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Otávio Martins * * * A Turba Depois da Chuva Últimas Notícias de uma História Só

Otávio Martins

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Primeiras Obras

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Otávio Martins* * *

A TurbaDepois da Chuva

Últimas Notícias de uma História Só

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Otávio MartinsColeção Primeiras Obras, 1Ivam Cabral (organizador)

Apoio Cultural

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Otávio Martins* * *

A TurbaDepois da Chuva

Últimas Notícias de uma História Só

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PrefácioNa Ordem do Caos

silvana garcia7

A Turba15

Depois da Chuva45

Últimas Notícias de uma História Só57

Agradecimentos117

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Um minuto de atraso, um gesto impensado, um erro de cálculo e, pronto, lá adiante, coisas imprevisíveis acontecem. É mais ou menos isso que reza a teoria do caos, naquilo que é conhe-cido como “efeito borboleta”: fatores aparente-mente insignificantes podem gerar transtornos surpreendentes no futuro que supúnhamos previsível. Quando isso é aplicado ao destino das pessoas, o efeito ganha tonalidades dramá-ticas e desafia o imaginário. Logo, dispõe-se como excelente material para a ficção.

Foi brincando com essa ideia que Otávio Martins escreveu Últimas Notícias de uma História Só. De uma ação inesperada, põe-se em movimento uma cadeia de sucessivos de-sarranjos que desemboca em um lugar impre-

Na Ordem do Caos

Prefácio

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visto, um lugar ao qual o teatro pode nos fazer chegar com mais veracidade do que o destino.

Abrindo a peça, um narrador – recurso ple-namente identificado com os procedimentos da dramaturgia contemporânea – introduz uma corrente de eventos, expondo persona-gens e destinos à maneira de uma crônica jornalística, deixando no leitor a impressão de simultaneidade e inevitabilidade que concer-nem aos fatos da vida. O procedimento de me-talinguagem – o narrador que fala diretamente ao público – completa-se com a apresentação dos atores, chamados pelos nomes próprios; eles assumirão, dali em diante, o evolver da fábula. Isso porque, no centro da estrutura narrativa, Otávio Martins instala um núcleo dramático. Diferente da descrição de rotinas de personagens que são apenas nomeadas, personificam-se, agora, diante de nós, dois pro-tagonistas de um drama na melhor tradição do gênero: Vânia, a sequestrada, e Lelo, o seques-trador. Ele e Ela, apenas, na grafia do texto.

Se, num primeiro momento, o acompa-nhamento do conflito entre as duas persona-

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gens desvia a atenção do mote que inspira o texto, logo o autor interfere para não deixar dúvida: faz retornar o narrador para introdu-zir novas crônicas e enuncia a teoria do caos. Verificamos, então, que o núcleo dramático é regido pelo mesmo princípio: um amor ines-perado também interfere no resultado daquilo que fora planejado e um caso de sequestro que deveria ter final feliz – afinal, pago o resgate, a vida voltaria a ser normal para todos os envol-vidos, essa seria a expectativa – desemboca, no entanto, em delito maior e desolação.

Tanto o miolo dramático quanto os frag-mentos narrados estão plantados no ambiente urbano que põe à vista as mazelas da vida na grande metrópole – a violência, a solidão, a falta de solidariedade –, temas recorrentes em boa parte da dramaturgia de hoje. O distan-ciamento com que o autor narra esses episó-dios – intenção confirmada pelos recursos de metalinguagem – só faz destacar a impotên-cia das personagens diante do imprevisto e do inevitável. O teatro, escolhido como lugar de ocorrência dessas “pequenas histórias”, faz re-

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verberar os elos, as relações, entre os eventos e nos põe em um pódio privilegiado para olhar esse entorno – tão semelhante ao nosso e mes-mo assim tão pouco notado.

A peça está organizada por “movimentos”, que estão oferecidos mais à imaginação do espectador do que propriamente enunciados pelo autor – ele apenas indica o primeiro e o sexto movimentos. Esse modo de conduzir a sequência de eventos, dramatizados ou narra-dos, propõe em cada passagem um impasse, um momento de tensão dramática e/ou um novo elo na cadeia, até o final, quando o autor nos oferece um possível desfecho, ao sinalizar um acaso feliz. Afinal, o bater de asas de uma borboleta não produz lá na outra ponta ape-nas terremotos, podem ser também encontros auspiciosos.

Como ator, Otávio Martins tem um domí-nio admirável do seu ofício. Suas interpreta-ções surpreendem porque ele é um ator que não se detém na solução óbvia ou previsível para os desafios que lhe impõe a personagem. É como se estivesse sempre buscando um re-

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sultado inédito, desprezando aquilo que seria apenas o esperado. E o faz com sutileza, com um empenho delicado que fabrica a diferen-ça. Tem tudo a ver com a teoria científica des-crita aqui em cima.

Agora como dramaturgo, notamos que obedece a impulso semelhante, o que fica evi-dente nesta peça que, para ele, inaugura sua ligação vital com a dramaturgia. Sua escrita é leve, inteligente, conduzida com firmeza por caminhos pouco usuais da narrativa, nesse ter-reno híbrido que mistura gêneros, caracterís-tico da escrita contemporânea. Ele revela ser um bom contador de histórias, sabendo dar o tom certo da narrativa e conduzindo o fio dra-mático com habilidade. Como consequência, na leitura da peça, ou para quem viu o espetá-culo, o interesse e a curiosidade não deixam o leitor/espectador relaxar a atenção.

Diz Otávio Martins que não pretende atuar nos seus próprios textos porque os dois ofícios, o do ator e o do dramaturgo, exigem pontos de vista distintos. Se o autor deve contar o todo, dar conta de toda a extensão do relato,

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já o ator necessita narrar a fábula pelo olhar da personagem e isso estabelece uma diferen-ça fundamental. Há lógica nessa afirmação, mas não podemos esquecer que vivemos em um momento no qual o ator tem valorizada sua capacidade de ser também ele gerador de textos, ainda que seja um dos vários textos que compõem o espetáculo. Dá-se assim relevo ao caráter cooperativo que define atualmente a construção do espetáculo, soma de muitos esforços criativos sem o abandono das especifi-cidades dos ofícios.

No exercício de todas as suas habilidades – como ator, dramaturgo e também diretor –, Otávio Martins alinha-se a uma nova geração de artistas que percebem o teatro como um fazer artesanal, que desafia as fórmulas pron-tas e impõe o risco como ponto necessário de partida. A polivalência, neste caso, é uma vantagem. Porque é extremamente talentoso, Otávio pode exercitar-se nos diferentes postos de observação e fundir esses olhares, que lhe oferecem uma vista panorâmica privilegiada, para melhor proveito de cada um de seus ofí-

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cios. Resta torcer para que ele leve adiante esse desempenho plural, sem nos privar de uma ou outra de suas facetas criativas.

Silvana Garcia

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Nesta peça, os espectadores são como um coro de uma peça, e devem, com o Ator, ser colocados no palco. Os outros atores, por sua vez, fazem o papel de espectadores. Quando a plateia en-trar, a Turba já está sentada em seus lugares, como se estivessem esperando um espetáculo começar.

Personagens

Agente – mulherAtor – homemAtor Famoso – homemCrítico – homem mais velhoNamorado – homem moçoT1 – homem

A Turba

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T2 – homemT3 – mulherT4 – homemT5 – mulherT6 – mulherT7 – mulherT8 – homem que está no coroMais três atores (homens e mulheres) que de-

vem se misturar ao coro.

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Voz off – A Companhia Fósforos Extra Longos da Cooperativa Paulista de Teatro tem o prazer de apresentar Nada, peça inspirada na vida e obra de Manuel da Silva Couri-nho. Agradecemos o apoio de Cantina Pio-lim, Cantina do Mário, Cantina Silvestre’s, Cantina Facciantulla, Cantina Cabral, Bar e Restaurante Feijão Bão, Restaurante Tia Roberta, Restaurante Rosário, Padaria e Confeitaria Bexiga’s 2000, Lanchonete San-dubinha, Churrascaria Fogo Velho, Chur-rascaria Boi na Brasa, Restaurante Luna de Capri e Restaurante Planeta’s. Por favor, desliguem seus celulares. Tenham todos um bom espetáculo.

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* * *

T1 – Porra, esses caras só comem?

T2 – Daqui a pouco eles começam a enume-rar o Guia da Folha inteiro.

T3 – Fala baixo, Marco Antonio, a peça vai começar.

T1 – Mas é verdade. Você vem ver uma peça e só fica ouvindo propaganda de restaurante...

T3 – As pessoas têm de comer, não têm?

T2 – Eu também trabalho e nem por isso fico pedindo comida pros outros.

T3 – Você pagou o ingresso?

T2 – Não, sou convidado.

T3 – Então, nós e essa meia dúzia de gatos-pingados somos convidados. Como é que

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os caras vão comer se ninguém paga in-gresso?

* * *

Ator Famoso (olhando o celular) – Ainda não me ligaram.

Agente – Vão ligar. Eles não querem perder um cara como você.

Ator Famoso – Eu acho bom mesmo. Senão eu me vingo deles e vou ser Mutante na Record.

Agente – Calma, podia ser pior. Você podia acabar no sbt.

Ator Famoso – Bate na madeira!

* * *

T4 começa a desembrulhar um pacote baru-lhento de balas.

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T5 – Pelo amor de Deus, para de fazer esse barulho! Que vergonha!

T4 – Mas como é que eu vou chupar a bala sem abrir o pacote?

T5 – Eu não devia ter trazido você.

