133

OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

  • Upload
    others

  • View
    8

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA
Page 2: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA
Page 3: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

OTTO MARIA CARPEAUX

CAMINHOS PARAROMA

Aventura, queda e vitória do espírito

Tradução de Bruno Mori

Page 4: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

SUMÁRIO

CapaFolha de RostoDedicatóriaPrólogoApresentaçãoTreva do Tempo

1. Desarraigamento2. Partida

Os Enigmas do Universo1. O universo2. O átomo3. Origem4. A vida

A Descoberta da Alma1. Sentido e absurdo2. Abismos3. A luz nas trevas

A Grande IlusãoNota preliminar1. Dogma e tradição2. A vida de Jesus3. A grande ilusão

O Sol de Satã1. Um capítulo de História da Arte2. Nova aurora

Liberdade e Obediência1. Contradições da vida2. Três níveis

A Cidade nas Nuvens1. Tempos maus2. Os caminhos dos gentios

Page 5: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

3. EdificaçãoCréditosSobre o AutorSobre a Obra

Page 6: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Licença da Cúria ArquidiocesanaPode-se imprimir.Viena, 7 de abril de 1934, nº 4173/1.

Page 7: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Ao Reverendíssimo Conselheiro ConsistorialMonsenhor Jakob FriedEm Viena

Venerado Monsenhor,QUANDO TIVE A FORTUNA de vos conhecer, já estava concebido o plano para opresente livro. E, no entanto, sem esse encontro, não teria sido escrito nunca.

Somente a vós, venerado Monsenhor, a vosso reconforto de sacerdoteclemente e compreensivo, devo a coragem para este trabalho, além de umariqueza de incitamentos valiosos e benévola crítica.

A vós, venerado Monsenhor, deve este modesto trabalho todo valor queporventura tenha, e, sem vosso bondoso auxílio, é provável que não tivessenascido.

Assim, eu o escrevi, porém vós, venerado Monsenhor, o fizestes. De vós otomei, e, oferecendo-vos hoje este livro, grato vos restituo o que a vós vospertence.

Fico-vos, venerado Monsenhor, em gratidão.Vosso devoto,Dr. Otto Maria KarpfenViena, agosto de 1933.

Page 8: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

PRÓLOGO

A PROPÓSITO DE ILUMINAR as diversas correntes espirituais e religiosas, políticas eeconômicas do presente, empreende-se neste livro a tentativa de mostrar queelas, querendo ou não, demonstram uma tendência imanente que aponta auma só destinação. De preferência invocou-se o testemunho de autores não-católicos ou anticatólicos: os caminhos levam a Roma.

Page 9: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

APRESENTAÇÃO

NENHUM IMIGRANTE AUSTRÍACO exerceu mais influência sobre a vida intelectualbrasileira do que Otto Maria Carpeaux. Já em 1942, três anos depois dedesembarcar no país, dedicava o seu primeiro livro brasileiro, A cinza doPurgatório, aos seus primeiros amigos brasileiros, um círculo que incluíaManuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Carlos Drummond deAndrade, Augusto Frederico Schmidt, Graciliano Ramos, José Lins do Rego,Álvaro Lins, Brito Broca, Gilberto Freyre e Octávio Tarquínio de Sousa, paranão falar da estreita amizade que logo travara com Aurélio Buarque deHolanda. Cedo instruiu-se no português. O domínio da língua permitiu-lheescrever cinco outras coleções de ensaios críticos, uma História da Músicaocidental e uma História da Literatura alemã, além de obras menores e títulospóstumos. A História da Literatura Ocidental, sem dúvida a sua granderealização, reeditou-a o Senado Federal em 2008. Uma editora portuguesa acomercializa em diferentes formatos desde 2011.

Nem esse recente movimento editorial nem o atual público leitor dariamtestemunho de um interesse crescente pela obra e pela vida desse crítico ehistoriador se o primeiro volume dos seus Ensaios reunidos, lançado em1999, não formasse fortíssimo contraste com décadas de linguagem corruptae, antes de tudo, se não contivesse as sessenta páginas de uma densaintrodução biográfica da autoria de Olavo de Carvalho, quem me incumbiude traduzir os dois livros austríacos desse vienense nascido em 1900:Caminhos para Roma e Missão européia da Áustria.

Otto Karpfen, filho de pai judeu e de mãe católica, conclui seus estudos dequímica na Universidade de Viena em 1925, mas, propenso às humanidades,praticará o ofício de jornalista. Casa-se em 1930. Decide assinar-se, uma vezconvertido ao catolicismo em 1932, Otto Maria Karpfen. Deixa a Áustrialogo após a anexação à Alemanha, deixa a Bélgica pouco antes da invasão daPolônia. Conservador da herança cultural européia, traz também cartas derecomendação de eminentes católicos. Já em outubro escreve a AlceuAmoroso Lima, só que, exaurindo-se-lhe os meios, aceita, antes mesmo dereceber resposta, um emprego em certo cafezal no interior do Paraná: “Para o

Page 10: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

trabalho espiritual, estou perdido”. Na capital de São Paulo, vende os últimoslivros. Julga conveniente adaptar o sobrenome ao francófilo milieu e vem aestabelecer-se na cidade do Rio de Janeiro em 1941, onde passa a ganhar osustento como articulista de jornais e diretor de bibliotecas. Durante 1944 e1945, os anos subseqüentes às suas duas primeiras obras em português, atingea sua maior estatura com a redação dos volumes da História da LiteraturaOcidental. Dissipa-se, pouco a pouco, a concentração de espírito. Emboratenha escrito em favor da deposição de João Goulart, acaba tomando opartido dos esquerdistas e oferece à causa deles os seus últimos e mais rasosartigos, até morrer a morte miserável de um “homem sem religião” em 1978.O temor de confessar abertamente a fé perante uma corporação materialistade tolos responde pelo visível declínio de um homem que aqui chegaradisposto a “prestar serviços úteis à causa católica, à qual devotei a vida”. Asua vida, no entanto, não me cabe referi-la extensamente agora.

O primeiro dos seus livros, impresso com a licença oficial da Arquidiocesede Viena em 1934, comprova-lhe, desde logo, a catolicidade: Caminhos paraRoma, firme profissão de fé e apaixonada peça de apologética, começa comuma compacta descrição da crise contemporânea e continua-se por outros seiscapítulos reservados respectivamente à física, à psicologia, à teologia, àestética, à ética e à política, caminhos que didaticamente deixam atrás airreverente impostura intelectual de ateus, agnósticos e gnósticos de todasorte e conduzem afinal, cela va sans dire, à Igreja Católica. É uma confiantecontribuição ao apostolado leigo dos instantes finais da Primeira República.

Não tanto porque um intuito retórico pareça prevalecer quanto porque sereconhece nesse recém-nascido ex hydatos kai pneumatos a presença de umaverdade que o leva a assentir e a asseverar a universalidade católica, não serevela, ainda, o virtuose que nos ensaios e nas histórias se deleitará com sutisvariações do sentido das mesmas palavras e das mesmas frases em momentosdiferentes de uma confrontação dialética, “fazendo-as ecoar em váriasoitavas, explorando a ambigüidade, a inversão da ambigüidade e aambigüidade da inversão, transfigurando a defesa em ataque e o ataque emjustificação do adversário”. Já se mostra, porém, na renúncia do autor, o sinalda grandeza e o mistério da cruz.

Bruno MoriCuritiba, 30 de julho de 2014.

Page 11: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

TREVA DO TEMPO

1. DesarraigamentoLife […] is a taleTold by an idiot, full of sound and fury,Signifying nothing.Macbeth, V, 5

A NOSSA ALMA VACILA entre a ilusão de um seu poder ilimitado e o sentimento deprofundíssima impotência. Vangloriamo-nos por civilizar continentes, porcobrir mares com a velocidade do pensamento, por perfurar montanhas, porsobrevoar as nuvens. Sentimo-nos, ao mesmo tempo, impotentes, escravosdas máquinas e organizações, infelizes no trabalho. Nunca subimos tão alto.E nunca descemos tão fundo.

De onde vem, no entanto, sentirmos irresistível poder? Somos muitos!Vivemos na era da existência de massa.[ 1 ] Tudo o que é e que há de

permanecer existindo tem de servir às massas. Tem de ser massivo,uniformizado, mesquinho como as massas. Tudo é massivo, os povos e osexércitos, as messes e as catástrofes elementais. Solenidade, somente se reúnecentenas de milhares; terremoto, somente se engole centenas de milhares. Ohomem é apenas um número, e os números regem o mundo. Tudo é recorde.Esta cidade tem o arranha-céu mais alto, aquele país os mais grossos canhões,aquele rincão os mais antigos habitantes da Terra. Quem não conseguemanter nem mesmo um único recorde tem pelo menos as mais altas cifras demortalidade.

A massa quer e requer comida, roupa, emprego, diversão. Para tanto nãobastam as forças da natureza. Daí ser preciso organizar, tornar técnico,racionalizar. Surge o aparato. O aparato, a que estamos todos sujeitos, oMoloch, que dia e noite devora carne humana e ainda brilha nas coresmágicas dos anúncios luminosos.

O aparato deseja que o sirvam. Para o serviço, não precisa de homensgeniais, de homens bons. Melhor o serve a mediocridade capaz; não é precisotalento, mas destreza para conseguir um posto proveitoso no aparato.Diligência mediana e decência mediana já são coisa extraordinária. Para quemais? Afinal, não somos todos senão engrenagens nessa máquina gigantesca,

Page 12: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

nesse rolo compressor, nesse aparato que não nos serve, que nós aliásservimos, que autônomo se fez, que sem compaixão nos pisoteia para fora enos deixa como inválidos à beira da estrada da vida? É assim que o aparatocultiva em nossa alma o sentimento de impotência.

Tudo serve ao rolo compressor. O aparato já não nos alimenta, antes nós éque devemos dar-lhe de comer, cuidar que não passe fome nem fique parado,fazer-lhe a propaganda. A publicidade sendo-lhe alegria de viver, quem nãofaz publicidade é a ele sacrificado.

Vivemos para a massa, vivemos para o aparato. Mas será vida digna de servivida? Não perdemos, com cada minuto que a ele se oferece, sessentasegundos que não retornam jamais? Vale a pena essa vida?

Uma angústia existencial cortante convulsiona juntos os corações. Mas nãosubsiste, porque o aparato não nos deixa tempo. Inexoravelmente separandotrabalho e prazer, ele nos parte a vida, com absoluto rigor, em trabalho semalegria e prazer sem alegria. De alegria no trabalho, na época da divisão dotrabalho em cadeia, há muito já não se fala. Como nos dias originais doGênesis, percebe-se o trabalho como maldição de Deus. Não gera senãoprodutos em série, e todos nós somos homens normalizados em série. Doberço ao sepulcro, tudo está organizado e burocratizado. O médico éfuncionário da seguridade social, a morte o é da agência funerária. Do berçoao sepulcro, tudo está uniformizado. Os homens de todos os povos e regiõesvão ficando cada vez mais semelhantes uns aos outros. As mulheres vestem ouniforme da última moda, os homens o uniforme do último consenso. EmSão Francisco e em Moscou traja-se ao mesmo tempo o mesmo chapéu depalha e canta-se a mesma canção de sucesso. É inútil protestar aí: jamais sefez revolução contra a moda. Com tentáculos de pólipo sabem o cinema e orádio prender a todos, quer queiram quer não. Tudo deve ser “leve”:transforma-se em leitura de viagem a literatura e em barraca de diversões oteatro. O que não é “leve” a morte leva embora: deposita-se a arte emcâmaras mortuárias de ótima ordenação histórica, os museus.

O que resta de liberdade compete ao esporte devorar. Uma corrida de longadistância no domingo despovoa uma cidade inteira, uma partida internacionalno feriado arranca os últimos ao lar, para à noite arrastá-los – é aclaustrofobia – a cinemas e salas de concerto. Lar? Onde subsiste isso? Casae família estão em completa dissolução. Matrimônios contraem-se não noscéus, e sim como experimento. Homens e mulheres espumejam injúrias naguerra dos sexos. Pais e filhos enfrentam-se na guerra das gerações, os filhos

Page 13: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

não hesitando em lhes quebrar o crânio aos pais. Velhice não é honra;desempregados de quarenta anos vêem-se obrigados a usar tintura emaquilagem na busca de uma colocação. Juventude não é alegria, mas umtrunfo que prevalece a tudo.

Se a juventude é em si mesma um valor, então para que é ainda necessáriaa educação? A educação tornou-se um problema a ocupar congressos quandojá não se educava a ninguém. O diabo, que segundo Shakespeare sabe citarem benefício próprio as Sagradas Escrituras, torceu a fórmula evangélica “Senão vos tornardes como criancinhas” no satânico “Tornai-vos pueris!”. Avida inteira tornou-se primitiva. A ditadura da juventude forma tudo à suaimagem e semelhança. A literatura esplende no romance de aventuras; a arte“simplifica-se” até chegar ao dadaísmo do rabisco em pranchas; o cinemarepele todo problema que exceda o horizonte dos qüinquagenários; aeconomia retrocede à economia natural dos primeiros tempos. Quanto maioro recuo, aos negros, à Idade da Pedra, tanto melhor. É só a Antigüidade e asua proporção harmônica que desagrada lembrar. O conhecimento lingüístico“vivo” dos agentes de espionagem e porteiros de hotel substitui o estudo daslínguas “mortas”. Decaem os estudos humanísticos. Herdeiros de todas asépocas, lançamos fora a nossa herança. Nascemos “no seio da nossacivilização como símios na selva primeva”, acreditando que tudo deva serdessa maneira e desatendendo que os conhecimentos e as ciências quecriaram a lâmpada de incandescência e o motor a gasolina podem tambémperder-se outra vez. Desdenha-se a cultura, consideram-se os clássicos comoobtusidade reservada a professores de ginásio. Degenerou-se a cultura emdiscussão estéril, onde todos os valores se desgastam em palavras.Transformou-se a cultura na ocupação de boêmios e esnobes, queacompanhavam todas as modas do mercado intelectual, que trocavam decosmovisões como de camisas, que ao chão lançavam arte, moral e religião,para pasto da psicologia e da psiquiatria. A ciência, virando especialização deestreita vista, atividade maquinal de batalhões de professores universitários,terminou em fórmulas universais inanes, que nada dizem, que ninguémentende. Supersticiosamente acreditou-se capaz de milagres a ciência,incredulamente desconfiou-se dela em tudo, porém a um só desses casos aexperiência deu razão.

O porta-voz dessa cultura foi o jornalismo. A vida que ele espelhava eraverdadeiramente uma comédia para quem pensava e uma tragédia para quemsentia. Informava, com minúcia, sobre os andamentos no ministério do

Page 14: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

imperador do Japão e no mercado de bovinos, sobre as segundas núpcias dadiva do cinema e sobre o décimo oitavo amorio do homicida seqüencial demulheres. À verdadeira vida, contudo, era cego e surdo. Dependente da vorazcuriosidade da massa e dos vorazes desejos do capital, ele escondia o gordonegócio de plantar anúncios detrás do rouco clamor das manchetes quemanavam inesgotavelmente do estrépito das suas máquinas rotativas. Emface desse jornalismo, nada se desejou com mais ardor do que a inércia dostacanhos e o mutismo dos cabeças-duras. Mas em vão.

Os intelectuais, na medida em que isso ainda exista, rendem-se juntosprisioneiros, para não ir juntos à forca. Têm prontas, para cada insensatez,para cada violência, as suas ideologias próprias. Traem também o espírito,entregando-o à massa e ao aparato. Porque não entendem mais o mundo,perdoam-lhe tudo. Pregam uma humanidade suicida, que tudo permite, ouuma sublevação homicida, que tudo destrói. Não se confia mais em nenhumaautoridade, não se reconhece – já não havendo firmes decisões – nenhumcompromisso. Tudo receia a responsabilidade. Redigem-se constituiçõescomo Penélope tecia os panos. O povo, perante o Estado, está na situação deviúvas que pouparam dinheiro inflacionário. A vida pública inteira é umgigantesco cemitério, toda morada o sepulcro de uma família, cada casa osepulcro de uma fortuna, a bolsa o sepulcro da economia, o jornalismo osepulcro da verdade, o tribunal o sepulcro da justiça. E no coração trazemostodos a tumba da esperança.

Que se havia de fazer? Mandaram ao diabo a política e deixaram-no reinar.Ou nomearam-se a si mesmos para o Estado. Erigiram-se autoridadesilegítimas por toda parte. As coisas impenetráveis e complicadas queninguém sabia dominar, quiseram vencê-las pela violência. Avançaram combaionetas e em coro contra estagnações das vendas e baixas das bolsas,propensos a conceber a vida como um brincar de soldado; falaram derevolução permanente ou de mobilização permanente;[ 2 ] em niilismoheróico em favor da comunidade, a quem não tinham interrogado, saltaramno abismo negro no qual conhecem o nada. Reconhecemo-nos nesse quadro,jovens amigos?

Autoridade não havia mais; a isso chamamos “crise”. Com Logau, o velhopoeta alemão, poderíamos dizer:

Foi Cristo, com o seu primeiro advento,Ao reino do diabo nos buscar.Tardando em cá descer neste momento,Tudo outra vez o diabo há de tomar.

Page 15: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Estamos em crise, quer dizer, estamos sem fé. Começou na Reforma, coma autocracia do indivíduo, o caminho funesto que, através do racionalismo,iluminismo, liberalismo, imperialismo, bolchevismo, conduz ainda ao horrordo aniquilamento.[ 3 ] Já não acreditávamos em nada e, enfim, tampouco emnós mesmos. Mas é impossível viver sem fé. Viver, aliás, já é um ato de fé.Por isso, preferimos morrer; crescem em progressão geométrica as cifras desuicídio. Um sentimento difuso de culpa por essa evolução toda nos oprime.De onde? Para onde?

Se Deus é o amor, a força, a verdade e o caminho, semeamos ódio em vezde amor, disseminamos impotência em vez de força, somos filhos da mentiraem vez de crianças da verdade e não vemos caminho diante de nós. Nãotemos mais o amor, a força, a verdade e o caminho; não temos Deus. Nós Oabandonamos; e assim abandonou-nos Ele.

Page 16: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. PartidaA presente época quer tomar à força tudo o que não lhe cabe; mesmo a fé.

O temor do declínio deste mundo pretende ver poderes que sejam mais fortesdo que o mundo, poderes que imperem como autoridades sobre nós, poderesa que os homens possam orar. Estes, já que não conseguem tocar, contar emedir as coisas do outro mundo – só o que consigam tem valor –, voltam-separa as coisas deste mundo e emprestam-lhes falsos acentos de religiosidade.Erigem ídolos. Pretendem criar mitos, como se mitos – arquétipos religiososda humanidade – pudessem ser artificialmente produzidos na retorta! Deideologias decompostas revestem “mitos” e de joelhos se põem diante desseídolo, de modo que aqueles que não querem mais o Papa, que se tornamvítimas dos pequenos papas, que não reconhecem o primado romano, fazemprimados para si!

Juram pelo primado do Estado onipotente ou da técnica onipotente ou daeconomia onipotente, e no entanto têm de assistir enfim a como, após fartar-se da nossa alma, colapsam miseravelmente esses ídolos todos.

Enfim, essa pobreza de alma sempre se refugia outra vez numa idolatria docorpo e dos seus instintos de bicho, na sacralização da carne.

Assim esquecemos a alma, e, porque a perdemos, tomamos Deus pormorto. Como poderia mesmo agir com vida, aliás, numa alma cuja harmoniatraímos desgraçadamente e destruímos?

A época e todos nós com ela padecemos profundamente de umaperturbação psíquica de equilíbrio que turva o nosso olhar. Não sabemosmais distinguir entre verdadeiros e falsos profetas, e, já que o pensamento(professores universitários o atestam) falha,[ 4 ] a época se atira de cabeça ao“milagre”.

Milagres estão ao nosso dispor. Na superstição tola de alguma ciênciacrepuscular secreta, deixamos que médiuns ocultos e obscuros em tendasescuras nos apresentem truques que qualquer prestidigitador faz melhor. Nadesconfiança tola da ciência, investimos nos empreendimentos de Tausend, ofabricante de ouro, as nossas divisas boas. Mil reformadores mundanosaguardam de ritos cotidianos a redenção definitiva: vegetarianos,crudivoristas, homeopatas, mestres de técnicas de respiração, artífices de todotipo de reforma, além daquela singular seita americana que interdita oincômodo de morrermos, mas felizmente não o evita.

Chega até às novas religiões a ilusão: para os mundanos, aquele indiano

Page 17: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

agradavelmente exótico que em acampamentos teosóficos faz prédicas parajovens damas, Krishnamurti, é o salvador renascido; para os menos elegantes,eis o profeta berlinense Weißenberg, que se considera o Paráclito e curaquaisquer enfermidades com aplicação de queijo branco, duzentos ecinqüenta mil asseclas construindo-lhe uma igreja; e, recentemente, atémesmo professores universitários se comprazem no papel de fundadores dereligião.

Em verdade, “os nossos dias estão escuros demais para não prometeremnovo sol”.

***Uma onda religiosa corre o mundo. O indivíduo e a comunidade

reconheceram que viver e conviver são impossíveis sem positivas convicçõesde fé, como só a religião é capaz de oferecê-las. O Estado e a políticarecordam-se de fundamentos religiosos; a economia aspira a alcançarcompromissos morais de antigamente. Mesmo as ciências até agora tãoalheias à religião tornam a reconhecer a força vital indestrutível da posturareligiosa, e chegaremos a ouvir que os resultados da pesquisa científicamoderna já não são obstáculos, e sim suportes à fé. Mas ainda domina oterritório a ciência ateísta do século XIX, infundida em milhões de cabeças porum dilúvio de livros e brochuras populares. Para o seu livre-pensamento,insulso, insipiente até, a doutrina da Igreja não é senão um gabinete decuriosidades medievais. Gabinete de curiosidades é o que são o livre-pensamento e a ciência popular, que mantêm longe da verdade e compelem aabsurdas mitologias novas os homens do nosso tempo.[ 5 ]

Onde os novos mitos se encontram com o anseio religioso da época,pululam do solo como cogumelos as seitas que requentam todos os desacertosgnósticos dos antigos heréticos.[ 6 ]

Aqueles que interiormente não se ligam mais ao cristianismo tentamrenovar religiões antigas. Desenterra-se um paganismo de há muitodesaparecido. Surgem mosteiros budistas no centro da moderna Europa. Eobtêm triunfo após triunfo, enfim, as irreligiosas lojas dos francos-maçons.

Certamente são muitos também os que estão buscando de coração honestoo caminho de volta ao cristianismo. Freqüentam-se mais intensamente ostemplos de todas as igrejas, cresce o interesse pelo ensinamento religioso,acham numerosos amigos o movimento litúrgico e o aprofundamentomístico. Já não são nada raro os despertares para a fé.

Page 18: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Ainda são só indivíduos que, da grande massa dos apóstatas e perdidos,encontram o caminho de volta para casa. Ainda é uma soberba contumaz querecusa a dirigente e amorosa mão da mãe Igreja. Mas a Igreja pode esperar.Ela sabe que, acima de todas as convulsões febris deste mundo, inamovívelpermanece a cruz. Stat crux dum volvitur orbis.

***A cruz está de pé. Ave crux, spes unica! Mas como encontraremos o

caminho até ela? É escura a noite, é molesto o percurso.No entanto, auroras há que ainda resplandecerão. Devemos só ter a

coragem de partir do desarraigamento da nossa alma, de fazer o caminho devolta, de volta à Igreja, à Mãe, para nela estarmos protegidos mais uma vez,para estarmos protegidos sempre, como as crianças estão!

E cumpre-se a palavra evangélica: “Se não vos tornardes comocriancinhas”. Quando o sábio poeta cético Anatole France, para quem todareligião e toda cultura dos povos e das épocas eram fino jogo irônico e paraquem a sua própria mãe, descansando sob a terra havia meio século, era ummontículo de ossos e de lodo, quando esse sábio cético de oitenta anos jaziano leito de morte, arrebatou-se-lhe aos batimentos evanescentes uminesperado e sonoro clamor: “Mãe!”. Tratemos de encontrar a tempo ocaminho para a mãe Igreja. Tenhamos em vista as palavras consoladoras dePascal sobre o mistério de Jesus: “Não me buscarias, se já não tivesses meencontrado”. O caminho então nos será leve. Pois, vamos aonde formos,estaremos indo sempre para casa.

1 Ninguém desconhecerá, neste retrato do nosso tempo, a influência de Karl Jaspers e de José Ortega y Gasset.2 A referência é, de um lado, a Trotski e, de outro, a Ernst Jünger, este figurando aqui como ideólogo de toda umageração.3 Também Wilhelm Dilthey, decerto testemunha nada parcial, foi da opinião de que a destruição da vida intelectualmoderna tomara como ponto de partida a Reforma (cf. também Hugo Ball, Die Folgen der Reformation, München,Duncker & Humblot, 1924).4 A frase pede um esclarecimento. Ainda há poucos anos, positivistas, de um lado, e neokantianos, de outro, defendiamo território da filosofia. O positivismo começara com uma excelente moderação do conhecimento, mas o seuagnosticismo transformou-se, ato contínuo, numa tomada de posição hostil a toda metafísica. Nisso observava osditames das ciências da natureza, cuja autoridade exigia circunscrição ao sensível, exclusão do espiritual. Quando,porém, compelida pelas investigações da Escola de Baden (Windelband, Rickert), a ciência natural teve de abdicar dosditames sobre as ciências do espírito, colapsou também o positivismo. O fim, com a Escola de Viena (Carnap), é arenúncia a toda filosofia. Os acontecimentos decisivos, no entanto, foram o desmascaramento do niilismo e apostulação de tábuas de valores por Nietzsche, e, depois, desde o aparecimento da escola de Brentano e a redescobertade Bolzano, a corrente antikantiana. Husserl elaborou na sua fenomenologia um novo conceito de verdade. Mas comoacesso à evidência não lhe restou senão unicamente o método intuicionista da “intuição eidética”, que entre os diiminorum gentium degenera demasiado facilmente em arbítrio. Reconheçamos com gratidão, porém, que afenomenologia reabriu o caminho para certezas metafísicas. É esse o caminho que Martin Heidegger tomou. Rejeitaresolutamente a abstrata teoria do conhecimento que desde Kant intimidara o ânimo cognoscitivo da humanidade.

Page 19: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Resulta imediatamente a concretíssima verdade de que, enquanto criatura, o homem está jogado existência e morteadentro, à mercê da preocupação e da angústia, até que finalmente fuja para a anônima existência de massa da chamada“gente” e que nessa impropriedade se esqueça de si mesmo. Dessa comunidade que torna tudo comum é preciso que ohomem se separe, confessando como um débito a sua própria impropriedade a fim de reaver a existência verdadeira.Confessar! Mas a quem? Perante quem? Certamente não perante Deus! É por isso que Karl Jaspers acentua com tantaveemência que a filosofia é uma objeção à religião. Na sua opinião, ensimesmamento interessa, mas não diante deDeus. No volume destinado à sua “clarificação da existência”, que melhor se chamaria obscuração da existência,professa o reconhecimento da impossibilidade de conhecer. O pensamento se consuma na impossibilidade dopensamento, da qual somente uma salvação existe: a comunidade. De volta à “gente”! Ao cego existir de uma alma semjanelas. É dessa maneira que os catedráticos de filosofia nos atestam que a filosofia já não é capaz de pensar. Háfelizmente uma saída desse impasse desconsolador. Hoje a filosofia está mais uma vez de partida para a metafísica.Kant é reconhecido como um perigoso ponto de inflexão do pensamento europeu. Celebra-se Bolzano como anti-Kant.Nesse contexto, é digno de nota que tanto Bolzano quanto Franz Brentano tenham saído do seminário católico (se bemque o último tenha se tornado herético), ambos portanto nutridos do espírito da escolástica, a qual se mostra um podersalvador em face da crítica niilista do conhecimento. Mesmo da ontologia de Heidegger não há mais do que um passopara a escolástica. Também o realismo crítico de um Külpe encontra-se com o realismo crítico dos escolásticos. Jáatribui Duhem a predecessores escolásticos a mecânica galilaica, já se reconhece nos indivisíveis de Tomás o germe docálculo infinitesimal. Desde Georg Cantor a teoria dos números está no caminho de volta a um realismo platônico. Équase como se alguns filósofos modernos só estivessem separados de S. Tomás de Aquino por simplesdesconhecimento de S. Tomás. O saber de muitos filósofos de hoje sobre a escolástica não transcende o conhecimentoque tem de Aristóteles aquele médico da comédia de Molière: “Aristote, là-dessus, dit […] de fort belles choses”.5 Seria demasiado longo aduzir aqui todas as tentativas modernas de construção de mitos. Refutá-las em detalherequereria um livro próprio. Registre-se apenas Ludwig Klages, que, curiosamente, apela a Goethe ao estigmatizar oespírito como adversário da alma, tentando com isso virar de cabeça para baixo toda a história intelectual do Ocidente.É natural que, por essa postura, Klages seja também um enérgico opositor do cristianismo. Cobiça voltar às mães, àpré-histórica comunhão ctônica com o cosmos e a Mãe Terra. Essa doutrina, que deriva de Bachofen, é perfeitamenteconsistente com os começos de uma filosofia da vida que acima do espiritual colocará o vital. Aqui é Nietzsche omestre e Bergson o propugnador. É o paganismo aparentemente antigo de homens profundamente decadentes, tentativade iludir-se quanto à própria questionabilidade biológica com ditirambos ao bios. O que há de filosoficamente decisivosobre e contra essa filosofia da moda encontra-se em Heinrich Rickert, Die Philosophie des Lebens, 2. Aufl., Tübingen,Mohr, 1922.6 Também teria pouco sentido especificar aqui as inumeráveis seitas modernas. Mencionem-se talvez a ChristianScience, que nega a existência do mundo corporal; o bahaísmo, que pretende fazer de um islam reformado a religiãouniversal; o masdeísmo, cujo culto consiste em exercícios respiratórios e cozinha vegetariana etc.

Page 20: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

OS ENIGMAS DO UNIVERSO

TODOS SABEM QUE PADECEMOS sob uma crise da economia e da vida pública.Muitos sabem que pesa sobre nós, não menos gravemente, a crise dasciências, da vida intelectual em geral.

Assim como o homem, tomado no mais elevado sentido, não pode searruinar senão por falta de religião, assim toda crise é também crise de fé. Atal crise chegou hoje à Ciência. Nela não se crê, nem ela crê mais em si. Oconflito entre crer e saber renovou-se em outro nível.

Esse conflito não é fatalidade da natureza. À fé nem sempre se deu que aciência lhe disputasse o território ou mesmo lhe negasse a existência. ParaPitágoras, temido pelos nossos meninos como fundador da geometria, a suaprópria ciência era a sagrada ciência da harmonia das esferas. Platão,grandíssima anima naturaliter christiana, colocou sobre as portas da suaescola acadêmica, com razão, os dizeres: Medeis ageometretos eisito (“Quenão entre aqui nenhum dos que ignoram a geometria”).

Da harmonia entre religião e ciência não há exemplo mais belo do quejustamente a época heróica das modernas ciências naturais, aquele século XVII

que lançou os fundamentos da cosmovisão científico-natural. Os grandesnaturalistas de então, um Kepler, Descartes, Pascal, Leibniz, Newton,buscavam todos no fundamento universal a razão do seu pensamentosubjetivo, isto é, em Deus. Viam, detrás das figuras geométricas de círculo etriângulo, a misteriosa figura do Todo-Poderoso, viam todas as coisas emDeus: Tout en Dieu! [ 7 ]

A época heróica se foi. Começou a luta dos espíritos menores contra Deus.Como se não bastasse ser acentuadamente ateísta, a ciência natural do séculoXIX propagou nas amplas massas o ateísmo, sob o pretexto de popularizar osseus próprios resultados. A ciência popular teve más conseqüências.Transformou-se em ciência vulgar; o homem comum acreditou tudo saber etudo entender; da mesma maneira como, no protestantismo, todo membro dacomunidade é sacerdote de si próprio, cada leitor de jornal tornou-se, naciência vulgar, o seu próprio professor. Acreditaram que todos os enigmas douniverso estavam resolvidos. Afinal, é o que lhes havia anunciado Ernst

Page 21: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Haeckel, professor em Jena, em seu livro Os Enigmas do Universo.Houve uma só força, no século XIX, a fazer face a semelhante arrogância e

semelhante superficialidade: a Igreja Católica. Em 1864, combatendoheroicamente, publicou o Papa Pio IX o seu célebre Syllabus Errorum, ondedeclarava guerra inexorável a essa ciência sem Deus e explicava serimpossível ao papa conciliar-se com as concepções materialistas. Artigo deluxo dos livres-pensadores durante décadas, o Syllabus parecia apresentar aprova concludente de que a Igreja Católica fosse inimiga de morte doprogresso científico. Hoje não se ouve mais nada sobre o Syllabus. Poisprovou ter razão. Contudo, não condenou jamais o progresso científico, masapenas que fosse tendenciosamente interpretado e entortado em favor dospropósitos do ateísmo.

O Syllabus provou ter razão. Harmonizou com ele a ciência naturalmoderna. Mecanicismo e darwinismo são autoridades derrubadas. Jenaresistiu à ciência dos seus próprios professores, os enigmas do universo estãosem solução mais uma vez. Surge uma nova ciência natural, que reconhece econfessa os próprios limites.[ 8 ] Volta a valer a velha máxima do filósofoinglês: “Philosophia leviter gustata a Deo abducit, bene hausta ad Deumreducit”.[ 9 ]

Faltam a essa nova ciência, infelizmente, tanto popularidade quantovulgarização. Ela não facilita as coisas para o leigo. Além disso, justamentepor acomodarem-se às nossas concepções religiosas, as novas teoriasinduzem facilmente à crença de que nelas trata-se de verdades eternas, o quesem dúvida está incorreto. Não temos outras verdades eternas que não as darevelação. À ciência que afirma com tanto orgulho não ter dito ainda a suaúltima palavra, deve-se um dia dizer que na verdade não terá essa últimapalavra e que melhor seria, talvez, nem sequer ter dito a primeira. Também asteorias físicas e biológicas ficam sujeitas à moda.[ 10 ] Mas as teoriasmodernas têm a vantagem de fixar limites energicamente à presunção deonisciência do naturalista. São limites úteis. Por isso impõe-se a tentativa dedescrever o indescritível.

Page 22: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

1. O universoEnsinaram-nos a todos nós na escola a imagem de mundo do mecanicismo.

O mundo parecia tão simples e translúcido que a mente infantil era capaz deintuir-lhe o sentido e a finalidade. O universo inteiro estava construído tãoengenhosamente como um relógio, com mil rodas e rodinhas engrenadas queem regularidade inconcebível recorriam dia a dia o circular caminho,infelizmente sem objetivo nem sentido: um relógio sem relojoeiro, umrelógio que não dava as horas, que nunca andava errado e que no entanto nãobatia a ninguém as horas da vida.

Era altamente enigmático, na verdade, aquele mundo que se intuíra porinteiro. Em que consistia o grande maquinismo do universo? Em matéria eenergia. Em massas de matéria morta, movidas de cá para lá, sem propósito,por forças inimagináveis; o universo era como um campo de futebol ondeuma bola sem vida era chutada de um lado para o outro por jogadoresespectrais perante espectadores que não chegavam nunca a saber o resultadodo jogo.

Aparentemente tão perfeita, a explicação mecanicista do mundo tinhacontudo um grande buraco: a gravitação. Gravitação é a força que mantémunidos e separados tanto os corpos do céu quanto os grãos de pó. A força dagravidade atua entre os corpos celestes, separados uns dos outros pordistâncias inimagináveis, com uma velocidade que em muito supera a dorelâmpago: atua instantânea, simultaneamente. É de todo impossível imaginarsemelhante ação de uma força. E em que meio atua essa força, se éperfeitamente vazio o espaço cósmico? Como os naturalistas não quisessemreconhecer senão processos mecânicos, como pressão e colisão, foramobrigados a supor que o espaço vazio não fosse, pois, vazio de todo. Entre oscorpos celestes encontrar-se-ia qualquer coisa de inimaginável, o éter, quenão se via, que não possuía peso e que no entanto se assemelhava de algummodo às ondas numa superfície d’água; uma tal onda no inimaginável éterera a força da gravidade. Nesse éter espectral pervagava a demoníaca força dagravidade; e os professores ficaram satisfeitos.[ 11 ]

Aí vieram coisas à luz por causa das quais os professores se sentiramnecessitados a imaginar o éter com um pouco mais de exatidão, se bem quemuito a contragosto. No éter move-se em ondas inclusive a luz. As ondas deluz são ondas transversais. Não é preciso explicar aqui o que sejam ondastransversais, bastando saber que não existem senão em corpos sólidos. O éter

Page 23: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

tinha de ser portanto um corpo sólido, um corpo sólido que, nota bene, não sevê, não opõe resistência e não pesa nada. O éter ficava cada vez maisestranho. Até que um dia um professor americano, Michelson, quis forçá-lo atodo custo a revelar-se. Se em seu caminho ao redor do Sol a Terra se moveatravés do éter e se o éter é algo assim como um corpo sólido, então o éterdeve opor incondicionalmente certa resistência que seria de notar domovimento da Terra. Sem dúvida, a constatação dessa resistência aomovimento da Terra é, até certo ponto, difícil. Pois nenhum professor podeordenar ao globo terrestre que se coloque à disposição dos seus experimentos.Pode ordená-lo, porém, à luz. Medindo-se a velocidade de um raio de luz,primeiro na direção do movimento da Terra e depois na direção perpendicularàquela, deve então resultar uma diferença que não é outra senão a resistênciado éter. Mas não havia diferença. O experimento de Michelson repetiu-sevárias vezes e deu resposta negativa em todas: a velocidade da luz é a mesmaem todas as direções. O éter soubera esconder-se inclusive do professorMichelson.

Aí o professor holandês Lorentz teve uma idéia feliz: a culpa é dos nossospadrões de medida. É que os padrões com que medimos sobre a Terrapercorrem com ela o mesmo caminho contra o éter. O éter, opondo-lhesresistência, os comprime um pouquinho. Eles ficam um pouquinho maiscurtos. A fita métrica, pois, tem o hábito maldito dos diabos de semprealongar-se ou encurtar-se tanto quanto o deseje o éter a fim de permanecerinvisível e imperceptível. Nós mesmos, aliás, não podemos nunca perceber adiferença tampouco, porque os nossos braços, os nossos dedos e até mesmo anossa íris são igualmente corpos extensos, movidos contra o éter e sujeitos àmesma contração de Lorentz. Assim, é uma teoria que não saberemos jamaisse está correta, mas que em compensação justifica o éter, que nos permaneceinexplicável como sempre.

