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Os vigilantes da patrulha perceberam o disparo da garota ... · belecido casa de recreação para nós, mas - e a face azulada de Zalat mudou de as- ... Mas o número de pessoas ao

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Os vigilantes da patrulha perceberam o disparo da garota antes que o Chefe falas-se. Ouviram-se os primeiros gritos de alarme. Bourtai fez fogo sobre o grupo. As des-cargas de raios iônicos explodiram neles e o capitão Sir Dominic Flandry caiu no chão.

Este foi o início da macabra missão de Flandry em Altai, um dos planetas neutrais existentes entre duas culturas galácticas em guerra. Mas também poderia parecer o fim da aventura, porque para além de uma possível fuga do planeta, estavam os res-tos congelados, mortais para o homem, de uma zona ultra-polar

Título original: Mayday Orbit© 1959; Poul Anderson

Mayday Orbit, by Poul AndersonAce Double F104, 1961Cover art by Ed Valigursky

Capítulo I

A visão que oferecia o planeta Altai, visto ao aproximar-se em voo espacial, a par-tir da escuridão dos postos de observação da nave cósmica e mesclado com os enxa-mes de estrelas de distantes constelação, era com certeza de uma imensa beleza.

Uma boa parte de cada hemisfério achava-se coberta pelas calotas polares.Nelas, as imensas superfícies geladas eram tingidas por uma suave luz rosada pro-

cedente do sol daquele sistema planetário, nos espaços cobertos pela neve, enquan-to que os gelos eternos dos polos brilhavam com luzes verdes e azuladas. O cinturão tropical de estepes e imensas planícies era colorido, desde o matiz bronzeado até o ouro pálido, salpicado por brilhantes lagos prateados. A três raios planetários de dis-tância, brilhava, circundando o planeta, um anel duplo de pó meteórico, refletindo sobre o equador sua luz iridescente. Mas além, no espaço exterior, as luas giravam ao redor do planeta, como duas reluzentes moedas de cobre entre as estrelas.

O capitão, Sir Dominic Flandry, agente superior do Corpo de Inteligência Naval do Império Terrestre, aproximou-se da ponte de comando da nave espacial para con-templar, interessado, aquele extraordinário panorama.

- Agora compreendo a origem do nome deste planeta - murmurou.Na língua falada pelos colonizadores humanos do planeta, e que ele havia aprendi-

do por um processo eletrônico de um comerciante do sistema de Betelgeuse, Altai si-gnificava “dourado”.

- Mas Krasna não é um nome apropriado para o sol deste sistema - continuou Sir Dominic. - Não é realmente vermelho para o olho humano, de modo algum. Nem mesmo aproximadamente, como Betelgeuse. Eu diria que está mais para uma cor amarelo-alaranjada.

O rosto azul de Zalat, que pilotava aquela nave comercial armada, contorceu-se com uma careta, que era o equivalente entre os da sua raça a um encolher de om-bros. Era um tipo moderadamente humanoide, embora de uma altura inferior à me-tade de um homem. Tipo vigoroso, desprovido de cabelo, estava vestido com uma túnica de cota de malha.

- Creio que você tem razão - respondeu Zalat.Ele falava o inglês com um sotaque terrível, talvez para enfatizar sua independên-

cia como pertencente ao sistema da estrela Betelgeuse - organização que servia de transição entre a Terra e Merseia, - o que fazia pensar que não haviam feito nada para contribuir com a corrente principal da cultura interestelar.

Flandry gostaria de praticar melhor seu conhecimento do idioma altaiano, especial-mente porque o reduzido vocabulário inglês de Zalat aparentava ser tão difícil, apto somente para conversas elementares, mas preferiu esquecer isto. Como único passa-geiro de raça estrangeira, com necessidades vitais especiais, dependia da boa vonta-de do capitão daquela nave. E, por outro lado, desejava ser grato ao povo de Betel-geuse.

Oficialmente, sua missão consistia em restabelecer contato entre Altai e o resto da

raça humana. A missão não era fundamental e, consequentemente, a Terra não o havia provido de uma nave especial naquela ocasião, deixando-o em liberdade para fazer aquela viagem ao seu livre arbítrio. Assim então, deixou Zalat à vontade.

- Além de tudo - continuou o capitão, - Altai ser colonizada primeiro fazer setecen-tos anos de Terra no passado, quando começar viagens por espaço. Não descobrir muito. Krasna deve parecer ser vermelho e frio, depois de Sol. Agora ter mais pre-sunção astronáutica.

Flandry dirigiu uma olhada ao universo povoado de estrelas, que eram miríades, mais do que poderia contar, mais do que alguem poderia imaginar. Uma estimativa de quatro milhões, incluindo a vaga esfera de influência do chamado Império Terres-tre, não era mais que uma insignificante porção de um braço da espiral daquela Ga-láxia comum. Mesmo acrescentando os impérios não humanos, os sistemas sobera-nos como Betelgeuse e os informes dos poucos exploradores espaciais que se ha-viam distanciado ao máximo desde os antigos tempos da exploração cósmica, aquela parte do universo conhecido pelo homem era aterradoramente pequena. E por muito que se esforçassem, sempre permaneceria assim.

- Com que frequência você vem aqui? - perguntou Flandry, alterando o denso si-lêncio do interior da nave.

- Uma vez cada ano-Terra - respondeu Zalat, com sua semi-língua inglesa - Mas haver outros comerciantes além de mim. Eu fazer comércio de peles, mas Altai tam-bém produz minerais, gemas, produtos orgânicos e outros que ter demanda em meu sistema. Assim, haver naves de Betelgeuse frequente caminho para Ulan Baligh.

- Você vai demorar muito tempo?- Eu esperar que não. Este ser lugar ruim para gente não humana. Eles haver esta-

belecido casa de recreação para nós, mas - e a face azulada de Zalat mudou de as-pecto - haver muitas complicações. Última vez esperar um mês inteiro para comple-tar carga. Esta vez ser pior com certeza.

- Ya, ya - pensou Flandry. E acrescentou, em um tom perceptível para Zalat: - Se os metais e as máquinas que você trouxe para troca comercial têm o valor que você afirma, me surpreende que os altaianos não adquiram naves espaciais para empre-ender tal comércio por sua conta.

- Eles não ter nenhuma civilização comercial - respondeu Zalat. - Lembre que nós betelgeusianos vir aqui fazer menos de cem anos. Antes Altai estar isolado. Naves espaciais primitivas trazer colonos fazer muito tempo que estar muito usadas. Colo-nos tampouco ter interesse depois por outros contatos galácticos. Recordar você que planeta ser tão pobre em metais pesados que construção de naves novas seria muito custoso para eles. Agora pode ser que muitos jovens de Altai tentar esta empreitada. Mas ultimamente o Kha Khan haver proibido qualquer tais projetos para sair do pla-neta, só fazê-lo para muitos poucos de nós betelgeusianos que ser muito conhecidos, todos de grande confiança e gente representativa do sistema Betelgeuse. Esta proibi-ção é uma razão para insurreições contra ele.

- Entendo - Flandry dirigiu um olhar sombrio aos vastos campos gelados do plane-ta. - Qualquer um que quiser sair desta bola congelada e não possa, conta com toda minha simpatia, claro. Se este fosse meu planeta, creio que me dedicaria a procurar um inimigo que quisesse comprá-lo.

“Entretanto estou me dirigindo para lá - refletiu Flandry. - Quanto mais se parte e se esmigalha o Império, com mais frenesi uns poucos de nós os espaciais estamos sempre procurando maior espaço vital... Caso contrário, a Longa Noite pode cair so-bre o curso sacrossanto das nossas próprias vidas. E com respeito a este particular - sua mente continuou pensando - tenho boas razões para acreditar que um inimigo

está tentando ficar com o planeta”.

Capítulo II

Originados nas neves polares do planeta Altai, diversos rios muito largos e de pou-ca profundidade se estendiam em direção sul sobre as estepes. No lugar onde dois deles se encontram, o Zeya e o Talyma, no lugar denominado Osero Rurik, havia sido fundada a cidade de Ulan Baligh pelos primeiros colonizadores. Nunca tinha tido real-mente uma grande população; era então o único remanescente como assentamento dos habitantes humanos do planeta, que não alcançariam os vinte mil residentes. Mas o número de pessoas ao seu redor era muito maior que esta cifra. Havia sido o lugar de encontro dos homens das tribos que vinham à cidade para comerciar, para se reunirem ou para realizar ritos religiosos na Torre do Profeta. Tinham cercado a parte sul da cidade, que lhes servia de acampamento, próximo ao primitivo aeropor-to espacial, acendendo suas fogueiras ao longo de vários quilômetros, seguindo a margem do lago.

Quando a nave espacial aterrizou, o capitão Flandry estava mais interessado em alguma coisa menos pitoresca. Havia subornado um engenheiro para permitir-lhe desfrutar de uma maravilhosa vista da torre de controle do aeroporto. Dali ele pôde observar a linha do monotrilho que circundava a cidade, e pela qual corriam a enor-mes velocidades vagões especiais que viajavam como projéteis. Observou o movi-mento de transporte de modernos engenhos militares, assim como de muitos tan-ques e outros apetrechos. Via igualmente o aquartelamento e pavilhões do tipo mili-tar em construção a oeste da cidade, próprios para um exército em armas, e um edi-fício perto da praça do mercado central com todas as características de uma grande central geradora de energia, apropriada para toda a zona urbana. E tudo aquilo era novo. Nada daquilo havia sido construído em qualquer fábrica controlada pelo Impé-rio Terrestre.

“Apesar de tudo, este material pode ter sido fornecido pelos meus pequenos cama-radas verdes - murmurou para si mesmo. - Se os merseianos conseguirem uma base aqui na região neutra e nos rodearem como em Cata Wrayanis... bem, isto não seria decisivo por si mesmo, embora lhes permitiria estender suas garras um pouco mais. E se eventualmente a mão se estender o suficiente, sem dúvida irão dar início a uma grande guerra.”

Não era a primeira vez que sofria alguma decepção amarga procedente do seu próprio povo, rico demais para gastar fortunas em um ataque aberto, com a desculpa - embora alguns deles ainda negassem - de que existia uma ameaça que poria em desequilíbrio a gloriosa paz terrestre. “Depois de tudo - pensou sombriamente - era para alegrar-se dessas loucuras em seu próprio lar, já que a Terra estava em franca decadência.

Mas naquele momento a Terra estava a trezentos anos luz de distância e ele tinha um trabalho a fazer.

Por sua mente passaram rapidamente os diversos fatos que a Inteligência havia captado na região de Betelgeuse. Os comerciantes espaciais haviam mencionado cu-

riosas idas e vindas em um lugar chamado Altai. Dispunham de pouca informação específica para lhe fornecerem, pois só se importavam com aquele lugar quando se relacionava aos seus negócios. A informação foi revelada finalmente, quando os ho-mens da Terra a provocaram com oportunos copos de licor, e passou ao seu corres-pondente local nos arquivos secretos: onde se achava o planeta, identificando-o fi-nalmente como uma velha colonia humana distante dos usuais caminhos do espaço, embora não tão extraviada que não pudesse ser vigiada.

Uma investigação a fundo teria requerido vários meses e algumas centenas de agentes. Naquela tremenda dispersão do espaço entre tantas estrelas, a Inteligência decidiu enviar apenas um homem. Na Embaixada Terrestre em Betelgeuse VI, Flan-dry recebeu um grosso volume sobre Altai, com uma informação sobre seu trabalho e com a ordem de inteirar-se de tudo quanto ali acontecesse. Depois do que, os inte-grantes da Inteligência, sobrecarregados de trabalho, o deixaram com sua missão. E voltariam a se lembrar dele quando voltasse a informar sobre a sua missão, ou se ti-vessem notícias de que teria morrido de alguma forma fora do normal. Mas se ne-nhuma daquelas coisas acontecesse, Altai poderia permanecer na escuridão por ou-tra década.

“O que seria uma perda de tempo muito longa”, pensou Flandry.Com ar despreocupado, Flandry voltou para sua cabine na alta torre de controle.

Os altaianos não suspeitariam que ele tinha visto suas novas instalações militares ou, caso suspeitassem de algo, achariam que sua opinião sobre aquele equipamento era que se destinava simplesmente a prevenir qualquer tipo de rebelião local. O Khan de-via ser extremamente descuidado, por não esconder tal evidência aos olhos do mun-do exterior. Sem dúvida alguma porque não esperava que algum investigador terres-tre viesse bisbilhotar. Não teria procedido assim, com certeza, se suspeitasse que tal investigador pudesse voltar com tão importantes informações ao Império Terrestre.

Na cabine, Flandry vestiu-se com seu habitual cuidado. De acordo com as informa-ções que possuía, as pessoas de Altai gostavam de usar cores chamativas em suas roupas, de forma ostensiva. Escolheu uma camisa resplandescente de cor verde, uma espécie de jaleco bordado, calças púrpura com meias-botas de couro nas quais luzia uma faixa dourada, um cinturão vermelho e uma pequena capa da mesma cor, cobrindo-se com um boné negro que contornava apertadamente sua cabeça de ca-belos castanhos. Flandry era um magnífico tipo de homem: alto e musculoso, deno-tava uma grande energia em seu rosto harmonioso, agraciado com um nariz reto e grandes olhos cinzas e um pequeno e bem cuidado bigode.

A nave espacial finalmente tocou a terra em uma extremidade do aeroporto. Em frente à que acabava de chegar de viagem, estava estacionada outra nave espacial de Betelgeuse, confirmando a informação dada por Zalat em relação à frequência do comércio interestelar. Não era precisamente uma relação acelerada, e sim contínua, talvez uma duzia de naves estelares em um ano-estandar, e que constituía, sem dú-vida, uma razão de grande importância econômica local.

Ao deter-se no ponto de desembarque, Flandry sentiu o alívio pela gravidade do planeta, que era somente de três quartos da terrestre, e acomodou-se imediatamen-te àquelas novas condições. A cidade de Ulan Baligh estava situada a 11 graus de la-titude Norte. Com uma inclinação axial de rotação parecida com a da Terra e ilumina-da por uma estrela anã e pálida, e sem oceanos que modificariam o clima, Altai co-nhecia estações quase iguais às do equador. O hemisfério norte acabara de passar pelo equinócio de outono e estavam na proximidade do inverno. Uma corrente cons-

tante de vento procedente do polo, e que Flandry achava fria, açoitava agradavel-mente seu rosto.

Fez sua aparição pública com a dignidade que havia imaginado, achando-se frente à autoridade que o recebia.

- Saudações - disse Flandry no idioma altaiano que havia aprendido. - Que a paz reine em vosso espírito. Esta pessoa se chama Dominic Flandry e representa o Impé-rio da Terra.

O altaiano piscou seus olhos rapidamente mas seu rosto permaneceu impassível como uma máscara. Era um tipo com o nariz adunco e uma barba espessa, sua tez clara denotava uma mistura caucasoide em sua origem racial, assim como a lingua-gem um tanto híbrida que falava. Era de constituição forte e maciça e tinha uma re-duzida estatura. Vestia um gorro de pele, uma jaqueta de couro de complicada ma-nufatura, calças de feltro espesso e botas de uma bonita linha. Levava na cintura uma pistola automática de modelo antigo, à esquerda, e na direita um potente pu-nhal.

- Nós não tínhamos recebido ainda tal classe de visitantes... - respondeu e, após uma pausa e concentrando-se em si mesmo, inclinou-se respeitosamente. - Sejam bem vindos todos aqueles hóspedes que vêm com palavras honestas - acrescentou com um acento ritual. - Esta pessoa se chama Pyotr, da escolta do Kha Khan.

E voltou-se para Zalat.- Capitão, você e sua tripulação podem proceder como de costume. Eu o verei

mais tarde, depois das formalidades legais. Primeiramente devo acompanhar um hóspede tão distinto como este ao palácio do Kha Khan.

Bateu palmas rapidamente e apareceram dois serventes, semelhantes na vesti-menta e aparência a ele. Olhavam com atenção para o terrestre, de quem não tira-vam o olho de cima. Apesar dos aspecto impassível dos seus rostos, aquilo era sen-sacional em suas vidas. A bagagem de Flandry foi carregada em um pequeno veículo elétrico de transporte de desenho antigo.

- Sem dúvida - disse Pyotr Gutchluk - um grande Orluk como você preferiria um varyak a um tulyak.

- Sem dúvida - respondeu Flandry, constatando que seu idioma altaiano acabara de ser enriquecido com estas duas novas palavras.

Um varyak era uma espécia de motocicleta local. Era um veículo compacto de duas rodas impulsionado suavemente por um motor adequado e que dispunha de um lu-gar atrás para as bagagens, sendo equipado na parte dianteira com uma metralha-dora, embora Flandry supusesse que não se tratava de uma arma atual. A condução era feito por meio de uma barra cruzada para ser guiada com os joelhos. Dispunha também de outros aparelhos, entre eles um radio emissor/receptor que era controla-do em um painel no parabrisas. Quando o varyak ia muito depressa ou quando para-va, podia-se baixar uma pequena roda auxiliar no lado esquerdo, que lhe servia de suporte.

Pyotr ofereceu a Flandry um capacete provido de um forte visor que tirou da bolsa do selim do varyak. Sentou-se no comando da máquina e saiu disparado a 200 quilô-metros por hora. Flandry sentia-se golpeado terrivelmente por um forte vento que, ao bater no parabrisas, golpeava seu rosto e quase o fazia cair do veículo. Mas era preciso conservar o prestígio do Império Terrestre e, fazendo um tremendo esforço, acomodou-se o melhor que pôde na garupa da máquina, atrás de Gutchluk.

Quando irromperam na cidade, já havia adquirido a destreza suficiente e já se per-mitia voltar-se para olhar em todos os sentidos. Uma vista interessante de tudo aqui-lo se oferecia à sua curiosidade. A cidade de Ulan Baligh estendia-se ao longo das

terras planas de uma enorme baia sobre o lago. Mais além, as águas tinham uma cor intensamente azulada. Sobre sua cabeça observava um céu azul profundo e os anéis do planeta. De cor pálida durante o dia, apareciam como um halo gélido entre a luz daquele sol alaranjado.

Gutchluk tomou um caminho elevado, suspenso por enormes pilares em forma de dragões que sustentavam os cabos entre os dentes e que parecia ser somente para uso oficial. Ninguém transitava por ele, salvo alguma patrulha ocasional de varyaks. Abaixo, Flandry podia observar os tetos curvados dos edifícios de tijolo vermelho, so-bressaindo das velhas muralhas de pedras tingidas com um matiz avermelhado pelo sol. Todos os edifícios eram de grandes dimensões. Os do tipo residencial deviam acolher várias famílias e os dedicados ao comércio eram pontilhados por pequenas lojas. As ruas eram amplas, limpas e bem conservadas e estavam cheias de um pú-blico nômade e do vento que soprava sem cessar. A maior parte do tráfego se fazia a pé.

Em frente a Flandry apareceu o palácio com suas altas muralhas, podendo-se ob-servar nele os jardins e, no centro, a residência real. Era uma versão em escala gi-gante das residências da cidade, mas ornamentada alegremente e com esplendor. Enormes dragões de madeira formavam grandes colunas, arrematadas por outros dragões de bronze no teto. Entretanto, tudo era diminuído em relação à grande Torre do Profeta, que se alçava maestosa a cerca de um quilômetro de distância mais além.

Pelas vagas descrições dos betelgeusianos, Flandry havia deduzido que a maior parte dos altaianos professavam uma espécie de religião que era como uma síntese do budismo e do islamismo, codificada há séculos pelo profeta Subotai. A religião contava somente com aquele grande templo, que era suficiente para todos. Aquela altíssima torre alçava-se orgulhosa no tênue ar do planeta, como se quisesse alcan-çar o céu. Construída basicamente no estilo de um pagode e pintada de vermelho, ti-nha um grande terraço orientado para o Norte. E nela, em um grande painel, havia cinzeladas, em uma espécie de alfabeto sino-cirílico, as palavras do profeta, conside-radas sagradas para sempre. Mesmo o próprio Flandry, pouco reverente por costu-me, não deixou de sentir um sentimento de respeito e temor. Uma formidável vonta-de havia conseguido erigir aquela colossal edificação em semelhantes terrenos da grande planície.

O caminho elevado começou a descer gradualmente e o varyak conduzido por Gut-chluk deteve-se finalmente em uma porta de acesso ao palácio. Flandry, cuja estatu-ra era mais alta que qualquer outro tipo local, teve vários inconvenientes ao atraves-sar a entrada, estando a ponto de machucar-se várias vezes devido à pouca largura do passadiço que percorriam. Em uma curva final a passagem era tão estreita para o tamanho de Flandry que ambos estiveram a ponto de cair. Finalmente, foi solta a ter-ceira roda do varyak, que diminuiu de velocidade até parar. Segundos antes, Flandry saltou agilmente do selim do varyak descrevendo um arco no ar e caindo rapidamen-te de pé.

- Pelo Povo de Gelo! - exclamou Gutchluk, com a face suada. - A Terra engendra homens temerários, pela minha fé!

- Oh não - respondeu Flandry. - Uma pequena demonstração, mas não temerária. Nós sempre sabemos como agir.

Mais uma vez agradeceu mentalmente à educação recebida em sua preparação atlética, dentre a qual achava-se a prática do judô. Umas vez abertas as portas do palácio, Flandry seguiu altivamente pelo caminho, ante o assustado olhar dos solda-dos do Khan.

Os jardins que ladeavam o acesso que haviam seguido eram plantados por todos os tipos de arbustos anões, flores anãs, pontes arqueadas e rochas, e por todas as partes havia líquens das mais variadas espécies. Nenhuma espécie de vegetal que precisasse de muita água e calor poderia ser cultivada em Altai. Flandry podia com-provar isto pela tremenda secura em seu nariz e na sua garganta. O ar era muito seco e frio, produzindo-lhe um constante mal estar. Uma vez dentro do palácio, sen-tiu-se muito melhor ao comprovar que a atmosfera assemelhava-se bastante à ter-restre.

Um sujeito de barba branca, vestido com uma roupagem de pele estranha fez-lhe uma profunda reverência.

- O próprio Kha Khan lhe oferece suas mais calorosas boas vindas, Orluk Flandry - disse. - Ele o receberá agora.

- Mas os presentes que trago para ele...- Isto não importa agora, meu senhor.O camareiro da corte inclinou-se novamente, voltou-se e adiantou-se mostrando o

caminho. Passaram através de diversos altos corredores abobadados com estranhos ornamentos e tapetes. No palácio reinava um silêncio profundo. Os serviçais desliza-vam sem o menor ruído, os guardas permaneciam imóveis em seus postos com seus uniformes arrematados por uma cabeça de dragão, com suas túnicas de couro e suas armas ostensivamente visíveis, enquanto que por todas as partes grandes trípodes lançavam fumo de incenso. Aquela grande residência palaciana parecia totalmente em estado de alerta.

“Imagino que vim causar transtorno em alguma coisa - pensou Flandry, com sua inata rapidez mental. - Suspeito que aqui está sendo tramada alguma conspiração e que se encontram tão distantes da Terra que não a levam em conta. E eis que repen-tinamente se apresenta um oficial terrestre, depois de quinhentos anos. Qual será a reação dessa gente? Esperemos para ver.”

Oleg Yesukai, Kha Khan de todas as tribos, tinha uma estatura maior que a maioria dos altaianos. Seu rosto alongado, era adornado por uma barba pontiaguda e aver-melhada. Grandes anéis de ouro e luxuosas roupas bordadas davam-lhe o porte dig-no da realeza, mostrando um ar altivo e impaciente, produto de um tedioso costume. A mão que Flandry, que estava de joelhos, elevou para a frente em sinal de respeito, era musculosa e enérgica. A pistola que o régio personagem ostentava parecia ter sido usada com bastante frequência.

Aquela câmara de audiência privada estava adornada de vermelho, com ornamen-tos que pareceram um pouco grotescos a Flandry, mas era dotada de um moderno equipamento magneto-fônico dos betelgeusianos e além disso, ali perto havia uma mesa na qual se amontoavam os documentos oficiais.

- Sente-se - disse-lhe Khan com um gesto.O Khan, por sua vez, sentou-se em uma poltrona de pernas curtas e abriu uma

caixa de cigarros cinzelada em osso. Um duro sorriso apareceu em seu rosto.- E agora que já nos livramos da presença dos meus estúpidos cortesões, não pre-

cisaremos de muito tempo para tratar do assunto que o trouxe aqui - disse friamen-te.

Pegou um estranho cigarro avermelhado na caixa.- Eu lhe ofereceria de muito boa vontade um destes cigarros, mas temo que o dei-

xariam doente. Ao longo de tantas gerações alimentando-nos do que é produzido no solo de Altai, nosso metabolismo deve ter mudado de alguma forma, sem dúvida al-

guma.- Vossa Majestade é muito engraçado - respondeu Flandry, enquanto acendia um

dos seus próprios cigarros, acomodando-se tanto quanto lhe permitia o reto encosto da poltrona que ocupava.

Oleg Khan respondeu com o maior descaramento:- Engraçado! Hum! Escute isto, terrestre. Aos cinquenta anos de idade, meu pai se

transformou em um homem fora da lei na tundra. (referia-se a anos de duração lo-cal, um terço maior que os da Terra. Altai se localizava a uma unidade astronômica de distância de Krasna, mas essa estrela era de massa menor que o Sol.) Quanto ti-nha trinta anos, ocupou esta cidade de Ulan Baligh, com 50.000 guerreiros e enviou o velho Tuli Khan para as neves do Ártico. Mas ele nunca gostou de viver na cidade. Seus filhos se criaram no ordu, ou seja, nos acampamentos, onde ele sempre havia vivido. Guerreamos contra os Tebtengri, tal como ele conhecia a guerra. Mas não ti-vemos professores para aprender a ler, a escrever, nem a praticar nenhum ciência, Orluk Flandry. Nunca tive tempo de aprender graça nenhuma.

O visitante terrestre aguardou passivamente. Isto pareceu desconcertar Oleg, que fumava com furiosas tragadas. Após alguns segundos, ele inclinou-se para Sir Domi-nic Flandry e continuou:

- E então, porque o seu Governo se digna em contactar-nos?- Tenho a impressão, Majestade - respondeu Flandry com voz tranquila, - que os

colonos originais de Altai vieram para tão longe do Sol para escapar à nossa vigilân-cia e conhecimento.

- Certo, é verdade. Nossos antepassados vieram para cá porque eram fracos, e não por causa de sua força. Os planetas em que os homens pudessem controlar tudo eram raros. Distanciando-se definitivamente, aqui chegaram umas quantas naves es-paciais carregadas de habitantes da Asia Central, evitando assim ter que continuar lutando pelo Império Terrestre. Não pensavam, claro, em transformar-se em um re-banho. Tentaram primeiramente explorar a terra, mas isso foi impossível, pois era muito fria e seca, entre outros inconvenientes. Não era possível tentar erigir uma in-dústria nem uma sociedade produtora de alimentos sintéticos, não existiam metais pesados, nem combustíveis fósseis, nem produtos fissionáveis. Este é um planeta de baixa densidade, como você verá. Pouco a pouco, ao longo de gerações inteiras, com uma vaga tradição que os guiassem, viram-se obrigados a adotar uma vida nômade. Isto era o mais conveniente em Altai e assim foram crescendo. Claro que as lendas alteraram os fatos. A maior parte da minha gente ainda acredita na Terra como sen-do uma espécie de paraíso perdido e que nossos antepassados eram guerreiros fan-tásticos.

Com olhos turvos, Oleg olhava fixamente para Flandry. Coçou pensativamente a barba.

- Além disso eu tenho lido muito e pensado muito também, para ter uma clara ideia do que seu Império é realmente e do que pode e do que não pode fazer. Assim então, que objetivo tem em vista esta visita, neste preciso momento?

- Nós permanecemos ausentes por duas razões principais - respondeu Flandry com aprumo. - Em primeiro lugar, não estamos muito interessados na conquista pela con-quista em si. E em segundo, nossos homens de negócios têm evitado completamente todo este setor. Como você pode ver, isto fica muito longe das estrelas dos nossos sistemas centrais. Os betelgeusianos, estando perto da sua base de partida, podem competir em termos desiguais. Além disso, o risco de encontrar-se com uma armada espacial dos merseianos, nossos inimigos, é pouco atrativo. Em resumo, não houve ocasião civil nem militar para voltar a Altai. Entretanto, o Imperador não quer perder

o contato com nenhum membro da família humana. Como portador da sua vontade, tenho o prazer de trazer-lhe pessoalmente suas fraternais saudações. (Isto era sub-versivo, já que a palavra a empregar teria sido “paternal”, mas Oleg Khan não teria apreciado amavelmente ser patrocinado). Além de tudo - continuou Flandry, - se Al-tai deseja reunir-se conosco, para uma mútua proteção e para obtenção de outros benefícios, há muitas possibilidades que nós podemos considerar e discutir. Unir-se ao Império não significa necessariamente transformar-se em uma província do mes-mo. Vossa Majestade, se você preferir, poderia considerar-se como um residente Im-perial, intercambiando ajuda e todo tipo de informação...