T4 – Eu não queria vir, só to aqui porque seu irmão insistiu.

T5 – Eu vou te contar, você só dá vexame.

T4 – Eu dou vexame? Seu irmão faz esses te-atros que eu não entendo nada, com um monte de gente pelada, e eu é que dou ve-xame?

T5 – Então vê se deixa todas as balas na mão pra não ter que desembrulhar no meio da peça.

T4 – Mas aí a minha mão vai ficar toda me-lecada.

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T5 – Problema seu.

T4 – Por isso eu gosto mais de cinema. A gente pode fazer barulho e o ator do filme não tá nem aí.

A partir desse momento, T4 cai no sono e dorme o tempo todo.

* * *

Crítico – Ontem fui ver a peça nova da De-nise Stoklos. Vou acabar com ela na crítica.

Namorado do Crítico – Por que, baby?

Crítico – Acho o fim da picada a pessoa fazer sempre aquela coisa, ficar mexendo aquele dedão, aquelas projeções. Uma coisa tão anos 80...

Namorado – Nossa, baby, você é tão articu-lado. Eu nasci em 88, não lembro dessas coisas.

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Crítico – Você ainda vai ter muita coisa pra lembrar.

Namorado – Mas quem é essa Denise Stoklos?

Crítico – Uma atriz.

Namorado – E ela faz sempre a mesma peça?

Crítico – Não, são textos diferentes.

Namorado – Mas, baby, se são textos diferen-tes, isso quer dizer que ela tem um estilo, não é?

Crítico – Eu até gosto dela, mas não posso dizer isso.

Namorado – Por que, baby?

Crítico – Minha força vem justamente pelo fato de eu sempre falar mal.

Namorado – Nossa, baby, você é tão louco.

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Crítico – Você ainda está no começo, um dia você vai entender.

Namorado – Eu queria mesmo era entrar pra algum grupo. Ser o ator revelação de al-gum grupo. Adoro essa coisa grupo. Você me prometeu que ia me indicar pra algum grupo, baby.

Crítico – Eu já te indiquei pra trabalhar em dois, mas você não quer.

Namorado – Mas eu quero grupo que sai na mí-dia, baby. Queria, sei lá, Satyros, Oficina...

Crítico – Não é Oficina o nome do grupo, Oficina é o teatro.

Namorado – Foda-se, dá na mesma.

Crítico – Eu não posso te indicar pra ne-nhum desses.

Namorado – Por quê?

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Crítico – Porque eu falei mal deles.

Namorado – Baby, você precisa controlar essa linguinha.

Crítico – Eu não me rendo ao sucesso de pú-blico, fofinho. Eu tenho que falar mal.

Namorado – Mas, baby, se você fizer isso, as pessoas nunca vão gostar de você...

* * *

T6 – Aquele ali não é o cara da novela das sete?

T7 – Qual?

T6 – O bonitão, ali.

T7 – Qual? Qual?

T6 – Aquele ali, sentado na segunda fileira.

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T7 – Qual?

T6 – Caralho, você é cega! Aquele, do lado daquela mulher toda chique.

T7 – Puta merda, é ele mesmo!

T6 – Você trouxe a máquina?

T7 – Puta merda, não trouxe. Bosta!

T6 – Será que tá no carro?

T7 – Você não tem foto no celular?

T6 – Tenho, mas fica uma merda.

T7 – Ué, tira assim mesmo.

T6 – Mas fica uma bosta. Como é que eu vou colocar no Orkut?

T7 – Você tira uma minha e depois me envia?

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* * *

Ator Famoso – Eu não devia ter vindo aqui. Tá todo mundo olhando pra minha cara.

Agente – Mas é bom pra sua imagem. As pes-soas vão pensar que você é um cara que se importa com o Teatro.

Ator Famoso – Mas tinha que ser aqui na Pra-ça Roosevelt?

Agente – Todo mundo vem aqui, agora. Vi-rou moda. E essa peça está recomendada em um monte de lugares. Viu só quanta foto você tirou? Todo mundo te conhece aqui. Pena que não tenha gente importan-te... mas pelo menos todo mundo vai saber que você veio. Isso pega bem.

Ator Famoso – Mas cadê o fotógrafo da Mô-nica Bergamo?

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Agente – Você não viu a cara deles quando a gente chegou? Você é famoso, as pessoas gostam de gente famosa.

Ator Famoso – Sei, mas foto que é bom, nada. Eu queria que tivesse fotógrafo, assim todo mundo ia saber que eu gosto de teatro.

Agente – Mas um monte de gente tirou foto. A gente com certeza deve ter tirado foto com o tal fotógrafo da Folha. Também, é tanta gente que não dá pra saber quem é quem.

Ator Famoso – Até hoje eu só saí na Caras e na Contigo. Eu preciso sair na Folha de S. Paulo.

Agente – E Veja, não esquece da Veja.

Ator Famoso – E Veja, claro. Só vão me res-peitar quando eu sair na Veja e na Folha.

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Agente – E no Estadão.

Ator Famoso – E no Estadão, também.

Agente – Ano passado tinha um monte de gente. Até a Adriane Galisteu tava aqui.

Ator Famoso – Sério?

Agente – Sério. Fez peça e tudo.

Ator Famoso – Ah, então não é que nem quermesse. Eu pensava que era um tipo quermesse de classe teatral.

Agente – Você tem que se mostrar mais pra classe teatral, isso dá prestigio.

Ator Famoso – Não, você tem razão, eu pre-ciso que a classe saiba que eu sou um cara preocupado com o Teatro. Afinal, eu co-mecei no Teatro, né? Fiz Macunaíma an-tes de ir pra Globo.

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Agente – É assim que se fala.

Ator Famoso – Você conseguiu falar com o Wolf Maia?

* * *

T1 – Essa peça fala de quê?

T3 – É a baseada na história da vida do Mano-el da Silva Courinho.

T1 – Ah...

T2 – Quem é esse cara?

T3 – Como quem é esse cara? O Courinho é um dos grandes nomes da poesia de cordel do século 19.

T1 – Ah...

T3 – A poesia dele influenciou muita gente.

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T2 – Quem, por exemplo?

T3 – Como assim?

T2 – Quem ele influenciou?

T1 – É, quem ele influenciou?

Toca o terceiro sinal.

T2 – Você foi salva pelo gongo. Mas depois vai me dizer quem esse cara influenciou.

T3 – O Tom Zé sempre fala nele.

T1 – Quem é o Tom Zé?

* * *

Ator – Manoel Courinho. Inho, couro, Manoel. Manu, manuelzinho, courinho de Deus!

Coro – Courinho de Deus!

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Música de efeito.

Ator – Vou andando por este sertão, levando a mensagem de Deus nos papéis, fazendo minha poesia secar nos varais da caatinga.

Coro – Caatinga! Caatinga!

Ator – Eta, eta, eta, eta, é a lua é o sol é a luz de Tieta

Coro – Eta, eta, eta, eta, é a lua é o sol é a luz de Tieta

T3 – Viu só? Influenciou Caetano.

Crítico – Uma dos mais belos momentos da poe sia popular.

T6 – Ele não olha pra cá!

T7 – Lógico, ele está superinteressado na peça.

Ator Famoso – Quanto falta pra acabar?

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T5 – É tanta gente que eu não vejo o meu ir-mão.

Namorado – Baby, eu adoraria fazer aquele papel. Não do coro, que coro pra mim é tudo gado.

Barulho de tambores.

Ator – Quero experimentar um feminino ter-rível. O grito da revolta sufocada, da angús-tia armada em guerra e da reivindicação.

Coro – Masculino! Feminino!

Ator – É como a queixa de um abismo que se abre: a terra ferida grita, mas vozes se ele-vam, profundas como o buraco do abismo, e que são o buraco do abismo que grita. Neutro. Masculino. Feminino.

Crítico – Muito interessante essa dicotomia entre o moderno e o antigo, fazendo a refe-

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rência do Teatro de Seraphin como se fosse o impacto da obra de Courinho no movi-mento de cordel tradicional.

Ator Famoso – Na boa, não estou entenden-do porra, mas deve ser tipo uma coisa baca-na das pessoas gostarem, não é?

Agente (muito concentrado na peça) – Não faço a menor ideia.

T7 – Olha como eles conversam de forma in-teligente. Gente bacana é sempre assim, né? Inteligente. A outra não tira os olhos da peça.

T6 – Será que é chato a gente pedir pra ele esperar um pouquinho enquanto a gente corre pro carro e pega a máquina?

T1 – Meu, muito louca essa peça.

T2 – Aquele cara ali não faz novela?

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Namorado – Nossa, baby isso pra mim parece aquele francês doido, o Artô.

Crítico – Fofinho, se eu não estou enganado – e eu nunca estou, aquilo é Artaud.

Namorado – Nossa, baby, tô muito inteirado.

Ator – Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu.

Coro – Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu.

Ator – Então a tempestade de meu corpo se fez marcante enfim cruzei a linha que me separava de ser o melhor dos melhores: fiz um trato com o Demo

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Coro – Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu.

T5 – Será que é chato eu acenar pro meu ir-mão ver que a gente está aqui? Tem mais gente em cena do que na plateia. (Ela se levanta e senta rapidamente, como se fosse arrumar a saia)

T6 – Essa não é a música do Gilliard?

T7 – Não, era do Naum.

T2 (se interessa pelo assunto) – Quem?

T7 – Naum, campeão disparado do Qual é a Música?

T6 – Não era o Ronnie Von?

Ator Famoso – A gente tem que dar um jeito de eu jantar no programa do Ronnie Von.

