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Os Videoclipes do “Fantástico” 1 Guilherme Bryan (Doutor) 2 Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Centro Universitário Belas Artes São Paulo (SP) Resumo O programa dominical da TV Globo, “Fantástico”, é considerado o primeiro espaço de exibição do videoclipe brasileiro. O fato de essa produção ter sido realizada por profissionais da própria emissora de televisão faz dessa produção algo diferenciado quando comparado com o que se realizou na maior parte dos países, principalmente Estados Unidos e Inglaterra, no mesmo período das décadas de 1970 e 1980. Serão destacadas as principais características desses videoclipes e dos realizadores dos mesmos. Palavras-chave: Audiovisual; Televisão; Música; Videoclipe. Introdução Não se sabe ao acerto a origem do videoclipe tanto no Brasil, quanto no mundo. O certo é que ele é resultado de uma série de experimentos realizados desde o surgimento do cinema, no sentido de relacionar da maneira mais intrínseca música e imagem. Desse modo, esse formato audiovisual surgido por volta de meados da década de 1970 é considerado o ápice dessas experiências. Quando Thomas Edison criou o fonógrafo em 1877, ele sentiu falta principalmente da imagem, pois, até então, as apresentações musicais aconteciam ao vivo, com a presença do intérprete da canção. Ao mesmo tempo, as primeiras projeções de “A Chegada do Trem na Estação”, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, em 1895, foram acompanhadas pela execução de música ao vivo, o que se tornou comum nessa primeira fase do cinema. Desde então, como mencionado acima, foram realizadas várias experiências de se relacionar imagem com música, caso de “jazz shorts” (curtas-metragens exibidos antes do 1 Trabalho apresentado no GT 6História da Mídia Audiovisual e Visual do II Encontro Nordeste de História da Mídia, Teresina 20 e 21 de junho de 2012. 2 Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA- USP). Professor do Curso de Rádio e TV do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. E-mail: [email protected].

Os Videoclipes do “Fantástico”1

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Page 1: Os Videoclipes do “Fantástico”1

Os Videoclipes do “Fantástico”1

Guilherme Bryan (Doutor)2

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

Centro Universitário Belas Artes – São Paulo (SP)

Resumo

O programa dominical da TV Globo, “Fantástico”, é considerado o primeiro espaço de

exibição do videoclipe brasileiro. O fato de essa produção ter sido realizada por profissionais

da própria emissora de televisão faz dessa produção algo diferenciado quando comparado

com o que se realizou na maior parte dos países, principalmente Estados Unidos e Inglaterra,

no mesmo período das décadas de 1970 e 1980. Serão destacadas as principais características

desses videoclipes e dos realizadores dos mesmos.

Palavras-chave: Audiovisual; Televisão; Música; Videoclipe.

Introdução

Não se sabe ao acerto a origem do videoclipe tanto no Brasil, quanto no mundo. O

certo é que ele é resultado de uma série de experimentos realizados desde o surgimento do

cinema, no sentido de relacionar da maneira mais intrínseca música e imagem. Desse modo,

esse formato audiovisual surgido por volta de meados da década de 1970 é considerado o

ápice dessas experiências.

Quando Thomas Edison criou o fonógrafo em 1877, ele sentiu falta principalmente da

imagem, pois, até então, as apresentações musicais aconteciam ao vivo, com a presença do

intérprete da canção. Ao mesmo tempo, as primeiras projeções de “A Chegada do Trem na

Estação”, dos irmãos Auguste e Louis Lumière, em 1895, foram acompanhadas pela execução

de música ao vivo, o que se tornou comum nessa primeira fase do cinema.

Desde então, como mencionado acima, foram realizadas várias experiências de se

relacionar imagem com música, caso de “jazz shorts” (curtas-metragens exibidos antes do

1 Trabalho apresentado no GT 6– História da Mídia Audiovisual e Visual do II Encontro Nordeste de História da Mídia,

Teresina 20 e 21 de junho de 2012. 2 Doutor em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-

USP). Professor do Curso de Rádio e TV do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. E-mail:

[email protected].

Page 2: Os Videoclipes do “Fantástico”1

filme principal entre o final da década de 1920 e meados da década de 1940) e dos “soundies”

(pequenos filmes de curta duração projetados numa máquina, chamada Panoram, que

funcionava por meio de moedas, na década de 1940). Mas os “pais” mais próximos dos

videoclipes são os promos. Eles são produções audiovisuais que tem como objetivo a

“visualização” de uma canção em imagens, de modo semelhante aos videoclipes, mas sem

sincronismo labial, realizado em película e sem o financiamento da gravadora do artista.

