional “[...]

associam-no a um fenômeno mais geral segundo o qual a experiência humana mais

básica, que estabelece a partir do corpo, fornece as bases de nossos sistemas

conceptuais” Martelotta (2008, p.64). Isso nos mostra que não nos expressamos

numa língua apenas denominando o modo de estruturar suas frases, mas sabendo

combinar essas unidades sintáticas em situações comunicativas eficientes. Para

tanto, necessitamos conhecer, não somente, as regras semânticas, sintáticas,

morfológicas, fonológicas, mas também as pragmáticas. Regras essas, certificadas

por Neves (2006), as quais estão integradas aos pontos considerados centrais numa

teoria funcionalista, a saber: o uso da língua em relação a todo o sistema, o

significado em relação às formas linguísticas e o social em relação às escolhas

individuais do falante.

Assim sendo, a maneira de produzir o discurso do falante se constitui como

uma intrincada interação linguística, na qual se envolvem diferentes fatores como: o

contexto, as informações pragmáticas – tanto do falante, como as que ele julga que

o ouvinte possui –, o planejamento, entre outros, sendo, portanto, as variações e

desvios da gramática normativa imprescindíveis no ato comunicativo.

Neves (2006) entende, portanto, a gramática da língua como funcional, ou

seja, uma gramática do uso que busca, essencialmente, verificar como a

comunicação é processada em uma determinada língua, e, para isso, não elege

como tarefa descrever a língua enquanto sistema autônomo. Não desvincula,

32

portanto, as peças desse sistema das funções que elas preenchem. Furtado da

cunha (2007), por sua vez, seguindo o pensamento de Hopper (1987) considera a

gramática como emergente. Segundo a autora:

A gramática na ótica emergente não abriga apenas as palavras ou construções tradicionalmente consideradas como pertinentes ao âmbito gramatical, mas também quaisquer porções linguísticas recorrentes, como expressões idiomáticas, provérbios, clichês, fórmulas, sintagmas especializados, transições, aberturas, fechamentos. Tais elementos tendem à rotinização e à fixação, e são sujeitos às pressões contextuais, como todas as formas gramaticais [...] (FURTADO DA CUNHA, 2007, p.18).

Ora, se consideramos que a língua se constitui muito mais do que de uma

gramática e que esta não é a chave (ou a fonte) da intercompreensão, certamente,

podemos considerar essa a gramática como um produto da atividade verbal. Em

outras palavras, uma gramática constituída nos usos discursivos, correspondendo,

assim, a uma organização cognitiva aperfeiçoada a partir de experiências passadas

de ativação discursiva individuais de cada sujeito falante.

Nesse sentido, aquilo que os participantes do ato comunicativo acionam

cognitivamente quando falam é fruto de experiências passadas, de uso de certas

construções, a que acrescenta a avaliação do contexto interativo, cujo enfoque está

na imagem do interlocutor, não num conjunto fixo de postulados. Sua capacidade

cognitiva, enquanto falantes, permite-lhes, portanto, a partir dos eventos discursivos,

categorizar e classificar semelhanças e diferenças. Isso pressupõe a ideia de

acreditar que a gramática, tal como o discurso, é vista como um fenômeno social e

se partirmos da ideia que a “[...] gramática é constituída nos contextos específicos

de uso da língua, para compreendê-la é preciso levar em conta a perspectiva

discursivo-textual. Buscamos, portanto, explicar a forma da língua a partir das

funções que ela desempenha na comunicação” Furtado da Cunha (2007, p. 19).

O que podemos depreender, a partir da visão (ou visões) apresentada(s) de

gramática a partir da ótica funcionalista, é que a língua/gramática não é vista como

um sistema estático e imutável, com regras a serem seguidas, e os desvios

considerados como “erros”. O que deve ser enfatizado, portanto, é uma

língua/gramática dinâmica, maleável, que depende do uso que se faz dela passando

a ser determinada pelas situações comunicativas, motivadas pelas circunstâncias e

pelos contextos específicos de uso. Isso nos autoriza a atestar que a corrente

33

funcionalista pode ser uma perspectiva para reflexões acerca do ensino de língua,

representando, assim, uma tentativa de mudar velhos paradigmas seguidos há

séculos (Cf. OLIVEIRA; COELHO, 2003).

No entanto, isso, de fato, só poderá acontecer, quando os resultados das

pesquisas ultrapassarem os muros escolares, fazendo com que os que ali estiverem,

adotem uma nova concepção de língua(gem), de gramática e de ensino.

Mediante os pressupostos aqui discutidos, podemos postular que, com os

avanços teóricos nos estudos linguísticos, a forma de conceber os fenômenos

associados à gramática das línguas mudou significativamente. As concepções

aperfeiçoaram-se, algumas abandonadas ou mesmo retomadas devido às

descobertas das ciências. Martelotta (2008) admite, pois, a existência de duas

grandes tendências linguísticas atualmente: a gerativista e a cognitivo-funcional. A

primeira concebe a linguagem como função biológica, cujos aspectos formais da

língua são objetos privilegiados de abordagem. A segunda, por sua vez, procura

compreender a estrutura das línguas partindo do uso, estabelecendo, portanto, uma

relação entre biologia e cultura. Que concepção teremos, no futuro, somente os

estudos e pesquisas (que não poucos) acerca do fenômeno linguístico poderão

dizer.

A sintaxe, segundo a concepção dos autores funcionalistas, “é uma estrutura

em constante mutação em consequência das vicissitudes do discurso” Martelotta e

Areas (2003, p.23). Nesse sentido, o “fenômeno sintático” para ser compreendido,

necessitaria de um estudo da língua que levasse em consideração seu uso,

situações específicas, uma vez que a gramática é constituída em espaços como

esses.

Nesse sentido, o estudo do fenômeno sintático deveria considerar a língua

em uso em seus contextos discursivos particulares, uma vez que é em espaços

como estes que a gramática se constitui. Com o avanço da teoria funcionalista,

percebemos que as ideias, por ela instituídas, contribuem para que os teóricos desta

corrente possam focalizar os mecanismos que geram a mudança nos fatores

comunicativos; que a linguagem é uma atividade sociocultural; as gramáticas são

emergentes; e a estrutura das sentenças é sempre maleável. Os princípios

instituídos por Hopper comprovam tais proposições. Ao tratar da gramaticalização,

34

Hopper (1991) afirma que a gramática de uma língua é sempre emergente, ou seja, estão sempre surgindo novas funções/valores/usos para formas já existentes e, nesse processo de emergência, verificável a partir de padrões fluidos da linguagem, é possível reconhecer graus variados de gramaticalização que uma forma vem a assumir nas novas funções que passa a executar, tornando-se imperioso, então, contar com recursos que permitam identificar os primeiros estágios de processo de mudança (GONÇALVES; CARVALHO, 2007, p. 79).

Para dar sequência aos estudos dos princípios funcionalistas, Talmy Givón

publica From Discouse to Syntax em 1979. Essa produção, de caráter

antigerativista, afirma que “a sintaxe existe para desempenhar uma certa função, e é

essa função que determina sua maneira de ser” Furtado da Cunha (2008, p.164).

Nessa perspectiva, a pragmática do discurso desempenha um papel determinante

na explicação da sintaxe da linguagem, o que pressupõe dizer que, para Givón, a

sintaxe é uma entidade dependente, funcionalmente motivada por processos

comunicativos e cognitivos. Assim, a modalidade comunicativa é postulada por dois

polos extremos: o pragmático e o sintático, cujas propriedades estruturais podem ser

caracterizadas tendo em vista parâmetros funcionais.

Além dos trabalhos de Givón, a produção de Thompson é considerada

marcante na análise funcionalista. Em coautoria com Paul Hopper, publicaram

Transitivity in grammar and discours (1980), obra em que revolucionaram a

concepção de transitividade, extraindo-a do âmbito do verbo e colocando-a no

discurso. Nesse sentido, Thompson e Hopper consideram o contexto discursivo

como motivador para os fatos da língua. Defendem que a transitividade está

relacionada aos planos do discurso.

Os autores concebem como um complexo de dez parâmetros sintático-

semânticos focalizadores de diferentes ângulos da transferência da ação em uma

parte distinta da oração. Mesmo que sejam independentes, os dez traços da

transitividade trabalham em parceria, de modo a articularem-se na língua,

pressupondo a ideia de união dos mesmos para que a transitividade aconteça.

Furtado da Cunha; Costa e Cezário (2003, p.37); Furtado da Cunha e Souza (2007,

p.37) disponibilizam um quadro com esses dez parâmetros para mostrarem que a

transitividade não se manifesta apenas no verbo, mas no todo da oração, que

emerge das relações estabelecidas entre os elementos que a compõem. Vejamos.

35

Quadro 01: Parâmetros da transitividade

PARÂMETROS TRANSITIVIDADE

ALTA

TRANSITIVIDADE

BAIXA

1. Participantes

2. Cinese

3. Aspecto do verbo

4. Pontualidade do verbo

5. Intencionalidade do sujeito

6. Polaridade do sujeito

7. Modalidade da oração

8. Agentividade do sujeito

9. Afetamento do objeto

10. Individuação do objeto

dois ou mais

ação

perfectivo

pontual

intencional

afirmativa

modo realis

agentivo

afetado

individuado

um

não ação

não perfectivo

não pontual

não intencional

negativa

modo irealis

não agentivo

não afetado

não individuado

Citando a proposta de Hopper e Thompson (1980), Furtado da Cunha e

Souza (2007) ressaltam que uma faceta distinta da intensidade com que uma ação é

transferida de um participante para outro é envolvida por cada componente da

transitividade. Os componentes da transitividade são, portanto, caracterizados a

partir dos parâmetros:

a) Participantes: não há transferência a não ser que dois participantes estejam

envolvidos.

b) Cinese: pode haver transferências de ações de um participante para outro;

estados não. Nesse sentido, em (04) Eu abracei Sally (p. 37)3, alguma coisa

acontece com Sally, mas em (05) Eu admiro Sally (p.37), nada acontece.

c) Aspecto: uma ação vista do seu ponto final, ou seja, uma ação télica – terminada

– é transferida de forma mais eficaz para um paciente do que uma ação não

terminada. Na oração télica (06) Eu comi sanduíche (p. 37), a atividade é vista como

completa, e a transferência é completamente realizada; porém, na oração atélica,

(07) Eu estou comendo o sanduíche (p.37), a transferência é realizada apenas de

forma parcial.

3 Os exemplos citados nos 10 parâmetros pertencem a Furtado da Cunha e Souza (2007), mas

renumerados por nós, por questões didático-metodológicas.

36

d) Pontualidade: ações que se realizam sem nenhuma fase de transição evidente

entre o início e o fim têm um efeito mais marcado sobre seus pacientes do que

ações que são inerentemente contínuas. Por exemplo: o verbo (08) chutar é pontual

quando contraposto ao verbo (09) carregar, que é não-pontual. Nesse caso,

devemos levar em consideração tanto o contexto quanto o significado do verbo.

e) Intencionalidade: o efeito sobre o paciente é tipicamente mais aparente quando

a ação do agente é apresentada como proposital. Por exemplo, (10) Eu escrevi seu

nome (intencional), em contraposição com (11) Eu esqueci seu nome (não

intencional) (p. 38).

f) Polaridade: as orações afirmativas (ações que aconteceram) podem ser

transferidas. Por exemplo: (12) Eu entreguei o livro à professora (p. 38). As

negativas (ações que não aconteceram) não podem. Por exemplo: (13) O menino

não comeu o sanduíche (p. 38).

f) Modalidade: refere-se à distinção entre a codificação “realis” e “irrealis” de

eventos. Uma ação que não aconteceu, ou que é apresentada como tendo

acontecido em um mundo irreal, hipotético, ou que expressa um evento incerto é,

obviamente, menos efetiva do que aquela cuja ocorrência é de fato asseverada

como correspondendo a um evento real. Por exemplo: (14) Maria vai comprar um

vestido novo (p. 38), o verbo está no futuro. Isso pressupõe que a ação de comprar

ainda não aconteceu, ficando, portanto, a oração marcada com irrealis.

g) Agentividade: participantes cuja agentividade é alta podem efetuar a

transferência de uma ação de um modo que participantes com baixa agentividade

não podem. Nesse sentido, quando interpretamos a frase de maneira normal (15)

João me assustou (p.38) é de um evento perceptível com consequências

perceptíveis, mas (16) O filme me assustou (p. 38) poderia ser apenas uma questão

de estado interno.

g) Afetamento: o grau em que uma ação é transferida para um paciente é uma

função de quão completamente esse paciente é afetado. Por exemplo, o afetamento

é mais efetivo em (17) Eu bebi o leite todo do que em (18) Eu bebi um pouco do leite

(p. 38).

h) Individuação: esse componente se refere tanto ao fato de o paciente ser distinto

do agente quanto à distinção entre o paciente e o fundo em que ele se encontra.

Desse modo, os referentes dos substantivos com propriedades de substantivo

próprio, humano e animado, concreto, singular, contável e referencial ou definido

37

são mais altamente individuados do que aqueles com substantivos que contêm

propriedades contrárias às referidas acima4.

Conforme Hopper e Thompson (1980) apud Furtado da Cunha e Souza

(2007, p. 39.), “uma ação pode ser mais eficazmente transferida para um paciente

que é individuado do que para um que não é; desta forma, um objeto definido é

considerado como mais completamente afetado do que um objeto indefinido [...]”.

Por exemplo: em (19) Pedro bebeu a cerveja, existe uma provável implicação de que

ele tomou toda a cerveja disponível, mas quando dizemos que (20) Pedro bebeu um

pouco da cerveja, não há essa implicação, a menos que, na situação do evento,

havia somente a cerveja correspondente ao que bebeu. A mesma coisa acontece

com pacientes animados e inanimados: em (21) Eu me choquei com Pedro, há,

provavelmente, um foco de atenção no efeito do evento em Pedro, ou quem sabe

em ambos participantes – eu e Pedro – porém, em (22) Eu me choquei com a mesa,

é menos provável que alguma coisa tenha acontecido com a mesa, e mais provável

que o efeito sobre o agente esteja sendo ressaltado.

Confirmando a eficácia da proposta de Hopper e Thompson (1980), Furtado

da Cunha e Sousa (2007) ressaltam que cada um desses parâmetros contribui para

a ordenação de orações em uma escala de transitividade. Assim sendo, são mais

transitivas as orações que apresentam mais parâmetros da escala da alta

transitividade – parâmetros marcados positivamente – e menos transitivas as

orações que possuem menos parâmetros da alta transitividade, conforme

apresentado no quadro 1 e nos exemplos analisados.

Comprovando que os funcionalistas veem a transitividade como uma

propriedade escalar que focaliza diferentes ângulos da transferência da ação de um

agente para um paciente em diferentes porções da oração, trazemos para análise

mais exemplos. Vejamos:

(23) Batman derrubou o Pinguim com um soco. (24) A mulher Gato não gostava do Batman. (25) Esse rio tem uma forte correnteza. (26) Então o Pinguim chegou na festa. (HOPPER e THOMPSON apud FURTADO DA CUNHA, 2008, p.171).

4 As propriedades da individuação podem ser conferidas em Furtado da Cunha e Souza (quadro 2)

(2007, p.39).

38

De acordo com a gramática tradicional, os três primeiros exemplos são

transitivos, uma vez que apresentam um objeto como complemento do verbo.

Conforme o pensamento de Hopper e Thompson (ressaltado quando tratamos dos

parâmetros da transitividade), o exemplo que ocupa lugar mais alto na escala de

transitividade é o (23), acompanhado de (26) e (24) e, finalmente, (25), levando-se

em conta aspectos como dinamicidade do verbo, agentividade do sujeito e a

afetação do objeto (Cf. FURTADO DA CUNHA, 2008).

A gramática tradicional sempre gozou de grande prestígio social. No entanto,

com o avanço dos estudos linguísticos, o conceito de transitividade apresentado

nela suscitou várias críticas entre os estudiosos, principalmente, pelos funcionalistas

norte-americanos que apresentam uma alternativa de análise para esse fenômeno

linguístico completamente diferente daquele exposto nos compêndios gramaticais,

seguidos até os dias atuais. Os estudiosos dessa corrente teórica compreendem a

transitividade

[...] não como uma propriedade categórica do verbo, como defende a gramática tradicional, mas como uma propriedade contínua, escalar (ou gradiente), da oração como um todo. É na oração que se podem observar as relações entre o verbo e seu(s) argumento (s) – a gramática da oração (FURTADO DA CUNHA; SOUSA, 2007, p.29).

Diante do exposto, o que se propõe, na verdade, é que a análise da

transitividade seja realizada, não exclusivamente, em relação ao verbo, mas à

sentença toda, ao contexto discursivo. Na verdade,

“Quanto às classificações tradicionais da transitividade verbal, elas se referem, como sabemos, ao tipo de complemento que é acionado pela semântica do verbo, ou no caso dos intransitivos, pela necessidade de complemento. No entanto, como sempre, é o contexto discursivo que vai determinar o caráter transitivo e/ou intransitivo de um verbo” (BAGNO, 2011, p.516)

Consoante Hopper e Thompson (1980), o fenômeno da transitividade se

constitui por um componente semântico e um componente sintático. Um evento

descrito por uma oração transitiva deve envolver pelo menos dois participantes: um

agente – responsável pela ação – ao qual atribuímos a codificação de sujeito, e um

paciente – o que é afetado por essa ação – a quem nos referimos como objeto

direto. Esses participantes são chamados de argumentos do verbo. Levando-se em

conta o ponto de vista semântico, o evento transitivo prototípico, conforme nos

39

atestam Furtado da Cunha e Souza (2007) se define pelas propriedades de agente,

do paciente e do verbo, os quais envolvem a oração codificada por esse evento.

Delimitar as propriedades desses três elementos é, em princípio, uma questão de

grau. Quando consideradas do ponto de vista sintático, todas as orações (e verbos),

cujos objetos são diretos são transitivas; as que não apresentam objetos diretos,

porém, são intransitivas. Dessa forma,

[...] se uma oração codifica um evento semanticamente transitivo, o agente do verbo é o sujeito da oração e o paciente do evento é o objeto direto da oração. Contudo, a manifestação discursiva de um verbo potencialmente transitivo depende de fatores pragmáticos, como a perspectiva a partir da qual o falante interpreta e comunica o evento narrado [...] (FURTADO DA CUNHA e SOUZA, 2007, p.29-30).

Retomamos aqui dois exemplos citados pelas autoras, demonstrando, pois

que um evento pode ser transmitido tanto da perspectiva do agente responsável

pela ação, exemplo (27), quanto do ponto de vista do objeto por ela afetado,

exemplo (28):

(27) O menino quebrou a vidraça.

(28) A vidraça foi quebrada pelo menino. (FURTADO DA CUNHA; SOUZA

2007, p.30).

Analisando, portanto, as orações partindo da proposta de Hopper e

Thompson (1980), notamos que ambas as construções apresentam transitividade

alta, pois contêm mais traços positivos do que negativos no complexo: dois

participantes (menino e vidraça); verbo de ação (quebrou/foi quebrada); aspecto

perfectivo (verbos no passado); verbo pontual (ação completa); sujeito intencional;

oração afirmativa; oração realis (modo indicativo); sujeito agente: menino/paciente:

vidraça); objeto afetado e individuado (vidraça). O fato expresso por essas orações é

o mesmo, contudo, visto de maneiras diferentes, recebendo foco diferente em cada

uma das construções.

Retornando às noções sobre o conceito e o processo de transitividade,

tomamos consciência de que não se restringem a situações prototípicas, cujas

propriedades são específicas, limitadas. Pelo contrário são dinâmicas, variando de

acordo com a função exercida em determinadas situações. Nota-se, portanto, que

estabelecer classificações para os verbos fora de uma análise contextual descritiva

é, sem dúvida, limitar o ensino/estudo da transitividade.

40

Trabalhar a transitividade seguindo a proposta apresentada por Furtado da

Cunha; Sousa (2007) é bastante diferente de trabalhar seguindo o ponto de vista

tradicional. A proposta a que as autoras funcionalistas se referem trata da

transitividade como sendo característica de toda a sentença. A proposta

apresentada pela visão tradicional se refere à transitividade como uma característica

restrita aos verbos, o que limita a análise da língua enquanto interação social já que

nessa concepção analisamos tanto os aspectos linguísticos quanto os

extralinguísticos.

