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OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES
A épica por mares nunca de antes navegados
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2019
OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES
A épica por mares nunca de antes navegados
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa. Elaborado sob orientação do
Professor Doutor Audemaro Taranto Goulart.
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Moraes, Otávio Augusto de Oliveira
M828e A épica por mares nunca de antes navegados / Otávio Augusto de Oliveira
Moraes. Belo Horizonte, 2019.
74f.
Orientador: Audemaro Taranto Goulart
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras
1. Poesia épica - História e crítica. 2. Civilização moderna. 3. Literatura
portuguesa. 4. Dialética. I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.
III. Título.
CDU: 869.0-1.09
Ficha catalográfica elaborada por Roziane do Amparo Araújo Michielini - CRB 6/2563
OTÁVIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MORAES
A épica por mares nunca de antes navegados
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa. Elaborado sob orientação do
Professor Doutor Audemaro Taranto Goulart.
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas (Orientador)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques- UFMG – Titular
______________________________________________________________________
Prof.ª Dra. Luciana Pereira Queiroz Pimenta Ferreira- PUC Minas – Titular
Belo Horizonte, 19 de fevereiro de 2019
AGRADECIMENTOS
Ao povo brasileiro que por meio do CNPQ tornou possível que eu prosseguisse em
meus estudos universitários.
À Nayara, minha tágide.
Aos meus familiares, em espacial à minha mãe, Márcia, e meus irmãos, Ana e Lorenzo,
e também aos meus tios, Memeia e Antônio Ângelo. Por sempre me apoiarem em
minhas aventuras e desventuras de jovem pesquisador.
Ao professor Audemaro por me apresentar a potência presente no estudo e análise dos
clássicos da literatura.
Á professora Luciana e os colegas do grupo “Direito e Literatura: um olhar para as
questões humanas e sociais a partir da Literatura”, verdadeiros responsáveis pelo meu
giro linguístico.
Á professora Ivete e os colegas do grupo “Da Rua: sujeitos e objetos”, em especial aos
meus amigos Vinícius e Vivi, companheiros no desvelamento das intricadas relações
entre literatura e sociedade.
Aos meus amigos, em especial para: Érico, Arthur, Cindy, Paulo, Matheus, Rafael,
João, Paola, Maurício, Lomax, Vanessa e Vitor, por tudo e por tanto.
O rei de Ítaca
A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão
Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado
Sophia de Mello Breyner
RESUMO
A presente dissertação objetiva pôr em questão a problemática da reprodução do gênero
épico na temporalidade moderna. Os Lusíadas de Luís de Camões é tomado como texto
literário a partir do qual foi investigada a manutenção e a subversão de elementos
marcantes da grande épica. O estudo tem como principal norte teórico os
questionamentos presentes na obra Teoria do Romance, escrito de juventude de Lukács,
e nos Cursos de Estética de Hegel. A pesquisa ambiciona tomar da estética hegeliana a
questão “como pode a vida tornar-se essencial?” e leva essa pergunta para a forma
artística d’ Os Lusíadas. A essencialidade que frisaremos no estudo afina-se com a
problematização da figura heroica, elemento pelo qual buscaremos correlacionar a
relação entre forma e experiência histórica. Nossa conclusão concebe no caráter
heterodoxo da forma artística em questão os traços que a configuram como obra que
performa a própria transição para a Modernidade. Portanto, finda aproximando-se mais
da forma romanesca do que da grande épica helênica.
Palavras-chave: Epopeia, Modernidade, Literatura Portuguesa, Crítica dialética.
ABSTRACT
The present dissertation aims to question the problematic of the reproduction of the epic
genre in modern temporality. The Lusíadas de Luís de Camões is taken as literary text
from which the maintenance and subversion of outstanding elements of the great epic
was investigated. The text has as main theoretical north the questions present in the
book Theory of Romance, writing of youth of Lukács, and in the Courses of Aesthetics
of Hegel. The research has as a reading proposal to take from the Hegelian aesthetics
the question "how can life become essential?" And take this question to the artistic form
of Os Lusíadas. The essentiality that we will emphasize in the study is refined by the
problematization of the heroic figure, element by which we will try to correlate the
relation between form and historical experience. Our conclusion conceives the
heterodox character of the artistic form in question element that configures it as a work
that performs the very transition to modernity. Therefore, it ends up approaching more
of the romanesque form than of the great Hellenic epic.
Key words: Epic, Modernity, Portuguese Literature, Dialectical critique.