No Brasil, a trajetória do desenvolvimento da relação entre música e imagem ocorre de

maneira semelhante ao resto do mundo. O primeiro marco é o filme musical “Coisas Nossas”

(1931), dirigido por Wallace Downey e que conta com o Bando de Tangará, formado por

Noel Rosa, João de Barro, Alvinho e Henrique Brito, vestidos de sertanejos e cantando

“Vamos Falá do Norte”. O segundo marco é o curta-metragem “A Velha a Fiar”, de 1964, em

que a letra de uma canção popular, composta por Aldo Taranto e interpretada pelo Trio

Irakitã, é transformada em imagens, de modo literal, pelo diretor Humberto Mauro. Por fim,

há os filmes estrelados por Roberto Carlos e dirigidos por Roberto Farias (de modo

semelhante ao que ocorrera com os Beatles e o diretor Richard Lester na década de 1960 na

Inglaterra) – “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” (1967), “Roberto Carlos e o Diamante

Cor de Rosa” (1969) e “Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora” (1971). Esses filmes são

denominados por José Mário Ortiz Ramos como sendo “pré-videoclipes” 3

.

Os festivais da música brasileira4 também representam uma mudança importante na

maneira de se apresentar a música na televisão, como bem explica o jornalista e pesquisador

musical Zuza Homem de Mello:

Os quase sonolentos programas em que um grande cantor ou cantora se

apresentava durante meia hora num cenário de gosto discutível, mesmo com

uma mulher admiravelmente fotogênica como Maysa, chegavam ao fim de

uma era. No novo modelo, havia um outro elemento: o público (...) A partir

do I Festival da Excelsior, programa musical na televisão brasileira seria

outra coisa. Uma coisa única no mundo. E ainda mais: pela primeira vez na

história da televisão brasileira, quem estava em casa tinha um contato direto

com o que acabava de sair do forno, a nova usina de produção da música

popular, a privilegiada geração dos anos 60. Esse público tinha liberdade de

3 RAMOS, José Mario Ortiz. Televisão, Publicidade e Cultura de Massa. Petrópolis, RJ. Vozes. 1995, p. 230. 4 O “Festival Nacional da Música Brasileira”, da TV Excelsior, foi realizado nos anos de 1965 e 1966; o “Festival de Música

Popular Brasileira”, da TV Record, foi realizado de 1966 a 1969; e o “Festival Internacional da Canção”, da TV Globo, foi

realizado de 1966 a 1972.

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avaliar de imediato a nova canção, influenciada ou não pelas platéias.

Liberdade de avaliar era um direito de cada cidadão, num país em que a

liberdade de pensar vinha sendo tolhida pouco a pouco havia quase um ano5.

Há bastante discussão em torno de qual foi o primeiro videoclipe brasileiro e se a

produção realizada como mais uma atração do programa dominical da TV Globo,

“Fantástico”, pode receber de fato essa denominação, o que se procurará demonstrar nesse

artigo. Outras questões-chaves no escopo dessa pesquisa são as principais características, as

produções mais marcantes e os principais realizadores desse modelo.

Surgimento do videoclipe brasileiro

“Gita”, dirigido por Cyro Del Nero, para canção interpretada por Raul Seixas; e

“América do Sul”, com direção de Nilton Travesso para música cantada por Ney Matogrosso,

disputam o posto de qual foi o primeiro videoclipe brasileiro. Os dois diretores, inclusive, já

assumiram publicamente terem sido os autores da façanha. O fato é que ambos foram

realizados por profissionais pertencentes ao quadro de funcionários da TV Globo e para ser

exibido no “Fantástico”, recém-criado programa da emissora exibido nos domingos à noite.

O programa “Fantástico” é até hoje exibido aos domingos, a partir das 20hs, pela TV

Globo, e foi criado em 1973, para ser uma espécie de “revista eletrônica”, com as mais

diferentes atrações. Por esse motivo, era possível que houvesse também atrações musicais.

Por isso, durante praticamente dois anos, muitos artistas foram convidados para ir aos

estúdios da emissora, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro (RJ), para interpretar um sucesso

do momento num número de palco, que poderia contar com a equipe de dançarinos da

emissora, assim como utilizar cenários.