Isso pode ser constatado, na linguagem jornalística investigada, quando

analisamos os verbos vender e alugar, em que aparecem construções com esses

verbos e levamos em consideração a transitividade como sendo característica de

toda a sentença.

No que concerne às questões de mudança linguística, gramaticalização e

empréstimo seguindo um modelo semelhante aos dos linguistas americanos, há um

grupo de funcionalistas europeus, na Alemanha, reunido por Bernd Heine, na

universidade de Colônia, Tânia Kuteva em Dusseldorf, entre outros (Cf. FURTADO

DA CUNHA, 2008).

Como podemos perceber, a corrente funcionalista contemporânea difere das

abordagens formalistas – estruturalismo e gerativismo –, por considerar a linguagem

como instrumento de interação social, buscando explicar as regularidades

observadas no contexto discursivo. Nesse sentido, fica evidente que a situação

comunicativa motiva, explica e determina a estrutura gramatical, pressupondo

considerar que as construções gramaticais se moldam por motivações de ordem

semântico-pragmática.

Para os teóricos e estudiosos do funcionalismo, conforme já mencionamos, a

linguagem é vista como um instrumento de interação social e tendo como

tendências, em sua análise, a relação entre linguagem e sociedade. Por isso, em

seus estudos, pretende investigar os aspectos e os elementos que formam a

linguística que vai além da estrutura gramatical, suas intenções e o contexto.

Dentre as categorias que compõem a abordagem funcionalista, estão a

informatividade, a iconicidade, a marcação, a transitividade e plano discursivo, e a

gramaticalização (...). Esses pressupostos teóricos contribuem para que a linguagem

seja concebida a partir da interação social e buscam explicar os fenômenos

linguísticos pela verificação do uso da língua que está além da estrutura gramatical.

41

Nesta pesquisa, apesar de não fazer uma análise profunda envolvendo os dados

coletados, lançamos mão da categoria transitividade para explicar o porquê de

priorizar a língua em uso.

A categoria da informatividade consiste em estudar o compartilhamento de

informações pelos interlocutores, nos processos de interação verbal. Esse princípio

tem como objeto de aplicação o exame do status informacional dos referentes

nominais que, por sua vez, podem ser classificados como dado, novo, velho,

disponível e inferível (Cf. FURTADO DA CUNHA, 2008). “Tradicionalmente, a parte

da cláusula que apresenta a informação velha é denominada tema, enquanto a parte

que apresenta a informação nova é denominada rema” (FURTADO DA CUNHA;

COSTA; CEZÁRIO, 2003, p. 29).

Nesse sentido, podemos dizer que um referente é dado ou velho, quando

este já tem advindo textualmente – referente dado no texto – ou se o mesmo se

encontrar disponível no contexto da fala – referente dado na situação. Para que

possamos compreender melhor a informatividade, alguns exemplos citados em

Furtado da Cunha (2008) são retomados aqui:

(29) a) aí o mecânico falou que... (Ø) não sabia qual o homem que tinha apertado aquilo ((riso)) b) E: e: agora eu queria que você me... me dissesse... alguma coisa que você sabe fazer... ou que você... goste de fazer... e como é que se faz isso... (FURTADO DA CUNHA, 2008, p.166).

Face ao exposto por Furtado da Cunha (2008), damo-nos conta de que o

sujeito do verbo “saber”, no exemplo (29a) – que está marcado com o símbolo (Ø),

indicando a omissão do mesmo – foi citado na primeira declaração, constitui-se, um

caso de referente antes dado (ou tema): “o mecânico”, não necessitando, portanto,

se repetir posteriormente. No exemplo (29b), por sua vez, o entrevistador pede para

o informante lhe dizer alguma coisa que sabe fazer, mesmo havendo a ambiguidade

da palavra você, que pode estar se referindo tanto ao interlocutor quanto a outra

pessoa, o contexto permite ao interlocutor – entrevistado – inferir que é a ele que o

falante pretende se referir. Quanto ao sentido do termo, temos um caso de referente

situacionalmente dado, já que, em ocorrências como estas, a situação contextual é

esclarecedora.

Quando um referente é introduzido pela primeira vez, no discurso, ele é

caracterizado como novo – exemplo (29c). Contudo, se o ouvinte já dispuser dele

42

em sua mente, sendo ele um referente único – em determinado contexto -

caracteriza-se como disponível. “Construções como: “a lua”, “o sol”, Pelé”, ou

“Petrópolis” – exemplo (29d):

(29) c) aí quando chegou... ali na:: decida/ porque é... Barra... Tijuca... né? quando estava quase chegando a... Tijuca... vinha... um ônibus na:: direção deles... e tinha um caminhão... parado aqui... (Informante 12, Diário, Discurso & Gramática, RJ) d) ... mas ... eu fui a Petrópolis com uma amiga... que nunca tinha subido a serra (FURTADO DA CUNHA, 2008, p.166)

Caracteriza-se como inferível, um referente, cuja indicação é feita por meio de

uma técnica de inferência, como no excerto (29e) através de outros elementos

dados. Comumente, as construções inferíveis trazem como código um artigo

definido.

(29) e)... quando ela viu o ônibus passar ... mas o ônibus já estava indo... e ela começou a gritar e todo o ponto de ônibus assim lotado... né? ela começou a gritar pro motorista... mas ela estava um pouco longe... (FURTADO DA CUNHA, 2008, p.166).

No caso citado, a informante não fez menção ao referente “o motorista”, o que

não se constitui informação dada – ou velha. Todavia, quando falamos que um

ônibus passava em um ponto (parada) pressupomos que nele ia um motorista.

Dessa forma, não há problemas para que o ouvinte identifique tal informação, visto

que, por si só, ela não pode ser considerada como nova. Assim, incluímos esse caso

nos exemplos dos referentes inferíveis.

Retornando ao que afirma Furtado da Cunha sobre o status informacional dos

elementos linguísticos, observamos que ele é importante no sentido de interferir na

organização de tais elementos na cláusula, por exemplo, informações que serão

discutidas no princípio da iconicidade tratado a seguir.

A iconicidade, como atestam os funcionalistas, estuda a correlação natural e

motivada existente entre o código linguístico, correspondente à expressão e seu

significado, correspondente ao conteúdo, isto é, entre forma e função. Os estudos

funcionalistas defendem a ideia de que a estrutura da experiência é refletida pela

estrutura da língua. “Como a linguagem é uma faculdade humana, a suposição geral

43

é a de que a estrutura linguística revela o funcionamento da mente, bem como as

propriedades da conceituação humana do mundo” Furtado da Cunha (2008, p.167).

No entanto, a versão original do princípio da iconicidade que postulava uma

relação isomórfica de um para um entre forma e conteúdo foi reformulada a partir

dos estudos sobre variação e mudança, donde houve a constatação da existência

de duas ou mais formas alternativas para proferir “a mesma coisa”. Neves (2006,

p.23) certifica que deve ser descartada a hipótese de um “[...] isomorfismo, ou

relação biunívoca, nas relações entre forma e significação, já que nada justifica

defender que um signo seja imagem de seu referente, concepção que levaria a que

se deixasse de admitir sinonímia ou homonímia nas línguas”.

Convém lembrarmos, a essa altura, que na língua usada, em nosso dia-a-dia,

de modo particular na modalidade escrita, há, certamente, inúmeras ocorrências,

cuja relação não é clara, óbvia, entre expressão e conteúdo. Isso nos leva a pensar

que há uma aparente arbitrariedade na relação forma vs. significado, já que o

significado original do componente linguístico se perdeu de forma total ou parcial,

como também a motivação para sua criação (FURTADO DA CUNHA, 2008).

A título de ilustração, citamos o caso do item entretanto: (ex.: “Estudou muito,

entretanto, não passou”) que, hoje, é usado como conjunção adversativa, cuja

origem está na antiga expressão entre tanto, que, segundo Said Ali (1971 apud

Martelotta, 2003, p.67), “desempenhava função de circunstanciador temporal com

valor de entrementes, enquanto isso sucede”.

O uso, atualmente, adotado é totalmente diferente do seu significado original

presente em textos arcaicos do português – advérbio de tempo – com o valor de

“enquanto isso”, “ao mesmo tempo” “entre tantos acontecimentos”, ideia essa que,

segundo a autora, permanece no item “entre” encontrado em construções como:

“entre” + “tanto” presentes nos dados do Grupo de Estudos Discurso & Gramática,

formado por professores da UFRJ, UFF e da UFRN.

Segundo Furtado da Cunha (2008), três subprincípios constituem o princípio

da iconicidade, a saber: o subprincípio da quantidade que corresponde à quantidade

de informação, uma vez que sendo maior a quantidade de informação será maior a

quantidade de forma, equivalendo, portanto, a construção gramatical e a estrutura

do conceito expresso. Podemos exemplificar esse subprincípio a partir das palavras

derivadas, cujas formas ganham comprimento em relação às palavras primitivas que

as originaram:

44

(30) BELO > BELEZA > EMBELEZAR > EMBELEZAMENTO (FURTADO DA

CUNHA, 2008, p.168).

O subprincípio da integração, por sua vez, presume que quanto mais

próximos estiverem os conteúdos cognitivos, mas próximos, também, estarão as

formas no nível da codificação. Mente e sintaxe se relacionam mutuamente.

Podemos notar isso nos exemplos seguintes:

(31) - Maria ordenou: fique aqui.

(32) - Maria fez a filha ficar ali.

(33) - A filha não queria ficar ali. (FURTADO DA CUNHA, 2008, p. 169).

Observando os exemplos, podemos perceber que quanto menor a integração

entre o verbo da oração principal e o verbo da oração subordinada, maior a

probabilidade de separação entre os dois eventos, seja por meio de elementos da

subordinação, seja por meio de pausa. No exemplo (31), existem dois eventos

separados, o ato de dizer algo e o ato de ficar ali. Além do mais, os verbos – núcleos

da oração – referem-se a diferentes sujeitos, apresentando, assim, codificação

modo-temporal diferentes. No exemplo (32), a integração semântica e sintática é

maior, não ficando tão fácil afirmar que se trata de dois eventos separados e que

não existe um elemento implícito separando as duas orações, uma vez que o objeto

da primeira é o sujeito da segunda. No exemplo (33), semântica e sintaxe se fundem

de forma mais evidente, não ficando nítida, também, a distinção entre os eventos

distintos, uma vez que o sujeito de “querer” é o mesmo de “ficar” e, de modo

obrigatório, o sujeito desse segundo verbo apaga-se.

O subprincípio da ordenação sequencial se refere ao modo de ordenar os

elementos na cadeia sintática como também à ordenação das orações de acordo

com a realidade em que elas ocorrem, conforme uma sequência temporal. Desse

modo, podemos construir uma sequência como esta: “sabe como é bom um

estrogonofe... compra o camarão:: limpa o camarão... põe o camarão... boto

cebola... pimentão... tomate... cozinho ele... deixo ele cozinhar um pouquinho

assim...” Furtado da Cunha (2008, p. 169).

As orações estão postas de acordo com a ordem de ocorrência na realidade:

primeiro compra os ingredientes, para depois fazer o strogonof. Caso invertêssemos

a ordem das orações, a sequência dos fatos também mudaria.

A marcação, que distingue por oposição binária um termo marcado de outro

não marcado, foi introduzida na linguística pela Escola de Praga. Nesse sentido, um

45

entre dois elementos opostos considera-se marcado ao apresentar uma propriedade

ausente no outro membro não marcado. As formas não marcadas apresentam várias

características, a saber:

(34) a) maior frequência de ocorrência nas línguas em geral e em uma língua particular; b) contexto de ocorrência mais amplo; c) forma mais simples ou menor; d) aquisição mais precoce pelas crianças (FURTADO DA CUNHA, 2008, p.170).

Analisemos o conceito de marcação no nível sintático e vejamos as

consequências apresentadas no uso da língua a partir dos exemplos abaixo:

(35) Eu uso esta roupa

(36) Esta roupa eu uso. (FURTADO DA CUNHA, 2008, p. 171).

O exemplo da construção em 36 é mais marcado, uma vez que ordenamos

com maior frequência construções como a apresentada em 35: SVO – sujeito (Eu),

verbo (uso), objeto (esta roupa). Quando refletimos acerca da expressividade

dessas estruturas, percebemos implicações interessantes. Se perguntássemos qual

das duas frases seria a mais expressiva, certamente a resposta recairia na

construção 36, uma vez que “[...] expressa algum tipo de força argumentativa

associada à ideia de que aquela roupa é de um tipo que agrada mais ao falante do

que alguma outra” Furtado da Cunha (2008, p.170); coisa que não acontece no

primeiro exemplo, já que temos uma simples afirmação, não apresentando, de forma

necessária, qualquer argumento dessa natureza.

Em se tratando das categorias transitividade5 e plano discursivo, já tratamos

quando discutimos sobre sintaxe.

Quanto à gramaticalização – contínuo "fazer-se" da gramática, uma gramática

sempre emergente, na visão hopperiana (Cf. GONÇALVES; LIMA-HERNANDES;

CASSEB-GALVÃO; CARVALHO, 2007) – salientamos que, dentre os vários

processos de mudança linguística, ele é considerado um dos mais comuns, 5 Transitividade (do latim transitivus = que vai além, que se transmite), em seu sentido original, denota

a transferência de uma atividade de um agente para um paciente (FURTADO DA CUNHA e SOUZA, 2007, p.25).

46

observando-se as línguas de modo geral, constituindo-se, portanto, como objeto

privilegiado de investigação na perspectiva funcionalista. Isso porque procura

explicar o processo de variação/mudança pelas quais um item lexical ou construções

passam, assumindo outros sentidos e funções.

Outro trabalho a que sempre se faz referência em apresentações sobre esse

princípio, ainda segundo Neves (2006), é a proposta de Givón (1971), cujo aforismo

a identifica dizendo que ‘a morfologia de hoje é a sintaxe de ontem’. Proposta essa

adotada por Furtado da Cunha (2008). Para Hopper; Traugott (1993, p. 173) a “[...]

gramaticalização designa um processo unidirecional, segundo o qual itens lexicais e

construções sintáticas, em determinados contextos, passam a assumir funções

gramaticais”. O comum é que o processo aconteça com itens e expressões muito

frequentes, fazendo com que o termo normalmente se desgaste foneticamente e

perca sua expressividade. Com isso, o elemento não faz mais referência ao mundo

biossocial, pois assume funções de caráter gramatical, tais como: ligar elementos

textuais, sugerir categorias gramaticais, como o tempo de um verbo ou o gênero de

um nome, entre outros.

Quanto às causas da gramaticalização, Neves (2006) assegura que a

investigação direciona-se às relações existentes entre gramática e cognição.

Certificando sua posição, a autora cita Givón (1991), para quem a gramaticalização

pode ser vista sob a perspectiva diacrônica, porém do ponto de vista da cognição ela

é um processo instantâneo envolvendo, pois, “um ato mental pelo qual uma relação

de similaridade é reconhecida e explorada: por exemplo, pode-se dar a um item

primitivamente lexical um uso gramatical em um novo contexto, e nesse mesmo

momento ele se gramaticaliza” (GIVÓN, 1991 apud NEVES, 2006, p.21). Sob esse

prisma do processo de gramaticalização, há uma distinção entre a semântica e a

pragmática – na extensão funcional – e a fonologia e a morfologia – no ajustamento

linguístico.

Para que compreendamos, portanto, o processo de gramaticalização,

recorremos a Martelotta (2011, p.117) que o define como “[...] um processo de

características translinguísticas que prevê o desenvolvimento de elementos

gramaticais nas línguas naturais. É um processo unidirecional motivado

essencialmente por fatores cognitivos e comunicativos”. Não se pode esquecer a

distinção entre léxico e gramática sugerida por Martelotta (2006), pois ele acredita

ser fundamental tal distinção que se faz em linguística. Vejamos:

47

. Léxico: é composto por elementos linguísticos que fazem referência a dados do mundo biossocial, ou seja, termos que designam basicamente entidades (substantivos), ações/processos (verbos) e qualidades (adjetivos). . Gramática: é composta por elementos linguísticos que têm a função de expressar noções gramaticais (os verbos auxiliares, os afixos e as desinências,) ou de organizar as palavras do léxico na frase ou as frases no discurso (os verbos de ligação, os advérbios, os pronomes, os artigos, as preposições e as conjunções) (MARTELOTTA, 2006, p.257).

Mediante a distinção, o autor adverte que não se deve tomar como

categórica, já que há termos prototipicamente lexicais – os substantivos e os verbos

de ação e de processo – e termos prototipicamente gramaticais – as preposições e

as conjunções. Contudo, há elementos, cujas características assumem um papel

intermediário, fazendo com que haja diferentes pontos de vista acerca de sua

classificação no campo lexical ou gramatical. Por exemplo, os pronomes e advérbios

que são assumidos como mais gramaticais do que os substantivos e menos

gramaticais do que as conjunções.

Citamos mais uma vez Furtado da Cunha (2008, p. 174), cujos exemplos

ilustram o processo de gramaticalização de forma substancial. Vejamos:

a) A trajetória de substantivo e verbos para conjunções.

O verbo querer pode passar a ser usado como conjunção, como é o caso

dessa construção: (37) “Quer chova quer faça sol, estarei lá”, bem como o elemento

logo, cujo valor, no português arcaico era o de substantivo e, hoje, pode ser usado

como conjunção conclusiva em exemplos como: (38) “Penso, logo existo”.

b) A trajetória de nomes e verbos para morfemas.

É o que ocorre com as construções, cuja expressão “tranquila mente”

(“intelecto”) passa a ser utilizado como sufixo formador de advérbio:

“tranquilamente”. Processo que pode também ocorrer com a locução “amar hei”, cuja

forma do verbo “haver” – hei – é incorporada ao verbo, fazendo-o funcionar como

desinência de futuro: “amarei”.

Esses são apenas alguns exemplos. No entanto, nos estudos sobre o

processo de gramaticalização, encontram-se muitas pesquisas acerca do nível

lexical e para além do nível lexical, pressupondo, assim, a renovação constante do

sistema linguístico, cuja percepção se dá por meio do surgimento de novas funções

para formas que já existem, assim como de novas formas para funções que já

existem, certificam Gonçalves e Carvalho (2007), para os quais tal renovação traz a

48

noção de “gramática emergente”, concepção essa assumida por muitos estudiosos

do processo.

No esboço teórico dos autores citados há pouco, um dos pontos discutidos

que chamou nossa atenção e que poderá contribuir para compreensão do fenômeno

que investigamos, neste trabalho, é o estudo dos princípios de Hopper (1991), os

quais servem de parâmetros para acentuar o caráter gradual do processo de

variação, não discriminando, pois, os procedimentos de mudança, os quais resultam

em gramaticalização, bem como os que não resultam.

Ao analisar os princípios de Lehmann (1982), Hopper (1991) assegura que

eles são muito valiosos, porém não são aplicáveis às formas que se encontrem no

início de um processo de gramaticalização, apenas aos processos já adiantados.

Nesse sentido, para analisar as formas não contempladas por Lehmann, Hopper

sugere cinco princípios: estratificação, divergência, especialização, persistência e

descategorização.

Conforme o primeiro princípio (estratificação), quando ocorre o processo de

gramaticalização, novas formas surgem dentro do sistema linguístico e coexistem

com as formas antigas, interagindo com elas, já que as formas originais não

desaparecem de forma imediata do sistema. É o caso da expressão a gente que, no

PB, passou a competir, em alguns contextos, com as formas de 1ª pessoa: eu e nós;

e mais frequente ainda com a forma nós. Tais formas estão convivendo lado a lado,

uma vez que do ponto de vista da estratificação as novas formas surgem não para

eliminar as antigas ou substituí-las, mas para acumular maneiras diferentes (outras

expressões) de dizer obtendo, pois, a mesma informação. Vejamos ocorrências

retiradas do estudo de Omena & Braga comprovando a opções de uso da forma nós

e a gente, às quais renumeramos aqui ilustrando o referido princípio.