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................................10
1. Os Mares
I. A forma, o conteúdo e o tempo ...................................................................................14
II. A épica........................................................................................................................26
III. A arte e os modernos.................................................................................................32
2 – A Ocidental praia Lusitana
I. As Tágides .............................................................................................................39
II. O canto do velho ....................................................................................................47
III. Trovadores em caravelas.........................................................................................54
Capítulo 3 – A voz enrouquecida e a lira destemperada
I. Outro valor mais alto se levanta?................................................................................59
II. Camões e o espírito do tempo.....................................................................................66
Referências Bibliográficas..........................................................................................73
10
Introdução
A epopeia camoniana é de fato uma épica? O caráter paradoxal da pergunta tem
como cerne refletir sobre o que emerge da miscelânea da forma clássica com uma
temática intrinsecamente vinculada ao próprio nascimento do que compreendemos
como Modernidade.
Para colocar em questão o gênero literário da obra Os Lusíadas de Luís de
Camões centraremos a análise do texto na problemática do herói: o que é o herói
camoniano? Em que mundo ficcional se passam suas ações? Em que ele se diferencia e
se assemelha aos personagens da Ilíada e da Odisseia? O elemento comparativo
privilegia o ciclo épico homérico em razão de ser a base comparativa que Hegel e
Lukács, nossos marcos teóricos, utilizam para compreender a singularidade da arte
moderna.
Tomamos os dois pensadores como suportes teóricos para a presente pesquisa
em razão de suas reflexões calcarem-se na compreensão da arte moderna a partir do
diálogo e da comparação com as expressões pretéritas. Sob a égide da crítica dialética
Hegel e Lukács, este último em sua fase hegeliana, tomam o incessante movimento das
formas artísticas em seu contexto histórico-filosófico como meio de compreender as
marcas do espírito humano em cada tempo.
O interesse em dialogar com as obras do pensador teutônico com seu, à época,
seguidor advém da possibilidade de ler nas entrelinhas das respectivas reflexões
posicionamentos dos intelectuais frente a Modernidade. Se Hegel é o pensador da
Revolução Francesa e das múltiplas promessas do progresso, o jovem húngaro se
deparava com a pulverização da retorica burguesa tendo como pano de fundo os
canhões da primeira guerra mundial.
A ambivalência contextual sob a qual a filosofia do espírito é laborada em sua
origem hegeliana e na reflexão heterodoxa de Lukács parece-nos um bom caminho para
entender os próprios paradoxos da forma camoniana. O autor, que sob nossa hipótese
encarna na língua portuguesa o espírito do tempo das bases coloniais da Modernidade,
11
já apresenta em sua formulação ficcional o binômio indissociável entre barbárie e
progresso.
Camões, como poeta que mescla a forma antiga a temáticas novas, acaba como
elo de uma temporalidade na qual os castelos do feudalismo desmoronavam e as
feitorias coloniais do mundo moderno emergiam. O entre-lugar da poética em questão
traz para a crítica hegeliana, em suas reflexões sobre a relação triangular entre forma,
conteúdo e história, a possibilidade de servir como instrumental para compreendermos a
questão épica em Camões.
No plano da crítica literária, dialogaremos com alguns autores especializados
nos estudos camonianos, tendo como referencial primeiro os escritos de Hernani
Cidade. O professor português, além de ter extensa bibliografia sobre o tema, tem como
recorrente em seus estudos a problematização do gênero da obra em análise. É
importante também ressaltar que o autor em questão tem grande afinidade com a
estética hegeliana no que se refere ao embasamento de suas críticas literárias.
O texto desenvolve-se da seguinte maneira: o primeiro capítulo, Os mares, versa
sobre o conceito de épica, conectando-o com a problemática do desenvolvimento dos
gêneros literários em sua relação histórica; o segundo capítulo, A ocidental praia
lusitana, busca apresentar a relação entre texto e contexto para melhor compreender as
particularidades da forma camoniana; por fim, no último capítulo é desenvolvida a
resposta à nossa questão primeira - é possível produzir um texto épico na Modernidade?
O tempo de Camões foi a época em que o medievo se tornava moribundo e em
seu seio começava a gestação do mundo moderno. Não é por acaso que a crítica
especializada tão repetidamente adjetiva sua épica pelas expressões “heterodoxa”
(CIDADE, 1950), “moderníssima” (MOISES, 1968) e “ambígua” (MACEDO, 2018).