Em 1974, o cenógrafo Cyro Del Nero resolveu desenvolver um número especial para a

canção “Gita”, interpretada por Raul Seixas e composta por ele e Paulo Coelho. Ele havia sido

premiado como melhor cenógrafo nacional na VI Bienal de Artes Plásticas de São Paulo e

vinha ganhando destaque em função de realizar diversas aberturas de telenovelas, como

“Corrida do Ouro”, exibida entre 1 de julho de 1974 a 25 de janeiro de 1975.

5 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais Uma parábola. São Paulo, SP. Editora 34. 2003, p. 74.

Page 4: Os Videoclipes do “Fantástico”1

A solução encontrada foi colocá-lo com diferentes figurinos, como um traje típico da

Renascença e roupa cor-de-rosa, contracenando com a projeção em chroma-key (técnica de

efeito visual que consiste em colocar uma imagem sobre outra por meio de se anular uma cor

padrão, mais comumente azul ou verde) de obras de artistas plásticos como o catalão

surrealista Salvador Dalí, o suíço Paul Klee, o flamengo Hieronymus Bosch, o pintor e

gravador espanhol Francisco de Goya e o artista gráfico francês Odilon Redon, entre outros.

Cyro Del Nero comenta a importância desse videoclipe:

Augusto César Vannucci (diretor, produtor de televisão e criador de

diversos musicais da TV Globo) me deu para fazer o que se chamava na

época número musical do “Gita”, de Paulo Coelho e Raul Seixas, e os dois

foram bater papo comigo. Eles tinham a ideia de colocar o Raul em cima de

um cavalo para atravessar a avenida Rio Branco (no Rio de Janeiro), mas eu

disse que não e fiz um storyboard. Raul era um anjo e pouco dizia. Quem

falava mais era o Paulo Coelho. Raul só me pediu para ajudá-lo a enfiar a

mão e tirar os óculos de dentro da roupa num determinado momento. E, para

terminar, eu quis alguma coisa que o celebrasse. Por isso, coloquei uma

grande rosa e várias estrelas. É engraçado, porque acho que, entre gravar e

colocar no ar, apenas o Vannucci viu. E foi um grande sucesso. O Boni (José

Bonifácio de Oliveira Sobrinho, então superintendente de produção e

programação da Rede Globo) ficou louco e disse que queria toda vez um

número daqueles no “Fantástico”. Roberto Marinho (fundador e proprietário

da TV Globo) pensou que o Boni havia comprado esse material nos Estados

Unidos. Havia um clima de que tínhamos entrado numa nova era. E não foi

em função da técnica, porque era só chroma-key, com o qual eu já

trabalhava. O que eu acho que comoveu foi uma figura como o Raul e uma

erudição ao redor, o que na televisão era raríssimo. Eu tenho até hoje um

agradecimento escrito por Paulo Coelho, em que ele se refere ao sucesso

comercial de “Gita”, muito graças ao videoclipe.6

“Gita” realmente se diferencia totalmente dos números musicais exibidos até então

pelo “Fantástico” e se aproxima bastante da definição de videoclipe desenvolvida pelo próprio

Cyro Del Nero, num e-mail enviado no grupo de discussões dos docentes e pesquisadores da

Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP):

Ao contrário do número musical – em cinema ou televisão – o videoclipe

não é apenas o registro da performance do artista, mas um trabalho criativo

elucidando, comentando, corroborando, ampliando e enaltecendo as

6 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e

Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 112.

Page 5: Os Videoclipes do “Fantástico”1

qualidades do mesmo. É rico, dependendo da cultura empregada, condizente

com o número musical ou como uma ampliação do seu sentido.7

O diretor Nilton Travesso, que trabalhara nos Festivais de MPB, da TV Record,

garante que o primeiro videoclipe foi “América do Sul”, estrelado por Ney Matogrosso e

realizado em 1975. A justificativa é que ele fora realizado em ambiente externo, escapando do

modelo dos números de palco, gravados em estúdio. Também trazia efeitos especiais, como

mudanças de cores; e possuía sincronismo labial, além de maior cuidado com edição.

Em “América do Sul”, Ney Matogrosso aparecia num matagal em Mangaratiba, no

Rio de Janeiro, sendo focalizado dançando sobre uma pedra ou se misturando com a

plantação, como espécie ambígua de homem-mulher, selvagem-civilizado, numa “América

desabitada”, como na época do Descobrimento do Brasil. O cantor também era mostrado

preso a um helicóptero, como se voasse. De acordo com as disponibilidades técnicas da

época, várias vezes as imagens mudavam de cor, entre rosa, azul, vermelho e verde.