(39) F: Porque a única coisa que não vai bem é o seguinte: que nós temos aqui uma

dificuldade muito grande de colocar a documentação do bar em dia.

(40) F: Então, a gente tem condições de fazer uma documentação certa que eles

não tenham o direito de interferir no nosso movimento, entendeu? (OMENA;

BRAGA, 1996, p. 78-79).

49

Observando os exemplos, percebemos que a expressão indefinida adentrou

no quadro dos pronomes pessoais e funciona de forma básica tanto na primeira

pessoa do plural – nós, quanto na primeira pessoa do singular – eu. Na seleção de

uma ou de outra forma, têm sido apontadas diferenças discursivas: “[...] nas

sentenças que funcionam como figura* das narrativas, isto é, em seu nó dramático

central, predomina nós; nas sentenças de fundo*(= atividades, comportamento,

costumes, opiniões e generalizações), predomina a gente” (CASTILHO, 2010, p.

478).

O princípio da divergência assinala que também há uma coexistência entre

as formas novas e as originais. No entanto, a forma lexical original é um elemento

independente, sujeito às mesmas mudanças que qualquer outro elemento. Para

exemplificar tal conceito, basta observar a existência paralelamente da construção a

gente, cujo item – substantivo – permanece no sistema da língua como forma

autônoma, sem nenhuma alteração fonológica, como podemos perceber nas

ocorrências (38), retiradas dos inquéritos do Projeto NURC.

(41) a. realmente deve ser uma delícia ter uma família gran/bem grande com bastante gente... (NURC/SP). b. é... é preciso marcar uma reunião pra gravar com essa gente (NURC/REC). c. Nós estamos numa interpretação, está claro até aí? Essa gente tá quieta por quê? (NURC/POA). (GONÇALVES E CARVALHO, 2007, p. 81).

O que percebemos, portanto, é que a alteração se dá em virtude da forma

gramaticalizada ter tornado cristalizada a relação determinante-determinado, não

mais podendo ser analisada como a junção de um artigo a um substantivo, não

aceitando, entre eles, nenhum modificador. Dessa forma, passa a coexistir, num

mesmo recorte de tempo, tanto a “forma-fonte” como apresentada em (41) quanto à

forma gramaticalizada, como apresentada em (40).

O princípio da especialização rege que, quando acontece o processo de

gramaticalização, a variedade de escolhas diminui, e as formas selecionadas

assumem uma dimensão maior e mais abrangente no que se refere ao seu

significado. Como consequência, aumenta-se a frequência de uso da forma, cujo

processo de gramaticalização esteja mais avançado. Isso pode ser constatado na

preferência pela forma a gente em detrimento do pronome nós no PB.

50

Quanto ao princípio da persistência, Hopper (1991) afirma que esse ocorre

quando a nova forma permanece com traços do significado da forma original,

podendo, pois, pressupor a ideia de restrição no uso da forma gramaticalizada em

termos sintáticos. No caso do substantivo gente, a ideia de coletividade é retirada na

forma gramaticalizada a gente, contribuindo, portanto, para sua referência

indeterminadora. Entretanto, mesmo mudando e assumindo novos significados,

alguns resquícios de um uso anterior permanecem.

Em se tratando do princípio da descategorização, é postulada a ideia de que

este princípio refere-se à redução ou perda do estatuto categorial dos itens em

processo de gramaticalização. Podemos citar como exemplo os nomes que deixam

de identificar os participantes no discurso, bem como os verbos, de reproduzir novos

eventos. Dito de outra maneira, a forma em processo de gramaticalização tende a

perder ou neutralizar os traços morfológicos e os direitos sintáticos, caracterizadores

das categorias plenas como nomes e verbos, passando a assumir atributos próprios

de categorias secundárias – mais gramaticalizadas – como advérbios, pronomes,

preposições, entre outros. Isso pode ser comprovado nos procedimentos

morfossintáticos que afetam o substantivo gente, caso que não acontece com a

forma gramaticalizada a gente.

51

O CLÍTICO SE: DA ABORDAGEM TRADICIONAL À LINGUÍSTICA

52

2 O CLÍTICO SE: DA ABORDAGEM TRADICIONAL À LINGUÍSTICA

Neste capítulo, procuramos discorrer sobre as estruturas verbais

acompanhadas do clítico se, especialmente, no que diz respeito ao comportamento

desse clítico no processo de concordância verbal. Para tanto, apresentamos a

visão tradicional da gramática sob os pontos de vista de Said Ali ([1908]2008),

Rocha Lima (1985/1999), bem como o de Almeida (1999). Além de apresentar o

tratamento do clítico se sob a ótica tradicional da gramática, demonstramos seu uso

também na perspectiva linguística, do ponto de vista de Ladeira (1986), Scherre

(2005), Perini (2010), Castilho (2010), Oliveira (2010).

2.1 Said Ali ([1908] 2008)

No que se refere ao tratamento dado à clítico se, tida como apassivadora,

Said Ali ([1908] 2008) escreve um capítulo inteiro no livro Dificuldades da língua

portuguesa, sobre o assunto, defendendo a tese de que as orações em análise são

de valor ativo, e o se substitui o sujeito, indicando-lhe a indeterminação.

A ideia de apassivamento por meio desse pronome, segundo ele, é

contrariada pelo uso no dia a dia, pois as duas formas não se substituem de forma

recíproca. Nesse sentido, ele pergunta:

Como se devem analisar estas orações de português castiço: compra-se o palácio, morre-se de fome? Decerto não posso admitir como sujeito da primeira frase o palácio, quando na segunda brigaria com a gramática o sujeito de fome, forçando-me a uma série de subterfúgios. A incongruência seria flagrante. (SAID ALI, 2008, p.105).

Seguindo o pensamento de Said Ali, o pronome se ocuparia a posição de

sujeito, caso fizéssemos abstração da gramática e procedêssemos a uma análise

psicológica. Em nossa consciência, perpassa a ideia, sugerida pelo pronome se, de

que “alguém compra”, de que “alguém morre”, entretanto, desconhecemos ou

preferimos omitir informações a seu respeito. Em nota, o autor acrescenta que “[...]

essa função psicológica de agente indeterminado é inegável na língua portuguesa,

onde empregamos o pronome se junto de todo e qualquer verbo” Said Ali (2008,

p.106); o que não acontece em outros idiomas, como nas línguas eslavas, em que o

53

reflexivo unido ao verbo é empregado para indicar um foco, um estado, sem se

cogitar o causador.

Said Ali (2008) acrescenta que se podia admitir o se como sujeito, pondo fim

a uma longa discussão. No entanto, o português é classificado de forma tipológica

como uma língua SVO: essa ordem é aceita pela maioria dos gramáticos como a

ordem direta. Nesse sentido, segundo essa, ordem o que vem depois do verbo é

objeto e não sujeito. Muitas vezes, o sentido das palavras se dá em virtude da

construção. Na frase, “Os japoneses derrotaram os Russos, a simples colocação

indica qual o sujeito e qual o objeto. Inverta-se a ordem, conservando-se as palavras

e obter-se-á o sentido contrário.” Said Ali (2008, p.108). Essa posição revela que a

ordem das palavras dentro da frase, em português, é altamente relevante para a

interpretação das funções que essas palavras exercem. Para o autor, não há

igualdade de forma nem de sentido nas sentenças (01a) Aluga-se esta casa e (01b)

Esta casa é alugada (p.115).

O autor sugere um meio bastante simples de se verificar sua hipótese.

“Coloque-se na frente de um prédio um escrito com a primeira das frases, na frente

de outro ponha-se o escrito contendo os dizeres esta casa é alugada” (p.115).

Certamente, os que pretendem alugar uma casa encaminham-se para uma única

casa, pressupondo a ideia de que a outra já se encontra ocupada.

Mediante o exposto, postulamos que Said Ali, quando trata da problemática

do clítico se, nega o caráter de "partícula apassivadora”. Dessa forma, aponta

incoerências na análise tradicional do se como apassivador, cuja concordância deve

acontecer. Ele ressalta: “Consequência natural da transformação do sujeito em

objeto é a desnecessidade de concordância; o verbo quer intransitivo, quer

transitivo, tenderá a ser usado uniformemente no singular, ainda quando o nome

esteja no plural” Said Ali (2008, p.111). O autor dá exemplos em idiomas como o

fracês, o italiano, o espanhol, para confirmar tal possibilidade.

Conforme Said Ali (1970), a concordância, como parecerá, à primeira vista,

não é uma necessidade determinada pela lógica. Repetir, num termo determinante

ou informativo, o gênero, número ou pessoa já marcados, no termo determinado de

que se fala, é ser redundante. Diante desse pensamento, poderíamos perguntar:

Por que a concordância destaca- se entre as preocupações com o ensino de língua

portuguesa? A essa pergunta, poderíamos dar como resposta: concordância verbal

54

é um mecanismo importante de expressividade, que ajuda a compor a maneira (o

estilo) de o falante se expressar.

Nesse sentido, tais como as demais regras da gramática, as de concordância

verbal devem ser conhecidas, já que são realizações a que o falante aspira, por

estarem incluídas no ideal linguístico da comunidade. A maneira de o

falante/escritor/escrevente se expressar pressupõe uma escolha e depende da

intenção do emissor, a qual é manifestada no discurso.

Embora a gramática normativa tenha seu lugar de destaque na sociedade, e a

ponto de seu ensino ainda ser privilegiado na escola, não podemos conceber, nos

dias atuais, uniformizar todos os falantes, em todas as situações. Todas as normas

linguísticas, todos os níveis de fala ou registros devem ser conhecidos pelos

falantes, que deverão saber usá-los onde, quando e como convier. A língua é

dinâmica e incorpora, embora de forma lenta, na modalidade escrita, as

“regularidades” da modalidade oral, as quais, com o passar do tempo, são

legitimadas pelos gramáticos. Isso vem acontecendo com a concordância verbal que

envolve o clítico se, fenômeno que Said Ali ([1908] 2008) trata diferente de Almeida

(1999) e Rocha Lima ([1985] 1999).

2.2 Rocha Lima ([1985]1999)

Rocha Lima ([1985]1999) aborda o assunto concordância verbal partindo dos

casos gerais. Segundo ele, as regras gerais de concordância se reduzem a duas:

1 Quando há somente um núcleo – sujeito simples – o verbo concorda com ele em

número e pessoa:

(02) “Eu ouço o canto do Brasil.” (Ronaldo de Carvalho)

(03) “Os caboclos levantaram-se em alvoroço.” (Coelho Neto)

2 Quando há mais de um núcleo – sujeito composto – o verbo vai para o plural e

para a pessoa que tiver primazia, na escala seguinte:

A) A 1ª pessoa prefere todas as demais;

B) Quando não figura a 1ª pessoa, a precedência cabe à 2ª;

C) Quando uma e outra estão ausentes, o verbo assume a forma da 3ª pessoa.

Vejamos alguns exemplos:

55

(04) “Eu e o papai querermos aproveitá-lo, para conversar” (Cyro dos Anjos)

(05) “Roberto e o milagreiro chegaram logo.” (Raquel e Queiroz)

No que diz respeito ao item 2B, o autor adverte que é difícil “documentar a

sintaxe canônica (isto é: tu + ele ou eles = vós) na linguagem contemporânea do

Brasil” (ROCHA LIMA 1985, p.354).

Outro caso apontado por Rocha Lima, não na edição em foco, mas na de

1999, o que pode pressupor a ideia de evolução nos seus estudos, é a concordância

do verbo acompanhado da partícula “se”, aspecto que, segundo ele, merece uma

atenção especial. O autor nos dá como exemplo: (06) Venderam-se todos os

bilhetes (p.390). Neste caso, “Este substantivo, representado (geralmente) por um

ser inanimado, é sujeito da frase –, razão pela qual com ele há de concordar o

verbo” (p.391). O autor evidencia que “A índole da língua portuguesa inclina para a

posposição desse sujeito ao verbo; aponta-se menos comum sua presença antes do

verbo, assim como vir ele representado por um ser animado” (p.391).

No exemplo citado, típico da língua padrão, é exigido que o verbo concorde

com o termo tradicionalmente apontado como sujeito “todos os bilhetes”, ou seja,

verbo na dita voz passiva pronominal (formada com o verbo acompanhado do

pronome oblíquo se, chamado, no caso, pronome apassivador).

Na verdade, nosso interesse em trazer para discussão o uso dos verbos

vender e alugar + clítico se, nesta pesquisa, se deve ao fato de esse clítico fazer

parte da estrutura gramatical do português denominada, tradicionalmente, como voz

passiva sintética, isto é, uma forma cujo sistema gramatical dispõe para representar

um processo em que é mencionado o paciente e omitido o agente, empregada em

anúncios classificados para oferta de produtos e serviços, como exemplo, “aluga-se

casas”. Nesse sentido, além das questões de ordem formal, procuramos levar em

conta o modo de produção desses textos, correlacionando-se as propriedades

funcionais dessa estrutura, ou seja, seu emprego em anúncios classificados

encontrados no jornal impresso Gazeta do Oeste.

2.3 Almeida (1999)

Almeida (1999) aborda o conceito de concordância verbal de forma

semelhante a Rocha Lima. Manifesta seu pensamento, começando a discorrer sobre

o sujeito simples. Para tanto, parte de uma “Regra Geral”, assegurando que o verbo

56

deve concordar com o sujeito em número e pessoa. Isso pressupõe a ideia de que o

verbo deverá estar na mesma pessoa e número que o sujeito estiver. Ele assegura

que “[...] é o verbo que deve concordar com o sujeito e não o sujeito concordar com

o verbo, porque o verbo é que depende do sujeito e não o contrário”. (ALMEIDA,

1999, p. 441).

Ex.: (07) “Eu quero Tu não sabes isso

1ª pessoa do singular 1ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular 2ª pessoa do singular

(08) Os meninos fugiram Vendem-se casas

3ª pess. pl. 3ª pess. pl 3ª pess. pl 3ª pess. pl

Em nota, o autor cita um exemplo. Vejamos: (09) “Ouvem-se de vozes”, cuja

preposição de traz ideia de partitivo, não impedindo, contudo, a concordância do

verbo com o sujeito. Além desses, o autor acrescenta exemplos, tais como: (10) Que

horas são? (É uma hora); (São duas horas); (Hoje são vinte); (Hoje são três); (Eram

treze de maio); (Eram perto das seis horas) (Cf. ALMEIDA, 1999).

Após tecer considerações sobre a concordância do sujeito simples – regra

geral –, Almeida (1999) apresenta “regras especiais” de concordância, as quais são

nomeadas da seguinte forma: coletivo geral; coletivo partitivo; palavra tomada

materialmente; preço, quantidade, porção; nome próprio plural; quais (interrogativo),

aqueles, quantos, alguns, nenhuns, muitos, poucos, seguidos de pronomes como

complemento; cada um; mais de um; quem; que (pronome relativo) e quanto; o que,

aquele que; um dos que; um que; isto de.

Chamamos atenção para o exemplo (11) “Vendem-se casas” sobre o qual

convidamos a refletir com Almeida (1999), quando, na mesma obra, trata da voz

passiva mediante o clítico se, denominado de pronome apassivador. Neste caso,

“[...] o sujeito é ente inanimado, conseguintemente incapaz de praticar a ação verbal,

ou quando o sentido da oração mostra que o sujeito é apenas paciente” (p.210). É

comum, portanto, que o sujeito venha posposto ao verbo, não sendo frequente a

forma contrária: sujeito + verbo.

O autor explicita o fenômeno com um exemplo similar, cujo verbo é alugar:

“Alugam-se casas”. Ele assevera que a palavra casas não pratica a ação verbal,

mas recebe essa ação, pressupondo ideia de que casas é o paciente da ação

verbal, não é o agente. Dessa forma, o verbo se constitui como passivo, cuja

57

passividade acontece em virtude da presença do pronome se. A sentença (12)

“Alugam-se casas” é, segundo o autor, semelhante a “Casas são alugadas”. O

sujeito de ambas as sentenças é casas que, devido estar no plural, exige igualmente

o plural para o verbo; falar “Aluga-se casas” considera-se um erro, tal qual falar

“Casas é alugada”.

Almeida ressalta que se constituem, consequentemente, erros inomináveis

construções como: (13) “Aluga-se livros usados”; (14) “Conserta-se relógios”; (15)

“Reforma-se chapéus”. Tal pensamento pressupõe a ideia de que o falante deve

conhecer (e usar) bem essas “regras”. Não dispor dessa competência “gramatical”

pode torná-lo alvo de preconceito linguístico.

Apesar de essa ser apenas uma amostragem do tratamento dado à

concordância verbal pelos gramáticos, já é suficiente para pressupor que ponto de

vista os gramáticos defendem (o tradicional) – o de que ainda existe passiva

sintética no português brasileiro. Claro que existem exceções como Said Ali ([1908]

2008), conforme já apresentamos, nesta pesquisa, que já considerava aspectos

funcionais quando analisava a língua, expressando sua convicção de que a estrutura

passiva sintética não equivalia à passiva analítica. Para ele, essa estrutura estava

morta, sobrevivendo apenas no mundo fictício. Isso nos faz questionar esse

fenômeno quando observamos os usos, cujas construções não correspondem às

explicações dos gramáticos normativos. No item seguinte, serão apresentadas

observações em que contrapomos a visão tradicional com a perspectiva linguística

leva conta outros aspectos além dos formais.

É curioso observar o texto inicial com que Almeida aborda o estudo do clítico

“se”. Assim discorre o autor: “Se ponto existe escabroso em português, em que

tombam com muita frequência os descurados do nosso idioma, é este do pronome

se. Pode esse pronome exercer diversas funções na oração [...]” (ALMEIDA, 1999,

p. 214).

Vejamos, agora, as várias funções que o pronome "se" pode desempenhar

segundo Almeida (1999):

1) Reflexibilidade pronunciada

a) reflexibilidade de ação é a primeira função de se. Nela, o sujeito tanto é agente

quanto recipiente da ação verbal. Geralmente o pronome “se” complementa verbo

58

transitivo direto; ambos os termos: verbo e pronome são reflexivos. Com verbos, a

reflexibilidade é pronunciada, visto que a ação necessita atingir um objeto, ou seja, o

próprio sujeito. Outros pronomes oblíquos átonos – me, te, nos, vos - também

podem ser reflexivos: “eu me firo” – “Tu te feres” – “Nós nos ferimos” – “Vós vos

feríeis”.

b) Variante: além da função apresentada, o se tem valor reflexivo em construções

como a seguinte: (16a) “Ele se arroga o direito” – tal função é diferente da anterior.

Assim, o objeto direto é “o direito”. O se, por sua vez, passa a exercer agora a

função classificada como dativa, ou seja, de objeto indireto. Desse modo, teríamos

como oração equivalente:

(16b) Ele arroga o direito a si (= para si)

v. transitivo obj. direto obj. indireto

O autor nos adverte, entretanto, para o fato de a ação verbal ter “caráter

reflexo apreciável”, pressupondo a imposição de um cuidado: não poder dizer: (17)

“Ele se comprou uma casa”; (18) “Ele se abriu uma conta no banco”; (19) “Eu me

construí um prédio”; (20) “Nós nos arranjamos um lugar”; (21) “Vós devereis

reservar-vos uma cadeira no teatro”; (22) “Tu te traçaste boas normas de vida”.

Essas construções não têm validade na língua portuguesa.

O uso do se com função dativa é restrito a alguns verbos, cujos casos já são

usuais e consagrados, como: reservar-se, dar-se pressa, dar-se importância, dar-se

ares de importante, atribuir-se importância, propor-se a fazer, propor-se a esclarecer,

impor-se o dever.

2) Reflexibilidade atenuada

a) a reflexibilidade dos verbos pronominais acidentais – verbos transitivos diretos,

acompanhados do pronome se, cuja função é indicar reflexibilidade – é muito mais

pronunciada do que a dos pronominais essenciais – verbos que sempre estão

acompanhados de pronome oblíquo. Isso pressupõe afirmar que, com os

pronominais – poucos em nossa língua – queixar-se, arrepender-se, orgulhar-se,

59

etc., o se perde o valor real de objeto direto, função que passa a ser exercida de

maneira aparente, fictícia.

b) variante: Há uma aproximação entre os verbos pronominais essenciais e os

verbos intransitivos, em que a ação expressa não pode passar para um objeto,

razão pela qual certos verbos intransitivos podem vir acompanhados do reflexivo se,

indicando, desse modo, reflexibilidade atenuada de ação. Isso mostra, de certa

maneira, espontaneidade de ação por parte do sujeito (Cf. ALMEIDA, 1999).