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Agente – Diz que o rango é bom pra cara-lho.

T7 – Ela não tem mesmo aquela classe de na-morada de galã de novela?

Crítico – Tema recorrente, este do pacto com o Demônio.

Namorado – Tipo o Fausto, baby.

Ator – Então as lágrimas do Rio São [Francisco

Trouxeram bálsamo aos meus ferimentos Banhando de alma Aquilo que eu chamava de Tempo

Coro – O Tempo! O Tempo! O Tempo!

Crítico – É tosco, mas ao mesmo tempo me emociona. Esse ator é muito bom.

Namorado – Acho meio velho pro papel. Ti-nha que ser alguém mais jovem, baby.

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T1 – Cara, esses caras são incríveis.

T3 – Sergio, você fumou aquela ponta?

T6 – O cara da peça é bem gato.

T7 – Tem um cara que tá junto com todo mun-do que tá me dando mole faz um tempo.

T6 – Qual?

T7 – Aquele ali. Ele ficou falando O tempo! O tempo! O tempo! O tempo todo pra mim. Assim.

T5 – Gente, ele não olha pra cá!

T6 – Não olha mesmo. Impressionante.

T5 – Você conhece ele?

T6 – Não, mas eu acompanho a carreira dele.

T5 – Ele é meu irmão.

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T2 – Que legal.

T5 – Você ouviu, Sergio? Ela acompanha a carreira do meu irmão. Nossa, tô tão orgu-lhosa...

Ator – Minha vida é andar por este país Pra ver se um dia descanso feliz

Coro – Feliz! Feliz! Feliz!

Namorado – Se essa peça não acabar logo, eu juro que eu vou acabar dormindo no seu ombro, baby.

Crítico – Difícil ver um espetáculo poético assim, hoje em dia.

T6 – Meu, ela é irmã dele.

T7 – Meu, pede pra ela pra gente conhecer o cara.

T1 – Olha, vou te falar um troço: tô besta.

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T2 – Olha, eu não tô entendendo porra ne-nhuma.

T3 – Eu nunca mais vou ao Teatro com vocês. Juro!

Agente – Engraçado fazer peça num lugar assim, né?

T6 – Dá pra gente tirar uma foto com ele, de-pois?

Ator Famoso – Esse lugar é muito fedido.

T5 – Claro, ele vai adorar. Eu também trouxe a minha máquina.

T6 – Ai! Posso pedir pra você tirar com a sua máquina e depois me mandar?

T5 – Claro!

T7 – Nossa, isso é que é irmã. Acompanha o irmão e ainda leva máquina fotográfica.

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T5 – Sabe como é, um dia ele chega lá, né?

T6 – Já chegou, meu amor.

Namorado – Então você está gostando disso?

Crítico (chorando) – Amando! É uma das coisas mais lindas que eu já vi na minha vida!

Ator – E assim como vida é vida E como morte é morte E como o céu é céu E a terra é terra E a criança é a criança E o homem é o homem E a mulher é a mulher E o travesti é o travesti

Coro – O travesti é o travesti! O travesti é o travesti! O travesti é o travesti!

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Todos os personagens, inclusive T4, se levantam e aplaudem.

Crítico – Bravo!!! Bravo!!!

Ator Famoso (imitando o crítico) – Bravo!!!

T5, T6, T7 ao mesmo tempo, imitando Ator Famoso – Bravo!!! Bravo!!!

Namorado e T2 aplaudem com desdém.

T4 ainda está sonolento.

T3 olha pra T1, que está catatônico. Ela encos-ta nele, ele quase desmaia e começa a chorar. T3 e T2 o carregam pra fora.

O ator está esfuziante, em júbilo – seu ego ul-trapassa a marca do pênalti. Ele agradece, e em atitude egocêntrica menciona o coro, como que humilde. Quando param de aplaudir, o ator se dirige ao coro.

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Ator – Vocês foram maravilhosos! Sem vocês eu não teria brilhado! Sejam sempre as-sim!

T5 – Bom, a gente se encontra lá fora!

T6 – A gente está esperando!

T6 e T7 saem.

Crítico (saindo) – Ai, que bom voltar a acre-ditar no poder do teatro!

Namorado (saindo) – Me leva no Ritz, baby?

Crítico – Vou detonar a direção, mas esse ator ainda vai me dever muitos favores!

Namorado – Ou no Mestiço.

Saem.

T4 e T5 vão ao palco, falar com T8.

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T8 – E aí, curtiram?

T5 – Sua melhor peça até agora! Eu preferia que você aparecesse mais, é claro, mais eu gostei!

T4 – Eu também.

T5 – Sergio adorou! Sabia que tem umas meni-nas lá fora querendo fazer foto com você?

Se despedem e saem, deixando T8 no palco.

Ator Famoso – A gente tem que cumprimen-tar alguém?

Agente – Não, vamos só esperar pra essa gen-te ir embora.

Ator Famoso – Nunca mais, hein? Nunca mais!

Ator chegando pra Ator Famoso.

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Ator – Nossa, que prazer ter você aqui na nos-sa peça!

Ator Famoso – Cara, parabéns!

Ator – Eu nunca tinha te visto na plateia, antes.

Ator Famoso – Sabe como é, fico muito no Rio...

Agente – Parabéns, meu bem!

Ator Famoso e Agente saem. Ator fala com T8.

Ator – Cara, foi do caralho, não foi?

T8 – Se foi. Sabia que tem duas minas queren-do tirar foto comigo?

Black Out

Fim

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Depois da Chuva

Prólogo

Daqui a poucoo homem que ela mais amou

vai encontrá-la no meio da tempestadeUma tempestade anunciada há tempos

Pelo Homem do Tempo

Nesse mesmo diaela estará feia

irreconhecível pro homem que amou há mais de duzentos anos

ele não vai enxergá-la embaixo de todas as rugas e desesperos

E ela fará de conta que nunca o conheceu na vidaPor pura educação

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Eles falarão de coisas absurdasfalarão do Tempo

Falarão sobre a falta de temposobre voltar no tempo

Tudo no meio desse temporalno meio desse tempo feio

Ela feia, ele feio, ela amanhã, ele hoje,

os dois passados

Depois ela inventará uma desculpa plausível e elegante

Dirá adeus com polidez e sensatez e toda essa tez

E ele não a reconhecerá senão como um passageiro fantasma

De alguém que um dia chupou as tetas e chamou de querida

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Ela se protege embaixo da luz. Ele entra pela porta, fugindo da chuva. Outono está quase nu, protegido apenas por uma toalha da cin-tura pra baixo e chinelos.

Outono – As pessoas são normalmente des-preparadas para a chuva, não acha?

Primavera – Como?

Outono – As pessoas são normalmente des-preparadas para a chuva, não acha?

Primavera – Não. Quando chove elas se pro-tegem.

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Outono – Quando amam as pessoas também se protegem. Nem por isso usam guarda-chuvas.

Primavera – Mas o amor não molha. O amor seca.

Outono – Você acha?

Primavera – Acho. Não. Tenho certeza. Qua-se cer teza.

Outono – Entendi. Não quer ter certeza?

Primavera – Se um dia tiver certeza, estarei morta.

Outono – Uma mulher fascinante. Se amar, seca. Se tiver certeza, morre.

Primavera – As mulheres se valem das dúvidas.

Outono – Uma vez amei uma mulher como você. Mas ela está morta. Ela tinha certezas.

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Primavera – Me pergunto se ela morreu seca.

Outono – Não. Deve ter sido tragada pela chuva.

Primavera – E a chuva nunca te tragou?

Outono – Não, eu não me deixo tragar. Eu trago. Minhas células mortas acumuladas e mortais me acusam disso todos os dias.

Primavera – Então você morre.

Outono – Daqui a pouco. Pulmão. Se não morrer atropelado fugindo dos raios, o pul-mão me pega. Então eu a reencontro.

Primavera – Ela deve ter sido importante. Ninguém prefere a morte seca ou a traga-da do pulmão se não for por um grande amor.

Outono – Na verdade ela não foi meu grande amor. Foi apenas o único. Tive outras chu-

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vas como essa, mas nunca um figo como aquele.

Primavera – E se ela estivesse viva?

Outono – Então eu não morreria. Eu teria me transformado na Olivia Newton-John e seria saudável e loira e feliz e daria para o John Travolta e viveria de cantar minhas músicas chatas do passado até morrer de esquecimento.

Primavera – Eu vou morrer de esquecimento.

Outono – Sorte a sua. Eu morro de saudade.

Primavera – A água está parando.

Outono – Daqui a pouco começa a chuva de flores. Gosto quando chovem flores. Elas enfeitam o caminho, deixam o mundo com aparência de jardim.

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Primavera – Eu gosto da água. A água é lim-pa, é transparente, é líquida. Flores são só-lidas.

Outono – Peidos são gasosos.

Primavera – Peidos são gasosos. Água é líqui-da. Flores são sólidas. Seu câncer é sólido. Sua morte é gasosa, etérea.

Outono – E a fumaça é o quê?

Primavera – O que o quê?

Outono – A fumaça é sólida, líquida ou ga-sosa?

Primavera – O tempo é o quê? Sólido, líquido ou gasoso?

Outono – O tempo é passado. Futuro não se mede por tempo.

Primavera – Então o futuro não é tempo?

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Outono – O futuro é sonho. Acordamos todos os dias em sonhos.

Primavera – Ou pesadelos.

Outono – Ou pesadelos.

Primavera – Ou sonhos.

Outono – E isso aqui? Onde estamos? Num sonho ou num pesadelo?

Primavera – Estamos na chuva.