Flandry deixou escapar a proposta com todas suas consequências.O rei altaiano não respondeu, para surpresa de Flandry, com o tom colérico de um

soberano a quem se questiona seu poder real, pelo contrário, e diante da surpresa do terrestre, respondeu.

- Se você se sente preocupado pelas dificuldades internas do momento, deixe de estar. O nomadismo necessariamente significa tribalismo, o que facilmente conduz ao regime feudal e à guerra. Já lhe contei que meu pai tomou o poder do clã Nuru Ba-tor. Em troca, existem certos gurkhans que se rebelam contra nós. Qualquer um po-derá confirmar-lhe que a aliança denominada Tebtengri Shamanate nos proporcionou muitos distúrbios e preocupações. Mas isto não é nada de novo na história de Altai. Em todo o planeta eu conto com o apoio mais firme que tenha tido nenhum outro Kha Khan desde os tempos do Profeta. Em pouco tempo botarei no bolso cada um desses rebeldes.

- Com a ajuda de armamento importado? - perguntou Flandry à queima-roupa, elevando imperceptivelmente as sobrancelhas.

A pergunta era arriscada, mas ele não podia deixa de fazê-la, evitando a todo cus-to, claro, deixar transparecer a evidência de tudo quanto havia observado. Ante a aparente impassibilidade do Khan, Flandry acrescentou:

- O Império ficaria encantado em enviar uma missão técnica.- Não duvido disto - foi a resposta seca de Oleg.- Posso perguntar, respeitosamente, que planeta fornece a assistência que Vossa

Majestade está recebendo agora?- Tal pergunta é impertinente, como você pode compreender - respondeu altiva-

mente o Khan. - Não tomo como ofensa, mas declino de respondê-la. Confidencial-mente, posso dizer-lhe que os antigos tratados mercantis entre Altai e o povo de Be-telgeuse garantiam aos caras azuis desfrutar do monopólio de certos produtos de nossa exportação. Esta outra raça, a única que nos vende armas, toma como paga-mento os mesmos artigos. Não estou violando nenhum compromisso, já que não me considero ligado aos compromissos assumidos pelas dinastia de Nuru Bator. Entre-tanto, claro, seria inoportuno que o pessoal de Betelgeuse descobrisse os fatos des-tas circunstâncias.

O momento era o mais propício para a mentira. Tão bom o considerou Flandry que desejou que Oleg acreditasse que ele havia caído nela. Assumiu um falso sorriso afe-tado para dizer ao Kha Khan:

- Compreendo perfeitamente, Majestade. Pode estar certo da discrição terrestre.- Assim o espero - disse Oleg humoristicamente. - Nosso tradicional castigo para os

espiões implica em um método que os conserva vivo por vários dias antes de serem executados.

O golpe de Flandry foi bem calculado, mas não havia encaixado totalmente.- Posso lembrar a Vossa Majestade, o Grande Khan, com todo o respeito, que no

caso em que alguns dos seu sujeitos mal educados quisesse agir impulsivamente, a

Armada Imperial teria ordens de reprimir qualquer ataque sofrido por um terrestre, em qualquer parte do Universo que acontecer.

- Muito certo, meu amigo.O tom de Oleg era tão sardônico, que manifestava claramente que a famosa lei

universal para ele era letra morta, exceto como uma desculpa ocasional para bom-bardear qualquer mundo que saísse da linha e que não estivesse em condições de voltar-se contra o agressor. Entre os comerciantes, seus próprios agentes, no sistema Betelgeusiano estavam vendendo-lhe armas, e o Kha Khan havia-se transformado em um tipo sem piedade, bem informado sobre a política galáctica como qualquer aristocrata terrestre. Ou de Merseia.

A realidade era assustadora. Flandry havia forçado cegamente em busca do seu propósito. E agora se dava conta, passo a passo, quão perigosa e tremenda era aquela evidência.

- Uma política sadia - continuou Oleg. - Mas falemos com franqueza, Orluk. Se você sofresse, digamos, qualquer dano ocasional em meus domínios e se seus supe-riores interpretassem mal as circunstâncias, embora eu acredite que não o farão, eu me veria forçado a solicitar a ajuda conveniente, que, claro, está sempre disposta.

“Merseia não está longe - pensou Flandry - e a Inteligência sabe que agora eles dispõem de uma frota cósmica massiva em sua base mais próxima. Se eu quiser re-cuperar os direitos terrestres novamente, deverei começar a agir assumindo todos os riscos que nunca anteriormente corri, em uma vida estupidamente desperdiçada.

E acrescentou em voz alta, fanfarroneando:- Betelgeuse tem tratados com o Império, Majestade. Eles não interviriam em uma

disputa puramente humana.E como estivesse assustado com sua própria ousadia, continuou:- Mas não haverá, claro, disputa alguma. Certamente ninguém deseja, nem eu

vejo o motivo. Nossa conversa tomou uma direção pouco agradável e, bah! das mais desagradáveis. Não há porque falarmos de ofensa alguma... Eu estou interessado em colônias humanas distanciadas do Império. Um dos funcionários dos arquivos men-cionou seu formoso planeta. E enquanto eu me dirigia para cá, foi sugerida a ideia de que eu fosse portador oficial das melhores saudações do Império..

E assim continuou Flandry, durante um longo tempo.Oleg Yesukai sorria, irônico.

Capítulo III

O planeta Altai girava sobre seu eixo em uma rotação diurna de 35 horas. Flandry adaptou sua vida ao tempo daquele mundo, como todos seus habitantes, deixando para o final da jornada o período de descanso. Empregou a tarde percorrendo Ulan Baligh, fazendo constantes peguntas sem importância aos guias, sabendo que tudo isto seria conhecido pelo Khan. Tinha que fazer quatro ou cinco refeições no longo dia do planeta e assim foi convidado a comer nas casas de vários personagens princi-pais do Clã Yesukai. Tudo aquilo foi sendo aproveitado para a realização da sua mis-são. Também fez uma refeição em uma das alegres casas destinadas aos viajantes nômades, reforçando suas opiniões sobre o que acontecia.

No crepúsculo, observou a Torre do Profeta emergindo como uma estátua colossal, iluminada, dirigindo-se para o céu como uma lança sangrenta por cima da cidade e das suas ruas multicores, em direção ao infinito povoado de estrelas. O muro sagra-do do templo aparecia branco, com a Escritura Sagrada esculpida ao longo daquela gigantesca tábua de dois quilômetros, cheia de preceitos religiosos que conduziam a um caminho austero e amargo pela vida presente.

- Estou vendo - exclamou para si Flandry – Mas não o fazemos.O chefe dos guias, um guerreiro corpulento, endurecido como couro por décadas

de vento e de frio daquele mundo, parecia inquieto.- Devemos voltar ao palácio, Orluk. O Kha Khan ordenou que fosse feito um ban-

quete em sua homenagem- Oh, excelente, magnífico! - respondeu Flandry.E dirigindo para o guia, mostrou imediatamente um interesse exagerado pela

Grande Torre do Profeta.- Um momento. É incrível, este arranha-céu é uma maravilha. Vocês já pensaram

que ele poderia ser a maior atração turística da Galáxia?- Necessitamos purificar-nos com ablusões antes de entrar, Orluk.Um jovem acrescentou bruscamente:- Em nenhum caso lhe será permitida a entrada. Você não é um iniciado. E não há

lugar mais santo entre todas as estrelas do céu.- Oh! Bem... nesse caso... Sinto muito e espero não tê-los ofendido. Não se impor-

taria se eu pudesse tirar fotografias amanhã?- Sim - respondeu o jovem. Não há nenhuma lei contra isto, mas não podemos ser

responsabilizados pelas atitudes dos homens das tribos que vissem você usar sua câ-mera. Ninguém, exceto os Tebtengri, olharia para a Torre se não fosse com a maior reverência em seus olhos e em seu espírito.

- Tebtengri?- Sim, rebeldes e pagãos, lá longe, no Norte.O maior dos guias levou a mão aos lábios e à fronte, como em um exorcismo con-

tra as forças ocultas do diabo.- São gente má, culpadas de todos os males de Trengri Nor e traficantes da Cidade

do Gelo. Muito piores, talvez, que os selvagens voiskoye. Para os Tebtengri, o mal substitui a justiça. Não se deve falar deles senão para exterminá-los. E agora deve-mos nos apressar, Orluk

- Ah sim, claro.Flandry saltou para o tulyak que estava ao seu serviço, uma carruagem aberta com

motor, com um dragão na parte dianteira.Enquanto era conduzido ao palácio, foi avaliando seu conhecimento; com um re-

sultado desfavorável para a situação. Algo estava sendo tramado, alguma coisa supe-rior a uma guerra civil. Era evidente que Oleg Khan não tinha a menor intenção de que a Terra tivesse o mínimo conhecimento disto. Um agente da Terra que se metes-se no assunto, e que obtivesse o menor conhecimento, teria poucas probabilidades de retornar vivo à sua pátria. Só permitiriam isto a um completo idiota. Se Flandry convenceria os altaianos disso, era outro assunto. A coisa não seria fácil, mas não havia outra solução que tentar, às custas do que fosse. Se, arriscando a vida de al-gum modo, avisasse a força de choque da Armada do Império Terrestre, Oleg se pre-cipitaria a avisar seus amigos que, sem dúvida alguma, não estavam precisamente interessados em um negócio particular de venda de armamento, como queriam fazê-lo crer. Altai não tinha produção suficiente em todo o planeta para pagar aquele ar-mamento. Se essa gente se adiantasse à Armada Imperial, para proteger seus inves-timentos militares, no ato seria provocada uma guerra. E como era lógico, por sua proximidade eles tinham uma vantagem do tempo ao seu favor, dado o espaço a per-correr. E a Armada não teria que agradecer-lhe precisamente em tomar parte em uma campanha perdida de antemão.

Um cigarro o ajudou a acalmar sua inquietação e ele lembrou que poderia muito bem ter manifestado ao Quartel General, antes de aceitar aquela missão, que estava afetado gravemente de qualquer enfermidade.

No apartamento que lhe haviam reservado no palácio como hóspede distinto, en-controu ao seu serviço um ajudante de câmara especial. Mas o homenzinho estava indeciso quanto à vestimenta do homem terrestre e empregou meia hora para esco-lher uma apresentação adequada. Finalmente ele fez sua aparição no grande salão, onde uma guarda de honra o esperava. Foi escoltado para uma imensa câmara espe-cial para festas e banquetes reais e ficou à direita do Khan.

Não havia mesa. Uma centena de pessoas sentava-se com as pernas cruzadas em ambos os lados de uma grande pedra da largura da câmara real. Como entrada, ser-viram um caldo, que lembrava vagamente, embora com sabor mais picante, uma sopa de cozinha caseira, e que foi servida circularmente. Depois, e sempre a um si-nal do Khan, foram servidos outros pratos diferentes com carnes e comidas gorduro-sas que, embora diferentes dos da Terra, não eram ruins. E constantemente serviam uma espécie de chá verde com um certo conteúdo alcoólico. Uma pequena orquestra animava o banquete, composta de estranhos instrumentos de sopro, enquanto que ininterruptamente atuavam grupos de bailarinos, acrobatas e outras atrações diver-sas. No final do banquete entoaram uma velha música tribal, enquanto um trovador cantava as lendas tradicionais. Foram distribuídos presentes do Khan a todos os pre-sentes e o festim terminou. Não foi pronunciada uma só palavra que sugerisse qual-quer tipo de conversação.

Flandry, ligeiramente embriagado pelo festim, seguiu sua guarda de honra até seus aposentos. Seu ajudante lhe desejou boa noite e correu a cortina de peles que ser-viam como portas no interior do palácio.

Um esplêndido globo radiante iluminava o aposento, mas era desativado pela luz que procedia do exterior e que penetrava através dos balcões. Flandry dirigiu-se para

um dos balcões, abriu-o e olhou para fora, atraído por aquele estranho e fascinante espetáculo.

Aos seus pés jazia a cidade mergulhada nas sombras. Podia apreciar os redondos telhados das edificações e as ruas tinham um aspecto de um escuro frio. Mas distan-te, piscavam as luzes intermitentes dos acampamentos. Ozero Rurik estendia-se até se perder de vista no horizonte distante, como uma gigantesca folha de ébano poli-do, alterado somente pelo tremor luminoso das luas de Altai. À sua esquerda, erguia-se fabulosa a Torre do Profeta, como uma chama perpétua que parecia ter as conste-lações celestes como coroa. Os dois satélites, que naquele momento estavam no ple-nilúnio, iluminavam o ambiente com sua luz avermelhada, parecendo à primeira vista um pouco maiores que a Lua da distante Terra. A luz dos satélites inundava a imensa planície, e tanto Zeya como Talyma impregnavam a atmosfera com uma estranha fosforescência. Mas os anéis de Altai dominavam todo o conjunto. Descrevendo um arco no céu meridional, iluminavam por sua vez o firmamento, como um conjunto de arco iris. Quase sempre, estrelas fugazes passavam velozes, traçando jatos de luz viva, consequência dos pequenos meteoritos procedentes daquela faixa dupla, que irrompiam na atmosfera de Altai.

Flandry teve que suspender sua admiração daquele belo espetáculo, ao sentir a fri-eza do ar noturno e voltou à temperatura mais amena do seu quarto. Quando fechou o balcão, uma mulher entrou, vindo do dormitório. Ele de certo modo já esperava aquele tipo de hospitalidade. Era uma mulher alta em comparação com a maioria das mulheres altaianas. Uma bela cabeleira negro-azulada caia-lhe pelos ombros e os be-los olhos com brilhos de vitalidade com um leve tom esverdeado, raro no planeta, olhavam-nos sem piscar. Quanto ao resto das suas feições estava velado por um manto finíssimo, bordado a ouro. Ela avançou até estar bem perto de Flandry e espe-rou submissa pelo primeiro sinal do oficial terrestre.

Assim eles permaneceram, observando-se por quase um minuto. O silêncio era tão denso que se poderia perceber o murmurio do vento lá fora. Os dragões e guerreiros das tapeçarias que adornavam o quarto pareciam se mover naquela quietude.

Finalmente, em voz baixa e atropelada, ela perguntou:- Orluk, você é um espião da Mãe dos Homens?- Espião? - respondeu Flandry atônito, pensando aterrado em agentes provocado-

res. - Não, nem espião nem nada que se pareça a semelhante coisa. Ela pôs uma mão sobre seu braço. Tinha dedos frios quee lhe apertavam com

uma força frenética. Com a outra mão tirou o véu que a cobria, aparecendo aos olhos de Flandry um belo rosto de pele clara e acetinada e com feições delicadas. Uma mulher belíssima. Ela começou a falar em um sussurro tão rápido que Flandry mal podia seguir o curso das suas confidências.

- Quem quer que você seja, tem que me ouvir. Se você é um guerreiro, quando voltar à sua pátria conte o o que vou lhe dizer, a quem quer que seja. Eu sou Bourtai Ivanskaya, do povo Tumurji que pertencia ao Tebtengri Shamanate. Com certeza você já ouviu falar deles, inimigos irreconciliáveis de Oleg, expulsos para o Norte; mas sempre em guerra com ele. Meu pai era um Noyon, um chefe de divisão, bem conhecido de Juchi Ilyak. Caiu na batalha do Encontro dos Rios no ano passado, onde os Yesukai ocuparam completamente nosso ordu. Fui trazida com vida para o palácio, em parte especialmente como refém. Como se isto pudesse influenciar o meu povo! E em parte também, como componente do harém de Yesukai. Desde en-tão eu venho ganhando alguma confiança no palácio. Isto já me serviu muito, já que o harém é um centro permanente de intrigas. Nada fica escondido por muito tempo ali, e é ali que geralmente começa a descoberta dos maiores segredos palacianos.

- Estou entendendo - murmurou Flandry. - Já conheci outras culturas poligâmicas antes. A verdade é que os políticos acostumados a compartilhar sua cama com mu-lheres estranhas fazem um mal negócio.

Ela olhou para ele intrigada, sem compreender bem, e acrescentou:- Eu ouvi falar que chegará um comboio terrestre e suponho que será para contra-

atacar o que Oleg está tramando contra a Mãe dos Homens. É preciso que isto seja conhecido. Eu achei uma forma de ser substituída por outra mulher, não me pergun-te como, mas consegui. Durante este ano eu me vali disto para conseguir muitos se-gredos do harém, por meio dos seus guardiães e de gente de confiança desse mons-tro Oleg. Eu tenho o direito de fazer isto e não importa o método que eu empregue. Nenhum método é desonroso para mim. Oleg Khan é meu inimigo mortal, pois tam-bém era do meu pai morto. Qualquer meio de vingança contra ele é legítimo. Mas o pior de tudo é que a Santa Terra está em perigo. Escute, homem da Terra...

Flandry aguardou, vigilante e com a tensão contida. Durante aqueles instantes a situação havia tomado um rumo tão fantástico, que o tinha paralisado pelo assom-bro. Parecia-lhe estar assistindo a um estereorama ruim no qual usavam uma garota no lugar de um tipo desagradável, que gaguejava dramaticamente sua autobiografia como um prólogo de uma revelação improvável. Agora ele compreendia repentina-mente que aquilo era uma coisa real. Aquele melodrama estava em marcha e ele de-via assumir o papel do herói, deixando de lado a parte cômica, ou estaria perdido.

Flandry ergueu-se em frente a Bourtai, dizendo com pressa mal contida:- Minha queria jovem senhora, eu não tenho a menos competência para essas

questões. Além disto, tenho ouvido muitas e mais plausíveis histórias de garotas co-loniais que esperam voltar livremente para a Terra. Lá, posso assegurar-lhe, além de não ser um lugar bom, muito pelo contrário, não há lugar para uma jovem das colô-nias cósmicas se não dispuser de fundos próprios. Não quero ofender o orgulho local, mas a ideia de que um simples planeta possa oferecer qualquer ameaça para o Im-pério seria a coisa mais divertida, além de não ter fundamento algum. Eu lhe rogo, me esqueça.

Bourtai deu um passo para trás e jogou para o lado o manto que a cobria. Ela es-tava usando um vestido translúcido que revelava uma figura de certo modo fora dos cânones do gosto terrestre por uma bela mulher, mas mesmo assim atrativa. Teria desfrutado daquela observação se não fosse pelo doloroso aturdimento do rosto da jovem.

- Mas meu senhor Orluk - balbuciou Bourtai. - Eu juro pela nossa Mãe comum!“Pobre romântica - pensou Flandry, - quem você acha que sou, um deus visitante

de Altai? Se é tão estúpida, que nunca ouviu falar de microfones secretos no quarto de um hóspede, então Oleg Khan não existe. Cale-se ou nos matarão.”

E em voz alta acrescentou, adotando um ar cínico:- Bem, por Sírio, devo reconhecer que isto é magnífico. Providenciar-me uma bela

espiã é uma coisa estupenda. Mas agora deixe de lado a dissimulação, querida. Va-mos jogar uma partida de pessoas adultas, que tal?

Flandry dirigiu-se para ela, mas Bourtai saltou agilmente desvencilhando-se de Flandry, parando mais distante, onde suplicou com os olhos cheios de lágrimas:

- Não, você está louco, estúpido. Você está cego, tagarela sem cérebro, tem que me escutar! Terá que me escutar, nem que eu tenha que bater com sua cabeça no chão. E diga a eles, diga a eles, quando voltar à Mãe Terra, diga-lhes que enviem um verdadeiro agente secreto e que ele comprove o que está acontecendo.

Flandry acuou-a e segurou-a fortemente pelos pulsos e tentou fazê-la se calar com um beijo, mas ela o golpeou duramente no nariz com uma cabeçada. Flandry recuou,

aturdido pela dor, enquanto ouvia o desesperado protesto de Bourtai:- São os merseianos! Sim, esses sujeitos enormes de pele verde, são monstros,

são os merseianos, estou lhe dizendo. Eles vêm aqui secretamente, de uma base de aterrizagem escondida. Eu mesma os vi caminhar por estes salões na escuridão da noite. Também sei por outras mulheres, a quem algum orkhon bêbado confessou. Eu mesma me arrastei como rato por este muros e os ouvi pessoalmente. São os cha-mados merseianos, o mais terrível inimigo que jamais tiveram sua raça e a minha.

Flandry sentou em um divã, limpando o sangue do bigode.- Isto não importa por agora - disse em voz baixa. - Como poderemos sair daqui?

Quer dizer, antes que os guardiães venham e nos matem.Bourtai permaneceu silenciosa e Flandry notou que havia se expressada na língua

ânglica. imaginou que não seriam mortos se sua captura se tornasse impossível. Flandry não podia saber se existiam microfones ou lentes escondidas nas paredes e se qualquer informação recolhida passaria como informação para ser estudada na manhã seguinte.

Levantou-se rapidamente e tomou Bourtai em um simples abraço. Ela reagiu com uma velocidade felina, lançando-lhe um terrível murro na garganta. Flandry já havia abaixado a cabeça, recebendo o impacto no crânio Com as duas mãos agarrou a bor-da do véu de Bourtai e cruzou os antebraços na garganta da jovem e, antes que ela pudesse reagir de outro modo, Flandry a tinha presa perto de si. Ela tentou atacá-lo com os dedos nos globos oculares, mas ele voltou rapidamente a cabeça, sendo atin-gido novamente no nariz. Ferido novamente, como depois do beijo, sentiu uma dor aguda mas não a soltou. Ela começou a respirar ofegante e Flandry deu meia volta a seu redor e imobilizou-a com uma chave de judô no na garganta. Por um instante pareceu que Bourtai desmaiava por falta de ar. Flandry aproximou a boca do ouvido da jovem e sussurrou baixinho:

- Cabecinha oca, não chegou a pensar que o Khan suspeita de mim? E que há es-cutas por todas as partes? agora nossa única e desesperada chance consiste em sair daqui, de que modo for. E roubar uma nave dos betelgeusianos com certeza, se pu-dermos. Primeiro eu devo aparentar que a prendi. Isto pode afastar as suspeitas e fazer com que não venham logo para deter-nos. Compreendeu? Quer jogar seu papel na comédia?

Ela se ergueu rígida e Flandry percebeu seu quase imperceptível movimento de ca-beça. O corpo da jovem, apoiado contra o seu, parecia controlar todos seus nervos e músculos. Nunca havia visto uma mulher que fosse tão competente em um caso de emergência física. Sem a menor dúvida, Bourtai Ivanskaya havia recebido um grande treinamento militar.

Bourtai tinha que precisar dele.Em voz alta, Flandry começou a fanfarronear:- Bem, eu toda minha vida eu jamais ouvi nada tão ridículo. Não existem esses tais

merseianos nesta vizinhança estelar. Eu examinei tudo meticulosamente antes de chegar a esta conclusão e não vou acreditar em semelhante armadilha. Que lhe pa-rece? Na verdade você não fez nada mais que se condenar com estas palavras vene-nosas e acho que o melhor é que seja encerrada, senhora. Vamos, e nada de tru-ques!

Ele a puxou de rastros, do quarto para o corredor, que era sustentado por uma longa série de colunas. Uma das extremidades se abria como uma janela, sob a qual havia mais de vinte metros de profundidade sobre a fria e escura noite do exterior. A outra extremidade dava acesso à escuridão do exterior do palácio, iluminada, aquela parte do longo corredor, por lâmpadas de colunas, de trecho em trecho. Flandry ar-

rastou Bourtai naquela direção, que descia abruptamente por uma longa escada. Daí a pouco tempo tropeçou com um par de sentinelas estirados em seus postos de guarda, com seus capacetes, suas jaquetas de couro, suas pistolas e facas no cinto.

Um deles dirigiu-se bruscamente para Flandry:- Alto! O que vocês estão fazendo?- É esta garota - respondeu Flandry, tratando depreciativamente aquele fardo vivo.

- Ela começou a me contar todo tipo de estupidez. Quem é o chefe? A insensata pen-sava que eu iria ajudá-la a destronar o Kha Khan. Imagine!

Enquanto isso, a jovem gesticulava, como uma vítima conduzida ao matadouro.- O que? - respondeu o soldado, aproximando-se deles.- Os Tebtengri me vingarão - gritou furiosamente Bourtai. - O Povo do Gelo reduzi-

rá este palácio a cinzas e pisoteará seus ossos sob seus pés, raça de malditos!Flandry compreendeu que se aproximava o momento de agir rapidamente, mas os

guardas continuavam olhando atônitos o que estava acontecendo. O mais próximo puxou sua pistola.

- Eu a levarei, Orluk - disse. - Boris, corre e avisa ao comandante.Quando o guardião se aproximou, Flandry deixou a garota em liberdade. Protegido

por uma couraça de aço e de couro rígido no torso, o sentinela era pouco vulnerável. Flandry lançou um punho, como um projétil, no nariz do guardião que cambaleou

como um bêbado, colhido pela surpresa; recuou até a balaustrada e rolou sem vida pela escadaria. O outro, que havia dado meia volta para avisar ao chefe da guarda, voltou-se e já se preparava para sacar a pistola, mas Bourtai pôs a perna no caminho e o empurrou e ele caiu no solo como um fardo. Flandry lançou-se contra ele em uma luta mortal e ambos começaram a rolar pelo chão como duas feras prestes a se despedaçarem.

Bourtai havia recolhido o punhal do primeiro sentinela e esperava a primeira opor-tunidade entre aqueles dois homens presos em um abraço mortal. Flandry soltou-se por um instante, deixando seu inimigo a descoberto, e Bourtai prendeu a cabeça do indivíduo pelo queixo e, rápida como um raio, apunhalou-o mortalmente.

Flandry se arrumou.- Pegue suas armas, rápido!Eles desarmaram rapidamente os dois homens.- No momento nós conseguimos mais do que eu imaginava. Conhece a saída?

Guie-me, vamos.Bourtai lançou-se escadas abaixo, flutuando após ela o véu finíssimo, bordado de

ouro e a capa de seda transparente. E Flandry a seguia como um louco, passando por uma luz e outra. Os sapatos soavam sobre o mármore no silêncio noturno. Dan-do a volta a uma espiral da grande escada. Flandry percebeu a presença de um es-quadrão de soldados que subiam rapidamente.

O chefe da patrulha lhe perguntou:- Está com o prisioneiro em segurança, Orluk?Não havia dúvidas de que existia um operador humano no sistema secreto de in-

tercomunicações eletrônicas do palácio. Claro, mesmo no caso de que tivesse entre-gue Bourtai, Flandry não teria podido salvar sua pele. Por mais estúpido que fosse o operador, tinha que ter ouvido demais. Mas eles não imaginavam seus propósitos atuais.

Os primeiros da patrulha receberam o disparo da jovem antes que seu chefe tives-se voltado a falar. Ouviram-se gritos de dor. Bourtai fez fogo contra o pelotão e ou-viu-se o impacto dos raios iônicos explodindo no alvo. Flandry jogou-se no chão e uma descarga de fogo chiante caiu sobre o lugar que ele ocupara antes. Flandry dis-

parou por sua vez em um amplo círculo; mas com a energia muito diluída para matar a curta distância, embora tenha alcançado quatro homens com o fogo. Quando pro-duziu-se uma gritaria entre os inimigos, saltou agilmente e lançou-se pela brecha aberta momentaneamente. Dali, em um terraço, uma ampla rampa de mármore bru-nido descia em espiral até o piso inferior, para o andar térreo do palácio. Flandry lan-çou-se como um raio, deslizando como em um tobogã. No fundo existia uma espécie de passadiço de curta distância, onde por umas portas de cristal se tinha acesso aos jardins. Os satélites de Altai e os anéis eram tão brilhantes no céu noturno, que não precisava de luz artificial para ver a meia duzia de varyaks que se dirigiam em plena marcha para aquela entrada. A guarda existente nos jardins já fora alertada pelo ruí-do da luta.