É diferente, portanto, dizer: (23) “Ele morre de tristeza”, (24) “Ele se morre de

tristeza”. No exemplo (24), a palavra se indica que o sujeito morre de tristeza de

forma espontânea, ou seja, por conta própria. O exemplo (23), por sua vez, indica

contrariedade por parte do sujeito. (25) “Ele se foi” é outro exemplo. Construções

como essas, entretanto, são raramente usadas em nossas interações diárias.

3) Reciprocidade

Essa função pode ser explicada a partir do seguinte exemplo: (26) “Pedro e

Paulo feriram-se”, em que o emprego da palavra “se” proporciona a presença de três

sentidos para oração. O sentido se dá pela passividade do verbo, o que equivale a

dizer a oração dessa forma: (27) “Pedro e Paulo foram feridos”. O segundo sentido é

atribuído quando o verbo for considerado reflexivo, cuja oração passa a significar:

(28) “Pedro e Paulo se feriram a si próprios”. O terceiro sentido, por sua vez,

acontece quando a frase é interpretada, levando em conta a reciprocidade da ação

do pronome, fazendo a frase significar: Pedro feriu a Paulo e Paulo feriu a Pedro, ou

seja, (29) “Pedro e Paulo feriram-se reciprocamente”. Aquele que não conhecer as

funções do pronome se pode ser induzido a não compreender tais construções. Para

evitar sentido ambíguo, o ideal, nesses casos, é empregar expressões como

“reciprocamente, um ao outro, uns aos outros, nas orações em que o se indica

reciprocidade, empregar a si próprio nos casos de reflexibilidade de ação, e deixar a

oração sem nenhum especificativo quando de sentido passivo claro” (ALMEIDA,

1999, p.211).

60

4) Passividade

Quando se trata do se partícula apassivadora, Almeida (1999) aponta que

“erros” como os que se seguem não devem ser cometidos. Vejamos: “Prevê-se

muitas coisas” em vez de:

(30) “Prevêem-se muitas coisas”

Verbo plural sujeito plural

Quando, além de apresentarem verbo principal, as orações dispuserem de

mais infinitivo, a função de apassivador do se, bem como a concordância verbal são

objetos de cuidado. Vejamos: (31) “Devem-se transformar as leis” e “Deve-se

transformar as leis”. “Há quem diga estarem ambas as orações certas, afirmando

que na primeira o sujeito é leis, (As leis devem ser respeitadas) e que na segunda o

sujeito é o infinitivo, como se esta fosse a sentença: “Transformar as leis é

necessário” (ALMEIDA, 1999, p.216).

O autor observa que a primeira construção parece apresentar maior clareza e

segurança gramatical que a outra, já que a segunda pode pressupor uma

interpretação do se como sujeito, assim como acontece com o on francês.

Entretanto, notamos evidência do infinitivo sujeito em orações como:

(32) “Procura-se anular as nomeações

(verbo passivo) sujeito

Quanto à sentença – (31) “Devem-se transformar as leis” – temos capacidade

para, resolver, claramente, a sentença em: “As leis devem ser transformadas”. Não

podemos fazer com a segunda construção, da mesma forma, já que não se pode

desdobrá-la assim: “Nomeações procurem ser anuladas”, haja vista tais nomeações

não poderem praticar a ação de procurar.

Geralmente, quando os verbos indicam intenções, declaração de vontade, o

sujeito é o infinitivo: intenta-se fazer grandes coisas”; (33) “Pretende-se reerguer as

61

colunas”; (34) “Proíbe-se afixar cartazes” (35) “Quer-se demolir esses muros”; (36)

“Não se conseguiu obter informações”.

Em se tratando dos verbos “ver” e “ouvir”, ou os verbos principais ou o

infinitivo podem concordar com o sujeito. Vejamos: (37) “Viram-se relampaguear as

armas” ou “Viu-se relampaguearem as armas” (p.217). Mais exemplos: (38) “Ouvem-

se os sinos tocar a rebate”; (39) “Viu-se ao longe resplandecerem as cumeadas das

montanhas” (p.217). Em sentenças como: (40) “Sabe-se que ele é falso”, o se

permanece sendo “apassivante”, como se a construção estivesse escrita da seguinte

forma:

(41) “Que ele é falso é sabido”

Sujeito oracional verbo passivo

Ampliando a função do se apassivador, Almeida (1999), em notas, acrescenta

que, quando o sujeito é formado por ente capaz de desempenhar ações, o pronome

perde seu valor passivo, assumindo, pois, força reflexiva como nessa construção:

(42) “Essas pessoas se vendem caro”, podendo ser, pois, construções ambíguas,

conforme já foi mencionado quando tratávamos da reflexibilidade pronunciada.

Embora de forma rara, as formas oblíquas me, te, se, nos e vos, podem também

exercer função apassivante. É o caso de construções como: (43) “Eu me batizei” (=

fui batizado); (44) “Tu te chamas Antonio” (= Tu és chamado Antonio) (p.217).

5) Impessoalidade

a) A voz passiva era empregada, no latim, tanto com verbos intransitivos

quanto com os transitivos indiretos a fim de indicar impessoalidade, ou seja,

indeterminar o sujeito do verbo, cuja forma seria unicamente o singular. “É

passagem muito conhecida esta de Virgílio: “Sic itur ad Astra” – que forçosamente

se traduz por “Assim se vai aos céus”, com o auxílio do pronome se, indeterminante

do sujeito; é construção passiva impessoal; nela há um sujeito passivo sem um

sujeito determinado” (ALMEIDA, 1999, p.218)

Seguem outros exemplos com verbos intransitivos e verbos transitivos

indiretos, cujo emprego do se indica indeterminação do sujeito.

Verbos intransitivos: (45) “No rio de Janeiro passeia-se muito” – “Quanto mais

se sobe mais se desce” (p. 218).

62

Verbos transitivos indiretos (46) “Precisa-se de costureiras”; (47) “Trata-se de

caso incurável”; (48) “Entretanto, procedeu-se ao inventário dos objetos” (p. 218).

b) Variante: o se sugere ação impessoal com os próprios verbos transitivos

diretos. Vejamos os exemplos: (49) “Louva-se aos juízes” – (50) “Previne-se às

pessoas presentes” (p.218). Nas sentenças, juízes e pessoas presentes funcionam

como objetos indiretos, devido à presença da preposição. Caso tais preposições não

fizessem parte da constituição das frases, as palavras grifadas passariam, portanto,

a funcionar como sujeitos, cuja concordância seria indispensável: “Louvam-se os

juízes”; “Previnem-se às pessoas presentes”. Isso, no entanto, mudaria o sentido

dessas expressões, passando a ter, portanto, força reflexiva ou passiva

Almeida (1999) adverte-nos que são necessárias duas condições para que os

verbos transitivos sejam objetos de impessoalidade, a saber: a expressão deve ter

sentido próprio, distinto da construção passivo; o objeto direto deve ser constituído

de pessoa.

Esse pensamento pressupõe a ideias de que a primeira condição tem

justificativa em si própria. A segunda justifica pelo fato de, quando se trata de coisas,

não há perigo de ambiguidade, havendo, pois, a imposição da construção pessoal.

Construções como: (51) “É muito justo que se respeite aos dotes”, devem ser

construídas de forma pessoal: “É muito justo que se respeitem os dotes” (p. 219).

v. passivo sujeito

Além das funções citadas, Almeida (1999) ainda apresenta outra “função”,

denominada: função francesa que questiona sobre o (não) uso do pronome se

combinando com o pronome oblíquo o. No entanto, tal construção foi usada,

tornando-se necessária a concordância do verbo. O próprio autor mostra o porquê

de tal construção acontecer. Nas palavras dele, isso acontece

Porque o se, em português, não exerce função de sujeito (função subjetiva); a combinação se o e a não concordância verbal nas construções passivas pessoais dariam ao se função de sujeito, como se em lugar do se estivesse escrito alguém, a gente, certa pessoa, tornando-se forçada esta analise [...] (ALMEIDA, 1999, p.219)

O autor exemplifica assim:

63

(52) Sempre se o vê Louva- se os juízes

Sujeito de vê v. tr. dir. v. tr. dir. suj.de obj. dir. de

Obj. dir. de vê louva louva

O autor assegura que tais construções com suas respectivas análises, por um

lado, vão de encontro à tradição da língua, e, por outro, o próprio étimo – lat. se –

do nosso se não as justifica, uma vez que não há em latim a forma reta – caso

nominativo, índice da função subjetiva – de tal pronome. Essas construções

constituem “[...] puro francesismos; nelas o se está exercendo a função do on

francês (palavra que nessa língua exerce a função de sujeito [...]” Almeida (1999, p.

220), caso que não convém tratar em detalhes aqui.

Para concluir o estudo das funções do se, o autor apresenta sua visão sobre

as variantes reflexivas desse pronome, a saber: si, consigo. Como se trata de

variantes reflexivas tais formas oblíquas devem se referir ao verbo.

(53) Pedro fala consigo

Suj. de fala pronome reflexivo (refere-se ao sujeito)

(54) Pedro e Paulo discutiram o caso entre si

Suj. de discutiram reflexivo (refere-se ao sujeito) (p. 222).

Dessa forma, construções como as seguintes: (55) “Vejo em si uma ótima

pessoa” (p. 222); (56) “Onde poderei encontrar-me consigo” (p. 222) são

incorretas, já que se referem à pessoa com quem se fala e não ao sujeito,

contrariando, assim, a natureza reflexiva desses pronomes que, por sua vez, devem

se referir sempre ao sujeito do verbo. Nesses casos, devemos dizer: “Vejo no senhor

(ou em você, em V. Exª, etc.)”; “Onde poderei encontrar-me com o senhor” (com V.

Exª, com você, etc.) (p. 222).

64

Resumindo as funções do pronome se, segundo Almeida (1999):

1 – Reflexibilidade pronunciada Ele se feriu

Ele se arroga o direito

2 – Reflexibilidade atenuada Ele se arrependeu

Ele se foi embora

3 – Reciprocidade – Ele e ela amam-se ardorosamente

4 – Passividade – Alugam-se casas

5 – Impessoalidade Assim se vai ao céu

Louva-se aos juízes

É-se inclinado a acreditar – Está-se bem aqui

Apesar de apresentar todas as funções tratadas por Almeida 1999 quanto ao

clítico se, nos restringimos a usar, nas análises, questões relativas à passividade, já

que nosso objeto de estudo envolve o uso desse clítico junto aos verbos vender e

alugar em anúncios classificados de jornal impresso. A análise contempla

propriedades funcionais dessa estrutura. Nesse sentido, ressaltamos a importância

de refletir sobre a língua em situações de usos em que o propósito comunicativo é

que determina a organização das estruturas gramaticais, contrariando, portanto o

rigor terminológico utilizado pelos gramáticos normativos.

2.4 A concordância verbal: verbo + clítico se à luz da linguística

Na abordagem tradicional da gramática, conforme foi visto, a concordância

verbal, quando envolve o clítico se, pode ser assim sintetizada: verbo + se +

complemento direto plural (o quê? quem?) > verbo plural; verbo agregado ao

pronome se pedindo complemento indireto (preposição) ou oracional (que), deve-se

sempre flexionar o verbo no singular. No entanto, quando levamos em conta a língua

em uso, o fato não é tão simples como sugerem os gramáticos normativos. Podemos

constatar tais afirmações quando analisamos a concordância verbal sob a ótica da

65

linguística. Para tanto, tomamos por base o pensamento de Ladeira (1986); Scherre

(2005); Oliveira (2010) e Castilho (2010).

2.4.1 Ladeira (1986)

Ladeira (1986) põe em discussão as funções do SE, partindo de um

questionamento: “SE indeterminação do sujeito ou SE sujeito?” e, para obter uma

resposta a esse questionamento, o autor retoma as origens dos estudos que

envolvem esse pronome.

Nesse sentido, afirma que nossas gramáticas se referem ao “SE sujeito”

apenas no caso de acusativo com infinitivo (ACI). Retomamos aqui dois exemplos

do autor, os quais renumeramos. Essa numeração, porém, serve para fins de

leitura/compreensão/retomada.

(57) Pedro deixou-se ficar ao relento

(58) O herói fez-se imolar em praça pública (LADEIRA, 1986, p.45).

O pronome ao nível do nominativo – sujeito – não existia no latim, e os SEs

pronomes chegados ao português possuem duas origens etimológicas: um continua

tal qual o SE acusativo; o outro, cuja função desempenhada é de ‘objetos indireto’,

evoluiu de “sibi” (dativo), chegando ao SI e SE. Vejamos:

(59) mihi> mi> mim e me; tibi> ti e te (LADEIRA, 1986, p.45).

Enquanto a forma sui – genitivo – nada produziu em português e sumiu, o se

ablativo (seguido do cum) tornou-se sigo por meio da sonorização do (K) quando

posto de forma intervocálica como em: (60) “me+cum> migo, te + cum> tigo; mas:

nos+ cum> nosco, vos+cum> vosco e, posteriormente, esquecida a noção de que

sigo (como migo, tigo, nosco e vosco)” contendo cum, tornou-se a usar cum+sigo,

cuja forma consigo, em sentido diacrônico, é redundante como em (61) comigo,

contigo, conosco e convosco. (Cf. LADEIRA, 1986).

O autor assegura que nossas gramáticas, por sua vez, falam em SE índice de

indeterminação de sujeito com:

a) Verbo intransitivo

(62) Vive-se bem em Fortaleza

(63) É preciso que se espere um pouco.

b) Verbo transitivo indireto

(64) Necessita-se de dinheiro emprestado.

66

(65) Precisa-se de dinheiro emprestado.

c) Verbo de ligação

(66) Não se é Ministro; está-se ministro.

(67) É preciso que se fique atento.

Ladeira acrescenta a estes ainda:

d) Verbo transitivo direto

(68) Procura-se dinheiro emprestado. (p.45- 46)

Nesse caso, o SE – com verbo transitivo direto – que as gramáticas

tradicionais chamam de pronome apassivador (estaria na ‘voz passiva sintética’, e o

sintagma posto seria chamado de sujeito), Ladeira (1986) admite chamá-lo de índice

de indeterminação do sujeito, já que, para ele, não existe passiva sintética em

português.

Ao contrário, no Latim, existia a voz passiva sintética, ou seja, “[...] a ideia de

passiva era ‘sintetizada’ num único vocábulo mórfico, no infectum. Já no perfetum, a

passiva era analítica, isto é, a noção de ‘passiva’ era dada em ‘separado’ através do

auxiliar” (LADEIRA, 1986, p.47).

Diante do ponto de vista exposto por Ladeira (1986), podemos postular que a

voz passiva sintética tal como a apresentada no latim, não existe em português. Isso

pressupõe a ideia de que se tal voz existisse seria outro tipo de voz passiva

sintética. Examinemos, pois, os dois grupos de frases proposto por Ladeira (1986, p.

47):

GRUPO 1 GRUPO 2

(69) Recauchutam-se pneus = [Pneus são recauchutados]?

(70) Consertam-se bicicletas = [Bicicletas são consertadas]?

(71) Cobrem-se botões = [Botões são cobertos]?

(72) Cosem-se camisas = [Camisas são cosidas]?

(73) Aluga-se esta casa = [Esta casa é alugada]?

O fato de termos “dois vocábulos mórficos” nas formas do primeiro grupo:

“recauchutam-se”, “consertam-se”, “cobrem-se”, “aluga-se” pressupõe não existir o

caso de síntese em português.

Por outro lado, não podemos admitir “pneus”, “bicicletas”, “botões” e

67

“camisas” como sujeito, porque seria um caso único, em português, cujo sujeito não

poderia ocupar a posição de sujeito.

(74) Pneus recauchutam-se

(75) Bicicletas consertam-se

(76) Botões cobrem-se

(77) Camisas cosem-se (LADEIRA, 1986, p 47).

Quando lemos a frase “Esta casa aluga-se”, somos induzidos à seguinte

interpretação: Esta casa é alugável. Observando os dois grupos de frases,

percebemos que não há correspondência semântica entre as formas do grupo 1 e

do grupo 2. Enquanto, no primeiro grupo, aparecem as construções (78)

“Recauchuta pneus”; (79) “Conserta bicicletas”; (80) “Cobre botões”; (81); “Cose

camisas”; (82) “Aluga esta casa”, sem a identificação de um agente; no segundo, há

um esclarecimento – posto entre colchetes – de que “[...] “pneus são

recauchutados” (e não consertados); “bicicletas são consertadas” (e não

recauchutadas); “botões são cobertos” (e não cosidos); “camisas são cosidas” (e

não cobertas); “esta casa é alugada (e não de minha propriedade)” (LADEIRA, 1986,

p 48).

Se quiséssemos colocar em destaque o ponto de vista, cujo indivíduo

exercesse a função de ‘recauchutar’, ‘consertar’, ‘cobrir’, ‘coser’ ou ‘alugar’

escolheríamos os dizeres do primeiro grupo. Os dizeres do segundo grupo, por sua

vez, se restringiriam a explicações. Em (01a) “Aluga-se esta casa”, por exemplo, se

posto na frente de uma casa que estivesse para alugar, faria sentido. Sentido esse,

que não corresponderia a (01b) “Esta casa é alugada”. Pressupomos, na segunda

frase, a ideia de que o morador da casa não é, pois, o respectivo dono.

Assim, percebemos que, no primeiro grupo, não há voz passiva, já que os

verbos apresentam-se de forma ativa, cujo agente – +humano – pratica a ação de

“recauchutar”, “consertar”, “cobrir”, “coser”, “alugar”. Os termos “pneus”, “bicicletas”,

“botões”, “camisas” e “esta casa” são, portanto, analisados como objetos diretos.

Segundo Said Ali (2008), o verbo flexiona no plural para concordar com o objeto

“pelo contágio”. Assim, não há distinção quando se analisa o SE em:

(83) Precisa-se de dinheiro emprestado.

(84) Procura-se dinheiro emprestado.

Pressupomos, nos exemplos dados, a presença de um agente indefinido, em

que os sentidos dos termos “precisando” e “procurando”, são, respectivamente,

68

objeto indireto no primeiro e objeto direto no segundo.

O mesmo não pode se dá com agente [-humano] como em:

(85) Late-se muito em Fortaleza.

(86) Rumina-se o alimento (LADEIRA, 1986, p 48).

Ladeira (1986) acrescenta que com as outras manifestações do SE – reflexivo

como sujeito, reflexivo como objeto direto, recíproco como objeto direto, expletivo,

fossilizado – não haveria problema. O autor se questiona sobre a possibilidade

desse SE, inderminação do sujeito, poder ser sujeito, como acontece com os

indefinidos. Por exemplo:

(87) Devagar alguém vai ao longe

(88) Devagar se vai ao longe

(89) Devagar se recauchutam pneus (p.49).

No entanto, o autor adverte que o SE tem características distintas dos

pronomes indefinidos sob alguns aspectos.

Estes “indefinem” outros termos da oração, além do sujeito, como em:

(90) Vi alguém debaixo da cama. [objeto direto]

(91) Dou muita importância a alguém... [objeto indireto]

(92) Você não é ninguém! [predicativo]

(93) Não tenho medo de ninguém... [complemento nominal]

(94) O receio da gente era a polícia chegar. [adjunto adnominal]

(95) O trabalho foi feito por você, pô... [agente da passiva] (LADEIRA, 2008,

p. 50).

O SE, por sua vez, não permite tal ocorrência:

(96) Vi se debaixo da cama.

(97) Dou muita importância a se.

Além do mais, enquanto os indefinidos alguém e ninguém são de terceira

pessoa, a gente contém, de forma forçosa, a primeira pessoa, não impedindo de

conter, também, a segunda e a terceira como em:

(98) A gente ‘dá um duro danado’ e vocês .... e eles nada fazem” (+1ª, -2ª; -

3ª)

(99) A gente podia ir, não acha? (+1ª, +2ª)

(100) A gente vai; você quer acompanhar-nos? (+1ª, -2ª; +3ª)

(101) Devagar a gente vai ao longe. (+1ª, +2ª; +3ª) (LADEIRA, 2008, p. 50-

51).