Outono – Na chuva.

Primavera – Na chuva. Sempre na chuva.

Outono – Sorte a sua. Você nunca seca.

Primavera – Você vai embora?

Outono – A gente sempre vai embora.

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Primavera – Você não vai esperar a chuva pas-sar?

Outono – Não. Eu nunca tive medo da chuva.

Primavera – Eu sempre evito a chuva.

Outono – Você está mentindo.

Primavera – Por quê?

Outono – Quem evita a chuva não sai de casa. Você sai de casa pronta pra enfrentar a chuva, você só não toma a chuva.

Primavera – Talvez eu não tenha casa.

Outono – Eu ofereceria a minha, mas você não gostaria. Ela não tem teto.

Primavera – Então não é uma casa.

Outono – Então não é amor.

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Ele beija sua mão e se despede.

Primavera – Adeus.

Outono – Foi um prazer me proteger da chu-va ao seu lado.

Primavera – Não nos veremos mais?

Outono – Não posso. Preciso morrer. Adeus.

Primavera – Adeus.

Outono – Você não teria um cigarro?

Primavera – Tenho.

Ela acende dois cigarros, e oferece um pra ele. Eles brindam o cigarro.

Primavera – Ao seu câncer.

Outono – À sua incapacidade de amar.

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Primavera – À chuva.

Outono – Sabe de uma coisa?

Ele vai embora.

Primavera – Eu sempre te amei.

Epílogo

Ela irá embora com mais gotas de chuva nos olhos

que lágrimas nos céusLembrando dos carinhos que um dia acreditou

Lembrando de um homem que um dia a possuiu e foi seu

Lembrando de um membro duro que hoje é passado

Mais seca que antesmais doce depois.

Fim

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Últimas Notícias de uma História Só

Primeiro Movimento

Narrador – No dia 9 de fevereiro Maria Clara saiu de seu apartamento-quitinete, fechou a janela, repôs a comida dos gatos e foi para o trabalho. Como sempre, foi esperar o ônibus no ponto que ficava a duas quadras de seu prédio.

Nesse mesmo dia, José Paulo, acordou às quatro da manhã, tomou um café preto requenta-do da noite anterior, deu um beijo em seus quatro filhos e pegou o trem, para chegar a tempo na garagem. Por pouco não se atra-sou, cumprimentou os companheiros, subiu no ônibus e começou seu dia.

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Lá pelas sete e meia da manhã, Edu saiu de um apartamento que ele nunca havia esta-do, achou melhor não incomodar o cara que dormia ao seu lado, na verdade nem queria ver a cara dele, queria sumir dali, uma ca-misinha estourada é o suficiente para não dormir direito, e por que diabos aquele cara conseguiu dormir tão bem?

Envolto nestes pensamentos, Edu não perce-beu que o ônibus vinha descendo a rua, uma brecada tão brusca que Maria Clara, que mal havia entrado no ônibus, foi joga-da com toda força contra o vidro da frente, fraturando crânio e comprimindo seus pul-mões contra as costelas. Assustado por ter passado violentamente com as rodas sobre o corpo de Edu, que nesse momento se trans-formava numa massa de carne e ossos, José Paulo mal teve tempo de perceber que sua manobra seguinte com a direção do ônibus o jogaria diretamente contra um poste.

Edu sequer percebeu o que aconteceu, quando o ônibus o pegou de lado e, alguns segun-dos depois, a roda traseira passaria por cima

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de sua cabeça, como se seu corpo fosse uma lombada que se atravessa rapidamente. Tudo muito rápido, quase indolor, quase. Maria Clara ainda sobreviveria por poucos segundos para olhar o motorista morto à sua frente, ela também, sem dor alguma.

Quem passou por aquele cruzamento àquela hora da manhã possivelmente ficou choca-do, ou tentou achar o culpado, ou apenas olhou com curiosidade a remoção daquelas massas mortas, e seguiu seu dia.

Um deles era Antônio, que a bordo de seu Fiat Uno 94 prata, reclamava do congestiona-mento nesta cidade de merda, que ainda eram oito horas da manhã.

Últimas Notícias de uma História Só. Esse é o Gatti, essa é a Mel, eu sou o Gruli.Um porão. Ambiente sujo, úmido, doente, pe-

queno. Sem janelas. Um colchão, um co-bertor velho, um travesseiro, uma garrafa de água, um penico.

A personagem da Mel está sentada no colchão. No fundo, o personagem do Gatti entra com um sanduíche.

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Ele – Vou buscar o meu.

Ele sai, ela fica olhando para o sanduíche, mas não come. Ele volta.

Ele – Devia comer, vai acabar morrendo de fome. Está ficando magra. Vai acabar fican-do feia. Faz três dias que você não come…

Ela – Vocês falaram com o meu pai?

Ele – ... não posso falar.

Ela – Vocês nunca podem falar... quanto vo-cês estão pedindo?

Ele – Come o seu sanduíche e mais tarde eu trago outra coisa...

Ela – Do que é esse sanduíche?

Ele – Mortadela.

Ela – Eu já disse que não como carne.

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Ele – Não é carne, é mortadela.

Ela – Dá para trazer um de queijo, pelo me-nos?

Ele – Não, depois.

Ela – Mas eu estou com fome...

Ele – Que é, tá pensando que sou empregado seu?

Ela – Porra, eu não como carne! Eu estou com fome!!

Ele – Para de gritar, caralho! Quer que eu te amarre de novo?

Ela – Não, por favor... Eu fico quieta... Será que da próxima vez você poderia me trazer um sanduíche de queijo?

Ele – Amanhã eu te trago um sanduíche de queijo.

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Ele vai sair.

Ela – Olha, desculpa, eu acho que você não está entendendo, eu estou com fome, eu não como carne...

Ele – Não quer mesmo esse aqui? Posso co-mer?

Ele pega o sanduíche para comer. Ela avança sobre ele e toma o sanduíche de suas mãos, vo-razmente. Tira a mortadela e come o pão. Ele apanha a mortadela do chão e coloca bem na frente da cara dela, imperativo.

Ele – Come.

Ela – Eu já disse que não como mortadela!

Ele – Porra! Eu mandei comer! Come essa porcaria! Agora!

Ela coloca a mortadela na boca, com nojo.

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Ele – Mastiga.

Ela começa a mastigar, com nojo.

Ele – Agora engole.

Ela engole.

Ele – Doeu, porra? Não doeu nada, viu?

Ela – Você é nojento.

Ele – Você não come mortadela, não come carne, e eu sou o nojento aqui?! Escuta aqui, ô, madame filha da puta...

Ele faz menção de tocar nos ombros dela.

Ela – Nem pense em encostar um dedo em mim!

Ele – E eu encostei? Eu te comi, por acaso? Porra! Não. Forcei a barra, por acaso? Não também, caralho! E nem vou fazer isso.

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Ela – Olha, você quer o seu dinheiro, tudo bem, vai ter seu dinheiro, mas antes vai ter que me tratar bem, está me ouvindo?... Com o dinheiro você vai poder comprar quanta mortadela quiser, pode comprar todo estoque de mortadela da padaria, tá feliz? Tá feliz?

Ela começa a chorar.

Ele – Eu vou te deixar sozinha.

Ela – Espera!

Ele – Que é?

Ela – Olha...

Ele – Que é?

Silêncio. Ele vai sair.

Ela – ... Fica mais um pouco, por favor...

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Ele – Caralho.

Ela – Olha, eu não choro mais, eu prometo, mas fica só mais um pouquinho, por fa-vor… eu vou acabar ficando louca se eu não conversar com alguém.

Ele – Então pede desculpas.

Ela – De quê?

Silêncio. Ele vai sair.

Ela – Desculpa.

Silêncio. Ele se senta na porta.

Ela – Olha, vê se entende, está sendo muito difícil pra mim.

Ele – Pra mim também.

Ela – Sim, pra vocês também.

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Ele – É, pra mim também.

Ela – Quantos anos você tem?

Ele – ... 17. E você?

Ela – 35.

Ele – Eu achava que você tinha mais.

Ela – Eu devo estar com cara de cinquenta anos.

Ele – Não, não está não.

Silêncio.

Ele – Quer conversar sobre o quê?

Ela – Não sei, qualquer coisa.

Ele – Então escolhe uma coisa que a gente conversa.

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Silêncio.

Ele – Eu acho que vou embora...

Ela – Eu não sei, meu Deus, sobre o que você gosta de conversar?

Ele (sem saco) – Não sei.

Ela – Bom... fala alguma coisa, puxa um as-sunto.

Ele – Acho melhor eu subir que o papo não está rolando.

Ela – Você tem namorada?

Ele – Não.

Silêncio.

Ela – Bom, você tem alguma sugestão? Sobre o que você quer conversar?

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Ele – Não sei, qualquer coisa, quem quer falar é você.

Ela – Você tem cara de ser um sujeito inteli-gente.

Ele – Sujeito inteligente...

Ela – É, inteligente...

Ele não responde.

Ela – Você pode me dar um cigarro?

Ele – Eu não fumo.

Ela – Será que depois você poderia comprar um maço de cigarro pra mim?

Ele não esboça reação.

Ela – Olha, tinha dinheiro na minha bolsa, acho que deve ter algum trocado pra com-prar o cigarro... eu tinha parado de fumar,

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mas parece que a gente sempre para de fu-mar na hora errada...

Ele – Sei.

Ela – ... Eu sou, quer dizer, eu era voluntá-ria numa casa que cuida de crianças com câncer.

Ele – Bom pra você e pras criancinhas.