O próprio Nilton Travesso explica o ineditismo de sua iniciativa:

O que eu imaginei? Se instalar, num gravador, uma corneta e fizer a música

sair por ela para o cantor ouvir, e, ao mesmo tempo, colocar o microfone de

saída do VT dentro da corneta, como som-guia, eu consigo fazer com que o

cantor duble e depois seja possível sincronizar som e imagem na edição. Foi

o que fiz. Só que, quando apresentei a ideia para a TV Globo, enquanto

alguns consideraram como sendo algo primário, Boni me deixou

experimentar. Foi quando comprei um gravadorzinho e uma corneta, e tive a

ideia de fazer com Ney Matogrosso. Seria filmado no helicóptero e na terra

no meio de um trigal para fazer algo bem primitivo com ele usando uma

roupa meio ratazana. Era praticamente um plano fechado com profundidade,

mostrando um espaço selvagem, dentro da filosofia da música, e com

cornetinha no ouvido dele para que pudesse ouvir e dublar. É claro que

tomamos todos os cuidados para amarrá-lo com cinto de segurança, assim

como o cameraman e eu, que segurava a corneta e um pequeno projetor de

luz, para compensar a luminosidade dentro do helicóptero. Deu tudo certo. A

única coisa que me criou problema muito sério foi que, como o

gravadorzinho era de pilha, a cada 8 ou 10 segundos, ele saía totalmente de

sincronia e, em função disso, precisamos ficar exatamente 22 horas na

edição, eu, Ricardo Leitão, que era o editor do “Fantástico”, e Roberto

Talma (então diretor do programa). Esse videoclipe ganhou até prêmio nos

Estados Unidos.8

7 NERO, Cyro Del. Videoclipe X Nilton Travesso ou A Travessura de um Sofismo NIltoniano, de 25 de maio de 2009. 8 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e

Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 113

Page 6: Os Videoclipes do “Fantástico”1

Independente de qual foi o primeiro videoclipe exibido pelo “Fantástico”, o que

interessa é o fato de que ambos foram realizados como mais uma atração do programa

dominical da TV Globo, usufruindo de seus profissionais e equipamentos – o que resultava

numa produção de custos bastante reduzidos –, mas também como importante instrumento de

marketing de uma canção e de seu artista – outra característica muito importante na

conceituação de videoclipe. Ter esse tipo de produção exibido numa das atrações de maior

audiência da emissora resultava, quase certamente, no aumento considerável das vendas do

disco, no qual estava inserida a canção, que já no dia seguinte passava a ser tocada muito mais

nas rádios também.

Principais características dos videoclipes do “Fantástico”

A cada domingo, o “Fantástico” exibia, em média, quatro novos videoclipes realizados

no Brasil e/ou estrelados por artistas nacionais, que duravam em média quatro minutos cada.

Além de apresentarem uma cara mais gráfica e plástica ao programa da emissora, essas

produções precisavam apresentar uma linguagem adequada à de todas as outras atrações

apresentadas e também ao que ficou conhecido como “padrão Globo de qualidade” e que

pode ser traduzido como bom acabamento, tecnologia de ponta e visualidade agradável.

Portanto, é fácil reconhecer que muitos desses videoclipes se pareciam uns com os outros.

A primeira característica é o fato de que, percebendo o potencial de marketing desses

videoclipes, a Rede Globo resolveu divulgar canções utilizadas e comercializadas por sua

gravadora, Som Livre, e até alterar a música de trabalho que merecia videoclipe e havia sido

sugerida por outras gravadoras. Ao mesmo tempo, a própria emissora precisava garantir a

exibição das principais produções internacionais, de astros de grande popularidade no final

dos anos 1970 e da primeira metade dos anos 1980, caso de Michael Jackson e Madonna,

como modo de aumentar a audiência. Muitas agências de publicidade também notaram que

havia ali mais um importante espaço para a inserção de merchandising de produtos.