69

O SE, por sua vez, pode conter a primeira, a segunda ou a terceira pessoa,

não sendo obrigatório conter uma delas de forma específica como em:

(102) Precisa-se de operários (+1ª, -2ª; +3ª)

(103) Veja-se como o Otto Lara Rezende sofre... (+1ª, +2ª; -3ª)

(104) Ouviu-se o discurso. E daí? (+1ª, +2ª; +3ª)

(105) Ouviu-se o discurso. Enquanto você dormia. (+1ª, -2ª)

(106) Ouviu-se o discurso. Enquanto eu e tu dormíamos. (-1ª, -2ª; +3ª)

(LADEIRA, 2008, p. 51).

Mediante o que se apresenta, quando verbo está no imperativo a 1ª pessoa é

levada a fazer parte do enunciado verbal por meio do SE. A ausência do SE, por sua

vez, tende a a restringir o enunciado à segunda pessoa como em (107) “[...] Veja

como o Otto Lara Rezende sofre” e observe que com o verbo no imperativo, o SE...

“já em “Veja-se” e “Observe-se” vislumbramos respectivamente “vejamos” e

“observemos” [...]” (LADEIRA, 2008, p. 51).

Nesse sentido, pressupomos a ideia de que o SE poderia indicar uma única

pessoa somente quando as demais fossem excluídas do contexto. Como em (106)

“Ouviu-se o discurso. Enquanto eu e tu dormíamos” (p.51).

Disso decorre compreender mal construídas frases como:

(108) ?Construíram-se as muralhas da China dois séculos antes de Cristo.

(109) ?Assassinou-se o Presidente ontem à noite. (p.51).

Na primeira frase, não poderiam fazer parte do “agente” nem a primeira

pessoa nem a segunda, uma vez que não estavam próximas no tempo; na segunda

seria inconveniente à primeira pessoa o seu comprometimento, preferindo-se, pois,

as seguintes construções:

(110) As muralhas da China foram construídas dois séculos antes de Cristo.

(111) O Presidente foi assassinado ontem à noite. (p.51).

Em textos, cuja construção há a presença da 1ª pessoa participando como

“agente”, cabe o uso do SE:

(112) No presente livro, estudam-se a botânica e a cultura de feijão-comum

[...] (LADEIRA, 2008, p. 58).

Os outros indefinidos coocorrem com SE “reflexivo/sujeito”, “reflexivo/objeto”,

“recíproco/objeto”, “expletivo”, “fossilizado”. Isso, porém, não é possível ocorrer com

o SE, cujo enfoque é ressaltado por Ladeira (1986):

(113) Alguém deixou-se ficar ao relento. [reflexivo/sujeito],

70

(114) Ninguém se feriu [reflexivo/objeto]

(115) A gente se cumprimentou apenas. [recíproco/objeto]

(116) A gente se foi. [expletivo]

(117) Você se queixa da polícia, pô... [fossilizado]

Mas:

*Se se deixou ficar ao relento

Etc. (LADEIRA, 2008, p. 58).

Ladeira (1986, p.52) procura justificar as diferenças afirmando que, em

primeiro lugar, “[...] a impossibilidade de SE ocorrer como ‘outro termos da oração’

se prende a sua distribuição em relação aos outros pronomes oblíquos – o (s), a(s),

lhe(s) –, cabendo-lhe, no caso, apenas a função de reflexivo” como em:

(118) Ele se viu debaixo da cama.

(119) Ele se dá muita importância (p.52)

Em segundo lugar, por apresentarem “pessoas” diferentes de alguém e

ninguém, por um lado, ou a gente, por exemplo, por outro, não afasta do grupo

heterogêneo dos indefinidos.

E, por último, quando não ocorre com outro SE seria explicado pela não ocorrência,

na frase, do mesmo vocábulo de classe gramatical idêntica, mesmo não sendo co-

referente, como em:

(120) O herói deixou o herói imolar-se em praça pública.

(121) Pedro feriu Pedro. (p. 58).

O autor chega, pois, à conclusão de que o SE deve ser entendido como

sujeito “formalmente expresso” na oração, não sendo necessário esclarecer sobre a

identidade do agente, assim como acontece com alguém, ninguém e a gente –

“indicadores materiais” de um agente não definido.

2.4.2 Scherre (2005)

O pronome "se", sob a perspectiva normativa de gramática tem, entre outras,

a função de pronome apassivador. Nessa função, liga-se a verbos transitivos,

indicando que o sujeito é paciente. Dessa forma, o verbo deve concordar

normalmente com o sujeito, certo? Levando-se em conta a língua em uso,

atualmente, observamos que essa “verdade” está sendo questionada. A

concordância verbal, em orações que usam o “dito” pronome apassivador se,

71

geralmente, provoca dúvidas. Dúvidas essas que estão provocando variações

(regularidades) nas formas de usar tais pronomes. Assim sendo, trazemos aqui

textos retirados do Jornal português Diário de Notícias conforme Scherre (2005),

cujas construções podem ser conferidas em (10) e (11):

(122) VENDE-SE

Magníficas instalações

Loja com armazém

(p.54, coluna1)

(123) ALUGA-SE

ESCRITÓRIOS

LARANJEIRAS

Área até 150 M2.

(p. 8c-C, coluna 4) (SCHERRE, 2005, p. 86).

Nas construções (122) e (123), conforme a visão tradicional de gramática,

“Magníficas instalações Lojas com armazém” é sujeito (paciente) do verbo vender e

“Escritórios Laranjeiras” é sujeito (paciente) do verbo alugar. Portanto, os sujeitos

(Magníficas instalações Lojas com armazém e Escritórios Laranjeiras) devem

concordar com os verbos vendem-se e alugam-se. Assim, o correto seria dizer

como em (123) e (124):

(123) VENDEM-SE

Magníficas instalações

Loja com armazém

(p.54, coluna1)

(124) ALUGAM-SE

ESCRITÓRIOS

LARANJEIRAS

Área até 150 M2.

(p. 8c-C, coluna 4)

Levando em conta a língua em uso, é o correspondente aos exemplos 122 e

123 regularidade de construção gramatical equivalente ao uso espontâneo da

língua, cuja eficiência comunicativa é evidente. Essa forma já é aceita socialmente,

72

embora gramaticalmente continue inaceitável. Na gramática normativa, o que se

prescreve é que o verbo aí vá para o plural para concordar com seu sujeito, que é:

“Magníficas instalações Lojas com armazém” no caso de (123); “Escritórios

Laranjeiras” em (124). No entanto, a pesquisa de Carvalho (1990) apud Scherre

(2005, p.85) revela que, “[...] de Camões a Vinícius de Moraes, passando por Vieira,

João de Barros e Machado de Assis, a concordância variável nas construções

classificadas como passiva sintética se evidencia, indiscutivelmente”.

Scherre (2005) ilustra a variação na concordância, verbal com o sujeito

posposto, inovando a forma de abordar o processo a partir do título de sua obra:

doa-se lindos filhotes de poodle, o qual é justificado na própria obra. Segundo a

autora, “[...] a ausência de verbo plural em doa-se filhotes ocorre pelo fato de o

falante/escritor nativo não interpretar filhotes como sujeito e sim como objeto direto.

Pelo que se sabe até o momento, o objeto direto não rege a concordância em

português” (SHERRE, 2005, p.97). Assim, a autora julga inadequada a matéria do

Correio Brasiliense quando diz que não fazemos concordância em Vende-se carros

porque também não a fazemos em nós era ou em eles era, cujos pronomes, quando

anteposto ao verbo, são de forma inequívoca sujeitos das construções.

Naro e Scherre comprovam que características morfossintáticas e fonológicas

do português brasileiro, que são, muitas vezes, estigmatizadas, dando margem a

preconceito social, são, na verdade, heranças românicas e portuguesas arcaicas e

clássicas, e não modificações contemporâneas advindas das línguas africanas, ou

das línguas dos povos ameríndios. Não seriam também resultante de processos de

simplificação ou outras modificações naturais causadas pelo contato, durante o

processo da transmissão não tradicional da língua. (Cf. NARO e SCHERRE, 2007).

2.4.3 Castilho (2010)

A ideia de que o verbo concorda com o sujeito nem sempre se aplica, mesmo

pela elite bem formada no idioma. Conforme Castilho (2010) há variações. O autor

assegura que a questão das variações, nas regras de concordância verbal, depende

de um conjunto de fatores, a saber: saliência morfológica; proximidade/distância

entre o verbo e o sujeito; posição do sujeito na sentença; paralelismo linguístico;

nível social dos falantes.

73

Quando trata da saliência morfológica, Castilho (2010) assegura que uma

condição precisa para se observar a concordância é a gramática do falante dispor de

um verbo rico na marcação da pessoa. Fato esse que levou o verbo a simplificar sua

morfologia, cuja consequência, fará a concordância verbo-sujeito perder sua

importância nesse “canal”. Ao contrário, no PB escrito, a concordância ostenta maior

importância. Vejamos os exemplos dados por Castilho, os quais foram por nós

renumerados:

(125)

a) Esses meninos são muito desobedientes.

b) Eles fala que eles faz o que eles quer. (CASTILHO, 2010, p. 412).

A concordância que se observa em (125a) se faz em razão da distância entre

a forma singular é e a forma plural são. A ausência de concordância em (125b) se

faz em razão da proximidade mórfica entre as formas singular fala, faz e quer e as

formas falam, fazem querem. Naro (1981) apud Castilho (2010) afirma que tal

proximidade mórfica foi acentuada com a perda da nasalização na P6, cujas formas

têm mudado no seguinte ritmo:

C1: falam >fálaum > falu

C2: pedem > pédim > pédi

C3: partem > patim > párti

Os achados da pesquisa de Naro (1981) apontam características

ascendentes do português arcaico, cujo PB é uma sequência. Assim, “A perda da

nasalização identificou ele pede a eles perde, ele parte a eles parte, restando uma

pequena diferença entre ele fala e eles fálu. Tudo isso levou à perda da

concordância nessa pessoa gramatical” (CASTILHO, 2010, p.412).

No que se refere à proximidade/distância entre o verbo e o sujeito, pressupõe-

se a ideia de que quanto mais próximo o sujeito do verbo, há maior probabilidade de

ambos concordarem. Isso pode ser comprovado no exemplo (04):

(126)

a) As contas pesaram muito na minha decisão de fazer mais economia.

b) As contas deste ano, sobretudo depois que eu tive um pequeno

aumento salarial, pesou muito na minha decisão de fazer mais economia.

(CASTILHO, 2010, p.413).

74

Quanto à posição do sujeito na sentença, podemos pressupor que, quando

anteposto ao verbo, favorece a concordância. Entretanto, quando posposto,

desfavorece a concordância. Vejamos:

(127)

a) As roupas que você encomendou já chegaram, depois de muita espera.

b) Chegou, depois de muita espera, as roupas que você encomendou.

(CASTILHO, 2010, p.413).

Quando se trata do paralelismo linguístico, Castilho (2010) retoma o trabalho

de Scherre (1988). Essa fez análise do PB à luz do referido princípio e descobriu

que a presença de um sintagma verbal marcado no plural sugere novos sintagmas

verbais no plural. Isso significa marcas conduzem a marcas. O inverso acontece

quando há um sintagma verbal no singular, cuja tendência é levar a outros

sintagmas no singular – zeros conduzem a zeros – como pode se ver em:

(128) Marcas conduzem a marcas

a) Eles ficavam lá os dois, mas nunca se faláru assim.

b) Então essas pessoas me conhecem, também acham que eu sou uma

católica.

(129) Zeros conduzem a zeros

a) A – Então você acha que as pessoas do Rio, São Paulo, fala diferente

de você?

B – Fala, fala muito diferente.

a) Tem outros que fala demais e não e num diz nada que se aproveite.

(CASTILHO, 2010, p.413)

Em se tratando do nível social dos falantes, Castilho ressalta que pesquisas

acerca do PB já mostraram que há relação entre o poder econômico e domínio das

regras de concordância: as classes socioculturais mais altas dispõem de mais regras

do que as classes mais baixas. “[...] Mas daí sinonimizar nível baixo com ignorância

gramatical vai a uma enorme distância, pois no PB popular há uma sofisticada

relação entre concordar e não concordar o verbo com o sujeito na dependência da

complexidade maior ou menor da morfologia verbal” (CASTILHO, 2010, p.413),

como mostrado quando tratamos da saliência morfológica.

Tais regras podem, portanto, variar tanto entre os brasileiros cultos quanto

entre os brasileiros não escolarizados. O que vai tornar diferente essas classes é a

seleção do fator a ser utilizado para determinar a “regra”.

75

Quando se remete à voz passiva sintética no PB, Castilho (2010) afirma que

não existe (mais). Daí poder justificar o uso de construções como "Vende-se

picolés", "Conserta-se sapatos” "Aluga-se apartamentos” entre outras. Na verdade,

“Todos nós já sofremos com a celeuma do problema do pronome se apassivador (e

da voz passiva pronominal) em nossas gramáticas. Afinal, o verbo concorda ou não

concorda com o substantivo no plural [...]” (CASTILHO, 2010, p.481) em exemplos

como: “Vende-se casas com uma boa vista, só que à vista”?

O autor assegura que tais sofrimentos estão perto de acabar. Já é hora de

realizar estudos diacrônicos sobre o surgimento do se apassivador, como também

para saber o porquê do desaparecimento da concordância do verbo seguido de se e

desse pronome. Nada melhor que a diacronia para entender esses fatos. O latim

vulgar agregou novas funções ao se reflexivo, entre elas a de apassivador. Nessa

multiplicidade de funções, o se ocorria:

(1) Na indicação de reciprocidade, com verbos transitivos, como um inter se amant. (2) Na indicação da espontaneidade, com verbos intransitivos, sem sentido semelhante ao da voz média indo-europeia, como em vadit se unusquisque in ospitium suum, “cada um vai para o seu alojamento”. A voz média indo-europeia era usada para indicar que o sujeito praticava uma ação em seu próprio interesse, sem ser forçado a isso. No exemplo anterior, retirado da peregrinatio ad locca sancta, célebre fonte do latim vulgar se quer dizer que cada um se vai porque assim o quer. (3) Na indicação da passividade derivada da noção de espontaneidade: afinal, se alguém pratica uma ação de seu interesse, obviamente sofre as consequências. Segundo Maurer Jr., já na linguagem popular latina se encontrava esse se apassivador, em construções como Myrina, quae Sebastopolim se vacat, “Myrina, que se chama (= é chamada) Sebastopol”, em que se vocat está no singular da forma passiva vocatur (MAURER JR. (1915b) apud CASTILHO, 2010, p.481).

Nas situações sintáticas de (3), consuma-se o valor passivo da construção

enunciando-se o agente da ação. A passiva pronominal vinha seguida do

complemento agente, de fato, durante essa fase da língua, como se pode ver na

ilustre passagem de Os lusíadas: “Por ele o mar remoto navegamos/Que só dos

feios focas se navega”. Camões registrou a sintaxe que faltava, com suas focas

masculinas, consumando, portanto, a voz passiva pronominal.

Quando o pronome reflexivo se “[...] entra na dança dos outros pronomes

pessoais da P3, começa a alterar as propriedades examinadas nos itens 1 a 3 [...]”

(CASTILHO, 2010, p.481). Várias alterações surgiram, na estrutura da passiva

pronominal, a partir da perda de traços do pronome se, culminando com seu

76

desaparecimento – grau final da gramaticalização –, a saber: “(i) seu sentido passivo

ficou comprometido, surgindo em seu lugar o sentido de indeterminação do sujeito;

(ii) desapareceu a concordância do verbo com o sujeito passivo, agora reanalisado

como objeto direto [...]” (CASTILHO, 2010, p.481); essa concordância era importante

porque sugeria que flores (130) era o sujeito passivo da oração. Isso acontece nos

exemplos (130) e (131)

(130) “Vende-se flores”. (= alguém (ativo) vende flores)

(131) ”Cortou-se os meninos”. (= alguém (ativo) cortou os meninos)

No PB, encontramos situações como essa, cuja interpretação passiva –

concordância entre o verbo e o sintagma nominal plural – é mantida apenas no estilo

formal. Em outras palavras, o se passivo, cuja concordância é modificada pelas

pressões de uso da linguagem, está desaparecendo completamente. Emerge, pois,

a ideia de que, no PB, as ditas construções passivas sintéticas são ativas. Dessa

forma, o argumento interno é analisado como objeto direto. Já que a gramática não

gera sentenças, cujo objeto direto esteja anteposto, “[...] exceto nos casos de

topicalização, este fica sempre à esquerda do predicador e cabe ao sujeito ocupar a

posição à direita do mesmo, conforme ocorre nas passivas analíticas e nas

sentenças com “se” reflexivo” (MELO, 2010, p.3).

Defendemos, pois, o ponto de vista – discursivo – de Castilho por levar em

conta outros fatores além do formal, inclusive a inserção do falante, aspecto não

abordado na visão tradicional.

2.4.4. Oliveira (2010)

Quando lemos Oliveira (2010), temos a impressão de que este livro foi escrito

para cada um de nós professores de língua, já que o autor procura analisar

gramáticas normativas e livros teóricos sobre o ensino de português e de gramática

a fim de descobrir o que ainda não foi dito aos professores de português, ou seja,

ele procura diminuir a distância entre teoria e prática. Segundo o pensamento

apresentado, percebemos que o livro foi direcionado à leitura e à escrita pelo fato de

a língua só ter sua existência materializada por meio de textos.

77

Nesse sentido, o autor sugere um trabalho pragmático de leitura, escrita,

literatura, vocabulário e gramática, o que tornaria o ensino mais significativo tanto

para o aluno quanto para o professor. Um ponto que chama atenção é o cuidado

que devemos ter para com a nomenclatura gramatical, principalmente, no que diz

respeito à definição de termos (o sujeito) já que existem diferentes gramáticas

faladas pelos brasileiros. No caso da concordância entre o verbo e o nome, por

exemplo, há variações. Ele apresenta como exemplo a frase: “Pode deixar que nós

fala” (p.251), à qual a definição sintática de sujeito não pode se aplicar.

Quando trata do clítico se, vista frequentemente em placas e cartazes

afixados às paredes de casas e lojas Oliveira traz como exemplo: (12) Conserta-se

fogões (p.253), cujas gramáticas normativas e livros didáticos costumar considerar

como incorretas, dizendo que o verbo deveria estar no plural porquê o “fogões” é o

sujeito do verbo “consertam”, portanto, a frase deveria ficar Consertam-se fogões (p.

253).

Analisando as partes da sentença, Oliveira assegura que não faz sentido.

Vejamos por quê:

(132) Consertam- se fogões Verbo ??? sujeito Oliveira se questiona sobre a função sintática do se. Cunha e Cintra (1985, p.

373) apud Oliveira (2010, p. 253) “dão uma pista para resolvermos o mistério

quando se referem a esse se como pronome apassivador em vez de partícula

apassivadora. Ora, sendo um pronome, ele só pode exercer a função de sujeito ou a

função de objeto de verbo ou de preposição”. Se fogões tem o papel semântico de

paciente da ação expressa pelo verbo, seria o sujeito do referido verbo, como

sugere as gramáticas tradicionais, e o pronome se não teria nenhuma função

sintática. Não seria, portanto, “sujeito”, nem “objeto”, “verbo”, “adjunto” ou

“complemento”. Isso não tem sentido, pois qualquer palavra quando posta numa

sentença, em português, deve desempenhar alguma função sintática. Explicação

que não procede no caso citado. O se, nessa sentença e segundo as explicações

tradicionais, não desempenha função sintática nenhuma: está exercendo a função

de partícula apassivadora, que não se constitui uma função sintática.

Oliveira chega à conclusão de que as explicações em torno do se como

partícula apassivadora não tem procedência. Para ele, “[...] é pronome e está

78

exercendo a função de sujeito do verbo. Portanto, para usar um adjetivo da tradição

prescritiva, a sentença correta é “Concerta-se fogões.” (OLIVEIRA, 2010, p. 253). O

autor ressalta que quem não concordar com sua explicação terá que dizer a função

sintática do se. O que percebemos é que o debate teórico entre linguistas e

gramáticos não chegou ainda a um denominador comum.