Naturalmente, há também professores imodestos que não se dão porsatisfeitos com explicações inverificáveis de inexplicáveis coisas. Um dessesé Albert Einstein.

O leitor, temia eu, vai assustar-se com esse nome. Ah, compreendo, pensaele, vão me explicar pela enésima vez a teoria da relatividade, que aindanunca entendi e que tampouco agora entenderei.

Felizmente, apenas alguns pontos importantes interessam, os quaisfacilitaremos o quanto possível para nós.

Lorentz mostrara pela primeira vez que os nossos padrões de medida talvez

Page 24: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

não fossem imutáveis. Era idéia audaz, pois na imutabilidade dos padrões demedida repousa toda a segurança da nossa explicação da natureza. Se nãotivéssemos a garantia de que um ente que tinha na terça-feira à noite ummetro de comprimento terá na quarta-feira de manhã um metro de novo, setivéssemos de temer que entrementes o demônio do éter tenha erodido ouestroçado dali um pedacinho e que na quinta-feira talvez faça a travessurainversa, então poderíamos aposentar a nossa ciência natural inteira.Decididamente, assim não funciona. Os padrões têm de ser imutáveis. Masquem nos diz que um metro ou minuto na Terra seja tão longo quanto ummetro ou minuto em Sirius? Pode-se supor que os nossos padrões einstrumentos científicos sejam tão imutáveis como os de Sirius. Mas talveznão seja igual por toda parte aquilo que com esses padrões se mede: o espaçoe o tempo! Era a idéia de Einstein. Ele substituiu a contração dos padrões demedida por uma contração do espaço e do tempo, transformando-os dessemodo em grandezas relativas.

Assim, espaço e tempo são talvez tão relativos como infelizmente o nossodinheiro. As nossas moedas trazem o cunho de um xelim. Mas todos teremostido a experiência de que um xelim possui valor bem diferente em Viena, emPraga, em Zurique etc. Lamentável, inclusive a experiência de que, num só emesmo lugar, um xelim não tinha em 1924 o valor que tem em 1933. Assimnos acontece também com o espaço e o tempo. De certo modo, “espaço etempo” é a moeda do universo e está sujeita a flutuações. Cada observador,onde quer que esteja no espaço universal, tem a sua própria moeda, a suaprópria estrutura do espaço-tempo. Cada estrutura, por assim dizer, trazigualmente o cunho de um xelim, mas o xelim não vale a mesma coisa portoda parte. Cada estrutura do espaço-tempo, por si mesma, tem razão,nenhum de nós podendo decidir qual delas está mais correta ou menos.

É esse o ovo de Colombo. Agora a força da gravidade não é mais umdemônio inexplicável atuando à distância, pois é de todo indiferente eimpossível decidir se é a força de gravidade que a certa velocidade afasta doobservador o corpo celeste ou se é o observador que à mesma velocidade sedistancia do corpo celeste. Finalmente estamos livres do éter misterioso, jánão precisamos dessa construção auxiliar. Se uma força, por exemplo a dagravidade, parece propagar-se, isso então significa – para permanecermos namesma imagem – que em alguma bolsa o valor da moeda flutua na mesmamedida, isto é, que em algum ponto a estrutura do espaço-tempo se encurva eque percebemos o encurvamento.[ 12 ] É impossível imaginá-lo, não é?

Page 25: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Contudo, basta estarem corretas as fórmulas matemáticas, as quais no entantoé claro que ninguém entende senão o professor Einstein. Corretas estão.Ouçamos agora as conclusões.

A teoria da relatividade sugere antes de tudo a idéia de que essas coisasimponderáveis chamadas forças são qualquer coisa de material. Afinal, terámassa a energia?

A energia, que na velha física era um demônio espectralmente invisível,realmente possui massa. Planck soube mostrar que as formas de energiacomo a luz, a eletricidade etc. desintegram-se em corpúsculos parecidos comátomos, quanta de eletricidade ou elétrons, quanta de luz ou fótons, todos osquais possuem massa. Contudo, a natureza nos prega uma peça curiosa.Podemos iluminar de luz a um circo e a um átomo minúsculo. Porém, osquanta de luz atuam apenas um após o outro. O quantum de luz, pois, ora étão grande que consegue encher um circo inteiro, ora é tão pequeno quepenetra o átomo. A luz é um mago. Ela faz literalmente o que quiser. Paracom átomos, comporta-se como se consistisse em pequenos corpúsculos,partículas, penetrando-os e causando-lhes destruições. Através de cristais, poroutro lado, a luz passa inócua como onda. Ninguém sabe predizer quando secomportará desta ou daquela maneira. A luz, disse muito bem um inglês, nãodeve chamar-se nem partícula nem onda, mas “ondícula”. Se pretendemosmanter a sanidade do nosso intelecto, as duas têm de ser uma só e mesmacoisa. Há, portanto, matéria, que na verdade é uma onda, e ondas, que naverdade são matéria. A distinção entre matéria e energia desaparece. Nomundo físico não há senão pacotes de energia.

Pode-se objetar outra vez que é impossível imaginar isso tudo. Mas a físicamoderna ficou modesta. Contenta-se com fórmulas matemáticas aplicáveis erenuncia à plasticidade. Cabe a nós outros tirar as importantíssimasconclusões.

Assim, não há matéria apreensível na ciência moderna. A nova imagem domundo é dinâmica. Conhece apenas forças ativas. A matéria é um processono mundo. Por isso os nossos naturalistas deixaram de ser materialistas.Como poderiam sê-lo, se não há matéria? O materialismo, esse inimigo demorte de toda religião e de toda concepção superior da vida, está liquidado.Se o leitor ouvir ainda outro médico ou naturalista afirmar-se materialista,então calmamente o faça entender que perdeu a hora de acordar e que nãoestá mais no cume da ciência. Materialistas, no verdadeiro sentido da palavra,são só aqueles pobres de espírito a lutar contra o materialismo, os espíritas,

Page 26: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

que não sabem imaginar a alma senão inteiramente materializada.Outra conseqüência importante. Kant ensinara que o tempo e o espaço

teriam validade absoluta por estarem contidos na organização do nossoentendimento, o que mais no mundo existisse não sendo, de certo modo,senão criação do nosso próprio entendimento. Isso conduziu os filósofos aoidealismo gnoseológico: o mundo é só uma aparência enganosa, real sendosomente o nosso eu. A relatividade do tempo e do espaço põe fim a essaaparição universal. Todos os esforços para conciliar Kant e Einsteinfrustraram-se. Os filósofos, lá dos seus gnoseológicos castelos das nuvensregressando ao mundo, a realidade do qual reconhecem outra vez, convertem-se penitentes ao realismo dos escolásticos. Tomás de Aquino, doutor daIgreja, volta a ser doutor do mundo.[ 13 ]

O tempo, o tempo relativo, não é nada de absoluto, mas simplesmente umapropriedade do nosso mundo. O mundo não é eterno, portanto, e sim criado.A teoria da relatividade fornece uma prova da criação.

E como é com o espaço? Os sistemas ptolemaico e copernicano do mundosão ambos estruturas espaciais igualmente legítimas. Física ematematicamente, não faz diferença transferir para a Terra ou para o Sol oponto zero do sistema de coordenadas. Ninguém pode dizer a sério se quemse move é a Terra em torno do Sol ou o Sol em torno da Terra.[ 14 ] EstivesseGalileu hoje perante um tribunal inquisitorial de naturalistas modernos, oprocesso não teria final diferente do que perante a inquisição eclesiástica deentão. A nenhuma astronomia será lícito ainda afirmar-se obrigada a enxergarnuma inquisição um seu inimigo de morte, mas antes, ao contrário, umguarda alerta contra hipóteses precipitadas.

Tanto a finitude quanto a infinitude do mundo são inimagináveis para oentendimento humano. Não podemos imaginar que em algum lugar o espaçotenha fim e que não exista mais nada depois, mais nenhum espaço. Nãopodemos tampouco imaginar que o mundo seja infinito, porque empensamento temos de fixar limites em algum lugar. A teoria da relatividade émais uma vez o ovo de Colombo. O espaço, como propriedade do mundo, éinfinito e ilimitado, talvez da mesma maneira como uma linha circunferencialou uma superfície esférica, que são mui decididamente finitas e em que noentanto se pode circular sem limites, sem jamais achar fim. O existente écomo uma concha flutuando no infinito do inexistente. O universo é uma ilhano todo, e o holandês De Sitter soube calcular com bastante exatidão o raiodesse universo. Sem dúvida, é em certa medida um raio grande esse aí, cerca

Page 27: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

de um bilhão e duzentos milhões de anos-luz, o que novamente é impossívelimaginar. Mas já é uma grandeza finita. Além daí não é mais mundo terrestre.Podemos denominá-lo tranqüilamente Céu.

Tem-se ainda a recordação daqueles materialistas de outrora queexclamavam triunfantes: “Não existe Céu, só existe um mundo infinito; aciência moderna deixara sem lar o bom Deus”.

É de outra opinião a ciência verdadeiramente moderna. O seu mundo finitorepousa em algo maior, algo infinito. Daí conservarem surpreendente verdadefísica imorredouros versos de Goethe:

A Deus pertence o Oriente!A Deus pertence o Ocidente!E ao Sul e ao Norte os Seus terrenosRepousam-Lhe entre as mãos serenas.

Page 28: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. O átomoO mal da ciência moderna é a ilusão de ser capaz de saber tudo. Ela

contaminou, como com um perigoso bacilo, inclusive os leigos. Quem de boafé lê jornais e brochuras está convicto de que a ciência sabe tudo e de que osseus progressos vindouros se estenderão indefinidamente. Se onipotente é atécnica, onisciente é a ciência natural. Deus e religião devem mesmo ficar,segundo essa concepção, junto com as velharias da casa.

É essa, ainda agora, a opinião do homem comum. Até pouquíssimo tempoatrás, era também a cosmovisão dos professores universitários. A ciêncianatural vê no universo um espaço vazio ilimitado, preenchido com pontos demassa, os átomos, que nele se movem com diversas velocidades. Se fossepossível – e não se veja razão por que não venha a sê-lo um dia –, se fossepossível, pois, estabelecer onde se encontra e com que velocidade está semovendo em determinado momento cada um dos pontos de massa do mundo,então a partir desses dados se poderia calcular, para cada momento do futuropróximo ou longínquo, onde é que no universo se encontrarão os átomos.Pois tudo no universo se passa conforme a grande lei que rege o mundo, a leida causalidade, a lei de causa e efeito. Se essa lei vigora a todo momento epor toda parte, o que não é de duvidar, então a partir da posição e davelocidade de todos os pontos de massa se pode enunciar uma “fórmulauniversal” que de antemão calcule todos os acontecimentos do mundo. Ofísico francês Laplace observou, já faz mais de um século, que um espíritoem posse dessa fórmula seria onisciente como Deus. Durante o século inteiroos professores estiveram convictos de que, em seu progresso ilimitado, aciência natural ao fim e ao cabo a encontraria. Ah, se não fosse a imprecisãodos aparelhos de medida… Mas isto, na verdade, não poderia impedi-los dese aproximar sem limites da onisciente fórmula universal.

Essas convicções sofreram nos últimos anos um abalo de que nunca maisse restabelecerão.

Antes de tudo, reconheceu-se que o átomo não é o último e menor corpoque conhecemos. Ao contrário, os átomos mesmos consistem num núcleopequeníssimo em torno do qual orbitam com grande velocidade em trajetóriasrigorosamente determinadas vários corpúsculos ainda menores, os elétrons.Apenas mencione-se de passagem que os elétrons podem saltar de uma aoutra dessas órbitas ou mesmo saltar simplesmente para fora do átomo. Taissaltos, ditos quânticos, nos aparecem como radiação, decaimento radioativo,

Page 29: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

processos químicos etc.[ 15 ]Mudou fundamentalmente a imagem que fazemos do átomo. Substituiu-se

a uma bola de bilhar um sistema solar minúsculo. Não há de negar que essarepresentação exige qualquer coisa de monstruoso da nossa inteligência. Essesistema atômico inteiro ocupa um espaço de frações de milimícron (ummilésimo de um milésimo de um milímetro), onde no entanto os elétronsorbitam com velocidades de centenas de quilômetros por segundo. Ainda estápor nascer o intelecto que seja capaz de imaginá-lo ou, mais francamente, deacreditar nisso a sério. Esses fatos, porém, nos são assegurados muito a sériopor professores que declaram, com um dar de ombros condolente, aimpossibilidade de acreditarem ainda em milagres. Em todo caso,comportam-se na vida prática como se tampouco acreditassem nas suaspróprias formulações. Um físico inglês do nosso tempo fornece umadescrição divertida dos processos físicos que se dão quando vai transpor olimiar do quarto. Esse professor, que consiste num tecido de muitos milhõesde células, cada uma das quais consistente num enxame de muitos milhões deátomos que se mantêm todos unidos de maneira extremamente frouxa eenigmática, esse professor assim constituído movimenta-se, juntamente coma Terra, a uma velocidade de milhares de quilômetros por segundo em tornodo Sol, juntamente com o sistema solar inteiro, a uma velocidade de milharesde quilômetros por segundo em direção a um ponto desconhecido douniverso. Não obstante as circunstâncias um tanto dificultosas, empreende atentativa de atingir a soleira da porta, uma tábua a zunir pelo éter, sabe Deusà velocidade de quantos milhares de quilômetros por segundo, sem serpropriamente tábua nenhuma, e sim um enxame de muitos milhões deátomos, em cada um dos quais orbitam, zunindo com velocidadeinconcebível, os elétrons, que a rigor não são propriamente matéria nenhuma,e sim pacotes de ondas. Meçam-se as conseqüências de um passo em falso! Écerto que, acreditando realmente no que se acaba de expor, o professor nãoousará jamais ultrapassar o limiar do quarto, e sim terá de permanecerperpetuamente do lado de fora, onde dificilmente serão menores os perigos àespreita. Quem acredita nisso tudo? É uma ironia do destino que exijam denós semelhante crença em milagres justamente os mesmos que não acreditamem milagres. É compreensível que o físico inglês fale do caráter místico dafísica moderna, preferindo sobretudo interditá-la aos leigos com a placa deadvertência: “Cuidado! Fechado para reformas!”.

Mas a coisa tem outras conseqüências, recém-descobertas pelo físico

Page 30: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

alemão Heisenberg e que muito irritam os nervos aos pesquisadores.Conhecendo a posição e a velocidade de todos os pontos de massa ou, emterminologia moderna, de todos os prótons e elétrons, poderemos calcular,segundo a lei da causalidade, a célebre fórmula universal. Será verdade?

Se desejo observar os elétrons para estabelecer-lhes a posição e avelocidade, devo iluminá-los. Quer dizer, devo fazer incidir luz sobre eles. Aluz, como sabemos, consiste em pequenos corpúsculos, os fótons. Se umfóton colide contra um elétron, é natural que com isso se altere a velocidadedo elétron. Logo, se desejo determinar essa velocidade com a maior exatidãopossível, devo escolher uma espécie de luz que possua energia na menorquantidade possível, a luz vermelha. Ora, todos os fotógrafos sabem que a luzvermelha dá imagens altamente borradas; daí trabalharem com luz vermelhana câmara escura. Por esse método, então, não posso nunca determinarrigorosamente a posição do elétron. Se, com esse propósito, desejo imagensnítidas, devo escolher uma luz com o menor comprimento de onda possível, aluz violeta. Infelizmente, é muito grande a quantidade de energia da luzvioleta, de modo que, por esse método, mais uma vez não posso determinar avelocidade dos elétrons. É um estado de coisas catastrófico. Do elétron,portanto, independentemente da precisão dos meus instrumentos de medida,sempre posso com rigor determinar ora a posição ora a velocidade, jamaisuma e outra ao mesmo tempo. Isso tem por conseqüência que – pela primeiravez na história da física – os físicos não estão em condições de calcular deantemão, a partir de dados presentes, o futuro.[ 16 ]

E já nos assaltam novas conclusões, confirmando-nos no reconhecimentodesse desagradável resultado. O rádio se desintegra emitindo radiação, isto é,a radiação consiste em partículas serem arremessadas para fora do rádio.Quais partículas, porém? Suponhamos que dez dessas partículas estejamtodas bem ordenadas diante de nós e que observamos como as partículas 4, 7e 9 são arremessadas para fora. Se as leis da natureza vigorarem de fato,então novamente serão, da próxima vez, as partículas 4, 7 e 9. Mas eis que aspartículas se comportam como gente volúvel. Nessa próxima vez, tranqüilaspermanecem as partículas 4, 7 e 9, enquanto saltam para fora as partículas 1,5 ou 8. Por quê? Ninguém sabe dizer. E como será da próxima vez? Ninguémsabe predizer. Enquanto estas linhas vêm sendo escritas, uma lâmpadaelétrica ilumina o papel. Se, com todo o contingente de instrumentoscientíficos de medida, acompanharmos o que ficam fazendo os quanta de luzno filamento incandescente, presenciaremos o mesmo espetáculo. Esses

Page 31: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

pequeníssimos corpúsculos não fazem caso de lei nenhuma e não seguemsenão o seu próprio capricho. Nessas dimensões atômicas, já não se podeaplicar a lei da causalidade, ou melhor: já não podemos nós aplicá-la. Causasexistem sem ter efeitos reconhecíveis, efeitos se tornam visíveis sem teremcausa reconhecível. Não há senão regularidade estatística, já não existemrigorosas leis.

Pela estatística ficamos sabendo que todo ano ocorrem particularmentemuitos suicídios em maio. A isso chamamos onda estatisticamente registradade suicídios. É claro que nenhum enfastiado da vida ficará adiando a suamorte voluntária até maio, só para propiciar alegria aos estatísticos. Ele semata, isto sim, quando quer, sendo em maio particularmente muitos mesmoaqueles que o querem. Não agem de outro modo os átomos e elétrons. Nãopodemos levantar senão estatisticamente a maneira como fazem escolha apósescolha entre as possibilidades de cada situação.[ 17 ]

A lei da causalidade parece vacilar. Efeitos sem causas coordenadasreconhecíveis, bem, isso são efeitos sobrenaturais ou milagres. A física,presentemente, não sabe portanto distinguir direito entre processos naturais emilagres, o que não quer dizer de modo algum que a lei da causalidade tenhadeixado de valer. A lei da causalidade é um axioma filosófico cuja vigênciaabsoluta não treme nem dos mais hábeis experimentos, nem das maisprofundas formulações matemáticas. A presente situação da física, contudo, ébastante indicada para exortar os naturalistas a ter cautela e para dissuadi-losde pretender que a lei da causalidade vigore em domínios que ficam afastadosdos seus métodos de observação. É justamente essa a ditadura que a físicatentou exercer no século XIX.

A moralidade e a vida moral repousam em que a vontade humana é livre ecapaz de optar entre o mal e o bem. O livre arbítrio, em que devempermanecer inamovíveis a moral e a religião, é um fato da nossaautoconsciência. Cada um de nós sabe-se capaz de livremente decidir-se.

Os naturalistas no século XIX, porém, quiseram nos persuadir de que o livrearbítrio fosse apenas falaz aparência e de que a vontade humana fosse emrealidade dominada por motivos dos quais na maioria das vezes nãoprestamos contas. É o que se chama determinismo. Seria de esperar que todossoubessem o quanto está disseminada e que perigosas conseqüências tem essaconcepção. Com efeito, os nossos tribunais agora julgam muitas vezessegundo a concepção determinista e, se não penetram senão os motivos,absolvem os criminosos. Sim, cada um de nós já vem julgando

Page 32: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

deterministicamente o seu semelhante e, em consideração aos motivos,dificilmente levando-lhe os delitos a mal, exceto na eventualidade de estaremvoltados contra nós. O determinismo está prestes a desmoralizar, a solaparmoralmente, toda a nossa vida pública e privada, e, em última análise, aimpossibilitar, dando carta branca ao mal, uma convivência ordenada doshomens.

Ora, como chegaram os físicos a querer ditar-nos doutrina tão perigosa ezombeteira de todo costume e de toda religião? Tinham boas razões paratanto. Estavam convictos de que a lei de causa e efeito exercia fortíssimodomínio em todo o reino da natureza. Conceder que em meio do mundonatural da necessidade houvesse um âmbito em que se tomam livremente asdecisões, isto é, a alma humana, ter-lhes-ia estragado os planos. Não teriamnunca tido a segurança de que a vontade humana, em sua liberdade não-causal, não intervém nos processos naturais causais, de repente, nem põe emdesordem a regularidade laboriosamente esquadrinhada da natureza. Por issotiveram de dizer: a necessidade causal que vigora na natureza é válidainclusive para a vontade humana. Assim tornaram-se deterministas eimpuseram a nós outros seu determinismo.

Hoje estará um tanto diferente a situação. A lei da causalidade mostra-seinaplicável para largos trechos da explicação da natureza, quase como se atéos átomos e elétrons tivessem livre arbítrio, o que é naturalmente umabsurdo. Hoje, em todo caso, já nenhum físico pode ter a ousadia de quererditar-nos o determinismo. Ao contrário. A física, até agora a mais enérgicaadversária da doutrina do livre arbítrio, será doravante o seu fulcro.[ 18 ]

Em face desse estado de coisas, indiferente nos é assustarem-se os físicoscom outras conseqüências. Já que o livre arbítrio humano existe, nada podemfazer valer contra a vontade divina e a intervenção dela na natureza senãocerta aversão inculcada, jamais argumentos científicos. Também a isso afísica terá de habituar-se e arruinar-se-á tão pouco pela possibilidade domilagre quanto pelas descobertas de Heisenberg.

Se aos físicos se vão dissolvendo pouco a pouco em regularidadesestatísticas as rigorosas leis causais, isso é menos um argumento contra a leida causalidade do que contra o deísmo, ao qual se aferraram, já não sendofiéis, mas não se atrevendo ainda a ser ateus, os naturalistas do século XVIII:Deus, certa vez, criou o mundo e todas as suas leis, e, sem preocupaçõesulteriores, deixou o maquinismo a funcionar regularmente desde então. Essaconcepção profundamente irreligiosa, esse reconhecer Deus sem levar a sério

Page 33: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

o governo divino do mundo, agora já não se pode sustentar. Se os físicostolerarem a pílula estatística das leis da natureza, terão de engolir também afé em Deus; pois só uma vontade divina é capaz de manter unido esse mundoestatístico, essa constante escolha entre possibilidades. Assim se volta doateísmo, através do deísmo, à verdadeira fé em Deus levada a sério.

A maioria ainda protesta. Uma concessão ao bom Deus, porém, devem osfísicos fazer desde já. Durante cem anos desde Laplace, acreditaram noprogresso ilimitado da ciência e na onisciência dela, sonhando futuros temposfelizes, já que estariam em posse da fórmula universal. Agora, têm de admitirque ao progresso científico impõem-se limites fatalmente necessários e quenos é eternamente inalcançável a fórmula universal. Só fazem com issoconfirmar o que um tanto antes já sabiam os teólogos: a fórmula universalnão é dada ao homem. Onipotente e onisciente é somente o Senhor Deus.

Page 34: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

3. OrigemÉ provável que nenhuma teoria científica moderna tenha causado dano tão

grave à vida religiosa e moral quanto o darwinismo. Sem dúvida, o autor dateoria não está inocente disso. Darwin, como igualmente o seu precursorLamarck, foi homem piedoso e temente a Deus. Mas o lado bom do seucaráter não nos deve impedir de examinar-lhe criticamente a teoria. Ou antes:encarregaram-se desse esforço os biólogos modernos, em virtude dos quaisnão ficou praticamente pedra sobre pedra do soberbo edifício darwinista.

E que é que ensinava o darwinismo? As raças e espécies de plantas e deanimais não são nada de constante, mas estão antes em evolução contínua.Perseveram, no curso dos séculos, a evoluir cada vez mais para formas cadavez superiores. Essa contínua evolução se dá porque os seres vivos estãonuma selvagem luta pela existência, sempre saindo vencedor o mais forte emelhor equipado, o qual então – seleção do mais apto – se reproduz porseleção sexual instintiva. No lamarckismo acrescenta-se a contínua adaptaçãofuncional ao ambiente. Eis como se passa a gradual evolução, somente osaptos sobrevivendo.

Certamente, isso não é tudo. O darwinismo foi construído com muitaprecisão e sabia apresentar muitos argumentos bons. Quase não há ser vivoque no corpo não tenha órgãos que em estágios evolutivos anteriores forammuito úteis, mas que agora não têm função. Tais órgãos rudimentares, comoo apêndice vermiforme, a teoria da evolução explica-os com primor.

Além disso, dos restos de tempos pré-históricos podem-se elaborar, comefeito, certas árvores genealógicas para seres vivos em evolução, e osdarwinistas nutriram a esperança de encontrá-las, com o tempo, para todos osseres vivos e para todos os seus órgãos.

A natureza inteira está constituída de maneira tão maravilhosamentepropositada que parece mostrar quase palpavelmente a operosidade de umCriador; se, contudo, não se pode mais acreditar em Deus, muito agradável setorna então a possibilidade de reduzir a teleologia da natureza à sobrevivênciado mais apto e à seleção sexual de sentido instintivo.

Mas o darwinismo tem aspectos pelo menos tão suspeitos quanto odeterminismo os tem. É que, no fundo, ensina que o mais forte sempre temrazão e, assim fazendo, franqueia as portas à má vontade. Com efeito,acharam-se até eruditos, indignos do nome, que justificavam com odarwinismo a pobreza, a miséria e as doenças, alertando contra perturbar-se a

Page 35: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

útil luta pela existência com medidas de higiene, socorro aos pobres e assimpor diante. Não pesava sobre eles, contudo, nenhuma dúvida moral, pois jáhaviam expulsado da criação o revelador da lei moral, o Deus Criador.

Porém, o mais duvidoso de tudo: os darwinistas não pararam perante ohomem. Da corporatura deduziram que também o homem descende deanimais, e particularmente do macaco, e esperavam confiantes encontrar, emalguns estratos pré-históricos, os elos perdidos entre o macaco antropóide e ohomem, isto é, os pitecantropos. É que o homem, sendo o mais altamenteevoluído dos seres, teria de ser necessariamente um dado bastante novo. Ésupérfluo demonstrar que a teoria do pitecantropo, sob o aspecto moral ereligioso, é um soco na cara da dignidade humana. Ou antes, perverte a morale a religião.

O darwinismo foi uma utilíssima hipótese de trabalho que conduziu amuitas descobertas valiosas. Foi isso. Agora está morto, o que no entanto nãoquer dizer que a teoria da evolução também o esteja. Que as espéciesevoluam continua a ser um teorema supremo da biologia e é provável queassim permaneça. Mas teoria da evolução e darwinismo não são a mesmacoisa. O inimigo já não destila peçonha.

Em primeiro lugar, não conseguiram achar mais do que umas poucaslinhas de descendência. Onde o conseguiram, por exemplo, na evolução docasco eqüino a partir de uma pata de mais dedos, a coisa não se verifica naevolução da dentição. E assim se pegou pelo pé a mais esse cavalo de paradadarwinista. Pior, de fato, é que a coisa não se verifique na seleção tampouco.Sabemos hoje que a transformação das espécies ocorre por pequenasvariações que não são influenciadas nem pela luta pela existência nem pelaseleção sexual. Sim, a teoria dessas pequenas mudanças, ditas mutações, éprópria para botar fora o darwinismo todo. Pois as mutações não provêm deinfluências ou necessidades externas, mas de predisposições latentes nosgermes, chamadas genes, um resultado pressentido já por Lamarck.

Pela observação das mutações atinge-se gravemente mais outro objeto deexibição darwinista, o fenômeno do mimetismo: um animal assume a formaou as propriedades de outro ser vivo para se proteger das perseguições dosinimigos. Assim, por exemplo, uma borboleta assume enganosamente a cor eo desenho de uma folha a fim de escapar às perseguições das aves etc..Esplendoroso exemplo para a teleologia da seleção! No princípio, explicamos darwinistas, a pobre borboleta era devorada, naturalmente, toda vez; aí unsexemplares começaram a assemelhar-se a folhas e assim escaparam do

Page 36: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

aniquilamento; apenas tais exemplares sobreviveram; e a cor da folha foievoluindo e evoluindo por endocruzamento até ficar pronto, afinal, omimetismo. Maravilhoso! Porém, a evolução para o mimetismo começaracom pequenas modificações isoladas, que a nenhuma ave logravam enganar.As aves, sem dúvida, devoravam inclusive os exemplares variantes. E aindaque tivessem tido a amabilidade de poupá-los, o fato é que, entre os animais,que não são, como se sabe, ingleses orgulhosos da própria raça, impera aespantosa aleatoriedade da miscigenação. As características recém-adquiridaslogo estariam perdidas na hibridação geral. Através da seleção, fatorsecundário da evolução, não surgem novas espécies, e sim fracionam-se emnovas variedades as espécies existentes.

O verdadeiro vencedor do darwinismo foi um monge agostiniano morávio,o Pe. Gregor Mendel. Zeloso aficionado das flores, o Pe. Mendel cultivava –por volta de 1860, na época em que saíam à luz as publicações de Darwin –todo gênero de espécies raras no jardim do claustro. Ele registrava as suasexperiências, mas ninguém dentre os célebres professores se interessou pelosresultados dos cultivos de um pobre monge que, após a morte, viria a sercompletamente esquecido. Só foram redescobri-lo em nossa época. Omendelismo, desde então tornando-se uma disciplina biológica particular degrande alcance e importância, domina a ciência da hereditariedade.

Ora, qual é a doutrina e o sentido do mendelismo? Tomemos comoexemplo aquele em que o Pe. Mendel realizou as primeiras experiências. Amaravilha (Mirabilis jalapa) floresce branca ou vermelha. Cruzando-se osdois tipos, surge uma segunda geração de híbridas, que florescem rosa.Reproduzindo-se estas por endocruzamento, entra em vigor a lei dasegregação de Mendel: dois quartos das descendentes florescem rosa, umquarto brancas e um quarto vermelhas. A hibridação segregou-se outra vezpela metade e regressou às características cromáticas dos avós (atavismo). Osatavismos continuam a reproduzir-se puros, enquanto os netos que florescemrosa voltam a segregar-se na descendência deles na proporção de dois quartospara um quarto para um quarto. Daí se segue que os genes – aspredisposições germinais para cada uma das características – são imutáveis.A seleção só é possível com características prontas portanto, novascaracterísticas não podendo ser produzidas por elas. À produção depropriedades novas substitui-se uma combinatória variada de propriedadespresentes. Uma escalada evolutiva hereditária é impossível com a validadegeral das leis mendelianas.

Page 37: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Mas não seriam hereditárias as propriedades que um ser vivo adquire nocurso da existência? É claro que isso deixaria uma porta aberta aodarwinismo e a besteira toda voltaria. O experimento, porém, mostrou que aspropriedades supostamente adquiridas que se transmitem como herança estãosujeitas às leis mendelianas. Logo, não se trata de propriedades adquiridas,mas do reaparecimento de características inobservadas dos antepassados.

O mendelismo desenvolveu-se muito em nossa época, e o pesquisadordinamarquês Johannsen descobriu que cada espécie é na verdade um conceitocoletivo que consiste em linhagens puras, que se reproduzem puras e emformas híbridas, onde atavismos se revelam. Com isso o darwinismo nãoapenas estava refutado, mas também tinha perdido, com a dissolução doconceito de espécie, o sentido.

Mas resta o ponto decisivo – “da quel punto depende il cielo e tutta lanatura” – a descendência do homem. Eis, em resumo, alguns fatos lado alado: o mui procurado pitecantropo não se pôde encontrar, a dentição doshomens não tem parentesco com a dos macacos, e, enfim, o homem é muitomais velho, geologicamente, do que se quis acreditar. Conforme achadosrecentes, o homem sobe até ao Terciário, tem uma idade de pelo menosquinhentos mil anos e poderia ser mais velho do que o animal de que Darwinpretendeu fazê-lo descender.[ 19 ]

Com isso, a imagem e semelhança do macaco tornou-se pelo menos a novapossibilidade de uma imagem e semelhança de Deus. Dizer mais a esserespeito ainda é decerto difícil. Consideráveis, porém, são as hipóteses dobiólogo Edgar Dacqué, de Munique, segundo as quais o homem é tão velhocomo a natureza inteira e é provável que em cada época, com o caráter daforma animal dominante, só tivesse mudado de corporeidade. O homem nãoestá no fim das épocas geológicas, mas nas origens da criação; sendo o maisperfeito de todos os seres, é o arquétipo de toda a vida. É característico queaté mesmo a exposição de Dacqué vá desembocar enfim no religioso.[ 20 ]Pois toda ciência tem o seu ideal. O ideal do século XIX era o Adão deformadoe degenerado em qualquer coisa de animalesco. Nós outros, no século XX,regressaremos a uma outra imagem ideal da humanidade: o Cristo.

Page 38: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

4. A vidaQuem tenha um dia visto um morto não negará a diferença entre a morte e

a vida. O corpo, inalterado, consiste nos mesmos órgãos e componentes, e noentanto… não funciona mais. Está morto, infelizmente. Seria de supor queessa distinção fosse clara para qualquer intelecto humano. Para o intelectooitocentista não o era. Os professores não achavam nada em toda a naturezainanimada senão processos físicos e químicos. Daí tiraram a conclusão deque também a vida consistisse unicamente em processos físico-químicos.Não faziam distinção entre os processos e seres mortos e os vivos. Écertamente uma estranha obstinação. Alguma razão terão tido para tanto. Eraque os pesquisadores, não sabendo explicar a origem da vida, preferiramnegá-la de todo.

A Antigüidade e a Idade Média haviam acreditado na geração espontânea.Pensavam que da matéria morta pudessem por si mesmos surgir seres vivos, etomavam como exemplo o fato de que rãs, percevejos e outros insetos seoriginassem do lodo. Hoje estamos bem longe dessas opiniões ridículas, poissabemos que tudo o que é vivo surgiu do que é vivo. Mas como é que seoriginou o que é vivo?[ 21 ] Como não o vemos surgir na natureza em partealguma, deve então… ter sido criado. Justamente para esquivar-se asemelhante conclusão, a ciência natural preferiu negar a vida. Facilitou ascoisas para si própria. Ao perguntar-lhe Napoleão por que é que Deus nãofigurava em sua Mecânica Celeste, o grande físico Laplace respondeu não ternecessidade dessa hipótese. Teria razão?

Um dos poucos a desmenti-lo no século XIX foi o seu grande conterrâneoLouis Pasteur, ave rara entre os naturalistas, por ser católico fiel e atéorgulhoso da sua fé de camponês bretão. Pasteur travou uma das maisgloriosas batalhas pelo vitalismo; perdeu-a; e no entanto é hoje o vencedor.

Tratava-se do problema da fermentação. A fermentação, através da qual doaçúcar, por exemplo, se produz álcool, foi durante muito tempo um processoenigmático, embora reconhecido como um processo químico que ocorria pelamediação da levedura. E o que é a levedura? Ao microscópio, a levedurademonstra consistir em seres vivos, em minúsculos fungos ditos glóbulos delevedura. Supunha-se necessário à fermentação certo composto químico quedesses glóbulos se isolava. Pasteur refutou decisivamente essa opinião,mostrando que não há fermentação estéril, quer dizer, que a fermentação sóocorre se estiverem presentes os glóbulos vivos de levedura, paralisando-se,

Page 39: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

portanto, após a degradação deles. Assim, havia no mundo químico umprocesso para o qual era necessária a vida. Pasteur, com essa constatação,atraiu sobre si a aversão do todo o século XIX, e, com aparentemente refutaçãoa Pasteur, o século coroava o seu próprio trabalho científico. Em 1897conseguiu Buchner isolar dos glóbulos uma substância, a zimase, que realizaa fermentação sem processos vitais. Os mecanicistas ficaram entusiasmados eBuchner recebeu o Prêmio Nobel de Química. Mais tarde, contudo, Rubnermostrou que só uma pequena parte da fermentação causada pela leveduraviva se deve lançar à conta da zimase ali contida e que, na fermentação, nãose pode renunciar à cooperação da vida.

A química não solucionou o milagre da vida. Tampouco é de esperar que ovenha a fazer um dia. É que as coisas são mesmo sobremodo complicadas.Ainda não sabemos produzir sinteticamente senão moléculas de estruturabem simples da clara de ovo. Cem vezes mais complicadas são as moléculasque ocorrem nos seres vivos. E cerca de dez mil dessas moléculas estãocontidas numa única célula nos menores seres vivos que conhecemos, asbactérias filtráveis da febre aftosa, de apenas 0,1 centímetro cúbico.[ 22 ] Éimpensável examinar quimicamente uma célula dessas. E caberia dizer:célula morta não é célula viva.

É impossível duvidar: a vida é um milagre. A tentativa dos darwinistas desubstituir a vida por um automatismo funcional fracassou. Estamos, como nocaso do átomo, diante das mesmas incredibilidades. É característico que oshomens que indignados contestam o milagre na religião costumem não ternenhuma idéia da crença em milagres que a ciência exige deles. Disto nosforneceu exemplo adequado o inglês Huxley. Na convicção de que a vida e ainteligência se desenvolvessem por si e por acaso da matéria morta, ou antes,dos instintos, achava que, se colocássemos mil macacos perante milmáquinas de escrever e os trancássemos com uma montanha de papéis, osmacacos se meteriam a martelar à máquina durante mil anos e a derramarassim uma torrente infinita de absurdidades. Porém, segundo as leis daprobabilidade, nessa torrente estariam contidos todos os livros do MuseuBritânico. Permita-se-nos perguntar: qual dos macacos estaria então emcondições de selecionar da torrente de absurdo as frases de sentido? Nãoobstante isso, talvez não haja nada de mais improvável no mundo inteiro doque essa hipótese do acaso, a qual aliás arrancou até ao cético inveteradoRenan a exclamação: “Tudo é possível, até mesmo Deus”.

Mas não teremos a imodéstia de exigir da natureza irracional o conteúdo

Page 40: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

da biblioteca do Museu Britânico. A natureza nos oferece milagres da vidaque, à maneira deles, não são menos magníficos.[ 23 ]

Referiu há pouco tempo o célebre cirurgião berlinense August Bier: naregeneração de ossos fraturados, o novo tecido conjuntivo em formação e emvias de transformar-se em substância óssea, o calo, vai assentando de talmaneira que afinal obedece, rigorosamente, às leis estáticas de tração ecompressão. O calo pensa? O calo é um físico?[ 24 ]

Se cortamos uma planária em pedaços, cada pedaço por si é capaz deregenerar os órgãos faltantes e formar um platelminto completo. Esseprocesso de regeneração nos demonstra que o conjunto do organismo, oplano de construção dele, é alguma coisa que, à maneira invisível, por assimdizer, de um “criador interior”, opera no ser vivo e influenciateleologicamente as partes. E outros processos regenerativos nos impelem àmesma idéia. Spemann trocou os primórdios do olho e da perna, um pelooutro, num embrião de anfíbio. No lugar onde fica o olho e se encontravaagora o primórdio de perna, não se formou uma perna, mas um olho, e vice-versa. Braus removeu, também num embrião de anfíbio, metade das célulasdo primórdio de ombro das quais nasce a cavidade glenóide. Nasceucompleta a cavidade, embora com a metade do tamanho. Driesch cortou emdois pedaços, após a primeira divisão, um ovo de ouriço-do-mar. Era desupor que os dois pedaços ou perecessem ou produzissem larvas incompletas,inviáveis. Formaram-se duas larvas completas, viáveis, com a metade dotamanho. Esse experimento deu certo também com medusas e com o peixe-lanceta. De novo, portanto, o plano de construção é mais forte do que aspartes. Mas esse plano só pode ser a força que regula teleologicamente a vida.