Se considerarmos a produção do “Fantástico” como inaugural dos videoclipes

brasileiros, é importante destacar o fato de que ela estava menos associada à indústria

fonográfica, do que em outros países, como Inglaterra e Estados Unidos. É possível que haja

até um ineditismo brasileiro nesse sentido, o que ainda carece de mais investigações. O fato é

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que, segundo o depoimento de alguns diretores, após alguns anos, os videoclipes realizados

pelos profissionais da TV Globo passaram a ser oferecidos às gravadoras como artigo de

divulgação dos artistas em troca de subsídios.

O roqueiro Leo Jaime destaca a importância desses videoclipes:

: O “Fantástico” sempre foi um programa de muito Ibope, mas acredito que,

nos anos 1980, atingiu o seu auge. Então, o videoclipe do programa era o

espaço mais nobre para se lançar uma música nova, uma vez que a

repercussão era muito grande. Geralmente, fazia com o Boninho e na maior

camaradagem, porque nos divertíamos fazendo. A gente se reunia e decidia o

que ia fazer. Era a maior liberdade.9

De modo geral, as canções que receberiam videoclipes eram selecionadas na segunda-

feira, em reunião entre representantes das gravadoras e o diretor-geral do programa, José

Itamar de Freitas. Os roteiros eram aprovados às terças-feiras, e a produção era definida entre

quartas e quintas-feiras. As gravações ocorriam entre quintas e sextas-feiras; e as imagens

editadas aos sábados para ir ao ar aos domingos. Todos os videoclipes eram aprovados por

Freitas e pertenciam com exclusividade à Rede Globo, não podendo ser exibidos pelas demais

emissoras.

A segunda característica totalmente ligada à primeira é que, na maioria das vezes,

esses videoclipes trabalhavam com as canções-tema das telenovelas exibidas pela TV Globo,

muitas vezes com cenas das próprias produções ou estrelados por atrizes e/ou atores do elenco

da emissora. A razão é que, desse modo, divulgava-se não apenas as próprias telenovelas, mas

também os fonogramas reunidos em discos comercializados pela gravadora Som Livre. Um

dos videoclipes mais interessantes nessa inter-relação é “Mistérios da Meia-Noite”, dirigido

por Paulo Trevisan para Zé Ramalho, em 1985. A canção era tema do professor Astromar,

interpretado pelo ator Rui Rezende, em “Roque Santeiro”. Se o personagem se transformava

em lobisomem na telenovela, a mesma transformação sofria o cantor no videoclipe, tentando

seduzir a modelo Luiza Brunet, a qual, no final, vira uma espécie de mulher-loba.

A terceira característica importante é o fato de que, mesmo tendo sido dedicados aos

mais diferentes ritmos musicais e artistas, os videoclipes do “Fantástico” tornaram-se um

espaço importante de divulgação das novas bandas de rock, surgidas a partir do início da

9 BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e

Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 112.

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década de 1980. A principal razão é que boa parte delas tinha na imagem algo tão relevante

quanto à música em si, algo que herdaram da própria história do rock. O cantor Elvis Presley,

por exemplo, soube se valer como poucos da imagem para transmitir códigos de

comportamento e rebeldia para seu público.

Portanto, mesmo que alguns artistas e bandas tenham sentido que ficaram

descaracterizados nos videoclipes exibidos pelo programa dominical da TV Globo, caso dos

Paralamas do Sucesso, a imagem utilizada por eles tornou-se uma marca importantíssima para

esses jovens artistas. Um exemplo importante é “Você Não Soube Me Amar”, dirigido por

Eid Walesko para a banda Blitz, em 1982.

Principais realizadores

O diretor Eid Walesko foi considerado como criador de uma estética própria

desenvolvida nos cerca de 300 videoclipes que acredita ter realizado entre 1980 e 1985, e que

seria bastante criticada pelas gerações posteriores de realizadores. Ela é caracterizada pela

mistura de câmeras invertidas com muito gelo seco. É o que acontece, por exemplo, em

“Desculpe o Auê”, dirigido em 1983, para a cantora Rita Lee, e filmado em Campos do

Jordão (SP).