Em um momento no qual o renascimento trazia novas formas para o repertório
artístico português, o horizonte de criação poética alargava-se igualmente em conteúdo.
A valoração do racional e a consequente possibilidade de tomar como cerne do literário
a representação da realidade refundou a própria acepção de arte.
No que tange ao tema, a poética camoniana bebe com avidez das possibilidades
de seu tempo, muito bem descritas por Hernani Cidade (1979, p. 14) nos seguintes
termos: “(...) a realidade objetiva mantinha a frescura e o interesse de indefinida
paisagem mal conhecida ou de toda ignorada, que a luz da manhã vai arrancando à
treva.”. O autor narra as grandes descobertas marítimas, no caso o alcance da Índia por
12
via naval, e, por consequência, impregna sua narrativa de “(...) mares nunca de antes
navegados” (CAMÕES, I, 1).
A predominância do evento frente ao mito (MACEDO, 2018) é um dos grandes
abismos que afastam a grande épica dos escritos de Camões. O autor, na farta
metapoética presente em sua epopeia, destaca a superioridade do caráter factual de seus
escritos quando postos em paralelo com a poesia pretérita: “A verdade que eu conto,
nua e pura,\Vence toda grandíloca escritura!” (Camões, V, 88). Cabe a nós buscar na
forma artística em questão as consequências que o distanciamento do discurso mítico
implica a identificação do gênero literário da obra.
Nesse jogo de diferenças entre a epopeia clássica e a épica camoniana, o
distanciamento da base mítica dá à obra a forma conflitiva de uma narrativa mergulhada
nas contradições da emergência da Modernidade. O épico acaba fraturando-se em seu
elemento central: a experiência heroica.
Enquanto no ciclo homérico tem-se a representação de uma relação harmônica
entre sujeitos e objetos (HEGEL, 2001), ambos intimamente interligados pelo gênio
humano, nos escritos camonianos o desencontro entre personagens e mundo é o próprio
cerne da narrativa: o universo ficcional deixa de ser um espaço da familiaridade para
transmutar-se em desconhecido.
Os Lusíadas narram a chegada de Vasco da Gama à Índia, evento que no plano
da materialidade trouxe aos cofres de seus investidores um lucro no mínimo
assombroso. Leandro Konder (1981, p. 145) apresenta quantitativamente os ganhos em
questão: “A primeira viagem de Vasco da Gama à Índia deu um lucro de 6.000%”. A
épica em questão acaba encarnando a narração estetizada de um processo no qual, pela
busca do lucro, o indivíduo é colocado em uma posição de desencontro frente ao
universo que o rodeia.
Luís de Camões representa em sua epopeia a própria transição para a
Modernidade, apresentando em seus personagens a maravilha das superações dos
limites aos quais a natureza submete a humanidade. O autor, ao mesmo tempo, mostra a
tragédia do domínio do homem sobre o homem em um grau que a Modernidade levou
ao ápice.
Sob o signo de uma época de contraditória miscelânea entre progresso e
barbárie, emerge uma obra de arte que conflitivamente congrega a forma clássica dos
versos heroicos de base virgiliana a uma temática que reflete a fundação da experiência
13
colonial. Beira o impossível dissociar a poesia dessas caravelas camonianas das
torrentes do contemporâneo. Ler camões constitui um acesso, a partir do plano do
sensível, à condição humana em seu potencial mais exuberante e, igualmente, no
exercício do seu pior.
14
1. Os mares
I- A forma, o conteúdo e o tempo.
A Modernidade ofertou à experiência humana a possibilidade de se
autoconceber a partir de sua experiência temporal. Em outras palavras, o homem
descobriu-se parte de um mundo em constante alteração. As mudanças alcançam os
ínfimos elementos que compõem o universo social, sendo o plano artístico um dos mais
sensíveis à transformação. Sob a égide dessa condição recém-descoberta, a estética e a
história se amalgamaram no exercício analítico.
O desvelar desse novo mundo, parturejado do fim do Ancien Regime, teve como
efeito o desmoronamento de uma concepção estática de condição humana. A ideia de
um universo estável e permanentemente circular perdia lugar para um exórdio de
possibilidades, aberto a tiros de canhão e golpes de baioneta. O objeto de estudo que
apresentamos é fruto direto dessa nova figuração do humano, ou melhor, da própria
concepção de experiência humana e, por consequência, de arte.