Coisas ainda mais espantosas chegamos a ouvir se nos voltamos para oestudo dos instintos. O instinto não é outra coisa senão uma adaptaçãoprevista. A larva de Lucanus cervus prepara um torrão oco de argila parametamorfosear-se. A larva macho desse besouro abre uma cavidade cerca deduas vezes maior, para alojar as poderosas mandíbulas que se formarão maistarde. A vespa-caçadora do gênero Ammophila, com uma picada primorosa eanatomicamente certeira através da medula, não chega a matar a lagarta deborboleta, e sim a deixa imóvel, paralítica, para que esta, sem que apodreça,sirva de casa e de comida às larvas da vespa. Até lá, no entanto, aAmmophila terá morrido há muito tempo. A vespa se ocupa previdentementedo futuro da sua prole, assim como encontramos semelhante previsão portoda parte nas admiráveis sociedades de insetos.[ 25 ]

Page 41: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Isso, porém, são meramente milagres da teleologia. O darwinista insistiráimperturbável em que tais finalidades tenham surgido justamente pela famosasobrevivência do mais apto. E como seria se num ser vivo houvessefinalidades em favor alheio, quer dizer, finalidades que não servissem nem aoindivíduo nem à espécie, e sim a outros indivíduos de outras espécies?Nenhuma teoria da hereditariedade ou da seleção seria capaz de explicar omilagre da teleologia em favor alheio. Existe uma coisa dessas?

A vespa cinipídea vive das células de amido localizadas na face dorsal dafolha de carvalho. No outono transforma-se a larva em pupa. A folha cai aochão. Mas a larva não sofre prejuízo, porque a parede de amido se lignificaem torno dela. Na parede lignificada, contudo, fica aberto um pequenoorifício. É que assim o inseto poderá sair na primavera.

Como exatamente isso se dá? Pensariam as vespas? Ou pensariam asfolhas? E, se porventura pensam, como teriam chegado a entender-se? Ateleologia em favor alheio propõe um enigma que a biologia não conseguedecifrar. Se não pretendo chegar à conclusão absurda de que as vespas e asfolhas pensam, tenho então de supor que uma outra coisa pensa por elas. Ofilósofo Erich Becher concluiu de tais fenômenos a existência de uma super-alma pensante e difundida por todos os organismos.[ 26 ] Mais fácil teria sidodizer, em vez de super-alma, Deus.

Cem anos atrás, a ciência dispensou a “hipótese” de Deus. Hoje, necessitanovamente da grande hipótese. Pasteur provou ter razão contra Laplace.“Estudando-se bem”, disse um dia Pasteur, “chega-se à fé do camponêsbretão. Se eu tivesse estudado ainda mais, teria a fé da camponesa bretã”.

Parece aumentar espantosamente o número dos naturalistas que pensam domesmo modo. Logo teremos chegado ao ponto em que a ciência não estejamais falando em nome do homem despótico que presume ter-se criado a simesmo, mas antes em nome de um outro: em nome de Deus, Criador do Céue da Terra.

7 Napier, o inventor dos logaritmos, escreveu uma exposição do Apocalipse more geometrico. Guericke, o inventor dabomba de ar, escreveu sobre o lugar do Céu e do Inferno. Que Pascal, Newton e Leibniz tenham sido teólogos é sabidode todos. Maupertuis explica pela sabedoria do Criador o seu princípio da mínima ação. Ernst Mach observou que anossa mecânica inteira surgiu numa era determinada teologicamente, não devendo surpreender-nos que a formação deconceitos dela seja de natureza teológica. Algumas pessoas haverá que imaginam a possibilidade de seguir até à físicateórica os vestígios da teologia.8 A tendência moderna na ciência natural começa com Poincaré, que ensinou moderação às ciências naturais (cf. HenriPoincaré, La science et l’hypothèse, Paris, Flammarion, 1902; La valeur de la science, Paris, Flammarion, 1904). Essamoderação estava muito bem fundada. Os princípios da mecânica, aparentemente o que de mais exato e de maisconstante o espírito humano produzira, viram-se de repente a vacilar. Mostrou-se que o experimento e a análisematemática não bastam para a superação desses problemas. Era imprescindível chamar em auxílio a filosofia durante

Page 42: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

muito tempo desprezada. O caos que se propaga pela física com a teoria da relatividade, a teoria atômica e a teoriaquântica, afetou também a matemática e a lógica. A geometria euclidiana, estável por milênios, provou-se inservível.Na aritmética produzem-se contradições lógicas! A teoria dos números desde Cantor e Burali-Forti obteve contradiçõesinsolúveis. Brouwer chegou mesmo a colocar em dúvida a lei do terceiro excluído. Um excelente retrato desse caosencontra-se em Hugo Dingler, Der Zusammenbruch der Wissenschaft, München, Reinhardt, 1926. A melhor introduçãopopular às teorias da física moderna é de longe aquela que A. S. Eddington oferece com The Nature of the PhysicalWorld, Cambridge, Cambridge University Press, 1928.9 Nem essa frase nem a sua variante mais freqüente – “Philosophia obiter libata a Deo abducit, pleniter hausta adDeum reducit” – constam dos escritos de Francis Bacon, mas a mesma noção, sim, embora assumindo diferentesformas com o tempo, segundo o editor das obras completas no século XIX, Basil Montagu. Só na última edição dosEnsaios, em 1625, um ano antes da morte, Bacon chega à fórmula mais sucinta e mais suscetível de traduzir-se namáxima latina mencionada acima: “It is true that a little philosophy inclineth man’s mind to atheism, but depth inphilosophy bringeth men’s minds about to religion” – NT.10 Numa conferência de há pouco, o eminente físico Schrödinger observou que mesmo a física teórica está sujeita amodas e se adapta ao espírito do tempo. Daqui saem os fios para a sociologia do saber fundada por Pareto, Scheler eMannheim, essa coisa decerto perigosíssima cuja crítica, infelizmente, não cabe aqui.11 Guarde-se em vista que essa força da gravidade a atuar de maneira imediata e instantânea através de distânciasimensas é coisa completamente inconcebível, cuja mera suposição exige um sacrificium intellectus. Os físicos, emduzentos anos, haviam simplesmente se habituado a essa “inconceptibilidade”. Contudo, quando Maxwell levou àvitória na eletrodinâmica o princípio das ações locais mediadas pelo éter e provou-se impossível transferi-lo para aforça da gravidade, abriu-se a grande fenda: dois departamentos da física – aqui a mecânica, ali a óptica e a eletricidade– explicavam os fenômenos delas com teorias mutuamente excludentes. É desse desacordo, essencialmente, que surgiua teoria da relatividade.12 Às três dimensões do espaço soma-se o tempo, na teoria da relatividade, como quarta dimensão. Vivemos nummundo quadridimensional, o que exige uma geometria não euclidiana. Disso resulta a ausência geral de plasticidadedos conceitos físicos. Com isso adquire-se, porém, um desfecho satisfatório do desacordo entre a mecânica e a teoriaeletromagnética da luz. Já vale qualquer coisa a solução desse enigma. A matéria transforma-se agora num campoeletromagnético, ou, dito de modo não euclidiano, a matéria é uma curvatura do espaço quadridimensional. Já que nomundo existe matéria, o espaço é portanto encurvado, e por isso ilimitado, mas finito. Para a primeira aproximação emcircunstâncias terrestres, a mecânica relativista dispõe da mecânica newtoniana, e por isso soluciona tão bem como estaos problemas da mecânica. É superior a ela em circunstâncias cósmicas, e por isso explica a secular e até agoraenigmática precessão do periélio de Mercúrio. O desvio para o vermelho das linhas espectrais das estrelas, o qual sepode deduzir da lei da gravitação de Einstein, só foi descoberto em conseqüência disso. Uma excelente introduçãopopular, traduzida para o alemão por Kurt Grelling, oferece-a Bertrand Russell com The ABC of Relativity, London,Kegan Paul, Trench, Trubner, 1925. Quem entende de matemática deveria consultar Hermann Weyl, Raum, Zeit,Materie, 3. Aufl., Berlin, Springer, 1919. Quanto à ligação entre Einstein e Kant, é óbvio desde Hans Reichenbach quea filosofia kantiana se apóia no ponto de vista newtoniano da física e que não é legítima senão em relação a este.13 A melhor introdução popular à filosofia do Aquinate encontra-se num lugar onde não a procuraríamos: noscomentários de Karl Vossler a Dante em Die göttliche Komödie, Bd. 1, Heildelberg, Winter, 1907. Referência se faça,de resto, à grande edição latina e alemã de S. Tomás que atualmente começa a publicar-se em Salzburgo pela AntonPustet.14 A alguns parecerá estranha a equiparação dos sistemas ptolemaico e copernicano do mundo. Na teoria darelatividade, são tão iguais um ao outro quanto o são mil metros e um quilômetro. Às vezes é mais cômodo medir emmetros, às vezes em quilômetros. Na vida prática sobre a Terra temos de ser todos ptolemaicos, enquanto osastrônomos são antes copernicanos. Já no século XVIII exprimira Berkeley tal raciocínio relativista, o qual tem deocorrer, aliás, a todos os que negam o espaço absoluto. Cf. Ernst von Aster, Raum und Zeit in der Geschichte derPhilosophie und Physik, München, Rösl & Cie., 1922. No que diz respeito à “prova” relativista da criação, observe-seque todas as cosmologias modernas (Einstein, De Sitter, Monsenhor Lemaître) supõem um impulso inicial.15 Sobre a teoria quântica cf. Siegfried Valentiner, Die Grundlagen der Quantentheorie in elementarer Darstellung, 2.Aufl., Braunschweig, Vieweg, 1919. Um princípio da mecânica clássica e da física inteira era a pressuposta unidadecontínua dos processos, especialmente na teoria das ondas. Mas justamente quanto a um processo ondulatório, aradiação, reconheceu Planck em 1900 que uma explicação satisfatória era impossível senão na hipótese de uma emissãode energia em partículas discretas, os quanta. A teoria quântica, através de Planck e Einstein, invadiu também a teoriacinética dos gases, aliou-se à teoria eletrônica, e a hipótese de uma estrutura atômica da energia conquistou a físicainteira. Com isso as leis da mecânica clássica, pressupondo ação contínua, tornam-se inaplicáveis. Por isso Bohrprecisou aplicar ao seu modelo atômico a mecânica quântica. Mas era ainda muito pouco. Em Schrödinger e Dirac, elaé substituída por uma mecânica ondulatória inteiramente abstrata que anula de todo o conceito de matéria.

Page 43: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

16 Diz, em Heisenberg, o trecho clássico: “Na formulação precisa da lei da causalidade – ‘Se conhecermos comexatidão o presente, poderemos calcular o futuro’ –, falso é não o conseqüente, mas o pressuposto. Em princípio, nãopodemos conhecer o presente em todos os elementos determinantes. Por isso, cada percepção é uma escolha entre umaabundância de possibilidades”. É a célebre relação de indeterminação. Mas cuidado com as conclusões filosóficas.Dingler (op. cit.) observou com acerto que da tradução de fórmulas matemáticas em palavras da nossa língua surge umaaparência de teoremas filosóficos que na verdade não o são.17 O método estatístico fez já com Bolzmann a sua entrada na física. Era necessária essa introdução, porque atermodinâmica não se deixava coadunar com as leis da mecânica clássica senão quando à segunda lei da termodinâmicase conferia o significado de um princípio estatístico. A teoria quântica estendeu então à física inteira esse modo de veras coisas. Já no seu discurso de posse como reitor em Berlim, Walther Nernst colocava em dúvida a calculabilidadeinequívoca do mundo (“Zum Gültigkeitsbereich der Naturgesetze”, Die Naturwissenschaften, Jg. 10, H. 21, 1922). Avigência lógica e filosófica do princípio da causalidade, no entanto, é tão pouco atingida pela mecânica quântica quantoo são pelo vitalismo as leis hoje unificadas da conservação da matéria e da energia. Talvez se possa aplicar aqui anoção tomista da vigência diversa do emanationis modus nos diversos domínios do ser (cf. Summa contra Gentiles, IV,11). Impõe-se uma distinção mais sutil entre causalidade natural e causalidade motivacional. Sobre a inaptidão daciência natural para solucionar questões filosóficas, exprimiu recentemente pensamentos acertados o geneticista VictorJollos: hoje, com Laue, C. T. R. Wilson e Millikan, está demonstrada a estrutura atômica da matéria, mas com isso nãose resolveu o problema filosófico da matéria. Pois ou o elétron é discreto, não sendo o menor elemento portanto, ou écontínuo, tendo partes portanto, e, mais uma vez, não sendo o menor elemento. O mesmo é válido na biologia. Como asforças que normalmente só produzem modificações são as mesmas que de tempos em tempos provocam verdadeirasmudanças de espécie (mutações), não era completa a disjunção entre Lamarck e Darwin. A filosofia não pode preteriras ciências, mas as ciências não trazem senão material, nenhuma solução.18 O primeiro e até agora único filósofo que exprimiu a conexão entre indeterminismo físico e moral é Fritz Medicus.Como é característico, as teorias indeterministas da física moderna são hoje malvistas em Moscou.19 Conforme a visão oficial dos pré-historiadores, o tipo humano recente surgiu no fim do Terciário, a partir de umaforma semelhante ao chimpanzé e através das formas de transição que são o Pitecantropo de Java e o Neandertal.Mostrou-se, porém, que o Homem de Java já era homem completo, já que conhecia o fogo e possuía instrumentos depedra. O Neandertal é só uma forma extrema. Os achados recentes mudaram completamente a situação. Leakey e Reckconseguiram situar na cultura chelense da Europa o Homem de Olduvai do leste da África; o maxilar inferior deKanam, Quênia, pertencente ao Plioceno superior, portanto ao fim do Terciário, mostra uma clara formação de mentoque não era de suspeitar, conforme a visão oficial, num tipo pré-chelense. Assim, essas mais antigas descobertasmostram formas de todo recentes, com as quais o evolucionismo experimentou grave derrota com respeito ao homem.Já em 1863 fizera Boucher de Perthes descobertas semelhantes, as quais no entanto foram caladas, prova de que atendenciosa ciência natural oitocentista não quis saber essas coisas.20 Não obstante a impugnabilidade toda, as proposições de Dacqué contêm um núcleo são. Não se pode negar, porém,que toda a teoria da evolução tenha hoje caráter insatisfatoriamente especulativo. Exato na biologia, hoje, é somente omendelismo. Da factualidade da teoria dos cromossomos, tida por hipótese durante muito tempo, não se pode maisduvidar. Com o estudo da transmissão hereditária e das mutações da mosquinha-das-frutas, Drosophila melanogaster,Thomas Hunt Morgan conseguiu fazer coisas admiráveis em exatidão. Cf. Ludwig Plate, Vererbungslehre, Bd. 2,Sexualität und allgemeine Probleme, 2. Aufl., Jena, Fischer, 1933.21 Da origem da vida sabemos hoje em dia… coisa nenhuma. A teoria de Arrehnius, supondo a transmissão cósmicados germes de outros corpos celestes à Terra, é antes adiar que solucionar o problema.22 Lapso mínimo, o número estava presente no original. Fui atrás da informação correta, mas seria necessário o acessodireto aos relatos de Loeffler e Frosch, os quais, em busca do agente causador da febre aftosa, acabaram por realizarcom técnicas bacteriológicas uma das pesquisas pioneiras da virologia, com o que espero justificar-se o uso do termo“bactérias” por Carpeaux – NT.23 Darwin já falava de uma função cerebral do ápice radicular. Haberlandt descobriu os hormônios de cicatrização dasplantas. Tanto o mecanismo de hemostasia quanto a granulação de cicatrizes apontam ambos para forças curativas danatureza que estão sendo reabilitadas na tendência neo-hipocrática da medicina.24 Cf. August Bier, “Das teleologische Denken in der Medizin”, Zeitschrift für ärztliche Fortbildung, Jg. 3, Nr. 8,1933.25 No original, Amenophila, gênero inexistente. Carpeaux talvez reproduza o mesmo engano de Erwin Liek, quedescreve o mesmo fenômeno em Das Wunder in der Heilkunde, München, J. F. Lehmann, 1930 – NT.26 Erich Becher, Die fremddienliche Zweckmäßigkeit der Pflanzengallen und die Hypothese eines überindividuellenSeelischen, Leipzig, Veit, 1917. O estudo dos instintos oferece mais problemas de primeira ordem. Estão indicados notexto os infalíveis atos instintivos das vespas-escavadoras e vespas-da-madeira, os quais nenhum fisiologista é capaz deimitar. Ainda mais espantosos são os atos instintivos que têm a ver com a simbiose de diferentes seres vivos. O animal

Page 44: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

hospedeiro trata de que a sua progênie conserve consigo os simbiontes necessários à vida, os coabitantes. Algumassépias abissais, por exemplo, têm órgãos luminosos que consistem em lentes, refletores e massas luminescentescompostas de bactérias. Outras bactérias luminescentes ficam localizadas em duas bolsas, ao lado das aberturasgenitais, e são derramadas junto com a secreção genital sobre as ovas. As bactérias migram para o órgão luminoso queo embrião constrói durante o seu desenvolvimento, mas também para as duas bolsas que se formam perto da aberturagenital. Cf. as publicações de Jakob von Uexküll a respeito do assunto, assim como Reinhard Demoll, Instinkt undEntwicklung, München, J. F. Lehmann, 1934.

Page 45: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

A DESCOBERTA DA ALMA

1. Sentido e absurdoSALA DE DISSECAÇÃO. Os estudantes dissecaram o cadáver de alto a baixo eextraíram meticulosamente cada um dos órgãos. Sorrindo satisfeito, reclina-se o professor: “Encontraram a alma? Não vi coisa alguma”.

Soube-se durante uns milhares de anos que o homem tem alma. O séculoXIX teve o privilégio de esquecer-se do fato e coube a nós a penosa tarefa deredescobri-la.

Negou-se a alma. Num mundo em que não havia senão átomos e processosfísico-químicos não podia haver alma alguma, algo que nem consiste emátomos, nem sofre processos físico-químicos. É verdade que uma psicologiacontinuava a existir. O termo quer dizer “estudo da alma”. Com orgulhoanunciou-se, porém, o ensino de uma psicologia sem alma.

E qual era o conteúdo dessa ciência da alma que não tinha nem alma, nemciência? A alma – a palavra empregou-se adiante como mera metáfora – eracerto espaço vazio. Nela não se acharia nada mais do que impressões que osórgãos dos sentidos lhe trouxessem do mundo exterior. O olho recebia ondasde luz, o ouvido captava ondas de som, e assim por diante, a “alma” nãosendo outra coisa senão uma máquina de excelente funcionamento destinadaa receber impressões sensíveis. Os psicólogos deram-se principalmente aexperimentos que determinassem, por exemplo, que intensidade teria de terum raio de luz para ser percebido pelo olho, e outras coisas dessa natureza.Diziam-se, com razão, psicofísicos.

O coração dessa psicologia era a teoria das associações. As representaçõesseguem-se uma à outra em ordem mecânica, de tal maneira que umarepresentação atrai a outra por semelhança ou contraste. O que seja muitoparecido ou muito diferente ou que eventualmente se tenha vivenciado demodo conjunto repete-se também desse modo. As representações estãoacopladas uma à outra em nossa alma como os vagões de um trem de ferro, ea consciência são só os trilhos sobre os quais roda esse trem infinitamentecomprido. A alma é um pátio de manobras, e as leis de associação são oshorários. Os horários é que os psicólogos se esforçaram para estabelecer com

Page 46: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

precisão.Para eludir as incômodas particularidades individuais das cobaias, o

psicólogo Ebbinghaus inventou um meio glorioso e decerto indicado paraeliminar-lhes totalmente a alma. Experimentou já não com palavras ou frasesde significado, mas sílabas sem sentido. Assim se excluía, é claro, que aspropriedades psíquicas individuais exercessem papel incômodo, mas comisso estavam eliminadas também todas as atividades superiores dopensamento e da representação, e atingido o verdadeiro objetivo dessapsicologia: considerar o homem apenas como máquina.[ 27 ]

A tais métodos, tais resultados. Nos manuais de psicologia achavam-secentenas de páginas onde estavam descritos os experimentos de fisiologia dossentidos. Sobre o que em realidade interessa a nós outros na psicologia, sobrea emoção, a cognição e a volição humana, só lugares-comuns, triviais,irrelevantes, adornados de estrangeirismos e, já antes da leitura, nãodesconhecidos de nós.

Isso aconteceu porque não se pode examinar o pensamento, por exemplo,nem com experimentos psicofísicos, nem segundo o método das sílabas semsentido. A julgar o pensamento unicamente conforme as leis de associação,chegaríamos a um resultado estranho. É que em nossos manicômios se achamdoentes que não estão em condições de reter pensamentos. As representaçõesprecipitam-se neles de tal maneira que não lhes deixam tempo para demorar-se nem sequer numa palavra. Associações em estado puro. É a chamada fugade idéias. Ainda outros doentes, pela razão inversa, são incapazes de pensarporque os domina tão completamente um mesmo pensamento que nãoconseguem livrar-se dele. É a chamada idéia fixa. Eis, na era da psicologia demáquinas, o feitio do pensamento humano: era um meio-termo entre idéiafixa e fuga de idéias, compulsoriamente preso por feitiço ao material dasimpressões sensíveis e, sem descanso nem sentido, caçado por aí afora nafuga das associações. Como aconteceu que um pensamento assim constituídotenha jamais feito sentido?[ 28 ]

Cabe à escola de psicologia formada em Würzburg em torno de OswaldKülpe o mérito de haver reconhecido e resolvido o problema. Respiramosfundo, realmente libertados, de passar dessa confusa região das sílabas semsentido aos cômodos mobiliados com propósito pela psicologia dopensamento. A psicologia do pensamento reconheceu que todo o pensamentohumano tem caráter intencional. Não seguimos nossas associaçõesabulicamente senão quando nos entregamos a devaneios fúteis. Em todos os

Page 47: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

outros casos, quando alguma coisa deve resultar do que pensamos, seguimosimpulsos intencionais de pensamento, isto é, o nosso pensamento estádirigido significativamente a um fim.[ 29 ] O “sentido” não se pode explicarpor impressões sensíveis.[ 30 ] O sentido é uma propriedade fundamental danossa consciência e, em termos gerais, também a nossa alma não é outracoisa senão uma estrutura significativa. Como se vê, já estamos a caminho daredescoberta da alma.

Agora, onde se exprime o “sentido”? Um só pedaço de objeto, como um péou tampo de mesa, ainda não tem sentido. Poderiam também ser paus outábuas de propósito e significado inteiramente outro. Se colocamos a tábuasobre quatro desses paus, no entanto, temos de uma vez uma mesa diante denós. Sabemos perfeitamente o que é uma mesa, e só na estrutura desse todo éque as tábuas e paus obtêm o seu significado como tampos e pés. O todo,como já sabia o velho Aristóteles, é mesmo mais do que a soma das partes.Se substituímos sucessivamente o tampo e os pés por outros tampos e outrospés, a mesa permanece mesa. Com efeito, o que a nossa alma recebe atravésdos órgãos dos sentidos não são cúmulos de insignificativas impressõesisoladas, mas estruturas significativas chamadas “formas”. E o estudo delasforma o conteúdo da psicologia da Gestalt.[ 31 ]

Talvez o mais belo exemplo da psicologia da Gestalt seja o de umamelodia que nos é tocada em lá maior. Da próxima vez a ouvimos, porexemplo, em ré menor, e, apesar de nenhum dos sons de agora ser igual aosda primeira vez, a melodia é percebida como a mesma. Não assimilamos umasoma de sons isolados, mas uma conexão significativa. Existem, por todaparte na vida e mesmo na vida da alma, tais conexões significativas, asformas, e, através dessa psicologia da forma, incide sobre a psicologia dossentidos uma luz inteiramente nova.

Máquinas reagem sempre da mesma maneira. Não há máquinas quetenham humores nem que se enganem. Os homens, porém, não podem sermáquinas inanimadas, não só por serem, na vida do pensamento e dosentimento, falíveis e temperamentais, mas também levando em conta merasimpressões sensíveis. Os homens não reagem sempre da mesma maneira àsmesmas impressões.

Eis aí o exército das ilusões dos sentidos, os enganos na contemplação defiguras geométricas, na observação dos movimentos de um trem em marchaetc.. Tais enganos explicavam-se anteriormente como ilusões do juízo. Maspor que se manifestam desta vez e não daquela outra? Por que não reage o

Page 48: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

homem com a mesma uniformidade da máquina? Para isso a psicologiaempirista não conhecia resposta.

Não reagíamos a impressões isoladas, e sim a formas. Não reconhecíamosou não interpretávamos direito o que, embora conhecêssemos bem, se achavaem novo ambiente. No novo ambiente, com o qual se combinou em novaforma, obteve novo sentido. Essa nova forma é o fator diretivo ao qual onosso pensamento se ajustou.[ 32 ] A natureza não é um caos deinsignificativas particularidades, portanto, e sim consiste em formassignificativas. Nem é máquina reagente o homem, e sim tem alma.

Sim, a própria alma humana é semelhante forma significativa, um caráterou tipo em que as propriedades psíquicas estão todas significativamenteharmonizadas umas com as outras. Desde que sabemos disso, podemos voltara tratar da alma humana como de algo inteiro, podemos voltar a falar de umapsicologia do homem, em lugar de uma psicologia de funções isoladas. Desdeentão, os manuais de psicologia são mais uma vez interessantes e fiéis àrealidade da vida.

Formas ou totalidades têm um sentido, um valor que ainda não toca àspartes em si. Com essa noção retornamos a um grande sábio que mais de umséculo atrás reconheceu o primado de valor das totalidades: Goethe. Nas suaspesquisas científico-naturais, partindo sempre do reconhecimento de formas,descobriu por exemplo a metamorfose das plantas. Em detrimento próprio, asciências da natureza abandonaram esse caminho e reencontram só hoje comovoltar a Goethe. Pela nossa exposição sobre biologia, percebemos como setornou importante na explicação das cicatrizações, dos processos deregeneração e de outras auto-regulações funcionais nos organismos, oconceito de totalidade.

Conseqüências mais importantes teve ainda esse conceito, porém, nodomínio das ciências do espírito, desde que foram libertadas da ditaduracientífico-natural. Desde Descartes estivera a nossa atividade científicadominada pela idéia de uma ciência sem pressupostos. Uma ciência em seuscomeços não deveria pressupor absolutamente nada. Nada se reprovou àciência católica no século XIX tanto quanto a pouca ausência de pressupostos.Pois ela pressupõe uma cosmovisão inteira. Em vão replicaram ospesquisadores católicos que não há ciência sem pressupostos e que todopesquisador traz consigo e pressupõe uma atitude determinada em relação aomundo. Hoje sabemos que tais pressupostos não são nenhum mal necessário,mas necessidade incontornável, a menos que se vá dissolver a ciência em

Page 49: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

mescla de fatos sem sentido. Caiu o conceito cartesiano de ciência e, desdeque abriu caminho o venerável filósofo Wilhelm Dilthey, saiu vitoriosa umanova convicção científica.[ 33 ]

O maior proveito desse modo de ver as coisas tiveram-no as ciênciashistóricas. A ciência histórica, no afã de máxima exatidão científico-naturalpossível, lançara-se mais e mais ao mero estudo de documentos de Estado,relatórios de embaixada, cartas e faturas, moedas e outros documentossuscetíveis de apreensão exata. Esteve a ponto de sufocar-se na poeira dosarquivos. Amontoou-se uma pilha enorme de fatos com e sem valor, e, já quenuma ciência “sem pressupostos” não se pode dizer o que tem valor e o quenão tem, a ciência histórica ameaçou ruir nessa falta de instinto axiológico.Hoje se sabe que precisamos pressupor. Não se deve deixar ao arbítrio decada historiador decidir o que será considerado valioso ou desvalioso.Pensamentos “pressupostos” e normativos precisam estar presentes. Aí, jánão reconhecemos na história uma sucessão de acontecimentos e estadosdestituída de sentido, e sim um transcurso significativo. A filosofia dahistória – durante muito tempo proscrita – refloresce.[ 34 ] Quais valores epressupostos tomar como base da história, bem, isso é mera questão deverificá-los. Ninguém tomará como base de uma história da Alemanha doséculo XIX as idéias da infeliz Revolução de 1848, porque sabemos que nadaresultou dessas idéias e que outras idéias dominam a história alemã. Não élícito conferir à história senão valores que nela se tenham visivelmenteverificado.

Apliquemos esse princípio à história eclesiástica. Praticaram-na sempressupostos inclusive a ela no século XIX. E qual foi o resultado?Escreveram-na de um ponto de vista anticristão, viram na Igreja apenas umadegeneração malsã do cristianismo que, à luz do progresso, estava destinadaao declínio iminente. Depois não havia como admirar-se pouco de que essainstituição tão destituída de valor tenha resistido ao longo de quase dois milanos a todos os assaltos de inimigos encarniçados e que esteja agora maispoderosa do que nunca. Esse resultado enigmático, que tanto contradizia ospressupostos artificiais, teria ficado imediatamente compreensível se não setivesse deixado de lado o único pressuposto correto, isto é, o de que nahistória eclesiástica reina um valor que a ciência histórica havia séculosfingira não ver: a Providência. E o resultado teria sido fácil de retificar comuma espiada num livro histórico mui fidedigno que são os Atos dosApóstolos do Novo Testamento:

Page 50: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

“Porque se este conselho ou esta obra vem dos homens, ela se desvanecerá;mas, se é de Deus, não podereis derrotá-los; para que não sejais, porventura,achados até combatendo contra Deus.”

Page 51: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. AbismosSe de uma máquina engenhosamente construída se tira uma engrenagem

aqui e um parafuso acolá, a máquina pára; toda a engenhosidade daconstrução tornou-se inútil, a máquina deixou de funcionar. Odesmantelamento a deixa sem sentido.

Se realmente não é uma máquina a alma humana, não deve tampoucoperder com o desmantelamento o sentido. Deve antes retê-lo, ainda que sedesliguem as funções intencionais superiores, como pensar e quererpropositadamente. Tê-lo comprovado é mérito da psicanálise freudiana.

É difícil fazer uma exposição breve das doutrinas da psicanálise. E noentanto tão necessário, porque o leigo ouve falar infelizmente muitíssimo depsicanálise, até demais, raramente recebendo informação correta. É difícil,não só porque no caso da psicanálise se trata de uma ciência complicada, mastambém porque com ela adentramos um dos mais tenebrosos e ingratosterritórios do pensamento humano, um abismo verdadeiramente infernal,acima do qual poderia encontrar-se condignamente a inscrição sobre a portado inferno em Dante:

Per me si va ne la città dolente,per me si va ne l’etterno dolore,per me si va tra la perduta gente.

A psicanálise ensina que existe em nossa alma uma câmara escura, da qualnada sabíamos até o momento e na qual rumorejam demônios: oinconsciente. Todo homem nutre na vida consciente desejos e pulsões quesão inconciliáveis com as exigências morais dele próprio ou do ambiente.Surgem duros conflitos, e, para que não prevaleçam, a consciência recalca osdesejos intoleráveis inconsciente adentro. Mas lá, com a carga afetiva quetrazem, não dão sossego. Só não se atrevem a sair nus em pêlo porque aconsciência se horrorizaria desses desejos não raro e não pouco malignos. Emvez disso, impera na consciência uma instância a que Freud chama “censura”,graças à qual os desejos recalcados não têm licença para se manifestar senãocom máscaras e disfarces irreconhecíveis. Quase sempre o fazem de maneirainofensiva, como no sonho, e Freud elaborou toda uma simbólica onírica paraconseguir ler corretamente nos sonhos os desejos recalcados. Às vezes,porém, são tão mais fortes que a consciência não consegue defender-se deles.Tal complexo recalcado se faz então senhor de nós e exprime-se nos sintomasenigmáticos e torturantes da histeria, da neurosa obsessiva e de outrasdoenças mentais.

Page 52: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Ora, qual é propriamente o conteúdo desse inconsciente? De que espéciesão esses desejos que em espasmos “recalcamos” tanto? São – quaseexclusivamente – desejos sexuais. Freud, acreditando ter descoberto que já natenra infância o homem dá mostras de movimentos pulsionais sexuaisvoltados contra os genitores, perifraseia essa sexualidade infantil como“complexo de Édipo”. Através da educação, recalca-se o complexo paradentro do inconsciente. Mas fica lá fincado, exprimindo-se ao longo da vidaem pequenos atos falhos, em sonhos, na configuração das nossas inclinaçõessexuais e, no caso de pessoas com especial predisposição, precisamente naspsicoses. É tarefa da terapia psicanalítica, ao longo de meses de entrevistas,eliciar o segredo inconsciente do enfermo e revelar-lhe o verdadeirotransfundo da sua doença, ao que deve então sobrevir a cura.

A psicanálise não se restringe aos indivíduos, mas examina também a vidaanímica da comunidade. Está convicta de que todas as realizações culturaisda humanidade, religião, moral, Estado, arte, técnica, nasceram de recalcadaspulsões que são transformadas, sublimadas em valores espirituais; de queportanto o fim último de toda a nossa vida espiritual não é senão sexualidaderecalcada. Todo movimento religioso, moral ou artístico da alma se originariaapenas de pulsões sexuais. Contudo, por que é que dos recalques surge oraesta, ora aquela, ora nenhuma doença mental – quer dizer, o irresolvidoproblema da escolha da neurose –, isto a psicanálise sabe explicar tão poucoquanto é capaz de explicar a multiplicidade individual das expressõesreligiosas, morais e artísticas da vida.

A investigação cultural psicanalítica significa uma grave desvalorização danossa vida espiritual inteira e, num grau ainda mais alto do que o tentaraentão o darwinismo, é própria para nos rebaixar ao animalesco. Não é muitodiferente o que já andava fazendo a psiquiatria. Cegos a valores e deformadosde espírito por anos de permanência em clínicas e hospícios, os médicos deloucos reencontraram primeiro em si mesmos (não sem razão), depoistambém nos seus semelhantes mais sãos (com menos razão), alguns daquelessintomas que em seus pacientes lhes era familiar. Enxergavam loucos, enfim,a todo momento e por toda parte. Já não eram capazes de distinguir entregênio e loucura. Difuso o limite entre doença e normalidade, já não havianem sãos nem doentes, mas apenas psiquiatras e os demais. Com razão sedisse que, na distinção entre doença mental e psiquiatria, trata-se apenas dadistinção entre loucura côncava e convexa.

Também a psicanálise é, conforme uma frase de espírito, a doença mental

Page 53: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

da qual se considera terapia. Se os psicanalistas nos asseguram que na vidapsíquica em geral não se acham senão disfarces e máscaras da sexualidade,podemos com razão objetar-lhes que existe uma gravíssima doença mentalem que idéias sexuais molestam constantemente os infortunados enfermos. Enão é de supor que possa um coxo ser curado justamente por um médico quecoxeia muito mais.

Contra a psicanálise pode-se dizer que até o momento as afirmações delasobre a sexualidade das crianças não foram confirmadas pela psicologiainfantil em parte alguma; nenhum educador tampouco encontrou o complexode Édipo. É igualmente fácil fazer troça da sutileza com que, por exemplo, seexaminam os sonhos segundo um escopo preconcebido. Contudo, há na coisaum grãozinho de verdade, não sendo exatamente um diabo malévolo aqueleSigmund Freud. Agora, é menos um naturalista exato do que um… poetafantasioso, e em sua psicanálise há justamente tanta verdade e justamente tãopouca verdade como aliás em toda poesia.[ 35 ] A desgraça da psicanálise sãocertos psicanalistas cuja “ciência” não é outra coisa senão mistura de livro desonhos e revista de humor, prestando homenagem a instintos da raçapreponderantemente representada nesse círculo, razão pela qual até naAmérica, onde tanto se padece sob a agitação da Christian Science, designa-se a psicanálise maliciosamente como Jewish Science.

Mas a psicanálise tem também grandes e importantes virtudes próprias.Adere a ela, é verdade, ainda bastante do naturalismo oitocentista, o que semanifesta até naquela mecânica psíquica proveniente de Herbart. Apsicologia materialista, porém, que pretendia considerar a vida da almaapenas como função cerebral, foi definitivamente liquidada pela psicanálise.Sabe-se, desde Freud, da legitimidade própria da alma e do espantoso poderdela sobre o corpo. Freud assegurou, por assim dizer, a independênciapsíquica do homem.

Essa mistura peculiar de virtudes e defeitos é que torna tão difícil avaliar ecriticar a psicanálise.[ 36 ]

No método freudiano de extrair e revelar em sua periculosidade aosdoentes os segredos da alma, encontra-se um corretíssimo princípio. Não éoutro senão o princípio da confissão, cujo significado psicológico profundo jáo conhece desde sempre a Igreja, enquanto só em nossa época a ciênciamédica precisou redescobrir-lhe o valor. A psicoterapia não é outra coisasenão cura de almas adornada de estrangeirismos científicos. Se ahumanidade, em outros domínios, caminha em busca de um novo mito, então

Page 54: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

clama desesperada, em profunda aflição e dilaceramento, por um novosacerdócio.

Um sacerdote, um cura de almas, é o que pretende ser o psicoterapeuta.Saberá satisfazer a pretensão?

Precisa estar pleno de cosmovisão religiosa o sacerdote. Precisa pisar chãofirme, saber o que é bom e o que é mau. Precisa conhecer um fim ao qualconduzir os seus penitentes. A psicanálise conhece semelhante fim? Não. Tãopouco quanto o conhece a ciência natural materialista a que está intimamenteligada.

Falta à psicanálise uma justificação da sua própria conduta, a elaespecialmente, porque gostaria de justificar a vida humana com a afirmaçãodo demasiadamente humano. Porque a psicanálise carece de um fim último,os discípulos de Freud aos quais importava mais curar que conhecer, comoJung e Adler, finalmente o renegaram. Reconheceram que precisa ter valor,inclusive para eles, a vida que se restitui aos doentes. Se nos voltamos paraesses psicoterapeutas, então do abismo infernal da psicanálise emergimosnovamente à luz e, como Dante após sua viagem pelo inferno, revemos pelaprimeira vez as estrelas da vida: “E quindi uscimmo a riveder le stelle”.