O herdeiro mais direto nos videoclipes do “Fantástico” é Jodele Larcher, que comenta

o trabalho de Eid Walesko:

Eid Walesko usava algumas técnicas que a gente não dominava ainda. Ele

era cameraman e começou a abrir a câmera e deixar a imagem mais brilhante

e com mais contraste. Com luz boa, figurino bom e cenário legal estava ali

um videoclipe. Com a descoberta dessa linguagem, ele se aproximou muito

da publicidade, que é mais minuciosa. O segredo dele era ter uma fotografia

primorosa, com lentes especiais, enquadramentos e a edição do falecido Ivo

Alves, que inventou os inserts de quatro frames.10

Jodele Larcher possui como principais marcas o uso de grafismos e efeitos especiais. É

dele a direção de, entre outros, “Meu Erro”, de 1984, co-dirigido com Carlos Magalhães, em

que os integrantes da banda Paralamas do Sucesso aparecem pilotando motocicletas numa

10

BRYAN, Guilherme. A Autoria no Videoclipe Brasileiro: Estudo da obra de Roberto Berliner, Oscar Rodrigues Alves e

Mauricio Eça. Tese de Doutoramento. ECA-USP. 2012, pág. 122.

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pista de motocross e contracenando com a atriz Cláudia Magno; e “Múmias”, de 1985,

estrelado pela banda Biquini Cavadão e que é uma ficção científica com muitos efeitos

especiais, filmada nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, com

participação da bailarina Cláudia Lecron.

Um dos primeiros diretores de videoclipes do “Fantástico” foi Herbert Richers Jr, que,

entre 1980 e 1990, realizou cerca de 500 videoclipes, que se destacam em função da utilização

de muitos efeitos visuais, mas também por valorizar a dramaticidade e as referências

cinematográficas. Entre eles, destaca-se a ficção científica “Vírus do Amor”, dirigida em 1985

e que mostra a intérprete da canção, Rita Lee, e o guitarrista Roberto de Carvalho, no interior

de um zepelim, simulando uma nave espacial, que desce a Terra para ser totalmente destruída,

com referências ao filme “Blade Runner – O Caçador de Andróides”, dirigido por Ridley

Scott em 1982.

Paulo Trevisan realizou cerca de 400 videoclipes, que se destacaram principalmente

pelo uso intenso de efeitos especiais em números registrados principalmente em estúdio,

valendo-se de muito bom-humor e criatividade. Esse é o caso de “Amante Profissional”,

dirigido em 1985, para a banda de rock Herva Doce, a respeito do universo dos homens

malhados em academias de ginástica. Mas quando partia para as gravações externas, Trevisan

valorizava a imagem do artista, os detalhes dos bastidores e os cartões-postais das cidades que

serviam de locação.

Em meados da década de 1980, o “Fantástico” já dividia a produção de videoclipes no

Brasil com produtoras denominadas independentes que trabalhavam para programas

segmentados das outras emissoras da televisão. Aos poucos, o próprio programa global

passou a inserir o trabalho desses novos realizadores audiovisuais em sua programação. Entre

eles, estavam nomes como o do atual documentarista Roberto Berliner e do jornalista e

cineasta José Emilio Rondeau.

O próprio José Emilio Rondeau descreve a relação com a TV Globo nesse período e

que se assemelha mais ao modelo que seria adotado pela MTV Brasil, a partir de seu

surgimento, em 1990:

Nas produtoras, a gravadora era quem financiava 100% dos videoclipes, que

iam para todos os programas que não eram da TV Globo. Havia a chance de

tentar jogar no “Fantástico”, com a condição de ser exclusivo dele durante

Page 10: Os Videoclipes do “Fantástico”1

algum tempo e só depois passar em qualquer outro lugar. Mas até ali o

programa ainda era muito autossuficiente11

.

O hoje cineasta Fernando Meirelles, naquele período, era sócio da produtora Olhar

Eletrônico, que também realizou alguns trabalhos para o “Fantástico”, mas se opunha aos

videoclipes realizados pelos profissionais da TV Globo. Ele comenta:

Nunca entramos de fato (no “Fantástico”), porque, enquanto esses diretores

da TV Globo se achavam “reis da cocada”, nós os achávamos muito cafonas,

principalmente o Eid Walesko. Até hoje se brinca, quando vai fazer a câmera

um pouquinho torta: “Faz um Eid Walesko”. Além da câmera torta,

contraluz e fumaça eram os truques (dele). Então, fazíamos coisas para o

Fantástico porque estávamos do lado de fora e, o que é legal, propunhamos

com quem (cantores e bandas) queríamos fazer. Era outra turma mesmo.

Com Roberto (Berliner), nos identificávamos mais porque é um cara que faz

documentários12

.

O fato é que, aos poucos, a TV Globo percebeu que havia gastado dinheiro em algo

que poderia ser financiado pelas próprias gravadoras, como acontecia internacionalmente, e,

assim, direcionar seus profissionais para outras atrações do programa, que, desse modo,

poderiam ser realizadas com mais tempo e dedicação.