Flandry lançou-se para um lado da porta de cristal. A dois metros de altura a porta era ladeada por janelas arqueadas. Fez um sinal para Bourtai que estava encolhida contra uma delas, fazendo um estribo com suas mãos. A garota saltou sobre o ba-tente, quebrou o vidro da janela com a empunhadura da pistola e disparou nova-mente contra a tropa. Flandry refugiou-se atrás de uma coluna e o resto dos solda-dos se precipitou pela rampa de mármore em sua perseguição. Flandry disparou no-vamente. Naquela posição descoberta, os soldados recuavam, saindo da visão do seu atacante.

Um varyak irrompeu pela porta do passadiço e o soldado que ia a bordo tentou es-conder a cabeça atrás dos vidros, com os braços. Flandry disparou antes que ele pu-desse ficar a coberto. O varyak perdeu a direção e se espatifou contra o umbral, fi-cando ali virado, atravessado na entrada. O condutor levantou-se cambaleando e tentou disparar no terrestre, mas Bourtai o atingiu lá de cima.

Bourtai saltou.- Eu derrubei mais dois - disse. - Outros dois escaparam e devem está por aí pe-

dindo ajuda.- Teremos sorte, Bourtai - respondeu energicamente Flandry. - Onde ficam as pró-

ximas portas?- Devem estar fechadas. Não poderemos atravessá-las sem antes destruir as fe-

chaduras.- Encontrarei um meio. Pronto. Ajude-me; nós usaremos estes dois varyaks. Pode

dirigir o outro? Siga-me depressa. Utilizaremos o fogo das armas dianteiras e vere-mos o que acontece.

Flandry precipitou-se sobre as máquinas sem sentir o frio intenso do jardim. Tirou das máquinas os cadáveres dos seus ocupantes, colocou os varyaks em posição de partida e ocupou um deles. Bourtai o seguia no outro a uma curta distância. Dirigi-ram-se acelerando para a passagem pelo trilho de acesso. Até então, o emprego das armas havia resultado na patética situação em em que se encontravam, mas aquilo tinha um limite. Duas pessoas não podiam fazer frente a centenas de inimigos por muito tempo. Deviam se apressar para escaparem.

Uma labareda atingiu Flandry. Instantaneamente, ele se encolheu sobre o selim do varyak para proteger a cabeça. Sentiu-se ferido na perna com uma dor desesperada. Lançou a máquina a uma maior velocidade e deu uma rápida olhada para trás. De ambos os lados da passagem, a dupla sobrevivente dos homens da patrulha lança-vam-se em sua perseguição.

Adiante apareceu uma pequena ponte muito arqueada. Sua máquina esquivou-se rapidamente e no momento de passar pela corcova da ponte ele abandonou a má-quina de um salto, no estilo de um bom judoca, com os músculos relaxados e prote-gendo o rosto com um braço. Apesar de tudo, levou uma forte pancada no nariz, já

ferido anteriormente. Por um instante ficou cego pelas lágrimas que não pôde con-trolar, deixando escapar umas quantas maldições que serviram para desabafar. Ocul-tou-se rapidamente na escuridão, ao longo da linha dos varyaks.

O varyak ficou tombado de costas quando ele o abandonou. Na confusa luz do am-biente, os dois guardiães passaram a uma grande velocidade, sem suspeitarem da emboscada, e Flandry os abateu, um após o outro, no momento em que cruzaram por ele.

Um ruído e um movimento inusitado se elevava em toda a zona dos jardins e das muralhas do palácio. As janelas estavam iluminadas e acenderam-se até os olhos dos dragões das altas colunas, que brilhavam sinistramente na noite. Flandry precipitou-se para limpar o caminho dos três varyaks imoveis, que ocultou perto de uma cerca.

- Traga os restantes! - gritou para BourtaiA jovem se aproximava, trazendo a reboque outras duas máquinas.- Vamos logo! Cada um de nós usará um.Ocultos sob uma rocha saliente, pareciam um par de sombras. A luz das luas de

Altai se espargia pela área dos jardins como uma névoa de luz acobreada. A grande muralha externa cortava brutalmente aquele nimbo de luz, que se transformava em uma completa escuridão mais além.

- Usaremos os varyaks restantes para fazer saltar as portas - disse Flandry. - Pode ser?

- Tem que ser - respondeu Bourtai.Com dedos ágeis, a jovem abriu os painéis de controle dos varyaks e tirou dos

mesmos diversos utensílios e roupas.- Aqui sempre há roupas guardadas e capacetes de substituição. Quando é preciso

conduzir a uma longa distância pela planície, sem trocar de roupas, o perigo de mor-rer por congelamento é certo. Ponhamos o capacete por enquanto. Mas tarde nos vestiremos de forma apropriada.

- Não precisaremos de roupas em caso algum - respondeu Flandry. - Tudo que te-mos que fazer é chegar ao aeroporto espacial.

- Acha que o aeroporto não estará cheio de gente de Oleg Yesukai? - observou a jovem.

- É mesmo. Por todos os diabos!Dispuseram rapidamente os quatro varyaks em fila, uma atrás do outro, lançados a

toda velocidade para a porta de entrada do recinto real. Eles ocuparam os seus e se-guiram as máquinas sem piloto pelo trilho. Três guerreiros desceram correndo atra-vés de um caminho, aparecendo, por um momento, iluminados pela luz dos satélites, para desaparecerem novamente na escuridão. Não pareceram se dar conta da pre-sença dos evadidos. As tropas da guarnição real deviam estar em uma formidável confusão, pensou Flandry. Deviam escapar a toda velocidade antes que aquela histe-ria passasse e se organizasse uma perseguição sistemática.

As grandes portas de acesso apareceram à sua vista. Estavam protegidas com grossas barras, destacando-se com um branco mortiço, entre a luz difusa da noite. Flandry podia observar os varyaks lançando-se como raios contra as portas, com me-teoros resplandescentes. As sentinelas do alto da muralha tinham uma excelente pontaria e abriram um fogo rápido contra as máquinas, mas nelas não existiam con-dutores a quem abater.

O primeiro varyak explodiu contra a porta como uma bomba, saltando em peda-ços. Flandry acreditou ter ouvido passar perto da sua cabeça pedaços de metal ao vermelho vivo, zumbindo como projéteis. O segundo varyak produziu outro impacto terrível e as barras cederam um pouco. O terceiro, ao explodir, abriu uma pequena

brecha e o quarto as abriu de par em par.- Agora!A 200 quilômetros por hora, Bourtai e Flandry escaparam como um raio através

das portas destroçadas. Aproveitaram os poucos segundos de surpresa da guarda, antes que continuassem disparando. A máquina de Bourtai esteve a ponto de esma-gar-se contra os restos dos varyaks amontoados, mas com uma incrível rapidez de reflexo ela se livrou do obstáculo e desapareceu por uma avenida, uma vez cruzada a grande praça esterna do palácio. Flandry por sua vez livrou-se milagrosamente de todos aqueles inconvenientes e esteve a ponto de cair fulminado por uma descarga que explodiu a alguns passos adiante do seu varyak. Seguiu na direção de Bourtai a toda máquina.

Dirigiu uma olhada para o Norte, passada a Torre do Profeta, para o aeroporto es-pacial. Pôde observar sobre ele, nas alturas, uma série de aparelhos que evoluíam como uma enxame de vespas. Era inútil toda esperança de acessar qualquer nave espacial dos betelgeusianos. Igualmente impossível, era pensar em localizar Kalak naquelas circunstâncias. Onde ir então, sob aquele céu impiedoso coalhado de estre-las outonais?

Bourtai seguia meio quilômetro à frente de Flandry, a toda velocidade, descendo por uma rua estreita e iluminada. Deixou-a servir de guia, concentrando-se sombria-mente em evitar qualquer acidente. Parecia um farol distante, a que tinha que seguir cegamente, até que se acharam longe da cidade e livres, na imensa planície.

Capítulo IV

O vento silvava entre o alto capim e o sussurro se estendia como as ondas de um mar através de quilômetros sem conta, como se fosse morrer no fim do mundo. Aquele mar de capim sem fim mostrava os mais variados matizes. Aqui e ali apare-ciam, de vez em quando, estranhos arbustos com seus frutos gelados como espigas vermelhas.

Acima das suas cabeças o céu parecia com uma fria abóboda, muda e impiedosa. A estrela Krasna luzia muito baixa no Oeste, quase rente ao horizonte, com sua cor laranja pálido, semeando a planície de luz avermelhada e sombras fugidias Os anéis do planeta pareciam uma ponte gelada para o sul de Altai. Para o Norte, o céu mos-trava um tom esverdeado, que Bourtai conhecia muito bem como o anúncio de próxi-mas tempestades de neve.

Flandry estava agachado no meio de uma moita de capim tão alta quanto ele. Le-vantou-se por um momento e pôde distinguir uma nave aérea, sem dúvida mandada em sua captura. Deslocava-se pelo ar em suaves espirais e Flandry estava certo de que os técnicos que a dirigiam traçavam com tal aparelho, e com outros mais, uma sistemática rede por todo o planeta. Lançou mão dos binóculos do equipamento do varyak e ela lhe apareceu ainda muito distante, apenas como um relâmpago metáli-co. Mas estava convencido de que em sua busca empregariam telescópios, detecto-res de metais, amplificadores de raios infravermelhos e todos os meios conhecidos da tecnologia altaiana.

Flandry não tinha muitas ilusões quanto a escapar por muito tempo da persegui-ção ordenada contra ele pelo Khan. Dois dias planetários no máximo? Sua memória estava debilitada. Estava somente possuído de um desejo febril: escapar para o Nor-te, sempre para o Norte, correndo por jornadas esgotantes, com a pele destroçada pelo vento frio, dormindo somente escassos minutos sobre a máquina, alimentando-se enquanto viajavam com a comida do equipamento do varyak e parando o tempo justo para encher suas garrafas de água, que Bourtai sabia encontrar por sinais invi-síveis para ele. Sentia-se invadido por uma dor atroz, tanto física como moral.

A planície era incrivelmente vasta. Entre as duas calotas polares do planeta, a fa-bulosa planície cobria quase duas vezes a área da terra firme da Mãe Terra, já que em Altai não existiam mares nem oceanos. O capim nem sempre era tão alto como o daquela vizinhança, mas o suficiente para escondê-los da vigilância aérea. Os fugiti-vos haviam rodado por caminhos povoados de diversos rebanhos de animais, os quais apagavam os traços deixados à sua passagem. Seguiam sempre a rota traçada por Bourtai, que tinha o instinto seguro do caçador para saber como confundir seus perseguidores.

Agora parecia que a caça estava próxima do fim.Flandry olhou para a jovem. Ela permanecia sentada no chão, com as pernas cru-

zadas e com ar impassível. Via-se seu tremendo esgotamento nas olheiras que mar-cavam seus belos olhos. Com as roupas destroçadas, o cabelo preso dentro do capa-

cete, podia ser confundida com um rapaz. Mas o óleo espalhado em seu rosto, para proteger-se contra a dureza do clima, fazia com que seu bom aspecto em geral não houvesse sofrido grande alteração.

- Acha que esse indivíduo nos descobriu? - perguntou Flandry.- Ainda não - respondeu Bourtai. - Ainda estamos no final do alcance dos seus de-

tetores. Não lhe será fácil localizar qualquer objeto visível sob seu aparelho, dos mi-lhões existentes na planície.

- Então... passaremos desapercebidos e eles irão embora?- Temo que não - respondeu Bourtai, perturbada. - As tropas do Khan não são

idiotas. Tenho uma ideia sobre o sistema que empregam em suas buscas. O piloto desse aparelho, e seus camaradas, continuarão traçando círculos até que a noite caia. A rede que estão tecendo até agora, com certeza é para nos pescar nela. Sa-bem muito bem que se continuarmos dirigindo durante a noite devemos nos servir dos aquecedores dos nossos varyaks ou morreremos gelados. Mas esses aquecedo-res são o melhor ponto de referência para seus detetores de raios infravermelhos.

Flandry coçou a barba, desesperado.- Que acha que devemos fazer?- Devemos ficar aqui - respondeu a jovem, sombriamente. - Temos sacos de dor-

mir no equipamento dos varyaks. São suficientes para ficarmos vivos. A radiação dos nossos corpos não é suficiente para nos delatar, a menos que a temperatura baixe muito, e neste caso morreremos de frio.

- A que distância acha que nos encontramos dos nossos amigos?Bourtai fez um gesto de cansaço e um triste olhar se adivinhava em seus formosos

olhos.- Não posso dizer com segurança. Eles vão se movimentando sob o Khrebet ao

longo da faixa do Kara Gobi. Nesta época do ano, dirigem normalmente para o Sul e acho que não estaremos muito longe de algum ordu dos Tebtengri. Mas as distâncias nunca são pequenas na planície.

Após um momento de silêncio, acrescentou:- O pessoal do Khan conhece, assim como nós, que a energia que move nossos

varyaks acha-se quase esgotada. Se sobrevivermos a esta noite, amanhã deveremos andar a pé. Em tal situação, com certeza morreremos por alguma tormenta antes de encontrarmos ajuda.

Flandry deu uma olhada nos veículos, sujos de pó e amassados por aquela terrível viagem. Lhe pareceram, entretanto, maravilhosamente construídos e resistentes, fa-bricados com inteligente cuidado e com bons materiais; especialmente surpreenden-te em uma economia não mercantil. Os aparelhos de radio poderiam, sem dúvida al-guma, chamar a várias centenas de quilômetro de distância. Mas ao primeiro sinal, atrairiam sobre eles os vigilantes aéreos, como falcões famintos.

Deitou-se sobre as costas, deixando que seus músculos esgotados relaxassem. O solo estava gelado. Um momento depois, Bourtai fez o mesmo, aproximando-se de Flandry até juntar seu corpo com um gesto de completa confiança.

- Se não pudermos escapar, bem, tal é o destino marcado na eterna pauta do es-paço-tempo - disse a jovem, mais calma do que ele havia imaginado; - mas se tiver-mos sorte, qual é seu plano, Orluk?

- Informar a Terra, suponho. Não me pergunte como.- Seus amigos não virão vingá-lo se você não voltar?- Não. O Khan só precisa dizer aos betelgeusianos que eu, infelizmente, morri por

causa de algum acidente, de alguma rebelião, ou de qualquer outra causa, e que fui incinerado com todas as honras. Não lhe será difícil fingir tal evidência. Qualquer ca-

dáver mutilado serviria para tal propósito, sendo do meu tamanho aproximado. Um humano se parece muito com outro, especialmente aos olhos dos não humanos. Os betelgeusianos dariam esta informação à minha organização. Claro, algum dos meus colegas suspeitariam de algum jogo sujo, mas eles têm coisas demais em que se ocuparem e a suspeita não chegaria ao extremo de se disporem a agir. O mais que fariam seria enviarem outro agente como eu em meu lugar. E em semelhantes cir-cunstâncias, o Khan, enquanto esperasse a nova visita, camuflaria bem suas instala-ções militares e nada aconteceria. Em todo caso, que pode fazer um único homem contra todo um planeta?

- Você já vez bastante.- Mas eu já lhe disse que peguei Oleg de surpresa.- Você poderia fazer muito mais - continuou Bourtai, calmamente. - Por exemplo,

por que não poderia enviar uma carta secreta por meio dos betelgeusianos? Nós, os Tebtengri, podemos conseguir algum contato na cidade de Ulan Baligh que se ponha em contato com a aeronave espacial.

- Creio que isto deve estar muito bem previsto pelo Khan, para assegurar-se de que não exista o menor contato com pessoas do mundo exterior. Deverá estar segu-ro e examinar com todo o cuidado os gêneros que são exportados, antes de abando-narem Altai.

- Escreva uma carta no idioma da Terra. Ninguém conseguirá entender seu conteú-do.

- Com certeza ele conseguiria que a traduzissem.- Oh, não! - acrescentou Bourtai, com ar animado. - Não existe humano algum em

Altai que conheça a língua ânglica, exceto você mesmo. Talvez haja algum betelgeu-siano, mas não gente do planeta. A linguagem de Altai evoluiu muitíssimo depois do último contato da principal corrente humana, e depois não existiu razão alguma para que alguem aprendesse a linguagem original da Mãe Terra. O próprio Oleg lê somen-te o altaiano e o principal idioma de Betelgeuse. Eu sei perfeitamente, porque ele mesmo mencionou isto diante de mim uma noite, recentemente.

Bourtai falava do assunto em tom natural. Flandry notou que naquela cultura não significava desgraça alguma haver sido uma escrava em um harém.

- Ainda pior - respondeu Flandry. - Os agentes de Oleg não permitiriam circular ne-nhuma carta que não pudesse ser traduzida e tampouco acreditariam no betelgeusia-no que o fizesse. Não, a partir de agora, e até que saibam que eu morri, não confio em que permitam a mínima comunicação com comerciante espacial algum, nem com nave cósmica alguma.

Bourtai pareceu fraquejar o ânimo e repentinamente rompeu em prantos, descon-solada.

- Mas você não pode ficar sem ajuda! Você é da Mãe Terra!Flandry não quis desiludi-la.- Veremos. Por enquanto vamos comer alguma coisa.- Isto tem um gosto parecido com o alimento terrestre. Tem uma notável seme-

lhança, realmente.- Mas é que tem origem terrestre, Orluk - comentou Bourtai. - Os primeiros colo-

nos terrestres acharam a planície, virtualmente, como um enorme deserto. Nele cres-ciam formas vegetais que eram venenosas para os humanos. Todas as demais for-mas de vida estavam circunscritas às zonas próximas dos polos. Nossos antepassa-dos utilizaram processos científicos de genética para as sementes e animais que trou-xeram com eles. Foram criadas formas adaptadas às condições locais, que se expan-diram rapidamente. A ecologia terrestre logo se difundiu pelo cinturão dos trópicos.

Flandry comprovou com satisfação que a jovem não era precisamente um membro da uma raça bárbara. Realmente, ali havia uma cultura digna de ser estudada... se sobrevivesse, o que, no momento era bastante duvidoso.

Krasna era sem dúvida uma velha estrela, derivada do núcleo galáctico para um braço da espiral da Galáxia. Depois do que, os elementos pesados se formam no in-terior das estrelas e se espalham através do espaço pela explosão de “novas” e são acumulados na próxima geração estelar, as estrelas mais velhas carecem, geralmen-te, de planetas. Krasna devia contar-se entre as mais antigas que os tinham. Entre-tanto, a velha estrela e seus planetas eram muito pobres em substâncias de meio e alto peso atômico, o que incluía também metais de uso industrial.

Sendo menor que o Sol, Krasna havia envelhecido muito lentamente. Nos primei-ros bilhões de anos, aproximadamente, seu calor interno deve ter proporcionado a Altai uma temperatura superficial mais ou menos como a da Terra. A vida protoplas-mática havia evoluído na superfície dos mares. Provavelmente as primitivas formas terrestres haviam surgido assim. A radioatividade entraria em cena e mais tarde o calor residual se perdeu no espaço. Finalmente, somente o avermelhado sol fornecia calor e Altai foi esfriando. O processo seria lento, como se para evitar que as formas vivas não se extinguissem, mas se adaptassem às novas condições. Eventualmente se produziu o equilíbrio necessário. Altai permanecia gelado de polo a polo. Um mun-do velho, tão velho, que uma das suas luas, caindo no limite de Roche, saltou em pe-daços e formou os anéis do planeta. Tão velho, que já havia superado o estado das reações atômicas do hidrogênio, passando a outro estado de reações nucleares. En-tão veio uma época de maior atividade. Krasna cresceu em calor e em luminosidade. Nos próximos vários bilhões de anos, continuou crescendo em tais gradientes de temperatura e luminosidade, que ao final de tal período os mares de Altai, liquefeitos mais uma vez, chegariam até a temperatura de ebulição, em razão do caminho se-guido por Krasna para se transformar em uma “nova”, permanecendo em um estágio posterior na condição de uma anã branca, a partir da qual a estrela voltaria pouco a pouco a cair na escuridão progressiva que marca o final de uma estrela.

Naquela época era Krasna e Altai. O esfriamento progressivo da estrela mal havia começado. Somente nos trópicos existia uma temperatura suficiente para que os ho-mens - na realidade crianças de um sistema solar mais brilhante - pudessem viver em duras condições. A maior parte das águas do planeta fluíram para o cinturão equatorial, para cair em forma de neve nos polos, zonas ainda frígidas, abandonando as secas planícies onde umas poucas plantas lutavam por se readaptar; para mais tarde serem destruídas pela invasão do capim.

A mente de Flandry, assim divagando, recordou o futuro da Terra para abandonar o curso dos seus pensamentos, despertando para a realidade. Ao seu redor a brisa gelada o envolvia totalmente. Pôde se dar conta, em um momento, como se sentia gelado por aquele terrível ambiente E a noite ainda não havia chegado!

Voltou a sentar-se, resmungando sua desesperada situação. Bourtai permanecia sentada e calma e ele teve inveja do seu fatalismo. Mas Flandry não aceitava a ideia de congelar enquanto permanecia encerrado em um saco de dormir, ou pela marcha a pé por centenas de quilômetros, se sobrevivesse às horas da noite através daquela interminável brancura, paralisado pelo frio até a morte por congelamento. Frio es-pantoso, que ia aumentando, dia a dia, por causa da estação outonal.

Torturou sua mente, até que nela tomou corpo uma ideia: o fogo, sim, o fogo. Ali estava a salvação!

Pôs-se de pé e voltou a abaixar-se rapidamente, ao lembrar-se dos seus persegui-dores aéreos. Bourtai continuava, com os olhos dilatados pelo assombro, o longo

monólogo que havia sustentado em língua ânglica. Quando terminou, ela fez um si-nal de reverência religiosa.

- Eu também roguei ao Espírito da Mãe para que Ela nos guie - disse a jovem.Flandry deu um sorriso estranho.- Eu não estava precisamente rezando, minha querida. Não, acho que tenho um

plano para por em prática. É uma ideia doida, mas... Agora escute.

- Não! - exclamou Bourtai, quando ele terminou de contar.A veemência da exclamação surpreendeu Flandry.- Não? mesmo que seja a salvação das nossas vidas?- E seria? Eu não vejo como.- Bem, não posso garantir nada, claro. Embora na realidade, sim, posso garantir

com tal plano todo um mundo para sobreviver e um par de patins para continuarmos deslizando por ele. Porque se fracassar, não terei mais projetos para por em prática, jamais. Não temos opção, Bourtai. Quando a noite cair, utilizarei meu varyak para to-car fogo em uma área de vários quilômetros. O capim está tão seco, que toda a pra-daria arderá como uma cesta de vime. Teremos assim uma enorme fonte de energia para nos cobrir e para a energia dos varyaks.

- Mas você não compreende, Orluk? É precisamente porque o capim arde com tan-ta facilidade que um fogo na estepe é a coisa mais temida em Altai. Qualquer traba-lho, inclusive qualquer luta, cessa quando se percebe qualquer fogo. Qualquer pes-soa é obrigada, por lei, a deixar tudo e combatê-lo. E você quer provocar um incên-dio deliberadamente?

- Sim. E justamente porque notei que esse costume, esta lei, é como você descre-veu. Não está vendo? Os perseguidores do Khan abandonarão toda busca para se dedicarem a apagar o incêndio. Suponho que o método usual será o de bombardear o incêndio do ar com bombas de espuma .

Bourtai confirmou com a cabeça.- Muito bem. Se alguem do seu povo se acha nas proximidades, o que significaria

um raio de algumas centenas de quilômetros, tendo, como devem ter, aparelhos em voo permanente por temerem um raid do povo do Khan, ao se sentirem obrigados pela lei comum a contribuir na extinção do incêndio, é certo que enviariam alguns dos tais aparelhos, não é assim? Certo. Quando se aproximarem, romperemos o si-lêncio de rádio e os chamaremos para que venham nos recolher. Pensei que dando seu nome eles não teriam dúvida alguma. Acho que eles poderiam nos recolher e es-capar, não está de acordo? Se eles se apressarem. E quando eles aparecerem, nós escapuliremos ao amparo do fogo que usaremos para nos cobrir. Uma vez resgata-dos, nos distanciaremos para o Norte em segurança temporária, pelo menos. De acordo? Já sei que esta ideia depende de diversas circunstâncias favoráveis, mas o êxito não é de todo improvável, não é assim?

- Não, não, porque a Lei de Altai...- Ao diabo com a lei! Só conseguiremos queimar umas quantas centenas de hecta-

res. No pior dos casos, alguns milhares. Em troca do que o planeta Altai tem uma oportunidade de chamar a Santa Mãe Terra para sua liberação.

Como ela ainda estava em dúvida, Flandry lhe sorriu e um rubor subiu pelas bo-chechas de Bourtai. Seus olhos o olharam, expressando seu recônditos sentimentos.

Flandry tomou as mãos da garota entre as suas.- Eu nunca desprezei qualquer surpresa agradável que tenha cruzado meu cami-

nho. E quem jamais teria a boa sorte de encontrar-se com Bourtai Ivanskaya?

- Mas... não, você é um Orluk da Terra, e eu sou somente...O resto das suas palavras morreu sem ser pronunciado, porque Flandry a atraiu

para si e beijou-a apaixonadamente.Momentos depois de ter esquecido tudo, Bourtai murmurava:- Como você achar melhor, Dominic...

Krasna, que já quase tocava o horizonte, balançou como uma bola avermelhada e trêmula durante alguns minutos e desapareceu. A noite caiu rápido, mudando o am-biente com a rapidez de um fogo de artifício. As estrelas brilhavam em toda parte, os anéis expandiam seu frio resplendor e o vento estendia sua impiedosas garras pela planície infinita.

Flandry montou em seu varyak. Bourtai havia feito um longo feixe de palhas retor-cidas, convertido em uma tocha ardente que pôs nas mãos de Flandry. Este ligou o motor e pôs a máquina em movimento. Alguns metros mais adiante, inclinou-se e to-cou no solo. Uma língua de fogo brotou do lugar, elevando-se imediatamente, ajuda-da pelo constante vendo da planície, Flandry conduzia a máquina em espiral, se-meando o terreno com pontos de fogo. Voltou para buscar Bourtai, que montou a ca-valo em sua máquina, silenciosa e entristecida. O fogo se propagava furiosamente e crescia a uma velocidade fantástica. Uma gigantesca cortina de luz se elevava para o céu, ondulante, explodindo em milhões de chispas de luz como estrelas fugazes. A fumaça cobriu uma enorme área que quase ocultava o céu e os anéis de Altai.

Logo se aproximou a primeira nave aérea.Momentaneamente, sua forma ovoide se desenhou no ar colorido do gigantesco

incêndio. Flandry achou ter chegado o momento de receber uma chuva de disparos, mas o aparelho passou zumbindo, sem reparar no casal. Sem dúvida eles não ha-viam sido vistos. Não tinham interesse neles... por enquanto.

Bourtai começou a manipular o receptor de rádio e diversas vozes se cruzavam no mesmo comprimento de onda, fazendo-se audíveis apesar do ruído do incêndio.

- …Alô, Ulan Baligh... Nossa posição é... Unidades de Jagatai... Atenção, prepara-dos... Atenção... Perigo...

Bourtai continuou sintonizando o receptor. O tempo transcorria lento demais en-quanto ela sintonizava outro comprimento de onda.

- Alô, Noyon, sim, há um formidável incêndio. Vi um aparelho khanista sobrevoan-do... Sim, uma frota inteira deles foi registrada em minha tela de radar. Um esqua-drão pequeno demais para deter o fogo. Eles estão pedindo reforços. Creio que po-derão contê-lo...

A resposta chegou apagada pela distância, mesclada com ruídos de interferência estática; mas cheia de orgulho.

- Ninguém poderá dizer que os Mangu Turnan negam sua ajuda contra o inimigo sob meu comando pessoal. Aqui fala Arghun Tiliksky.

- Devo dizer isto, Noyon? Eles talvez poderiam decidir disparar sobre você por vio-lar a Yassa.

- Não o farão. Qualquer habitante de Altai procederia assim - e a voz distante acrescentou: - Além disto, duvido que qualquer oficial de uma ordem no Tebtengri Shamanate deixará de fazê-lo. Espere-nos dentro de meia hora. Desligo.