Page 55: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

3. A luz nas trevasSe fôssemos responder com uma única palavra qual estado de alma é

característico do nosso tempo, teríamos de dizer: a angústia.É preciso distinguir bem entre angústia e medo. O medo é a preocupação

justificada ante eventos indesejáveis que nos ameaçam. A angústia é noentanto um sentimento indefinido e indefinível de qualquer coisa deinquietante, um sentimento que pervade toda a atmosfera em torno de nós eque se nos infiltra na alma de maneira inexplicável, como uma chuva forteque passa como bruma pela paisagem e nos deixa melancolizados.

Tudo em nosso redor ameaçando colapsar, motivo não nos falta paratemer, pela religião e pela ciência, pela nossa cultura, pelo povo e peloEstado. Pois não está tudo em crise? Mas pior do que esse medo é a nossaangústia.

É angústia da vida, angústia deste mundo. Épocas anteriores não chegarama conhecer o fenômeno da angústia existencial, a angústia que convulsiona ocoração juvenil ante a maturidade e o coração maduro ante a velhice; angústiaque não nos deixa ganhar vida, até que afinal se transforma em angústia damorte.

É angústia da morte, angústia do além. Já não se ousa olhar a morte nosolhos. Antigamente a morada da paz ao redor da igreja, agora se afastam parafora da cidade os cemitérios, lá onde são mais miseráveis e mais tristes osconfins, e, com toda a pressa, transportam-se em automóveis os mortosqueridos, de preferência já tarde da noite ou na cinza da manhã, para queninguém tenha visto. Mas da manhã nos restam cinza, medo, angústia: “Eentão?”. Os mais intrépidos ajudam-se uns aos outros com jamais falarem daquestão. E a angústia permanece.

Vira angústia da própria angústia. Já nenhum de nós se atreve a ficarsozinho consigo mesmo. Pois temos a sensação de estar muito, muitosolitários, entregues na solidão às obscuras forças fatais do bem e do mal;temos a sensação de caminhar nas trevas e de que nenhuma luz nos ilumina.A nossa vida à beira da morte parece um temeroso caminho de casa, porestradas escuras fora dos muros da cidade, por entre perigosos recantos detrevas, tão estranhamente familiares a nós quanto um lugar onde cometemoscerta vez um homicídio que ficou escondido; e no entanto temos deatravessar os tenebrosos recessos da vida, ainda que a angústia nos sussurreestar aí à nossa espera, desde o princípio, a homicida morte.

Page 56: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

É a consciência, a má consciência, que nessa angústia nos fala. Já nadasabemos, porém, de consciência moral, a que agora chamamos nervos.Intranqüila está a nossa alma, ao que no entanto chamamos insônia. E, comonão nos fazem falta sacerdotes, vamos ao médico.

Os psicoterapeutas são esses médicos que se nos oferecem comosacerdotes. Eis Alfred Adler, o discípulo renegado de Freud que, contudo,jogou fora, junto com os defeitos, os conhecimentos da psicanálise. Adler crêencontrar toda a lamentação da humanidade num sentimento de inferioridadegeneralizado que supercompensamos à força, com o que nos obrigamos aobjetivos existenciais extremos; como não conseguimos nunca atingi-los, oinsucesso nos impele a fugir, para a doença, para a neurose. Do sentimento deinferioridade vem a nossa angústia, angústia à qual se oferece como médicoAlfred Adler.

Desconfiados ficamos ao ouvir-lhe a promessa de curar doenças edeficiências com meras medidas educativas. Adler, afinal, não se acreditacapaz de curar qualquer doente mediante exortações amistosas ou amargas,não se acredita capaz de educando transformar toda deficiência em eficiência,até mesmo em talento? É a ilusão de onipotência do pedagogo. Adler, é certo,tem razão; a angústia disto e daquilo na vida é possível afastar através daeducação, ajustando-se os homens a um objetivo existencial significativo ealcançável dentro dos limites da comunidade. Mas esse afastamento, comoaliás o método inteiro de Adler e da sua psicologia individual, não acertasenão as máscaras da angústia, senão a superfície. Atrás dessas máscaras, ficaa angústia primitiva com que nascemos e que devemos carregar pela vidacomo cruz. Uma velha ilusão racionalista renova-se em Adler na crença deque é possível tornar racional a vida. Adler, à diferença de Freud, já enxergaobjetivos significativos da vida humana, aí residindo o valor permanente dosseus esforços. Mas entende por valor apenas a convivência ordenada demedíocres destemidos numa comunidade que ignora aonde vai.[ 37 ] Aangústia primitiva, Adler não sabe tirá-la de nós. Resta saber, aliás, serealmente nos deve ser tirada, sendo ela o poder psíquico capaz de nos educaraté um ponto muito mais alto do que a psicologia individual; capaz de nosreconduzir à consciência de que um poder mais alto nos sustenta. O únicoproblema é se nos angustiaremos em face desse poder superior ou seconfiaremos nele. Essa confiança é a fé, essa angústia é a neurose.

O psicólogo vienense Rudolf Allers mostrou muito bem o parentescopróximo entre neurose e descrença. O que é comum às duas é a angústia de

Page 57: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

estar sozinho no mundo. O descrente chega até – convertendo-se com isto emneurótico – a tomar-se egocentricamente pelo pequeno deus deste mundo, atrancar-se ao mundo nessa “absolutização” de si mesmo e, no sentimentopremente da sua própria pequenez e impotência, a desorientar-se nele.Ambos, descrente e neurótico, descendem da insurreição contra Deus. Adependência da criatura ao Criador é o que nos une a Ele, e quem cometer aimpiedade de rompê-la cairá da fé à descrença, à doença e ao pecado.

O verdadeiro antítipo desse descrente-neurótico é o santo. A palavra“santo” recebe, em nossa época, sorrisos céticos. No fundo, ninguém sabedireito o que se deve imaginar de um santo. Só os psiquiatras acreditam sabê-lo. Declaram que os santos são simplesmente histéricos. Um estágio nomanicômio mais próximo pode nos convencer do número de razões ilusóriasque falam a favor dessa opinião. Ali se acham histéricos que experimentamêxtases, falam em línguas, têm visões, vêem abertos céu e inferno, até mesmohistéricas havendo em cujo corpo enfermo exibem-se chagas, estigmas.

E no entanto existe aí uma grande e insidiosa ilusão. Assim como hoje, portoda parte, temos de reintroduzir nas ciências um conceito negligenciadodurante muito tempo, o valor, assim também nesse caso: temos de indagar ovalor, o sentido, na vida do santo e na do histérico. Pelos seus frutos osconhecereis. Importantes serviços nos presta, já na distinção entre gênio eloucura, o conceito de valor. Afinal, quão semelhantes não são um ao outro,em muitos traços, o genial e o louco, e quantos homens geniais nãoencerraram a vida na loucura? Mas o gênio produz grandes obras, e oHölderlin dos poemas não é o Hölderlin da loucura: aquele escreveu versosinesquecíveis, este traçava assinaturas fantásticas. As coisas se passam damesma maneira no caso dos santos e dos histéricos. A histeria é uma doençatemível que faz da vida um fardo, para os doentes em si e para os círculos emtorno; os sonhos em que os histéricos se acalentam trazem todos o selo daauto-exaltação egoísta.

Bem diferente é o santo. Irradia-se dele pureza e bondade, que beatifica eexalta o seu círculo inteiro; a sua vida é sustentada pela dedicação humilde,não pela exaltação demoníaca de si; e o seu caminho é a lei moral, que vemde cima.

Ainda há outros psicoterapeutas, hoje em dia, que vêem com maisprofundidade e pensam com mais sutileza do que Adler. Um desses é C. G.Jung, ele também um discípulo renegado de Sigmund Freud. Jung fez agrande e importante descoberta – que na verdade já se encontrava preparada

Page 58: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

em Freud – de que o conteúdo do nosso inconsciente não é nada deindividual, mas sob muitos aspectos comum a todos os homens. Oinconsciente é o estrato da alma com que participamos do coletivo. As doresque brotam dele são destinadas e comuns a toda a humanidade. Jung écalvinista. Sabe do mistério da salvação e da graça. Sabe que descrença eneurose são uma só e mesma coisa. Nem todo descrente é um neurótico, éverdade, mas todo neurótico é um descrente. Perdemos, pelo pecado, a graçae a salvação. O pecado, porém, não é outra coisa senão o que está recalcado.É o oculto, o misterioso, aquilo que zelosamente nutrimos em nós e que nãopretendemos revelar; que sabemos hostil à comunidade e que portanto nosaliena e separa dela. Jung faz ótima distinção entre isto e aqueles mistériosque são comuns à comunidade inteira: os mistérios do sacramento e daconsagração, que cingem a comunidade com uma faixa firme e impossível deromper, porque irracional, enquanto os objetivos intelectualmenteapreensíveis da comunidade sucumbem à decomposição pela atividade críticado intelecto. Nesse pensamento encerra-se toda a distinção valorativa entreidéias religiosas e mundanas de comunidade. O mistério místico dacomunidade opera promovendo a vida, enquanto o mistério oculto doindivíduo, o recalque, o pecado, a impede e se enrijece na alma emcomplexos que prevalecem e conduzem à neurose.[ 38 ]

Contra essa neurose não existe auxílio, reconhece o calvinista Jung, senãouma confissão veraz. Não uma confissão geral e recíproca dos pecados, comoa praticam os protestantes, pois seria vazia, sem conteúdo, ou meraimpossibilidade moral. Impõe-se uma confissão privada, confissão auricular.

Jung distingue diferentes níveis de psicoterapia.[ 39 ] O primeiro nível, aconfissão na psicanálise, traz ao doente esclarecimento sobre o seu mal,deixando-o depois em desamparo. O segundo nível, a confissão na psicologiaindividual, mostra ao doente a viciosidade do seu afã e dos seus objetivos ebusca educá-lo para os sentimentos comunitários. Mas deixa-o novamente emdesamparo, pois não sabe indicar-lhe uma comunidade onde viver. Por isso,Jung postula um terceiro nível, o nível da transformação, talvezcorrespondente à absolvição. O doente deve transformar-se, deve transformara sua vida, deve aprender a viver segundo um exemplo moral. Para esse fim,no entanto, também o médico tem de transformar-se. O próprio médico temde tornar-se o exemplo moral. Eis onde fracassa Jung. Ele é incapaz derealizar essa transformação. Pois o que ele requer do médico não é possívelsenão ao sacerdote.

Page 59: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Depois de bastante tempo indo ao médico, temos de reaprender a ir aosacerdote. Mas a qual sacerdote? Jung não nos sabe dizer nada, pois écalvinista, e o clérigo reformado não é sacerdote, mas mero funcionárioparoquial instruído em teologia e incapaz de oferecer outra coisa senãopalavras de amigo e interpretação das Escrituras. O que o sacerdote teria deoferecer ao doente – e estamos todos doentes – são no entanto sacramentos;não os atos simbólicos vazios da Igreja Reformada, e sim, dispensadores degraças, os sacramentos da fé católica, sacramentos que nos ligam novamenteà comunidade e nos unem com ela ao corpus Christi mysticum. O conceito desacramento só se torna compreensível em formulação coletiva. Todosacramento, afinal, é de algum modo comunhão. Ao conceito junguiano deinconsciente coletivo contrapomos o conceito nosso de consciente coletivo.Estamos todos caminhando no escuro, e muitos fogos-fátuos nos deixam nastrevas mentecaptos. Há uma única luz verdadeira nas trevas: justamente oconsciente coletivo que é a Igreja.

27 Excesso da psicologia materialista é o behaviorismo americano. Os behavioristas já não estudam processospsíquicos, porque os negam. Há somente modalidades de relação, e os objetos mais apropriados dessa psicologia sãolactantes e bichos. O seu pendant russo são os reflexólogos, que consideram os ditos processos psíquicos todos comoreflexos condicionados, à semelhança de rir e chorar. Interessa às duas escolas provar a dependência incondicional dohomem ao ambiente e negar o livre arbítrio. Eis de mãos dadas homens-máquinas americanos e bolchevistas! Cf. JohnB. Watson, Behaviorism, Chicago, University of Chicago Press, 1930.28 O melhor panorama das correntes psicológicas presentes oferece-o Karl Bühler em Die Krise der Psychologie, 2.Aufl., Jena, Fischer, 1929. Recomendáveis são, ademais, Hans Driesch, Grundprobleme der Psychologie, 2. Aufl.,Leipzig, Reinicke, 1929 e Joseph Fröbes, S.J., Lehrbuch der experimentellen Psychologie, 3. Aufl., Freiburg imBreisgau, Herder, 1923–1929. Sobre a crítica da psicologia profunda, cf. Anna Tumarkin, Die Methoden derpsychologischen Forschung, Leipzig, Teubner, 1929.29 Selz investigou especialmente o curso do pensamento, Lindworsky o ato do juízo, Ach o ato da vontade. Com essaênfase no momento intencional, chegamos perto outra vez da escolástica. É que essas tendências psicológicas não raroremontam a Franz Brentano. Cf. Johannes Lindworsky, S.J., Experimentelle Psychologie, 4. Aufl., München, Kösel &Pustet, 1927; Richard Hönigswald, Grundlagen der Denkpsychologie, 2. Aufl., Leipzig, Teubner, 1925.30 Driesch chamou a atenção para a importância dos acentos de sentido em nossas representações, sobre significaçõesde ordem, qualidades de reconhecimentoe tonalidades de existência.31 Christian von Ehrenfels, a quem se deve também o exemplo da melodia, formou primeiro a idéia da Gestalt. Aconstrução ulterior dessa psicologia origina-se de Wolfgang Köhler e Max Wertheimer. Cf. Kurt Koffka, Zur Analyseder Vorstellungen und ihrer Gesetze, Leipzig, Quelle & Meyer, 1912; Karl Bühler, Die Gestaltwahrnehmung, Stuttgart,Spemann, 1913.32 As ilusões dos sentidos na observação de figuras geométricas ou na avaliação de fenômenos cinéticos explicavam-seanteriormente como ilusões do juízo. Mas então por que nem sempre se manifestam? Os mecanismos de regulação,como suprir corretamente as palavras faltantes num texto, explicavam-se pela experiência. Com isso não condiz,porém, o fenômeno da camuflagem, conforme o qual alterações ligeiras podem tornar figuras e desenhoscontinuamente irreconhecíveis. Da camuflagem se faz uso, por exemplo, na cenografia. A psicologia da Gestalt explicaesses processos todos mediante a introdução de fatores diretivos, como os que são produzidos sobretudo pelo ambiente(campo psicológico).33 Da tipologia caracterológica fizeram-se beneméritos especialmente Dilthey, Jaspers, Spranger, Kretschmer, Jung,Klages e Rutz. De alta importância para todas as disciplinas das ciências do espírito, os tipos conduziram à modernapsicologia compreensiva, que deu relevante contribuição para refundamentá-las todas. Chegamos assim a umacompreensão inteiramente nova na história e na pedagogia, na sociologia e na etnologia. Basta mencionar nomes como

Page 60: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Wilhelm Dilthey, Georg Simmel, Hans Freyer, Max Scheler, Eduard Spranger, Theodor Litt, Erich Rothacker etc.34 Das dificuldades de uma concepção axiologicamente neutra da história informa-nos Joachim Wach em DasVerstehen, Bd. 3, Das Verstehen in der Historik von Ranke bis zum Positivismus, Tübingen, Mohr, 1933. Com umaabordagem axiológica, já conseguiu Troeltsch superar o relativismo. Cf. também Eduard Spranger, Der Sinn derVoraussetzungslosigkeit in den Geisteswissenschaften, Sitzungsberichte der Preußischen Akademie derWissenschaften, Philosophisch-Historische Klasse, Nr. 1, Berlin, Akademie der Wissenschaften, 1929.35 Que a psicanálise seja poesia, ou, em conformidade com a época do seu surgimento na virada do século, em partepoesia naturalista grosseira, em parte poesia simbolista, jocosamente o exprimiu Papini em seu livro Gog. A idéia,porém, merece consideração.36 Demonstra as dificuldades na crítica da psicanálise o número especial da revista Süddeutschen Monatsheftereservado ao assunto: Cossmann chama a Freud um niilista por causa de falsos pressupostos filosóficos; Allers deploraa falta de pressupostos filosóficos; Maylan repreende a Freud o naturalismo científico-natural; Hoche desaprova aexatidão científico-natural faltante.37 O valioso em Adler é essa concepção finalista que, sobretudo pedagogicamente, confere alta significação à suateoria. Mas a cosmovisão subjacente, liberal em essência, permite-lhe evitar timidamente as conclusões religiosas queresultam por necessidade. Cf., afora os escritos do próprio Adler, todos os quais, sem exceção, são de boa leitura, ErwinWexberg, Individualpsychologie, Leipzig, Hirzel, 1928. Da psicanálise, contudo, eu não saberia indicar uma exposiçãosintética realmente boa. Há mesmo que ler o próprio Freud, mas mais recomendável do que as amplamente divulgadasconferências de introdução é no entanto o livro dos sonhos. Cf. também C. G. Jung, Wandlungen und Symbole derLibido, 2. Aufl., Leipzig und Wien, Deuticke, 1925.38 O quanto é inseguro o fundamento da construção de Jung comprova-se pelo seguinte: partindo de pressupostosmuito semelhantes e seguindo igualmente o exemplo de um coletivo, porém do coletivo das “mães”, hostil ao espírito,hostil à religião, Hans Prinzhorn chegou a buscar a convalescença no ctonismo de Klages.39 O raciocínio dos níveis de psicoterapia encontra-se em C. G. Jung, Seelenprobleme der Gegenwart, Zürich, Rascher,1931.

Page 61: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

A GRANDE ILUSÃO

Nota preliminarANTES DE TUDO, registre-se enfaticamente que os ataques do presente capítulonão se dirigem contra o protestantismo, e sim contra os teólogos dele,especialmente os liberais.

Como, em nome da clareza, não se levaram em conta senão circunstânciasalemãs, faça-se pelo menos breve menção à interessantíssima evolução naInglaterra.[ 40 ] A Igreja Anglicana se orgulhava de seguir a via media entrecatolicismo e protestantismo. Seu teólogo máximo, John Henry Newman,reconheceu como perigosa incompletude o meio-termo, converteu-se apósdura luta de consciência e tornou-se mais tarde cardeal da Igreja Romana.Na Igreja Anglicana, em estado de caos quando ele a deixara para trás,desenvolveu-se a tendência do anglo-catolicismo ou ritualismo, que no rito eno dogma acercava-se consideravelmente de Roma, sem poder no entanto sedecidir pela união. Hoje, na Inglaterra e nas colônias, há cerca de setecentascomunidades anglicanas nas quais se reserva o sacramento do altar após atransubstanciação. Em outras cem, o sacramento é exposto para adoração,os sacerdotes são obrigados ao celibato, claustros existem etc.. Contudo,vale para os ritualistas a sentença do Papa Pio IX: “São católicos semunidade e protestantes sem liberdade”. Daí não ter sido suficiente oritualismo tampouco e não terem terminado as tentativas de unificação.Recordem-se as conversações entre o falecido Lord Halifax e o CardealMercier havidas em Malines nos anos de 1921 a 1925, infelizmente semresultados.[ 41 ]

Page 62: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

1. Dogma e tradiçãoERA UMA VEZ uma época em que a alma do Ocidente vivia de uma só fé.Amargo, nessa observação, é que tenha de ser introduzida com a fórmula doscontos de fadas. À nossa época, afinal, tal coisa lhe soa mesmo como umconto de fadas.

A cosmovisão do homem medieval, ancorada no dogma da Igreja Católica,via o mundo, espacialmente, como uma catedral que da Terra tende ao Céu e,temporalmente, como um drama que abrange o Céu e a Terra.

O mundo estava construído como uma catedral que dos fundamentos damatéria inanimada vai ascendendo sobre os níveis das plantas e dos animaisaté chegar ao homem, a partir do qual transpõe os coros dos anjos atéculminar-se no florão denominado Deus. Não é, decerto, alvenaria morta, esim, em cada um dos seus membros, uma construção viva que tende ao altoem direção a Deus e em que se ondeia, para cima e para baixo, vida eterna:do Céu à Terra descem os anjos, como mensageiros de Deus junto aoshomens, e, mensageiros da humanidade junto a Deus, nostálgicos apressam-se os santos em direção ao Céu.

A história universal era um poderoso drama. Começava com a queda dosanjos rebeldes, continuava-se na criação do mundo e do homem, no pecadooriginal e nas histórias da Antiga Aliança, tinha o seu ponto culminante naredenção pela encarnação de Deus, e seguia adiante através de crepusculareslonginqüidades futuras até à aparição do Anticristo, ao fim da históriahumana com o Juízo Final e ao fruto de uma vida nova na Jerusalém celeste.

A cosmovisão católica da Idade Média é de uma completude maravilhosa;dá a impressão de simetria arquitetônica. Por isso, como nenhuma outra,soube exprimir-se em sistemas artísticos e intelectuais perfeitos. Caminhemosaté diante do portal de uma das grandes catedrais góticas, por exemplo, nonorte da França, e estaremos em face da hierarquia, esculpida em pedra, doCéu e da Terra; lemos, ilustrado num imponente livro de pedra, o dramauniversal, tal como o representaram no mercado em frente à catedral, tantasvezes naqueles séculos, os atores dos Mistérios. Mas recebemos a mesmaimpressão de simetria arquitetônica diante das “sumas” dos grandesescolásticos, elas também poderosas catedrais do pensamento que se elevamda Terra ao Céu e espelham o drama universal.

Catedrais e sumas, ambas a pregar com imponência a doutrina da redençãoda Igreja Católica, são compêndios em pedra e catedrais do dogma,

Page 63: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

edificadas para a eternidade.Dogmática! Eis a palavra medonha! Para os homens de hoje, a quem a

teologia em geral costuma ser Hécuba, “dogmática” é um estrangeirismo aque se ligam umas vagas idéias de erudição livresca e vã logomaquia.

Alguém acreditará realmente, porém, que dezesseis séculos da históriaintelectual européia tenham se passado numa disputa de palavras que nadamais nos tem a dizer agora? Pois leia-se com olhos observadores a históriados dogmas, e, atrás das páginas secas, atrás dos teoremas abstratos, ver-se-ão emergir as mentes de homens, mentes vivas a quem só importava o que háde mais alto e de quem se pode esperar o que há de mais alto: o apóstoloPaulo, o homem com o livro e a espada, mestre dos gentios e vaso de eleição;a fisionomia voluntariosa do grande Atanásio; um soberano secular doespírito como Santo Agostinho, a quem o mundo não tinha visto nada igualdesde Platão e Aristóteles; um poderoso príncipe da Igreja como o santo egrande Papa Gregório; um arquiteto audaz do pensamento como S. Tomás deAquino; e assim por diante, através dos grandes polemistas da época daReforma até entrados os nossos dias, até ao último grande dogmático,chamado Pio IX. Mentes tão vivas geram vida. E o dogma é vida. “Pelos seusfrutos o conhecereis”. Assim, conhecemos a força vital do dogma católicopelas catedrais do gótico e pelas sumas da escolástica, pelos grandes santosda Idade Média e do barroco. E assim gememos sob os efeitos dos novosdogmas do dia. Pois hoje também existe uma dogmática. A igreja de onde aensinam chama-se ciência. Ela venera como santos certos experimentadores,médicos e estatísticos e acredita-se capaz de milagres, milagres da técnica eda economia, mas não redimiu ninguém até o momento.

O centro da nossa fé dogmática é a doutrina da redenção pelo Deus-Homem Jesus Cristo. Não sendo Jesus Cristo o Deus Homem, não tendomorrido por nós na cruz e não tendo ressuscitado dos mortos no terceiro dia,então estamos perdidos para sempre. Esse dogma é, por si só, resgate e eternasalvação da nossa alma; e esse dogma a Igreja preserva-o fielmente em suatradição. A Bíblia e a tradição são os fundamentos da doutrina da Igreja. QueJesus Cristo nos tenha redimido através do Seu próprio sacrifício, sabemo-loda Bíblia. Porém, como diz Santo Agostinho, cremos na Bíblia por dartestemunho dela a Igreja. A Igreja é o vaso vivente através do qual somosunidos com Jesus Cristo num só corpus mysticum. Na Igreja está a verdadeiravida, na tradição da Igreja vive a verdade. Falsa fosse a tradição da Igreja,ruiria em estilhaços a catedral da doutrina da fé cristã e estaríamos míseros e

Page 64: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

solitários diante dos escombros. Que assim tenha acontecido a muitoshomens é uma das conseqüências da Reforma.

Não vamos recair nos erros de alguns apologistas mais velhos e deixar quenos induza à injustiça essa grande desgraça que foi a Reforma. Não hánenhuma dúvida de que uma intensa vida e necessidade religiosa tenha seenraizado num homem como Martinho Lutero.[ 42 ] Também devemoslembrar que a Igreja Católica não ficou nunca tão forte, interiormente, comoapós a Reforma. Ela cresceu com os opositores. Contudo, foi uma desgraça,para ninguém mais do que para o povo alemão, que até aos dias de hojepadece gravemente sob a dilaceração confessional; foi uma desgraça para aIgreja Católica, que perdeu membros vivos do seu corpo; mas a desgraçamaior foi para os sucessores e adeptos dos próprios reformadores: junto coma Igreja visível vão perdendo pouco a pouco a fé e o cristianismo. Pois entreo dogma, que nos alimenta a alma, e a tradição, que testemunha o dogma, háum vínculo vivo que não se pode romper impunemente.

Era o princípio da Reforma negar a tradição autoritária na Igreja.[ 43 ]Bem queriam permanecer cristãos, porém nada mais saber dos grandespadres, santos, papas e teólogos que haviam preservado o dogma fielmenteaté aos dias deles. Os reformadores presumiram distinguir no cristianismonúcleo e casca, assim cortando fora, sem piedade, tudo o que ao seu olhar a-histórico parecesse casca, até que à luz saísse um “núcleo”, já não comestível.Antigas vestes cerimoniais da Igreja Católica costumam durar séculos; se,com mão tosca, delas se arrancam os bordados e ornamentos, junto se vãotambém pedaços do precioso pano e, por fim, o que resta entre as mãos sãotão-somente uns trapos. Assim aconteceu à teologia protestante.

***A teologia protestante construiu a sua fé dir-se-ia que inteiramente sobre a

Bíblia. Pois em realidade não foi nada disso. Os antigos protestantesortodoxos adotaram da Igreja Católica, com algumas modificações, quase adogmática toda, tal e qual, nutrida das fontes de instituição divina,acumulara-se como sabedoria herdada dos séculos no transcurso da históriada Igreja. Como, porém, negligenciaram os testemunhos dos padres da Igrejae renunciaram ao testemunho da tradição eclesiástica, daí resultou, para arazão, uma dificuldade que o catolicismo jamais conhecera. Assim aconteceuque, na mesma época em que a Igreja Católica, com o dom divino da razão,superava todas as dificuldades dogmáticas vitoriosamente no Concílio deTrento e anunciava a razão humana, por assim dizer, como esposa de Cristo,

Page 65: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Martinho Lutero a maldizia como esposa do diabo. Os antigos teólogosprotestantes foram obrigados a afirmar a inspiração verbal da Bíblia, já queestavam obrigados a ler nela, em cada letra e em cada vírgula, um dogma quepor ninguém mais lhes tivesse sido atestado. Esse método deixava uma únicaescolha: ou petrificar o dogma, como acontecera na Igreja Oriental, oudissolvê-lo pouco a pouco. Pois desaparecera desse sistema doutrinal, de umavez para sempre, o sopro de vida católico. Escolheu-se o caminho dadissolução.

O iluminismo saiu à frente. Para o século XVIII, época tão racionalista,estava o intelecto acima de tudo. Ora, nos Evangelhos e nos ensinamentos daIgreja, os iluministas se depararam com muita coisa que excedia o pequenoentendimento deles. Do ponto de vista da Reforma, ninguém lhes podia levara mal se novamente se pusessem a distinguir, no cristianismo, núcleo e casca.Se os reformadores separaram como casca tudo o que lhes tinha parecidoespecificamente romano, os iluministas acreditaram estar fazendo agora boaobra luterana ao separar como casca o especificamente cristão, a fim de reterapenas o núcleo de uma religião universal eternamente verdadeira.[ 44 ]Grande era o perigo de que, nesse empreendimento, absolutamente nada lhesrestasse entre as mãos. E, em face desse perigo, os ortodoxos aferraram-secom tanto mais pertinácia à inspiração verbal da Bíblia, a qual e somente aqual lhes garantia a incolumidade do seu dogma. Não consideraram, contudo,que um dia a ciência iluminista não pararia tampouco diante da letra daBíblia.

Apenas um homem reconheceu o perigo. Era Lessing. Ele editou oschamados Fragmentos de Wolfenbüttel, do falecido professor Reimarus e dosquais logo ouviremos mais, mas não porque tivesse concordado com osímpios ataques ao cristianismo bíblico ali contidos, e sim porque desejava pôras duas partes a uma severa prova. Aos iluministas, mostrou-lhes que a fécristã se assemelhava a uma cebola, da qual podemos remover camada apóscamada se estivermos dispostos a ficar enfim de mãos vazias. Aos ortodoxos,mostrou-lhes que a doutrina da inspiração os defendia muito pouco da ciênciae que o dogma deles estava em suspenso, na verdade, já em Lutero.

Quando o ortodoxo pastor principal de Hamburgo, Goeze, acusou o poetade renunciar à fé cristã se não tomasse melhor a defesa da Bíblia, Lessingreplicou haver muitos milhões de cristãos dos quais ninguém podia abjudicaro nome de cristãos e que acreditavam, não pela autoridade da Bíblia, e simpor uma outra: os católicos. A esquiva foi tão surpreendente naquela

Page 66: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Alemanha que Goeze não soube que resposta lhe dar. Lessing, depois,desenvolveu ainda mais a idéia, sem ser compreendido. Quando ele ensina,em sua Educação do Gênero Humano, uma revelação perpétua de Deus àhumanidade, o que é isso senão paráfrase moderna do conceito católico detradição?[ 45 ] Foi um momento histórico do protestantismo alemão:mostravam-lhe, pela primeira vez desde a Reforma, a verdadeira face docristianismo. O momento histórico foi desperdiçado.

Saíram-se vencedores o racionalismo e o iluminismo. Falou-se do dogmatão pouco quanto possível e substituíram-se aos bons e velhos cânticos umascançõezinhas novas nas quais se louvavam o aleitamento materno ou autilidade da engorda em estábulo. O cristianismo estava reduzido a umamoral utilitarista chã em prol do Estado.

Semelhante moral dispensa revelação. Era simplesmente lógico, portanto,que, por volta da mesma época, Immanuel Kant enunciasse o conceito deautonomia moral: a divindade não nos revela a nossa moralidade, mas antes aencontramos pronta em nossa consciência moral, que nos dita o imperativocategórico.

Não obstante todo o esforço, não se podia negar que ainda havia algoassim como uma religião cristã e que até mesmo acreditavam nela aindaalguns homens. Dessa dificuldade o filósofo do Estado prussiano, Hegel,conhecia uma saída boa: ele explicava a religião como forma primitiva defilosofia, e o dogma como espécie de filosofia hegeliana imperfeita, nãodesenvolvida, bastante indicada para pessoas que, nas próprias vidas delas,não chegariam nunca a professores universitários.

Os teólogos jubilaram. Tinham jogado fora a tradição, ninguém acreditavamais na inspiração de que falavam, e vinha agora um professor oferecer-lhesamavelmente a sua própria filosofia como apoio. Não deveriam, porém, terido com muita sede ao pote! O seu novo padre da Igreja, Schleiermacher,pregador da corte de Berlim, baseou a religião num vago sentimento dedependência do homem ao universo e permitiu aos ouvintes imaginar o quebem entendessem por Deus.[ 46 ] A religião protestante, a partir daí, esteveassentada sobre o arbítrio subjetivo do indivíduo, e a tentativa grotesca que oschamados teólogos da mediação fizeram de buscar nas profundezas da mentehumana os onze artigos da fé luterana, segundo os termos da Fórmula deConcórdia, conduziu apenas a uma dança ridícula para que ninguém pisasseconceitos mortos como a ovos.[ 47 ] Albrecht Ritschl, a quem chamarammaior teólogo do século, já não reconhecia outros conteúdos doutrinais,

Page 67: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

enfim, que não somente a divina pessoa de Jesus, cujo exemplo havia queimitar na vida.[ 48 ] Mas, enquanto isso, outros teólogos já haviam expostoessa pessoa divina ao perigo maior.

Acontecera o que Lessing havia pressentido. A crítica histórica acercara-seda Bíblia. Primeiro lançou-se sobre o Velho Testamento. Aplicou aovenerável livro os métodos filológicos em uso, até então, apenas comHomero e Horácio a fim de que gerações inteiras de estudantes passassem aodiar a Antigüidade. Decompôs o antigo livro em mil pedacinhos e trapinhosminúsculos e misturou bastante esses átomos, como se fossem baralho, paraque crianças crescidas se divertissem depois com juntá-lo habilmente naseqüência correta. Diz um velho provérbio que o diabo não consegue fazernada a não ser imitar o Senhor, mas disso não sai nada de sagaz: o diabo éapenas o macaco de Deus. É o que aconteceu aos críticos bíblicos. A duraspenas juntaram os seus pedacinhos, mas disso não resultou nenhum VelhoTestamento, e sim “fontes”, as quais supostamente subjazem a ele e nas quaisse pode acreditar ou não. E ninguém acreditou. Então vieram os orientalistas,que no suor do próprio rosto escavaram pelos desertos de areia da Babilônia eencontraram ali, “em cuneiforme inscritos em seis tijolos”, diversos textosbabilônicos antigos que apresentavam grande semelhança com os textosbíblicos da criação, da queda e do dilúvio. Como já estavam decididos a nãoacreditar mais na Bíblia, logo estavam de juízo pronto: esses textoscuneiformes babilônicos eram naturalmente as “fontes” dos relatos bíblicos,que agora não podiam reclamar sequer originalidade.[ 49 ] Daqui não eramais do que um passo à concepção de que o conteúdo inteiro da Bíblia fosseuma fraude só. Nesse sentido incitou Friedrich Delitzsch a chamadacontrovérsia de Babel e da Bíblia e escreveu A Grande Ilusão, livro em quetodo o Velho Testamento aparecia como plágio de sacerdotes judeus e fraudeastuciosamente calculada para ludibriar, uns séculos mais tarde, os inocentesgermanos.[ 50 ] Se Lutero despedaçara a tradição desde Cristo, entãoDelitzsch despedaçou a tradição até Cristo, cuja figura e história ficavamagora completamente no ar.

A crítica destruíra a doutrina da inspiração e, com isso, como corretamenteo pressentira Lessing, derrubara também o dogma. Todo o cristianismopareceu enfim uma “grande ilusão”.

A ortodoxia protestante ficou horrorizada. Não teve a coragem de deterpelo braço os seus colegas de faculdade, os críticos bíblicos. Quis salvar oque salvar fosse possível. Começou a mercadejar e regatear, indignamente,

Page 68: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

todo e qualquer ponto da profissão de fé. Os ortodoxos não notaram que seassemelhavam desse modo àqueles vendilhões e cambistas que Jesus açoitouno templo. Não temeram que o Senhor pudesse rejeitar-lhes a oferenda elançar àquelas descrentes trevas, onde há choro e ranger de dentes, os“servos” infiéis ao Verbo.

A criação, a queda e o dilúvio são sagas babilônicas? De acordo, masficará conosco a legislação moral mosaica. Já se encontra no código legal dorei Hamurabi? Muito bem, mas os profetas profetizaram Jesus Cristo. Osprofetas queriam dizer com isso umas coisas políticas e inteiramente outras?Pode ser, mas o próprio Jesus ainda está aí, nascido da Virgem Maria eressuscitado ao terceiro dia. Outros deuses da Antigüidade também tiverammães virginais e ressurgiram da morte? Ótimo, mas nenhum trouxe uma leimoral como Jesus. Antigos rabinos pronunciaram sentenças semelhantes?Menos mal, mas agora não queremos ouvir mais nada nem de história nem dedogma e nos aferraremos ao mero nome vazio de Jesus, o qual ninguém há detirar de nós!

O Senhor não se presta para brinquedo de crianças crescidas. Assimaconteceu que aos pobres teólogos se lhes roubasse, afinal, até o brinquedo.Como isso se passou é o que nos ensina a história das pesquisas sobre a vidade Jesus.

Page 69: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. A vida de JesusOs Evangelhos são um livro memorável, o livro mais memorável que

jamais se escreveu. Narram a vida, paixão e ressurreição do Deus-HomemJesus Cristo; e, a quem saiba ler direito, anunciam-lhe a sua própria vida,paixão e redenção temporal humana. Por isso os Evangelhos tocam-nos comonenhum outro livro do mundo e convocam-nos à decisão. Perante esse livrorevelam-se os nossos corações.

Quem empreende escrever uma vida de Jesus segundo os Evangelhos correo risco de que aí se reflita o seu próprio ser. Haveria que ter a fé e a confiançados evangelistas para levar a cabo uma nova vida de Jesus. Nos últimos centoe cinqüenta anos, muitos o tentaram. Faltou muita fé, faltou muita confiança.Os resultados foram conseqüentes. A história das pesquisas sobre a vida deJesus tornou-se uma grandiosa comédia secular, uma comédia que certamenteteve, para a teologia protestante, um trágico ato quinto.[ 51 ]

Os iluministas do século XVIII, a cujo horror ao milagre o conceito de Deus-Homem era inacessível, já não viam em Jesus senão um sábio homem bomque, muitas centenas de anos atrás, dissera coisas parecidíssimas com as dosmelhores filósofos setecentistas, sendo por isso perseguido pelos mui não-filosóficos judeus e entregue para que fosse crucificado. Jesus parecia umafável iluminista. Isso não só é pouco, não só não era congruente com afigura dos Evangelhos, como deixava inexplicado como é que desse martíriopuderam resultar tão extraordinárias conseqüências. Adoravam compararJesus com Sócrates, sem quebrarem a cabeça com a maneira como aquelerabino de Nazaré e de tão pouca formação filosófica havia entrado no papelde um Sócrates, sem quebrarem a cabeça com a razão por que é que da mortede Sócrates não havia nascido nenhuma igreja socrática que dominasse omundo.