O professor e pesquisador Arlindo Machado avalia o trabalho desenvolvido por esses

novos realizadores:

No começo dos anos 1980, uma nova vaga de realizadores vai reorientar a

trajetória do vídeo brasileiro. Trata-se da geração do vídeo independente,

constituída em geral de jovens recém-saídos das universidades, que

buscavam explorar as possibilidades da televisão como um sistema

expressivo, e transformar a imagem eletrônica num fato da cultura de nosso

tempo. O horizonte dessa geração é agora a televisão e não mais o circuito

sofisticado dos museus e galerias de arte. Muito sintomaticamente, essa

outra vaga se opõe à videoarte dos pioneiros pela tendência ao documentário

e à temática social. Com sua entrada barulhenta em cena, o vídeo começa a

sair do gueto especializado e conquista seu primeiro público.13

11

IDEM, pág. 127. 12

IBIDEM, pág. 133. 13

MACHADO, Arlindo (org.). Made In Brasil Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo, SP. Iluminuras. 2007, p. 18.

Page 11: Os Videoclipes do “Fantástico”1

Se até ali os videoclipes do “Fantástico” apresentavam o mesmo padrão de qualidade

das outras atrações da programação da TV Globo, ao mesmo tempo em que se adequava a

linguagem internacional, próxima dos comerciais; as realizações das produtoras

independentes estabeleciam um diálogo mais próximo com os artistas com os quais

trabalhavam.

Ao mesmo tempo, os investimentos limitados das gravadoras, que não dedicavam

grandes receitas para algo que muito provavelmente seria exibido uma única vez na televisão,

faziam com que esses videoclipes tivessem um aspecto mais amador, mas também tornasse

um espaço mais aberto a experimentações. É esse aspecto que predomina nas produções

exibidas pelo “Fantástico”, que segue até o início da década de 1900, quando perde a posição

de exclusividade e principal janela de exibição desse formato audiovisual para a MTV Brasil.

Considerações Finais

Procurou-se, por meio deste artigo, demonstrar como a produção realizada para o

“Fantástico”, programa exibido aos domingos pela TV Globo, pode ser considerada iniciante

dos videoclipes brasileiros, uma vez que ela se associa à indústria fonográfica e visa a

divulgação de uma canção e seu artista, valendo-se de uma associação praticamente perfeita

entre música e imagem, com sincronismo labial.

Nesse sentido, pode-se acreditar que o diretor Nilton Travesso afirma que o videoclipe

“América do Sul”, que dirigiu para Ney Matogrosso, em 1975, pode ser considerado o

primeiro do formato realizado no país. Porém, também é fácil reconhecer que a iniciativa de

Cyro Del Nero, com “Gita”, estrelado por Raul Seixas, também representou uma ruptura com

relação a maneira como se transformava uma canção em imagens até então na televisão

brasileira.

Outro objetivo foi identificar as características que fizeram dos videoclipes do

“Fantástico” diferentes das fases subquentes da história do formato no país, assim como da

produção de outros países, principalmente dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em função

principalmente por serem realizados pelos profissionais de uma única emissora de televisão

como mais uma atração de um programa de variedades, obedecendo ao padrão de qualidade

das outras atrações e da programação dela como um todo. Mas também por trabalhar com

Page 12: Os Videoclipes do “Fantástico”1

fonogramas presentes principalmente nas telenovelas e vendidos em coletâneas

comercializadas pela gravadora Som Livre, pertencente a TV Globo.

Apresentamos os principais realizadores e seus videoclipes, ressaltando as

características que os particularizaram. Por esse viés foi possível identificar as diferentes fases

dessa produção no interior do próprio “Fantástico” e de que modo ela trouxe uma passagem

para os videoclipes subsequentes, exibidos principalmente pela MTV Brasil, a partir de 1990.

Curioso é saber que o videoclipe “Flores”, dirigido por Jodele Larcher e Gringo

Cardia, em 1990, para o “Fantástico”, mas que se tornou o primeiro representante brasileiro

no Video Music Awards (VMAs), mais importante premiação mundial dos videoclipes,

realizada pela matriz norte-americana da MTV. Mesmo que, por problemas conceituais, mas

também por desavenças conceituais, a filial brasileira nunca ter exibido esses videoclipes

realizados pela TV Globo.

Referências bibliográficas

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