Ela – Eu acho que cada um tem que fazer sua parte.

Ele – Sei.

Ela – Trabalhava duas horas por semana, lá.

Ele – Uau...

Ela – Às vezes até mais...

Ele – Nossa, tudo isso... então quer dizer que você é bacana, porque ajuda os outros. Pa-rabéns. Vai pro céu, já tem até a senha.

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Ela – Não, eu estou dizendo que...

Ele – Tá, eu entendi. Então você acha que porque trabalhou de voluntária pras crian-cinhas com câncer você merece ser mais bem tratada.

Ela – Eu não disse isso, você por favor não queira me levar a mal, eu quis dizer...

Ele – Eu ia ficar bem puto se eu trabalhasse duas horas por semana pra ajudar as crian-cinhas com câncer e depois fosse seques-trado. Eu ia ficar muito puto, sabia? Não sei nem com quem eu ia ficar puto, eu podia ficar puto com a sociedade, ou com Deus...

Ela – Ou com Deus... ou com quem me fez isso...

Ele – Ou com quem te fez isso. Claro.

Ela – Será que a menina não tem cigarro?

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Ele – A Márcia...

Ela – Isso, a Márcia...

Ele – Não sei, depois eu pergunto pra ela...

Ela – Pede um cigarro pra ela, por favor... Cadê ela?

Ele – Por aí.

Ela – ... Eu gostava mais do outro lugar. Esse é muito úmido. Por que vocês me trouxe-ram para cá?

Ele – Porque sim. Se vai começar a ficar en-chendo o saco com um monte de pergun-tas, eu vou cair fora.

Ela – Eu gosto de ser você quem me traz a co-mida agora. Aquela menina me olha com uma cara de ódio, parece que ela tem raiva de mim.

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Ele – É o jeito dela.

Ela – Ela está grávida, não está? Dá pra ver a barriguinha, dá pra notar, uma mulher nota quando a outra está grávida. Pelo me-nos eu sempre fui muito intuitiva... Ela está grávida do Gordo ou de você?

Ele – O que você tem a ver com isso? Que é que você quer com essa história?

Ela – Não, não quero nada, estava só conver-sando.

Ele – Falando merda.

Ela – ... sei... por que ela não vem mais me ver?

Ele – Porque não dá.

Ela – Você é melhor que eles. O Gordo é mui-to barra pesada.

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Ele – Meu irmão.

Ela – Eu sei. Eu não gosto do seu irmão.

Silêncio.

Ela – Eu tenho o direito de não gostar do seu irmão, não tenho?

Ele – E também não gosta de mim.

Ela – Eu não disse isso.

Ele – Mas pensou.

Ela – Não, eu juro que não pensei nada... Você estuda?

Ele – Não.

Ela – Nunca estudou?

Ele – Fiz o técnico.

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Ela – Em quê?

Ele – Mecânica. Eu não sou tão ignorante quanto você acha que eu sou.

Ela – Eu nunca achei que você fosse burro. Você trabalha em algum lugar? Não, lógico que não, senão não precisava fazer isso…

Ele – Olha aqui, se me humilhar mais uma vez, fica sem comida, entendeu?

Ela – Olha, eu não estava te humilhando...

Ele – “Coitadinho, esse cara só rouba porque é pobre, porque é desempregado, tudo cul-pa da sociedade.” Não é assim que vocês fa-lam? “Deve ser porque é pobre”, “deve ser pra comprar droga”, “deve ser vagabundo que não gosta de trabalhar”, “deve ser, deve ser, deve ser porra nenhuma... ”.

Ela – Eu nunca disse isso pra você, garoto.

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Ele – Não me chama de moleque!

Ela – Eu não chamei você de moleque, por favor, eu disse garoto, e eu também nunca pensei isso que você disse!

Ele – “Deve ser para comprar o leite das crianças, deve ser pra ajudar a mãe doen-te”... Eu sempre trabalhei, eu nunca fui vagabundo...

Ela – ... Então por quê?

Ele – Por que o quê?

Ela – Me explica por que eu estou aqui, na sua frente, me explica por que eu estou nesse lugar!

Ele – Como assim?

Ela – Você está me dizendo que nunca foi vagabundo, porra, eu acredito em você, eu acredito mesmo, mas eu não consigo

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entender por que um cara como você que nunca foi vagabundo está fazendo isso co-migo...

Silêncio.

Ele – Você disse que queria conversar comi-go e a única coisa que faz é perguntar “por que isso?”, “por que aquilo”... Eu vou jogar isso fora.

Pega o penico cheio, vai sair.

Ela – Você volta?

Ele – Não, vou pros States passear...

Ela fica observando a porta aberta, tenta se le-vantar e percebe que ele vem chegando, e volta para o colchão.

Ele – Pronto.

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Ela – Olha, deixa eu te pedir um favor? Será que você não podia me trazer um jornal, uma revista?

Ele – Não.

Ela – Olha, alguma coisa pra eu ler, qualquer coisa pra passar o tempo... como é o seu nome? Eu sei que eles te chamam de Lelo, mas como é o seu nome?

Ele – Lelo.

Ela – Não, eu quero saber o seu nome.

Ele – Pra quê?

Ela – Pra poder conversar, você sabe o meu?

Ele – Vânia.

Ela – Ótimo, agora eu gostaria de saber se posso te chamar de Lelo ou pelo seu nome mesmo...

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Ele – Cortei o assunto. Tá me achando com cara de trouxa?

Narrador – Faixa de pedestres. Numa das mãos, uma tela onde ficavam presos fones de ouvido, capas de couro pra celular, pren-dedores. Na outra, uma enxurrada de fios de carregadores de celular para carros.

Assovio.Usava uma camisa vermelha, costurada com os

dizeres “Trabalhando e Ajudando os meus clientes da Rua Dona Antônia de Queiroz. Ass.: Josemar”.

Assovio.“... há 14 anos nessa mesma esquina. Três fi-

lhos; o mais velho tem 21 anos, tá casado, não mora lá perto de mim não, precipitou, né, precipitou... já tem um filho! ... Construí uma casinha no fundo da casa da minha mãe... São Miguel... quer dizer, construí mesmo quando eu era metalúrgico, antes da Era Collor; o salário não dava não; aí eu inventava que tava doente uns dois dias por mês e vinha pro semáforo, tirar o que falta-

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va. Depois fui vendo que eu era mais feliz aqui mesmo. Dá licença...”.

É quase atropelado por uma moto.“Não, nunca fui, não... aqui, pra não ser atro-

pelado, tem que ficar esperto: tem que ter um olho no peixe e outro no gato, tem que ficar atento na inovação hoje em dia... se sai um cabo usb novo a gente tem que ter, um carregador de modelo diferente! Mas tudo depende, né... ontem tava chovendo: aí eu largo isso tudo e pego os guarda-chuvas pra vender... ficam ali do lado, ó! Dá licença...”

Assovio.Nos 40 minutos que eu fiquei ali, ele não vendeu

nada. Quando eu já tava indo embora, sur-ge no fim da fila uma perua Kombi dos Cor-reios e o motorista parece interessado numa capa de celular. Ele começa a mostrar tudo e o sinal abre, a fila começa a andar. “Pra que lado da Consolação vocês vão? Vão des-cer? Me espera ali no borracheiro.” Eu digo: “Corre lá!” Começo a ir embora, pro mesmo lado, tentando ver o tal borracheiro. Achei que fosse bem no começo do quarteirão, mas

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ficava bem longe. Quando eu parei na faixa, pra tentar atravessar a avenida, ele já vinha voltando. Não dava tempo de vender nada, a perua nem devia ter parado. Eu perguntei: não vendeu, né? “Vendi sim...”

Saí.

Ele – ... Você é casada?

Ela – Não, não sou.

Ele – Juntada?

Ela – Não.

Ele – Sapata?

Ela – Não... Agora é você quem faz perguntas sem parar, Lelo.

Pausa.

Ele – Wanderley. Meu nome é Wanderley.

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Ela – É um nome bonito.

Ele vai até ela e quase dá um tapa na cara.

Ele – Vaca! Filha da puta.

Ela – O que eu fiz?

Ele – Eu sei que Wanderley não é um nome de bacana, ta? Eu nunca gostei dessa bos-ta desse nome, você não deve ter nenhum amigo seu chamado Wanderley, tem? Gente rica não chama Wanderley, então não zoa com a minha cara...

Ela – Eu não estava zoando, eu só queria ser simpática…

Ele – Caguei pra tua simpatia! Não preciso de ninguém passando a mão na minha cabe-ça, eu não sou uma porra de uma crianci-nha com câncer!

Ela – Você não precisa ficar nervoso por isso.

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Ele – Eu não estou nervoso! Me chama de Lelo, porra, só de Lelo, eu odeio ser cha-mado de Wanderley – esquece esse nome.

Ela – Desculpa, eu não...

Ele – Eu não gosto que me chamem de Wan-derley! ... Minha mãe me deu essa porra desse nome porque era fã do Wanderley Cardoso. Você nem deve saber quem era o Wanderley Cardoso... não podia ser Rober-to Carlos? A velha também gostava dele, eu preferia chamar de Roberto Carlos, que pelo menos é nome de jogador, eu só não chamei porque meu irmão veio antes...

Ela – Eu não gosto de Roberto Carlos.

Ele – Ele não chamava Roberto Carlos, era só Roberto.

Ela – São só vocês dois?

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Ele – Só. Eu chamava de Beto, nunca chamei de Gordo porque ele não gostava que eu chamasse de Gordo.

Silêncio.

Ela – ... Lelo, que aconteceu com o Gordo?