O primeiro a quebrar a cabeça com essas coisas foi o hamburguenseHermann Samuel Reimarus, professor de ginásio, homem inteligente eentendido em muitas coisas, mas infelizmente de horizonte estreito epuramente racional. Reimarus se propusera sondar a intenção que Jesus podiater tido em vista ao proclamar-se Filho do Homem. Era então a época dosprojetos constitucionais iluministas, das teorias dos tratados internacionais,dos aventureiros políticos, gênero do qual Napoleão se tornaria mais tarde omaior. O professor tendo lido muito dessas coisas nos semanários, nada lhepodia ser mais óbvio do que supor que Jesus também fosse um deles. A coisa

Page 70: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

era clara: Jesus foi um rabino que soube fazer pregações com muito acerto,teve grande afluência, chegando com isso à idéia de exercer um papelpolítico, quis concitar uma insurreição judaica e, nessa circunstância, padeceumerecida pena capital. Os apóstolos, colegas bastante astutos, não querendodeixar que a morte inopinada do seu líder roubasse-lhes a almejada carreira,roubaram portanto o cadáver de Jesus e dolosamente o declararamressuscitado, com o que tiveram tanta repercussão entre os crédulos judeus epagãos que alcançaram, com efeito, o que não fora concedido ao seu mestre.

Não se deve desperdiçar palavra para dizer que essa ridícula construçãonão fazia justiça, por assim dizer, nem à personalidade de Jesus nem à dosapóstolos e que, em vez dos perfis evangélicos, delineava retratos que seoriginavam livremente da fantasia do professor Reimarus. Remairus morrerasem ter ousado publicar o seu manuscrito. Lessing, então bibliotecário emWolfenbüttel, o publicou anonimamente como supostos Fragmentos deWolfenbüttel. Os pastores ortodoxos não reconheceram, porém, que o Jesusdo professor Reimarus não era o Jesus dos Evangelhos; não ficaramindignados senão com o questionamento da inspiração verbal da Bíblia e sóquiseram tirar dali a conclusão de que os apóstolos foram homens realmentemelhores do que corria o rumor no ginásio de Hamburgo. Contra negar-se aoredentor a consciência messiânica, não conseguiram, homens deentendimento que eram, produzir nada de decisivo.

O entendimento era um trunfo. Aquilo que nos Evangelhos não fosseapreensível pelo entendimento tinha de acabar recebendo uma interpretaçãoracionalista. Tipo dessa época era um professor universitário em Heidelberg,Heinrich Paulus, que de novo empreendeu escrever uma vida de Jesus. Osmilagres causavam-lhe a maior ofensa e decidiu-se pela idéia de que nãoforam milagres os milagres dos Evangelhos. Jesus era o filho de uma virgem?Puxa. Nós outros, nas cidades universitárias, já vimos dessas coisas e,sorrindo com indulgência, não fazemos caso delas. Jesus curouenfermidades? Ora, pois isso os meus colegas da faculdade de medicinatambém fazem, e, sabe Deus, o rabino de Nazaré conhecia justamente umaservas e uns remédios que ainda não eram conhecidos de todos então. Jesusressuscitou a mortos? De jeito nenhum, só pareciam mortos. Jesusressuscitou? Um dos discípulos provavelmente roubou o cadáver, os demaisinfelizmente tiveram uma visão.

Foi esse o progresso de cinqüenta anos de trabalho científico: os apóstolos,no professor ginasial Reimarus, viraram uns velhacos, e, no professor

Page 71: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

universitário Paulus, eram idiotas.A velhacaria e a idiotia dos apóstolos estando agora igualmente obsoletas,

o mercado de livros teológicos pedia novidades. Forneceu-as o teólogo DavidFriedrich Strauß com a sua famosa Vida de Jesus, de 1836. Strauß, nome damaior das aves aliás, era um seguidor de F. C. Baur, o professor de Tübingenque foi o primeiro a transferir ao Novo Testamento o método crítico do Velhoe que ensinava os alunos a não buscar mais nenhuma verdade detrás dosrelatos evangélicos, e sim, antes, a não acreditar em mais nenhuma palavradeles. Strauß, com efeito, não acreditou em mais nada. Rejeitou de todo ométodo de explicação racionalista e em seu lugar colocou a teoria mítica:séculos atrás viveu na Palestina, talvez, um bom homem de nome Jesus, masnão sabemos nada de nada desse Jesus, na verdade nem sequer que tenha sidoum homem bom. Pois tudo, tudo o que se conta dele, ali, são indícios doVelho Testamento, com cujo esplendor o circundaram, ou histórias míticas dedeuses orientais, as quais a ele transferiram. Quem fez isso, por que fez isso ecomo puderam ter sucesso histórico universal umas composições míticas tais,não o sabemos. Jesus terá sido uma encarnação da idéia que domina oprocesso universal, uma espécie de Napoleão em vestes de rabino. De ondetirou isso Strauß, porém, não ficamos sabendo tampouco. Os pastores,indignados, não souberam produzir realmente nada contra essa interpretação,pois, se não há na tradição eclesiástica nenhuma interpretação autorizada daBíblia, qualquer teólogo pode, pois, expor a Bíblia como queira. Quantomenos os pastores e professores sabiam que dizer, tanto mais no entantoescreveram, porque o sucesso livreiro da obra estrutionídea não os deixavadormir com seus magros salários. Choveram vidas de Jesus, ortodoxas, semi-ortodoxas, positivas, semipositivas, livres-pensadoras moderadas, livres-pensadoras radicais. Mas houve um que abateu o avestruz afinal, ao fazer davida de Jesus – quem não arrisca não petisca – um romance.

O romancista era Ernest Renan, ex-aluno do seminário de São Sulpício.Estivera como orientalista na Palestina e fascinara-o a paisagem, onde a vivazfantasia dele soube introduzir vividamente as figuras que são tão familiares anós todos desde o jardim de infância. Assim nasceu-lhe a Vida de Jesus, semdúvida um dos melhores e mais interessantes romances da literatura francesa.O herói é um poeta-filósofo liberal, por volta de 1860, que a pregar preferecontar histórias belas às pessoas e que, digamos, evadiu-se do semináriojudaico por causa disso e vê-se forçado a suportar agora toda sorte de malesdos judeus clericalistas maus; uma autobiografia de leitura amena, em suma,

Page 72: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

mas situada no Oriente em lugar da Bretanha. Renan teria merecido, talvez,qualquer coisa de mais severo por ter feito um romance passar por obracientífica. Acreditaram no que disse, donde se depreende que o nosso públicoleitor e os nossos professores universitários sejam muito mais crédulos doque o apóstolo Tomé.

Fato era, em todo caso, que do Jesus dos Evangelhos nada mais restara, ecada teólogo e cada literato possuía carta branca para imaginar de Jesus o quelhe viesse à mente nas horas de ócio.

Teólogos protestantes sérios não conseguiram fechar-se às conseqüências.O professor Wilhelm Herrmann, de Marburgo, declarou abertamente nãoquerer saber mais nada da pessoa histórica e religiosa de Jesus, já que Jesus,para ele, era uma experiência vivida no mais profundo do seu ânimo einsuscetível de roubo, portanto. Outros questionaram-lhe, em vão, por quehavia escolhido justamente Jesus em vez de, por exemplo, Sócrates ou Platãoou Spinoza ou Kant. Como a faculdade de teologia de Marburgo não desse aisso nenhuma resposta, o professor Adolf Harnack, de Berlim, o luminarmáximo da teologia protestante no fim do século, deu mais um passo.Escreveu A Essência do Cristianismo, obra célebre que resultou tãoessencialmente cristã que um respeitado rabino do norte da Alemanha chegoua declarar que o livro pomposo, não contendo nada mais do que a religião doVelho Testamento, poderia ser aceito por qualquer judeu sem vacilar. Com atradição cai também o dogma cristológico. Com isso, porém, o cristianismose transforma na citerior religião judaica e fica privado de todo o valorespecificamente cristão. Nessa Essência do Cristianismo, decerto tratou-secom freqüência de um homem Jesus, mas, para a satisfação dos rabinos, jánão compareceu absolutamente o Cristo, o Filho de Deus.

Assim ficava Cristo afastado, definitiva e felizmente, da religião cristã. Láestava o Senhor Jesus e, como durante a vida, podia dizer que as raposas têmcovas sob a terra e que as aves têm ninhos sob o céu, mas que o Filho doHomem não tem onde reclinar a cabeça.

Porque os teólogos se negassem a preparar o lugar de repouso, fizeram-noos leigos. O Senhor Jesus foi deixado à mercê da “literatagem”. Veio então odiletante filosófico Eduard von Hartmann, que na vida havia escrito unsduzentos livros e brochuras sobre todas as coisas do mundo e mais umasoutras, e emitiu também a sua opinião sobre Jesus: simplesmente um plebeuzelote judeu sem importância especial. De opinião inteiramente outra, por suavez, era o filósofo da cultura Houston Stewart Chamberlain, que não estava

Page 73: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

propenso a deixar nada de bom aos judeus: nada sabemos de Jesus, mastalvez tenha sido loiro, logo ariano, nada tendo os judeus para orgulhar-seDele.[ 52 ]

Veio então aquele grande poeta varrido filosofia adentro, FriedrichNietzsche, que declarou Jesus um maldoso inimigo da cultura, o qual secolocara à frente de massas de escravos para despedaçar a cultura antiga. Deopinião bem outra é o literato alemão Hans Blüher, quem considera Jesus oprofeta de uma nobre raça ao qual a Igreja, má, imputara uma falsamisericórdia pelas raças inferiores.[ 53 ]

Mais outro grande poeta, mas com veleidades teológicas, Leon Tolstoi, viaem Jesus um nobre anarquista, nada mais nada menos que um Tolstoi deNazaré. Já o marxista Karl Kautsky reconhece em Jesus o arquétipo de umlíder proletário e o próspero fundador de um sindicato de apóstolos.

O antropósofo Rudolf Steiner, que a si mesmo tomava-se talvez pelo maiorprofeta da história da humanidade, revelou-nos definitivamente o mistério deCristo: havia, desde o princípio, dois rapazes de nome Jesus, um da Terra eum do Céu, a alma dos quais se fundiu, por ocasião da apresentação notemplo, depois do que se enlanguesceu o terrestre Jesus até morrer, ao passoque se elevava e se evolvia o celeste Cristo até chegar a ser o Pai (é paraacreditarmos nessa velha fábula gnóstica do apóstolo Steiner, mas em nadamais do apóstolo Mateus). Werner Hegemann, por sua vez, requenta asfábulas do iluminismo e afirma, sem fundamentação precisa, que Cristo nãomorreu na cruz, mas que o salvaram e que, às escondidas, dirigiu acomunidade primitiva por muitos outros anos depois, tão invisível, talvez,quanto os conselhos administrativos que conduzem os negócios de umasociedade anônima que é de resto visibilíssima.[ 54 ]

Já foi algo mais audaz o francês Ernest Havet, que simplesmente tomava oSenhor Jesus por um desequilibrado. Muitíssimo mais científico imagina-sedecerto o alemão Edersheim, para quem Jesus é um admirável médiumocultista que apresentou os truques da clarividência (leia-se: profecia), dalevitação (leia-se: transfiguração) e da materialização (leia-se: ressurreição),de maneira mais perfeita do que os médiuns do professor Schrenck-Notzing.

Por fim, chegou até aos folhetinistas o Senhor Jesus. Emil Ludwig,coroado de edições e produzindo em série biografias de Goethe, Napoleão,Bismarck etc., viu-se obrigado a escrever inclusive um Filho do Homem,elegante romance-folhetim cujo herói, ainda que tão-só, infelizmente, o filhode um carpinteiro, é no entanto magnanimamente dotado de todas as sutilezas

Page 74: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

da psicologia folhetinesca ludoviciana. Esperemos que Emil Ludwig continuemesmo a ser o último evangelista.

É que o bom Emil Ludwig parece não ter se dado conta da falta grave quecometeu dessa vez. Goethe, Napoleão, Bismarck, indubitavelmente viveramtodos três de fato. Mas como é possível escrever a biografia de um homem doqual se sabe hoje, com toda a certeza, que não viveu absolutamente nunca?

O pastor Albert Kalthoff pensava, em primeiro lugar, que o salvador, sobrecuja palavra prestara juramento, fosse uma fantasmagoria vã de sectáriosjudaicos. O professor Arthur Drews comprovou que Jesus era a divindade deum antigo culto entre os judeus, da qual nada se soubera, infelizmente, até oano de 1909. E o americano Benjamin Smith “demonstrou” que osevangelistas mesmos não tinham se referido a nenhuma outra coisa senão aosemelhante ídolo.

O zeloso trabalho dos teólogos protestantes durante um século inteiroterminara com uma derrota terrível: Jesus Cristo estava definitivamenteliquidado.

Page 75: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

3. A grande ilusãoA compreensão não surgirá por si mesmaa ninguém que se afaste e faça de si uma ilha.Novalis

Quando Kalthoff e Drews afirmaram publicamente que Jesus não tinhavivido jamais, grande indignação apoderou-se dos teólogos. Não é o quehaviam desejado. Tentaram até envolver também os fiéis das igrejasprotestantes nessa indignação, organizaram assembléias de protesto,realizaram conferências de oposição e outras coisas do gênero. Se osteólogos, no entanto, esperavam com isso desencadear um movimentopopular em favor deles, então eles próprios é que haviam sucumbido a umagrande ilusão dessa vez. Os fiéis não se indignaram. Não compareceram àsassembléias e não escutaram as conferências. Não acreditavam em maisnenhuma palavra dos seus pastores e teólogos. Era notório que os pastoresestavam pregando na igreja coisa inteiramente outra da que haviam aprendidona universidade.[ 55 ]

Da desconfiança demonstrada aos pastores não se deve concluir, porexemplo, que a necessidade religiosa estivesse desaparecida. Ao contrário.Justamente o fato de que tão numerosos escritos sobre Jesus aparecessem etivessem todos, sem exceção, fervorosos leitores, justamente isso mostra oquanto continuava vivo o interesse religioso. É compreensível que este seconcentrasse na figura inamovível que fica no centro da fé cristã. SeAlexandre ou César viveram ou não viveram pode interessar a historiadores.Se Jesus viveu, eis uma questão que interessa e concerne na verdade a cadaum de nós. A pergunta decisiva à humanidade e a cada indivíduo, então esempre, é: “Que vos parece a vós do Cristo?”.

Dir-se-ia válida inclusive para o primeiro século da nossa era, no qualviveu Jesus. Aí os adeptos da teoria mítica apontam triunfantes, contudo, osilentium saeculi, o silêncio dos séculos: os historiadores profanos daquelaépoca não nos sabem contar quase nada de Jesus.[ 56 ] Recorde-se, nestemomento, que, do homem mais poderoso do século XVII, WilliamShakespeare, não é que os historiadores profanos da época não nos saibamcontar quase nada, mas sim absolutamente nada. Não o mencionam, como senunca tivesse vivido. Isso desconcertou algumas cabeças. Apesar disso, aspessoas razoáveis não crêem na tolice dos baconianos, porque têm nas mãosum legado desse desconhecido Shakespeare: trinta e seis dramas imortais. E anós outros, que possuímos o Evangelho vivo na Igreja, deveria porventura

Page 76: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

perturbar-nos o silentium saeculi sobre Jesus? Antigos historiadores sempresouberam contar da guerra e dos rumores da guerra. Sim, mas são tãocontraditórios os relatos! Ora, como se a ciência histórica tivesse chegadoalguma vez a um juízo univocamente definido sobre personalidadesmodernas tão bem atestadas quanto Wallenstein ou Napoleão. Gerações dehistoriadores não puderam conciliar-se sobre tais personalidades, e deNapoleão não sabemos sequer se nasceu aos 7 de janeiro de 1768 ou 15 deagosto de 1769. Renderam-se-lhe honras divinas, como a talvez homemnenhum desde Alexandre Magno. Devemos acreditar, por isso, que Napoleãonunca viveu e que na verdade era um deus? Mas o curso das vidas de muitasdivindades redentoras harmoniza de maneira tão conspícua com a vida deJesus, dizem-nos os professores. Podemos também inverter a frase e, dauniformidade inegável com que deflui a vida dos professores universitáriosalemães, tirar a conclusão de que estes, na verdade, não viveram jamais. Enem por isso teremos a intenção de elevá-los a deuses.

A grande credibilidade dos evangelistas se depreende já do fato de que nãocalam a dolorosa negação de Pedro. Embora um Eckermann, em reverênciaao Goethe moribundo, tenha sido seguramente mais discreto, até agoraninguém conjeturou que Eckermann tenha inventado certo Goethe. Qualquercoisa teria lhe faltado para tanto. E quanto mais não faltou aos pobrespescadores do Mar da Galiléia para inventar a figura de Jesus? Disse umfilósofo, com razão, que só um mentecapto poderia negar a existênciahistórica de Jesus. Hoje os mentecaptos estão em extinção. Um livro como aStoria di Cristo, de Papini, tem boa saída, não porque ainda nos interessemospor Jesus, mas porque já acreditamos nele outra vez.

Também a crítica bíblica saiu-se mal nos últimos tempos. O métodocomumente aceito do baralho mostrou-se inaplicável ao Novo Testamento.Quanto ao Velho, acredita-se hoje menos nos críticos do que no veneráveltexto original.

Uma comparação do Velho Testamento com livros de outras religiões doOriente, tais como a todos se apresentam agora na coleção Sacred Books ofthe East, demonstra, desde logo, a magnífica superioridade do livro hebraico.Se não nos contentamos com excertos isolados, que só contêm pérolas e raiosde luz, mas sim lemos, de cabo a rabo, livros religiosos chineses, hindus epersas, sufocaremos no amontoado de narrativas e prescrições absurdas, etanto mais vivamente admiraremos o gosto dos autores que em cada linhafizeram do Velho Testamento um livro legível e merecedor da leitura.[ 57 ]

Page 77: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Esse gosto não é sensibilidade artística, mas inspiração religiosa.Afirma-se que também na Babilônia acham-se uns começos de

monoteísmo, e entre todos os povos naturais comprovaram-se vestígios deuma crença original num único deus.[ 58 ] Mas tais vestígios não são nadacomparáveis com o monoteísmo israelita. Decerto o Katha Upanishad hindupressagia um ser supremo, do qual só se pode dizer: “Ele é”. Maspermaneceu presságio, feito de passagem, desacompanhado de outro,enquanto os israelitas já davam ao seu Deus, por antonomásia, o nome deJavé, quer dizer: “Ele é”. Javé não é deus nem da natureza nem da tribo. Elenão conhece deuses diante de si.

Que as sagas babilônicas da criação, da queda e do dilúvio fossem maisantigas do que os relatos bíblicos é hoje muito improvável por razõeslingüísticas. A superioridade dos salmos veterotestamentários sobre os cantospenitenciais babilônicos é alta como o céu. E de um Isaías ou Jeremias não seacharam vestígios nos fragmentos de tijolos babilônicos.

Mas o Velho Testamento é não apenas religiosamente superior comotambém de assombrosa confiabilidade histórica. Demonstrou-o pela primeiravez o historiador berlinense Eduard Meyer: justamente para os livros deEsdras e Neemias, nos quais se farejava antigamente a mais grave das fraudessacerdotais, encontrou ele surpreendentes testemunhos em documentosbabilônicos de Estado.[ 59 ]

Vão ainda mais longe as provas aduzidas pelas recentes escavações naPalestina. Assim, por exemplo, tinha-se por romance lendário a narrativa dadestruição da cidade de Gabaa (Juízes 20); hoje estão expostos os escombrosda violência. O americano Albright conseguiu mostrar que o vale do Jordãojá estava colonizado cerca de três mil anos antes de Cristo, no que até alininguém queria acreditar. Com isso, também se tornou novamente aceitável ahistoricidade das narrativas dos patriarcas.[ 60 ] Cada dia a pá traz à luzsurpresas novas e refulge em luz cada vez mais clara a credibilidade do VelhoTestamento.[ 61 ]

No Novo Testamento, contentaram-se sobretudo com explicar comoinserções ou interpolações os trechos incômodos. Constitui testemunhoesplêndido desse método a passagem de Mateus 16, 18: “Tu és Pedro, e sobreesta pedra edificarei a minha igreja”. Sobre este trecho, como se sabe,fundamenta a Igreja Romana a reivindicação do seu primado. Nada agradávelpara teólogos protestantes, pois o texto das Escrituras é, como diria Lutero,“sobremodo poderoso”. Durante muito tempo serviram-se de uma talmúdica

Page 78: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

interpretação: Jesus não se referira a Pedro, mas à pétrea fé de Pedro. Maistarde simplificaram as coisas: a passagem foi falsificada, inserida,interpolada. Agora, mesmo na tradução grega que temos nas mãos, oEvangelho de Mateus é no entanto um antiqüíssimo documento que já estavaterminado mais ou menos entre os anos de 70 e 75, segundo Harnack, e quelogo se tornara conhecido em todas as comunidades. Quem poderia terousado inserir aqui palavras falsas de Jesus? Quando isso aconteceu? Issoninguém nos diz. Porém, a coisa fica ainda melhor. Sem dúvida, muito maisantigo era o texto aramaico original, que se perdera. E agora o professor KarlLudwig Schmidt, de Bonn, demonstra que o versículo tinha de constar, porrazões lingüísticas, já do original.[ 62 ] Contentam-se, hoje em dia, com oembaraçoso adendo de que eleger-se justamente Pedro é tão incompreensívelquanto justamente entre o povo judeu ter nascido Jesus. E o mundo não ri.

É que entrementes perdeu a vontade de rir. Alguma coisa aconteceu. Omundo jaz no maligno. Por fiéis que sejam, nenhuma das pesquisas restitui afé perdida. Isso os teólogos protestantes vêm sentindo na própria pele. E, emdesespero pelo mundo e pela sua própria ciência, voltam-se, como se nelanão achassem salvação, para a fonte da sua própria fé, para a Reforma.

Com veneração é preciso mencionar, aqui, o nome de um homem quedesesperadamente lutou uma vida inteira pela fé cristã que havia perdido:Ernst Troeltsch. Foi o primeiro a indicar que o cristianismo merecia mais altoapreço histórico do que todas as outras religiões. Talvez não conseguissefornecer para isso senão testemunhos históricos, porém nenhuma provaconcludente à maneira da filosofia da religião. Mas deu fim àquelenivelamento relativista que não sabia mais distinguir valores.

Era preciso recuperar na religião o elemento irracional. A essa tarefadedicou-se com grande êxito Rudolf Otto. Tornara-se costume, noliberalismo protestante desde Schleiermacher, enxergar no sagrado somente asublimidade moral. Otto mostrou que o sagrado é um conceito maisabrangente, que ao moralmente sublime acresce-se o religiosamente sublime,o numinoso. Em magistral análise psicológica desse numinoso, encontra neleo mistério em que está encoberta de nós a divindade: o tremendum, que a nósnos faz temer e tremer perante a divindade, e o fascinans, que a ela nos atraicom veemência amorosa irresistível. Esse numinoso, porém, não é um vagosentimento subjetivo de dependência, como em Schleiermacher. Osentimento de dependência que trazemos todos no peito é antes a anímicaresplandecência interior do numinoso, que em concreta plenitude e glória

Page 79: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

impera sobre nós.[ 63 ]Com isso o cristianismo protestante reobteve enfim uma profundidade

irracional. Deu mais um passo a teologia dialética (Karl Barth, FriedrichGogarten, Emil Brunner).

Chama-se dialética por abrir um hiato infinito e infranqueável abismo entreo homem e Deus. Deus é o “inteiramente outro”, perante o qual é incerta anossa autocracia humana, perante o qual os nossos feitos todos são nada,porque nos pusemos em falsa liberdade e apostatamos. Desde então estamosnós e o mundo sob a ira de Deus, nem mesmo a Igreja conseguindoaconselhar-nos senão a despedaçar cada qual o seu eu arrogante e a tomar aprópria cruz, sem que jamais estejamos certos de que com isso chegaremosoutra vez a Deus. Pois é imenso e impreenchível o hiato da dialética entreDeus e homem, mundo e Deus.[ 64 ]

A teologia dialética tem os seus grandes lados de luz e os seus grandeslados de sombra. Deu fim, definitivamente, ao falatório untuoso dos pastoresliberais. Fala-se de novo, sem controvérsia, de dogmas, de sacramentos e deIgreja. Pôs-se de lado a falsa moralidade autônoma dos kantianos erestabeleceu-se a autoridade do chamamento divino dos homens.[ 65 ] Desdeentão existe entre os protestantes uma espécie de movimento de alta igreja.Friedrich Heiler tenta conferir maior gravidade às formas litúrgicas, einclusive um leigo, como o filósofo Willy Hellpach, procura persuadir aigreja irmã a olhar atenta o semblante da venerável mãe romana, mais umavez, para que aprenda com ela.[ 66 ] Já se movem timidamente, como no casodo nobre pastor Johann Lortzing, esforços de unificação.

Mas grandes são também os lados de sombra. Não se pode apelar direito àautoridade numa igreja que carece de liderança autoritária e de tradiçãovinculante. A prova clássica disso fornece-a o referido professor Heiler, quedeseja fazer muita coisa pela assimilação do protestantismo a Roma, mas, porfalta da tradicional sabedoria herdada da Igreja, deixa-se enganar imediata egrosseiramente por um vigarista místico hindu como Sadhu Sundar Singh.

E de que maneira se pretende falar de Igreja e de sacramentos, se essasigrejas e esses sacramentos, em face do hiato infinito entre Deus e o homem,não estão em condições de transmitir a salvação da graça? O deus alheio deKarl Barth é um certo numinoso no qual tão-somente sentimos na pele otremendum. É o Deus ignoto daquele gênero que caminha nas trevas. A Elepoderiam se dizer as palavras do profeta Isaías: “Vere tu es Deusabsconditus”. Esse Deus oculto, terrível, é o Deus da Antiga Aliança, antes

Page 80: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

que estivesse instituída a Nova. Mais ainda, esse Deus marcionista não terianunca sido capaz de instituir a cruz da caridade.[ 67 ] Sabemos, porém, que jáestá instituída a cruz. Por isso não perdemos a esperança de que um dia opovo que ainda hoje caminha nas trevas verá a luz e clamará conosco: “Avecrux, spes unica!”.

40 Cf. Paul Thureau-Dangin, La renaissance catholique en Angleterre au XIXe siècle, Paris, E. Plon, Nourrit et Cie.,1899–1906.41 Cf. Karl Krczmar, Rom und der Ruf zur Einheit, Wien, Reinhold, 1929.42 Troeltsch demonstrou ser de natureza essencialmente monástico-medieval e agostiniana a vida religiosa em Lutero ecompletamente absurda a apreciação dele como herói da cultura e do progresso. Cf. Ernst Troeltsch, “ProtestantischesChristentum und Kirche in der Neuzeit”, Die Kultur der Gegenwart, T. 1, Abt. 4, Bd. 2, Systematische christlicheReligion, 2. Aufl., Berlin und Leipzig, Teubner, 1909. Nos últimos tempos, realçam-lhe preferencialmente os traçosmístico-orientais.43 A antiga ortodoxia protestante reconhecia, no início, o perigo da falta da tradição. Melanchthon foi um calorosodefensor do tradicionalismo. O seu discípulo predileto, Martin Chemnitz, distinguiu oito espécies de tradição, das quaisaceitou sete e rejeitou a oitava e mais importante: a tradição viva da Igreja medieval. Cf. Otto Ritschl,Dogmengeschichte des Protestantismus, Bd. 1, Leipzig, J. C. Hinrichs, 1908.44 A evolução do protestantismo para religião cultural e a aliança entre protestantismo e idealismo alemão sãoretratadas de maneira incomparável por Troeltsch (op. cit.).45 Lamentavelmente, ficou durante muito tempo desconhecida a face espiritual de Lessing. Os liberais do século XIXfizeram dele um seco filisteu livre-pensador, à triste imagem e semelhança de si mesmos. Apenas Dilthey, em Vivênciae Poesia, determinou lugar certo ao teólogo Lessing, mais perto de uma viva fé cristã do que do iluminismo e daortodoxia (cf. também Hans Leisegang, Lessings Weltanschauung, Leipzig, Meiner, 1931). O apelo de Lessing aoprincípio católico de tradição (Axiomata, VIII) foi oportunamente valorizado por Karl Beth.46 De maneira tipicamente luterana, Schleiermacher estabelecia uma distinção entre proposições doutrinais, que seaceitam, e uma fé em que se possa crer. Os dogmas, neste sentido, podem ser aceitos, mas não cridos, com o que seinicia a desvalorização dos dogmas.47 Os téologos da mediação J. C. K. von Hofmann e F. H. R. Frank, de Erlangen, decidiram-se a favor de que a fé nãoé senão o que pode ser crido no sentido luterano. Com isso, justamente o lado ortodoxo tornara muito suspeita a fé emdogmas, que não podem ser cridos nesse sentido, e rasgara-se ainda mais dolorosamente a funesta ruptura entre teoria eprática.48 Albrecht Ritschl queria conceder plena liberdade à pesquisa histórica, excetuando-se o fato da ressurreição; com issocomeçam os mercadejos e regateios. Não é possível compreender por que é que a crítica haveria de desmoralizar ahistória do nascimento e teria de parar diante da ressurreição. Kantiano que era, Ritschl não se interessa senão pelapersonalidade moral de Jesus, Jesus esse que não pode ser “crido” e sim somente aceito.49 Caracteriza melhor o ponto de vista da teologia protestante radical, que dissolve em mito e judaísmo o Evangelho,William Wrede, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1901.50 Friedrich Delitzsch, Babel und Bibel, Leipzig, J. C. Hinrichs, 1903; Die große Täuschung, 2 T., Stuttgart, DeutscheVerlags-Anstalt, 1920–1921. É característico da mudança dos tempos o fato de que o primeiro escrito tenha causadosensação enorme entre os teólogos como entre os leigos, enquanto ao segundo a ciência o tenha passado em silêncio. Oque ainda parecia em 1903 ser resultado científico estabelecido já estava em 1920 desmascarado como libelotendencioso.51 Quem melhor nos informa é Albert Schweitzer, Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, Tübingen, Mohr, 1926.52 Tanto dos cabelos loiros dos amoraítas quanto do dialeto divergente da população galiléia deduz Chamberlain aascendência ariana de Jesus. À parte a ridícula debilidade dessa argumentação, Chamberlain não deixa claro emnenhum momento que ariano seja o seu ponto de vista.53 Blüher tenta ler nos Evangelhos a moral nietzscheana dos senhores. Para ele, que nada sabe da religião da graça, ocristianismo é uma religião da natureza.54 Hegemann tem um precursor no poeta irlandês George Moore, que em seu romance The Brook Kerith faz Jesus,igualmente, ser salvo e seguir vivendo. Os adeptos da bela teoria psiquiátrica, que continuou a ser desenvolvida porBinet, têm um sucessor poético em Gerhart Hauptmann, com Der Narr in Christo Emanuel Quint.55 Que, na Igreja Protestante, a doutrina das universidades e o sermão dos pastores discordem imensamente entre si éum fato que não raro percebeu-se dolorosamente, mas que quase sempre se calou com muita indulgência. Constituiu

Page 81: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

célebre exceção o historiador basiliense da Igreja Franz Overbeck, que acabou recusando, por fim, a designação de“teólogo” (cf. C. A. Bernoulli, Franz Overbeck und Friedrich Nietzsche, Jena, Diederichs, 1907–1908). Tanto mais sedeve acentuar neste ponto que, nos fiéis evangélicos, vive plena e genuína devoção.56 Sobre a questão da historicidade de Jesus, note-se ainda que, mesmo sem levar em conta o testemunho dosEvangelhos, não se podem levantar objeções críticas sérias contra o trecho das Antigüidades Judaicas de Flávio Josefo(XVIII, 3, 3). Cf. Joseph Klausner, Jesus von Nazareth, übers. von Walter Fischel, Berlin, Jüdischer Verlag, 1930.Mencione-se, ademais, que o rabino Eliezer ben Hircano, talmudista extraordinariamente consciencioso e meticulosonascido entre 30 e 40 d. C., não duvidava da existência histórica de Jesus (Aboda Sara 16a–17b apud Klausner).57 Cf. Religionsgeschichtliches Lesebuch, hrsg. von Alfred Bertholet, Tübingen, Mohr, 1908.58 A idéia de uma crença num deus supremo, disseminada por todos os povos, independente do animismo e mais antigado que este, enunciou-a pela primeira vez Andrew Lang em 1901. Exemplos são o mexicano Tonacatecuhtli, a Mawudas populações ewe, o deus supremo dos nativos da Austrália meridional etc.. O representante mais fervoroso dessanoção é o Pe. Wilhelm Schmidt, S.V.D., de cuja obra A Origem da Idéia de Deus publicaram-se quatro volumes até omomento. A teoria foi muito hostilizada. K. T. Preuss, John H. King, R. R. Marett, contudo, também mostraram sermais antiga do que o animismo a religião com os deuses dela. Os padres missionários Paul Schebesta, S.V.D., e MartinGusinde, S.V.D., mostraram a surpreendente riqueza de preces, cultos e mitos entre os pigmeus da África central erefutaram a opinião de que pertencessem estes a uma espécie inferior. Além disso, Strehlow teve de retirar comoequívocos as suas afirmações de que os aranda desconheciam a ligação entre coito e nascimento. Do mesmo modo, aafirmação de Wegner de que não tinham língua os índios sirionó da Bolívia foi imediatamente refutada com apublicação de um léxico da língua deles. O evolucionismo na antropologia e na ciência da religião foi derrotado emtoda a linha. Um paralelo surpreendente extraído à pesquisa pré-histórica ressaltou-o Oswald Menghin (Geist und Blut,Wien, Schroll, 1933): os achados paleolíticos tanto na Caverna de Pedro, junto a Velden, quanto no Buraco do Dragão,perto de Vättis, provaram-se indícios de sacrifícios primitivos ao deus supremo.59 Cf. Eduard Meyer, Geschichte des Alterthums, Bd. 1, Stuttgart, Cotta, 1884.60 Flinders Petrie descobriu da Idade do Bronze, a sudoeste de Gaza, restos de cerca de 3.500 a. C. Situam-se aindamais longe os achados de Dorothy Garrod e Theodore D. McCown no Monte Carmelo. Lá descobriram partes deesqueletos do Paleanthropus palestinus, semelhante ao homem musteriense, datadas de aproximadamente 50.000 a. C.61 Tinha-se por mescla inteiramente a-histórica de mitos e fábulas o primeiro livro de Moisés. Ernst Sellin descobriudurante as escavações em Nablus a pedra de Siquém (Gênesis 33, 20). Considerava-se invariavelmente como fábula aorigem egípcia de Moisés. Yahuda comprovou a forte influência da língua egípcia sobre o hebraico antigo, e disso épossível tirar conclusões. O livro do Êxodo traz pormenorizados conhecimentos do Egito, e de repente sai Moisés denovo à luz da história. As grandiosas escavações de Garstang em Jericó mostraram vestígios de uma violenta destruiçãoda cidade por volta de 1400 a. C. Tomavam-se por exageros nacionalistas as narrativas sobre a glória real de Israeltrazidas nos livros dos Reis. Guy desenterrou os estábulos reais de Megido (I Reis 9,15). A crítica bíblica, vendo-seforçada a hipóteses redacionais cada vez mais complicadas, ficou mais prudente. Como súmula das escavações eparalelos mostrou Baentsch que a muitas idéias culturais se determinara uma data sobremaneira tardia. As recentesdescobertas de fragmentos hebraicos do Eclesiástico demonstram a datação tardia demais de muitos salmos, o quetambém veio a confirmar-se com o novo método dos gêneros literários introduzido por Gunkel.62 Quanto ao trecho sobre o primado: Petros e petra são de gêneros diferentes em grego, de modo que fica ininteligívelo jogo de palavras. Com o substantivo aramaico kepha, ao contrário, anula-se a diferença.63 Otto surge em franca oposição a Schleiermacher. Tem com ele em comum, porém, o fato de radicar no sentimento areligião, anti-intelectualismo contra o qual se levantam objeções, justificadas, do lado católico (cf. Joseph Geyser, S.J.,Intellekt oder Gemüt?, Freiburg im Breisgau, Herder, 1922). Além disso, são de natureza essencialmente estética ascategorias de Otto, o que, mais uma vez, coincide com a perspectiva estética de Schleiermacher.64 Os dialéticos apelam a Søren Kierkegaard, o único indivíduo que opôs enérgica resistência ao delírio de progressodo seu século, arruinando-se, porém, com uma sua concepção radicalmente luterana do Evangelho. Comprovou ocatolicismo involuntário dele Erich Przywara, S.J., Das Geheimnis Kierkegaards, München und Berlin, Oldenbourg,1929.65 A obra capital da escola dialética é Der Römerbrief de Karl Barth (2. Aufl., München, Christian Kaiser, 1922). Doponto de vista católico é preciso objetar, metodologicamente antes de tudo, à sua desconfiança invencível doconhecimento racional, desconfiança essa que contribui substancialmente para abrir o abismo entre Deus e o homem.Compare-se a posição de todo divergente que o Vaticano assume perante o conhecimento racional. Barth declara nãoapenas que a analogia entis, esse conceito central da teologia católica, essa chave para a compreensão de Deus e domundo, é uma invenção do diabo, mas também que é a única razão séria que o impede de virar católico. Essa tomada deposição mostra clarissimamente quão perto do catolicismo já chegou, pela profunda honestidade, a teologia dialética –e por qual profundo abismo fica a teologia reformada inteira separada da Igreja Romana.66 Aos esforços de alta igreja liga-se o movimento litúrgico dito de Berneuchen (Wilhelm Stählin, Karl Bernhard

Page 82: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Ritter). Há alguns anos já, celebram-se missas solenes alemãs na igreja de São Jorge em Berlim. No congresso deteólogos em Trondheim, o dinamarquês Fuglsang-Damgaard defendeu a reintrodução da confissão privada. Cf., arespeito do tema, Willy Hellpach, Zwischen Wittenberg und Rom, Berlin, Fischer, 1931, livro que traz muita coisaimpugnável e muita coisa excelente.67 De propósito designou-se como marcionista o deus “inteiramente outro” de Karl Barth. Marcião pregou o evangelhodo deus ignoto, triste mensagem que não se esqueceu. Harnack fez muito pela redescoberta de Marcião e, por mais quese mostrasse liberal, foi pronunciadamente marcionista.

Page 83: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

O SOL DE SATÃ

A VERDADEIRA ARTE é ofício divino, é religião.[ 68 ] Mas é preciso distinguirbem entre religião e magia.

Nos últimos tempos tornou-se usual entre os protestantes designar comomagia os rituais da Igreja Católica. Os católicos rechaçam indignados aexpressão: não é um mago o sacerdote, tampouco a Eucaristia encantação,mas sacramento. Entendamo-nos quanto aos termos! A doutrina eclesial dossacramentos nos fornece todo o necessário para isso. Os sacramentoscatólicos não podem nunca ter a ver com magia, porque, embora seja osacerdote a dispensá-los, quem opera no sacramento é Cristo Senhor. É umadistinção entre o milagre, que vem de cima, e a feitiçaria, que vem de baixo.A distinção entre sacramento e magia é exatamente a distinção entre bendizere maldizer. Ou, se quisermos, entre Deus e o diabo.