“Meia hora!”, pensou Flandry, repetindo mentalmente estas palavras por cem ve-zes. Ficara impressionado com o intercâmbio entre o rebelde e o piloto khanista. Seu acordo de trégua havia sido breve, formal e frio. Concentrou-se em permanecer per-to do fogo para aproveitar suas radiações infravermelhas, sem estar muito perto de

forma a ser visto.O incêndio crescia com espantosa velocidade. Toda a planície estava iluminada. Pe-

quenos animais passavam entre as rodas do varyak, gritando enlouquecidos. O pri-meiro esquadrão para combater o incêndio, do ar, chegou e sobrevoou a zona sob a fumaça, em uma primeira passada. O tremendo ruído reverberou como um tiro de canhão na cabeça de Flandry. Distanciaram-se das suas vistas e as bombas começa-ram a cair. Onde uma delas caía, surgia uma fonte de espuma esbranquiçada e o fogo parecia deter-se e desaparecer em um amplo círculo. De uma bomba próxima, caiu sobre Flandry um jorro de espuma pegajosa, obrigando-o a perder alguns minu-tos para se limpar, as mãos principalmente. Impulsionada por um forte vento, aquela imensa fogueira ígnea parecia imune aos extintores aéreos.

O esquadrão deixou atrás de si uma barreira de espuma. O fogo se deteve, crepi-tou, foi enfraquecendo, mas finalmente destruiu a barreira de espuma e terminou ul-trapassando o obstáculo. A mão de Bourtai procurou a sua e apertou-a fortemente, enquanto dirigiam através da vasta extensão reduzida a cinzas e escórias ardentes.

- Eu não lhe disse? Eu não lhe disse? - repetia a jovem, desolada.Flandry murmurou algo para consolá-la.As cinzas ardentes saltavam, golpeando-lhes os rostos e impedido-os de respirar.Apareceu outro esquadrão procedente de outra distante estação de socorro. No

momento o fogo parecia contido para o Sul e o Norte. Mas em direção Leste haviam deixado uma fina linha de espuma. O primeiro esquadrão, uma vez descarregadas todas suas bombas, distanciou-se, com certeza para carregar de novo. Seu zumbido distante mal era audível por cima do estrondo do gigantesco incêndio da estepe.

Bourtai ergueu-se do seu assento e dirigiu o olhar para o céu.- Ouça!Passados alguns instantes, Flandry também ouviu o ruído. Era o som de um apare-

lho a grande velocidade que se aproximava vindo do Norte e sentiu seu coração ba-ter. A jovem, mais fria que ele quando uma ação era iminente, operou o receptor.

- Você conhece essa gente de Mangu Turnan? - foi a tola pergunta de Flandry.- Sim, um pouco. Sua gente e a minha, como todas as tribos tebtengrianas, costu-

mam se encontrar na feira de Kievska, e às vezes em outras ocasiões.Do alto falante surgiam ordens concisas.- Esta é a frequência para chamá-los - comentou Bourtai, atenta.Flandry teve certeza de ter visto umas formas estranhas passarem rapidamente

através do muro de chamas a alguns quilômetros mais adiante. Os Tebtengri não pa-reciam agir com a precaução dos homens de Oleg, que sobrevoavam a grande altu-ra. Aqueles tebtengrianos mergulhavam valentemente para arrojar suas bombas de espuma. Levavam a cabo sua operação de socorro desviando-se desde aquela dire-ção até o horizonte oposto. O plano a ser seguido foi se formando pouco a pouco em seu cérebro, pelas diversas impressões recolhidas através da fumaça envolvente.

- Eles se dedicam a sufocar na frente Leste, deixando que as unidades do Khan trabalhem na direção Norte-Sul - disse. - Isto significa que para nos aproximarmos suficientemente para termos a rápida oportunidade de sermos resgatados, teremos que nos aproximar do fogo pela parte Leste, o quanto antes melhor. Não acho que necessitem muito tempo para acabar sua tarefa, com a força que dispõem agora.

Um breve sorriso apareceu nos lábios de Bourtai, que lançou sua máquina a toda velocidade naquela direção. Flandry recebeu o impacto de uma lufada de pó sobre os olhos e o rosto. Reagiu rapidamente cuspindo aquela porcaria e tentou seguir Bourtai com sua varyak. Mas a jovem seguia rápido demais e ele mal podia distingui-la ao longe, onde sua silhueta se destacava contra o brilho do incêndio, como um meteoro

radiante. Flandry acelerou sua máquina, que saltava como um cavalo selvagem sobre todo tipo de obstáculos, e seguiu na direção marcada por Bourtai, através do limite Sul.

Virando novamente para o Norte, eles se reuniram e dirigiram juntos para trocar impressões. A totalidade daquele forno ardia ao seu redor, nuvens de pó e fumaça se enroscavam, formando fantásticas figuras que se elevavam ao céu em redemoinhos empurrados pelo vento, fagulhas ardentes que saltavam do capim que se desfazia em um ruído infernal, línguas de fogo dançando um ritmo endemoniado, tudo aquilo formava um quadro de pesadelo. A terra, sob a ação do fogo, aparecia esbranquiça-da. O bombardeio começou novamente e uma bomba próxima lançou um jorro de espuma, que aparecia pálida em meio às fagulhas ardentes do incêndio.

A roda dianteira do varyak de Flandry bateu em um obstáculo e quase virou, mas ele reagiu rapidamente, baixando a terceira roda de emergência. Ligou novamente a máquina e elevou a roda auxiliar; mas durante aqueles segundos perdidos Bourtai havia se perdido de vista. Seguiu quase às cegas. Não teria chegado o momento de Bourtai avisar aos seus amigos? Flandry manipulou os comandos do painel do varyak, ouvindo uma confusa mescla de ordens e informações.

- Vamos, garota - gritou. - Não seja tímida. Adiante!Imediatamente a voz de Bourtai surgiu no receptor.- Atenção, homens do Mangu Turnan! Atenção! Chamo os homens do Tebtengri

em meu auxílio, ya-u-la, rogo aos homens livres que ajudem a um homem livre. Eu, Bourtai, filha do Noyon Ivan Ogotai, que caiu com os Tumurji no Encontro dos Rios. Ya-u-la!, escapando do cativeiro de Ulan Baligh, me dirijo agora ao longo da parte oriental do incêndio da planície. Atrás de mim acha-se um homem que procede da Sagrada Mãe Terra. Eu lhes declaro a verdade: ele é realmente da Terra e é perse-guido pelo Khan, como eu o sou, igualmente. Este Orluk ajudou-me a escapar e ele veio livrar Altai. Enviem-nos um aparelho e recolham-nos antes que os homens de Oleg o façam. Manterei um sinal nesta faixa para guiá-los. Ya-u-la! Falou Bourtai Ivanskaya dos Tumurji.

Flandry deu uma olhada sobre o ombro. Se o inimigo havia captado a emissão na-quela frequência empregada pelos Tebtengri, a coisa ia ficar divertida.

Um aparelho rugiu na zona invisível acima da sua cabeça e Flandry permaneceu atento, escutando, com a antena dirigida para aquela posição. O aparelho picou para baixo até voar quase ao rés do solo e, com uma olhada, Flandry observou o emble-ma de Oleg no flanco na nave aérea. O aparelho ia na direção de Bourtai.

Flandry acelerou seu varyak ao máximo e seguiu para a zona mais escura. A nave aérea troou, disparando uma chama contra o solo na linha que Bourtai seguia; o pi-loto khanista a tinha visto. A jovem tentou lançar-se em um louco sprint com sua máquina, enquanto a lança incandescente voltava à caça. Flandry convergiu para ela. Bourtai o viu e tentou fazer-lhe sinais com a mão para que se afastasse do seu cami-nho. Flandry lhe fez um sinal rápido:

- Por aqui, siga-me!Outra nave aérea menor, e com uma estranha insignia, apareceu em cena e dispa-

rou uma linha de fogo que cruzava com a chama disparada pelo aparelho do Khan. No rádio de Flandry surgiu uma voz irritada:

- Lacaio do usurpador! É assim que observas a sagrada trégua?Ambos cessaram o fogo e os aparelhos giraram um ao redor do outro, como mas-

tins raivosos, prontos para a luta, a poucos metros de altura sobre o terreno.- Não fiz nada contra ti nem contra os teus - respondeu o piloto khanista. - Eu só

me dirijo contra duas pessoas fora da lei. Permanece quieto, ou tu mesmo terás que-

brado a paz.Flandry e Bourtai continuavam rodando velozmente, longe da cena que acabara de

se produzir. Sobre eles descia um véu de fumaça que os ocultou de qualquer obser-vação.

- Se essa gente continuar discutindo - gritou Flandry para a jovem, - e enquanto os Tebtengri puderem ouvir nosso sinal...

- Yeaaah! - gritou selvagemente Bourtai, animada pelo espírito guerreiro dos da sua raça.

Ambos continuaram pelo caminho sinuoso em que estavam, entre aquele mundo infernal de fumaça, fogo e sombras alternadas que os rodeava, e logo ele observou que o varyak de Bourtai se precipitou contra uma nuvem de cinzas ardentes e cho-cou-se com algum obstáculo imprevisto. A jovem saltou da máquina como um novelo e rolou pelo solo sobre o capim chamuscado

Aquilo que havia detido o veículo, pareceu se lançar contra ela e uma rápida olha-da através da fumaça mostrou a Flandry um corpo monstruoso, uma cabeça gigan-tesca e umas pernas enormes, proporcionais a um tal gigante. Lançou mão da sua pistola e aproximou sua máquina naquela direção. A figura diabólica que se inclinava para o solo procurava o corpo de Bourtai que jazia sem sentidos. Estaria morta pelo golpe ou inconsciente?

Flandry baixou a terceira roda, parou, saltou do varyak e lançou-se em auxílio da jovem.

Uma mão tão grande quanto sua cabeça arrebatou-lhe a arma da mão.Flandry tentou defender-se mas foi inútil. Sentiu-se colhido brutalmente e inerme

como uma criança à frente daquele gigantesco monstro. Rasgando a névoa que os envolvia, mais dois monstros apareceram e, com a facilidade com que se pega um brinquedo infantil, cada um deles levantou facilmente um varyak, pesando-o enquan-to em seus horrível rosto se desenhava um sorriso horrível. Não apareceria ainda ou-tra nave aérea dos tebtengrianos?

Dirigiu um olhar desesperado em todos os sentidos. Sim, pelos céus! Efetivamente, descobriu um aparelho amigo que permanecia suspenso no ar, quieto e vigilante. Com certeza o piloto não podia ver bem o que acontecia lá em baixo, através da cor-tina de fumaça quase constante. Flandry se livrou rapidamente do gigante com uma hábil manobra de judô e lançou-se em direção do aparelho dos Tebtengri. Mas, antes de poder percorrer poucos metros, sentiu-se preso pelo peito como um boneco e foi içado para o ombro da monstruosa criatura. Apareceu então um quarto selvagem que recolheu o corpo imóvel de Bourtai com a maior facilidade. Então eles se reuni-ram, trocaram algumas palavras ininteligíveis e puseram-se em marcha. Os outros selvagens carregaram um varyak cada um. Sem dúvida o rádio da máquina de Bour-tai devia ter se quebrado e ficado muda, pois trocaram algumas palavras e os piloto dos Tebtengri não os seguiu.

Os gigantes se dirigiram para Nordeste e Flandry pôde observar por uns instantes a nave aérea sobrevoando imóvel a zona em que se achavam e depois elevou-se ra-pidamente e desapareceu. Uns momentos mais tarde, uma nave khanista chegou também sobre eles, mas também não permaneceu lá e se afastou.

A fumaça atrapalhava a visão de Flandry. Até onde podia ver, observou que esta-vam sendo conduzidos através da estepe a plena marcha dos gigantes, a uns dez quilômetros por hora. O fogo já havia ficado para trás, esfumando-se na noite.

Os radiadores de calor dos varyaks ainda funcionavam, emitindo constantes ondas de ar quente que podia mantê-los com vida. Flandry imaginou se aquilo ainda tinha alguma importância.

Capítulo V

Em várias ocasiões os selvagens se detiveram para descansar durante a noite. Na primeira vez trataram de manietar os humanos, atando junto seus tornozelos e as mãos nas costas. Deixaram-nos deitados ao redor dos varyaks, contra o solo gelado. Flandry não teve outra ideia fanática, a não ser desatar as mãos; mas, apesar do seu treinamento na matéria, foi impossível. As ligaduras eram fortes demais. Tentou ficar meio sentado.

- Bourtai! - chamou pela jovem, com voz baixa. - Pode me ouvir?- Sim.Flandry comprovou com imensa alegria que a garota também ficava meio sentada,

como ele, e um pouco visível sob a luz de uma das luas. A estepe aparecia como um imenso lago, terrivelmente gelado e tingido de uma leve cor avermelhada, povoado de misteriosas sombras empurradas pelo vento.

Bourtai murmurou:- Dominic... está ferido?- Mais no meu orgulho... tinha medo de que você tivesse se matado al saltar da

máquina a tal velocidade...Ela lhe respondeu com bom humor:- Qualquer garotinho nômade aprende essa arte.Tentaram se aproximar um do outro.- Quem são esses gargântuas? - perguntou Flandry.- São voiskoye.- Isto não me diz grande coisa, minha querida, como você poderá supor.- São selvagens - continuou Bourtai. - Faz tempo, na primeira época de Altai,

quando ainda prevalecia a confusão geral e o caos no planeta, embora as pessoas ti-vessem achado a forma de ir sobrevivendo, um pequeno bando de criminosos se dis-persou pela estepe, que naquele tempo se achava povoada. Encontraram meios de subsistir durante o tempo das fazendas agrícolas dispersas e solitárias da planície, roubando inclusive as mulheres. Os altaianos deixaram o cultivo da terra e e os voiskoye se transformaram em caçadores, forma de vida que ainda continuam prati-cando. Não sendo em grande número, e sendo a estepe tão grande, os grupos de voiskoye não tinham problemas entre si. Roubando, ou traficando às vezes, têm so-brevivido e em geral não se deixam ver muito. Eu não pudia supor que existisse um bando nestes arredores. Com certeza vieram atraídos pelo fogo da estepe, na espe-rança de caçar animais que fugiam em disparada em sua direção. E foi assim que nos viram e...

Bourtai parou, emocionada, e deixou cair a cabeça no peito de Flandry com aban-dono.

Flandry esqueceu suas preocupações e considerou os gigantes. Havia luz suficiente para observá-los detidamente. Pareciam mais caucasianos que o resto dos altaianos, provavelmente porque seus antepassados eram daquela raça colonizadora. Deixavam

o cabelo negro em uma longa melena, com uma enorme barba caindo-lhes no peito. Em suas feições ressaltava-se um nariz avultado, umas sobrancelhas enormes e, em geral, um aspecto quase acromegálico. Chamou-lhe novamente a atenção que a maior parte da sua altura incrível - dois metros e um quarto - devia-se ao compri-mento das suas pernas. O torso era bem mais rechonchudo. Vestiam túnicas felpu-das e nenhuma coisa mais, exceto colares de dentes ou de ossos de animais. Seu ar-mamento consistia em achas de pederneira, bumerangues e facas forjadas, sem dú-vida alguma com os pedaços de ferro velho que iam encontrando.

Enquanto recebiam o ar quente dos radiadores dos varyaks, mal se davam conta do terrível frio daquelas horas noturnas na estepe. Flandry se admirou de ainda esta-rem vivos e sua mente, apesar da terrível dor de cabeça que sofria, começou a diva-gar, tentando entender a evolução daquelas estranhas criaturas naquele planeta inóspito. Sim... conseguiu imaginar o fluxo ancestral das gerações das quais a pró-pria Bourtai descendia... Formas animais gigantes devem ter aparecido nos distantes períodos de tempo passados e se desenvolvido, de acordo com o meio circulante, até invadirem grandes áreas de Altai em forma explosiva. Esse processo pôde afetar o homem. Somente podia supor umas poucas dezenas de caçadores da estepe conser-vando seus descendentes in situ para intensificar as características que possuíam, mas reproduzindo-se rapidamente, por exemplo, a um ritmo de sete gerações por sé-culo, e deixando-os à mercê da seleção natural. Além do reajuste metabólico da die-ta alimentícia, da temperatura e dos demais fatores, logo se obteria um corpo trans-formado. O tamanho seria vantajoso para conservar o calor e para correr agilmente atrás da presa. Sob tais condições, a natureza não precisaria de mais tempo, criando uma nova casta de homens, que é o que o homem necessita para obter uma nova raça de cães.

A pergunta que perturbava a mente de Flandry tinha que ser feita:- Para que você acha que eles nos querem?- Pelo metal dos varyaks, claro.- Isto é somente uma desculpa evasiva, querida. Para que eles “nos” querem?Bourtai se refugiou contra o corpo de Flandry.- Dizem que eles são canibais.- Mas raramente encontrados para estarem certos, não? Bem, ainda não fomos co-

locados para cozinhar. Brrrr! Eu quase daria boas vindas a uma formosa caçarola quentinha... Venha, vamos nos esquentar um pouco.

Flandry precisou animá-la para conseguir aproximá-la do outro varyak. Aquela resi-gnação passiva, o que constituía outro aspecto de uma cultura estoica, afetava Bour-tai diretamente. Conseguiram chegar um pouco mais perto da máquina e começaram a sentir seu calor vivificante.

- Hummm! - murmurou Flandry. - O rádio desta máquina parece ainda estar bom.Tentou encontrar a posição conveniente para poder manipulá-la.- Se de algum modo eu pudesse avisar aos Mangu Turnan!Uma mão empurrou-o brutalmente de costas. Uma enorme cara de horrível aspec-

to grunhiu lá do alto.- Ei!- Eu não podia adivinhar que essa gente conhecesse o radio.O gigante ficou de cócoras ao lado de Bourtai e Flandry conseguiu arrastar-se para

trás até alcançar o mostrador do rádio, que ligou com um movimento casual.- Essa gente não entende de máquinas - disse Bourtai. - Mas sabem que as máqui-

nas são perigosas para eles. As pistolas matam, as naves aéreas voam e os perse-guem. Você não terá uma chance.

- É, suponho que não - respondeu Flandry, com um suspiro de resignação forçado.Tentou falar com o selvagem, mas logo se deu conta de que a linguagem voiskoye

havia derivado para muito longe do altaiano. Desesperado e exausto, logo caiu em um pesado sono.

Quando de novo empreenderam a marcha, Flandry convenceu o selvagem, através de sinais, que lhe permitisse ir andando, melhor que em forma de um saco de mer-cadorias. Aquilo supunha algum descanso. Carregou-se com um fardo de comida e água. Jamais tinha empregado em sua vida, tão miseravelmente, vinte intermináveis horas.

Chegaram ao acampamento pouco antes do amanhecer. Flandry foi obrigado a sentar-se no chão, onde foi desamarrado, deixando escapar um suspiro de alivio após aquela tortura. Suas pernas mal podiam sustentá-lo, mas não deixava de obser-var tudo ao redor com todos seus sentidos bem despertos.

O capim havia sido arrancado em um grande círculo. Pequenas tendas de pele ro-deavam aquele círculo, onde emergia um totem gravado primitivamente com sinais cabalísticos, com pigmentos de argila. Várias fogueiras ardiam em buracos superfi-ciais e, pendurados em paus, secavam ao ar pedaços de carne e de diversas peles. Os utensílios eram de barro comum, para as necessidades da cozinha, havendo ou-tros fabricados toscamente em madeira, pederneira e osso. No geral, o acampamen-to tinha todo o aspecto do paleolítico. Entretanto, pôde observar objetos de metal e roupas dentro de uma daquelas tendas.

Duas mulheres toscas montavam guarda aos prisioneiros. O resto da tribo, cerca de uma centena de adultos e três vezes este número de crianças quase nuas, se de-dicaram a observar estupidamente os varyaks. Ah que maravilha! Os quatro caçado-res que haviam chegado com aquele tesouro foram longamente aclamados com o mais selvagem entusiasmo, todos dançaram ao seu redor, gritando e gesticulando, presenteando com colares. No ápice da festa alguem saiu da tenda principal e pintou os brutais rostos dos heróis do dia.

Flandry dedicou-se a observá-los detidamente. O médico bruxo, ou qualquer coisa que fosse, tinha o aspecto de ter vivido muito mais que seus companheiros de tribo, a julgar por seu aspecto e suas rugas, já que provavelmente os voiskoyes não passa-vam dos quarenta anos de vida, pois a fome, os acidentes, as doenças e o vento ge-lado da estepe os aniquilava. Era de tamanho menor e menos forte que a maioria dos voiskoye adultos, embora ultrapassasse a estatura de um homem comum da Ter-ra. Estava adornado com diversas miçangas, contas de pedras reluzentes, tiras de couro e longas caudas peludas. Mostrava diversas cicatrizes no peito e a mais astuta malícia se refletia em suas feições horríveis. Era óbvio que havia esperado dentro da sua tenda e havia começado a recompensar os heróis por razões ritualísticas e ceri-moniais. Dirigiu um olhar astuto para os cativos. Quando finalmente conseguiu afas-tar as pessoas da contemplação das máquinas para se prepararem para o banquete, aproximou-se de Flandry com evidente impaciência.

Olhando-o orgulhosamente, disse com um baixo sotaque altaiano:- Que tipo de Izgnanniki ser tu?- Que tipo de... que? - respondeu Flandry, já um pouco recobrado das fadigas e

voltando à língua altaiana. A pobre Bourtai olhava com ar desamparado.- Tu... dos Izgnanniki. Não ser assim? Pastores, gente de ordu, vocês chamar as-

sim. Nós dizer Izgnanniki. Ela parecer essa gente. Eu nunca ver gente como tu. Como?

- Eu - respondeu Flandry, com um ar aparentemente impressionante, - eu sou da Santa Mãe Terra.

O feiticeiro não aparentou aceitar ou desconfiar daquela resposta. Uma máscara impenetrável parecia estender-se sobre suas duras feições. Por instantes interminá-veis o gigante olhou fixamente para Flandry sem pestanejar. Só movia uma de suas mãos ao longo da barba.

Finalmente disse muito devagar:- Izgnanniki dizer sobre Terra. Dizer que homens vir de estrela com nome de Terra.

Sim! Tu parecer atamoi, estrangeiro - e com um dedo apontava as feições do estran-geiro, mostrando os cabelos, os olhos, o nariz e sua pele suave. - Teu nome?

O voiskoye levantou-se sobre seus pés e, com um osso raspado que extraiu de um bolso, tocou o peito e apontou para o Sol.

- Tu não fazer zaporo! - gritou furiosamente - Eu matar! Matar agora! Zaporo para mim! Eu somente. Nyennekh, nyen nekhs shviska upolyansk!

- O que quer dizer isto? - perguntou Bourtai, angustiada.Flandry sabia que o altaiano, como muitas outras línguas posteriores às viagens

espaciais, não tinha uma palavra para designar o conceito do mágico, ou expressão parecida.

- Esse bruxo acredita - explicou a Bourtai - que certas frases e ritos têm um poder especial para causar danos ou para obter benefícios. Olhe bem, ele está esperando os hipotéticos efeitos do que disse, que deve ter soado como uma potente fórmula para ele. Se nos comem, com certeza acreditam que com isto ganham as potências especiais que possamos ter.

Ela pareceu ficar mais contente e alegre.- Não zaporo - disse Flandry, dirigindo-se ao gigante. - Somente meu nome. Veja,

nada aconteceu. Eu somente lhe disse meu nome.- Zaporo para mim - respondeu o outro, já um tanto suave. - Eu fazer zaporo, bom

para nós, mau para inimigos. Eu chefe de tribo. Tu compreender?E novamente voltou ao seu anterior aspecto feroz.- Se tu não fazer grande zaporo, tu não ser da Terra.Flandry havia-se erguido, quando um pouco antes o voiskoye o fez, sentindo que

já havia ganho muito da força perdida na esgotante viagem até a tribo. Ergueu-se arrogante, aparecendo frente ao médico bruxo da tribo sem grande desvantagem psicológica.

Torceu o bigode com parcimônia.- Bem, eu nunca lhe disse que não podia, disse somente que não havia feito na-

quela ocasião.- Tu ser preso como um animal - gaguejou o voiskoye - Homens de Terra ser pre-

sos como animal? Não assim.- Eles me pegaram de surpresa - disse Flandry. - E, naturalmente, seus caçadores

estavam cheios de zaporo dado por você. Nesta ocasião eu não estava cheio de po-der, porque havíamos feito várias coisas de zaporo no lugar de onde viemos.

Flandry havia conseguido, pelo menos por enquanto, uma interessante demora nos secretos desígnios do bruxo, a quem de certo modo as palavras do terrestre haviam impressionado. Desejava a todo custo influenciar na mente selvagem do voiskoye a ideia de que, ao mencionar a condição de homem da Terra, tinha que ser tratado com cuidado.

- Meu nome, Kazar - disse o chefe. - Não verdadeiro nome, nome verdadeiro ser secreto para que inimigos não fazer zaporo sobre mim. Kazar ser nome usar eu. Nome usar tu, Vlanary, não é assim? Nós falar.

- E como você sabe o que dizem os Izgnanniki? - sugeriu habilmente Flandry.Kazar franziu o cenho.- Fazer muitos anos, quando eu jovem, e ser chamado homem. Inverno terrível.

Muitos morrer fome. Eu ia com pai e outros homens caçar animais Izgnanniki. Pasto-res ver nós. Disparar escopetas. Muitos voiskoyes mortos. Eu ser capturado. Viver com pastores três anos. Eles ensinar-me. Chamar-se Jahangir.

- É uma tribo que agora apoia Oleg Yesukai - comentou rapidamente Bourtai. - Ouvi falar dessa gente, que se encontram na maior pobreza, o que os fez tornarem-se brutais.

Kazar olhou sombriamente para Bourtai.- Jahangir golpear mim. Eu matar e escapar minha tribo. Agora eu matar Izgnan-

niki onde puder.- Não a esta - respondeu ferozmente Flandry, pondo-se entre ele e a jovem. - Você

não está sabendo? Há uma guerra entre os nômades. O povo dela está lutando con-tra o mesmo povo que capturaram você.

- Sim, eu conhecer que disparar na estepe, no céu. Eu ver Izgnanniki mortos por Izgnanniki armas.

- Então nós somos amigos, hein? - aventurou Flandry.Kazar sacudiu a melena como um leão.- Não, todos Izgnanniki ser inimigos de voiskoyes.Flandry entendeu que ele sem dúvida tinha razão. Não valendo a pena cativá-los

como aliados, aqueles selvagens eram considerados bichos daninhos e eram tratados como tais pelas facções nômades.

- Você conhece o rádio? - perguntou a Kazar - Deixe-me falar por rádio com o povo desta mulher para que venham recolher-nos. Eles ficarão muito agradecidos e lhes trarão uma grande quantidade de metal.

Kazar hesitou por um instante. Até que, decididamente e com um gesto feroz da mão, rechaçou a proposta.

- Não. Izgnanniki ouvir que nós ter vocês aqui e vir. Nós entregar. Eles dar metal? Não assim. Eles disparar!

Bourtai sentiu-se desesperada e ergueu-se repentinamente.- Que foi que você disse? Está querendo dizer que os Tebtengri romperiam um ju-

ramento? Por que, seus piolho de rato, se não sabe o que significa a palavra jura-mento?

Kazar lançou-se sobre ela, passando por Flandry, e empurrou-a brutalmente no chão. Bourtai rolou como uma bola. Flandry esteve a ponto de tentar estrangular o bruxo, mas rapidamente compreendeu que aquilo não levaria a nada e que qualquer resistência era inútil e pouco inteligente. Foi em sua ajuda, erguendo-a. A pobre jo-vem havia batido com a cabeça, que sacudia dolorosamente. Em sua têmpora apare-ceu uma mancha que ia se tornando azulada rapidamente.

- Está se sentindo bem? - perguntou-lhe Flandry amavelmente, surpreendendo a si mesmo, naquele estado de fúria mal contida em que se achava, o quão ansioso sen-tia-se pela jovem.

Bourtai sacudiu a cabeça tristemente. Uma ou duas mulheres selvagens se aproximaram uivando para Bourtai e a rodea-

ram. Kazar as mandou para trás com um imperioso gesto de mão.- Vocês, esperar ainda - ordenou autoritariamente.O terrestre se levantou orgulhoso.- Não poderá fazer uso do meu poderio se causar danos à mulher - rugiu. - Com-

preendeu?

- Tu ganhar ficando quieto e ela quieta. Nós dar de comer. Ou vocês servir para nós comer. - acrescentou, com um sorriso sinistro em um gesto horrível que tentava parecer um sorriso.