Ele – Nada.

Ela – Eu percebi o jeito que você falou dele, Lelo.

Ele – Nada. Não aconteceu nada.

Ela – Ele foi preso, não foi?

Silêncio.

Ela – Foi preso, e a menina também foi, não foi?

Ele – De onde você tira essas merdas?

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Ela – Eu não sou burra, Lelo. Há quanto tempo eu estou aqui? Duas semanas e meia, três semanas? Desde a semana pas-sada só você vem me trazer comida, eles não aparecem mais. No outro lugar eu ouvia quando vocês discutiam…

Ele – Isso não é assunto seu, é melhor calar a boca e ficar quieta no seu canto…

Ela – Você está sozinho nessa? Lelo, você está sozinho nisso, não está?

Ele – Já disse pra calar essa boca, porra, se-não eu...

Ela – Lelo, pelo amor de Deus, me escuta, não acaba com a tua vida desse jeito, me ajuda, Lelo, você já percebeu que essas coisas po-dem acabar mal pra você, como aconteceu com aquele merda daquele Gordo?

Ele – Fala de novo do meu irmão e eu estouro a tua cabeça!

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Ele saca a arma e aponta para ela. Ela recua, atemorizada.

Ele – Pede desculpas, retira o que você disse! Pede desculpas!

Ela – Desculpa, pelo amor de Deus!

Ele guarda a arma.

Ele (transtornado) – Caralho... Eu vou subir, a gente já conversou demais!... Depois eu te trago um sanduíche de queijo… não vai dizer nem um obrigado? Você não diz obri-gado pra sua empregada em casa? Ou fica tocando sininho pra ela?

Ela – Obrigado.

Ele – Eu te trago um refrigerante também...

Ela – Obrigado.

Ele – ... Normal ou diet?

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Ela – O quê?

Ele – Normal ou diet?

Ela – Diet.

Ele – Não vai agradecer?

Ela – Obrigada pelo queijo. E pelo refrigeran-te também.

Ele – ... Por que diet?

Ela – ... porque eu estou acostumada...

Ele olha fixamente pra ela.

Ela – Que foi?

Ele – Seu cabelo...

Ela – Que tem ele?

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Ele – Eu acho que mulher sem tintura no ca-belo fica mais bonita. É que nem maquia-gem, eu não gosto de mulher maquiada. Gosto de mulher natural.

Ela – Mas assim já é natural demais… olha, eu precisava de um banho, será que você não me deixaria tomar um banho de ver-dade?

Ele – Não vai dar.

Ela – Mas é que não dá pra eu me limpar di-reito com uma bacia e um paninho, e esse sabonete é muito ruim.

Ele – Olha, não vai dar. Desculpa.

Ela – Você me pediu desculpas.

Ele – E daí? Acha que pobre também não sabe ser educado?

Ele começa a sair.

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Ela – Você já matou alguém, Lelo?

Silêncio.

Ele – Não.

Ela – Que bom.

Ele – Ficou mais tranquila, né?

Ela – Fiquei.

Ele – Me liguei...

Ela – Não vai ainda não, por favor...

Ele – Morreu o assunto.

Narrador – 6h47 da manhã, o Marcelo do apartamento 14 escutava rock’n roll e to-mava o café da manhã para ir ao colégio, acordou preocupado porque tinha prova de Química Orgânica.

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Dona Lourdes do 74 já estava acordada há al-gum tempo, ouvia o rádio enquanto prepa-rava o café da manhã para as três filhas ado-lescentes, e usava um penhoar azul bebê.

Naquela hora, às 6h47 da manhã, agora 6h48, o sr. Cícero do apartamento 31 estava ouvin-do música, mais precisamente um novo hit de Ivete Sangalo enquanto passava o café.

Marcelo do 14 ia perder a primeira aula de qual-quer jeito, tinha que dar um jeito de fazer uma cola, de ficar doente, matar a avó, fazer qualquer coisa.

O Sr. Cícero do 31 não tinha absolutamente nada para fazer. Foi até a mesa da sala e pe-gou a revista de sacanagem que estava aber-ta numa página em que uma morena estava com as pregas totalmente arregaçadas para o leitor, que ele nem precisava esconder por-que ninguém morava ali a não ser ele.

Às 6h53, mais ou menos porque o relógio às vezes falha, dona Lourdes pulou da janela do 74 sem nenhum motivo, nem uma carta, nada. Seu corpo se espatifou por cima do te-lhado de Eternit da garagem do térreo, logo

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depois afundando o teto de uma Caravan, e bem embaixo da janela do quarto de Marce-lo, que com o barulho pensou que o elevador do prédio tinha caído.

Seu Cícero do 31 batia uma grande punheta em homenagem à morena de pregas arregaça-das no momento em que se ouviu o estrondo, mas nada podia detê-lo de cobrir aquela foto de porra, porque um senhor de 71 anos ain-da pode fazer muito estrago, sim senhor.

Talvez não tão grande quanto o estrago cau-sado pela imagem guardada na cabeça de Marcelo ao ver morta a dona Lourdes do 74 bem embaixo de sua janela, e aqueles olhi-nhos dela que se mexiam assustados. Só os olhinhos.

Marcelo do 14 perdeu a prova de Química Or-gânica naquele dia.

Já o sr. Cícero gozou no meio da sala, e voltou a dormir.

Ela – E o que é que você gosta de fazer?

Ele – Que papo é esse?

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Ela – Quero saber do que você gosta, quer dizer, o que você faz de melhor na vida, sabe?

Ele – ... Não sei, e você?

Ela – Eu nunca parei para pensar nisso…

Ele – É, mas fica me perguntando essas mer-das.

Ela – Eu sou formada em Administração, mas eu trabalho como vendedora.

Ele – Eu jogo bilhar bem pra caralho... eu aprendi com o meu pai, que é melhor que eu nisso…

Ela – Teu pai ainda é vivo?

Ele – É… e tem carro também, que eu sei mexer bem porque eu faço isso desde mole-que, sempre gostei de carro, sempre gostei, gosto de ver um carro funcionando bem,

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mas eu não gosto de consertar não, só faço isso porque eu sei fazer...

Ela – E o meu carro?

Ele – Se você me conhecesse antes eu ia te falar pra não gastar dinheiro naquele seu carro, com a grana que você gastou dava pra comprar coisa muito melhor…

Ela – Ele ainda existe?

Ele – O carro? Existe. Eu não sou ladrão pra ficar roubando carro dos outros...

Ela – Desculpa, eu não estou chamando você de ladrão, eu... eu gosto daquele carro, acho bonitinho.

Ele – Essa é que a merda, carro não tem que ser bonitinho... o motor é uma merda, a manutenção é cara pra caralho, e bebe. E não corre.

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Ela – Eu não gosto de correr.

Ele – Eu gosto.

Ela – ... Já foi bilhar, carro...

Ele – Eu sei trepar muito bem. Sou muito bom na cama.

Silêncio.

Ela – Seu pai não fica preocupado com vo-cês?

Ele – Cortei o assunto. Eu não quero mais falar do meu pai, nem da minha mãe.

Ela – Ele não sabe que você está fazendo isso, sabe?

Ele – Já disse que cortei o assunto...

Ela – Você gosta dele, não gosta?

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Ele – O que é agora? Cortei.

Ela – Eu também gosto muito do meu pai, Lelo, e ele deve estar muito preocupado comigo.

Ele – Cada um com seus problemas.

Ela – Ele é muito velho, Lelo, e eu tô muito preocupada com ele, você entende isso? Será que você não pode mandar um bi-lhete meu pra ele, dizendo que está tudo bem?

Ele – Depois eu penso nisso.

Ela – Quanto vocês estão pedindo, Lelo?

Ele – Eu já disse que não posso falar.

Ela – Lelo, se vocês estiverem pedindo muito, ele realmente não pode pagar, ele está bem de vida, mas não é nenhum milionário.

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Ele – Para com isso…

Ela – Escuta, Lelo, eu posso te ajudar, eu sei a melhor forma de arranjar esse, eu sei até quanto vocês podem pedir…

Ele – Cala essa boca…

Ela – Escuta, Lelo, eu tô falando sério, você não quer me contar mas eu sei que você está sozinho nessa, teu irmão foi preso, não foi? Ele, a garota, eu já percebi isso... eu sei que você não sabe o que fazer, eu posso te ajudar…

Ele – Ninguém pode me ajudar, está me ouvindo, ninguém pode me ajudar, cala essa boca, eu já tenho problemas demais, eu tenho que resolver muita coisa, eu não queria estar nessa, eu não queria que você estivesse aqui, eu não queria nem te assal-tar, então vê se cala essa boca!

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Ela – Lelo, escuta, em algum momento você vai ter que resolver isso, já ouvi você brigar com os dois, você não queria nada disso…

Ele – Eu não queria nada disso…

Ela – Me escuta, Lelo, a menina já me disse que não era para virar um sequestro, vocês só queriam me assaltar, eu sei que você não queria me sequestrar, foi idéia do Gordo, não foi?

Ele – Não foi ideia dele...

Ela – Lelo, quando eu sair daqui eu vou dizer que você não queria o sequestro, eu vou di-zer, eu prometo, eu não aguento mais, me deixa ir embora, se…

Ele – Já disse para calar essa boca, porra…

Ela – Lelo, se meu pai não pagou o resgate até agora, então é hora de vocês desistirem, vai ser pior se vocês me matarem, eu sei que

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você está com medo, eu sei, o Gordo e a Márcia foram presos, não foram?

Ele – Já te disse pra calar essa boca! Caralho! Cala essa merda dessa boca!