Deveríamos tentar aplicar à arte essa distinção. Na arte que se inclina comoofício divino ao altar, o artista é servo do Senhor e semelhante ao sacerdote.Nessa arte, digna vestimenta da divindade vivente, quem opera é Deus. A arteque, com meios mágicos, gostaria de elevar o homem para além de si emdireção a Deus, no entanto, serve ao príncipe deste mundo. É o sol de Satã.

Page 84: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

1. Um capítulo de História da ArteO cristianismo é a religião da cruz. A Igreja é uma catedral em cujo

interior não expirou jamais, desde os dias do Gólgota, a canção das dores, amelodia da morte.

Mas o cristianismo é também a religião da vida. A Igreja, em suamagnífica e verdadeira universalidade católica, nunca pregou distanciamento,mas consagração. Não amaldiçoa a vida, e sim a consagra; compreende, entreamorosas mãos, todas as criaturas, a fim de conduzi-las redimidas até diantedo trono de Deus. O sol de Deus, que ilumina o mundo, coa também pelosvitrais. Não há no mundo nada de bom e de belo que não possa na Igrejaservir ao Senhor. Por isso a Igreja Católica foi em todos os tempos amantedas artes. Sabemos que a arte cresceu nos zelosos braços maternais da Igreja.Mas não raro não reparamos que a Igreja, que da morte eterna no pecadolivrou o mundo, também guardou a arte, repetidas vezes, da morte temporal.

A Igreja conservou a arte dos antigos nas primeiras e imensas basílicascristãs e no brilho místico dos mosaicos delas, levou a arte aos bárbarossetentrionais e ajudou-os a erigir as catedrais românicas.[ 69 ] O que namúsica antiga ainda fosse viável a Igreja salvou nos modos do coralgregoriano, que guarda até aos nossos dias o comovente esplendor de alma doprimeiro cristianismo.

Espírito eclesial é que aperfeiçoou o estilo românico até transformá-lo emgótico, criando com isso uma arte a que, na audácia dos pilares aspirando aoscéus, na intimidade celestialmente delicada dos rendilhados, nada entre osantigos é capaz de igualar. E essas catedrais góticas foram o vaso de honra deuma prática musical como nem sequer suspeitara a Antigüidade: ascendiamagora em direção às abóbadas de aresta os primeiros coros polifônicos devozes humanas para a maior glória de Deus. Nas harmonias habilmenteentrelaçadas dos Países Baixos, novas catedrais invisíveis surgiam acima dascabeças dos fiéis, e, saudando propícias dos altares, as imagens eram prédicasmudas de uma harmonia divina que, mais artística e mais divina do que asharmonias do coro, enlaçava o Céu e a Terra.

A fiel arte da Igreja conseguiu aquilo em que fracassaram todos os séculosposteriores: soube tornar visível e audível o supramundano, soube intuir efigurar os mistérios do Céu e do Inferno. Os pavores do inframundo estãovivos, assim, no poema do divino Dante e, de maneira não menos tremenda,naquela magnífica poesia que o monge Tomás de Celano ofereceu ao ofício

Page 85: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

dos defuntos da Igreja Católica. Mas vivem também as bem-aventuranças doParaíso nas harmonias transcendentais de Palestrina e nos admiráveisretábulos de Giovanni Bellini, dos quais dizia com dolorosa saudade o seusucessor tardio na arte, o pintor Anselm Feuerbach: “Madonas enigmáticas,no interior de belas arquiteturas, rodeadas de homens honrados e mulheresformosas em sagrada conversação. Embaixo estão sempre três anjinhos comviolinos e flautas. Com isso, creio, diz-se tudo o que é preciso para viver-seuma bela vida”.

Costuma-se contar tanto Bellini quanto Palestrina já não entre osmedievais, e sim entre os renascentistas. Apenas é preciso saber quetampouco a Renascença esteve, como corre o boato, repleta de espírito pagão.[ 70 ] Também na Renascença viveu a alma cristã, como atestam os afrescosde Fra Angelico e as terracotas dos Della Robbia. Quem não reconheceria oespírito da Igreja na Madona Sistina e nas pinturas murais da Capela Sistina?A Renascença foi poderosa e grande, enquanto foi cristã. Ficou mísera eminúscula, quando virou ateísta. Começou a ficar teatral e lassa,[ 71 ] aocolocar sobre altares uns deuses que não serviam à adoração, mas à volúpia.Preferindo a Terra ao Céu, terminou no amoralismo bárbaro, no amoucobrutal das bestas geniais, e, nesse lodo de amoralismo, afundou-se-lhetambém a arte, tornada vã e superficial.

E mais uma vez a Igreja salvou a arte. Aquele grande movimento da almacatólica ao qual, induzindo em erro, chamam Contra-Reforma não só elevoua Igreja a uma nova e extraordinária plenitudo potestatis, como também deude presente à arte a nova glória do barroco. Numa época em que, longe aonorte, os iconoclastas devastavam os altares, a Igreja Católica, cujos temploserguiam-se em deslumbrante magnificência, encheu-os de bosques deestátuas, fê-los ressoar inauditas harmonias e abriu as cúpulas para pinturasque mostravam abertamente à Terra o Céu. Basta recordar uns nomes parareconhecer como foi o espírito católico que das baixezas da morituraRenascença conduziu a arte aos cimos do barroco. Pois não foi o grisalhoMichelangelo que arqueou acima a cúpula de São Pedro no Vaticano e queem poemas comoventes lutava à noite pela graça de Cristo? Depois de longodesconhecimento, parece-nos hoje que um intenso raio dessa graça incidiusobre o devoto cavaleiro Gian Lorenzo Bernini, que em suas colunatas dianteda Basílica de São Pedro criou o palco poderosamente cativante da cidadelado papado, que em seu Êxtase de Santa Teresa desvela os mistérios damística cristã ao olho que vê. Vive o mesmo espírito católico tanto nas eretas

Page 86: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

figuras de El Greco tendentes ao céu místico quanto no fervor popular dasmadonas e dos anjos da guarda de Murillo, tanto nas suntuosas festasreligiosas de Rubens quanto nas rústicas adorações de Caravaggio. Viveespírito católico nos grandes mestres da música do barroco, em Benevoli, quesabia empilhar quarenta e oito vozes umas sobre as outras, em Scarlatti, quecolocou as doces melodias meridionais a serviço da Igreja. Vive espíritocatólico na poesia espanhola, que de Lope a Calderón consagrou-se aglorificar com peculiar profundidade de sentimentos o santíssimo sacramentodo altar. Vive espírito cristão e católico na grande poesia clássica dosfranceses, cujos mestres da língua, de Pascal e Bossuet até Racine e Fénelon,foram todos bons cristãos.

Mais uma vez o mundo encarregou-se da obra de destruição. A ostentaçãobarroca, consagrada a Deus, transformou-se no ornamento luxuoso de umasociedade putrescente, e, incapaz de levar a sério a arte alheia aoentendimento, o racionalismo iluminista reduziu-a a brincadeira rococó. Umagrande morte inicia-se. Uma obra de arte católica, o Requiem de Mozart, éque acompanha essa arte e essa sociedade ao sepulcro. Espírito cristãosobrevive aqui e acolá: na humanidade nada grega do perdão na Ifigênia deGoethe como na idéia católica de redenção no seu Fausto; nos hinosaparentemente pagãos de Hölderlin como nos hinos verdadeiramente cristãosde Novalis; na última prece poderosamente unida da comunhão católica, aMissa Solemnis, de Beethoven.

Perdem-se, depois, os temas cristãos da arte. Inicia-se a grande deformaçãoda alma. Empobrecendo-se a Igreja, outros comitentes vêm tomar-lhe o lugar.

Numa comédia de Molière, um parvenu enriquecido, o senhor Jourdain,toma a soldo largo um professor de dança, um professor de músicae umprofessor de filosofia. Mas eles têm de ensinar o que ao senhor Jourdainagrade. Chega de tediosas missas solenes e de festas suntuosas. O senhorJourdain quer ver e ouvir o que lhe alegre o coração comerciante, coisasmundanas e burguesas. O senhor Jourdain veio a ser, no século XIX, ocomitente da arte.

Nesse século de orgias de um gosto bárbaro, os verdadeiros artistasretiraram-se como animais feridos caverna adentro, para miseravelmentemorrer. É a época em que se começa a estimar os artistas só depois de mortose em que se rebaixam a objetos de especulação as obras dos mortos de fome.Constroem-se antes palácios da bolsa ou pavilhões de exposição do queigrejas. A música sacra, pouco a pouco, vai morrendo; árias de ópera para

Page 87: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

digerir lautos jantares são mais rentáveis. A epopéia chega ao fim; écomprida demais e tediosa demais para um homem de negócios que temmuito pouco tempo. Abrevia-se primeiro em romance, depois em novela efinalmente em conto. O drama requer estatutos religiosos e morais absolutosem favor ou desfavor dos quais os seus heróis vençam ou caiam; a sociedadeburguesa liberal, contudo, desacreditando da “absolutidade” dos valores,deixa-os subir e descer como as cotações da bolsa. É assim que o drama entraem circulação na sociedade burguesa dos freqüentadores das bolsas,terminando em Ibsen com um grande ponto de interrogação, grávido deenigmas.

É o século de uma estranha mascherata. Como se os homens tivessemhorror de si mesmos, ninguém quer parecer o que é. Irrompe um tristecarnaval dos disfarces. Estações de trem e edifícios do parlamento vestem-seda máscara de catedrais góticas, enquanto a sociedade burguesa sai a banhar-se no brilho de romances históricos que os contemporâneos disfarçam comfigurinos de ópera. Mesmo os grandes homens do século tornam-se, nomaldoso dizer de Nietzsche, atores do ideal deles próprios.

Também a alma do artista cristão sofre deformação bárbara nesses temposdifíceis. Tem lá o seu encanto, porém, seguir-lhe os vestígios e encontrar, sobos destroços, a delicada flor da fé.

Heinrich von Kleist! Espiritualmente considerado, só se reconhece nomaior gênio dramático dos alemães o glorificador do prussianismo. Kleistparece nacional e protestante até aos ossos. Às pesquisas do germanistaFriedrich Braig, no entanto, devemos a surpreendente demonstração de que,espiritualmente, Kleist não figura entre os criadores do novo prussianismo,Scharnhorst, Gneisenau e Stein, mas que foi fortemente influenciado peloconvertido Adam Müller, e que detrás do corselete de oficial prussianopulsava um coração católico. À luz desse reconhecimento resolvem-se todosos enigmas na sombria vida e obra de Kleist. Agora vemos percorrido noAnfitrião, conforme a adaptação sua da farsa de Molière, o caminho dacômica humanização de um deus à mística encarnação de Deus; tão bárbaro-pagã em aparência, Pentesiléia é na verdade uma tragédia cristã, um pendantda Ifigênia de Goethe, uma tragédia de pecado original e de pesada cruz;Catarina de Heilbronn, um espetáculo cristão da Providência e da graça; efinalmente reconhecemos no Príncipe de Homburgo já não uma peçapatrioteira, mas a primeira e talvez única tragédia dos nossos palcos, na qualimpera não o desprezo pagão da morte, e sim a cristã superação da morte.

Page 88: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Kleist foi um poeta alemão católico em vestes prussiano-protestantes. Porisso a vida dele, a vida de um verdadeiro patriota, foi tão sombria e perdidaem meio à época do levante patriótico que não o compreendeu, mas que logosoube reclamá-lo para si.[ 72 ]

Ou pensemos em Baudelaire. Quem conheça o maior lírico da literaturafrancesa, quem lhe conheça a superfície, estará perplexo de ouvi-lomencionado neste contexto. Pois Baudelaire portou-se como poetaanticristão. Deserta foi-lhe a vida, que entre a embriaguez do ópio e asubmissão a uma crioula se desfez e na hebetude da paralisia anoiteceu;deserta foi-lhe a poesia, que celebra as iridescentes e fedorentas flores do male culmina num hino a Lúcifer. E no entanto… Da mesma maneira comoKleist revelou-se uma alma cristã deformada de prussianismo e deprotestantismo, o francês Fumet mostrou-nos o infeliz Baudelaire como almacatólica moralmente deformada. Uma alma católica chora a sua época e a simesma nessas páginas manchadas de todos os vícios, mas também delágrimas de sangue. Baudelaire trazia no rosto a máscara do Anticristo, nofurioso protesto contra a época e a sociedade que se denominavam cristãs eque se abandonaram contudo ao mais vazio ateísmo e materialismo. Ele nãoquis acreditar que o “progresso”, objeto do seu ódio veemente, fosse remitiros vestígios do pecado original. Ele não celebrou o vício, e sim tirou véu evestes ao pecado. Ele não foi o advocatus diaboli tal qual se portava, e sim oacusador do pecado e da sua ignomínia. Cristão é o pessimismo com que eleopõe-se a um mundo afundado em pecado, cristã é a mística ardente com queele canta a força redentora do amor. Por toda parte farejava a corrupção, atodo momento tremia de não levar a vida suficientemente a sério. Gostava decitar uma frase – “O sábio não ri senão tremendo” – que afirmava ter lido emalgum lugar num dos padres da Igreja e que em nenhum lugar nos é possívelencontrar. Não pressentiu o quanto com isso chegou perto de uma palavra doSenhor que nos foi transmitida no apócrifo Evangelho dos Nazarenos:“Nunca vos alegrareis, se não virdes em caridade a vosso irmão”. Baudelairesentia-se como vítima dessa época vazia de amor. Em seu desespero, invocouos anjos e os demônios; e os demônios vieram. Ele, que levara aquela artepuramente artística – l’art pour l’art – ao mais alto cume, sentia na tarde davida as asas do embotamento baterem-lhe acima da cabeça. Desse modo caiuessa anima naturaliter catholica. E com ela precipitou-se a arte no abismo doesteticismo, no nada. Exigindo adoração, adoração em vez de Deus, tornara-se o luminoso sol de Satã. Quis a ironia do destino, contudo, que o senhor

Page 89: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Jourdain suspendesse neste instante os pagamentos. A burguesia francesa, aprimeira burguesia do mundo, sucumbiu. O mundo já não podia permitir-se oluxo de uma arte tão despótica e dispendiosa. O sol de Satã se punha, e abarbárie hostil à arte levantava a cabeça.

Page 90: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. Nova auroraNossa época não tem estilo. Ao estilo substituíram-se tendências de mil

tipos, ismos que se sucedem com a velocidade das modas femininas. Temosanarquia no romance, anarquia no drama, na ópera, na pintura. Na arte, comoem outras partes, já não há autoridades tampouco, a quaisquer piratas sendooferecida em sacrifício.

Nossa arte prostitui-se. Desde que se declarou a insolvência do seu últimocomitente, a burguesia, já não sabe dizer não. Por mandado e a bel-prazer,será bolchevique ou feudal, budista ou americana, radical ou conservadora;em suma, o que aprouver. Daí a infinita multiplicidade dos ismos etendências.

Toda a arte, em última análise, repousa no reconhecimento de que é trágicoo fundamento do mundo. A arte verdadeira, a arte religiosa, é sempre trágica,porque não há expiação senão no além. Distancie-se a arte desse fundamentotrágico-religioso da existência, vá ela em busca de uma falsa expiação, de umcompromisso com a existência, e ficará então forçada a dizer sim a tudo etransformada em vã artesania: num instrumento de agitação que lhe consomea substância humana ou naquele estéril esteticismo alheado do mundo epróprio das épocas decadentes. Assim acontece à arte entre os bolchevistasno Oriente e entre os esnobes no Ocidente. Rápido decai também a habilidadeartesanal, e, vocacionada para dar voz ao verbo redentor em nome dahumanidade muda, a arte não o encontra mais. É o ponto a que chegamoshoje. No tumulto dos dias e no tumulto dos tempos, a arte emudeceu.

A arte perdeu a forma, eis o sentido último desse mutismo e da suapenúria. A arte está deformada; nela, no entanto, forma e figura são tudo. Deonde pode vir-lhe a suspirada figura nova? Apenas da religião, apenas docatolicismo.

A arte tem de voltar a ser religiosa, tem de ligar-se mais uma vez às raízesreligiosas a partir das quais cresceu. Um teórico da estética e contemporâneode nós outros, o católico Siegfried Behn, ensinou-nos que as raízes de toda aarte são de natureza religiosa e mágica; que escrever, cantar e pintar sãotentativas, não de imitar o belo, mas de conjurar o invisível. Em temposremotos, o sacerdote era o poeta, o cantor e o artista perante o povo. Assim, atese de que toda a arte tem raízes religiosas exprime um sentido profundo.Hoje, tornou-se um vazio lugar-comum que se apregoa do alto dos telhados edas redações de jornal. Fala-se e fala-se e fala-se de drama cultual e de arte

Page 91: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

religiosa, sem que ninguém se dê o trabalho de imaginar nada de definidocom a palavra “religião”.

A arte deve regressar à religião. Ótimo. A qual religião? Ao paganismogrego? Vá hoje alguém pregar Zeus ou Apolo em nossos mercados! Ou àsantigas religiões da Índia e da China, que em suas terras natais estãoagonizantes e que de seitas européias recebem injeções de cânfora? Ou aoprotestantismo, que destruiu as imagens e que no Ocidente escorraçoutambém os músicos? Ou a alguma dos milhares de religiões privadas quetodos os desesperados constroem hoje na Europa?

Não. No mundo há uma só religião que tem coração para a arte e de que aarte pode esperar nova forma e nova figura: o catolicismo romano.

O catolicismo está, pelo seu passado latino milenar, tão intimamente ligadoa tudo o que se chama cultura românica de formas que não é lícito esperarsenão dele o livramento do caos moderno numa nova figuração de segurosenso da forma. O catolicismo está, também, tão profundamente arraigado noilimitado império anímico dos povos celtas, germânicos e eslavos que nadade humano lhe é alheio; e o humano é a substância da arte. À arte católicaconvêm as belas palavras de Emerson: “Para o poeta e para o sábio, todas ascoisas são benignas e abençoadas, todas as vivências proveitosas, todos osdias sagrados, todos os homens divinos”.[ 73 ]

Assim percorre todas as artes uma grande onda de renovação católica.Ainda poucas décadas atrás, o catolicismo alemão parecia estar excluído daexpressiva evolução literária nacional. Hoje, não há mais como ficar surdo avozes poéticas como Enrica von Handel-Mazzetti e Max Mell, Heinrich SusoWaldeck e Gertrud von le Fort, e com gratidão recordaremos também aserena e delicada arte narrativa de Heinrich Federer. O maior lírico e artíficeda forma que os alemães vieram a conhecer desde Goethe, Stefan George,foi, conforme confissão própria e o testemunho dos diletos discípulos,essencialmente um católico. Hugo von Hofmannsthal foi enterrado em vestesde terciário franciscano. Poeta católico é também Hans Carossa, a quem foidado encontrar em todas as coisas, mesmo nas mais terríveis, a medida e omeio, e, sobretudo, roubar das fauces da serpente a luz.

Entre outros povos e em outras literaturas não é diferente. Joris-KarlHuysmans, filho profundamente doente da França tão profundamenteadoecida de alma, toma parte – Là-Bas, lá embaixo – em coisas nefárias,missas negras e orgias infernais; e finalmente encontra a paz de sua alma nospórticos da Catedral de Chartres, nas preces que interpõe de joelhos a Santa

Page 92: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Liduína de Schiedam entre as massas de fiéis de Lourdes. É só o primeiro demuitos. Legião são os poetas franceses que em meio de uma sociedade hostilà fé e sob os ditames de um Estado hostil à Igreja aprenderam a curvar-seante a cruz: Paul Bourget, o conhecedor do coração humano; FrançoisCoppée, o cantor dos pobres e humildes; Léon Bloy, o ardoroso acusador dasociedade; Paul Claudel, o renovador do teatro religioso; Jean Cocteau, quenos bistrôs de Montmartre e nas tabernas do Quartier Latin recrutacombatentes de Cristo e de Roma; e aquele Charles Péguy, comoventementeinesquecível, que como herói lutou pela renovação nacional da França noespírito católico e qual herói caiu, na mão o estandarte de Joana d’Arc, nosprimeiros dias da guerra. E então aqueles outros que conquistaram para aliteratura católica um novo território que até ali lhe parecera inacessível, oimpério do mal: François Mauriac, que investiga o mal nos íntimos recessosdo coração e impele a confissões; Julien Green, o poeta da angústia infinitado ateu em sombrio abandono; Georges Bernanos, que viu o diabo em pessoa– e o derrotou com o sinal da cruz.

A onda católica vai quebrar até na margem protestante. JohannesJørgensen, o dinamarquês descrente que morreu em Assis como terciário daOrdem Franciscana. Sigrid Undset, que desde a profundíssima sensibilidadedas raízes históricas do seu povo encontrou o caminho de volta à fé de SantoOlavo. O aristocrata polonês católico Józef Korzeniowski, que como JosephConrad tornou-se o maior romancista moderno da Inglaterra. FrancisThompson, que não trazia em vão o nome do santo das montanhas úmbrias,que realizou o milagre de reflorescer nos próprios versos a paisagem inglesae de superar pela postura de mendicante humilde a febre inglesa de ouro e depoder, e que, acima do Palácio de Westminster, fez luzir a cruz católica.

E como necessitavam de nova forma os artistas plásticos! Haviamfracassado todas as tentativas de reanimar os estilos históricos, porqueninguém tinha a fé que sustentara aquelas formas estilísticas. Acreditaramencontrar estilo, enfim, como realidade artística, tão-só nas coisas mesmas,com a eliminação de tudo o que fosse psíquico e pessoal, e lançaram-se àaventura do impressionismo, que produziu uns artistas de brilho e dissolveuaté reduzir a nada as formas artísticas todas.

Nenhuma arte teve de padecer mais gravemente sob essa anarquia daforma do que aquela em que a forma converte-se em figura corporal: aescultura. Conseguiu, do espírito fiel do estilo gótico, a renovação; católicoscomo Aristide Maillol e Georges Minne foram à frente; há agora um grande

Page 93: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

mestre outra vez, o único grande escultor do nosso tempo: é o croata católicoIvan Meštrović.

A pintura, após a dissolução impressionista, precipitara-se em anarquiacompleta. Espetáculo comovente é como um Vincent van Gogh é capaz defacultar ao próprio gênio meramente um balbucio e como um Paul Gauguincorrompe-se no Mar do Sul, tanto este quanto aquele infortunados lutadorespela arte e pela fé. Depois dos dois veio a loucura intencional dos dadaístas, ogrito inarticulado dos expressionistas, a inútil busca da forma pelos cubistas.Ingres, o último católico fiel entre os grandes pintores da França, tornou-se omodelo para o novo classicismo redentor. Pois a renovação já estavapreparada na tradição formal do mundo católico: o Pe. Desiderius Lenz e osmonges pintores de Beuron haviam suplicado o espírito de amor e o místicorepouso de Deus existentes na Antigüidade cristã, a prece deles sendoatendida com grandes criações artísticas, as primeiras que em décadasmereceram novamente o epíteto de “monumentais”.

O claustro opera no mundo. Redescobriram Paul Cézanne, o grandebuscador da forma a quem o impressionismo deixara desviver, não por acasoum católico fiel ele também. O mundo dos salões parisienses começou aarrebatar-se com o classicismo casto e nobre do grande pintor católicoMaurice Denis. Dessa reconquista da forma rigorosa prossegue para dentro ocaminho. Entusiasmaram-se pelo barroco, cuja teatralidade religiosa tornou-se modelo para o nosso teatro. Esforçou-se para alcançar um barroco maisinterior o nosso Faistauer. Espírito religioso apodera-se dos pintores.Entende-se o gótico como expressão religiosa de caráter popular, do elementorústico em nossa cultura.[ 74 ] Um gótico póstumo como Jan Tooropconverteu-se conseqüentemente à fé católica. Grünewald torna-se modelopara muitos.

Em nenhuma arte a alma de uma época torna-se operosa de maneira tãoimediata quanto na sua arquitetura. A grande arquitetura revela ao olhar dohomem a ordem da sua alma e as ordens do seu tempo. Paul Ligetiesclareceu-nos que a nossa época é a conversão estilística radical doimpressionismo em nova figuração arquitetônica e, com isso, do caos socialem ordens rigorosas. À luz disso, a evolução da arquitetura moderna aparececomo grande esperança. É ela, sobretudo, que entre as artes parece chamada adescobrir um novo mundo; mas, como Colombo, planta às novas margens acruz da velha ordem. A arquitetura verdadeiramente grande tem de possuir,numa época de caos desordenado como a nossa, o compasso de ordens

Page 94: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

anímicas firmes, como as oferece o catolicismo; só ele guarda o segredo domeio e da proporção. Apenas a partir desse segredo pode a arquitetura vir aser a síntese de edifícios prometéicos a atacarem o Céu e de gigantes casernasatadas à Terra, apenas por causa desse segredo pode a nossa época tão pobrede alma reencontrar o ânimo para dirigir o olhar aos céus. Depois de muitotempo construindo-se apenas “moradas com campanários”, agora se colocanovamente no centro delas a Igreja. Nos edifícios de um arquiteto católicocomo Clemens Holzmeister, a tenebrosa severidade da visão de mundoconverte-se em luminosa elevação, todo o peso fica miraculosamente leve, astorres que atacam os céus viram chamas que ardem por eles: a arquitetura nosensina a juntar outra vez em devoção as mãos, empobrecidas e esvaziadas,para rezar.

As últimas soluções, contudo, talvez não seja capaz de oferecê-las senão amais imaterial e portanto mais religiosa de todas as artes: a música. Corretivose lhe tornou a música sacra revivificada. Os nossos músicos, que em óperase em salas de concerto deram-se a quaisquer modernidades, até a excessosque nos encheram de saudades de um mero dó maior, devem na igreja impor-se um salutar recato. Aqui não serve a vaidades humanas, aqui serve deverdade, aqui serve a Deus a arte deles. Por isso tornou-se-nos pregadormusical o fiel parvo de Deus Anton Bruckner, e não é acaso que entre nós umVinzenz Goller, Josef Lechthaler, Josef Haas, Heinrich Kaminski, como emoutras partes um Dom Lorenzo Perosi ou Sir Edward Elgar, sejam católicosfiéis. Dos católicos César Franck e Vincent d’Indy, com a Schola Cantorum,partiu o renascimento da música francesa. E como é característico o fato deque o mais radical dos radicais, o líder da música moderna, Igor Stravinski,retorne, em sua última obra, Sinfonia dos Salmos, às fontes originais dapercepção musical cristã-européia: ao coral gregoriano, que pelo esforçoabnegado dos monges beneditinos de Solesmes veio agora a ser de novo umapotência musical universal. Depois de longas febres graves, a nossa músicaparece convalescer no coral da Igreja Romana.

É verdadeiramente universal e verdadeiramente aberto ao mundo ocatolicismo. É capaz de mencionar, com certo orgulho, que Rafael e Mozart,Michelangelo e Beethoven, Bernini e Rubens, Dante e Cervantes foramcatólicos. Mas os seus limites estão fixados ainda muito mais longe. Hoje nosé possível encontrar nas águas-fortes de Rembrandt tiradas ao Velho e aoNovo Testamento um espírito cristão que fica léguas distante do calvinismoda sua terra e do seu tempo e que o deixa bem perto de um conterrâneo seu,

Page 95: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Vondel, o grande poeta tornado católico por necessidade artística.[ 75 ] Hojeencontramos o espírito católico universal de comunhão nas criações dogrande luterano Johann Sebastian Bach, e já não nos admira o fato de que asua obra mais excelsa, aquela em si menor, celebre em meio da Leipzigluterana o santo sacrifício da missa.[ 76 ]

Sim, a Igreja Católica é a igreja das artes, porque compreende com amorigual tudo o que há de divino e de humano. E nessa reconciliação católicaentre divino e humano encerra-se toda a salvação da arte. Se a arte, curvadaperante o exclusivamente humano e o demasiadamente humano há demasiadotempo, não voltar a recordar-se do divino, não poderá tampouco recobrar ohumano. Falei certa vez com um ateu, um pintor comunista que sonhavadecorativas manifestações de massa e templos à máquina; negou-se a pintaruma Virgem com o menino, porque ninguém acreditava mais na Virgem como menino. Mas que é, artisticamente, a Virgem com o menino? Mãe e filho,tema eterno e sempiterno do homem e da humanidade. Aquele ateu tinharazão. Não se pode mais pintar a mãe com o filho, quando já não se crê naVirgem com o menino. Devemos reaprender a fé em Deus, para reencontrar afé no homem.

Quando a arte verdadeiramente serve a Deus, então verdadeiramente serveao homem. Então não é fascinante magia, mas semelhante ao sacramento emque opera Cristo. Importa não pretender igualar-se magicamente a Deus, masservir a Deus, que desce a nós na Eucaristia.

Tornar visível o divino é toda a arte, efígie terrestre da encarnação deDeus. Vive e prospera, portanto, apenas naquela Igreja que, assim como é ovaso de toda a verdade divina e de todo o amor divino, assim também se nostorna visível como vaso de toda a divina beleza.

68 Não se deve entender isso como simples frase. Na prece e no poema, como observou o Abade Brémond, opera amesma inspiração mística. Cf. também Siegfried Behn, Schönheit und Magie, München, Kösel & Pustet, 1932.69 A questão da origem do estilo românico foi com freqüência respondida, mas toda resposta teve de ser enfimrejeitada. Sem nenhuma intenção de negar a autonomia germânica sobretudo dos edifícios alemães em estilo“românico”, perseveremos na antiga idéia de Strzygowski da origem desde Bizâncio. Mas também sabemos que nessesséculos obscuros a herdeira da Antigüidade foi Bizâncio, até por volta do século VIII, quando se separou de Roma.70 Desde Burckhardt considerou-se a Renascença como tendência espiritual de todo pagã. Chamou a atenção para osfortes elementos cristãos na Renascença Ernst Walser, Gesammelte Studien zur Geistesgeschichte der Renaissance,Basel, Schwabe, 1932.71 Ruskin comparou, nas Pedras de Veneza, a execução negligente e frívola das esculturas renascentistas com oamoroso trabalho nos capitéis do Palácio Ducal.72 Naquele ensaio sob influência de Adam Müller sobre o teatro de marionetes enxerga Braig a chave da criação e dopensamento de Kleist.73 É a versão de Nietzsche para a frase de Emerson: “To the poet, to the philosopher, to the saint, all things arefriendly and sacred, all events profitable, all days holy, all men divine” – NT.

Page 96: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

74 A apreciação variável do gótico e do barroco nos séculos XIX e XX não é mera variação de modas, e simaproximação gradual do conteúdo religioso desses estilos. Uma noção mais profunda devemos, em primeiro lugar, aAlois Riegl e à sua teoria da vontade artística. Cf. Alois Riegl, “Das holländische Gruppenporträt”, Jahrbuch derkunsthistorischen Sammlungen des allerhöchsten Kaiserhauses, XXIII, Wien, Halm & Goldmann, 1902; cf. ademaisAlois Riegl, Die Entstehung der Barockkunst in Rom, Wien, Anton Schroll, 1908; Wilhelm Worringer,Formenprobleme der Gotik, 2. Aufl., München, R. Piper, 1912.75 Talvez seja lícito situar Rembrandt mais perto de Vondel do que habitualmente se dá. Veja-se na Sagrada Famíliade Kassel, também chamada Holzhackerfamilie, o pano de boca corrido para o lado do quadro. Não descenderia decenários dos dramas bíblicos de Vondel, de quando em quando, o claro-escuro de Rembrandt?76 Numa biografia recém-publicada, Rutland Boughton observou a luta interior entre elementos protestantes e católicosem Johann Sebastian Bach, o qual, apesar da insatisfação com a Igreja Luterana, reprimiu o “catholicisme intérieur” deque fala Vincent d’Indy.

Page 97: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

LIBERDADE E OBEDIÊNCIA

1. Contradições da vidaA CONTRAGOSTO PERMITEM OS HOMENS que lhes falem de religião e moral hoje emdia. Ouve-se em resposta, muitas vezes, que basta ser uma pessoa decente,tudo o mais não sendo senão coisa de somenos.

Aqueles que o dizem não se dão conta do quanto é difícil ser uma pessoadecente. Não só porque vai nisso muita humildade e superação, mas tambémporque é não raro a muito custo que se consegue decidir o que seja decenteafinal. A vida humana é muito complicada.

É possível ser ao mesmo tempo marido e pai, cidadão e partidário, oficialda reserva e membro de igreja etc. De cada posição dessas resultam deveres,os quais podem dia a dia entrar em contradição uns com os outros. Aí ficadificílimo decidir a qual dever acima dos outros devemos obedecer, já quedesejos, inclinações e exigências puxam-nos de cá para lá. A vida é um feixede contradições. Aqueles que quiserem seguir como a um roteiro um únicosenso de dever extraído a esse feixe poderão chegar, com muita facilidade, àsconseqüências mais absurdas, à loucura, à delinqüência.

Não havendo roteiros inscritos no mapa da vida, é muitas vezesterrivelmente difícil orientar-se. O entendimento é de todo inadequado parasujeitar a vida. É possível, com o entendimento, pensar com argúcia,trabalhar com diligência, lutar com bravura. Mas a vida requer fé, caridade eesperança. O entendimento rouba a nossa fé, zomba da nossa caridade,dilacera com sarcasmo a nossa esperança. Perante o entendimento são puroabsurdo a fé, a caridade e a esperança. Por isso ninguém pode viver doentendimento e por isso devemos buscar uma nova diretriz para a vida. Pois avida é a nossa tarefa.

Desejamos, como já é hábito no caso de perguntas difíceis, questionar umespecialista. Quem será o especialista em questões da vida? Nessas coisassomos todos charlatães e diletantes. Cada um acredita saber para si o que éreto e acredita não precisar nem de conselho nem de especialista.[ 77 ] Essecharlatanismo vem da grande doença da vida moderna, o individualismo.Cada um acredita ser o pequeno deus do seu próprio mundo e proíbe os

Page 98: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

demais de intrometer-se.Mas a vida é totalidade. Vivemos, não cada qual à parte, mas junto com

todos os demais. Precisamos de todos os outros para viver, pois o homemsegregado fica impotente e perdido em face da totalidade da vida, como amosca na teia da aranha. Vivemos, contudo, nessa grande estultícia que équerer ser sábio por si só. Somos por todos e com todos, ou definitivamentenão. O individualista, o diletante da vida, só pode infalivelmente isto:extraviar-se. Já sabia disso, tantos mil anos atrás, o sábio Salomão: “Quemquer se afastar de um amigo busca ocasiões: estará sempre sujeito àreprovação”.[ 78 ]

Dostoievski iluminou tal descaminho até o amargo fim no seu romanceCrime e Castigo.[ 79 ]

Raskolnikov é um homem excepcionalmente dotado. Mas é pobre, muitopobre. Não é só que more sozinho numa fétida mansarda e não tenha nadaque comer, pois estão, além disso, a mãe morrendo de fome e a irmã a pontode entregar-se por necessidade a um libertino miserável.

Mas uma rua adiante, detrás de portas de ferrolho duplo, mora a usuráriaAliona, mulher maligna que vampiriza os pobres e acumula o ouro em arcas.Ela, o inseto mau, com o ouro. E Raskolnikov e os seus a arruinar-se. Éjusto? Aquele “piolho” tem mesmo o direito de viver? E Raskolnikov, ogênio, não terá o direito de matá-la e roubá-la em prol de um propósito bom?

Assim segue o seu caminho Raskolnikov. Mas os caminhos de Deus nãosão os nossos caminhos. Raskolnikov mata insidiosamente a velha amachadadas. Um punhado de dinheiro e jóias é tudo o que consegue apanharàs pressas, porque ouve alguém chegar – a irmã da velha – e, se não pretendeestar perdido nesse mesmo instante, tem de matar a golpes de machada amais essa inocente.

Desde então não dorme mais Raskolnikov. Fúrias o perseguem. Um outroé suspeito do homicídio e, em defesa da própria segurança, Raskolnikov devedeixá-lo sofrer. No delírio dos remorsos, comporta-se chamando tantaatenção que se dirige contra ele a suspeita. Para apagar todas as pistas, tem dejogar fora o pouco espólio. A mãe, a irmã, vê que as perdeu. Expulso dasociedade humana, prende-se aos outros expulsos, à pobre Sonia, contra aqual perpetra, com o amor e a confissão, um homicídio moral. Até quefinalmente toma a própria cruz: confessa o crime atroz e parte, proscritocomo assassino, para a Sibéria.

Eis aí os caminhos e as obras de Raskolnikov. Um triste balanço: o “gênio”

Page 99: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

tornou-se o homicida corporal de duas pessoas e o homicida moral de muitasoutras. Pois acreditava que ao gênio tudo é permitido, mesmo passar por cimade cadáveres. Pois não sabia que perante o trono de Deus a vida daprestamista Aliona pesa tanto quanto a vida do suposto gênio Raskolnikov.

Em soberba desenfreada, confundiu a sua própria liberdade comlivremente dispor dos outros homens. Reivindicou o desvario de determinarincondicionalmente a si e à sua vida, como se a si mesmo tivesse se criado.Ter sido criado por Deus, no entanto, é o que liga o homem ao seu Criador.Essa condição espiritual do homem é que Raskolnikov negou, rompendo emsacrilégio o vínculo com a razão universal, diretriz de todos os caminhos,para seguir os seus próprios.

O agudo entendimento dele errou. Acreditava-se capaz de calcular deantemão os obscuros caminhos e complicados entrelaçamentos da vidahumana. Isso o entendimento humano não pode. Esquecera-se de que o diaboé um lógico? Raskolnikov enganou-se nas contas da vida, porque a vida não écalculável com lógica. Prática e misteriosa ao mesmo tempo, o entendimentohumano é insuficiente para sujeitá-la.

Acima de todos os sofismas engenhosos e capciosos está a consciênciamoral. Eis o ensinamento de Crime e Castigo.

Agora, talvez acreditemos ter encontrado na consciência moral o roteiropara a vida. Queremos afastar o entendimento mau e estúpido e basear anossa moral apenas nessa consciência. É possível?

Na consciência moral fala a voz da lei natural que Deus colocou em nossopeito. Mas os homens não a escutam sem erros. Gostam de interpretar o queouviram conforme condiga aos seus desejos e inclinações, ajustam à suanecessidade pessoal a imperturbável voz da consciência.

Assim, surge a enganosa aparência de que consciências morais diversassejam tantas quantos são os seres humanos e de que em nossa consciênciamoral seja ora Deus ora o diabo a falar. Deixamo-nos martirizar por remorsose tranqüilizar por consolos. Sem dúvida, o mundo repousará com boaconsciência na noite anterior ao Juízo Final.