Retomamos aqui quatro ocorrências retiradas de Lancastre (2003) apud

Oliveira (2010, p. 254) que apontam para uma indecisão acerca das explicações do

se. Vejamos os trechos no Quadro 02.

Quadro 02: Sentença contendo a clítico se

PÁGINA SENTENÇA CONTENDO A PARTÍCULA APASSIVADORA

11 Num primeiro ponto deste capítulo apresentam-se os principais

modelos e teorias subjacentes à compreensão de textos.

19 Nessas investigações manipula-se variáveis do tipo linguístico

97 Num primeiro ponto deste capítulo apresenta-se os principais factos

implicados na compreensão de textos.

107 [...] utiliza-se técnicas [...]

Fonte: Oliveira (2010)

O que podemos ver acerca da concordância apresentada nos trechos, é que

a mesma varia, ora apresentado no singular, ora no plural, embora o suposto sujeito

sendo plural. Isso pressupõe a ideia de que a autora e os revisores não perceberam

tais ocorrências ou aceitam como corretas, provando, portanto, que há confusões

terminológicas na nomenclatura gramatical.

Em frases como essas, frequentemente, encontradas, no dia-a-dia: "conserta-

se fogões, “aluga-se apartamentos”, “faz-se unhas”, “lava-se roupas", “vende-se

picolés”, o propósito dos locutores parece fazer as pessoas (os interlocutores)

sentirem as construções como ativa, cujo sujeito seja ativo – alguém faz, a gente faz

–, e não com um sujeito passivo, caso este que, para se descobrir que o sujeito de

vender é casas ou picolés, é preciso pensar a frase na voz passiva com auxiliar +

particípio: casas são vendidas, fogões são consertados, apartamentos são alugados,

etc. Em outras palavras, é isso que é repassado para os estudantes quando se

ensina vozes verbais, ou seja, para se obter uma sentença passiva apenas

79

transformamos uma ativa, assegurando que ambas tem o mesmo significado. Assim

sendo, os estudantes recebem as seguintes informações:

o objeto direto da ativa passa a ser o sujeito da passiva; o verbo principal da ativa toma a forma de particípio passado, formando uma locução com o verbo TER, conjugado no tempo verbal em que o verbo principal da ativa se encontra; o sujeito da ativa passa a ser o agente da passiva e vem depois da locução verbal precedido pela preposição por (OLIVEIRA, 2010, p. 244 destaque do autor).

Trabalhando nessa perspectiva, pressupomos que os estudantes aprendem

(ou supõem que aprendem) as transformações citadas e memorizam os termos

sujeito-paciente e agente da passiva. Entretanto, existe um impasse: não obtemos a

voz passiva simplesmente transformando a voz ativa. “Embora sejam estruturas que,

na maioria dos casos, estão semanticamente aproximadas, elas são independentes

uma da outra no que diz respeito a suas origens” (OLIVEIRA, 2010, p. 244). Tais

transformações, portanto, não passam de recursos; na verdade, não são os falantes

ou escritores quem as constroem, mas muitos gramáticos e professores.

O que pode ser depreendido pela explicitação de Oliveira é que diante de

duas frases como: (133) “O gato está debaixo do cobertor” e (134) “O cobertor está

em cima do gato”, o fato passa ser o mesmo, o que muda, porém, é o enfoque

recebido por cada construção. Definindo, pois a voz passiva, na perspectiva

apresentada, podemos dizer que se trata de um fenômeno gramatical que topicaliza

um sintagma nominal que, por sua vez, tem o papel temático de paciente. Segundo

o autor, a voz passiva “[...] tira o agente do foco. Isso abre caminho para uma

característica fundamental das sentenças passivas: A ausência de agente. Na

verdade, a grande maioria das sentenças passivas não possui agente pelo fato de o

paciente ser o foco da sentença passiva” (OLIVEIRA, 2010, p. 245).

Existem sentenças ativas, quando transformadas segundo a gramática

normativa, mudam totalmente o significado. Retomamos aqui dois exemplos citados

por Oliveira (2010) para confirmar tal hipótese.

Vejamos:

(135) Todos os capixabas frequentam uma praia.

Uma praia é frequentada por todos os capixabas.

(136) Três alunos de minha turma falam duas línguas.

80

Duas línguas são faladas por três alunos de minha turma (p. 246).

Partindo do pensamento do autor, observamos que os pares de construções

citadas podem ilustrar o caso de frases que apresentam dois quantificadores na voz

ativa, cuja posição é mudada na voz passiva. Assim, o sentido é alterado por essa

mudança em cada par. “E esse caso derruba definitivamente a história segundo a

qual a voz passiva e a voz ativa têm os mesmos significados, história já

enfraquecida pelas diferenças de foco entre sentenças passivas e sentenças ativas”

(OLIVEIRA, 2010, p. 246). Apesar de Oliveira ser um grande estudioso da língua, o

que ele assegura como definitivamente pode ainda não ser o ponto de vista adotado

de forma unânime. Isto porque não há conceitos absolutos na língua, e a

heterogeneidade da língua parece ser a manifestação mais permanente. Pode-se,

assim, dizer que o fenômeno linguístico, de modo geral, não apresenta caráter

categórico e definitivo. Ao contrário, na língua o mais comum e mais presente é a

sua variabilidade.

Conforme o pensamento de Oliveira (2010), no ensino de Língua Portuguesa,

os professores detêm-se a tratar da voz ativa em sua dimensão formal, as famosas

transformações como já explicitamos. No entanto, essa dimensão não causa

problemas de compreensão se levada em conta a teoria estabelecida pela gramática

normativa. O que causa dúvidas, no que se refere à voz passiva, é a dimensão

pragmática. Mesmo alunos que já terminaram o ensino médio e professores de

português têm dificuldades de falar sobre o porquê de usar a voz passiva. Isso se

deve ao fato de não usarmos (ou pouco usarmos), na prática, tais construções

gramaticais. Habituamo-nos a expressar, de forma passiva, usando outros recursos

linguísticos.

Quando o autor afirma que é o pragmático que causa dúvidas no que se

refere ao uso da voz passiva, ele reforça a ideia de uma análise gramatical que leve

em conta, não somente do ponto de vista formal, mas também o funcional que nada

mais é que estudar a língua em seu uso potencial, isto é, observando o modo como

o falante seleciona as estratégias para organizar funcionalmente seu texto para um

ouvinte específico e em uma situação de comunicação também específica.

Analisando a língua sob o viés pragmático podemos, portanto, entender por que o

verbo permanece no singular, seguido de sintagma nominal plural em construções

81

que envolvem o clítico se, contrariando a prescrição da gramática normativa como

acontece nos anúncios classificados investigados nesse trabalho.

2.4.5. Bagno (2011)

Para tratar do clítico se Bagno (2011) retoma o trabalho do filólogo Said Ali,

cuja análise do problema de classificação desse clítico é considerada, pelo linguista,

como impecável, visto que o filólogo, em seus estudos, atribuiu a função de sujeito

ao se nas orações chamadas “passivas sintéticas” ou “passivas pronominais”. Nesse

caso, Bagno (2011) afirma que é preciso levar em conta fatores pragmáticos para

realizar análise desse tipo, coisa que a gramática tradicional despreza. Retomamos

aqui dois exemplos de Bagno (2011) para justificar o seu ponto de vista.

(136) Na casa de Ivone se come demais (BAGNO, 2011, p.806).

(137) Na casa de Ivone se come carne demais (BAGNO, 2011, p.806).

Se analisarmos as sentenças levando em conta a tradição gramatical,

dizemos que em (136) o se é índice de indeterminação do sujeito, enquanto que em

(137) o se é uma partícula apassivadora, cujo sujeito da oração é carne. Quanto à

classificação da gramática tradicional, podemos pensar que, em (136) caso, a

tradição gramatical atua com um critério semântico, uma vez que o se é explicado

de forma a se referir a alguém sobre quem omitimos informações, não querendo

mencionar. Já em (137), o critério utilizado é o sintático: a transitividade verbal. A

dupla explicação para o mesmo fenômeno linguístico causa, portanto, paradoxo. O

que diferencia entre os enunciados é a transitividade verbal: em (136), o verbo é

transitivo; em é intransitivo (137). Em ambos o se está funcionando como sujeito

indeterminado. Em (137), temos carne como objeto direto de comer (Cf. BAGNO,

2011).

A tradição gramatical despreza o aspecto semântico, uma vez que, em

orações como essas, os verbos apresentados são praticados sempre por um sujeito

cujo traço semântico é [+animado] e/ou [+humano]. Isso quer dizer que

“[...] somente seres animados e/ou humanos podem comer carne, assim como aluga-se salas, joga-se búzios, vende-se ovos, avia-se receitas,

82

amola-se facas, etc. todos os verbos exigem (além de um óbvio objeto direto) um sujeito [+humano]. E é essa poderosa evidência semântica que leva os falantes a manter o verbo no singular, fazendo concordar com o sujeito indeterminado, expresso no comunicado pelo expresso clítico se” (BAGNO, 2011,p 807).

Desde os estudos de Said Ali até os dias atuais, as pesquisas científicas têm

mostrado que a interpretação em torno do se em orações como essas precisa de

mais atenção, visto que é um recurso disposto na língua para indicar a

indeterminação do sujeito, e tradição gramatical insiste em classificar esse se como

pronome apassivador. Nesse sentido, o autor defende a ideia de que, no português

brasileiro, não há as orações denominadas “passivas sintéticas” ou “passivas

pronominais”. Em sua opinião, elas não passam de um mito. Por isso as nomeia de

pseudopassivas. Bagno (2011, p.807) acrescenta que “O caráter marcadamente

nominativo do se, ou seja, sua propriedade de ser sujeito, é tão forte no PB que os

falantes só admitem como acusativo (isto é como objeto direto) construções na voz

reflexiva [...]”. Essa reflexibilidade, por sua vez, tende a ser reconhecida apenas

quando se tratar de sujeito cujo traço semântico seja [+animado].

As considerações de Bagno, em torno do clítico se, podem estimular a

reflexão sobre a análise da língua materna que apresenta muitos problemas como,

por exemplo, quando insistimos em fazer análise gramatical ignorando o fato de que

ela é o pressuposto de qualquer ato de fala. Daí o significado do ato de pesquisar.

Ele consiste na busca do conhecimento a partir de fontes diversificadas, analisadas

sob diferentes aspectos.

A partir dos estudos de Bagno (2011) somo levados a refletir que ele

esclarecem muitas dúvidas que, certamente, acompanham não apenas os

professores, mas sobretudo os estudantes do Curso de Letras. Nessa perspectiva,

estudos renovadores como esses se tornam essenciais no progresso e na

reformulação de muitos conceitos relacionados à análise da língua, além de garantir

a compreensão dos processos que permeiam a atividade de pesquisa.

83

OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO: ANÁLISE E DISCUSSÃO

84

3 OS USOS DOS VERBOS VENDER E ALUGAR EM ANÚNCIOS

CLASSIFICADOS DE JORNAL IMPRESSO: ANÁLISE E DISCUSSÃO

Neste capítulo, procuramos expor os dados coletados, bem como os

resultados a que chegamos com a investigação acerca dos verbos: vender e alugar

em anúncios classificados do Jornal Gazeta do Oeste. Além disso, buscamos

descrever e analisar a regularidade da construção com os verbos vender e alugar

em seu uso interativo, dando ênfase aos aspectos da concordância desses verbos

quando seguidos do clítico se.

3.1 Verbos vender e alugar em anúncios classificados do jornal impresso Gazeta do Oeste

Conforme ressaltamos, neste trabalho, o corpus se constitui dos anúncios

classificados de um jornal norte-rio-grandense: Gazeta do Oeste. O referido jornal

obedece a um regime diário de publicação, exceto a segunda-feira. Para nossa

análise, recorremos a anúncios publicados na seção de classificados nas edições de

08 de abril a 08 de maio de 2011. A título de esclarecimento, salientamos que,

apesar de descrever todas as ocorrências dos verbos vender e alugar, trouxemos

para análise exemplos que nos chamaram mais atenção, ou seja, os mais relevantes

às discussões, às análises empreendidas. Desse modo, os recortes não obedecem

a uma sequência temporal – ordem de edições publicadas –, mas constituem os

textos que apresentam as formas verbais vender e alugar. Para que possamos

compreender melhor a dinâmica do trabalho e, particularmente, a procedência dos

dados, detalhamos, no parágrafo seguinte, a fonte de onde se origina o corpus, ou

seja, o jornal escolhido para a pesquisa.

Apesar da ideia de criação do Jornal Gazeta do Oeste já ser pensada antes

de abril de 1977, sua primeira edição só foi às ruas em setembro do mesmo ano.

Seu idealizador foi o jovem idealista: Canindé Queiroz, “nascido em Pau dos Ferros,

distante da cidade que adotou como sua “urbe amada”, Mossoró” (GERSON, 2005,

p.17). O periódico semanário, num primeiro momento, ia às bancas aos sábados.

Devido a dificuldades de equipamentos, eram impressos em torno de 500 jornais por

edições. Primeiro foi impresso em papel branco e, somente depois – uma segunda

85

etapa –, passou a ser impresso em papel jornal. Foi o primeiro jornal tabloide do Rio

Grande do Norte. O Diário de Natal e a Tribuna eram tamanho standard.

O desejo de crescer aliado a uma linha de inovação, na década de 90, foi

criado o caderno Classificados – o foco de nosso objeto de investigação. Os

Classificados que antes eram impressos na parte interna do jornal, passaram a ser

publicados em caderno independente, ou seja, à parte da edição normal. Era

construído de apenas duas páginas. Hoje, entretanto, todas as empresas que

trabalham no ramo imobiliário anunciam nos Classificados do Jornal, cuja veiculação

corresponde a 17 páginas. São divididos em Classificados (páginas em cores e

preto e branco) e Classificados 2 (páginas apenas em preto e branco).

Como estamos tratando de textos de uma situação discursiva concreta –

anúncios classificados de jornais –, procuramos entrar em contato com a redação do

jornal (por e-mail) para checar informações pertinentes (escrita e publicação dos

textos) sobre o referido gênero.

De acordo com informações obtidas, descobrimos que, o cliente usa os

termos conforme o seu grau de instrução. A linguagem utilizada, nos anúncios é,

realmente, a dele. Às vezes, a redação é obrigada a fazer correções, devido ao uso

de termos completamente inadequados para publicação. Já houve casos de

mudarem o texto para “melhorá-lo” e, no dia seguinte, o cliente ir até o jornal

reclamar, dizendo que o texto não saiu como ele havia escrito. Nesse caso, não

resta alternativa ao jornal a não ser reproduzir o texto tal qual o original. Alguns

clientes são irredutíveis e não aceitam argumentação do jornal sobre o motivo da

alteração no texto. Dessa forma, não há nada mais a fazer, justiçando-se, portanto,

a existência do termo: “O cliente tem sempre razão”. Isso reforça a pressão do uso

da língua, fazendo com que esta esteja presente no texto jornalístico.

Nesse caso, o cliente, ao produzir o texto – anúncio classificado –, nem

sempre aceita uma revisão de seu texto. A redação do jornal se posiciona dando a

entender que tal fato não devia acontecer nos textos jornalísticos. No entanto, por

respeito àquele que paga para que o jornal seja veiculado, aceita fazer a vontade do

cliente. Na verdade, deixamos claro para a redação do jornal que nossa

preocupação não é saber se a linguagem dos textos deve se apresentar de uma ou

de outra forma, sem desvios da norma padrão. O que, de fato, nos inquieta é saber

se a linguagem em uso, do dia a dia, está presente no texto jornalístico – anúncio –

86

e como é apresentada a construção com os verbos vender e alugar, inclusive as

construções que envolvem o clítico se.

Diante do ponto de vista da redação do jornal, pressupomos a ideia de que há

certa justificativa do redator quanto à linguagem veiculada nos textos – anúncios

classificados – produzidos, ou seja, o jornal dá abertura para que os anunciantes

produzam os textos da maneira que melhor atendam os seus propósitos. Nesse

sentido, o produtor utiliza estratégias criativas, para organizar seu texto, de forma a

torná-lo compreensível por um determinado leitor em uma determinada situação

comunicativa.

Utilizar a língua requer expressividade. Expressividade essa, que o falante

procura alcançar manifestando-se de modo criativo suas impressões pessoais em

relação ao conteúdo transmitido e sua inquietação com a receptividade que ouvinte

terá desse conteúdo. Isso justifica a abordagem do gênero do discurso na

perspectiva de Bakhtin (2003). Para ele esses gêneros resultam em formas-padrão

“relativamente estáveis” de um enunciado, determinadas sócio-historicamente, já

que só nos comunicamos, falamos e escrevemos, por meio de gêneros do discurso.

É por isso que, no anúncio classificado, a imagem do sujeito é recuperada, pelo

leitor, por meio do contexto, pois locutor constrói seu texto em função do interlocutor,

que tem um papel ativo, constitutivo na formulação desse texto. De forma visível, é o

outro (interlocutor) quem condiciona o que o locutor diz e, desse modo, ambos são

colocados no mesmo plano. As escolhas feitas, por sua vez, são determinadas em

relação à esfera pela qual o discurso transitará, por seu conteúdo temático, pelas

condições de produção e pela composição dos participantes.

Isso pode ser constatado, por exemplo, quando observamos a Tabela 01,

cujos verbos escritos 22 em terceira e primeira pessoa, respectivamente, são os que

prevalecem.

87

Tabela 01 – Ocorrências do item linguístico vender no jornal Gazeta do Oeste

Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/maio/2011.

O levantamento feito, no corpus desta pesquisa, nos deu oportunidade de

constatar que os usos linguísticos estão presentes no jornal Gazeta do Oeste, quer

se trate da forma vender (e variantes: vende, vendo, vender), quer se trate da forma

alugar (e variantes; aluga, alugo, alugam-se alugar, alugamos). Analisando as

amostras retiradas desse jornal, as quais constituem um total de um mês de

publicação (edição de 08 de abril e 08 de maio de 2011), obtivemos o seguinte

resultado: 1.365 ocorrências da construção vende (verbo na 3ª pessoa do singular);

1.133 da construção vendo (verbo na 1ª pessoa do singular); 451 da construção

vende-se (verbo na 3ª pessoa do singular + o clítico se); e 15 ocorrências da

construção vender (verbo no infinitivo), conforme apresentado na Tabela 01.

Observando os dados pudemos verificar que se determinada estrutura gramatical:

vende, foi empregada com maior recorrência. Isso se deve ao(s) significado(s) que

tal estrutura permitia articular para o que o objetivo fosse atingido, ou seja, a venda

de produto/oferta de serviço em anúncios classificados do jornal impresso

investigado. A repetição desse verbo numa mesma edição conforme acontece se dá

em virtude de, histórica e socialmente, originar e estabilizar o significado da

estrutura, tornando-a, portanto, usual, isto é, gramatical.

O estudo realizado caracterizou, portanto, que as estruturas gramaticais são

determinadas pelas situações comunicativas das quais participamos enquanto

sujeito. Desse modo, podemos afirmar que a estrutura não é estática, varia de

acordo com o uso da língua em nosso dia-a-dia, ou seja, por motivações discursivas,

não da sentença em si. Um exemplo disso é a estratégia utilizada pelo produtor do

Item Linguístico Número de ocorrências Valor em %

Vende 1365 46,1

Vendo 1133 38,2

Vende-se 451 15,2

Vender 15 0,5

Total 2964 100

88

anúncio classificado ao escolher como usar o verbo do melhor modo que atenda o

seu propósito comunicativo.

Quanto ao verbo alugar, coletamos o seguinte resultado, como demonstra a

Tabela 02:

Tabela 02 – Ocorrências do item linguístico alugar no jornal Gazeta do Oeste

Item Linguístico Número de ocorrências Valor em %

Aluga 998 58,7

Alugo 385 22,7

Aluga-se 262 15,4

Alugamos 26 1,5

Alugar 26 1,5

Alugam-se 2 0,1

Total 1699 100

Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/maio/2011.