- Precisamos dos nossos sacos de dormir e de uma tenda.Kazar balançou a cabeça, impaciente.- A mim não enganar. Sacos dormir bons para meninos somente. Vocês querer es-

capar; mas nós perseguir logo. Nós bons para perseguir.- Não tenho a menor dúvida sobre isto - disse Flandry.O pensamento de ser rastreado e perseguido por aquela matilha de cães raivosos

e selvagensdeixava seu cabelo de pé. Sim, estavam realmente encarcerados.- Então, que fazer vocês para voiskoyes? - perguntou Kazar impaciente.- Grande Deus, deixa-me pensar, pilantra, tenho a cabeça cheia de serragem - dis-

se Flandry em língua ânglica.Dirigiu um olhar agudo em todas as direções do acampamento tribal. Se pudesse

fazer uma chamada de radio, os Mangu Turnan chegariam ali em meia hora, por via aérea. Se pudesse chamá-los, enviariam pelo menos um explorador para investigar. E um explorador aéreo com uma arma a bordo teria à sua mercê toda aquela canalha selvagem... Meia hora trágica!

- Eu posso fazer um grande zaporo terrestre para você - disse Flandry teimosa-mente. - Bom zaporo. Muita comida, tempos quentes, muitos garotinhos e cerveja. Mas preciso de um equipamento terrestre para fazê-lo.

O sorriso de Kazar mostrou dentes de lobo. Sem dúvida, os voiskoyes evoluíam para uma dentadura de canibais.

- Eu conhecer armas que disparar. Também radio. Tu vir perto tuas ferramentas.- Eu não quis dizer isso, mas preciso...- Terás instrumento que precisar - disse o chefe. - Mas somente para coisas eu

compreender. Tu nada fazer que eu não entender. Tu dizer que precisar e para que. Se eu compreendo, eu dou.

Flandry olhou-o nos fundos dos olhos. Não era a primeira vez que constatava que a falta de tecnologia de um povo não significava necessariamente estupidez. Kazar ti-nha colhido, entre os nômades, mais astúcia do que aparentava.

- Estou muito cansado para pensar - protestou Flandry. - Deixe-me dormir um pou-quinho.

- Igual menino. Izgnanniki ser vermes - Kazar ordenou severamente. - Ter comida, depois dormir. Depois de dormir, dizer que fazer para nós.

O pensamento de transformar-se em um almoço para os selvagens se não fizesse alguma coisa aceitável para eles, não lhe assustava no momento. Realmente estava exausto e esgotado ao máximo. Enfiou-se em um saco de dormir, com Bourtai perto dele, em uma tenda que lhe deram e caiu em um sono profundo. Nenhum dos ruídos exteriores o afetaram, mas seu subconsciente era muito bem treinado. Quando des-pertou, horas mais tarde, deu um grito. Bourtai olhou-o com olhos de surpresa e Flandry abraçou-a e beijou-a.

- Criança, creio que tenho uma ideia estupenda!- E... nos servirá?- Diabolicamente

Capítulo VI

Krasna luzia nas horas do entardecer como um carvão aceso em um ciclo pálido. O acampamento estava quase deserto.

Ossos roídos, restos de comida e cinzas brancas esparzidas por todos os lados, fa-lavam da festa celebrada pelos selvagens, a maior parte dos quais estava dormindo sob suas tendas de pele. Alguns garotinhos e umas quantas velhas da tribo vagavam recolhendo os restos da comida e entoando cantos primitivos com um murmúrio can-sado e monótono. Alguns indivídiuos voioskoyes também estavam acordados, senta-dos no chão com as pernas cruzadas e dedicando-se a fabricar objetos de pederneira ou de madeira. Olhavam de vez em quando para Flandry e Bourtai com absoluta in-diferença. A porcentagem de inteligência naquela gente devia ser muito reduzida, so-mente Kazar era um tipo especial.

Pela porta aberta da grande tenda do chefe, Flandry observou em seu interior di-versos tecidos, objetos de cristal e numerosos restos de pilhagem, próprios de uma civilização selvagem. Predominava o metal, pedaços de aço e ferro velho colhidos aqui e ali, de armas quebradas ou abandonadas, utensílios, ornamentos e objetos que logo seriam trabalhados pelos artesãos voiskoyes. Flandry pôde ver os dois varyaks no alto do monte. Um deles já estava meio desmantelado.

O chefe apareceu no umbral e com a cabeça fez um enérgico sinal para que Flan-dry entrasse em seu recinto., Os homens e os garotinhos haviam sido mandados para fora.

- Tu vir - disse, convidando-o a entrar.Flandry aceitou. Bourtai acocorou-se na entrada da tenda, sua angustia crescendo

por alguns momentos. O terrestre só tinha uma ideia fixa: fazer o impossível para devolver a calma, a liberdade e a vida àquela formosa criatura que havia entrado em sua vida em tão fantásticas circunstâncias. Não é que ele não desejasse continuar vi-vendo, de certa forma seria igual achar-se sozinho; mas agora conhecia uns senti-mentos deliciosos que jamais houvera suspeitado que pudessem existir e teria gosta-do de ficar junto a Bourtai, da quem estava profundamente enamorado pela primeira vez em sua frustrante vida.

- Então? - grunhiu Kazar.Flandry dirigiu-se para um varyak. Com o painel de controle desmontado e com to-

das suas peças deslocadas, pareceu-lhe um enigma desesperador.- Não tocar! - gritou Kazar brutalmente, afastando-o da máquina com uma tapa.- Olhe - respondeu Flandry, tão gravemente quanto lhe foi possível, - se você não

quer meu zaporo terrestre, diga. Eu preciso de uns certos aparelhos. Como seus os-sos raspados, ou as pinturas da sua tenda, ou as marcas que você faz no peito. Só terá que me confiar alguns desses fios.

- Primeiro dizer como trabalhar.- Muito bem - Flandry adotou uma postura hierática e dirigiu os olhos para o céu. -

Nós temos muitas coisas na Terra que são de grande valor para vocês. Por exemplo:

vocês devem ter muita dificuldade para encontrar água, não é assim? O que vocês fazem em uma estepe seca como esta para encontrá-la?

- Procurar em buracos. Enviar mulheres com sacos.- Por que não têm água mais perto do acampamento?- Animais vir beber. Nós espreitar de perto quando animais buscar água. Melhor

nós estar longe do acampamento, assim enviar homens para caçar e mulheres trazer água.

- Entendi. Mas não seria muito melhor cavar um grande poço, um buraco no terre-no?

Kazar sacudiu a cabeça, impaciente.- Nós fazer assim alguma vez. Não poder cavar fundo. Não ter ferramentas. Quan-

do achar que água está perto, nós cavar. Se não estar certos, não cavar.- Ah! Eu já imaginava. Bem amigos, seu sofrimento terminou. Eu posso construir

uma coisa que mostra onde se encontra a água a uma profundidade menor que a al-tura de dois homens. Água pura, além disso, e não a porcaria que vocês acham por aí.

Algo parecido a entusiamo assomou no rosto abominável do bruxo.- Se tu não dizer verdade, tu com certeza morrer - prometeu Kazar. - Como traba-

lha tu zaporo? Eu tentar zaporo para encontrar água fazer muito tempo. Não conse-guir. Tu dizer como.

- Bem - respondeu Flandry, gaguejando. - Eu suspeito que você não conhece a for-ma correta de fazê-lo. Nós, os terrestres, temos como antiquada a varinha do zahori. Temos conhecimento das leis que governam a mágica. É assim que chamamos na Terra ao zaporo: mágica. Você sabe que há diferentes coisas mágicas: há para a caça, para a boa sorte, para a saúde, para causar danos ao inimigo, e assim sucessi-vamente. Mas realmente há somente duas formas, duas classes de magia. Uma, que consiste em um objeto que tocou ou que fez parte de outro objeto. Por exemplo: você usa um nome de homem, ou parte do mesmo, para fazr mágica. Ou melhor ain-da, algo do seu cabelo, suas unhas ou seu sangue...

- Não falar! - exclamou Kazar. - Mulher escutar!- Não importa. Eu lhe asseguro que a magia da Terra é forte demais para ser alte-

rada pela presença de uma mulher. Na realidade, algumas das pessoas mágicas mais importantes são mulheres. Bem, esta é uma forma de magia a que chamamos na Terra de magia de contato. E a outra consiste em trabalhar sobre uma coisa, usando a aparência dessa coisa. Por exemplo: você ajuda seus caçadores a capturar as pe-ças com lanças nas quais pinta, com argila, a imagem do animal que se espera caçar depois. Não é assim? Isto é o que na Terra se chama de magia por simpatia.

Bastante impressionado, Kazar balançava a cabeça com gestos expressivos.- Tu conhecer muito zaporo. Eu conhecer muitos caminhos, muitos... como ser pa-

lavra? Muitos segredos. Mas eu nunca pensar que zaporo sendo duas classes.- Você não tem culpa - respondeu Flandry, condescendente. - Você nunca teve

uma educação científica. Muito bem. Como podemos encontrar água? Como não dis-pomos de parte do manancial de água que procuramos, temos que usar a magia por simpatia. Precisamos fazer um símbolo, um sinal, você compreende? Um símbolo da água e de um homem que a está procurando. O aparelho que eu preciso construir é o símbolo sobre o qual operamos. Está claro? É assim como trabalharemos - Flandry agachou-se e com um dedo traçou diversos desenhos no chão. - Primeiro construire-mos um desenho do território onde estamos. Faremos isto com fios e com uma placa de metal, formando aproximadamente um quadro. Mas no terreno onde exista água próxima à superfície tem que ser plantado, para que assim forme o símbolo buscado

- e Flandry desenhou uma série de círculos com uma uma flecha atravessando-os. - Estes são matos e raminhos - e assinalando uma indutância variável do rádio do varyak, acrescentou: - Isto servirá para o modelo que vamos construir. Está vendo como a figura muda dando voltas no mostrador? Usando este modelo, se a justa a forma do símbolo que representa o mato, até que fique próximo da forma atual de qualquer manancial que exista na área.

- Mas isto pertence a rádio - disse Kazar, com ar de suspeita.- Sim, já sei. Mas você sabe a forma que tem um radio. Como pode uma pequena

parte do radio servir para a função completa da mesma? Pode um osso ser igual a todo o animal? Use seu senso comum.

Flandry desenhou dois pares de linhas paralelas, que se cruzavam em pontos se-parados.

- Estes desenhos representam as águas cobertas pela terra - continuou, - como são vistas por dois olhos. É assim que temos que proceder no modelo que construi-remos - e apontou para um par de condensadores variáveis. - Você mesmo pode ver como se ajustam aos perfis locais.

Flandry havia procurado deter-se frequentemente em sua explicação, para que Ka-zar compreendesse tal complicado arrazoado com seu reduzido vocabulário e testar este ou aquele ponto à satisfação do chefe selvagem. E, em uma sinopse final, conti-nuou:

- Entretanto, o que é o terreno sem o sol? O onipotente, o que dá a vida, o Sol. Ah! Sim, devemos incluí-lo em nosso projeto. Você sabe que as baterias do varyak lhe proporcionam seu poder, assim tomemos uma. Ainda não está completamente esgotada. Com a ajuda de uma bobina, produzirá uma fagulha através deste buraco, quando a chave for fechada. A criação da fagulha é como a saída do sol, a vida e a esperança renascem então. Assim como o sol faz brotar a água do solo, nossa má-quina procurará a água que existe dentro da terra. E mais uma coisa. Precisamos simbolizar o ato de procurar a água e portanto precisamos da máquina conosco. E faremos correr um fio curto pela terra e outro mais longo olhando para o céu. O lon-go simboliza o homem vigiando o mundo inteiro e o melhor é levantá-lo no ar por meio de um papagaio (1). Você não sabe o que é um papagaio? Bem, dê à sua mu-lher alguns palitos e um cordão longo e fino e alguns pedaços dessa roupa e estou certo de que ela fabricará para você. No que respeita ao funcionamento da máquina, é coisa bem simples. Eu deixarei que a mulher empurre a chave que controla a fagu-lha. Você sabe e vê o que isto significa, claro. Uma mulher que maneja os símbolos do sol contribui para o conjunto mágico das forças da vida. A mulher tem que con-trolar a fagulha precisamente, já que desejamos obter um bom resultado e a água brotará do terreno como o leite do peito de uma mãe. Eu mesmo farei a parte mais difícil do trabalho, ajustando as diversas partes da máquina à conformação simbólica que precisamos. Você poderá fazer o papagaio voar. Ao cordel do papagaio temos que acrescentar uma lâmina plana, além do fio procurador. Faremos uma com aquilo - Flandry indicou um pedaço de chapa metálica do painel quebrado do varyak. - Você, que estará atendo à sua função, golpeará fortemente a chapa, enquanto pensa com toda sua força no caudal de água subterrânea que procuramos. Quando a chapa parecer mais rígida, é porque alguma coisa está perto de ser descoberta e eu posso ler e saber o local exato do manancial com os meus mostradores.

Depois de muitos circunlóquios, Kazar captou a ideia e conveio que a máquina hi-drofólica não era um engano e sim uma construção maravilhosa dos sãos princípios do zaporo. E então pareceu estar ansioso para começar imediatamente. Mas não dei-(1) No sul do Brasil: pipa NdoEspinhudo

xou de vigiar nem por um só momento os movimentos de Flandry e de inspecionar cada objeto que ele necessitava antes de serem manejados pelo terrestre.

A operação demorou poucas horas para ficar pronta. Quando saíram para o exte-rior com aquela confusão de circuito de rádio, Bourtai murmurou:

- Acha realmente que poderemos conseguir alguma coisa?- Supõe-se que você conheça qualquer código telegráfico empregado por seu povo

- respondeu ele baixinho. - Os nômades devem ter algum, a voz de radio nem sem-pre é prática.

Ela fez um sinal afirmativo com a abeça, suspirou profundamente e pôs o papagaio no ar. Flandry estava admirado de quão graciosa era Bourtai; mas não dispunha de tempo para sua admiração pessoal pela garota. Tinha que se concentrar em outra coisa, que era pôr em marcha aquele primitivo aparelho telegráfico.

- Fiquem ao meu redor aqui! - disse Flandry, com um gesto, aos gigantes que o ro-deavam. O espetáculo havia atraído a totalidade do acampamento, que cochichavam entre si e olhavam, com a boca aberta de assombro. Nem mesmo o próprio Kazar podia dominá-los e em um dado momento Flandry sentiu-se rodeado de barbas enormes por todos os lados.

Bourtai entregou a linha do papagaio para o chefe e sentou-se no chão para mani-pular o telégrafo improvisado. Quando a fagulha começou a saltar com o batucar ori-ginado pelo manipulador, pondo brilhos azulados entre as sombras do entardecer, os voiskoyes pareceram tomados por um terror supersticioso. Kazar traçava sinais prote-tores no ar.

O manipulador ia marcando suas pancadas, equivalentes a pontos e traços: “Ya-u.la, homens livres, ajudem a um homem livre”, com a esperança de que nenhum membro partidário do Khan interceptasse a mensagem. Tinha que haver algum rece-ptor aberto na escuta, em qualquer ordu, permanentemente. Mas a energia elétrica da bateria era fraca, estava quase esgotada pela longa viagem do varyak. E além do mais havia os ruídos eletrostáticos. Flandry fazia girar o mostrador em círculos, lenta-mente. Não podia saber as propriedades eletrônicas que possuiria aquele improvisa-do e rústico equipamento neo-hertziano. Tinha que tentar em todas as combinações possíveis, confiando encontrar a frequência adequada.

Um silêncio absoluto caiu sobre a tribo. Só se ouvia o repicar do manipulador nas mãos de Bourtai e o suave estalido da fagulha e, como acompanhamento de fundo, o rumor do ar na estepe. Kazar sustentava a linha do papagaio com uma mão, en-quanto que com a outra batia de vez em quando na placa metálica acrescentada. Re-pentinamente, ele gritou.

- Tulyansk! Mim sentir picada.- Ah, muito bem! - aprovou Flandry. - Bem, nunca se está seguro na primeira vez.

Continuemos. Se os mostradores registrarem o mesmo ponto e se a sensação de pi-cada nos dedos se repetir, então é porque a máquina está trabalhando.

Flandry esgotava todos os recursos da sua imaginação, prolongando a experiência, na confiança desesperada de que os sinais emitidos fossem captados e localizados. Se é que eram ouvidos e podiam vir...

Tudo continuou igual por alguns longos minutos. Mas chegou o momento em que Kazar começou a se cansar.

- Muito demorado. Eu sentir o mesmo muitas vezes. Tu decidir onde cavar.- Muito bem - gritou Flandry. - Creio que já tenho uma leitura. Vou interpretá-la.E adotando uma cômica aparência histriônica, para impressionar ao máximo o au-

ditório selvagem, disse em voz alta:- Adis Abeba, Constantinopla, walla-walla, kalamizo, woomera, saskatún, saskat-

chewan, topeka! Sigam-me - ordenou, - não, é melhor deixar o papagaio no ar. Bour-tai o levará na mão. Vocês, peguem o resto dos aparelhos.

Kazar deu uma ordem e um selvagem entrou em sua tenda e saiu com uma enor-me pá de cabo longo e uma ampla colher de aço.

Flandry conduziu-os através da estepe. A maior parte do pessoal da tribo os se-guiu, pisando em seus calcanhares. Seu silêncio era mais perigoso que os cochichos anteriores e Flandry podia virtualmente sentir seus olhares agudos às suas costas. Depressa e fazendo diversas paradas para inspecionar o terreno, levou a tribo por um bom trecho para o Norte.

Depois de alguns quilômetros, Kazar bufou como um touro:- Tu dizer zaporoska encontrar água perto. Não bom, sem água longe.- Não posso encontrá-la onde não está - protestou Flandry com dignidade. - No fu-

turo você poderá escolher seus acampamentos no lugar onde a máquina indicar. O manancial mais próximo ainda está a uma pequena distância.

Mas nenhum deles parecia convencido e após alguns minutos Flandry compreen-deu que havia esgotado todos seus recursos e a escassa paciência dos selvagens. Parou e golpeou o terreno com o pé.

- Aqui.- Aqui? - perguntou Kazar desconfiado, inclinando-se para pegar um pouco de ter-

ra entre os dedos e cheirando-a.- Seco, muito seco. Olhar isto, capim khru crescer na trra mais seca.- Você nunca tinha pensado em olhar aqui - argumentou o terrestre. - O que de-

monstra como minha máquina é valiosa.Kazar olhou-o duramente, endireitou-se e deu uma ordem ao homem da pá. O gi-

gante começou a trabalhar ardorosamente. Um buraco enorme abria-se rapidamen-te, enquanto que os demais rodeavam o lugar cavado. Seus corpos descomunais apareciam negros contra o céu amarelado do crepúsculo, apurando o olfato em dire-ção ao buraco. Bourtai mantinha o papagaio no ar, como um estandarte.

Depois de uma considerável espera e um grande esforço por parte do homem da pá, este falou alguma coisa a Kazar e o chefe disse com um gesto sombrio:

- Terreno muito duro. Não sinal de água.- Ainda não chegou à devida profundidade - disse Flandry. - Eu disse a você que

podia estar à altura de quatro homens, lembra? Da altura de homens voiskoyes, na-turalmente.

- Tu dizer dois - corrigiu Kazar. O chefe estava crispado, lançando chispas pelos olhos cavernosos e com as tremendas sobrancelhas eriçadas. - Eu achar que tu não dizer verdade.

- Bem, existe a possibilidade de que algum mago rival tenha contaminado a má-quina com um feitiço passageiro - e Flandry procurou demorar alguns minutos em explicar o sentido das suas palavras. - Precisarei fazer uma nova invocação mágica para expulsá-lo, se for este o caso.

- Nós não encontrar água logo, tu morrer - concluiu Kazar, sem rodeios.Flandry lançou um olhar desesperado para o céu.Seu gesto piedoso viu-se recompensado com a aparição de uma fagulha brilhante

na parte norte do céu. Um brilho metálico aumentava de tamanho ao longe. “Oh, Se-nhor - pensou - permita-os ver o papagaio e que compreendam.

Daí a poucos instantes, dominando o próprio ruído do grupo, a nave aérea achava-se sobrevoando acima eles. Foi quando um volskoye gritou selvagemente e avançou para ele. Atacados de um louco terror, o grupo de selvagens se dispersou à toda ve-locidade, como uma debandada furiosa de feras pela estepe. Bourtai soltou o papa-

gaio, começou a saltar com uma alegria louca, tirou a jaqueta e começou a agitá-la no ar.

Kazar atirou no chão o circuito transmissor, esmagando-o, e lançou-se contra Flan-dry rugindo.

- Tu mentir!O selvagem tentou agarrar Flandry com uma de suas manoplas, mas este aga-

chou-se rapidamente, evitando-a. O gigante tentou voltar-se para atacar novamente, mas falhou. Bourtai continuava brandindo freneticamente sua jaqueta no ar. Kazar, com um salto, lançou-se contra ela, prendendo-a firmemente. A pobre garota se re-torceu entre as garras do bárbaro e tentou cegá-lo com os dedos. Kazar sacudiu-a brutalmente, deixando-a sem sentidos e levantou-a com uma mão, tentando colocar a outra em seu pescoço para estrangulá-la.

Flandry recolheu a pá do buraco onde jazia abandonada e correu para o voiskoye Deu-lhe um golpe com toda força em pleno ventre e Kazar soltou um urro de dor, soltando Bourtai. O dano sofrido o fez vacilar por um momento, mas se refez mais raidamente do que o terrestre poderia imaginar. Lançou um terrível murro na ferra-menta, cuja lâmina saltou voando pelo ar a vários metros de distância.

Flandry começou a se esquivar das arremetidas do selvagem, circulando ao redor de Bourtai, para evitar que ele voltasse a atacá-la. A jovem jazia sentada no solo, semi-inconsciente. No mesmo instante ouviu-se um terrível impacto. Ouviu desabar perto dos seus pés aquela mole selvagem que o perseguia para matar. Voltou-se e contemplou atônito a colossal figura de Kazar desfeita horrivelmente no chão. Uma terrível queimadura havia-lhe fendido o corpo do ombro até a cintura. Enquanto isto, a nave aérea os sobrevoava a poucos metros de altura. Um nômade assomava a uma das portas do aparelho, brandindo nas mãos um fuzil de raios iônicos.

- Acertei? - gritou.Flandry inclinou-se sobre Kazar.- Sim - respondeu. - Está morto. Pobre bastardo, eu não podia imaginar que isto

acabasse assim.- Foi você que lançou o chamado de socorro? - perguntou o nômade.- Sim - respondeu Flandry, ajudando Bourtai a se levantar. - Aqui estamos. Mas,

quem é você?- Pertenço ao Mangu Tunam Aproximem-se. Vou aterrizar e recolhê-los. É melhor

que nos apressemos, pois este território está cheio de ordus do Khan. E se eles nos pegarem... - e o nômade fez um gesto bem expressivo, passando o dedo ao redor da garganta, enquanto emitia com a garganta um chiado que por si só expressava um fato bem concreto.

Capítulo VII

Arghun Tiliksky avançou a cabeça para os presentes. Um raio de sol que penetrava por uma pequena janela da kibitka iluminou planamente suas feições contra a pe-numbra da sala. Os outros homens, sentados no chão com as pernas cruzadas, pa-reciam simplesmente servir-lhe de fundo, como uma decoração.

- Sua façanha foi coisa do diabo - declarou. - Nada pode justificar ter tocado fogo na estepe. Nada de bom resultará disto.

Flandry estudou-o profundamente. Esse Noyon dos Mangu Turnan era muito jo-vem, mesmo para aqueles tempos em que os Tebtengri alcançavam uma idade avan-çada. E além disto, sem dúvida, era um guerreiro galante e arrojado como qualquer um podia testemunhar, sobretudo na noite do incêndio da planície. Mas, sob certos aspectos, era o equivalente local de um puritano.

- O incêndio não causou nenhum grande dano, não é verdade? - perguntou o ter-restre, com moderação na voz.

- E o motivo justificou o ato - afirmou energicamente Toghrul Vavilov, Gur-Khan da tribo. Acariciou a barba e trocou um olhar inteligente com Flandry. - Eu só lamento termos demorado em resgatá-los de imediato.

Um dos chefes visitantes exclamou:- Seu Noyon se aproxima da blasfêmia, Toghrul. Sir Dominic é da Terra! Se um se-

nhor da Mãe Terra deseja provocar um incêndio por uma ou outra razão, quem pode negá-lo?

Flandry sentiu-se orgulhoso até o rubor, mas permaneceu impassível e digno.- Não pôde ser de outro modo - disse. - Não tinha outro plano melhor.- E assim o Conselho foi convocado - acrescentou Toghrul Vavilov, pomposo e re-

dundante. - Os chefes de todas as tribos aliadas da nossa devem ouvir o que este distinto hóspede tem para relatar-nos.

- Mas... o fogo! - insistiu Arghun.Todos os olhares dirigiram-se então para um ancião que estava sentado sob a ja-

nela da kibitka. O corpo frágil e enxuto de Juchi Ilyak estava literalmente forrado de peles. O Grande Shaman acariciou por uns instantes sua barba branca e, com um olhar penetrante, dirigiu-se aos presentes:

- Não é esta a ocasião para disputar se os direitos de um homem da Santa Terra excederam a Yassa, da qual vive Altai. A questão é mais esta: como deveremos pro-ceder para julgar tais argucias legais em uma próxima ocasião? Que novo direito fi-xaremos para sobreviver no futuro.

Arghun sacudiu sua cabeleira negro avermelhada.- O pai de Oleg - disse - e a totalidade da dinastia de Nur Bator, antes dele, tentou

conquistar o Tebtengri. Mas ainda continuamos dominando as terras do Norte. E não acho que isto vá mudar do dia para a noite.

- Oh! Mas isto pode acontecer sim - respondeu Flandry, suavemente. - A menos que se faça alguma coisa, pode acontecer sim.

Lançou mão de um dos cigarros que lhe restavam e adiantou-se para que a luz ilu-minasse suas feições. Seus grandes olhos cinzas e o longo e afilado nariz eram algo por demais exótico no planeta e causavam uma certa impressão.

- Deixem-me resumir a situação tal como a entendo - continuou Flandry. - Ao lon-go de toda sua história, os altaianos têm usado o poder da química e têm armazena-do a energia solar. Os únicos geradores nucleares que existem estão localizados em Ulan Baligh. As guerras internas que Altai sofreu confinaram também as armas de energia elétrica e química à sua mínima expressão. A economia do planeta não pode-rá sustentar uma guerra atômica, ainda no caso em que os feudos e as disputas fronteiriças que começaram tais distúrbios valessem a pena tal destruição. Até aqui, vocês os Tebtengri sempre foram suficientemente fortes, militarmente, para conser-var e manter as terras do Norte. Mesmo que o resto do planeta se aliasse contra vo-cês, não seriam capazes de conseguir força bastante para arrojá-los desta zona de pastos sub-árticos, estou certo?

Todos concordaram com Flandry, com diversos gestos. Flandry continuou:- Mas tal situação agora foi alterada. Oleg Khan está conseguindo ajuda do exte-

rior. Vi com meus próprios olhos muitas de suas novas armas. Aparelhos potentes e modernos que podem alcançar vocês aqui mesmo, ou que podem subir mais além da atmosfera para cair como um raio em qualquer parte; carros de combate cujas cou-raças não podem ser perfuradas por seus melhores explosivos químicos; projéteis que podem devastar uma área tão vasta que nenhuma forma de dispersão poderia salvá-los. No momento, a ajuda conseguida de equipamentos modernos de tais cara-cterísticas não é muito grande. Mas chegará muito mais dentro dos próximos meses. Quanto Oleg tiver o suficiente para esmagá-los, ele o fará. E o que é pior, no meu ponto de vista, é que ele terá aliados que não são humanos.

O conselho estremeceu, impressionado. Somente Juchi, o Grande Shaman, perma-neceu calmo, observando Flandry com olhar impassível. Um cachimbo de barro entre suas mãos enviava um fumo acre para o teto.

- Nós também temos amigos que não são humanos - disse serenamente. - Quem são essas criaturas que Oleg invocou?