Não, não é possível basear apenas na consciência moral a moral e amoralidade. Precisamos de um guia. Mas onde pretendem que oencontremos?

Page 100: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. Três níveisBuscamos um roteiro para a vida, uma fundamentação sobre a qual possam

apoiar-se a moralidade e a moral.É possível encontrar três espécies de fundamentação, três níveis a que

devemos ascender para cumprir o mandamento básico da lei moral: “Amaráso teu próximo como a ti mesmo”.

É possível amar o próximo por amor a si, por amor ao próximo e por amora Deus.

O primeiro nível da moralidade é quando amo a um outro por amor a mimmesmo. Em conformidade com o princípio “Não faças aos outros o que nãoqueres que te façam a ti”, é do meu próprio interesse fazer ao próximo apenaso bem ou pelo menos mal nenhum. É simplesmente razoável ater-se a essaregra e é quase como se com isso pudéssemos fundamentar intelectualmentea moral.

Mas por que é que devo amar a um outro por amor a mim mesmo? Paraestarmos bem, eu e ele, sobre a Terra. Isso acaba por fazer do meu bem-estarsobre a Terra, portanto, o supremo objetivo da vida. Quem, nesse estado decoisas, deve decidir o que seja, para mim e para ele, reto e justo? Ninguémpode revelá-lo senão eu. Logo, essa fundamentação da moral repousa nahipótese de que todo homem traz no seu próprio peito a lei moral, de que elenão a recebeu de nenhuma outra parte, por exemplo, da revelação divina, e deque o homem também possui por si a força de obedecer a esse mandamentointerior. Tal concepção da moralidade, chamada autonomia, solenemente aenunciou Immanuel Kant.

Fundamentar sobre mim mesmo a moral conduz à autonomia do eu moral,leva à autocracia do homem e traz como conseqüência, na melhor dashipóteses, a necessidade de que o homem tenha em vista aperfeiçoar-se erealizar-se o quanto possível. Um homem que desenvolva a sua personalidadeaté ao mais elevado cume será visto como perfeito, como divino.[ 80 ]

Assim, a autonomia moral conduz à hybris e à divinização do homem. Ohomem não pode chegar a essa idéia senão esquecendo-se totalmente de queperante Deus somos todos indignos e pecadores, quer dizer, voltandodrasticamente as costas a Deus. Ainda não será ateu, portanto. Kant e os seusimitadores acreditaram em Deus. Acreditavam, porém, já não no Deus queimpera e rege o mundo, e sim num Deus que opera apenas no mundo ou queé mesmo o próprio mundo. Essa representação imanente de Deus não leva

Page 101: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Deus suficientemente a sério. Não leva em conta a diferença entre o Criador ea criatura, e, em lugar da alma, onde ficava a consciência de que dependemosde Deus, coloca a consciência da autonomia moral. Se o Deus que rege omundo não nos dá a lei moral, sendo antes o homem que autonomamente aimpõe a si mesmo, então justamente o homem é o seu próprio deus. Em lugardo Deus-Homem, Cristo, adora-se o homem divinizado. Ninguém podeimpedir que o homem deduza daí o conseqüente egoísmo e faça passar por leimoral os seus próprios desejos. Na melhor das hipóteses, cingiremos comhonras divinas não a nós mesmos, mas a outros homens, aos gênios talvez, eentregar-nos-emos ao culto nada moral e nada cristão dos heróis. A últimaconseqüência tirou-a Nietzsche, com a suposição de que o mundo existe abem de uns poucos grandes homens e de que todo o resto da humanidade sótem sentido e justificação existencial como solo fértil do qual crescem osgênios que, em comparação com os outros homens, já não estão sujeitos a leinenhuma.

Cada um pode então a bel-prazer tomar-se por gênio, como Raskolnikov, edesejar submeter em proveito próprio o mundo inteiro. Notem bem: cada umfará isso, um contra todos, todos contra um, cada um contra cada um. A lutade todos contra todos se chama anarquia. Quem vencer nessa luta tiranizará omundo; quem sucumbir será morto ou, a vida tornando-se-lhe um fardo,preferirá o suicídio. Que mandamento o poderia impedir? Se a nossa vida nãotiver outro sentido e valor que não o do proveito terrestre aqui na Terra, bem,aí será realmente preferível, para a maioria de nós, a morte voluntária.

Dirão agora os adeptos da autonomia moral: “Mas não desejávamos issotudo”. Certamente não, mas depuseram Deus, despedaçaram-Lhe as tábuas.Cada qual faz agora novas tábuas para si, conforme o deseje, e quem poderáimpedir-lhe a autonomia? E onde se terá jamais realizado, em sua altaidealidade, a moralidade autônoma, tal como Kant a teve em mente? Semdúvida, os homens não se tornaram imorais a partir de Kant; porém, quantodisso é debitado na conta da doutrina da autonomia e quanto na conta docristianismo, que a todos foi inculcado na juventude e cujos resíduos naconsciência moral, conforme a confissão de um Renan, são inesquecíveis einsuperáveis?

Sabemos que o filósofo tinha em mente como exemplo moral ThomasMorus, o chanceler inglês que opôs resistência ao rei ao vê-lo fazer votosimorais de matrimônio, assim como ao separar-se voluntariamente de Roma aIgreja da Inglaterra. Thomas Morus, mártir da sua fé católica, morreu morte

Page 102: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

por mão de carnífice.Eis o glorioso exemplo da moralidade autônoma. Mas isso não é para

qualquer um. Somos homens fracos, tementes já não a Deus, e sim aoshomens. Muitos de nós são volubilíssimos. Como exigir deles que sigamapenas a sua moralidade autônoma, se já não se sabem protegidos em Deus?Se Deus chama-nos com a Sua lei moral, sabemos também que o Deus forte evivo sabe defender a Sua lei e sentimos uma absoluta obrigação de obedecer-Lhe. A autonomia moral não nos impõe semelhante dever, deixando emapuros, sozinhos à sorte, os homens fracos. É uma moral aristocrática que nãoconvém senão a eleitos homens fortes. A todos os outros ela os expõe aorisco do naufrágio moral e de precipitarem-se no nada.

Haveria agora o segundo nível da moral: fazer o bem por amor a um outro.A moral social é anunciada pelos apóstolos da humanidade e do socialismo.Vista de longe, parece maravilhosa: o mundo inteiro deve servir à justiça paratodos; justiça e direito humano, afinal, são as palavras mágicas dessadoutrina, porque estejam todos bem os homens sobre a Terra; pois fora domundo e da justiça terrestre não se reconhece nada de mais alto; tem-se aconvicção de que são bons o mundo e os homens e de que ainda se alcançaráum dia o Paraíso na Terra.

O homem não é bom, bem o sabemos, mas corrupto pelo pecado original.A salvação não lhe vem do mundo, mas da graça divina. Nem o mundo ébom tampouco. Não é em vão que chamamos o diabo de príncipe destemundo. Sempre trouxe conseqüentes dissabores ter o mundo por bom econfiar nele demais.[ 81 ] Maravilhosamente o disse uma vez Franz Kafka:“Não se deve defraudar ninguém, nem o mundo tampouco da sua vitória”.

Devemos fazer o bem por amor a um outro. A qual outro? A este ouàquele? E, contrariando-se um ao outro os interesses deles, por qual dos doisnós vamos decidir? A isso há uma só resposta: vamos trabalhar para avantagem do maior número de pessoas, para a grande maioria, para a massa.Por isso é que todos aqueles apóstolos da humanidade, maçons e socialistassão “democratas” de convicção. São utilitaristas: a maior utilidade possívelda maior quantidade possível é a sua divisa. Para o maior número possível,para a maioria, devem todos trabalhar. As minorias são reprimidas sempiedade. Cada um deve desejar o que seja útil à maioria. Chegamos ao Estadocoercitivo, ao trabalho forçado, à felicidade obrigatória. Aniquila-se todaliberdade pessoal. Em compensação, floresce para outros a liberdade:também a justiça deve ser humana e humanitária. Ela exculpa os criminosos

Page 103: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

todos, os quais cometeram crimes apenas porque ainda não estamos noparaíso terrestre. Ela não considera os criminosos propriamente comomalfeitores morais, mas apenas como pessoas que pretendiam alcançar umacoisa muito adequada, a justiça, por via inadequada. Por que é que o próprioEstado não havia de assumir-lhes a função, apenas de maneira mais adequadae racional? Os criminosos, por exemplo, levando em conta somente a própriavantagem deles, matam de maneira bastante indiscriminada. A sociedade,contudo, poderia livrar-se da sua eventual superabundância de pessoas atépelo método do homicídio; distinguiria melhor simplesmente assuperfluidades, quer dizer, mataria as minorias, como de resto os jacobinos eos bolchevistas realmente o fizeram. Sim, com esse método poderia atémesmo precaver-se contra uma superabundância indesejada de pessoas nofuturo, por exemplo, através de… abortos forçados. Tais métodos, comovemos, alegam prover também para o futuro, mas na verdade não levam emconsideração nem o futuro nem as gerações futuras, antes servindo apenas opresente. E assim como esquecem o futuro, assim também o passado. Nãotêm tampouco sensibilidade para com os pais. Não reconhecem nenhumatradição.

O mundo começa com eles. E, já que renegam os pais e abortam os filhos,o mundo termina com eles também.

O terceiro nível é amar os homens por amor a Deus.[ 82 ] Quanto melhorconhecemos os homens, tanto mais devemos amar a Deus. Pois quantomelhor conhecemo-los, tanto mais reconhecemos a nossa malícia e baixezaabissal, tanto mais difícil torna-se-nos amar os homens por amor a eles.Conhecer os homens e amá-los todavia, disto na verdade foi capaz apenasCristo. Se nós outros conhecemos os homens e os vemos destituídos eabandonados de Deus, a humanidade torna-se-nos horror. Aí provam terrazão os mais sombrios pessimistas, e, do ponto de vista desse conhecimentohumano sem amor, o melhor seria mesmo que o mundo o mais depressaperecesse com os seus habitantes. A esse ponto chegamos, se lançamos aoshomens um olhar sem o amor a Deus que trazemos no coração e que o divinoSalvador ensinou-nos. É lícito empregarmos nesse caso as palavras que, emShakespeare, diz Otelo a Desdêmona: “And when I love thee not, / Chaos iscome again” (“E quando eu não te amo, eis outra vez o caos”). É o caos dolimitado entendimento humano e do limitado egoísmo. Pois o nosso egoísmoé moralmente limitado, porque incapaz de conjugar conhecimento e amor. Élimitado intelectualmente também, porque o seu estreito horizonte não

Page 104: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

consegue olhar para além da própria vida e, na verdade, não conhece nadados outros e da vida como um todo senão a superfície. Daí ser o egoísta ehomem de entendimento, como vimos, um diletante e imperito na vida. Paraescapar a semelhante reprovação, seria preciso conjugar o conhecimentodivino e o amor de Cristo, o que não é possível a homem nenhum. Ou seriapreciso saber da vida muito mais do que um homem jamais pode vir a saberna sua vida breve. E seria preciso, junto com o amor, possuir o conhecimentoda vida que todos os nossos antepassados vieram coligindo na série dasgerações. O saber das gerações chama-se tradição. Apenas a tradição possuiesse eminente conhecimento da vida, essa eminente arte da vida.

Ao homem confiou-se a vida como matéria a trabalhar. Na tradição dasgerações adquire a humanidade as suas grandes e valiosas experiências nessetrabalho. Estas, sem a tradição, morreriam junto com os homens, cadageração tendo enfim de começar do começo. Por isso é preciso reter comoum bem precioso a tradição e obedecer-lhe. É preciso que ela seja a nossaautoridade.

Os homens inclinam-se tanto mais à obediência quanto mais semelhantessão. Hoje estão especialmente semelhantes os homens e uniformizadas asalmas. Por isso inclinam-se à obediência. Eles, que ainda poucos anos atrás seinsurgiam irados contra toda subordinação, gritam hoje por um líder, por umaautoridade. Reconheceram a própria fraqueza e ficaram ávidos de autoridade.O homem-massa de hoje em dia, porém, continua a desconhecer a vivênciada subordinação a uma lei. E somente essa subordinação é a moralidade. Porisso não sabem os homens distinguir agora entre autoridades verdadeiras efalsas.

A ciência, desculpas à mão para tudo, sabe também cobrir com graciosasvestes ideológicas as falsas autoridades. Fala-se de autoridade “carismática”:uns indivíduos, os líderes, possuiriam um carisma, o dom gratuito derevelações atuais.[ 83 ] Não disputaremos em qual sentido abusivo aí seemprega a palavra “revelação” e a quais abusos factuais franquearam-sedesse modo as portas. Não negaremos tampouco a existência de homensdotados de uma especial aptidão para a liderança. Contudo, a autoridade deque deriva tal aptidão está sempre condicionada ao tempo. Também sãohomens mortais um Napoleão e um Bismarck e é transitória a obra deles. E éde uma autoridade incondicionada ao tempo que precisamos, uma autoridadea que os homens sintam-se obrigados de maneira absoluta e para além damorte e que imponha determinadas exigências imutáveis a todas as épocas e a

Page 105: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

todos os homens. Tão pouco se pode erigir desde agora uma autoridadeduradoura quanto se pode fundamentar desde agora uma tradição, e quem otentasse fracassaria ou faria-se ridículo. O americano estava triste porque ogramado na frente da sua casa de campo não prosperava com tanta belezaquanto na frente do castelo do lorde inglês. Não é tão difícil, disse o lorde,basta regá-lo por trezentos anos.

Goethe, o individualista máximo, reconheceu, velho e sábio, queprecisamos de uma autoridade e que ela deve estar ancorada na religião. Porisso, no capítulo sobre a província pedagógica, colocou sob a religião dareverência o herói dos seus Anos de Viagem.

Só a religião tem verdadeira autoridade. Definiu-se a religião comoreconhecimento reverente de uma autoridade que vem do invisível àmanifestação.[ 84 ] Daí aprendemos que só uma autoridade espiritual ligainteriormente os homens. A moralidade não pode nunca ser garantida poruma autoridade a disparar canhões e a arremessar granadas de mão, mas sópor uma autoridade que chama o homem interior e que não obstante semanifesta visivelmente. Há uma só autoridade tal: a Igreja.

A tradicional sabedoria herdada da Igreja é mais sábia do que todos osEstados e do que todas as filosofias. Só a Igreja, por divina investidura graçasao Salvador, dispõe daquela possibilidade vedada a nós homens que é a umtempo conhecer e amar os homens. Apenas ela é a memória de todas asgerações, apenas ela penetra a vida humana nas suas complicações todas econsegue governá-la e dominá-la. Apenas ela garante, na observância datradição, o cumprimento da lei moral. Sua sabedoria tradicional guarda-nosdos erros de Raskolnikov, sua autoridade espiritual nos preserva da anarquiapsíquica de Werther. Por isso é que ela e somente ela está autorizada adispensar aquela salvação da graça que é a absolvição. Quem dela desliga-se,porém, perde a graça, a obediência e a lei, caindo numa falsa liberdade que selhe transforma em ruína.

Examinemos a situação numa importante esfera moral de deveres que éhoje duramente combatida: os problemas que são a juventude e a educação, oamor e o matrimônio.

A juventude, hoje em dia, é tida muitas vezes por um valor em si. Econtudo é isso inteiramente falso. A juventude é coisa belíssima, mas não setorna valiosa senão pela educação para a maturidade. Pois ninguém podepermanecer eternamente jovem, o que aliás não seria desejável tampouco:sobre homens maduros é que recaem as tarefas da vida. Entre juventude e

Page 106: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

maturidade, porém, anda não somente o processo biológico de envelhecer,mas inclusive e sobretudo o processo espiritual de educar-se. Juventude evelhice são coisas que a natureza nos dá. “Men must endure / Their goinghence even as their coming hither. / Ripeness is all”. Maturidade é no entantoo produto da educação, e educar-se não é outra coisa senão aderir a umatradição.

A educação pode ser, no primeiro nível, egoísta, o homem sendo entãoeducado só para si mesmo, isto é, não sendo educado em absoluto. Aeducação pode ser, no segundo nível, altruísta, o jovem sendo então educadopara a vida e só para a vida. Mas a vida é coisa que se parte com a morte.Todos nós devemos morrer, e, se após a morte não vem mais nada, valemesmo a pena viver? Vale a pena, então, educar para a vida? Vem daí que apedagogia tenha chegado agora a uma terrível crise. Ela educa a juventudepara uma vida cuja falta de sentido não se lhe pode ocultar. Logicamente, ajuventude subleva-se contra semelhantes educadores e esquiva-se deles.Logicamente, a pedagogia coloca-se agora a questão da sua própriajustificação existencial, percebendo como trabalho de Sísifo o dela própria; eos educadores já não educam, mas abandonam a si mesma a juventude. Dissoestamos todos observando as conseqüências.[ 85 ]

É que a educação não adquire o seu verdadeiro sentido senão quando é, noterceiro nível, tradicional. Quando é educação religiosa. Não no sentido deque se dêem aulas de catecismo umas duas horas por semana. Desse modo,por exemplo, a Igreja Protestante soube alienar profundamente da religião asua juventude. Não, a educação religiosa deve introduzir-se em todas asmatérias de ensino, em toda a vida da juventude, para que possa produzirefeitos verdadeiros. E esse é o princípio da escola católica.

Os jovens começam a amadurecer. Tornam-se maduros, de corpo e dealma, para o amor. O amor pode ser, no primeiro nível, egoísta,transformando-se na crua fruição sexual da vida. É enganosa aparênciaquando se mascara em flerte, mera prova de que os jovens receiam aresponsabilidade pertinente ao amor. É enganosa figura quando já não se“tem coração”, quando não deve reinar entre os sexos senão a “objetividade”.A objetividade defrauda de perfume o amor e de juventude a juventude. Masnão precisamos nos preocupar: em cada primavera há de florir de novo e denovo o lilás, e no amor reflorescerão sempre os jovens corações humanos demodo que eles mesmos venham a desejar aquilo que ao amor aresponsabilidade empresta e que imprime o selo do valor moral: a constância.

Page 107: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Constância no amor, aliás, é obediência na liberdade, é tradição, é omatrimônio.

O matrimônio pode ser, no primeiro nível, egoísta. Se dois casam-se, isso écoisa deles, assunto particular, matéria que não diz respeito a mais ninguémno mundo inteiro. Ele deseja a comodidade, ela deseja a provisão. Desseponto de vista, o matrimônio realmente não passa de um contrato civil, umcontrato exatamente como aquele entre dois comerciantes que desejam fazernegócio juntos e dos quais cada um pretende enganar o outro. Por isso é queem tantos países o matrimônio foi secularizado na forma do matrimônio civil.Deram um passo para frente os bolchevistas: privatizaram o matrimônio. Omatrimônio, já não sendo entre eles um contrato vinculante, pode serunilateralmente desfeito a qualquer hora, o Estado fazendo apenas registrá-lo.Um comunista declarou nesse sentido que conúbio, coito e divórcio deveriamser, na Rússia, tão fáceis como em outros lugares beber um copo d’água. Asconseqüências dessa teoria do copo d’água são dois milhões e meio debezprizorni, desamparadas crianças órfãs que passam a noite nas ruas eprocuram comida nos lixões.[ 86 ]

O matrimônio pode ser, no segundo nível, altruísta. Marido e mulher, aí,sentem-se ligados um ao outro por amor. Mas o amor nesse sentido não énada de eterno. Esse amor passa. Aos milhares em torno de nós, vemosmatrimônios que fracassaram por arrefecer o amor ou por perturbarem-no asdificuldades materiais. Por isso é que o amor no matrimônio, aliás omatrimônio em geral, tornou-se hoje um problema. Produzem-se em sérieprojetos de reforma do matrimônio, todos terminando enfim no matrimôniode camaradagem, no matrimônio com prazo estipulado, no matrimônio comrescisão prevista.

Os que vêem desse modo o matrimônio não pensam senão na presença doscônjuges. Não pensam no futuro, nem no seu próprio futuro na velhice nemno futuro nos filhos. O matrimônio assume o seu valor moral na prova queimpõe aos esposos. Contrair matrimônio por amor não é nenhuma arte. Mas édifícil, dificílimo, com amor ou sem amor, suster em todas as tempestades davida o matrimônio. Repousa aí, nessa prova que o matrimônio nos impõe, oinfinito valor moral do matrimônio. No matrimônio é que provamos serhomens maduros. O matrimônio está para os homens maduros como para ajuventude está a educação. Por isso é que deve estar ligado a uma tradição omatrimônio também. Como poderíamos vencer essa prova moral, se na horado contrato já estamos pensando numa sua “rescisão” possível? O

Page 108: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

matrimônio só adquire o seu valor moral quando é indissolúvel como omatrimônio católico. Por isso, à diferença de todas as outras igrejas, a IgrejaCatólica preservou a indissolubilidade do matrimônio. Por isso o matrimôniocatólico não é um contrato comercial nem mera união amorosa. Ele serve àeducação do homem maduro no mundo, serve à educação do jovem nomundo, serve à procriação de filhos que são chamados à viva adoção divina;ele prossegue, a título de comparação, a obra da criação divina. Por isso Deusprotege o indissolúvel matrimônio católico, por isso o matrimônio católico éum sacramento.

Assim, a educação é educação religiosa ou não é educação. Assim, omatrimônio é matrimônio religioso ou não é matrimônio. Assim, a moral emgeral é moral religiosa ou não é moral.[ 87 ] E, como somente a IgrejaCatólica possui a autoridade e a tradição necessárias para o dever religioso,vale a propósito a confissão de um livre-pensador francês: “On est oucatholique ou rien” (Ou se é católico ou não se é nada). E, como nãoqueremos nos despenhar no nada, queremos ser católicos.

É preciso renunciar não à liberdade, e sim apenas à falsa liberdade. Épreciso que sejamos obedientes, que nos curvemos e que tenhamosreverência, três coisas que coincidem na verdadeira virtude cardeal cristã: nahumildade. A humildade é o que faz do homem, antes de tudo, um homemmoral. Na humildade é que se pode discernir realmente o valor moral de umhomem. Na humildade é que podemos pôr à prova o valor moral de umaconvicção religiosa.

Há pouco falamos de Goethe, com Os anos de aprendizado de WilhelmMeister e a religião da reverência. Goethe, aí recusando toda religião quevenha só do temor, não reconhece senão a religião que descenda dareverência. Para nós, cristãos, isso não é nada de novo. Mas ele distingue trêsreligiões da reverência: a da reverência ao que está acima de nós, ou fé emDeus; a da reverência ao que está ao lado de nós, ou crença filosófica nohomem; e finalmente a da reverência ao que está abaixo de nós e padece, istoé, a religião da humildade que é o cristianismo. Das três, no entanto,desperta-lhe a mais alta reverência a reverência a si mesmo, ao homem comoponto culminante da criação.

É muito bonito, sim, pois é Goethe. Mas não reconhecemos aí, mais umavez, a autodivinização humana? Onde fica, na reverência a si mesmo, ahumildade?

Por isso distinguimos outras: a religião da reverência ao que está abaixo de

Page 109: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

nós, ao mundo como criação de Deus, como dom da graça divina, consagradopor Ele; a religião da reverência ao que está dentro de nós, isto é, àconsciência moral, à suprema instância moral subjetiva; a religião dareverência ao que está acima de nós, isto é, à Igreja, à suprema instânciamoral objetiva. Convictos de que entre a suprema instância moral subjetiva ea suprema instância moral objetiva – consciência moral e Igreja – não podenunca haver contradição, somos católicos portanto. Christianus mihi nomen,catholicus cognomen.

Dessas três, no entanto, flui a mais alta de todas: a reverência a Deus.Perante Ele, não somos o ponto culminante da criação, mas pobres criaturasdébeis. Por isso nos convém a humildade, a virtude fundamental do cristão. Edela descende a virtude universal do cristão, o amor que move o sol e asestrelas e o mundo inteiro, “l’amor che move il sole e l’altre stelle”.

77 Ninguém deixará de reconhecer o quanto sou grato a Friedrich Wilhelm Foerster e ao seu livro Autoridade eLiberdade. Movem-se profundamente as correntes modernas na ética e deixam-se representar muito pouco nasuperfície popular, quase como se tratasse-se de ciência matemática. O traço fundamental delas é uma brusca viradacontra Kant: à sua ética puramente formal substitui-se uma ética material dos valores, cujos representantes principais épreciso ver em Max Scheler e Nicolai Hartmann.78 Pr 18, 179 Muitas grandes obras poéticas da literatura universal teriam servido para exemplificação: algumas tragédias deShakespeare, os dramas de crítica da vida por Hebbel, Ibsen etc.. Os romances de Dostoievski, contudo, peloposicionamento religioso-moral do autor, tornaram-se exemplo de manual.80 O aperfeiçoamento geral da própria personalidade tornou-se o ideal moral da modernidade a partir do Renascimentoe, uma vez mais, a partir de Goethe. É o ideal moral do esteticismo. Kierkegaard disse todo o necessário a respeito emOu Isto ou Aquilo. Caso particular especialmente interessante é o esteticismo inglês do século XIX, com os seus estrosreligiosos diletantistas. O dandy inglês não foi além desse diletantismo religioso. Quão diferente o dandy francêsBaudelaire!81 Não se deve esquecer que o ídolo de todos os apóstolos da humanidade, Voltaire, resoluto pessimista, ofereceu noCândido o mais amargo escárnio do sonho do paraíso terrestre.82 Nem sempre é fácil traçar o limite entre caritas e humanitas, porque também na humanitas moderna e alheia àreligião continua a operar, não raro sem que o saibam os representantes dela, muitíssimo do bem cristão. A diferençadecisiva, contudo, é sempre a que há entre pretender redimir-se a si mesmo e saber aguardar do alto a redenção:autossoteria e heterossoteria. Cf. Maria Fuerth, Caritas und Humanitas, Stuttgart, Frommann, 1933.83 A teoria da autoridade carismática foi desenvolvida por Max Weber numa época em que não havia nenhumaautoridade vinculante e reconhecida na Alemanha. É interessante observar, ademais, como remete para além doliberalismo o liberal Max Weber.84 Cf. Arnold Meyer em Die Religion in Geschichte und Gegenwart, 2. Aufl., hrsg. von Hermann Gunkel und LeopoldZscharnack, Bd. 1, Tübingen, Mohr, 1927.85 Não pudemos nos ocupar aqui da situação crítica da pedagogia moderna. As teorias e práticas pedagógicasmodernas que pretendiam abandonar a juventude o quanto possível a si mesma eram tão naturalistas quanto apedagogia iluminista de Comenius e Locke até Rousseau e Basedow. O niilismo pedagógico no iluminismo não eramais perverso do que num Wyneken. É inexaurível, cá e lá, a crença na bondade inata da natureza humana. Aspectoespecialmente importante da pedagogia moderna seria talvez a custódia da herança espiritual humanista, hoje ameaçadapor todos os lados. Nem a pedagogia realista nem a de tendência natural são capazes de aduzir razões plausíveis para ohumanismo, mesmo quando a intenção é preservá-lo. Veja-se o quanto o humanismo acha-se estreitamente ligado àtradição da pedagogia católica, em que corre aliás, dos beneditinos aos jesuítas, uma linha unitária.86 Mencione-se, a bem da justiça, que Lenin recusou essa teoria do copo d’água.87 Aqueles que se interessarem pelo difícil problema que é saber se a moralidade necessita e até que ponto necessita de

Page 110: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

compromisso religioso, leiam, não havendo aqui suficiente espaço, a interessante discussão entre August Messer e MaxPribilla, S.J., Katholisches und modernes Denken, Stuttgart, Strecker & Schröder, 1924. Embora o Pe. Pribilla venha deencontro ao ponto de vista moderno com muita tolerância e conceda a possibilidade de uma conduta moral mesmo naausência de religião, volta-se no entanto irredutivelmente austero contra a idéia kantiana de autonomia e traça umarevigorante linha de separação entre os pensamentos católico e moderno. Quando August Messer o acusa de contradizerautoridades tais como Kant, Goethe e Nietzsche, responde-lhe o Pe. Pribilla, com razão, que tem em favor de si, poroutro lado, autoridades como Platão, Aristóteles, Agostinho e Tomás.

Page 111: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

A CIDADE NAS NUVENS

1. Tempos mausTEMPOS TÃO MAUS, como os que estamos tendo de perfazer, parece não teremsido conhecidos outrora. A miséria geral deixa impressão tanto mais irritantequanto parece não estar fundada em insuficiências da natureza, mas apenas naorganização deficiente das forças humanas. Pois se aqui as pessoas não têmnada que comer, ali o trigo apodrece em silos empanturrados e ao mar atiram-se carregamentos de arroz. Centenas de milhares dormem em barracas evagões de trem, jovens famílias não conseguem fundar um lar, matrimôniosressecam-se em esterilidade, e, do outro lado, casas de comércio não rendemmais frutos, milhares de operários da construção civil gozam férias naociosidade que extorquiram. Em face de uma monstruosa superprodução emtodas as áreas está uma infinita carência de todos os bens necessários à vida.A atividade lucrativa da humanidade está completamente desorganizada.[ 88]

Antigamente houve crises também. Desde que por volta de 1800 odesenvolvimento capitalista e a técnica mecânica puseram em marcha o seucortejo triunfal, a Europa foi visitada por crises em constante sucessão.Invenções grandiosas da técnica e demandas crescentes das massas dirigiampara a indústria o capital, sociedades anônimas e fábricas cresciam do solo,preços e salários subiam: tudo estava a contento. Mas, toda vez, exageraram-se as pretensões. Produziu-se mais do que as massas podiam adquirir,baixaram-se os preços, fábricas tiveram de fechar-se, trabalhadores ficaramsem trabalho, era chegada a crise: nada estava a contento. Mas tais criseseram sempre superadas logo. Depois de um tempo, começava com forçarenovada o processo de crescimento da economia, para logo conduzir a umnovo florescimento… e a nova crise. Eram as crises de crescimento,inevitáveis na transição da economia de subsistência à economia de lucro. Ascrises eram meramente ligeiros acessos de febre, aos quais sempre sucediaoutra vez saúde exuberante. Com cada crise a economia mundial assumiadimensões mais grandiosas, conquistava colônias, países tropicais,continentes inteiros. Até que um dia o globo terrestre inteiro estava

Page 112: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

conquistado. E a crise, quando agora se deu mais uma vez, já não podiachegar ao fim. Todos os países da Terra estão igualmente afetados, saída nãose vê em parte alguma, toda a circulação paralisa-se, e, em lugar docrescimento ininterrupto, entra a minaz involução. Não é mais uma crise docrescimento, mas uma crise da existência.

E começara tão bonito. Comida, roupa e diversão para todo mundo!Infinitos os tesouros da Terra! A técnica e a economia prometiam o Paraíso.Quem não conheceu a Europa anterior a 1914 não sabe o que seja afelicidade. Como estávamos perto da sonhada cidade nas nuvens, do Reinodos Céus na Terra! Quando parecia chegado, contudo, eis que nos sobreveioa miséria terrível. Exigimos demais de nós mesmos. Aconteceu-nos como aoconstruírem a Torre de Babel: a construção da torre, no último instante,quando parecia ter alcançado os céus, um punho gigantesco fê-la ruir. Comos arranha-céus da nossa economia não pudemos alcançar a cidade nasnuvens. De novo estamos míseros e minúsculos sobre a Terra. E em torno denós é um campo de mortos coberto de ossos que só vêm perdendo a cor.

Page 113: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

2. Os caminhos dos gentiosUns cem anos atrás usara um francês uma bela imagem para caracterizar a

história: no meio dos povos estão a Árvore da Vida e a Árvore da Morte, masvagarosos vão eles avançando de cabeça baixa e apanhando os frutos que oacaso oferece-lhes.

No curso do século XIX, os povos já não avançaram devagar e de cabeçabaixa. Lançaram-se veementes, o olhar erguido, mas não para os céus acimade nós, e sim fixo num sonhado Paraíso, na cidade nas nuvens. Lançavam-se,livres cada qual de grilhões e de vínculos impeditivos. A Reforma e asecularização haviam libertado a humanidade de todos os vínculos, mesmo osdo além. Não é acaso que um protestante em meio de um povo católico,Rousseau, tenha erguido o facho da revolução que, arremessado contra avelha Europa, ateou-lhe fogo. A era dos cavaleiros, dos nobres de sangue e deespírito, acabou-se. O que surgiu, no entanto, foi a época dos advogados edos economistas. E a glória da Europa extinguiu-se.

O pioneiro do progresso foi o liberalismo. Como todo grande movimentoespiritual, também o liberalismo tem raízes religiosas. Nasceu do deísmo doséculo XVIII que, apesar de reconhecer o Deus Criador, proibia o governodivino do mundo. Que o deísmo tenha resultado no liberalismo foi obra dosmaçons sobretudo. Deus criou e dispôs o mundo de maneira tão racional quesubsistisse na mais perfeita harmonia, mesmo sem ulterior intervenção Sua.Criemos o nosso mundo, a exemplo de Deus, dispondo-o de maneiramuitíssimo racional, para o que não precisaremos nem Dele nem de SuaIgreja. No sentido desse raciocínio é que se diz ser o deísmo a origem doliberalismo dos maçons, com os seus ideais puramente terrestres de liberdadee justiça. Ninguém o sustentou com mais força do que os judeus liberais,aqueles judeus que ao liberalismo deviam a sua libertação social e queestavam inteiramente adaptados ao racionalismo, ao deísmo e à citerioridade.Daí observarmos que, em nossa época, em que o liberalismo arruinou-se demodo tão fragoroso que já nenhum cão vem tomar-lhe sequer um osso, a eleainda assim se atêm fiel e tenazmente tanto os maçons quanto os judeus.[ 89 ]Habeant sibi!

O liberalismo baseava-se portanto no princípio naturalista e racionalista, talcomo o expôs em sua brilhante análise o Papa Leão XIII.[ 90 ] O nossoobjetivo deveria ser deixar triunfar a civilização burguesa sobre a barbáriecristã, sobre a “tenebrosa Idade Média”. No pensamento econômico, a fé no

Page 114: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

mundo revelava-se na doutrina do “laissez faire, laissez aller”. Jamaisinterfira na economia o Estado, já que sempre a concorrência recolocará ascoisas automaticamente em belíssima ordem; não saiba a destra do Estado oque faz a sinistra da sociedade. Fazem-se em pedaços, assim, o Estado e asociedade? Correto. Na economia, os ricos fazem quanto lhes apraz, sem quea ninguém seja lícito intrometer-se; como indenização, o pobre recebe, ao queparece, o Estado: os liberais são adeptos da democracia. Pois que dano ademocracia poderá causar-lhes, desde que o Estado não interfira naeconomia? A nós os dividendos, ao pobre o sufrágio universal.

O liberalismo pariu o capitalismo de máquinas. Colocou a utilidade emlugar da autoridade, pensando apenas na felicidade material das grandesmassas, a cujos maus instintos tornara-se subserviente. Mas elas aumentaramde maneira inquietante. A população da Europa duplicou de 1800 a 1900; apopulação da Terra subiu de setecentos milhões até quase dois bilhões nomesmo espaço de tempo. Para essas massas imensas teve o liberalismo detrabalhar, sobretudo se não as quisesse matando-o a pancadas. Por isso oliberalismo converteu-se em capitalismo.

O capitalismo costuma, com efeito, datar-se mais ou menos a partir do fimdo século XVIII. As geniais investigações de Max Weber, porém, lançaram luzsobre a razão pela qual foi justamente entre determinados povos, osholandeses e suíços, os ingleses e americanos, que chegou a desenvolver-se apostura espiritual que está na base do capitalismo. Essa postura espiritual temraízes – não exclusivamente, mas sobretudo – na Reforma. E especialmentenaquela tendência da Reforma que deriva do reformador suíço Calvino e queconquistou primeiro os Países Baixos e a Suíça, depois a Inglaterra e aAmérica.[ 91 ]

O dogma principal do calvinismo é a doutrina da predestinação: Deuselegeu desde o princípio um certo número de homens para a bem-aventurançaeterna, enquanto os outros todos, mesmo as criancinhas inocentes, foramdeterminados para a eterna perdição. Essa doutrina, na escabrosaconformação que lhe deram Calvino e os seus sucessores, é provavelmente odogma mais cruel e mais terrificante jamais anunciado por qualquer religião.Era próprio para produzir consternados e soturnos sujeitos cabisbaixos.

É curioso, contudo, que o dogma tenha tido efeito inteiramente outro sobreos povos que o aceitaram. Esse dogma temível é humanamente insuportável,a não ser que já neste mundo obtenhamos um sinal visível de quepertencemos aos eleitos de Deus, isto é, Deus abençoando e coroando de

Page 115: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

sucesso o trabalho terrestre do homem. Em atividade e trabalho infatigáveisassegura-se da graça da eleição o calvinista. É a benção de Deus sobre oshomens permitir-lhes cá neste mundo erigir um reino de Deus na Terra. Vemdaí o infatigável impulso de dominação mundial entre os puritanos anglo-saxões. Mas o puritano não desfruta do trabalho; a religião proíbe-lhe até osmais inofensivos prazeres. Ele trabalha por trabalhar. Ele, sob todos osaspectos, é o exato oposto do grão-senhor medieval, que estava contente comos seus bens, que despendia o seu dinheiro nos prazeres deste mundo e quedeixava inclusive os outros viverem. O puritano, ao contrário, não temconsideração pelas outras pessoas; como ele exige de si mesmo o que há demais severo, ele é para os outros o espoliador nato também. Ele, em favor dotrabalho, arranca os homens fora de todas as relações. Ele quebra a ordemmedieval dos estados, ele possibilita a livre mudança de ofício. Desenvolve-se o espírito dos negócios, floresce a economia do mundo; bens não seproduzem mais para as necessidades, mas para um apetite ilimitado de lucro ede ganho. A economia não serve mais à alimentação, mas ao lucro: eis prontoo capitalismo.

O capitalismo conglomerou em monstruosos trustes a sua estrutura. Reis,ministros e parlamentos transformaram-se em marionetes, enquanto overdadeiro poder ficava nas mãos de um pequeno grupo de banqueiros e degrandes industriais detrás dos bastidores. O dinheiro tornou-se o deus destemundo. O capitalismo cerrou o seu ouro numa caixa de ferro cuja chave seperdeu. E agora o capitalismo não pode mais alimentar a humanidade.Produz-se em cifras de fantasia, fantástica torna-se a miséria dos homens. Umdefeito desses produz revolta. O socialismo levanta a cabeça. Primeiro,pretende reformar a economia; fracassando, põe-se a destruí-la.