Observando a tabela 02 – item alugar – contatamos, tal como a forma vender

que a 3ª pessoa é predominante. Na leitura da Tabela 02, temos: 998 ocorrências da

construção aluga (verbo na 3ª pessoa do singular); 385 da construção alugo (verbo

na 1ª pessoa do singular); 262 ocorrências da construção aluga-se (verbo na 3ª

pessoa do singular + o clítico se); 26 ocorrências da construção alugamos (verbo na

1ª pessoa do plural) e 26 ocorrências da construção alugar (verbo no infinitivo).

Com o verbo predominante, em ambos os itens investigados, aparece o nome

(com logomarca) do anunciante, seguido dos verbos em destaque (verbos em cor

branca e fundo preto), deixando claro quem vende/aluga. Embora o sujeito esteja

exterior ao enunciado (o anúncio propriamente dito), o contexto faz este sujeito

inserir-se na enunciação. Essa compreensão só é considerada a partir de análise

pragmática do contexto discursivo, fundamentada por princípios funcionalistas, ou

seja, é preciso atentar para tudo que envolve os anúncios classificados: o locutor, o

interlocutor, o ambiente social, entre outros fatores inerentes ao campo da

pragmática. Assim, para dar ênfase ao anunciante (colocado em destaque, inclusive

suas credenciais) e ao que se quer anunciar, o produtor do texto repete os verbos na

3ª pessoa (...) vende ou aluga, itens que concorrem com os prescritos pela

89

gramática tradicional: vende(m)-se/aluga(m)-se, típicas da linguagem culta,

especialmente escrita, conforme podemos constatar na Figura 01.

Figura 01: Item linguístico vender/alugar verbo – 3ª pessoa

Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/2011, p.6.

Além dos verbos escritos em terceira pessoa, a ênfase dada ao anunciante é

reforçada pelo uso do enunciado: VISITE NOSSO SITE

www.otavionetoimobiliario.com.br, no qual se insere o pronome possessivo

“nosso”, grafado em letras maiúsculas, negrito, centralizado, logo abaixo dos

anúncios, estendendo o sentido – ideia de pertencimento – ao interlocutor. Isso,

porém, não acontece na tradição gramatical como constatamos no conteúdo

abordado no capítulo II – ponto de vista de Rocha Lima ([1985]1999) e Almeida

(1999) quando tratavam do verbo vender/alugar. Suas análises se restringiam a

questões de ordem formal, sem levar em conta o modo de produção de textos, ou

seja, são análises realizadas a partir de frases soltas descontextualizadas, sem levar

em consideração as propriedades funcionais desses verbos, principalmente, quando

seguidos do clítico se. De maneira semelhante (excetuando o enunciado para visita

ao site), acontece com o verbo escrito na 1ª pessoa: vendo e alugo. Podemos

visualizar na Figura 02

90

Figura 02: Item linguístico vender/alugar verbo – 1ª pessoa

Segundo os dados coletados, essa é a 2ª forma mais recorrente. Isso pode

se dá pelo fato de o cliente preencher o formulário com o texto – anúncio – e ter o

poder de decidir como esse texto será publicado (como já mencionamos neste

trabalho). Esse comportamento do anunciante significa a exploração do aspecto

discursivo-pragmático da linguagem, evidenciando a aproximação do contexto sócio-

discursivo com o linguístico. Nesse sentido, prevalecem as formas cujos anunciantes

estão presentes, ficando claro que o anunciante tem algo para vender ou alugar e

que é o próprio agente responsável pela ação, ou seja, o verbo na 1ª pessoa do

singular.

O que percebemos, portanto, é que o jornal Gazeta do Oeste apresenta-se de

forma dinâmica, é aberto à população, feito para anunciar os fatos da região,

acatando a escrita com a língua em uso, não se prendendo às formas eleitas pelas

gramaticas tradicionais – vende(m)-se/aluga(m)-se. No caso dos verbos dos

Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/2011, p.6.

abril/2011, p.6)

91

anúncios, o uso canônico ainda é privilegiado em outros jornais6. Isso pressupõe que

esses veículos não levam em consideração fatores discursivos, se restringem aos

gramaticais.

O fato de o texto ser escrito em 1ª pessoa, entretanto, não o desclassifica

enquanto texto – anúncio –, já que faz referência objetiva ao que está sendo

anunciado, de modo a facilitar o entendimento do leitor, levando-o a encontrar o que

deseja. É como se reforçasse o anúncio classificado “eu (implícito no enunciado)

vendo”, deixando mais marcadas, para o leitor, as referências enunciativas de

venda, através de recursos sintáticos “emergentes” para o gênero, ao contrário da

forma padrão que talvez dificulte a noção de referência.

Salientamos que, nesse gênero, há ausência de artigos e preposições, pois,

quando usados, contam como palavras, tornando o anúncio mais caro. Nesse caso,

essa ausência vale também para o pronome pessoal (eu) oculto, o que barateia o

anúncio sem deixar de incluir o sujeito-anunciante. Em outras palavras, quando o

verbo vender/alugar vem na primeira pessoa do singular, notamos o envolvimento

direto do anunciante. Ele compartilha o seu desejo de vender aquele móvel/imóvel

ou serviço, dividindo com o leitor a sua satisfação caso esse adquira seja

persuadido. Assim, a sua vontade passa a ser também a vontade do cliente. Em

anúncios classificados como esses, ocorre uma aproximação maior com o leitor.

Além de explicitar seus sentimentos, o anunciante convida esse leitor a uma

participação ativa quando escreve “vendo”. Esse envolvimento faz com que o texto

flua melhor.

Nesse sentido, concorrem com as formas prototípicas (vende(m)-se/aluga(m)-

se), essas outras formas variantes de vender: vende, vendo, venda, vendas, vender;

de alugar: aluga, alugo, aluguel, aluguéis, alugam-se, alugar, alugamos, conforme

apresentado nas tabelas 01 e 02, as quais estão sendo incorporadas no gênero, em

análise, devido às pressões de uso da linguagem. A manifestação dessas novas

formas revela o caráter dinâmico da língua, caracterizando-se como uma possível

mudança linguística que acontece por meio do processo da gramaticalização na

linguística funcionalista. Segundo os estudiosos dessa corrente teórica, as formas

linguísticas se renovam constantemente, já que o discurso comporta formas pré-

6 O Diário de Natal, por exemplo, privilegia a forma (prototípica) vende(m)-se.

92

estabelecidas que, em razão dessas circunstâncias discursivas, variam e mudam.

Nessa perspectiva, vão aparecendo novas funções, num movimento contínuo.

Quanto às mudanças ocorridas numa língua, devem ser compreendidas como

movimentos iniciados a partir do momento em que um sujeito produz seu discurso

para um determinado interlocutor em situação comunicativa particular (Cf.

MARTELOTTA, 2003). Assim, se a gramática da língua com suas restrições, limita a

produção discursiva por um lado, por outro, pode constituir um processo criativo no

qual o falante pode recriar formas, estendendo sentidos segundo as restrições de

sua cognição, bem como as necessidades que o contexto impõe. Essas restrições

podem constituir-se como situações de mudanças, caso sejam percebidas,

apreciadas e adotadas, ou seja, permanecerem. Em outras palavras, as formas mais

novas estão associadas a forças extralinguísticas de caráter inovador, tais como

propósito comunicativo, contexto, modalidade do gênero textual.

Vale observar que mesmo a forma canônica sendo ainda muito frequente, a

presença das demais se constitui como uma manifestação da linguagem em uso no

texto do jornal investigado. Isso reforça a ideia de que a gramática da língua origina-

se do discurso tal como aponta Givón (2001).

Como podemos ver, a língua é dinâmica, transforma-se a cada dia. O

contexto é que propõe tais mudanças. E é neste contexto (de mudanças) que as

análises linguísticas de orientação funcionalista ganham sentido, pois trabalham de

forma direta sobre o postulado básico de que a língua é uma estrutura maleável,

sujeita às pressões do uso e que se constitui um código parcialmente arbitrário. A

partir das orientações de Givón, Hopper, Traugott, Haiman e Thompson, entre

outros, o modelo de análise funcionalista procura explicar a forma da língua a partir

das funções que ela desempenha na interação. Assim sendo, a língua não se

organiza de forma autônoma. Dependente do comportamento social, adaptando-se

às diferentes situações comunicativas e necessidades do falante. (Cf. FURTADO DA

CUNHA, 2008).

Mediante o exposto, somos levados a inferir que a ocorrência da estrutura

comumente mais utilizada pela gramática tradicional a vende-se aparecer em 3ª

posição e aluga-se em 4ª, se dá pelo fato de o Jornal Gazeta do Oeste prestigiar a

organização dos seus textos, tal como proposto pelo cliente, ou seja, segue a forma

dinâmica (variável) da língua, já que o corpus apresentou outros usos – várias

formas para a mesma função. Isto porque as pressões de uso dessa língua estão

93

fazendo esse veículo de informação adaptar-se ao contexto vigente que vai

penetrando na língua através das outras formas nele inseridas como vimos. Dito de

outra forma, a tendência de a gramática adaptar-se às pressões de uso encontra-se

manifestada em dados do jornal Gazeta do Oeste.

3.2 Aspectos da concordância verbal dos itens linguísticos vender e alugar

Quanto ao processo de concordância verbal entre a construção vende-

se/aluga-se e o termo a que se refere, há uma predominância de uso da estrutura

formal vende-se (verbo singular) concordando com o termo também no singular.

Quando o verbo aparece no plural, o termo a que se refere também aparece no

plural. Entretanto, aparecem alguns anúncios classificados, cuja concordância difere

da forma adotada pela gramática normativa, isto é, o verbo aparece no singular

seguido do clítico se, e o termo seguinte vem no plural.

3.2.1 Vender e alugar: anúncios classificados de jornais vs. gramática normativa

Seguindo a visão tradicional de gramática, como se apresenta na revisão de

literatura dessa pesquisa, somos induzidos a acreditar na existência de regras

prontas, cujo fim se dá por si mesmo. Basta analisarmos o exemplo (06-Cap. II)

Venderam-se todos os bilhetes (ROCHA LIMA, 1999, p.390), cujo autor, seguindo o

rigor terminológico da língua padrão sugere que o verbo concorde com o termo

(tradicionalmente) apontado como sujeito “todos os bilhetes”, isto é, verbo na dita

voz passiva pronominal (formada com o verbo acompanhado do pronome oblíquo

se, chamado, nesse caso, de pronome apassivador). Segundo essa visão de

gramática tradicional, os verbos transitivos diretos (aqueles verbos que se ligam

diretamente ao seu complemento), quando seguidos do clítico se, estão na voz

passiva [v

ende-se = é vendido] e apenas frases que apresentem esse tipo de verbo

podem ser transformada em voz passiva. Dessa forma, o complemento (o objeto

direto) se converte em sujeito da voz passiva construída com o verbo auxiliar ser +

particípio. O sujeito da voz ativa, por sua vez, se converte em agente da passiva,

94

ficando, portanto, o exemplo de Rocha Lima (1999) da seguinte forma: (06) Todos

os bilhetes foram vendidos. (voz passiva analítica).

Entretanto, se levarmos em consideração fatores semântico-pragmáticos, os

quais envolvem tanto o contexto linguístico quanto o extralinguístico, observamos

lacunas na visão tradicional de gramática, já que são cada vez mais frequentes

construções (impessoais) com verbos transitivos diretos – vende-se/aluga-se casas

– em nosso dia a dia, pondo em discussão as visões das gramáticas normativas e

de muitos livros didáticos que desprezam os usos linguísticos e a evolução da

língua.

Quanto ao processo de concordância verbal entre a construção vende-

se/aluga-se e o termo a que se refere, há uma predominância de uso da estrutura

formal vende-se (verbo singular) concordando com o termo também no singular tal

como acontece nas gramáticas normativas. Quando o verbo aparece no plural, o

termo a que se refere também aparece no plural. Entretanto, aparecem alguns

anúncios classificados, cuja concordância difere da forma adotada pela gramática

normativa, isto é, o verbo aparece no singular seguido do clítico se, e o termo

seguinte vem no plural.

Transcrevemos aqui dois anúncios classificados com os verbos vender e

alugar, respectivamente, na íntegra:

ALAMEDA DO SOL – Vende-se os lotes 03 e 04 da quadra 06, medindo 800m2. R$

110.000,00 (GAZETA DO OESTE, 8 de abril de 2011, p.3).

Além da forma apresentada, aparece outra construção: vende-se casas

avulsas... na edição de 20 de abril e repete-se em 15 edições posteriores. Vale

ressaltar que na última edição pesquisada aparece na última página e em letras

maiores, apesar de em todas estarem em maiúsculo e, em edições, aparecerem

duas vezes na mesma edição. O texto segue, na íntegra, abaixo:

CASAS AVULSAS

VENDE-SE CASAS AVULSAS NO RESIDENCIAL CIDADE JARDIM (ALTO

SUMARÉ) COM 02 QUARTOS (57,01M2) E 3 QUARTOS (115, 86M2) VÁRIAS

OPÇÕES DE PLANTAS, ENTREGA COM 5 MESES, TODAS AS CASAS COM

95

PROJETO PARA EXPANSÃO. ÓTIMA LOCALIZAÇÃO. LOTES DE 2002 (10X20)

FINANCIADO EM ATÉ 100% CASAS A PARTIR DE R$ 84.900,00. (GAZETA DO

OESTE, 20 de abril de 2011, p.7).

De forma semelhante, acontece com o verbo alugar, vejamos o exemplo

ALUGA-SE

APARTAMENTOS

Apto RESIDENCIAL ALAIDE ESCOSSIA no 18º andar com 03 suítes.

(...)

CASAS

Casas no Residencial João Figueiredo na Nova Betânia com 02 quartos

sendo 01 suíte, banheiro social, garagem, cozinha e dispensa. (GAZETA DO

OESTE, 20 de abril de 2011, p.7).

Comparando, portanto, os exemplos retirados do jornal: Gazeta do Oeste com

a forma prototípica da gramática tradicional, exemplo (05), percebemos que a

tendência em usar a forma singular vai aos poucos se generalizando. Quando se

diz: Vende-se casas avulsas..., fica subtendido que alguém tem casas para vender,

isto é, há um agente responsável pela ação, mesmo que não apareça no enunciado.

Por outro lado, haveria incoerências na análise tradicional do se como apassivador,

como propõe Rocha Lima, já que a concordância não iria acontecer, caso

transformássemos a frase da voz ativa para a passiva sintética pronominal como ele

sugere. A tão famosa transposição nem sempre é possível, uma vez que nem

sempre há igualdade de sentido quando mudamos a ordem das palavras dentro da

frase.

Na verdade, em se tratando da problemática do clítico se, o próprio gramático

Said Ali ([1908] 2008) já negava o caráter de "partícula apassivadora”. Segundo

esse autor, não haveria necessidade de concordância entre o verbo (singular) seja

intransitivo, seja transitivo e nome (plural).

A seguir, vemos que, embora com a forma escrita diferente (verbo vender e

alugar seguidos de dois pontos), aparecem mais três anúncios classificados (verbo

vender) e um (verbo alugar), cuja concordância difere da forma canônica

apresentada na gramática tradicional. Vejamos como aparecem os textos, da figura

03 retirada do respectivo jornal:

96

Ramon Imóveis – vendas e aluguéis

Figura 03 – Anúncios classificados – verbo vender/alugar.

Esses anúncios classificados se repetem em 13 edições posteriores. Ao lado

desses, porém, há outros exemplos, cujos termos posteriores aos dois pontos estão

no singular conforme figura. Isto pressupõe a ideia de que há variações, maneiras

diferentes de manifestar o mesmo pensamento. Nesse sentido, postulamos que, no

jornal Gazeta do Oeste, a língua em uso, no que se refere à concordância verbal, se

manifesta com grande expressividade, pois a forma prototípica vende-se concorre

com outras, conforme já ressaltamos neste trabalho.

Assim, quando analisamos as construções com verbo transitivo direto:

vender/alugar na 3.ª pessoa do singular + pronome se, observamos a presença da

não concordância verbal entre esses itens e o sintagma nominal que o procede.

Visualizemos os números correspondestes a cada item linguístico

Aspectos da concordância verbal dos itens linguísticos vender e alugar

Fonte: Jornal Gazeta do Oeste, abril/2011, p.10.

abril/2011, p.6)

97

Tabela 03 – Concordância verbal do item linguístico vender + clítico se

Item Linguístico Número de ocorrências Valor em %

Vende-se+ sint. Nom. singular

362 80

Vende-se + sint. Nom. plural

89 20

Total 451 100

Tabela 04 – Concordância verbal do item linguístico alugar + clítico se

Diante dos números apresentados, notamos que a linguagem em uso que

buscamos abordar nessas observações (variação da forma verbal vender/alugar)

está presente nos anúncios classificados do jornal investigado, ou seja, os verbos

vender e alugar, quando usados nos anúncios classificados de jornais apresentam

uma diversidade de usos (vende, vendo/aluga, alugo, etc.), além do sentido

preconizado nas gramáticas normativas: vende-se/vendem-se e aluga-se/alugam-se.

Esse fato pode ser explicado pela teoria funcionalista, por meio do processo de

gramaticalização, mais especificamente pelo princípio da estratificação instituído por

Hopper (1991), princípio esse que não aparece para eliminar as formas antigas,

substituindo-as pelas formas novas, mas pelo “amontoamento”, num próprio domínio

funcional, de formas sutilmente distintas que possuem, aproximadamente, o mesmo

significado (Cf. GONÇALVES; CARVALHO, 2007).

Quanto ao processo de concordância verbal, observamos, portanto, nos

anúncios classificados do jornal Gazeta do Oeste, que há uma incidência de

construções com o clítico se, em sentenças com verbo transitivo direto, cujos

sintagmas nominais pospostos a estas construções ora se apresentam no singular,

Item Linguístico Número de ocorrências Valor em %

Aluga-se + sint. Nom. singular

220 84

Aluga-se + sint. Nom. plural

42 16

Total 262 100

98

ora no plural, conforme observamos nas tabelas 03 e 04, respectivamente: 23% no

que se refere ao item vender e 13% ao item alugar. Isso nos leva a pressupor que,

mesmo que alguns estudos linguísticos tenham buscado sistematizar os aspectos

gramaticais, inerentes à utilização das línguas, formando um conjunto de regras

permanentes, as quais poderiam ser aplicáveis para formar frases em diferentes

contextos, as línguas naturais insistem em provar seu caráter não estático.

As línguas parecem ser sensíveis a diferentes comportamentos dos usuários

que as falam. Por um lado, apresentam formas que variam de natureza individual,

social, regional, entre outras, convivendo simultaneamente; por outro, mudanças que

se manifestam com sua evolução histórica, o que nos autoriza a afirmar que a

gramática deve ser trabalhada na escola além do ponto de vista formal, ou seja,

deve considerar também suas dimensões semântica e pragmática, visto que a

variação da língua (a língua em uso) já penetra também nos meios de comunicação,

devendo, portanto, ser inserida no contexto da sala de aula, para fins de análise

pelos alunos. Isso pressupõe a ideia de não se estabelecer uma diferença entre o

uso da língua e as regras gramaticais, as quais estão na sua base, uma vez que as

regras se modificam, e as modificações são manifestadas no uso e motivadas por

ele (Cf. MARTELOTTA, 2011).

Com a evolução da língua, sensível aos comportamentos dos indivíduos, não

é de admirar que, no nosso corpus, apareçam anúncios sem o uso do verbo vender.

Outros elementos descritivo-argumentativos são suficientes para sabermos que se

trata de um anúncio de classificado. Como todo gênero, o classificado é produzido a

partir de uma estrutura: em geral, é um texto pequeno, conciso, objetivo, não

contando com recursos visuais. O que se exige do leitor, nesse gênero, é que entre

em contato com quem anuncia, por isso traz um número de telefone, um endereço

ou outro meio de contato. Isso tudo leva em conta o propósito comunicativo de quem

o produz, adequando-o à situação e ao contexto em que se insere a prática do

mesmo.