Para iniciarmos nossa empreitada é imperioso que a relação entre obra de arte e
história seja desenvolvida. Os referenciais teóricos em questão, Georg Hegel e György
Lukács, partem da noção de que “(...) toda obra de arte pertence à sua época, ao seu
povo, ao seu ambiente, e depende de concepções e fins particulares, históricos e de
outra ordem.” (HEGEL, 2015, p.38). Através dessa premissa, os autores desenvolvem
uma espécie de viagem ao contrário: retornam as obras de arte para desvelar o espírito
que animou sua criação. Sob a égide da forma, expõem como era tecida a relação entre
sujeito e mundo em determinada temporalidade.
O liame entre obra de arte e experiência histórica não se constitui de maneira
mecânica, mas sim através de uma dinâmica inter-relação de fatores, públicos, privados,
religiosos, etc. O exercício de vincular o texto literário à época em que foi produzida
demanda, consequentemente, um grande rigor metodológico.
15
A dialética hegeliana, base conceitual para a criação da Teoria do Romance,
emerge como episteme interessada em decifrar a vida em sua dinâmica intrínseca. O
filósofo objetivou construir um sistema que tivesse como pressuposto o movimento em
oposição à inércia. Não é à toa que é visto como um dos pais do que entendemos como
Modernidade.
O também filósofo e grande leitor de Hegel, Roger Garaudy (1983, p. 28),
concebe a filosofia hegeliana como exato oposto a uma planificação da progressão
histórica. A base metodológica que possibilitou a Hegel a construção da relação
estético-histórica em seus estudos sobre arte é sintetizada nos seguintes termos:
Dizer que o método do conhecimento é dialético é dizer que não poderia existir
conhecimento imediato. É negar não somente a possibilidade de possuir a verdade
por uma intuição sensível direta, mas também de alcançar a verdade por um conceito
isolado. O próprio do método dialético é exprimir a impossibilidade tanto da
intuição sensível direta quando do isolamento absoluto de um conceito.
A perspectiva em questão expõe que, sob um viés dialético, o caminhar da
humanidade se constitui de movimentos nos quais o aberto prepondera frente ao
predeterminado. Temos como exemplo dessa perspectiva a noção de tradição no
pensamento de Hegel (2014): um avançar histórico no qual a obra de arte traduz-se
como um mosaico de formas pretéritas rearranjadas em nova experimentação1.
São exemplificativas dessa relação entre passado e presente as figurações do
medievo na poética camoniana. O episódio de Inês de Castro apresenta em sua primeira
estrofe uma formulação estética de imensa semelhança com a vertente poética
denominada “Cantiga de Amigo”. A expressão lírica em questão é apresentada por
Moisés (1968, p.25) nos seguintes termos:
No geral, quem fala é a própria mulher, dirigindo-se em confissão à mãe, às
amigas, aos pássaros, aos arvoredos, às fontes, aos riachos. O conteúdo de
sua confissão é sempre formado duma paixão incorrespondida ou
incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e alma.
1 Para saber mais sobre a relação entre tradição e obra de arte recomendamos a leitura do capítulo
referente a arte simbólica (Hegel, 2014, p. 105). O autor desenvolve a relação entre figurar artísticas
típicas da arte primitiva e sua presença nos trabalhos modernos.
16
Legítimo produto da poética trovadoresca, a Cantiga de Amigo marca a ficção
de base lírica do medievo lusitano. Temos um admirável exemplo dessa figuração de
poesia na seguinte obra de Nuno Fernandes Torneol2 (APUD, MOÍSES, 1968, p. 22):
Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias;
Tõdalas aves do mundo d’amor dizian:
lêda m’and’eu!
Levad’, amigo que dormide’ las frias manhanas;
tôdalas aves do mundo d’amor cantavan:
lêda, m’anda’eu!
Tôdalas aves do mundo d’amor dizian;
Do meu amor e do voss’em ment’avian:
lêda, m’anda’eu!
Do meu amor e do voss’em ment’avian;
vós lhis tolhestes os ramos em que pousavam:
lêda m’anda’eu!
Vós lhis tolhestes os ramos em que siian
E lhis secastes as font4s em que bevian:
lêda, m’anda’eu!
Vós lhs tolhestes os ramos em que pousavam
E lhis secastes as fontes u se banhavan:
lêda, m’anda’eu!
Os versos em questão apresentam uma interessante relação entre forma e
conteúdo. Temos, no plano temático, a ficcionalização de um eu-lírico feminino que
direciona seu discurso tanto para o amado quanto para o mundo natural, no caso
representado pelos pássaros. O uso da repetição, como marca estilística, soma-se à
recorrência da sílaba “am” e “an” nas palavras que compõem o fim dos versos. O poema
é um marco do cancioneiro medieval com seu forte caráter oral.