Ela – Então me solta logo, porra! Isso não é justo! Eu também não queria estar aqui, se você só está fazendo isso porque aque-le merda do seu irmão te forçou, me sol-ta pelo amor de Deus! Tem horas que eu penso que a melhor coisa é eu morrer! É isso que você quer, então me mata logo, me mata, vai!

Ele aponta a arma pra cabeça dela.

Ele – Eu mandei você calar essa boca!

Ela – Atira de uma vez! Porra!

Narrador – Ele atira. Ela morre. A teoria do Caos estuda o comportamento aleatório e imprevisível dos sistemas, e isso acontece a

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partir de pequenas alterações, que aparen-temente nada têm a ver com o evento futu-ro, alterando todas as previsões tidas como certas. E a gente descobre que os sistemas que obedecem a leis precisas nem sempre se comportam de modo previsível. Em resumo, leis simples nem sempre produzem compor-tamentos simples. Acontecimentos podem ser determinados pelo acaso, e não por leis precisas e imutáveis. É o caos que dá lugar à ordem, que, por sua vez, origina novas for-mas de caos.

Atriz – Eu estava na rua e um rapaz baixinho, com cara de tristeza, me entrega um papel. Tentei desviar, mas a velhinha que vinha na direção contrária jogou minha barriga direto pra mão do Tristeza. Eu pego o pa-pel e sigo, sem agradecer: “Dona Jacira, capacitada a solucionar difíceis problemas amorosos, comerciais, familiares ou senti-mentais de saúde, emprego, viagem, insô-nia, depressão, timidez, impotência sexual, vícios, fraqueza sexual, fazer voltar alguém

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que você ama, abertura dos caminhos com rezas, simpatias, banho de descarrego”.

Ator – Madrugada, e não tem nada na televi-são, deixo nos comerciais pra mijar. Quan-do eu volto, lá estava ele, de camisa e grava-ta, cabelo todo certinho, com um copo na mão: “Pega o seu copo e coloca em cima da televisão, que você vai ser abençoado”. Eu ainda tinha meia lata de cerveja, coloquei em cima da tv. E o cara dizia: “Se você tem dor de cabeça, insônia, depressão, pro-blemas familiares, problemas com álcool, problemas de homossexualismo, vamos abrir seus caminhos, vamos colocar nossos corações e pensamentos em Jesus, vamos abrir os caminhos com rezas”.

Atriz – “Se queres ser amado, ter êxito e fama, se tem problemas com sócios, vizinhos ou parentes, inquilinos ou herança, não tome nenhuma decisão sem nos visitar, saiba a causa do seu sofrimento e dor. Fazemos curas espirituais, sigilo absoluto.”

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Ator – Não acredite em curas espirituais. É o demônio se apoderando da sua alma.

Narrador – O efeito da realimentação do erro foi transformado em equação matemática, conhecida como Efeito Borboleta, ou seja, os resultados finais dependem das condições iniciais da alimentação dos dados.

Ator – Aí apareceu uma mulher muito ma-quiada, com muito cabelo, muita joia, muita plástica. E ela dizia: “Esta é a chave do meu carro importado, e quem me deu esse carro foi Jesus!”. E um monte de gen-te aplaudia. E aí o cara apareceu de novo: “Agora pega o teu copo d’água abençoa-do, toma um gole, eleva teu pensamento a Jesus, que ele vai te abrir os caminhos”. Eu peguei a lata de cerveja e dei o últi-mo gole. E a porra da lata de cerveja tava quente.”

Narrador – É com essa equação que se expli-ca como o bater das asas de uma borboleta

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num lado do planeta pode provocar uma tempestade no outro lado da Terra em ques-tão de semanas. O efeito borboleta é a prova de que é impossível fazer uma previsão per-feita, porque para isso todos os dados deve-riam ser de precisão infinita, e a memória de processamento de dados também deveria ser infinita. Tudo teria que ser infinito.

Atriz – “Consultas com cartas, búzios e tarô. Você não precisa dizer nada, ela fala tudo. Por favor não me confunda com as outras, meu trabalho é diferente.” Eu ia jogar fora, quando eu li, bem pequenininho: “Não jo-gue este folheto em vias públicas”.

Narrador – No caos, esse papelzinho jogado na rua Augusta pode gerar o desmorona-mento de barracos em São Miguel Paulista, ou o caos no trânsito da Consolação, ou a inauguração de uma obra de saneamento básico em Santana. Ou então uma mulher pode encontrar esse papel na rua, ler, achar que a vida dela está uma bosta e se jogar da

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janela do sétimo andar, e um rapaz que es-tava passando lá embaixo vê essa cena, fica chocado e não percebe que o ònibus vinha descendo a rua, uma freada tão brusca que o ônibus vai parar no poste, congestionando todo o trânsito da Consolação, onde está o Antonio a bordo do seu Fiat Uno 94 prata, e atrás dele uma daquelas kombis amare-las dos Correios, que só para por conta do congestionamento, e é por isso que um ven-dedor ambulante consegue vender uma ca-pinha de celular. Ou simplesmente alguém pode pegar esse papel e pagar vinte reais pela consulta da dona Jacira. Problemas com vizinhos.

Sexto Movimento – Ainda

Ele – Para com isso! Cala essa boca!

Ela – Então me solta logo! Isso não é justo! Eu também não queria estar aqui, se você só está fazendo isso porque aquele merda do seu irmão te forçou, me solta pelo amor

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de Deus! Tem horas que eu penso que a melhor coisa é eu morrer! É isso que você quer, então me mata logo, me mata, vai!

Ele aponta a arma para a cabeça dela.

Ele – Eu mandei você calar essa boca!

Ela – Não faz isso! Por favor, não faz isso! Você não quer me matar, eu também não quero morrer! Por favor! Desculpa!

Ele abaixa a arma, está exausto. Ela também, exausta, no canto. Ele se senta, e começa a esmurrar o chão, histericamente.

Ele – Você não passa de uma puta escrota, eu estou arriscando a minha cabeça por sua causa! Você não consegue olhar nada que não seja o seu próprio umbigo! Eu tenho medo de sair na rua, dá pra entender? Po-dem me pegar a qualquer momento! Eu não queria isso, eu não queria te assaltar, eu nunca fiz isso, foi tudo ideia da Márcia!

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Ela – ... Mas, pelo amor de Deus, você perce-be que uma hora isso tem que acabar?

Ele – Vai acabar! Porra! Vai acabar logo, eu te prometo, vai acabar logo! É só eu achar a melhor saída que isso acaba logo, eu já tô com umas ideias…

Ela – Eu já disse que, se você quiser, eu te ajudo a pensar alguma coisa… Lelo, você quer o dinheiro, eu quero sair daqui, você pega o dinheiro e some, eu não te entrego, eu prometo, eu dou tempo de você fugir, seu irmão não vai te entregar...

Ele – Quer parar de falar no meu irmão?!

Ela – Ele foi preso, não foi?

Ele – Já disse pra não falar do Gordo!

Ela – Aproveita que ele não está aqui, me deixa ir embora, pelo amor de Deus, eu não te denuncio…

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Ele – O Gordo morreu, está contente? O Gordo morreu!

Silêncio.

Ela – E a menina, a Márcia?

Silêncio.

Ela – Eu não sei o que te dizer... eu sinto muito...

Ele dá um tapa na cara dela.

Ele – Aquele desgraçado acabou com a tua vida, fudeu com a minha, te colocou num buraco e você não sabe o que dizer? Ele te pega na porta da sua casa, te bate, rouba teu dinheiro e você não sabe o que dizer? Você devia estar feliz, porra! Feliz!... O Gordo morreu, você tinha que ficar feliz!...

Ela – Para, pelo amor de Deus, para!

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Ele dá outro tapa.

Ele – Eu olhei pra cara do Beto e atirei, olhei pra cara da Márcia e atirei, e nela eu atirei com gosto, o Beto, gordo filho da puta, con-tinuava olhando para mim, ele chorava, e eu atirei de novo, na cara dele, a Márcia ber-rava e eu atirava na barriga pra matar aque-la bosta daquele neném antes, o Beto não queria ter filhos, era a porra da Márcia que insistia, e eu gostei de matar a Márcia, eu gostei, na hora me deu uma puta sensação, muito louca, eu quase fiquei de pau duro, eu nem pensava e ia atirando, que nem fil-me, quando acabaram as balas eu fiquei ali pensando que bom que você não ia mais morrer, eu fiz bem, eu fiz o bem... eu nunca tinha pegado numa arma antes, o Beto tinha razão mesmo, achar que um dia eu pudesse ser alguém na vida, alguém achar que eu sou bom em alguma coisa, eu nunca quis ser outra coisa na vida senão um cara bom em qualquer merda! Eu não quero te matar, então para de se meter, cala essa boca!…

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Ele guarda a arma, senta no canto e chora.

Ela – ... Por que você fez isso, Lelo?

Ele – ... eu não queria que você morresse… isso ia desgraçar a minha vida...

Ela – O Gordo ia me matar.

Ele – E eu não queria... Mas você não quer saber disso, só quer voltar pro seu aparta-mentinho de merda, caguei para você e pro seu apartamento, eu devia ter deixado o Beto te matar…

Ela – Mas por que, Lelo?

Ele – Eu não queria que ele matasse nin-guém…

Ela – Por que, meu Deus, por que ele ia que-rer me matar, Lelo?

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Ele – Porra, porque seu pai já pagou o di-nheiro...

Ela – O quê?