Merseianos - respondeu Flandry. - São uma gente de outra raça imperial, de um mundo distante; e os humanos também estão no caminho das suas fabulosas ambi-ções de domínio. Durante algum tempo temos vimos coexistindo, com uma paz no-minal, pelo menos; mas atualmente eles estão assassinando, cometendo todo tipo de brutalidade, subvertendo tudo. Tentam achar um ponto fraco para sua conquista. De-cidiram que Altai seria uma base extremamente útil para seus desígnios. Uma inva-são aberta seria custosa, especialmente se a Terra tivesse notícias de uma operação tão massiva e se provavelmente interferisse. Mas há uma sutil aproximação, da qual Altai deseja a todo custo que a Terra não tenha a menor informação. Os merseianos abastecerão Oleg com ajuda suficiente para que possa conquistar o planeta em sua totalidade. Em troca, uma vez isto conseguido, deixarão seus técnicos tranquilos. Os altaianos se verão obrigados a servir como escravos e a morrer arrebentados pelo trabalho forçado para construir suas fortalezas militares. Todo este mundo se conver-terá em uma gigantesca rede de instalações militares, e então, somente então, os merseianos virão, porque então já será tarde demais para a Terra.

- O próprio Oleg conhece todos esses planos? - perguntou Toghrul, com ar preocu-pado.

Flandry encolheu os ombros.- Não de todo, suponho. Oleg Yesukai confia que vai realizar um bom negócio.

Como outros tiranos marionetes, uma manhã ele despertará e verá que as rédeas que ele maneja já o terão amordaçado também. Eu já vi isto acontecer outras vezes em muitos outros lugares.

Toghrul retorceu nervosamente os dedos.- Acredito em você - disse. - Nós temos indícios, temos ouvido rumores, consegui-

do retalhos de informações procedentes de viajantes e espiões. O que você nos disse agora vem a acrescentar e esclarecer um pouco este quebra-cabeças secreto. Mas, o que podemos fazer? Podemos avisar os terrestres?

- Sim, sim, chamar os terrestres, avisar à Mãe dos Homens! - gritou em coro o Conselho.

Flandry sentiu como a paixão surgia naqueles guerreiros veteranos que tinha ao seu redor. Sabia também que os Tebtengri menosprezavam a religião de Subotai o Profeta, uma das principais razões pela qual as tribos do Sul lhes eram hostis. Este povo havia formado a sua própria religião, que era uma espécie de panteísmo huma-nístico. Flandry não quis explicar-lhes o que a Terra era a tal respeito naquela ocasi-ão. Mais valia que acreditassem que todos os terrestres eram heróis ou santos, com sua ideia retrospectiva e idealizada da Santa Mãe Terra. E desde então não se atre-veu a falar-lhes dos seus imperadores imbecis e megalômanos, de aristocratas sem escrúpulos, das cidades desleais, de tanta gente servil e desonesta e dos vícios tradi-cionais do Império. Era infinitamente melhor que aqueles bravos guerreiros conser-vassem seu santo amor pela Mãe dos Homens.

- A Terra está mais distante daqui que de Merseia - explicou Flandry. - Mesmo a nossa base mais próxima está mais distante que a sua mais próxima. Não creio que haja muitos merseianos em Altai neste momento, mas com certeza Oleg dispõe de uma rápida nave espacial para informá-los se alguma coisa correr mal. Suponhamos que pudéssemos informar tais fatos à Terra e Oleg soubesse disto. Que imaginam vo-cês que ele faria? Todos sabemos. Oleg enviaria imediatamente um aviso à base mais próxima dos merseianos. Eu sei que há uma grande força militar estacionada ali permanentemente e duvido muito que os merseianos abandonem tolamente seus in-vestimentos realizados em Altai. Para começar, despachariam rapidamente sua frota interplanetária para Altai, varreriam os territórios dos Tebtengri com bombas nuclea-res e os exterminariam para sempre. E quando outra frota terrestre pudesse chegar a Altai, os merseianos já seriam os senhores absolutos do planeta. A mais dura tare-fa em uma guerra espacial é desalojar uma frente inimiga bem entrincheirada em um planeta e sob as presentes circunstâncias logísticas, isto pode ser impossível. Mas mesmo que pudessem vir rapidamente, alterando o horário de operações dos mer-seianos, e os terrestres atacassem com terríveis bombas nucleares, Altai se transfor-maria em um deserto radioativo, como consequência fatal de semelhante processo.

Reinava um silêncio absoluto no Conselho. Os componentes da reunião achavam-se profundamente afetados e olhavam para Flandry com o horror que ele já havia visto antes e que se comunicava por si mesmo.

Flandry continuou, imperturbável.Assim pois, no momento o único objetivo racional para nós é enviar uma mensa-

gem secreta. Se Oleg e os merseianos não suspeitarem que a Terra conhece seus projetos, não se apressarão. Em lugar de Merseia, deve ser a Terra que chegue aqui repentinamente, fortemente armada, ocupe Ulan Baligh e estabeleça posições sub-terrâneas e pontos de defesa orbitais ao redor do planeta. Sob tais condições, Mer-seia não pensará em lutar, em absoluto. Descartaria logo Altai e seus propósitos. Eu conheço sua estratégia básica o bastante para predizer que isto acontecerá com absoluta certeza. E, como vocês compreenderão, não voltarão a encontrar condições

de fazer de Altai uma base ofensiva contra a Terra, nem a Mãe Terra a usará tam-pouco como base de agressão contra eles.

Arghun levantou-se. Entusiasmado e radiando, gritou:- Então a terra nos possuirá! Voltaremos novamente à grande família humana!Enquanto os Tebtengri exteriorizavam sua satisfação por tal esperança, Flandry fu-

mava outro cigarro, pensativo. “Depois de tudo - pensou - um estado provincial não teria porque alterar demais as vidas dos altaianos. Haveria uma base militar, um Go-vernador Imperial, uma paz forçada entre as tribos e alguns impostos razoáveis. E eles poderiam viver melhor. Ter prosélitos em outro sentido não era de grande valia para o Império Terrestre.”

Juchi, o Grande Shaman, falou em tom repousado e penetrante:- Guardaremos silêncio. Precisaremos sopesar o que devemos fazer.Flandry aguardou uns momentos, até que depois de um prolongado silêncio pôde

continuar o exame da situação.- Esta é a grande questão: Vocês têm mais alguma coisa para me perguntar? - in-

quiriu.- Que tal os betelgeusianos? - perguntou Toghrul sombriamente.- Duvido que possamos conseguir enviar nossa mensagem com sua mediação -

respondeu um dos gurkhans. Se eu fosse Oleg o Maldito, poria uma guarda ao redor de cada indivíduos betelgeusianos, assim como em cada nave espacial dessa gente, até que o artigo que saia do planeta, cada pele, cada perigo, desaparecesse. Inspe-cionaria cada objeto; enfim, cada um dos artigos que são exportados, antes de se-rem carregados.

- Não há porque temer isto - continuou Flandry. - Estou certo de que os merseia-nos não desejam acometer por si mesmos uma tarefa tão incerta, que seria a ocupa-ção imediata de Altai; a menos que estejam certos de que a Terra tem conhecimento dos seus projetos. Eles têm muitos assuntos para resolver em outros lugares do seu Império.

- Além disso - destacou Juchi, - Oleg tem orgulho. Não cometerá a idiotice de cair no ridículo perante seus amos, pedindo socorro urgente simplesmente porque um fu-gitivo se extraviou no Khrebet.

- De qualquer modo - interveio Toghrul - ele sabe quão impossível é para o Orluk Flandry deslisar uma informação para o exterior Aquelas tribos que não pertencem ao nosso Shamanate podem estar contra Oleg, mas detestem muito mais a nós que traficamos com os Habitantes do Gelo e desprezamos seu estúpido Profeta. Não con-seguiremos ajuda alguma de algum meridional. Mas, mesmo supondo que algum conseguisse passar nossa mensagem em uma pele, ou deslisando uma missiva escri-ta em um fardo, ou micro-escrevendo em uma gema, e conseguisse burlar os inspe-tores de Oleg, a carga com a mensagem bem poderia ficar esperando meses inteiros em um armazém qualquer dos betelgeusianos, antes que casualmente reparassem nele.

- Não dispomos de muitos meses antes que Oleg arrase este país e os merseianos cheguem - concluiu Flandry, sombriamente.

Esperou aina um pouco mais, observando as mais diversas opiniões dos chefes do Tebtengri, todos eles planejando projetos impraticáveis.

Levantou-se cansado.- Preciso de um pouco de ar fresco e de uma chance para pensar em algo interes-

sante - disse.Juchi movimentou gravemente a cabeça. Arghun também se levantou.- Eu também vou.

- Se é que o terrestre deseja tua companhia - disse Toghrul - podes mostrar-lhe nosso ordu, já que ele saiu diretamente do leito para esta conferência.

- Obrigado - respondeu Flandry, com ar ausente.Foi para o exterior descendo uma pequena escada. A kibitka onde haviam estado

reunidos era um enorme vagão rodante. O espaço era distribuído austeramente, como um quartel. No teto, como nos demais veículos grandes e pequenos, havia uns coletores de energia solar instalados, dirigidos permanentemente para Krasna. Com grandes acumuladores assim carregados, dispunham da reserva de força elétrica ne-cessária para sua vida nômade. Tais fatos davam àquele povo errante o aspecto de uma imensa manada de tartarugas espalhadas pelas colinas.

O Khrebet não tinha uma grande extensão. Era formado por uma série de ladeiras cheias de moitas espinhosas cinza-esverdeado e de capins secos, que ascendiam para o Norte, onde ficavam sepultados em alguma parte mais além daquele horizon-te, sob a capa glacial dos gelos eternos. Um vento gelado silvava quase que constan-temente na direção Sul, fazendo Flandry tremer de frio apesar da sua pesada roupa de boas peles que lhe haviam feito sob medida. O céu estava muito pálido naquele dia, quase branco. Os anéis do planeta apareciam muito baixos e se desvaneciam para o Sul, onde as colinas iam morrer na estepe.

Até onde Flandry podia alcançar com a vista, os escutas do Mangu Turnan monta-vam guarda permanente, serviço atribuído a garotos jovens montados em varyaks. Não havia gado maior. Os grandes mamíferos da Terra não podiam se facilmente le-vados a outros planetas; os roedores eram mais resistentes e adaptáveis. Os primei-ros colonizadores levaram coelhos, que cruzaram e mutaram com o emprego dos usuais métodos da genética da época.

Aquele antepassado distante dificilmente seria reconhecido naquela enorme besta quase do tamanho de uma vaca. Pareciam mais gigantescos coelhos das Índias de cor castanha. Por outro lado, Flandry também pôde observar grandes manadas de avestruzes transformadas.

Arghun apontou com um gesto de orgulho:- Eis aqui a kibitka com as escolas e a biblioteca do ordu - disse. - Esses garoti-

nhos sentados no chão perto dela estão aprendendo o alfabeto.Aquilo não surpreendeu Flandry, pois já imaginava que todos aqueles que condu-

ziam os veículos mecanizados não podiam ser analfabetos, nem os pilotos que diri-giam os aparelhos voadores antigrav (baseados na antigravidade) e que patrulhavam constantemente sobre suas cabeças. O nomadismo era perfeitamente compatível com uma educação adiantada. Com microimpressões, podiam levar milhares de volu-mes ao longo das suas viagens.

Arghun apontou para os grandes vagões com rodas, muitas vezes organizados em trens, e que lhes serviam de arsenais, clínicas, armazéns de maquinaria e pequenas fábricas têxteis e de cerâmica. As famílias pobres não tinham kibitka; acolhiam-se nos yurts, tendas de um grosso feltro em forma de cúpula, montadas sobre platafor-mas motorizadas. Mas ninguém parecia doente ou faminto. Não era uma nação em-pobrecida que arrastava suas ruínas em uma caravana rodante e sim uma forma ne-cessária de viver adaptada ao meio. E todos os componentes da grande tribo, fê-meas ou varões, constituíam, cada um deles, uma unidade militar, civil e econômica; e para isto eram devidamente treinados. Todo mundo tinha que trabalhar e comba-ter. Embora existisse um tipo desigual de riqueza, ninguém ia sem o necessário.

- De onde vem o metal que vocês usam? - perguntou Flandry.- Os terrenos de pastoreio de cada tribo incluem também algumas minas - respon-

deu Arghun. - Em nosso ciclo anual com os rebanhos, empregamos nelas algum tem-

po, cavando e fundindo os minerais. Em muitos lugares do circuito nós coletamos grão semi-selvagem semeado no ano anterior. Também extraímos petróleo de poços, o qual tratamos e refinamos em fábricas robôs. O que nós não produzimos, trocamos ou adquirimos de outros que as têm. A principal razão do Tebtengri ter sobrevivido tanto tempo, a despeito da oposição que vem sofrendo, é que entre suas várias tri-bos conta com todos os recursos naturais em suas terras circumpolares. De fato, no Khrebet está uma das poucas jazidas realmente ricas de minério de ferro de todo Al-tai.

- Parece uma vida virtuosa a que vocês levam - sugeriu Flandry.O leve humor da sua observação não escapou a Arghun, que se apressou a res-

ponder.- Oh, também temos nossas diversões, Orluk. Festas, esportes, partidas diversas,

as artes e a Grande Feira de Kivka, onde as tribos se reúnem e... - Arghun se deteve subitamente.

Bourtai se aproximava passeando e Flandry pareceu sentir o isolamento da jovem. Naquela cultura, a mulheres não eram muito inferiores aos homens. Bourtai podia ir aonde quisesse, sendo além disso considerada como uma heroína por haver trazido o terrestre até eles. Mas seu clã havia sido exterminado e ainda não lhe tinham desig-nado trabalho algum para fazer.

Bourtai viu os dois homens e correu ao seu encontro.- O que foi decidido? - perguntou ansiosamente.- Nada ainda - Flandry tomou as mãos dela entre as suas. Agora estava calmo e

apreciou a grande beleza de Bourtai e sorriu com aberta simpatia. - Há muitos anos eu tenho vagado pelo mundo, esperando encontrar o que você representa para mim. Agora que achei, minhas esperanças forma bem recompensadas.

Uma forte emoção refletiu-se nas belas feições de Bourtai. Ela, que não era loquaz por natureza, baixou o olhar e murmurou:

- Não sei o que dizer...- Não precisa dizer nada. Somente ser como é.- Eu não sou ninguém. A filha de um homem morto, meu dote perdido há muito

tempo e você é um Orluk da Mãe Terra... Não está certo, não é justo!- Acha que ele se importa com seu dote? - interveio Arghun. E sua voz denotava

um violento esforço.- Vocês dois estiveram conversando? - inquiriu Flandry.- Sim. Estivemos conversando por um bom tempo esta manhã - respondeu Arghun

com rigidez.Arghun procurou esconder seu gesto de dignidade atrás de uma máscara impossí-

vel. Flandry olhou-o longamente e encolheu os ombros.- Vamos, será melhor que voltemos ao Kurultai.Flandry não soltou a jovem, pelo contrário, pôs seu braço sob o de Bourtai. Ela an-

dava silenciosamente e Flandry notou que a garota tremia ligeiramente por baixo das roupas. O vento sibilante revolvia sua cabeleira negra.

Quando chegaram perto da kibitka do Conselho, as portas se abriram e apareceu Juchi Ilyak, em pé, imóvel e majestoso

- Orluk - disse ele a Flandry, - talvez exista uma boa solução para todos nós. Pelo menos buscaremos outro sábio conselho. Você se atreveria a vir comigo ao Povo do Gelo?

Capítulo VIII

Trengri Nor, o Espírito do Lago, situava-se muito longe no Norte. Quando Flandry e Juchi desceram do seu aparelho ainda era dia, embora os anéis do planeta estives-sem visíveis dali. Durante a noite, segundo disse o Shaman, se notariam como um fraco brilho, visível sobre o horizonte meridional. Krasna aparecia como o vestígio de uma brasa avermelhada e os campos nevados apareciam tingidos de vermelho. À medida que o sol se ocultava nas sombras, um véu púrpura deslisava de um tempo-ral a outro.

Flandry jamais havia visto semelhante quietude, nem mesmo no espaço, nos voos siderais, em que sempre se nota pelo menos o leve zumbido da maquinaria que ser-ve como referência para saber se está vivo. Ali o ar parecia gelar até os sons. As lu-fadas de vento procedentes do polo sopravam suavemente, arrastando com elas fi-níssimos cristais de gelo que brilhavam e deslizavam sobre os bancos de neve, tão suavemente que não se podia ouvi-lo. Forrado até o exagero com boas peles e com o rosto coberto de uma capa de gordura para proteger-se daquela fria atmosfera, sentia que sua própria respiração gelava no rosto. Pareceu-lhe que, estranhamente, podia cheirar o lago, mas não estava certo. Não podia dar muito crédito a quaisquer dos seus sentidos terrestres neste terrível lugar invernal.

Com um inesperado vozeirão, que soou como um disparo, disse:- Eles sabem que estamos aqui?- Oh, sim, claro. Eles conhecem nossa rota e logo se reunirão conosco - respondeu

Juchi.O Grande Shaman olhou para o Norte, para as ruínas que se achavam em pé nas

margens do lago. A neve escondia um pouco os enormes muros de mármore, branco sobre branco, onde a luz crepuscular parecia sangrar através das colunatas destroça-das. O hálito do Shaman começava a congelar na barba.

- Suponho que reconhecerão os sinais do nosso aparelho - disse Flandry. - Porque, o que aconteceria se o Khan enviasse um aparelho disfarçado?

- Isto já aconteceu algumas vezes no tempo do pai de Oleg. Seus aparelhos foram detidos muito antes de chegarem até aqui, no Sul, por algum meio desconhecido. Os Habitantes do Gelo estão sempre alertas.

Juchi levantou os braços e começou a fazer estranhos barulhos, com a cabeça lan-çada para trás e com os olhos fechados, enquanto uma misteriosa litania brotava dos seus lábios como um suave canto.

Flandry não tinha a menor ideia se o ancião invocava algum ritual supersticioso, se praticava alguma cortesia ritual ou se fazia sinais para as pessoas da geleira. Havia visto muitas coisas raras em sua vida. Esperou, enquanto abarcava com o olhar aquele fantástico panorama.

Mais além das neves, para o Oeste, ao longo da ribeira do lago crescia um bosque. Um bosque de árvores brancas e débeis, com uma intricada ramagem de singular disposição geométrica, que brilhava com luminosos lampejos, como se fossem joias.

Suas tênues folhas vibravam continuamente, dando a sensação de que toda a flores-ta fosse de cristal. Flandry nunca havia visto uma paisagem da natureza em tamanha quietude. A neve entre aqueles fulgurantes troncos era atapetada de plantas cinzen-tas e achaparradas. As rochas que ali apareciam estavam quase sumidas sob tal ve-getação de líquens. Se o lugar não fosse tão frio, aquilo teria sugerido uma rica ve-getação tropical. O lago se perdia de vista, com sua cor azul pálido, entre os bancos de neve. Conforme a tarde se adiantava sobre as águas, a neblina que flutuava sobre o lago se tornava enbranquiçada.

Juchi havia-lhe explicado a base químico-física da vida polar de Altai. Originalmen-te protoplasmáticas e terrestroides, as formas originais viram-se obrigadas a se ada-ptarem, em idades pretéritas, à temperatura progressivamente decrescente. Haviam feito isto mediante a sintetização do metanol. Uma mistura de partes iguas de água e metanol permanecia fluida abaixo dos quarenta graus negativos. Quando finalmente se gelou, a células não explodiram se desintegrado em formas de cristais de gelo, e sim, simples e gradualmente, mudaram para uma forma lodosa, mas fluida. A vege-tação e os animais mais primitivos permaneceram vivos funcionalmente, até cerca de 70º c, sob essa temperatura ficaram em forma de vida latente, sem morrer. Os ani-mais superiores, sendo homotérmicos (1), não suspenderam sua animação até que o ambiente alcançou os 100 graus abaixo de zero.

Os lagos polares e os rios se carregaram igualmente de álcool, por acumulação, procedentes de resíduos orgânicos mortos das espécies aquáticas. Desta forma, per-maneciam fluidos até os meados do inverno. O principal problema da vida nas regi-ões glaciais era achar minerais. As bactérias foram proporcionando-os. Ali onde as rochas apareciam, os animais viajariam até carcomê-las e absorver parte da sua constituição mineral e, ao voltarem aos seus bosques e morrer, iriam se formando os átomos pesados. Mas no geral, a ecologia de Altai havia se formado sem eles. Ne-nhum animal nativo, por exemplo, tinha ossos, tendo em seu lugar uma estrutura es-quelética de cartilagens e quitina, muito diferentes, claro, dos animais da Terra.

O relato de Juchi teria sido plausível e interessante em uma confortável kibitka, com micro-textos à mão para consultar detalhes quantitativos; mas ali, sob aquelas neves de um milhão de anos, observando o cair da noite como uma sombra entre as árvores de cristal, entre as ciclópicas ruínas e ouvindo o canto misterioso do Grande Shaman sob um vasto céu, descobriu que as explicações científicas eram somente fracas tentativas de se aproximar da verdade.

Uma das luas do planeta surgiu no espaço e Flandry viu algo flutuar e se deslocar ao amparo da sua luz acobreada. Os objetos, uma imensa aglomeração de esferas brancas, atingindo diâmetros desde uns poucos centímetros até o tamanho de uma enorme nave aérea, se aproximavam deles. Uns grandes tentáculos se projetavam por baixo daqueles globos flutuantes.

Juchi interrompeu sua litania.- Ah! São as aeromedusas. Os Habitantes do Gelo não estão muito longe.- O que? - perguntou Flandry admirado.O frio se fazia cada vez mais intenso, até morder-lhes as carnes através do couro e

das grossas peles.- É o nome que lhes damos - acrescentou o Shaman. - Parecem organismos primi-

tivos, mas atualmente estão bem evoluídos, com órgãos dos sentidos e com cérebro. Elas eletrolisam o hidrogênio a partir da água para se inflarem e sua propulsão aérea é através do ar, que forçam para trás. Alimentam-se de numerosas caças menores que vão se chocar contra seus tentáculos, insensivelmente. O Povo Gelado as do-(1) Que mantém uma temperara constante. Do grego 'hómoios'- análogo, igual,semelhante (Ndo Espinhudo)

mesticou.O Shaman também começou a sentir calafrios.- Nós os humanos - continuou Juchi - não temos ideia, realmente, se os Habitantes

do Gelo degeneraram ou não. Me atrevo a dizer que a inteligência apareceu em Altai, principalmente, como resposta à piora das condições do planeta, ou seja, as esquen-tamento de Krasna no último milhão de anos, depois da biosfera haver se adaptado às baixas temperaturas. Superficialmente apareceria uma nova civilização que depois entrou em colapso. A escassez de metais e o encolhimento das calotas polares pode ter sido a causa. E, não obstante, não é o que afirmam os próprios habitantes. Eles não demonstram sentir a perda de um glorioso passado. Até onde posso imaginar, creio que eles abandonaram deliberadamente sua civilização material antiga, depois de terem achado métodos melhores.

Dois seres se aproximavam pelo bosque.À primeira vista pareciam anões forrados de peles brancas. Quando estavam mais

perto, podiam-se observar outros detalhes da sua rechonchuda constituição. Tinham pés longos e membranosos, como para se adaptarem elasticamente à superfície ne-voenta, como pequenos esquis. Nas mãos tinham três dedos opositores a um dedo polegar, inserido na metade da munheca. As orelhas pareciam penachos circulares forrados de plumas. Tinham olhos muito negros; e uma feição simiesca, de triste olhar, emergia sob uma peluda cabeleira. Não pareciam respirar como os seres hu-manos, já que seus corpos achavam-se a uma temperatura inferior a zero grau centí-grado. Um deles levava em uma mão uma lâmpada de pedra da qual saía uma cha-ma de álcool e na outra um bastão branco, complicadamente cinzelado. De uma for-ma indefinível, as medusas aéreas pareciam ser guiadas por tão estranho instrumen-to.

Acercaram-se, fizeram alto e esperaram. Nada se movia, exceto o vento que agita-va suavemente suas peles e a chama da lâmpada. Juchi também permaneceu imóvel e Flandry tratou de seguir a conduta do Shaman, embora seus dentes se chocassem pelo frio agudo do ambiente. Havia visto muitas formas de vida em outros mundos, mas tudo aquilo era de uma estranheza quase irreal.

O sol se escondeu. Com um ar tão tênue e sem poeira, não houve crepúsculo. A noite caiu subitamente e as estrelas brilhavam distantes no espaço naquela repentina escuridão. A borda dos anéis de Altai pintava um arco remoto no horizonte distante. A lua esparziu um esplendor acobreado sobre a neve, povoando o bosque com som-bras fantásticas. Um meteoro cruzou fugazmente o céu em um relâmpago silencioso. Juchi pareceu tomar o fenômeno como um sinal e começou a falar. Sua voz parecia gelad,a como se ele estivesse congelado, e não parecia absolutamente que suas pa-lavras tivessem a menor entonação humana. Flandry começou a entender o que era o Shaman e porque ele presidia todas as tribos aliadas das terras do Norte. Poucos homens, com certeza, teriam tido a inteligência necessária para dominar a linguagem dos Habitantes do Gelo, e fazer tratos com eles. Uma grande parte da força do Teb-tengri residia em suas relações com esses seres. O metal era trocado por petróleo, objetos curiosos e substâncias plásticas procedentes do Trengri Nor e sustentavam mutuamente a defesa contra as incursões aéreas do Kha Khan.

Um habitante replicou e Juchi voltou-se para Flandry, para ir traduzindo a conver-sa.

Eu contei a eles quem você é e de onde vem, Orluk. Não estão surpresos com isto. Antes de falar-lhes do seu requerimento, eles já pareciam conhecer o assunto. Não sei exatamente a palavra apropriada, mas é algo que tem a ver com as comunica-ções à distância, e me disse que sabem entrar em contato com a Terra, sem importar

a distância, alguma coisa assim como se fosse através dos sonhos.Flandry ficou atônito. Realmente, isto poderia ser assim. Quanto tempo fazia que

os homens se achavam envolvidos em sua mente por algo mais rápido que a luz em seu interior? Um punhado de séculos. E que era aquilo comparado com o Universo? Acreditou sentir, subitamente, não somente em seu cérebro, como em todo seu ser, como aquele planeta era antigo.

- Telepatia? - aventurou Flandry - Nunca ouvi falar de uma experiência telepática com tão tremendo alcance.

- Não. Não é isto o que os Habitantes do Gelo querem dizer. Se fosse assim, sabe-riam tudo o que concerne à situação dos merseianos e nos teriam avisado. Seu con-ceito é algo que eu não consigo entender completamente - e Juchi acrescentou, com muito cuidado: - De fato, me deram a entender que qualquer poder que eles pos-suem é inútil para nossos propósitos.

Flandry suspirou profundamente.- Eu devia saber. Uma mensagem telepática para a Armada Imperial teria sido sim-

ples demais. Não há oportunidades para heroísmos fáceis.- Os Habitantes dizem - prosseguiu Juchi - que eles se libertaram há muito tempo

desses pesados edifícios e máquinas que os humanos ainda usam. Ficaram assim li-vres para meditar, seguindo o pensamento puro, para uma meta desconhecida, mui-to mais distante do que podemos imaginar. Mas, consequentemente, perderam mui-tos poderes materiais. Podem fazer frente a qualquer agressão de Ulan Baligh, mas estão desarmados contra as naves do espaço exterior e contra as armas atômicas dos merseianos.

Meio oculto pela luz acobreada da lua, um aborígene falou. E Juchi traduziu ao mesmo tempo.

- Dizem que não sentem temor pela morte. Se Merseia os exterminasse, eles o aceitariam com calma. Todas as coisas têm um fim, contudo nada se acaba realmen-te. Entretanto, prefeririam que seus descendentes, as feras e as plantas dos bosques gelados, ainda pudessem viver uns quantos milhões de anos mais, para poderem se aproximar da Verdade. Eles, como nós os Tebtengri, não se importam em serem cli-entes do Império Terrestre. Para eles, qualquer estado político carece de significado. Nunca tiveram nada em comum com os homens para se perturbarem por qualquer Governador Imperial. Sabem que a Terra não quererá causar-lhes danos gratuita-mente e que Merseia o faria, no caso de que seja provocada esta guerra de frotas espaciais que você descreveu. Portanto, a Cidade do Gelo está disposta a nos ajudar com os meios que disponham. Mas no momento não conhecem solução alguma.

- Estas duas pessoas falam em nome de toda sua raça?- E dos bosques e das águas - respondeu Juchi com a maior solenidade.Flandry imaginou toda uma biosfera constituída por um só e grande organismo.- Se você diz assim, aceito sua palavra. Mas se realmente não podem nos ajudar...Juchi deixou escapar um suspiro de homem velho, como o vento sobre as acres

águas do lago.- Eu esperava que pudessem fazê-lo. E agora, você tem algum novo plano para

nós?Flandry ficou calado por uns momentos, sentindo as terríveis pontadas do frio pe-

netrante no corpo e finalmente disse:- Se as únicas naves espaciais de Altai se encontram em Ulan Baligh, evidentemen-

te nós devemos penetrar na cidade de algum modo e enviar nossa mensagem. Esse povo tem algum meio de contato secreto com os betelgeusianos?