Entre esses dois colossos coarctou-se o desenvolvimento do liberalismo.Entre eles o liberalismo não pode nem viver nem morrer. Fiel ao seuotimismo e à sua “tolerância”, murmura indeciso por entre idéiasinconciliáveis, mistura os conceitos todos por eternamente discutir, preferetornar não-capitalista o capitalismo e não-socialista o socialismo. Oliberalismo falseia todos os princípios, envolvendo-se nas contradições maisincríveis: baseia a economia monetária no livre-câmbio e a economiamercantil no sistema aduaneiro, espantando-se que a economia mundial nãofuncione. Envolve-se em contradições iguais na vida política: ladrando emtorno do carro do Estado como um cão casmurro em constante oposição,impede-o de circular; mas não à desinteressada maneira do cão; o liberal não

Page 116: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

ficará contente se o cocheiro de tempos em tempos não lhe atirar de cima umgordo bocado. Assim o liberalismo compromete a democracia até aos ossos,deixando-a degenerar no direito, igual para todos, de mendigar e de dormirdebaixo das pontes.

A democracia [ 92 ] surgiu nos tempos da monarquia absoluta, quando omonarca era a firme autoridade na vida estatal e era preciso pouco a poucoarrancar dele os direitos do cidadão. Parlamentos e democraciasencontravam-se numa perpétua oposição de princípios contra os titulares daautoridade estatal. Essa postura foi preservada tenazmente e transportada aostempos da república parlamentarista – hoje são repúblicas parlamentaristas asmonarquias européias. Na república parlamentarista já não existe nenhumaautoridade suprema da qual através de ameaças possa o parlamento obterqualquer coisa. O parlamento é ele próprio a autoridade estatal. O Estado nãoé senão o mutável compromisso dos partidos parlamentares. Fende-se emgrupos de interesse: países, municípios, organizações tornam-seencastelamentos de partidos a mover guerra uns contra os outros; e o Estado éo espólio que se há de repartir após a vitória. O Estado não funciona por isso.Os parlamentos não funcionam por prodigalizar os fundos tributários parafins partidários e por recuar de pavor perante toda e qualquer medidaimpopular. Cada vez mais forte fica o fastio à democracia. Busca-se naconsciência coletiva da nação a autoridade faltante.

Também o nacionalismo é criatura da Reforma, da sua tendência luterana.Lutero desmembrou a Igreja universal e supranacional em igrejas nacionais eregionais. Cada uma delas evoluiu para baluarte do isolamento da nação. Asdiversas línguas litúrgicas em lugar do latim viraram símbolo de que ospovos já não se entendiam. O Estado rejeitou a hierarquia instituída por Deus;porém, não podendo faltar na estrutura estatal uma hierarquia escalonada,substituiu as ordens sacras por classes graduadas, criou a hierarquia profanado funcionalismo.[ 93 ] O funcionalismo apoderou-se do Estado e o tornoutodo-poderoso na atividade. De Lutero através de Frederico II da Prússia eHegel até Bismarck corre uma linha unitária para longe do cristianismo emdireção à divinização do Estado. O Estado precisa de uma legitimação da suaautoridade. Como já não a recebia mais de Deus, fundamentou-a na vontadeda nação. Cada um afirmava agora o seu próprio como povo eleito,esquecendo-se de todo de que os povos são eleitos por Deus.

Nação e vida nacional própria são qualquer coisa de necessário e deaugusto. Mas perigosos são todos os Estados nacionais que negam a outras

Page 117: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

nações o direito à vida e pretendem prosperar à custa alheia. Roma, já tornadaimpério mundial, desejava permanecer ainda e sempre cidade-estado.Portanto caiu. Assim fracassam também hoje os Estados nacionais em facedos problemas econômicos mundiais que, dentro da moldura nacional, sãoimpossíveis de solucionar. A maior absurdidade é no entanto quererconservar a economia liberal e ao mesmo tempo impedir-lhe o funcionamentopor intermédio de um sistema protecionista. Um legítimo antiliberalismo épreciso. Como tal comportava-se o socialismo.

A base do marxismo é a concepção materialista da história. Essefundamento, para cuja crítica por Oskar Katann desejamos chamar a atenção,[94 ] ensina que a única realidade no mundo e na história são os processoseconômicos de produção. Estado, direito, religião, ética, cultura são apenas a“superestrutura ideológica”, apenas o reflexo do processo de produção doqual dependem. A história não é história de acontecimentos políticos eculturais, os quais são só bastidores, e sim uma história de lutas de classes. Eaonde conduzem as lutas de classes no curso da evolução capitalista? Paraisso, Marx dispôs uma fileira de leis a partir das quais acreditou poderprofetizar o futuro: a propriedade dos meios de produção concentra-se nasmãos de um número menor e menor de grandes capitalistas (teoria daconcentração), enquanto, paralelamente a isso, vai crescendo a miséria dasgrandes massas (teoria da miséria crescente). Por fim, restam só unspouquíssimos empresários gigantes em face da gigantesca massaempobrecida, até que a massa exproprie a esses poucos. Eis o socialismo.

É preciso distinguir entre a luta de classes que se constata e a que seprovoca. Sem dúvida, existe entre os grupos econômicos uma luta que rasgao povo e turba o trabalho. É uma perversidade, porém, recrudescer ainda maisa luta através da agitação e incitar o povo, anunciando-lhe o ódio e pregando-lhe a inveja, a separar-se em dois acampamentos inimigos. Essa “luta declasses” tomará parte muito bem no capitalismo. Ela simplesmente tomarápara si o mais que puder do capitalista Mamon. Mas não se pode servir aDeus e a Mamon. Cristo não fala à carne, mas à alma. Ninguém liberta domamonismo, em vez de mudar a distribuição de Mamon, senão Cristo.Interpretar socialisticamente o Evangelho significa entendê-lo grosseiramentemal. O Reino de Deus não é deste mundo. Por isso descontentou-se Judascom trezentos denários serem dados por um bálsamo para o Senhor em vezde aos pobres. Disse-lhe Jesus: “Pois sempre tereis pobres convosco, mas amim nem sempre tereis”.

Page 118: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Cristo fala ao homem, não à classe proletária. Ele compreende com omesmo amor tanto os capitalistas quanto os proletários. E, porque ama, étambém mais sábio do que o marxismo, cujo grandioso entendimento nãoacertou, enfim, sequer cientificamente.

Marx era um profeta, porém dos falsos. As profecias não se cumpriram. Ateoria da concentração não funciona na agricultura; o latifúndio não cresceu,mas derrete continuamente.

E tampouco desapareceram as pequenas empresas industriais, antesresistiram melhor à crise do que as empresas gigantes. As massas operáriasnão estão empobrecidas a olhos vistos, aliás admiravelmente se lhes elevou opadrão de vida.

As profecias do marxismo estavam erradas, portanto. Mas onde está afalta? O marxismo pressupõe que a política econômica liberal e o sistemaeconômico capitalista funcionarão até o último instante de existência, parafinal e repentinamente mudarem-se em socialismo. O pressuposto é falso,porém. É que, na crise existencial em que presentemente nos encontramos ede que não se pode prever ainda o fim, o velho sistema econômico nãofunciona mais; e com isso param de funcionar também as leis conforme asquais, segundo o esquema marxista, deve realizar-se o socialismo. Ninguémcontribuiu mais para isso do que os próprios socialistas, aos quais em tantospaíses o poder caiu-lhes dos céus; contudo, não se atreveram a fazerexperimentos socialistas em grande escala, mas mantiveram a ordemeconômica capitalista tal como está e empreenderam apenas causar-lhe mortelenta a alfinetadas incessantes. Daí a grande morte da economia e, na esteiradisso, o completo fracasso prático da socialdemocracia, que não podia nemabolir o capitalismo nem instaurar o socialismo.

Mas temos de furar ainda mais fundo para achar a verdadeira faltafundamental do marxismo. Fica na concepção materialista da história.Riquíssima em lições para toda a pesquisa histórica, ela dirigiu o olhar paraas conexões econômicas antes despercebidas e contribuiu consideravelmentepara o florescimento da história econômica e social. Muitos fatores operamna história, inclusive o econômico; querer fazer dele o único, o que é umafalsidade histórica e psicológica completa, trai certo parentesco com aquelaciência materialista do século XIX que é de todo alheia ao espírito.[ 95 ]

Dessa postura hostil ao espírito procedem os erros do marxismo. A históriaé um processo dinâmico, operação de forças vivas. O marxismo faz dela umjogo automático de rígidas leis. Ele não permite aos homens elaborar o

Page 119: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

paraíso socialista, fazendo-os antes aguardá-lo de braços “fatalisticamente”cruzados. Vontade e sentimento não ocorrem no marxismo. Marx nãoreparava que a sociedade não age de maneira causal, e sim finalística.Pensava de maneira inteiramente não-psicológica. Conhecia os processos deprodução, mas não a alma. Por isso, tampouco entendeu que um problemacentral do trabalho humano é a alegria no trabalho. Cabe ao fervor dospolíticos social-cristãos o mérito de haver chamado a atenção para esseproblema pela primeira vez.[ 96 ]

Marx não pensava nem psicologicamente nem eticamente. Ele golpeou demorte o socialismo ético dos seus antecessores e substituiu-o pelo seusocialismo científico e amoral. Por isso, tampouco produziu pessoas, apenasorganizações. Como os marxistas não quisessem saber nada de alma e demoral objetiva, não produziram “socialistas”, mas um exército de pequenoscapitalistas descontentes. Do suposto socialismo sindical fez-se de improvisoum capitalismo sindical desejoso de dividir com os capitalistas os ganhosdeles, mas renunciar respeitosamente às perdas. Assim, a malograda políticados sindicatos não só contribuiu enormemente para a miséria da crise, comotambém ajudou a matar a idéia socialista. Por fim, os sindicatos quase já nãoeram mais do que associações de poupança e de fomento e, como todas asassociações capitalistas dessa época, foram à bancarrota material e ideal.

Não tem limites a desilusão das massas. Descrêem agora do destinosalvífico dos processos econômicos, do automatismo das leis econômicas.Desejam corrigir à força o destino. Essa revolucionária correção forçada é obolchevismo.

O bolchevismo profetizou-o Dostoievski, já sessenta anos atrás, nos seusDemônios. Anteviu corretamente que os sofistas substituiriam a teocraciapela “demonocracia”. A profecia cumpriu-se: entrou no mundo o diabo docomunismo.

O socialismo de mais velha guarda tinha ainda a pretensão de velar pelaliberdade da personalidade. Bem essa liberdade, no entanto, o bolchevismonão reconhece. Estereotipa tudo. Estereotipa até as crianças nos reformatóriose uniformiza os estômagos nos refeitórios das fábricas. Nada deixa àpersonalidade, tudo arrebata para si, para o Estado. As conseqüências sãocoerentes. O Estado russo é o maior e mais rico empresário do mundo todo;mas o povo submerge em miséria inominável.

Na verdade, o que na Rússia se faz não é socialismo, mas um inaudito eintencional capitalismo de Estado. Por isso é que o plano qüinqüenal trata

Page 120: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

intencionalmente de industrializar o império inteiro, de proletarizar ocampesinato ainda não proletarizado. Até que o plano qüinqüenal – e osplanos qüinqüenais vindouros! – esteja cumprido, o mais autoritáriocapitalista que já se viu no mundo, o Estado russo, conduzirá um rebanho decento e cinqüenta milhões de proletários. E que proletários! Proletáriossubnutridos, proletários sem direito de greve, proletários sem qualquer vidapessoal, proletários numa situação que jamais poderiam ter sonhado aquelesque presenciaram o início desse experimento, dessa aventura. E como é queos russos toleram essa condição? Designou-se-lhes a vida presente como umaconjugação do futuro: nada é, tudo será. Aguardam o paraíso, fixam o olharna cidade nas nuvens.

Aguardam o ateístico Reino de Deus na Terra. Como, por princípio, nãopensam senão neste mundo, como não acreditam senão na Terra em queestão, e, fundamentalmente, como não fazem senão negar a Deus, tampoucolhes é possível valer-se da alma. Em lugar daquele homem que adere à alma,ao qual Deus revelara a verdade, colocam o homem-massa, que é destituídode alma. Não têm como ideal a sociedade dos homens, mas a colônia dasformigas. Até que um dia venha a grande revisão; até que um dia o mundotrema do trovão que estrondeou sobre o Sinai; até que um dia um movimentodo alto faça vir miseravelmente abaixo o formigueiro inteiro.

Page 121: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

3. EdificaçãoDevemos voltar a nós, antes que venha a grande revisão. Não fiquemos na

expectativa do Dia do Juízo, não fixemos o olhar naquele nefasto fantasmaque é a cidade nas nuvens. Voltemos o olhar para a Terra – e para o Céuacima de nós. Aprendamos humildade em nosso trabalho. A edificação dohomem interior, difícil reconstrução, devemos empreendê-la. É renovação noespírito religioso e moral.

A edificação da vida social deve começar de baixo. A menor unidadesocial que conhecemos é o matrimônio, a família. O matrimônio, hoje emperigo, não poderá ser salvo se não for tomado em todo o peso da suaresponsabilidade, se não for novamente o matrimônio indissolúvel em sentidocatólico. Salvar o matrimônio é não só uma ação moral para os indivíduos,mas inclusive e sobretudo uma ação moral para a comunidade. Pois a famíliaé a célula germinativa do Estado e é insubstituível nessa função.

É verdade que recentemente se fizeram, na teoria e na prática, tentativas debasear o Estado em outros fundamentos; em partidos ou em ligas masculinas.A teoria desse atrevimento forneceu-a o psicólogo alemão Hans Blüher. Elepresume que em todos os homens vivam emoções homossexuais reprimidas ecarentes de válvula de escape: em nível mais baixo, clubes e cafés, e, emnível mais alto, ligas e partidos, os quais agora dariam todos o fundamento dofuturo Estado masculino.

Mas nessas ligas considera-se então apenas uma parte do homem, a saber,a parte sexual. E ainda que a teoria estivesse correta, Blüher não poderia noentanto negar que no caso da grande maioria dos homens a pulsão sexualnormal é de longe mais forte do que o componente homossexual. Na vidapública, contudo, interessa considerar a pessoa inteira, domar e fazer tomarcaminhos regrados as mais fortes pulsões. Cumpre consumadamente esserequisito uma instituição que talvez não seja tão deslumbrante de engenhoquanto à teoria de Blüher, mas que em compensação é mais antiga e maistestada: o matrimônio. O matrimônio domestica a mais forte pulsão humana,a pulsão sexual. A propositada restrição da liberdade pulsional é umanecessidade impreterível da civilização humana. É também uma defesanecessária para a mulher, e, podemos perfeitamente recordá-lo aqui, a alturada civilização guarda exata relação com o respeito de que nela a mulherdesfruta. Não se terá tornado o cristianismo muitas vezes, justamente graças àsua nova estima à mulher, um benfazejo poder de domesticação? E mais: o

Page 122: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

matrimônio não apenas doma a pulsão sexual, como a põe em serviço, prendeo homem à mulher e ao filho, impele-o a alimentá-los, força-o com isso aotrabalho, aplaca-lhe na vida familiar as necessidades do coração. Quer dizer,o matrimônio considera não a metade, mas o homem inteiro. Por isso éimprescindível e não pode ser substituído por liga nenhuma. Por ele é quedeve começar a reedificação anímica e material.

A edificação seguinte trata do sistema econômico, onde os homens devemcolaborar. Também nesse caso, cuidemos de considerar não a metade, mas apessoa inteira. Está fora de questão, por exemplo, absolutizar o trabalho e oseu valor. O trabalho é necessário, certamente. Timbrá-lo de única coisanecessária, no entanto, é voltar ao formigueiro socialista. Não é o homemcomo trabalhador que devemos intuir, mas o homem enquanto alma que é. Apartir dessa visão interior chegamos também a uma apreciação neutra daordem econômica e social. Vêem-se à luz do dia tanto os danos docapitalismo quanto as insídias do socialismo. Aqui não sendo o lugar paraexpor a discussão enormemente grave sobre a relação entre a Igreja e aquestão social, remissão faça-se ao excelente livro de Johannes Messner.[ 97] Acima de toda discussão, porém, é certo que a Igreja não toma partido afavor de um lado só, mas busca a coincidentia oppositorum. O ideal dela nãoé nem o capitalismo nem a luta de classes, mas a solidariedade geral.

O solidarismo não é um ideal suspenso insubstancial no ar. Fenômenossignificativos do nosso tempo predispõem-nos a ele. Fazendo penetrar-se doespírito cristão a vida pública inteira, realizamos o sentido da idéiacorporativa que vem sendo objeto de intensa discussão.

Hoje impera em nossas vidas caótica anarquia. A isso chamou-se comrazão capitalismo dos piratas ou socialismo dos rebeldes. Aonde leva ocaminho do capitalismo? Visivelmente, a acorrentar a desimpedida economiade concorrência. Mas então separam-se os caminhos. O capitalismo podetornar-se economia vinculada de cartéis ou economia vinculada de trustes:alto capitalismo ou socialismo estatal. Entre esses dois colossos esmaga-se overdadeiro portador da cultura: o estamento intermediário da cidade e docampo. Salvá-lo é preciso, o que só é possível numa economia corporativa.

Visivelmente, a nossa época transita do individualismo para um novocoletivismo. Os nossos esforços devem estar todos dirigidos para que asnovas estruturas coletivas não saiam tão materialistas e animicidas quanto àsestruturas sociais do individualismo e do socialismo. A nossa atenção deveestar dirigida para que as formas de vida da sociedade não venham mais uma

Page 123: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

vez a ser confundidas com as formas de vida de meras organizações. Aorganização coletiva é necessária, mas ainda mais importante é que espéciede homens sustenta essa organização e para que a utiliza. Se colocamo-nosnesse ponto de vista do qual, em todo caso, mais importante é o homem doque a organização, chegamos a uma comunidade que até nos mínimosdetalhes organiza-se conforme a alma e que se congrega por vínculosinteriores: o estamento ou estado.

Aqui não é o lugar para discutir os princípios da ordem corporativa. OPapa Pio XI oficiosamente os expôs para os católicos na encíclicaQuadragesimo anno. Quem quiser saber mais a esse respeito achará ricosensinamentos no comentário do Pe. Oswald von Nell-Breuning, S.J., ou nasobras sociopolíticas de Johannes Messner e August M. Knoll.[ 98 ] Planos dereforma ou projetos de constituição não serão discutidos tampouco.Constituições não podem ser “feitas”; elas crescem organicamente, e sóficarão boas se crescerem do terreno de uma forte fé cristã, que tem depenetrar o nosso povo. Pois só a postura interior do homem garante o corretoequilíbrio de direitos e deveres e, com isso, também o correto funcionamentode toda constituição política e social.

Contudo, pode-se dizer pelo menos que foi a economia corporativa quedesprendeu de si o capitalismo, e, se o capitalismo vem regressando à ordemcorporativa, é isso meramente um ciclo. A ordem corporativa, tal comoexistira na economia de subsistência da Idade Média, antes do cortejo triunfalda economia de lucro, deve certamente corresponder, hoje, a circunstânciasmudadas.

Ora, muitos há que estremecem com a expressão “Idade Média”. Farejamtrevas e fogueiras e clamam pelo extintor de incêndio do “iluminismo”. Vêemna Idade Média, ainda agora, nada mais do que a conseqüência de bárbarosséculos malditos. Nós outros, com uma noção melhor, vimos há muitoressurgir em confiante esplendor a cândida alma medieval. Eles continuam aignorar que “medievalismo” tornou-se palavra moderna; que o espírito góticoe franciscano recomeça a penetrar a nossa cultura; que a mística irradianovamente a sua luz; e que, em meio ao perigo de gases tóxicos e de bombasincendiárias que ameaçam tudo exterminar cá embaixo, as idéias medievaisde direito e de Estado redespertam e revigoram-se na nossa vontade política,como a última esperança.[ 99 ]

Duas objeções relevantes fazem-se valer, habitualmente, contra o retornode instituições medievais: a Idade Média não teria conhecido uma economia

Page 124: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

mundial no nosso sentido, como tampouco a mobilidade da pessoa. Asobjeções são ambas inconsistentes. A Idade Média conheceu uma economiamundial de grande estilo, tal como hoje em dia, nos tempos de barreirasaduaneiras nacionais, não poderíamos senão suspirar: lã inglesaaprovisionava as manufaturas flamengas e italianas, panos flamengos eitalianos eram negociados por toda a Europa, estanho inglês e chumboespanhol, prata boêmia e ouro húngaro transpunham os Alpes; as cidadeshanseáticas promoviam o tráfego até à Escandinávia e à longínqua Rússia; asfrotas de Veneza e Gênova traziam dos portos do Levante as especiariasindianas e a seda chinesa.[ 100 ]

E a mobilidade da pessoa? Isso, na verdade, nunca existiu nos temposmodernos. O operário sempre esteve acorrentado à sua fábrica, e, graças aDeus, o lavrador ainda está ligado à sua gleba. Onde essa maldição realmenteexistiu, no entanto, a mobilidade dos homens era ser escorraçados semdescanso de lugar em lugar. Verdadeiramente móvel foi sempre uma coisasó: o dinheiro. E a mobilidade do dinheiro é o que leva a culpa de todas asnossas crises.

Portanto, basta de palavras contra a ordem corporativa! Pois só ela podeoperar uma renovação da nossa vida pública a partir do espírito religioso.Somente na ordem corporativa fica protegida a liberdade e o direito dapersonalidade. Somente essa ordem presta proteção também à classe quemais duramente vem sofrendo neste duro tempo: os intelectuais. Quando ogrande erudito descrente Hippolyte Taine visitou o célebre mosteiro deMonte Cassino, admirou-se da sabedoria e da benignidade com que embárbaros séculos a Igreja prestara asilo ao espírito. Perguntou desesperadoquando é que o nosso tempo e a nossa civilização dariam lar seguro aosdoutores e aos artistas. A pergunta ficou até hoje sem resposta. Somente aIgreja pudera fazê-lo.

Já uma vez a Igreja, em tempos mais tenebrosos do que os nossos, salvou acultura, domou anarquia e barbárie, instituiu a paz.

Era a temível época após a migração dos povos. Francos e langobardostinham destruído as cidades antigas. Da grande Tréveris remanesciam tão-sómiseráveis tugúrios de lenho sobre os restos dos muros. As atuais Mainz eWorms subsistiam só como nomes de comarcas. Delinqüentes e sectáriosocupavam as ruínas. Uma guerra imperava de todos contra todos. Duas vilasna vizinhança de Florença guerrearam durante cem anos entre si. Umaaristocracia brutal usurpou toda a autoridade, tomou o que lhe aprouve,

Page 125: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

lacerou-se em discórdias homicidas. O lavrador estava inseguro da própriavida, os campos ficavam incultos. Na França imperavam fome eantropofagia. Em licencioso desenfreio, homens e mulheres lançavam-se unssobre os outros. Livros não havia mais. Um notário do reino da França nãosabia escrever.

Aí vieram os monges. No ano de 910, o grande Odo fundava o mosteiro deCluny. Domesticou-se o selvagem homem nórdico. Forçaram-no ao trabalho,ao asseio, à abstinência sexual. Os monges ensinaram os homens a trabalhar,a escrever. Bispos cluniacenses é que construíram o Estado otoniano. Odilo,pregador de comover corações, proclamou a paz. A trégua de Poitiers no ano1000 aboliu a guerra de todos contra todos. Monges cisterciensescolonizaram a germânica Marchia Orientalis. Cidades surgiram como centrosde cooperação pacífica. Buscando auxílio e implorando paz, as casasestreitaram-se em torno da igreja, em cuja sombra era bom habitar. Emambientes aconchegantes originou-se a burguesia das cidades da Françasetentrional, da Renânia, da Itália superior. Reuniu-se em guildas, estabeleceuordenanças precisas sobre moedas, pesos e medidas. A segurança docomércio saiu para além dos muros das cidades, defendeu o camponês contradesenfreados lansquenetes, defendeu o mercador contra aristocratassalteadores. Os homens ficaram mais tranqüilos e mais mansos. A mezurados provençais tornou-se o ideal. Do dolce stil novo floresceu na Itália apoesia de Dante e de Petrarca. Poderosas catedrais ergueram-se e poderosasuniversidades lançaram livros e estudantes de si. A paz e a cultura acharam-se albergadas na Europa. A idéia do direito vencera.

Ainda hoje a Igreja é capaz de tal desempenho civilizatório. Aos filhosperdidos da selva primeva e do Mar do Sul envia ela os seus heróicosmissionários, os quais, no tormento do calor tropical, sob ameaça de bestasferozes e pestilências, em permanente perigo de morte, à distância decentenas de quilômetros de toda civilização lá fixando residência, trabalhamos indígenas e ensinam-los a rezar e de selvagens fazem homens. Sempretenhamos em mente esses heróis da missão. Quando estivermos desesperadosde tudo, quando acreditarmos que em nenhuma parte do mundo, deste mundomau e cruel, deva ainda haver uma centelha de amor, então recordemos queem algum lugar, sob os gigantescos plátanos da floresta virgem da ÁfricaCentral, em pé estará uma pequena arvorezinha de Natal.

Hoje, por toda e qualquer parte, a humanidade grita por uma idéia decomunidade que através do amor venha a sanar o dilaceramento. Ela

Page 126: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

desconsidera, de propósito, os magníficos exemplos de semelhantecomunidade ativa de amor: as ordens. Ação criadora não sai nunca dasmassas, mas de celas onde os unânimes se curvam todos à lei de uma ordemmais alta.[ 101 ] Com tais celas, os claustros, a Igreja instituiu as suasgrandes realizações culturais para a humanidade; em tais celas, pelos séculos,o espírito e a moralidade acharam teto protetor; nestas celas revolvam amboso terreno com cruz e arado – cruce et aratro – ou fertilizem as almas com oarado espiritual dos exercícios; nestas celas está em casa o ato que é aomesmo tempo o amor.

Não há no mundo senão o amor e o ódio, a afirmação e a negação. AIgreja, o poder da afirmação e do amor, é a única salvação perante os horroresdo capitalismo e das revoluções. A verdade religiosa da Igreja é também, aomesmo tempo, a verdade política e a verdade social da vida pública.

Só a doutrina eclesial do direito natural que nasce conosco protege econfirma a autoridade que é imprescindível para a vida pública. Só a doutrinado direito natural fixa limites à autoridade estatal e protege a liberdade dapersonalidade; só o espírito cristão e eclesial na vida pública é capaz deresolver de maneira justa a antiqüíssima questão: “Poder ou direito?”.

Não devemos estatizar a Igreja, mas cristianizar o Estado. Aí então, após odia da negação soberana de que sofremos hoje, chegará o dia da soberanaafirmação.

88 Esse retrato da crise econômica é só uma abreviatura, naturalmente. Apresentaram retratos acertados FerdinandFried (Das Ende des Kapitalismus, Jena, Diederichs, 1931), André Siegfried (La crise britannique, Paris, A. Colin,1931), Leo Hausleiter (Revolution der Weltwirtschaft, München, Knorr & Hirth, 1932). Aqui tampouco era lugar deexpor as teorias modernas da crise. Nesse território enfrentam-se em controvérsias os teóricos da estabilização, comoCassel e Georges-Picot, e os teóricos da deflação por dívidas, como Hawtrey, Fisher e Keynes. Comum a todos eles éum novo rigor da investigação teorética da crise, afigurando-se assim superada a teoria de Marx.89 O apego dos judeus ao liberalismo é tanto mais estranho quanto é impossível aos intelectuais judeus dos paísesocidentais contentarem-se, em geral, com a modernidade. Só nesse ponto permanecem conseqüentemente atrás dodesenvolvimento europeu. O fenômeno não fica suficientemente explicado pela natural gratidão em face daemancipação liberal dos judeus. É preciso dizer, bem ao contrário, que o ideário do liberalismo é em muitos casoscongruente com o ideário judaico e que, por essa via, elementos liberalistas chegaram ao socialismo. Muitos judeus,sobretudo intelectuais, estão eles próprios no escuro quanto a serem liberais ou socialistas ou… judeus. Diga-se omesmo especialmente contra Oskar Trebitsch (“Ghetto-Ordnung in der Judenfrage”, Klärung in der Judenfrage, Wien,Reinhold, 1934).90 A crítica do Papa Leão XIII ao liberalismo encontra-se na encíclica de 20 de junho de 1888, Libertas, sobretudo V,24–29 (edição alemã das Gesellschaftlichen Rundschreiben Leos XIII. por Karl Lugmayer, Wien, TypographischeAnstalt, 1930). Goetz Briefs observou (Untersuchungen zur klassischen Nationalökonomie, Jena, Fischer, 1915) que nabase do otimismo econômico de Adam Smith está a crença numa harmonia preestabelecida.91 A derivação do espírito capitalista a partir da ética social calvinista por Max Weber foi confirmada pela esplêndidaexposição de Ernst Troeltsch em Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen (3. Aufl., Tübingen, Mohr,1923) e pelo pastor psicanalista suíço Oskar Pfister. É preciso admitir, sem dúvida, que mais outros fatores tenhamcooperado extensamente. Mas o espírito calvinista permanece em todo caso como fator principal. Só que o método nãodeve ser levado ao extremo. Werner Sombart fracassou completamente, é claro, na tentativa contrária de fazer nascer

Page 127: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

de doutrinas da Idade Média católica o espírito capitalista.92 A crítica da democracia parlamentarista baseia-se em Carl Schmitt. Originalmente, a crítica estava dirigida apenascontra o parlamentarismo alemão. A favor da validade dela, no entanto, testemunham também a ruína do sistemabipartidário na Inglaterra e os graves sintomas de decadência do parlamentarismo na França.93 A dedução do pensamento estatal prussiano a partir do luteranismo provém de Troeltsch e foi acolhida sobretudopor Hugo Ball. A essa mesma conseqüência chegaram juízes modernos da ética social luterana como Karl Holl.Tampouco a sincera tentativa de salvação feita por Werner Elert (Morphologie des Luthertums, Bd. 2, München, C. H.Beck, 1932) pôde escapar a esse resultado. Outra raiz do nacionalismo moderno é preciso ressaltar ainda: a RevoluçãoFrancesa. Não sem razão, compararam-se entre si sob mais de um aspecto a Reforma alemã e a Revolução Francesa:são acontecimentos homólogos.94 Oskar Katann, Aufbau: Bausteine zur sozialen Verständigung, Wien, Reinhold, 1933.95 A Nicolai Hartmann devemos talvez a mais bela refutação da concepção materialista da história (Das Problem desgeistigen Seins, Berlin, De Gruyter, 1932). Sua teoria dos diversos estratos do ser soa mais aristotélico-tomista do quehegeliana, à semelhança da teoria dos níveis de Theodor Haecker (Was ist der Mensch?, Leipzig, Hegner, 1933).Certamente, não se deve igualar sem mais o materialismo corriqueiro com a concepção materialista da história. Éjustamente por isso que essa conexão já irritou os nervos a alguns socialistas. Por isso quis Karl Vorländer ligar omarxismo ao neokantismo (como Max Adler, Marx als Denker, 2. Aufl., Wien, Wiener Volksbuchhandlung, 1921) eLeonard Nelson ligá-lo à filosofia de Fries. Ambos pretendiam retingi-lo de um socialismo ético, portanto. A issoresistiram, não sem razão, as instâncias partidárias normativas da socialdemocracia alemã.96 O único socialista que reconhece corretamente o significado da psicologia do trabalho e especialmente da alegria notrabalho é Hendrik de Man, a quem no entanto já mal pode-se designar como marxista.97 Cf. Johannes Messner, Die soziale Frage der Gegenwart, Innsbruck, Tyrolia, 1934.98 O pensamento social cristão tem uma grande história, o que demonstram nomes como Karl von Vogelsang, RudolfMeyer, Franz Martin Schindler, Franz Hitze, Albert de Mun, Matteo Liberatore, G. K. Chesterton e, antes de tudo omais, naturalmente os nomes dos grandes papas sociais Leão XIII e Pio XI. Cf. Die gesellschaftlichen RundschreibenLeos XIII., neu übers. von Karl Lugmayer, Wien, Typographische Anstalt, 1930; Oswald von Nell-Breuning, S.J., Diesoziale Enzyklika, 2. Aufl., Köln, Katholische Tat, 1932; August M. Knoll, Der soziale Gedanke im modernenKatholizismus, Wien, Reinhold, 1932; Johannes Messner, Die soziale Frage der Gegenwart, Innsbruck, Tyrolia, 1934.A economia nacional escolástica, se esteve morta, foi ressuscitada para nova vida por Matteo Liberatore e rendeu ricosfrutos (como em Heinrich Pesch, S.J.), da mesma maneira como o foi a cognata ciência social romântica de um AdamMüller por Othmar Spann, talvez o mais influente sociólogo alemão hoje em dia.99 O medievalismo – ressurreição e fertilização da Idade Média para a nossa época – é uma grande potência espiritual epolítica em outros países há muito tempo: na Inglaterra já desde Carlyle e Ruskin e especialmente com Newman, naFrança com Mercier e Maritain, na Itália com Gemelli. Entre nós, Troeltsch e Schmalenbach reabilitaram o espíritomedieval, Grabmann a escolástica, Worringer e Dvořák o gótico, Thode o espírito franciscano, Gierke o elementocorporativo no direito alemão.100 Interessantíssimas informações mais precisas em Fritz Rörig, Mittelalterliche Weltwirtschaft, Jena, Fischer, 1933.101 Cf. Ernst Merz, Kulturerneuerung und Ordensgemeinschaft, Zürich, Rascher, 1933. O autor erra somente aoequiparar, sem mais, a propensão comunitária intelectual e moral da academia platônica de Stefan George, o Círculo deGeorge, à ação comunitária espiritual-moral dos grandes fundadores de ordens.

Page 128: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA
Page 129: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Caminhos para Roma: aventura, queda e vitória do espíritoOtto Maria Carpeaux1ª edição – novembro de 2014 – CEDETTítulo Original: Wege nach Rom: Abenteuer, Sturz und Sieg des GeistesEditora Reinhold, Viena, Áustria, 1934.Os direitos desta edição pertencem aoCEDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e TecnológicoRua Ângelo Vicentin, 70CEP: 13084-060 – Campinas – SPTelefone: 19-3249-0580e-mail: [email protected]:Diogo ChiusoEditor-Assistente:Thomaz PerroniTradução:Bruno MoriRevisão:Roger CampanhariIlustração, capa & editoração:Laura BarretoDesenvolvimento de eBook:Loope – design e publicações digitaiswww.loope.com.brConselho Editorial:Adelice GodoyCésar Kyn d’ÁvilaDiogo ChiusoSilvio Grimaldo de CamargoVIDE Editorial – www.videeditorial.com.brReservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma,seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Carpeaux, Otto Maria (Otto Karpfen)Caminhos para Roma [recurso eletrônico] / Otto Maria Carpeaux; tradução de Bruno Yoshio Mori – Campinas, SP:Ecclesiae, 2014.Título original: Wege nach Rom: Abenteuer, Sturz und Sieg des GeisteseISBN: 978-85-67394-47-31. Igreja e Sociedade 2. Catolicismo I. Otto Maria Carpeaux II. TítuloCDD – 261232Índice para Catálogo Sistemático1. Igreja e Sociedade – 2612. Catolicismo – 232

Page 130: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

SOBRE O AUTOR

OTTO MARIA CARPEAUX nasceu no dia 9 de março de 1900, em Viena,na Áustria, com o nome de Otto Karpfen. Filho de pai judeu e mãe católica,educou-se consistentemente em Direito e Filosofia (em Viena), Ciênciasmatemáticas (em Leipzig), Sociologia (em Paris), Literatura comparada (emNápoles) e Política (em Berlim). Foi apenas quando converteu-se aocatolicismo, enquanto ainda vivia na Europa, que adicionou o nome “Maria”ao seu.

Em 1938, devido à ascensão e ofensiva nazistas, foge com a mulher para aBélgica e, um ano depois, para o Brasil. Já um profundo conhecedor delínguas – dominava o alemão, o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, olatim, o flamengo, o catalão, o galego e o servo-croata –, aprende o portuguêsem menos de um ano e, em 1944, naturaliza-se brasileiro. É nesse períodoque muda seu nome de “Karpfen” para “Carpeaux”, firma-se no jornalismobrasileiro e escreve sua maior obra, História da Literatura Ocidental (depoispublicada em 8 volumes).

Após publicar inúmeros artigos, ensaios e livros como A cinza doPurgatório (1942), Origens e fins (1943), Uma nova história da música(1958) e ser aclamado por Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos,Álvaro Lins e Carlos Drummond de Andrade, entre outros, declara encerradasua carreira literária em 1968, quando, afeiçoado às ideologias de esquerda,passa a se dedicar unicamente à luta política. Morre em 3 de fevereiro de1978, no Rio de Janeiro.

Page 131: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

SOBRE A OBRA

“Estamos em crise, quer dizer, estamos sem fé. Começou na Reforma, com aautocracia do indivíduo, o caminho funesto que, através do racionalismo,iluminismo, liberalismo, imperialismo, bolchevismo, conduz ainda ao horrordo aniquilamento. Já não acreditávamos em nada e, enfim, tampouco em nósmesmos. Mas é impossível viver sem fé. Viver, aliás, já é um ato de fé. Porisso, preferimos morrer; crescem em progressão geométrica as cifras desuicídio.

[...] O indivíduo e a comunidade reconheceram que viver e conviver sãoimpossíveis sem positivas convicções de fé, como só a religião é capaz deoferecê-las. O Estado e a política recordam-se de fundamentos religiosos; aeconomia aspira a alcançar compromissos morais de antigamente. Mesmo asciências até agora tão alheias à religião tornam a reconhecer a força vitalindestrutível da postura religiosa, e chegaremos a ouvir que os resultados dapesquisa científica moderna já não são obstáculos, e sim suportes à fé. Masainda domina o território a ciência ateísta do século XIX, infundida emmilhões de cabeças por um dilúvio de livros e brochuras populares.

[...]A propósito de iluminar as diversas correntes espirituais e religiosas,

políticas e econômicas do presente, empreende-se neste livro a tentativa demostrar que elas, querendo ou não, demonstram uma tendência imanente queaponta a uma só destinação. De preferência invocou-se o testemunho deautores não-católicos ou anticatólicos: os caminhos levam a Roma”.

Page 132: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

Table of ContentsCapaFolha de RostoSumárioDedicatóriaPrólogoApresentaçãoTreva do Tempo

1. Desarraigamento2. Partida

Os Enigmas do Universo1. O universo2. O átomo3. Origem4. A vida

A Descoberta da Alma1. Sentido e absurdo2. Abismos3. A luz nas trevas

A Grande IlusãoNota preliminar1. Dogma e tradição2. A vida de Jesus3. A grande ilusão

O Sol de Satã1. Um capítulo de História da Arte2. Nova aurora

Liberdade e Obediência1. Contradições da vida2. Três níveis

A Cidade nas Nuvens1. Tempos maus2. Os caminhos dos gentios3. Edificação

Page 133: OTTO MARIA CARPEAUX ROMA

CréditosSobre o AutorSobre a Obra