Assim, quem escreve o jornal pensa nos interlocutores potenciais. Esse

pensar leva ao uso de estratégias criativas, valendo-se de aspectos sintáticos,

semânticos e pragmáticos a fim de persuadir seus leitores a aderir ao ponto de vista

do jornal. Daí a manifestação da linguagem em uso no texto jornalístico. Há boas

justificativas para isso. Uma delas é o fato de o texto jornalístico ser um dos textos

99

mais lido, mais consumido, provavelmente, o que tem maior alcance nos diferentes

setores da sociedade.

Os resultados quantitativos obtidos, nesta análise, mostram que a escrita

jornalística, apesar de mais formal, mais sujeita à normatização, não está isenta de

mudança: a presença da língua em uso – uso das formas vender e alugar (e

variações) sem o clítico se em anúncios classificados de jornais evidencia um

processo de disputa também na escrita. Parece que o se tem perdido seu território,

a julgar pelos resultados encontrados no jornal Gazeta do Oeste.

Quanto aos resultados qualitativos, cuja análise se fundamenta nos princípios

funcionalistas, constatamos que a linguagem jornalística, apresentada nos anúncios

classificados favorece a interpretação do clítico se como sujeito, não como agente

da passiva em construções ditas (tradicionalmente) passivas sintéticas, ou seja, a

ideia sugerida pelo clítico se, é de que “alguém vende”, de que “alguém aluga”, no

entanto, desconhecemos ou preferimos omitir informações a seu respeito. Por

razões semântico-pragmáticas, os produtores dos tesxtos são induzidos a fazer o

verbo vender não concordar com o termo a que se refere (o que é anunciado); em

vez de vendem-se, escrevem "vende-se casas avulsas", assim mesmo, com o verbo

no singular, como pudemos observar. Na verdade, o produtor do anúncio utiliza

tanto o seu ponto de vista, quanto à consciência sobre a presença do interlocutor, o

leitor do jornal. Para o leitor, não faz diferença se o verbo concorda ou não com o

elemento a que se refere. O que vale é o seu significado: aluga-se, vende-se. O

próprio suporte – o jornal – caracteriza esse significado, não necessitando que o

leitor entenda casas avulsas como sujeito da frase citada. Isto porque, conforme,

mencionamos nesse trabalho, muitos lingüistas brasileiros já consideram a passiva

sintética como pura ficção. No entanto, a gramática tradicional, insiste em difundir o

contrário.

Apesar de as análises morfossintáticas serem de grande utilidade para

entendermos o fenômeno da concordância verbal, não podemos esquecer o

processamento cognitivo, já que é nele que observamos a sintonia entre sintaxe,

semântica e pragmática. Concordamos com Bagno (2011, p. 649) quando afirma:

“Com isso, a tese que postulamos aqui é a de que a concordância verbal se faz com

algo que não está visível na materialidade do texto, mas que decerto participou do

processamento cognitivo do falante/escrevente no momento de falar/ escrever”. Uma

das maiores autoridades sobre o fenômeno da concordância é Maria Marta Pereira

100

Scherre. O seu trabalho, Scherre (2005), conforme tratamos, nesta pesquisa, é um

exemplo claro da variação da concordância no português brasileiro, fato inerente

tanto ao nosso sistema linguístico quanto ao de outros países.

101

CONCLUSÃO

Neste trabalho, buscamos discutir sobre as contribuições do funcionalismo

linguístico para o ensino de língua materna, de modo especial, para o trabalho com

o uso das formas vender e alugar quando aparece em anúncios classificados de

jornais impressos. O motivo de dar ênfase a esse aspecto, nesta pesquisa, dar-se

em função da necessidade de discutir sobre as construções (impessoais) com

verbos transitivos diretos - vende-se/aluga-se casas – estarem cada vez mais

recorrentes em nosso dia a dia, e as gramáticas e livros didáticos insistirem em

considerá-las como erros de concordância, já que consideram esse clítico como

apassivador. A verdade é que tais construções estão presentes, não apenas no uso

oral e coloquial, mas também no escrito e formal, como é o caso da pesquisa

realizada no jornal Gazeta do Oeste, cujo registro de não concordância também

acontece com certa recorrência.

Na investigação feita, obtivemos um total de 2.964 dados referentes ao verbo

vender, sendo que 1.365 ocorrências são da construção vende (verbo na 3ª pessoa

do singular); 1.133 da construção vendo (verbo na 1ª pessoa do singular); 451 da

construção vende-se (verbo na 3ª pessoa do singular + clítico se); e 15 ocorrências

da construção vender (verbo no infinitivo). Quanto ao verbo alugar, coletamos um

total de 1.699 dados, dos quais: 998 ocorrências são da construção aluga (verbo na

3ª pessoa do singular); 385 da construção alugo (verbo na 1ª pessoa do singular);

262 ocorrências da construção aluga-se (verbo na 3ª pessoa do singular + clítico

se); 26 ocorrências da construção alugamos (verbo na 1ª pessoa do plural) e 26

ocorrências da construção alugar (verbo no infinitivo). Além dessa quantificação dos

dados, tratamos também da análise de aspectos qualitativos que esses números

representam. Em outras palavras, o que buscamos descrever e analisar foi a

regularidade da construção com verbos vender/alugar observando seu uso

interativo, levando em conta as condições discursivas desse uso.

Como observamos, no decorrer das análises, há variação na forma de

apresentar os verbos vender e alugar nos textos veiculados do jornal investigado:

Gazeta do Oeste; essas formas foram introduzidas ao longo do tempo e podem ser

associadas ao processo de gramaticalização: a inserção de novas formas que

convivem com as canônicas: vende-se/aluga-se. Isso leva a pressupor que a língua

não é estática, mas maleável, adaptando-se às situações de comunicações

102

concretas. Daí a justificativa do uso de construções impessoais com verbo transitivo

direto (vende-se/aluga-se casas) que são, cada dia, mais correntes, não só no uso

oral e coloquial, mas também no escrito e formal, como constatamos nos registros

(vende-se os lotes.../casas avulsas...) de não concordância no Jornal Gazeta do

Oeste – nosso objeto de investigação. Esse se tende a desempenhar a função de

sujeito, não de pronome apassivador em construções consideradas pela gramática

tradicional como passivas sintéticas. A ideia sugerida pelo clítico se, é de que

“alguém vende”, de que “alguém aluga”, no entanto, desconhecemos ou preferimos

omitir informações a seu respeito.

Os achados da pesquisa mostram, portanto, variação no uso da linguagem,

apresentando uma nova perspectiva para as atividades realizadas com a gramática;

gramática esta, vista (após estudo da teoria e análise realizada) como componente

mutável em consequência das vicissitudes discursivas a que se molda.

O ponto de vista da linguística discursiva apresentado, neste trabalho,

pressupõe a ideia de que não há correspondência na estrutura semântico-sintática

das orações em forma passiva analítica e passiva sintética (tal qual afirmam os

gramáticos normativos) quando essas pertencerem ao gênero anúncio classificado

de jornais. O contexto discursivo, no qual os anúncios estão inseridos, é que dão

garantia a essa análise.

A constatação do se indeterminador em construções como vende-se os

lotes.../casas avulsas... aluga-se salas... só é possível quando a análise leva em

conta fatores semântico-pragmáticos, cuja função dêitica é reconhecida. O gênero

textual (como também o suporte) pode ser o responsável por esta função

indeterminadora, já que tais gêneros são afixados em locais a serem

comercializados, fazendo com que os leitores percebam o local em que estão

afixados como objeto de venda e que há alguém por trás daquela ação, um sujeito

indeterminado qualquer, cuja intenção comunicativa é apresentar à comunidade o

objeto a ser vendido ou alugado.

Isso pressupõe que a forma a ser utilizada para anunciar o imóvel ou produto

a ser vendido, vai depender, exclusivamente, das estratégias usadas pelos locutores

na produção dos textos que, por sua vez, é motivado por pressões de uso da

linguagem. Acreditamos que essas estratégias repercutem, também, no processo de

compreensão por parte dos interlocutores.

103

Acreditamos que a partir das discussões teóricas abordadas, no decorrer do

trabalho, bem como das análises realizadas, possamos analisar a gramática além do

ponto de vista formal, ou seja, considerar também suas dimensões semântica e

pragmática como sugerem os pesquisadores da corrente funcionalista. Devem

nessas análises estar incluídos: o sujeito, o uso linguístico, a história, a

heterogeneidade da língua. Daí a relevância de pesquisas que priorizem esses

aspectos. Assim sendo, configuramos essa pesquisa como uma contribuição para os

estudos funcionalistas.

Mediante o mencionado, o que propomos para a análise da concordância

verbal quando envolver o clítico se é estudá-la a partir de textos completos para que,

a partir deles, possamos extrair as regras de funcionamento. Os anúncios

classificados de jornais impressos podem se constituírem objetos de análise nesse

sentido. Para tanto, além da dimensão formal, que não causa problemas de

compreensão se levada em conta a teoria estabelecida pela gramática normativa,

devemos trabalhar a dimensão pragmática, que é a que causa mais dificuldade na

hora de escrever. Isto porque a concordância verbal é mais restrita no PB do que no

português escrito. É preciso bastante atenção para o fato de haver variação quanto

ao fenômeno em questão. No entanto, todas as variações dispõem de uma

concordância, já que nenhum falante explicando diz: “eu alugou” ou “ele vendi”, etc.

Quanto à leitura do anúncio classificado é preciso fazer uma ressalva: o texto

impresso funciona sob a forma de tópicos (ou categorias), os quais são

denominados, pela esfera jornalística como "seções" e "segmentos" e, de acordo

com a empresa jornalística, ainda podem apresentar uma hierarquia esquemática

dividida por subseções e subsegmentos. Tal organização é condição necessária

para que o anúncio classificado se realize; caso contrário, não pode receber a

respectiva nomeação, podendo, portanto, ser chamado apenas de anúncio

publicitário.

Assim sendo, a leitura desse gênero textual perpassa por duas etapas: a

primeira, na qual percebemos que, antes de começar a ler o texto propriamente dito,

somos induzidos a ler o seu suporte (jornal/caderno). Esse primeiro momento de

leitura não deve ser rejeitado, já será por meio dela que o leitor compreenderá a

ordenação/categorização a qual pertence o anúncio classificado; a segunda etapa,

por sua vez, ocorre no momento em que o leitor penetra no próprio gênero e

interpretando as abreviaturas que apresentam no texto.

104

O que podemos notar, a partir das leituras e reflexões efetuadas, é que a

abordagem funcionalista tem muito a contribuir para repensarmos as análises que

fazemos da Língua e, consequentemente, de sua gramática. A compreensão de

seus aspectos mais relevantes, entre os quais destacamos a capacidade adaptativa

da linguagem, a funcionalidade revelada de maneira parcial pelas formas da língua,

como também a abordagem dos usos linguísticos em situação real de comunicação.

De posse dos conhecimentos acerca do funcionalismo, passamos a ver a

gramática como um conjunto dos procedimentos parcialmente maleável/motivado e

parcialmente arbitrário/convencional, cuja natureza das estruturas linguísticas deve

ser vista sempre estando, nunca sendo. Ressaltamos ainda a relevância das

pesquisas de orientação funcionalista, como é o caso das motivações discursivas da

voz passiva, tema abordado por alguns pesquisadores brasileiros, cujo processo

insere o objeto de estudo – uso das formas vender e alugar (e variantes), com

ênfase no processo de concordância verbal das formas mais recorrentes: vende-

se/aluga-se + sintagma nominal em anúncios classificados do jornal impresso

Gazeta do Oeste – aqui investigado. Na verdade, um estudo, sucessivamente, leva

a outro(s), principalmente, quando se trata das pesquisas funcionalistas, cuja

proposta de análise se constitui de maneira vasta, já que abrange o uso linguístico

que contempla múltiplas possibilidades de investigação.

Em síntese, a partir da pesquisa realizada, somos levados a repensar os

conceitos gramaticais como, por exemplo, o de transitividade, que a gramática

tradicional trata como uma característica restrita aos verbos, e os pressupostos

funcionalistas tratam como uma característica de toda a sentença.

105

REFERÊNCIAS ALKIMIM T. M. Sociolingüística. In: MUSSALIN, Fernanda.; BENTES, Anna. Cristina. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2005, ALI, M. S. Gramática Secundária da Língua Portuguesa. 10ª edição. São Paulo: Melhoramentos, 1970. ALI, M. S. Dificuldades da língua portuguesa. 7. ed. – Rio de Janeiro: ABL: Biblioteca Nacional, 2008. 260 p. (Coleção Antônio de Morais Silva, v. 7).

ALMEIDA, N. M. de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. BEAUGRANDE, Textlinguistik: ZuneuenUfrn? In: ANTOS, G Tietz, H (Hsrg.). Die Zukunft der Textlinguistik.Traditiomen, Transfomationen, Trends.Tübigen:Niemeyer,RGL 188, 1997, p.1-12. BAGNO, M. Pesquisa na Escola: o que é como se faz. 3 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999. BAGNO, M. Gramática pedagógica do Português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretária da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa – 5ª a 8ª séries. Brasília: SEF, 1998. CABRAL, M.B.L. OS gêneros do discurso/textuais e o ensino-aprendizagem da linguagem. In: FIGUEIREDO-GOMES, J. B. ; OLIVEIRA, R. R. F. ; ARAÚJO, S. P.(Org). Práticas linguageiras, literatura e ensino. 1 ed. Mossoró: Edições UERN, 2011, v. 1, p. 331-346. CASTILHO, A.T. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. COROA, M. L. M. S. Programa Gestão da Aprendizagem Escolar - Gestar II. Língua Portuguesa: Caderno de Teoria e Prática 2 – TP2: Análise linguística Análise literária. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008. COSTA, M. A F.; COSTA, M de F da. Projeto de Pesquisa: entenda e faça. Petrópolis, RJ. Editora Vozes, 2011 COSTA, M. A. Procedimentos de manifestação do sujeito. In: FURTADO DA CUNHA M. A. Procedimentos discursivos na fala de Natal: uma abordagem funcionalista. Natal, RN EDUFRN, 2000.

106

CUNHA, C CINTRA, L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FIGUEIREDO-GOMES, J. B. "Annuncios" no século XIX vs anúncios classificados do século XXI. In: FIGUEIREDO-GOMES, J. B. ; OLIVEIRA, R. R. F. ; ARAÚJO, S. P.(Org). Práticas linguageiras, literatura e ensino. 1 ed. Mossoró: Edições UERN, 2011, v. 1, p. 47-66. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: Introdução à linguística: Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2010. FURTADO DA CUNHA M. A; COSTA M.A; CEZARIO, M.M. Pressupostos teóricos fundamentais. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELLOTA, M. E (Orgs.). Linguística Funcional: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. FURTADO DA CUNHA M. A.; SILVA. M.A. A gramaticalização do verbo ir: implicações para o ensino. In: FURTADO DA CUNHA M. A.; TAVARES. M.A. A gramaticalização do verbo ir: implicações para o ensino. Funcionalismo e ensino de Gramática. Natal. Editora da UFRN, 2007. FURTADO DA CUNHA M. A.; TAVARES, M.A. Linguística Funcional e ensino de gramática. In: FURTADO DA CUNHA M. A.; TAVARES. M.A. (Org.). A gramaticalização do verbo ir: implicações para o ensino. Funcionalismo e ensino de Gramática. Natal. Editora da UFRN, 2007. FURTADO DA CUNHA M. A; COSTA, M. A; MARTELLOTA, M. E. Linguística. In: MARTELLOTA, M. E. (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. FURTADO DA CUNHA, M. A; SOUZA, M.M. Transitividade e seus contextos de usos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. FURTADO DA CUNHA M. A. Funcionalismo. In: MARTELLOTA, M. E. (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. GERSON, M. Gazeta do Oeste, 30 anos sem meias palavras. Nem meias verdades. Mossoró: Queima-Bucha, 2005. GIVÓN, T. Syntax: an introduction. v.1. Amsterdam/Philadelphia John Benjamim, 2001. GONÇALVES, S. C. L; CARVALHO, C. S. Tratado geral sobre gramaticalização. In: GONÇALVES, S. C. L; LIMA-HERNANDES, M. C.; CASSEB-GALVÃO, V. C. (Org.); Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. GONÇALVES, S. C. L; CARVALHO, C. S. Critérios de gramaticalização. In: GONÇALVES, S. C. L; LIMA-HERNANDES, M. C.; CASSEB-GALVÃO, V. C. (Org.);

107

Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. HOPPER, P J. (1980) “On some principles of grammaticization” . In: TRAUGOTT, E. C. e HEINE, B. (eds.). Approach es to grammaticalization. Volume I, Philadelphia, John Benjamins Company. HOPPER, P J. (1991) “On some principles of grammaticization” . In: TRAUGOTT, E. C. e HEINE, B. (eds.). Approach es to grammaticalization. Volume I, Philadelphia, John Benjamins Company. LADEIRA, J.D. SE índice de indeterminação do sujeito ou SE sujeito? (uma proposta para discussão) In: REVISTA DE LETRAS. V. Fortaleza, Edições da Universidade Federal do Ceará, 1986? LANCASTRE, L. Leitura: a compreensão de textos. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 2003. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Cortez, 2008. MARTELLOTA, M. E. A mudança linguística. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELLOTA, M. E (Orgs.). Linguística Funcional: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. MARTELLOTA, M. E; AREAS. E. K. A visão funcionalista da linguagem no século XX. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELLOTA, M. E (Orgs.) Linguística Funcional: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. MARTELLOTA, M. E Funcionalismo. In: WILSON, V; MARTELOTTA, M.E e CEZARIO M.M. Linguística: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. MARTELLOTA, M. E. Conceitos de gramática. In: MARTELLOTA, M. E. (org.). Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008. MARTELLOTA, M. E. Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso. São Paulo: Contexto, 2011. (Coleção leituras introdutórias em linguagem; v.1) MELO, E. A. S. O PB E AS CONSTRUÇÕES COM SE NO SÉCULO XIX. In: Anais do IX Encontro do CELSUL Palhoça, SC, out. 2010 Universidade do Sul de Santa Catarina. Disponível em: http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/Elaine%20Melo.pdf. Data de acesso: 25 de maio de 2011. NARO, A. J; SCHERRE, M. M. P. (organização). Origens do Português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. NEVES, M. H. M. Gramática Funcional. São Paulo: Contexto, 1997. NEVES. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.

108

OMENA, N. P.; BRAGA, M.L A gente se gramaticalizando? In: MACEDO, A.T.; RONCARATI,C.; MOLLICA, M. C. (Orgs.) Variação e discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 75 -83. OLIVEIRA, L. A. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. OLIVEIRA, M.R.; COELHO, V. W. Linguística funcional aplicada ao ensino de português. In: FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELLOTA, M. E (Orgs.) Linguística Funcional: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. ROCHA LIMA, C H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. ROCHA LIMA, C H. da. Gramática normativa da língua portuguesa. 46 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. SCHERRE, M. M. P. Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. SOUZA, M.M. de; LOPES, A. K. C; OLIVEIRA, F. C. de.; PONTES, A. L. (orgs.). Gêneros textuais: experiências de pesquisas. – Fortaleza: EdUECE, 2011.215p.

VIDAL, R.M.B. As construções com Adverbiais em -mente: análise funcionalista e implicações para o ensino de língua materna. 187p. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL) Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal 2009. WILSON, V. Breve histórico dos estudos sobre a linguagem: da antiguidade aos primeiros passos da linguística científica. In: WILSON, V; MARTELOTTA, M.E e CEZARIO M.M. Linguística: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. WILSON, V. A linguística como ciência. In: WILSON, V; MARTELOTTA, M.E e CEZARIO M.M. Linguística: fundamentos. Rio de Janeiro: CCAA Editora, 2006. Pesquisas online: <http://www.diariosassociados.com.br/home/veiculos.php?co_veiculo=37>. Acesso em: 21/05/2010. <http://www.gazetadooeste.com.br>:. Acesso em: 17 de outubro de 2011. <http://www.guiagratisbrasil.com/jornal-diario-de-natal> Acesso em: 17 de outubro de 2011.

<http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/marcos-bagno-discussao-sobre-livro-didatico-so-revela-ignorancia-da-grande-imprensa.html>. Acesso em: 17 de outubro de 2011.