Juchi traduziu a pergunta.

- Não - traduziu em seguida. - Não estando os comerciantes betelgeusianos estri-tamente vigiados. Seu senso especial de premonição os adverte que isto é assim.

O portador da lâmpada se adiantou, de forma que a chama azulada iluminou seu semblante. Poderia ler, como humano, qualquer emoção refletida naqueles olhos? Então falou em sua misteriosa linguagem. Juchi escutou.

- Poderiam nos levar à cidade sem sermos detectados em uma noite muito fria - traduziu novamente o Shaman. - As medusas podem nos levar pelo ar. Uma medusa é fria demais para ser detectada por algum aparelho de raios infravermelhos. Um ho-mem sozinho entre seus tentáculos seria pequeno demais para ser detectado por qualquer instrumento na terra.

O Shaman fez uma pausa.- Mas de que nos serviria? Se queremos ser introduzidos em Ulan Baligh, isto pode

ser feito simplesmente a pé, pelas ruas, convenientemente disfarçados. E uma nave aérea seria detida em qualquer ponto do tráfego fora da cidade e inspecionada.

Flandry elevou os olhos para o céu refulgente de estrelas, com a luz da lua baten-do-lhe em cheio nos olhos. Tinha todos seus nervos tensos. Quando finalmente fa-lou, o fez lentamente, como se fizesse uma recapitulação.

- Você se lembra, Juchi, quando falamos sobre a possibilidade de falar por rádio com qualquer nave dos betelgeusianos, quando esta se achasse ainda dentro da at-mosfera? Você me disse que os Tebtengri não dispunham de equipamento suficiente, com a potência necessária para transmitir tão distante. E de qualquer modo os kha-nistas poderiam nos ouvir. Tampouco poderíamos transmitir com uma força fraca, pois não alcançaríamos a nave espacial, que escaparia do nosso alcance em coisa de segundos, embora nossa transmissão pudesse localizá-la.

- Sim, eu me lembro.- Bem, suponhamos uma nave espacial que seja amiga e que se aproxime do pla-

neta sem aterrizar. Poderiam os Habitantes do Gelo se comunicar com ela?Juchi perguntou e depois respondeu:- Não. Eles não têm equipamentos de rádio em lugar algum. Mesmo no caso que

tivessem, sua transmissão seria detectada como a nossa. O risco parece grande, Or-luk. Nenhum aparelho pode passar sem o conhecimento do Khan, porque há satélites detectores em órbita. Mesmo a transmissão a partir de um aparelho sofre uma certa dispersão ao se chocar com o solo. O risco dos khanistas receberem nossa transmis-são parece excessivo.

- Sim, acho que sim.O olhar de Flandry continuou buscando em direção ao céu até encontrar a estrela

Betelgeuse, como uma tocha entre as constelações.- Poderíamos saber se tal nave espacial estivesse nas proximidades do planeta? -

perguntou Flandry.Juchi conferenciou por um momento com os Habitantes da Cidade do Gelo.- Sim - disse. - Poderíamos ser avisados sobre tal presença. Nosso amigos suge-

rem que poderíamos colocar homens, transportados por medusas, que sobrevoassem Ulan Baligh a uma grande altura sem serem notados. Esses passageiros iriam provi-dos de receptores de radio, que poderiam interceptar a conversa entre a nave e o controle do aeroporto espacial. Isto serviria?

Flandry fez um gesto de satisfação.- Sim, pode ser útil - en então pôs-se a rir alegremente.Talvez semelhante som jamais tivesse sido ouvido antes em toda Trengri Nor. Os

Habitantes do Gelo recuaram temerosos, como pequenos animais assustados. Juchi continuou impassível nas sombras. Somente Flandry, com a cabeça levantada para o

resplendor acobreado da lua ria como um garotinho.- Pelos céus! - gritou - Vamos tentar!

Capítulo IX

Uma terrível tempestade de outono se abateu, vinda do polo, lançando continuas cortinas de neve em sua passagem através de toda da estepe e alcançando Ulan Ba-ligh perto da meia-noite. Em coisa de minutos, os tetos vermelhos da cidade se per-deram de vista.

Próximo a uma janela iluminada, um homem observava a avalanche branca da neve rugindo de uma zona escura a outra. Mas, distanciando-se uns quantos metros, empurrando um monte de neve já formado à altura dos joelhos, voltou a sumir na escuridão. Ficou como um cego, batido pela tormenta e envolto por seu imponente ruído.

Flandry havia descido da alta atmosfera. Aquele frio havia lhe penetrado de tal for-ma que pensou não voltar mais a sentir o calor em sua vida. Apesar do seu equipa-mento de oxigênio, seus pulmões pareciam gelados. Viu a tormenta de cima como um borrão negro mosqueado. Os primeiros flocos gelados sobre Ozero Rurik foram arrastados até o limite setentrional. Os tentáculos da medusa o sustentavam como em uma rede, viajando como sob um balão gigantesco que desceu do céu até o oes-te da cidade. Após ele vinham outras medusas, uma frota inteira daqueles balões vi-vos, que se retorciam ao longo das correntes de ar para evitar a detecção do radar. Adiante dele havia outra levando um habitante do gelo na rede dos seus tentáculos e embrulhado em um grande bloco de gelo para suportar aquela tormenta tropical. Uma vez rodeado pela neve, Flandry pôde notar quanto se havia esquentado o ambi-ente, em comparação com as temperaturas anteriores. Descendo pouco a pouco, a iluminação avermelhada da Torre do Profeta apareceu à vista, aumentando sua colo-ração à medida que se aproximava.

Flandry procurou tateando pelo longo tentáculo injetor da medusa e colocou-o no ombro como uma enorme mangueira de jardim. A radiante luz da Torre mal lhe per-mitia ver alguma coisa através dos flocos d eneve. Outra medusa se aproximou le-vando um enorme tanque de pintura. Flandry conseguiu que encontrassem o orifício, onde introduziu rapidamente o tentáculo injetor.

- E agora, inteligência ártica, entenda o que preciso de ti! Vamos, me ajude!O vento respondeu-lhe com um rugido. Profunda e amplamente, ouviu o som de

uma bomba aspirante-propelente: a respiração da medusa. Flutuando a uma altura conveniente, dirigiu sua nave viva para a grande muralha de mármore onde estava esculpida a estátua da Sagrada Escritura do profeta Subotai. Uma letra, grande como uma casa, e negra sobre o fundo branco do mármore, apareceu-lhe subitamente. Ali estava seu objetivo. Apontou com o tentáculo e lançou um potente jato de pintura. O primeiro jato verde desviou-se, arrastado pelo vento. Corrigiu a pontaria e viu final-mente a pintura estampada na colossal muralha marmórea. A pintura parecia perma-necer líquida, mesmo àquela temperatura, mas não importava: era espessa o sufici-ente e estaria seca antes da manhã seguinte. O primeiro tanque foi totalmente usa-do. Flandry lançou mão de outro, transportado por outra medusa, desta vez da cor

azul. Todos os Tebtengri haviam trabalhado na fabricação daquela tintura, que reunia os matizes do arco-iris. Flandry esperou que tivesse o suficiente. Havia bastante. Es-teve a ponte de cair esgotado pelo frio e pela fadiga, antes de terminar o trabalho. Ainda assim quando o enorme letreiro estava acabado, não pôde resistir à tentação de acrescentar-lhe um sinal de exclamação.

- Vamos! - ordenou por sinais ao habitante do gelo. Este compreendeu o aviso e pôs novamente em marcha a frota de balões vivos. Logo as medusas saltaram para a nuvens em voo de retorno.

Flandry notou, com uma rápida olhada, uma nave aérea militar. Havia se destaca-do de esquadrão que patrulhava por cima do aeroporto espacial da cidade, ou talvez o piloto estivesse fora de serviço. Mas quando as medusas sobrevoaram a tormenta, entrando na zona iluminada pela lua e pelos anéis do planeta, o aparelho virou rapi-damente para elas. As armas de bordo começaram a disparar, metralhando os com-ponentes da frota. Flandry instintivamente lançou mão da sua inútil pistola, mas seus dedos estavam tão entumecidos como a madeira e não pôde fechar a mão.

Todas as medusas, exceto a sua e a do habitante, lançaram-se em um redemoinho contra o aparelho, rodeando-o e atacando-o, esmagando seus tentáculos como enor-mes ventosas na estrutura metálica. O aparelho estava quase encerrado por aquele enxame de medusas. Uma crepitação de descargas elétricas surgia por todas as par-tes, como fogos de artifício. Aquelas criaturas estavam criando um terrível potência, suficiente para desintegrar o hidrogênio a partir da água em suas moléculas. Quando aquelas descargas elétricas queimaram a couraça do aparelho, abrindo-lhe terríveis buracos, esparzindo a glassita, fundido-lhe os circuitos de controle, a nave aérea afundou como uma massa de ferro velho inerte. As medusas se separaram, enquan-to que o aparelho explodia contra o solo. Flandry deixou escapar um suspiro de alívio e deixou seu animal conduzi-lo para o Norte.

A cidade fervia como uma onda de pressão. Havia escaramuças por todas as par-tes e especialmente na rua dos Armeiros. E o sangue havia corrido na neve recém caída na noite anterior. Homens armados patrulhavam ao redor do palácio e no aero-porto espacial. Dos acampamentos da margem do lago chegavam os sons de uma música militar exaltando os ânimos. Pelotões de jovens guerreiros conduziam seus varyaks, em pé de guerra.

Oleg Khan olhou da janela da sua janela, na sala da torre principal do palácio.- Faremos isto bem feito! - mastigou com raiva. - Oh sim, meu povo! Terás uma

satisfação adequada.Voltando-se para o betelgeusiano, que acabara de ser trazido à sua presença, cra-

vou os olhos em seu rosto azul:- Você viu?- Sim, Majestade - o idioma altaiano de Zalat, normalmente fluido, embora com um

ligeiro acento estrangeiro, brotou duro e entrecortado dos seus lábios. Havia passado um mal momento. Somente a intervenção das tropas reais havia salvo sua nave es-pacial de ser destruída por um milhar de fanáticos ensandecidos.

- Eu lhe juro que nada temos a vem com... nós somos inocentes...- Sem dúvida, claro! - respondeu Oleg, dando uma tapa no ar com profunda irrita-

ção. - Eu não sou um desse ignorantes pastores ruminantes lá de fora. Todos os be-telgeusianos têm estado sob rigoroso controle há muto tempo.

- Eu sei, Majestade - balbuciou Zalat. - Mas eu ainda não estou seguro das suas razões para isto.

- Eu tinha lhe avisado. Você sabe que o visitante da Terra foi morto pelos agentes do Tebtengri no mesmo dia que chegou em Altai. Acontece que, como eu vinha sus-peitando há muito tempo, as tribos do Norte se tornaram xenófobas quanto ao as-pecto religioso. Dado que sem dúvida els têm agentes operando na cidade, tentariam assassinar também os betelgeusianos. Portanto, o melhor será que você permaneça cuidadosamente custodiado e não tenha contato com ninguém, exceto com pessoas leais e da máxima confiança, até que a situação esteja sob controle total.

Mais calmo por suas próprias palavras, Oleg sentou-se, acariciou a barba e obser-vou Zalat com olhar astuto.

- Lamento que você tenha estado tão perto de ser linchado esta manhã - disse suavemente. - Como vocês pertencem a outro mundo e como os símbolos escritos na Torre do Profeta não estão no alfabeto altaiano, o populacho chegou à conclusão de que a escrita seria alguma palavra suja em seu idioma. Eu, claro, tenho outra ideia. Do estudo dos restos do aparelho abatido na noite passada, meus técnicos de-duziram que o ultraje é obra do povo endiabrado do ártico e, sem a menor dúvida, em acordo com os Tebtengri. Uma façanha tão vil não teria preocupado essas tribos, já que não são seguidores do Profeta. Mas o que me confunde é, e admito com fran-queza embora confidencialmente, por que? É uma trabalho muito atrevido... somente para fazer uma estúpida brincadeira conosco?

Voltou-se para a janela. Daquele ângulo a Torre parecia normal. Tinha que olhar do Norte para ver o que haviam feito: a grande muralha de mármore branco estava desfigurada por uma pintura em mais de um quilômetro. E dali a fantástica profana-ção era visível de todo o imenso horizonte.

O Kha Khan fechou um punho em um gesto de raiva selvagem.- Será feita uma boa reparação - disse. - Isto fará com que as tribos ortodoxas me

sigam e estejam dispostas a tudo, como não o fariam por nenhum outro motivo. Quando as crianças dos rebeldes forem queimadas vivas diante dos seus olhos, os Tebtengri se darão conta do que fizeram.

Zalat hesitou:- Vossa Majestade..- Sim?- Aqueles símbolos... na Torre... são letras do alfabeto da Terra.- Como?- Eu conheço regularmente a língua ânglica. Muitos betelgeusianos também a co-

nhecem. Mas como puderam esses Tebtengri tê-la aprendido?Oleg, que conhecia a resposta para aquele mistério, interrompeu Zalat e avançou

sobre ele, pegando-o pela túnica e agitando-se nervoso.- Que quer dizer? - gritou furioso.- Isto é o estranho, Majestade - murmurou Zalat novamente - Não parece significa

coisa alguma. A palavra não faz sentido.- Bem, que palavra é? E como está escrita? Fale, antes que eu lhe arranque os

dentes!- MAYDAY - gaguejou Zalat - Precisamente isto, Mayday, Vossa MajestadeOleg o soltou e pPor uns momentos permaneceu em silêncio. Finalmente o Khan

disse:- É uma fase sem sentido ou uma palavra atual da Terra?- Bom... suponho que poderia ser uma palavra. Não creio conhecer intimamente

cada frase ou mudanças da língua ânglica, nem suas expressões técnicas. Enfim, tudo que me ocorre é que May é o nome de um mês no calendário da Terra e Day si-gnifica “período diurno”. - e Zalat ficou pensativo, com seus olhos amarelados fixos

em algum ponto indeterminado, tentando encontrar uma explicação lógica. - Talvez, May Day signifique o primeiro dia de maio.

Oleg balançou a cabeça pausadamente.- Isto soa razoável. O calendário altaiano, que é uma cópia modificada do da Terra,

tem um nome similar para um mês que corresponde localmente ao início da época da primavera. Mayday... Poderia significar o nosso Dia do Festival da Primavera?

Levantou-se novamente e de novo olhou pela janela através da cidade.- Ainda falta muito tempo até maio - disse. Se isto é um incitamento para alguma

coisa que têm planejado, nós destruiremos os Tebtengri este inverno mesmo. E no Dia do Festival da Primavera... - limpou a garganta e continuou: - neste dia então haverá outros projetos em marcha.

- Como poderia ser um incitamento, Majestade? - agregou Zalat, confuso. - Quem em Ulan Baligh poderia lê-lo e entendê-lo?

- Isto é certo. Eu só posso conjecturar que é um ato de desafio ou de superstição, esperando que nossa sorte mude para pior - o Khan voltou-se para Zalat - Você par-tirá logo, certo?

- Sim, Majestade, tão logo seus inspetores tenham acabado de examinar meu car-regamento.

- Você levará uma mensagem - ordenou secamente o Khan. - Nenhum outro co-merciante voltará aqui dentro de um ano. Com certeza teremos bastantes distúrbios reprimindo os Tebtengri e seus aliados aborígenes. E além disso, não haverá razão para que os comerciantes nos visitem. A próxima guerra interromperá as caravanas. E mais tarde, quando as coisas se arranjarem... talvez.

Particularmente, Oleg duvidava que o comércio fosse retomado no futuro. No ve-rão os engenheiros merseianos estariam em Altai e os trabalhos da Base Naval co-meçariam. Altai estaria firmemente inserida no Império Merseiano. E ele, Oleg Ye-sukai, como Vice-rei, não teria tempo para comerciar. Em lugar disto, estaria condu-zindo seus guerreiros para as batalhas nas estrelas, mais gloriosas e cheias de vanta-gens do que teria podido sonhar algum antigo herói.

Capítulo X

O inverno logo chegou às terras do Norte. A neve caía e permanecia indefinida-mente sobre as estepes, sob um céu azul de aço. O Mangu Turnan se dispunha a empreender seu ciclo migratório. Vagões, rebanhos e pessoas, eram como uma pas-sa empoeirada espalhada através daquela imensidão. De tanto em tanto uma foguei-ra enviava uma fita de fumo vertical naquela atmosfera de quietude. Krasna aparecia pendurada no baixo céu do Sudoeste, como um círculo de ouro avermelhado.

Três pessoas afastaram-se do ordu principal. Estavam equipadas com esquis e ri-fles sobre suas jaquetas, levando outro equipamento diferente em uma pequena uni-dade antigrav. Afastaram-se velozmente para algum lugar da estepe enevoada.

Arghun Tiliksky disse com uma dura entonação na voz.- Eu pude notar, Orluk Flandry, que você e Juchi Ilyak guardam o maior segredo

sobre sua escapada da Torre de Ulan Baligh há cinco semanas atrás. Como ninguém sabe, ninguém poderá revelar; isto se você for capturado. E, contudo, você parece estar muito contente sobre suas consequências. Você não ouviu o que contam nos-sos espiões e exploradores: Grandes grupos de guerreiros enfurecidos do Oleg Khan juraram exterminar-nos no próximo degelo. Nunca um exército tão decidido e pode-roso se concentrou contra nós. Portanto, toda a aliança do Tebtengri não pode se es-tender ao redor do círculo ártico, como sempre o fez até agora, porque agora precisa estar reunida. E não há bastante forragem sob a neve para tantos rebanhos em uma área tão reduzida. Eu lhe digo que o Kha Khan não precisará nos atacar. Só tem que esperar. Na primavera a fome haverá feito metade desse trabalho por ele.

- Deixemos que o Khan planeje à vontade - respondeu Flandry cautelosamente. - Será menos trabalhoso que lutar, não é verdade?

Arghun voltou seu rosto juvenil, irritado, para Flandry. O Noyon continuou em tom pungente:

- Eu não compartilho o medo comum dos assuntos da Terra. Você é tão humano quanto eu, mas neste mundo você não está bem treinado e aqui você é mais falível. Aviso-lhe abertamente de que, a menos que aqui e agora não possa me dar uma boa razão para agir de forma diferente, eu requererei o Kurultai. E ali argumentarei com toda minha força para que cessemos imediatamente esta espera e ataquemos Ulan Baligh agora, quando estamos com a barriga cheia.

Bourtai gritou:- Não! Isso não! Seria procurar a ruína. Os khanistas nos superam em número; há

três ou quatro deles para cada um de nós. Eu também vi alguns dos seus novos equipamentos merseianos. Se nós invadirmos o Sul, seria como reses invadindo um curral de um matadouro.

- Assim pelo menos acabaríamos logo com isto - Arghun olhou fixamente para Flandry. - E então?

O terrestre conteve um gesto de impaciência. Já esperava esta reação de Arghun Nas semanas passadas Bourtai e Arghun sempre permaneciam juntos um do outro.

O Noyon já vinha dedicando-lhe palavras ásperas há algum tempo. Pôde comprovar que aquele convite para caçar sataru - avestruzes fugidas dos rebanhos e que ha-viam voltado ao estado selvagem - ocultava algum propósito. Pelo menos Arghun se comportava decentemente, avisando-lhe.

- Se você não acredita em mim - disse, - embora todo o cosmos saiba que lutei e derramei meu sangue e rasguei minhas crenças por sua causa, não poderia pelo me-nos acreditar em Juchi Ilyak? Ele lhe assegurará que nosso êxito depende de aguen-tar, esperar e evitar a batalha por tanto tempo quanto seja possível.

- Juchi está velho - grunhiu Arghun - Sua mente está ficando fraca. Yahh! AliDesviou-se de uma vez para um ponto da planície. O antigrav se deteve na meta-

de da altura e a meio caminho de um declive. As ideias políticas desapareceram de Arghun. Com um dedo, apontou para um ponto na neve com a veemente impaciên-cia de um cão de caça.

- Pegadas! - gritou. - Agora iremos a pé e nos aproximaremos devagar. As aves sairão correndo se ouvirem o motor do antigrav. Siga direto para o alto da colina. Bourtai e eu as cercaremos pela esquerda e pela direita.

Os altaianos desapareceram esquiando rapidamente, separando-se de Flandry an-tes que este compreendesse de todo o que acontecia. Olhando para baixo, viu gran-des pegadas impressas na neve; era um casal de sataru. Flandry seguiu-as. Como diabos poderia seguir tais pegadas? Tombando através da neve, resvalou e caiu de bruços e soltou uma série de palavrões em dezoito idiomas diferentes.

- E eles acham isto divertido? - levantou-se. - Com todos os diabos! Como eu esta-ria bem agora, sentado na Casa do Everest, em frente a uma garrafa de champanhe, contando histórias sobre minhas façanhas... Mas não. Façamos a experiência, já que estou aqui - lentamente alcançou o topo da colina, onde se agachou e esquadrinhou através de umas moitas. Não viu ave alguma de duas patas. Somente uma escarpa escorregadia até a planície, na parte posterior. Ergueu-se, e por um momento viu a uma curta distância o sangue e os membros destroçados de um sataru. E repentina-mente se viu atacado por estranhas feras.

Aquelas feras pareciam brotar das moitas e dos montes de neve, como se a terra nevada as esculpisse. Eram terríveis animais brancos, de forma esquiva, grandes como cães policiais, que se lançaram contra ele. Flandry viu de relance os longos fo-cinhos, os vivos e ferozes olhos negros olhando-o com ódio, os brancos lombos e seus rabos peludos. Levou rapidamente o rifle ao rosto e disparou. A bala destripou o primeiro animal mais próximo, que rolou a meio caminho da subida da colina. Flan-dry quase não se deu conta, pois outra besta já estava sobre ele. Atirou e atingiu o alvo. Saltaram pedaços de ossos e carne e um dos seus companheiros se deteve para comer aqueles restos espalhados; mas o pelotão continuou na carga. Flandry fez pontaria sobre um terceiro. Um corpo pesado apoiou-se por trás dele, fazendo-o cair de bruços. Fortes mandíbulas atacavam o couro da sua jaqueta. Fez um esforço sobre-humano e rolou na neve, mas o fuzil escapou de suas mãos. Uma daquelas fe-ras subiu em cima dele, pondo-lhe sobre o peito umas patas em forma de mãos hu-manas. Sacou rapidamente o punhal que levava no cinto no momento em que mais outro animal estava sobre ele. Sentiu-se mordido por dentes como formões, mas em um rápido movimento conseguiu apunhalar um dos animais no focinho. Este soltou um terrível urro e escapou, mas outro dois atacavam em seu lugar.

Alguem gritou, mas o grito foi apagado pelo ruído da luta. Flandry cravou nova-mente o punhal nas costelas de outro animal; mas foi um golpe tão profundo que quando este animal saltou, arrastou com ele a arma, deixando-o indefeso. O resto da manada se agrupou ao seu redor e ele teve, em um último esforço desesperado, que

lutar a chutes, a murros, com os cotovelos e com todo seu corpo envolto em uma nuvem de neve. Um animal deu um salto e caiu sobre seu diafragma e ele sentiu que o ar escapava dos seus pulmões Cobriu o rosto com os braços em uma ultima defesa quando uma daquelas feras atirou-se em sua garganta.

Arghun chegou brandindo uma reluzente lâmina de aço na mão. O altaiano atingiu a fera no pescoço e, com um esperto movimento, destripou a fera com uma terrível faca, atirando-a para um lado. Vários do grupo deixaram Flandry e se lançaram para devorar o corpo do recém caído. Arghun deu um terrível pontapé em outro animal, por trás da orelha e els que caiu fulminado, girando como um tronco. Entretanto ou-tro saltou sobre as costas de Arghun, mas ele deu meia volta rápido como um raio, deu-lhe uma chave de judô com o braço esquerdo no pescoço, deixando-lhe a barri-ga a descoberto, enquanto que com a mão direita acertou-lhe uma tremenda facada que quase o abriu de cima a baixo.

- Levante, Orluk! - ajudou o terrestre a se levantar e a manada começou novamen-te a rodeá-los.

Mas então Bourtai, que chegara, começou a disparar. Atirava como uma metralha-dora, à direita e à esquerda. A maior parte das feras lançou um agudo uivo. A este sinal, os demais sobreviventes do ataque voltaram as costas e se perderam de vista em coisa de segundos.

Arghun se deteve por um momento, respirando fatigado. Bourtai correu para Flan-dry.

- Está ferido? - perguntou-lhe solicitamente.- Não muito - olhou para Noyon e disse: - Obrigado.- Você é nosso hóspede - grunhiu Arghun, E depois de um momento, acrescentou:

- Essas bestas estão ficando cada vez mais selvagens. Nunca teria esperado um ata-que tão perto do ordu. Teremos que tomar medidas contra eles, se sobrevivermos a este inverno.

- O que são elas? - perguntou Flandry, já mais calmo.- Gurchaku. Estendem-se pelo Khrebet e pelas estepes do Norte. Comem tudo,

embora prefiram a carne. Matam principalmente pequenos animais silvestres, embo-ra às vezes ataquem nosso rebanhos e mais de uma criatura pereceu entre suas mandíbulas. No tempo do meu avô eles não eram tão fortes nem tão ferozes.

Flandry sugeriu:- São ratos.- Eu conheço o que são os ratos - disse Bourtai, - mas os gurchaku...- São um novo gênero de ratos. Algo similar tem ocorrido em outros planetas colo-

nizados. - Flandry tentou encontrar ansiosamente um cigarro em seus bolsos e Bour-tai pediu para que continuasse sua explicação. - Ah sim! Alguns ratos, escondidos nas naves espaciais dos nossos antepassados conseguiram escapar para o campo ou para as cidades, como fazem na Terra. Em meios tão diferentes, foram imitando e assim se transformaram, como fizeram aqui os voiskoyes; mas muito mais rapida-mente, devido às suas gerações de curto período. Sim, uma tarefa que tem que em-preender qualquer comissionado da Terra em Altai será a de exterminar todos os gurchaku. Uma lástima, de certo modo, pois parece uma espécie com interessantes possibilidades.

Dirigiu um olhar melancólico para Bourtai.- Além de tudo, se em um planeta limítrofe do Império existem garotas formosas,

a tradição exige que, como contraste, também haja monstros.Bourtai ficou vermelha como uma papoula.Voltaram para o ordu em silêncio. Flandry procurou curar-se das feridas, lavar-se e

trocar de roupas no yurt que lhe tinham designado. Depois deitou em sua cama e fi-cou olhando fixamente para o teto. Refletiu com amargura sobre as românticas e he-roicas aventuras que havia ouvido sobre a Alta Fronteira, em geral, e as arrojadas fa-çanhas do Corpo de Inteligência, em particular. Eram assim na prática? Uns ratos, às vezes repulsivos com homens ou ratos gigantes que o atacavam para matar, rígidas roupas de couro, os pés intumescidos, as mordidas constantes de um frio espantoso, uma comida absurda, viajar em veículos estrambóticos, o temperamento, a castidade prolongada, o levantar-se cedo, suportar os intermináveis discursos dos velhos das tribos, sem um bom livro para apreciar ou algo divertido que pudesse gostar... Boce-jou, revolveu-se em sua cama e tentou dormir. Antes de cair no sono, procurou es-quecer tudo aquilo e quase desejou que a atrevida opinião de Arghun fosse posta em prática. Qualquer coisa que rompesse aquela melancolia insuportável!

Alguem chamou à porta e ele levantou-se rapidamente e se vestiu.- Entre - disse - uma precaução de muitos anos o fez pegar a pistola.Quando a porta se abriu, observou que aquele curto dia de inverno chegava ao

seu fim. Uma faixa avermelhada brilhava fracamente no distante horizonte de Altai. A lâmpada que brilhava no teto iluminou a figura de Bourtai. A jovem entrou, fechou a porta e permaneceu silenciosa.