Ele – ...a Márcia queria te matar porque você tinha visto a cara da gente, a Márcia tava grávida de cinco meses, eles ficaram com medo e queriam matar você, eu não queria...

Ela – Meu pai já pagou o resgate, Lelo?

Ele – ... eu não queria que você morresse, eu pedi, a Márcia me xingou, deu um tapa na minha cara, eu olhei pro Beto e ele não fez nada, abaixou a cabeça e começou a rir baixinho, ele também não queria, eu acho, mas aí ele começou a me bater, e eu perdi o controle…

Ela – Meu deus! Caralho...

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Ele – ... Agora o que é que eu vou fazer? Se eu for preso eles vão me matar na cadeia porque eu matei o meu irmão...

Ela – E por que você preferiu me deixar aqui trancada?

Ele – Seu pai saía todo dia no jornal, depois que ele pagou o resgate piorou, mas agora eles não falam quase nada. Eu não queria que eles te matassem, não era justo…

Pausa.

Ela – Porra, eu quero ir embora! Socorro!!!

Ele – Cala a boca! Cala a boca! Eu me meti nisso sem querer, eu vou ser preso por se-questrar você, por ter matado meu irmão, a Márcia, meu pai não pode saber que eu matei meu irmão...

Ela – Lelo, me deixa ir embora! Me dá essa chave!

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Ele – Você ia pensar que eu sou culpado, eu não sou culpado…

Ela – Abre essa porta! Me dá essa chave!

Ele pega a arma, estica o braço para entregar o revólver na mão dela.

Ele – Me mata.

Silêncio. Ela olha incrédula para ele.

Ele – Me mata, porra.

Ela olha atônita.

Ele – Você quer ir embora, não quer? Me mata. Depois pega a chave no meu bolso.

Ela – Que você quer com isso? Me dá logo essa chave!

Ele – Eu não vou para a cadeia, meu pai vai

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descobrir que fui eu quem matou o Gordo, eles vão me bater na cadeia, me mata...

Ela fica atônita, e não pega a arma.

Ele – Você não vai fazer isso, né... Você não teve coragem até agora de apertar esse gati-lho, nem vai ter...

Ela – Me dá logo essa merda de chave!

Ele – ... Vai preferir me entregar para a polí-cia, vai querer se vingar – eu me vingaria se estivesse no seu lugar, faria a mesma coisa. Mas você não ia ter coragem de ma-tar seu irmão se estivesse no meu lugar, e se eu pensasse como você, a esta hora você seria um presunto, e eu estaria com o dinheiro todo andando naquela bosta da-quele carro.

Ela – Se você quer morrer, mete a arma na boca e atira. Você não tem coragem nem

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de dar um fim na própria vida porque você é um covarde…

Ele – Eu não sou covarde! Eu matei o Gor-do, por que você acha que eu sou covarde se eu matei o Gordo? Eu estou te dando uma arma pra me matar e sair daqui, atira, porra!

Ela tenta tirar a chave do bolso dele, ele propo-sitadamente deixa a arma cair e a beija à força, até ela conseguir se afastar, com nojo. Enquan-to fala, ela pega a arma e aponta pra ele.

Ela – Seu porco! Nojento! Filho da puta! Você está louco? Acha que eu vou acreditar em você? Sua porra de marginalzinho de mer-da, você é um doente, você não se importa com a vida de ninguém porra nenhuma se-não eu estava na rua a esta hora! Eu quero você na cadeia! Você merece ir para a ca-deia, merece ser currado por um bando de marginais na cadeia! Eu não vou te matar! Eu ainda quero te ver sofrendo muito, mui-

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to! Filho da puta! Filho da puta! Seu mar-ginalzinho de merda! Seu preto de merda, seu preto filho da puta! Preto de merda!!!

Silêncio.

Ele – Ia ser mais fácil se eu fosse preto?

Ela – Eu não tenho que dar satisfações da minha vida pra você, porra! E eu não sou racista! Eu não sou racista!

Ele – Porra de voluntária do caralho...

Ela – Me dá essa chave!

Ele – E se eu dissesse que seu pai morreu?

Ela – Como é que é?

Ele – E se eu dissesse que seu pai morreu de enfarte quando a gente não entregou você?

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Ela – ... você está mentindo... meu pai mor-reu, Lelo? Ele morreu?

Ele – Toma a chave.

Ela pega a chave e a arma, receosa, vai até a porta, gira a chave na fechadura.

Ela – Meu pai morreu, Lelo?

Ele – Atira. Por favor, atira...

Ela aponta a arma para ele. Não atira. Abaixa a arma.

Ela – Vai embora. Eu te dou um dia pra ir su-mir daqui, pra sumir pra muito longe! Vai, some, sai daqui! Sai!

Ele hesita mas vai embora, correndo. Ela fecha a porta, tranca por dentro e olha para o público.

Narrador – No dia (falar a data daquele dia), a Juliana acordou cedo, tomou café preto

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sem açúcar, leu o jornal, ficou enojada com o caderno de política e resolveu ler o caderno de cultura.

Já o Paulo acordou mais tarde, entrou na inter-net, olhou as mensagens do orkut, respon-deu o único e-mail que valia a pena ser lido, porque o resto eram bobagens e fotos com vírus, e saiu de casa.

O Zé Roberto acordou às três da tarde, porque trabalhou na noite anterior até meia-noite, colocou o fone de ouvido, quase foi assalta-do, correu pra pegar o ônibus e chegou em sua casa à uma e meia da manhã, a tempo de acordar a mulher pra um beijinho e uma trepada, mas sem acordar os filhos no quar-to ao lado.

Uma amiga de Juliana queria fazer uma coisa diferente, e as duas resolveram ir ao teatro, ver uma peça que estava no guia de cultu-ra. O Paulo também resolveu ir ao teatro, porque ele gosta de ir ao teatro e os amigos acham que ele é meio viado por isso. Zé Ro-berto também foi ao teatro, mas para traba-lhar, porque parece fácil operar uma mesa

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de luz num espetáculo, mas não é. Daqui a pouco, quando estiverem saindo do teatro, Paulo e Juliana vão se encontrar na fila do banheiro, vão se olhar e puxar um papo, que impreterivelmente vai começar com um “gostou da peça?”. Depois disso, Paulo e Ju-liana vão tomar a primeira cerveja juntos, e nem vão prestar atenção em Zé Roberto, que vai passar correndo com seu fone de ouvido a tempo de pegar o último ônibus para casa. Vai passar por um monte de gente no ca-minho, vai ver como a paisagem da cidade muda conforme o ônibus chega perto de sua casa, vai ver as luzes apagadas, vai chegar de mansinho e dar um beijo na mulher, tudo em silêncio, pra não acordar as crianças.

Fim

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agradecimentos

Sem arte não se constrói um país. Sem parceiros dedicados, não se faz arte. Iniciar um trabalho em Teatro é sempre uma aventura cega. Quan-do a gente sai do palco e se senta na frente de uma tela branca, a cegueira é completa. Não fossem a colaboração e o talento dos amigos envolvidos, este texto nunca teria se materia-lizado. A Alex Gruli, Luciano Gatti, Melissa Vettore, minha gratidão eterna pela paixão e tesão da entrega. A Herbert Bianchi e Patrí-cia Pichamone, obrigado por aceitarem subir no carrossel em movimento. A Pedro Garrafa, Priscilla Carvalho e Tatiane Daud, um brinde ao nosso Coletivo Amigo. A Ed Julio, compa-

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nheiro nesta e em tantas outras empreitadas, que a Vida continue sorrindo pra gente. A Ivam Cabral, Rodolfo Garcia Vazquez e Isser Korik, obrigado pela confiança e pela acolhida.

Gostaria também de agradecer a Eduardo Chagas e Angela Barros, pelo carinho e talen-to que demonstraram em Depois da Chuva, no Dramamix de 2007.

Otávio Martins

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Coleção Primeiras Obras

1. Otávio Martins2. Gabriela Mellão3. Ivam Cabral4. Sérgio Roveri5. Vera de Sá6. Sergio Mello7. Rudifran Pompeu8. Marcos Damaceno9. Lucianno Maza10. Dramamix 2007

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(Biblioteca da Imprensa Oficial)

Martins, OtávioA turba; Depois da chuva; Últimas notícias de uma história só / Otávio Martins

[Organização de Ivam Cabral]. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 124 p. – (Coleção Primeiras Obras, 1)

isbn 978-85-7060-807-9Apoio: Grupo Satyros Literatura

Associação dos Artistas Amigos da Praça

1. Teatro – Brasil 2. Literatura – Teatro 3. Textos literários i. Martins, Otávio ii. Título iii. Série.

cdd 808.2

Índice para catálogo sistemático:1. Textos literários 808.2

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei n. 10.994, de 14.12.2004)Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia dos editoresDireitos reservados e protegidos (lei n. 9.610, de 19.02.1998)

Impresso no Brasil 2010

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca 1.921 Mooca03103-902 São Paulo sp Brasilsac 0800 0123 [email protected]@imprensaoficial.com.brwww.imprensaoficial.com.br

© Otávio Martins, 2009

Crédito Fotográfico: Heloísa Bortz

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formato 105 x 155 mm

tipologia Electra

papel miolo Chamois Fine Dunas 85 g/m2

papel capa Cartão Supremo 250 g/m2

número de páginas 124

tiragem 1500

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Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

diretor-presidente

Hubert Alquéres

diretor industrial

Teiji Tomioka

diretor financeiro

Clodoaldo Pelissioni

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revisão de texto

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projeto gráfico e diagramação

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Governo do Estado de São Paulo

governador

José Serra

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