- Ah!... Olá!... - saudou-a Flandry, pausadamente. - O que a trás aqui?- Venho ver se você está bem - E o olhar de Bourtai fugiu do de Flandry.- Oh... Sim... bem... Sim, claro - respondeu Flandry atentamente. - Você é muito

amável. Quer dizer... bem, posso fazer-lhe uma taça de chá?- Está certo de que as mordidas que levou não são perigosas? Pôs algum antissép-

tico?- Sim, claro. Conheço algumas coisas para cuidar de mim mesmo - automatica-

mente, Flandry acrescentou com um sorriso: - Teria desejado não sabê-las nesta ocasião. Com uma enfermeira tão encantadora...

Novamente notou um forte rubor nas bochechas de Bourtai. Subitamente compre-endeu que tinha que ter comprovado antes se os altaianos eram pessoas com um senso diferente de pudor e de timidez, em comparação com os terrestres.

- Sente-se - convidou Flandry.Bourtai sentou no chão e Flandry aproximou-se e deslizou um braço ao redor dos

ombros da garota. Ela não evitou. Resvalou outra mão até tê-la presa pela cintura. Ela apoiou sua cabeça contra o peito de Flandry.

- Acha que viveremos para vermos outra primavera? - perguntou em tom tranquilo e desprovido de qualquer temor, como se estivesse fazendo a pergunta mais natural do mundo.

- Eu tenho a primavera, precisamente comigo - respondeu Flandry, roçando-lhe os cabelos com os lábios.

- Ninguém fala assim no ordu - murmurou Bourtai. - Ambos estamos radicalmente separados por nossa própria raça. Você pela distância e eu pela morte. Não fiquemos abandonados e solitários por mais tempo.

Flandry fez um esforço para advertir-lhe claramente:- Eu voltarei para a Terra na primeira ocasião que conseguir e não recomendaria

que você seguisse o mesmo caminho.- Eu sei - murmurou Bourtai. - Mas enquanto isso...Sua boca encontrou a de Bourtai, mas uma batida na porta interrompeu subita-

mente a cena amorosa.- Vá embora! - gritaram ao mesmo tempo. Olharam-se ao mesmo tempo nos

olhos, surpresos, e romperam em uma gargalhada.

- Meu senhor! - gritou uma voz de homem no exterior. - O Gurkhan Toghrul me en-viou. Foram detectadas mensagens de uma nave da Mãe Terra!

Flandry chocou-se com Bourtai em sua pressa em sair. Mas enquanto corria pen-sou com frustração que tinham lançado mal olhado em sua missão desde o princípio.

Capítulo XI

Invisível nas alturas, entre as tênues correntes de ar acima de Ulan Baligh, um guerreiro permanecia sentado entre os pacientes tentáculos de uma aeromedusa. Respirava oxigênio de um equipamento especial e não tirava os dedos de um recep-tor de rádio. Não obstante achar-se tão bem protegido, não seria substituído até quatro horas depois. Com certeza os altaianos eram a única casta de homens capa-zes de suportar semelhante serviço. Aquela sua escuta foi premiada. Os auriculares chiaram com uma voz fraca e distorcida em um idioma jamais ouvido antes. A res-posta chegou, procedente do aeroporto. O locutor de cima deixou outra pessoa em seu lugar e dirigiu-se para o chefe em um altaiano defeituoso, sem dúvida apreendi-do com os betelgeusianos. O escuta tebtengriano não se atreveu a tentar comunica-ção alguma de sua parte. Se fosse detectada, e aquilo seria o mais provável, tal cha-mada poderia atrair um projétil nuclear de Ulan Baligh. Seu equipamento radioelétri-co registrou e retransmitiu o que havia ouvido. A muitos quilômetros mais além, ou-tra medusa flutuante, portadora de outro equipamento, passou a mensagem à se-guinte. A longa cadeia terminava no ordu do Mangu Turnan. Se por qualquer aciden-te os khanistas detectassem a retransmissão, não teriam motivos para alarme, já que as ondas radioelétricas têm sempre derivações e surgem rebotes na ionosfera.

Através dos seus binóculos, o vigilante do Tebtengri viu descer a nave espacial da Mãe Terra. À luz suave da lua, comprovou sua enorme rapidez de manobra e sentiu um súbito temor. Não obstante - pensou - era somente uma nave visitante. Oleg o Maldito teria camuflado ou disfarçado suas modernas instalações há semanas. Se-riam recebidos hipocritamente com todas as honras, os agasalhariam e os fariam ver o que quisessem e ouviriam o que tinha de ser ouvido. E voltariam à base de partida para informar que nada que valesse a pena lamentar acontecia em Altai.

O explorador suspirou, bateu suas mãos enluvadas uma contra a outra e desejou que o substituto chegasse o mais breve possível.

Enquanto isso, perto da calota polar, Dominic Flandry voltava-se para o Toghrul, deixando de lado um equipamento de rádio.

- Já está ai - disse. - É a HMS Calisto, que aterrizou em Ulan Baligh. Manteremos nossos monitores de radio, mas não espero que captem outra coisa até o momento em que a nave espacial saia novamente, sem dúvida.

- Quando isto acontecerá? - perguntou o Gurkhan.- Dentro de três ou quatro dias, acho - respondeu Flandry. - Temos que nos apres-

sar. Temos que avisar todos os ordus esta noite mesmo! Ao amanhecer, desejo que todos se movam através da estepe, segundo o projeto que Juchi e eu traçamos para todos vocês.

Toghrul assentiu com um movimento de cabeça e Arghun Tiliksky, que também es-tava na kibitka, perguntou:

- Que significa isto? Por que não fui avisado e informado convenientemente?- Você não precisa saber antes do momento oportuno - respondeu Flandry energi-

camente. - Os guerreiros tebtengrianos precisam estar alertas para entrarem em ação, com um pré-aviso de cinco minutos, sob qualquer condição que lhes seja orde-nada. Assim o sugeriu você mesmo em um breve discurso na semana passada. Muito bem, Noyon. Mobilize-os!

- Para onde? Por que?- Você mandará a divisão de varyaks do Mangu Turnan - ordenou Toghrul. - Leve-

os para o Sul até 500 quilômetros de distância e ali aguarde ordens pelo radio. As forças tribais ficarão estacionadas em outra parte. Os yurts e as kibitkas, menos mó-veis, ocuparão posições próximas mais tarde. As mulheres e as crianças podem con-duzi-los.

- E os rebanhos também - lembrou Flandry. - Não esqueça que os rebanhos em massa dos Tebtengri podem cobrir completamente uma grande zona.

Arghun deu uma olhada para a formação desenhada em uma folha de papel que a aliança havia adotado.

- Mas isto é uma loucura - comentou atônito. - Se Oleg souber que vamos nos es-palhar em semelhante debandada pela metade do mapa de uma forma tão ridícula, poderia atacar-nos facilmente em cunha por...

- Oleg não saberá - interrompeu Flandry. - E se ele vir, não poderá saber porque o fazemos, isto é o que conta. E agora, ao trabalho!

Durante um instante os olhos de Arghun cruzaram desafiadores com os de Flandry. O Noyon deu meia volta, bateu no músculo com as luvas e saiu rapidamente. Poucos momentos depois ouvia-se o estrondo dos varyaks em marcha para seu destino e o som das trompas guerreiras dando ordens precisas para a formação.

Quando o ruído se desvaneceu, Toghrul coçou a barba, pensativo- Bem - disse ele a Flandry. - E agora que estamos completamente sós, você não

pode pelo menos me dizer como a nave espacial da Terra veio até aqui?- Claro. Sem dúvida ela veio pra investigar no local a informação sobre minha su-

posta morte, a de um cidadão da Mãe Terra em Altai. Assim procederá o capitão frente a Oleg, estou certo. Os terrestres farão pesquisas durante alguns dias e deixa-rão Oleg. Depois do que eles voltarão tranquilamente para sua base.

Toghrul olhou para Flandry, voltou-se para o mapa e de repente se pôs a rir como um búfalo. Por um momento, o Gurkhan do Mangu.

Turnan e o Agente do Corpo da Inteligência Naval Terrestre apertaram as mãos e dançaram ao redor da kibitka, cantando como dois loucos.

Flandry partiu logo. Não havia muito tempo para dormir ou descansar nos próxi-mos dias. E tampouco dormiria aquela noite. Dirigiu-se de mal humor para seu pró-prio yurt. Tudo estava em silêncio. Abriu a porta e viu uma nota que aparecia sobre a cama:

“Meu amado, os sinais de alarme soaram. Tu já sabes que Toghrul me deu armas e um varyak. Meu pai me ensinou a conduzir e a disparar como um homem. Convém assim que o último membro do Clã Tumurji parta para a luta com os demais guerrei-ros.”

Flandry ficou olhando para aquelas letras durante um momento e finalmente se meteu na cama sem se despir.

Quando despertou na manhã seguinte, seu veículo se achava em marcha. Um ga-roto havia assumido o volante. Assomou a cabeça para comprovar que a totalidade do acampamento rodava através da estepe.

Toghrul havia partido para tomar uma vista aérea do deslocamento. Havia saudado

Flandry com um gesto sisudo.- Amanhã alcançaremos nossa posição designada - havia dito.Tinha também de atender e dirigir as incontáveis emergências que surgiam em um

grupo móvel tão grande, em semelhante manobra Flandry ficou completamente iso-lado.

Até aquele momento, procurou não oferecer aos nômades sua ajuda inexperiente. Empregou o dia chamando a atenção dos superiores que tinha designado. A emigra-ção continuava por aquela interminável rota obscura. Na manhã seguinte, impôs-se a tarefa de trabalhar na neve e acertar e situar o acampamento. Flandry se sentiu ca-paz, pelo menos, de manejar uma pá, mas não foi preciso.

Ao meio-dia o ordu estava arranjado, não de forma a ocupar uma zona compacta, que normalmente teria oferecido um máximo de segurança, e sim enfileirado em enormes linhas ondulantes com quilômetros de extensão, fato que a cada instante provocava as reclamações das pessoas das tribos e mesmo alguma tentativa de mo-tim. Toghrul suprimiu os protestos com indiscutível autoridade e voltava de vez em quando à sua kibitka para dar ordens pelo radio. Dois dias de insuportável tédio se passaram antes dele reunir-se com Flandry.

E então as coisas aconteceram rapidamente.- A nave espacial está indo embora - disse o Gurkhan. - Acabamos de detectar o

sinal normal de aviso na área do aeroporto espacial de Ulan Baligh. Teremos tempo para levar a cabo todas as manobras planejadas antes do cair da noite?

- Isto não importa no momento - assegurou-lhe Flandry. - Nosso objetivo principal já está em andamento. O comandante da Calisto poderá nos localizar do espaço, se os observadores aguçarem sua vigilância, coisa que não duvido que terão que fazer sobre um planeta suspeito como este que estão deixando agora. Quando notarem algo, diminuirão a velocidade. Se a nave flutuar em órbita com as telas de radiação ao máximo e os geradores reduzidos ao mínimo, duvido que em Ulan Baligh se deem conta de que eles ainda estarão ao redor do planeta.

Flandry dirigiu um olhar ansioso para o mapa na sua mesa. As diversas unidades dos Tebtengri haviam confirmado suas posições. Os ordus estavam dispostos em uma grossa linha Leste-Oeste de 500 quilômetros de comprimento através da branca estepe hibernal. As divisões dos varyaks, mais móveis, estavam espalhadas em gru-pos, formando linhas, cujos finais se encontravam em formas retas ou curvas com os começos das outras e que às vezes se reuniam, tanto no Norte como muito mais lon-ge, no Sul. Flandry alisou o bigode e esperou.

“Nave espacial pronta para decolar! Atenção! Preparados! Adiante, nave Calisto!”Conforme a voz retransmitida surgia fracamente no receptor, Flandry pegou um lá-

pis e desenhou outra figura sobre o mapa.- Esta é a próxima formação - disse. - Pode começar imediatamente. A nave verá a

presente formação dentro de cinco minutos.Toghrul dirigiu-se ao microfone e ordenou:- Divisões de varyaks dos clãs Mulik, Fyodor, Kubilai, Tuli, atenção! Dirijam-se para

100 quilômetros a Oeste da vossa atual formação e detenham-se ali! Begultai, Bag-darin, Chagutan, Kassar, para o Leste 100 quilômetros! Gleb, Tenmujin...!

Flandry girava o lápis entre os dedos. Quando as informações chegassem, após uma hora interminável, marcaria a posição correspondente no lugar onde houvessem se detido todas e cada uma das unidades em movimento. A totalidade do projeto co-meçou a se mostrar pateticamente tosco e imperfeito.

- Estive pensando... - disse Toghrul, após um prolongado silêncio.- Mal costume - respondeu Flandry. - Difícil de suprimir. Tente tomar banhos frios e

longos passeios.- Que acontecerá se Oleg se der conta de tudo isto?- Com toda certeza saberá que está acontecendo alguma coisa estranha. Seus ex-

ploradores recolhem pedaços das nossas mensagens. Mas somente pequenos deta-lhes dessas transmissões de curto alcance. De certa forma, dependemos de que a at-mosfera que nos cobre não permita ao inimigo ter uma boa visão geral do que esta-mos fazendo. Tudo o que Oleg saberá é que estamos nos movimentando em grande escala. Se eu fosse ele, acharia que os Tebtengri estão praticando suas formações à espera do dia do ataque.

- O qual não estará muito distante - disse Toghrul, batendo na mesa com a mão. Flandry desenhou uma figura no papel.- Esta será a terceira formação. Creio que poderemos consegui-lo antes do crepús-

culo. Durante a noite nos dedicaremos a criar a quarta e a começar a quinta no ama-nhecer seguinte.

- Espero que acabemos tudo em dois dias.- Não se preocupe com isto. Antes que a escassez possa piorar, seu povo estará a

salvo com o Império Terrestre, que enviará tudo que necessitarem; ou acabará mor-to, o que ainda é o mais econômico.

A noite que se seguiu transcorreu lenta e interminável. Flandry mal conseguiu dor-mir por alguns momentos. Deu muito pouca atenção ao nascer do sol, pois havia coi-sas demais para se fazer. Algum tempo depois, um guerreiro apresentou-se a ele.

- Venho da parte do Juchi o Shaman - informou, com rígida saudação militar. - Os exploradores do ar, que estão na escuta na área de Ozero Rurik, informam que as tropas do Khan estão sendo massivamente formadas e que tais colunas se dirigem para o Norte.

Toghrul deu um tremendo murro na mesa.- Será que vão invadir-nos agora?- Essa grande movimentação não chegará aqui em uma semana, pelo menos - dis-

se Flandry, embora um frio desagradável lhe invadisse o estômago. - Ou mais tarde, se os acossarmos do ar.

- Uma semana... E quando poderemos receber ajuda da Terra? - perguntou ansio-samente Toghrul.

- Pelo menos em três ou quatro semanas, no mínimo. O Calisto tem que voltar à base de Catwrayannis, onde o comandante terá que reunir uma frota de ataque po-tente para voltar a Altai. Digamos quatro semanas, mais ou menos. Poderemos lutar em forma de ação retardatória por tanto tempo, sem sofrer demasiadas perdas?

- Teremos que fazê-lo. Não nos resta outra solução.

Capítulo XII

O capitão Flandry descansava com o rifle no ombro. Até onde sua sgeladas boche-chas podiam sentir, a culatra era suave ao toque e não muto fria. Mas as partes me-tálicas estavam tão terrivelmente frias, que teria perdido a pele dos dedos se as to-casse se não estivesse pesadamente enluvado.

Era difícil calcular as distâncias naquela meia luz avermelhada através das névoas coloridas que o envolviam. Era difícil também calcular as trajetórias dos projéteis, dado a diferença de gravidade e da atmosfera do planeta. Não estando o inimigo ain-da bastante perto, decidiu esperar e preparou o rifle.

Acocorado junto a ele e a sotavento do banco de neve, o habitante do gelo que o acompanhava levantou para o céu seus olhos impenetráveis.

- Eu ir agora? - perguntou com sua estranha voz.Seu altaiano era pior que o de Flandry; o o próprio Juchi havia se surpreendido ao

saber que algum membro do Povo Gelado conhecia a língua humana altaiana.- Não, eu lhe direi logo em seguida - respondeu-lhe Flandry. - o próprio sotaque do

terrestre parecia gelado, ao brotar dos seus lábios. - Você tem que cruzar uma cen-tena de metros em terreno aberto para alcançar aquelas árvores. Você seria visto pelo inimigo e eles o matariam no meio do caminho. Vejamos uma forma de distraí-los primeiro.

Esquadrinhou aquele lúgubre panorama. Krasna quase desaparecia naquelas terras polares no inverno, mas naquele momento ainda não estava muito baixo no horizon-te. Um fraco brilho no Sul proporcionava bastante claridade para ver a curtas distân-cias. O pelotão atacante já havia chegado tão perto que Flandry pôde distingui-los individualmente, como manchas borradas contra o grande lago. Pôde constatar tam-bém que usavam uma espécie de varyak especial, levando também reboques e anti-gravs para deslizarem na gelada superfície. Havia sido uma má sorte a que tiveram, ele e sua patrulha, ao tropeçar com o inimigo. O Tebtengri havia se retirado pouco a pouco para a zona polar e, eventualmente, nas profundezas das Terras Geladas. Vi-viam como pobres animais encurralados e mortos de frio, enquanto seus rebanhos vagavam pela estepe com a mínima vigilância. Entretanto, os habitantes e os Tebten-gri estavam em constantes escaramuças, evitando uma batalha aberta a todo custo, e lutando uma guerra de guerrilhas para ir detendo e atrasando o avanço das forças de Oleg Khan. Esconder-se, disparar, correr, ocultar-se, procurar cada um seu pobre alimento, tirar um cochilo em um saco de peles e voltar a disparar e furtar o corpo ao inimigo.

Enquanto isto, o resto da patrulha de Flandry jazia morta no Trengri Nor. Ele havia conseguido escapar mas não tinha ido longe. Com aquele único companheiro, termi-nou sendo alcançado por seus perseguidores que podiam se mover com mais rapidez em suas máquinas do que eles a pé.

Calculou o melhor que pôde a distância, até que teve o inimigo na mira do rifle. Fez um rápido sinal para o habitante, que saiu correndo, e então disparou. O guerrei-

ro do Sul dobrou-se sobre seu assento no varyak, colocou as mãos no ventre e caiu no chão. Apesar da escassa luz, notava-se como a neve se tingia de vermelho. Atra-vés do vento gelado ouviu os companheiros do caído gritarem e se espalharem em uma ampla frente para atacar. Flandry apontou e disparou novamente, mas desta vez o tiro falhou. E para que o habitante do gelo passasse despercebido precisava de mais alguns segundos para poder alcançar as árvores de cristal às suas costas.

Flandry colocou seu rifle no disparador automático e de um salto lançou-se para trás, abandonando a crista do banco de neve em que se achava, afastando-se dali. Ao mergulhar pela ladeira de neve, sentiu mais que ouviu a tormenta de fogo que caiu, dirigida para o local que acabara de abandonar. Uma enxurrada de potentes projéteis bombardearam o local, silvando e explodindo acima da sua cabeça, achan-do-se ele, em seguida, envolto em uma acre atmosfera de fumaça das explosões. Com certeza aquele condenado habitante já havia chegado ao seu destino. Naquele inferno de estalidos de fumaça e neve, lembrou do que o homenzinho havia prometi-do. Ia enviar uma mensagem através das raízes das árvores. Ridículo!

Mas, subitamente e através dos estampidos, Flandry acreditou ter ouvido o primei-ro ruído por cima e à frente, nos ares, como um zumbido que ele já conhecia. Levan-tou os olhos a tempo de ver o ataque das medusas.

Lançaram-se lá de cima, centenas e centenas, com seus tentáculos expelindo faís-cas elétricas. Algumas foram alcançadas pelos projéteis das armas pesadas do pes-soal do Sul, ardendo em chamas de hidrogênio e atingindo o inimigo enquanto mor-riam. Outras, prendiam os guerreiros khanistas, arrancando-os de suas montarias e elevando-os pelos ares, para então mergulhá-los nas águas mortais do Trengri Nor a maior parte dos atacados, quando o inimigo já batia em retirada com terríveis per-das.

Quando ergueu-se daí a poucos instantes a retirada já era uma derrota colossal.- Santos Céus! - murmurou com temor. - E agora, que farei para encontrar esse

endiabrado?O habitante do gelo já estava voltando do bosque de cristal, impassível, pequeni-

no, forrado com peles, com seu andar de boneco de borracha. Com um gesto, como sempre impassível, disse em sua típica timidez:

- Não haver bastantes medusas para fazer isto muitas vezes. Seus amigos vêm. Nós esperar aqui.

- Como? Ah, sim! Se você se refere a uma patrulha de resgate, sim, suponho que alguma unidade próxima tenha ouvido o combate e virá em nosso socorro.

Flandry começou a bater os pés fortemente contra o chão para ativar um pouco a circulação dos seus membros, que estavam rígidos pelo frio.

- Foi um bom ataque - disse Flandry, olhando para aquele monte de armas, veícu-los e homens destroçados. - Creio que vingamos bem nossa patrulha.

- Homens mortos ser igual de um lado como do outro na luta - censurou o habi-tante do gelo.

Flandry balançou a cabeça tristemente.- É isso mesmo. Nem me lembre.E no mesmo momento ouviu o ruído característico dos motores dos reboques dos

seus camaradas. A patrulha de esquis que se aproximava era maior do que podia imaginar. Reconheceu Arghun e Bourtai à frente da formação. Chegaram até ele sur-presos, já que fazia tempo que não os via e somente tinha tido a oportunidade de di-zer-lhes adeus desde que começou a campanha. Estavam ocupados demais. Eram os ossos do ofício da guerra. Se deixasse de lado a disciplina, o trabalho constante, a falta de conforto, o sono escasso, a alimentação abominável, a escassez de tudo que

era agradável, a monotonia, o sofrimento, o combate e o constante perigo de morte, a guerra era sem dúvida uma instituição estupenda.

Flandry apressou-se em recebê-los com o melhor semblante possível de um ho-mem que ficou sem cigarros há muito tempo.

- Ei! Vocês perderam a apresentação há um momento atrás.- Dominic! - e Bourtai lhe tomou as mãos. - Podia ter morrido! - disse, quase solu-

çando.- Azares profissionais, Bourtai - respondeu Flandry. - Suponho que você vem a

mando da divisão Norte, não é assim, Arghun?- Já não há mais guerra! - respondeu Noyon com um grito de alegria. - Vou agora

mesmo com a missão de reunir todos nossos combatentes.- O que disse?- Mas... você não sabe? - os olhos francos de Arghun se dilataram de surpresa. Por

um instante permaneceu cravado na neve, mas, com um cordial impulso, abraçou Flandry e bateu em suas costas.

- Os terrestres chegaram! - gritou.- O que? - Flandry não conseguia sair do seu estupor. E ainda esperava a resposta,

sem imaginá-la.- Foi ontem - o Noyon se apressou a explicar o ocorrido. - Suponho que seus rece-

ptores de radio não lhes avisaram do acontecimento. A luta cessou completamente e, talvez por interferências atmosféricas nesta zona, vocês estavam privados de tal notí-cia. Ou seus inimigos eram uns fanáticos até a morte. Ainda há alguns a quem temos que dar caça. Mas isto apenas oferece dificuldade agora.

Arghun procurou se tranquilizar e continuou com mais calma:- Uma grande força Imperial de ataque apareceu no espaço e pediu que as tropas

de Yesukai se rendessem, por terem clientes merseianos. O comandante de Ulan Ba-ligh rendeu-se sem luta. Que podia fazer contra semelhante força? Oleg Khan voou para o fronte e tentou reagrupar suas forças. Você tinha que ter escutado o éter, como estava animado na noite passada! Até que algumas naves espaciais da Terra chegaram e lançaram uma bomba enorme no terreno do quartel general. Aquilo foi o fim de tudo. Os homens das tribos khanistas se dispersaram à toda pressa, procuran-do seus lugares de origem, em uma louca debandada. Juchi, o Shaman, foi entrevis-tado pelo almirante terrestre em Ulan Baligh e lhe deu instruções do que há de dis-por no futuro e também que venha lhe buscar e levá-lo consigo.

Flandry fechou os olhos e balançou sobre os pés como se fosse desmaiar. Bourtai o tomou nos braços.

- O que está acontecendo, Dominic? - perguntou angustiada, quase chorando.- Conhaque... - disse Flandry em um sussurro, - tabaco... chá indiano... uma boa

maionese com vinho Riesling ao lado... ar condicionado... - sacudiu-se. - Desculpe, minha mente estava divagando.

Flandry mal pôde perceber o ligeiro tremor nos lábios de Bourtai, mas Arghun viu bem, lançou um olhar desafiador ao terrestre e pegou a mão da jovem com firmeza. Ela se aferrou a ele. - Como minha menina, disse a ambos.

Desta vez Flandry compreendeu bem e com voz emocionada, olhando-os fixamen-te, disse-lhes:

- Que Deus os abençoe, meus filhos.- O que? - disse Arghun, meio irritado e meio aturdido.- Quando você tiver a minha idade e estiver tão batido pelas desventuras da vida

como eu estou, chegará à conclusão de que ninguém morre por ter o coração des-troçado... De fato, este órgão se cura com uma desagradável rapidez. Se você quiser

botar o nome de Dominic no primeiro menino que tiverem, serei muito feliz envian-do-lhes uma colherzinha de prata, convenientemente gravada.

- Mas... - gaguejou Bourtai, - mas... - Ela se refez e apertou com mais força a mão de Arghun.

O rosto do Noyon enrubesceu. Procurou deixar aquilo de lado e, de uma forma im-pessoal e tentando aparentar um ar mais natural, dirigiu-se novamente para Flandry, com irreprimível curiosidade.

- E agora? Poderá explicar seu comportamento, homem da Terra?- Hum! - respondeu Flandry. - Sim, claro. Já estava na hora.Flandry começou a caminhar, com o casal ao seu lado, ao longo das margens do

Espírito do Lago, de águas azuis, sob um dossel de folhas geladas. O entardecer avermelhado encaminhava-se para a noite. Flandry falou com um alegre tom na voz:

- Nosso problema era poder enviar uma mensagem secreta para a Terra. O mais secretamente que pudesse, naturalmente, para que ninguém, absolutamente nin-guém pudesse reconhecê-la. Por exemplo, MAYDAY pintado na Torre do Profeta. Aquilo parecia uma loucura, um estúpido agravo impulsionado pelo despeito; mas toda a cidade pôde vê-lo. E todo mundo falou do assunto. E como se falou! Embora nenhum betelgeusiano se encontrasse em Ulan Baligh naquele momento, aquilo constituía algo sensacional como notícia, e ninguém teria sido capaz de guardar o se-gredo. E os betelgeusianos, ao voltarem para sua pátria, levaram a informação com eles; e com isso os terrestres conectados com a Embaixada tinham que sabê-lo ime-diatamente. E os terrestres compreenderiam sim! Para que você saiba, MAYDAY é um pedido de socorro, um código muito antigo entre nós. Significav simplesmente: AJUDEM-ME.

- Oh! Sim... - Arghun bateu no músculo e sua franca gargalhada ressoou ao longe. - Sim, agora compreendo tudo. Obrigado, amigo, por esta fantástica brincadeira que poderei contar aos meus netos.

- É clássico - acrescentou Flandry. - Meu Corpo de Inteligência estava obrigado a enviar uma nave espacial para investigar. Sabendo pouco ou quase nada do assunto, seus homens permaneceram em alerta constante. Em vista da mensagem da Torre do Profeta, a história de Oleg sobre minha morte aciental tinha que ser, sem dúvida, descartado. Imagino meus camaradas mantendo a boca fechada e deixando-se en-ganar pelo Khan. O problema era então: como informá-los sobre a situação real sem que Oleg soubesse que eles já estavam informados? Agora você já pode imaginar como fiz tudo. Manobrando com o Tebtengri Shamanate sobre as planícies da estepe, formando letras do alfabeto terrestre, grandes os bastante para serem vistas de uma nave espacial a grande altura. As demais palavras da mensagem podiam ser um um pouco menores, já que o pessoal do Calisto podia fazer uso dos telescópios enquanto houvesse o menor sinal. Então escrevi uma nota muito breve, mas suficiente, através de toda a estepe condenada.

Flandry encheu seus pulmões daquele ar tênue. Apesar de todas suas fadigas, o maravilhoso sentimento de estar vivo encheu todo seu ser. Fez um gesto e finalmen-te concluiu:

- Eu me atrevo a dizer que aqueles letras foram as maiores que jamais haviam sido escritas. Tão grandes, que para lê-las era preciso sair do planeta!