2 O poeta em questão foi trovador na primeira metade do século XIII. Estão disponíveis, na biblioteca do
Vaticano, cerca de treze cantigas de amor de sua autoria, oito de amigo e uma de escarnio. (MOÍSES
1968, p. 21)
17
Outro ponto interessante no poema em questão é a aptidão do poeta em sustentar
a ambiguidade do início ao fim da obra. Sobrepõe-se continuamente a ideia de
rompimento à de reconciliação, sendo a natureza o elemento mediador desses opostos.
No episódio de Inês de Castro, podemos vislumbrar grandes semelhanças com a
Cantiga de Amigo. A natureza aparece igualmente como elemento mediador da
expressão amorosa. Também encontramos no texto uma construção formal que frisa
uma relação conflituosa entre a expressão amorosa e o universo ficcionalizado:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus formosos olhos nunca enxutos,
Aos montes ensinando e ás ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas (CAMÕES, 2015, p. 110)
O trecho analisado ajuda-nos a compreender o porquê de o autor ser
fundamentalmente um “(...) poeta de um mundo em transição” (MACEDO, 2018, p. 2).
O novo camoniano origina-se de um trato inventivo frente à linguagem no qual
rearticula as formas pretéritas para nova composição estética. A chave para a poética
camoniana está no encontro entre o clássico, o medievo e as caravelas.
A progressão histórica da obra de arte é concebida por Hegel e Lukács a partir
da relação entre forma e conteúdo presente em cada temporalidade. Cabe, portanto, que
primeiro elucidemos como a estética hegeliana concebe os respectivos conceitos. Após
essa exposição, poderemos localizar a temporalidade histórico-filosófica d’ Os Lusíadas
e então nos debruçar sobre o problema épico.
A grande estética hegeliana toma como objeto de reflexão o belo artístico.
Podemos sintetizar o conceito de beleza a partir do seguinte trecho: “O belo é a ideia
enquanto unidade imediata do conceito e de sua realidade, isto é, ele é a ideia na medida
18
em que esta sua unidade está presente de modo imediato no aparecer sensível e real”
(HEGEL, 2015, p. 131).
A forma emerge como elemento mediador do conceito, ou seja, plano de
concretização artística do ideal. É a partir da transmutação do universal (ideia) em
particular (forma) que a arte alcança sua inesgotável substância humana. Em outras
palavras, a ideia dialeticamente se aliena em contornos para, a partir das próprias
limitações da forma, retomar a universalidade primeva, só que em uma potência
infinitamente maior que a do primeiro momento. Nas palavras do próprio Hegel (2015,
p. 124).
O conceito é (...) o universal que, por um lado, se nega a si por meio de si
mesmo para a determinidade e particularização, mas que, por outro lado,
igualmente supera esta particularidade enquanto negação do universal. Pois o
universal não chega no particular – que constitui apenas os lados particulares
do próprio universal a nenhum absolutamente outro e, por isso, restabelece
no particular sua unidade consigo enquanto universal.
O conteúdo da obra de arte, tal qual a forma, não pode ser concebido
autonomamente. Ele se configura como parte do processo sob o qual o espírito
transmuta o conceito em uma expressão que se universaliza a partir de sua
concretização artística. A narrativa finda atrelada às fontes de seu próprio tempo, ou
seja, tal qual é impensável forma dissociada de conteúdo, não é cabível divorciar a
expressão artística de seu próprio tempo.
É dessa relação triangular que emerge o problema da presente dissertação: a
rearticulação entre forma, conteúdo e tempo. O épico como gênero helênico
(BRANDÃO, 1992) eleva-se historicamente a referencial de narrativa de figuração
coletiva e heroica, ou seja, em um artefato cultural ambicionado por qualquer povo.
Para uma coletividade, contar com o discurso épico implica a possibilidade de se
conceberem na idealidade da experiência heroica. A questão torna-se problemática pelo
fato de que a substância ficcional que deu vazão ao universo homérico inexiste nos
oceanos camonianos: é tempo para outro arranjo entre forma e conteúdo.
O jogo entre esses três conceitos encena-se na própria estrutura do texto literário
transmutando os elementos externos em componentes estruturais da obra artística. Uma
passagem interessantíssima de Os Lusíadas ilustra o atual momento de nossa reflexão:
19
Antonio Candido (1985) vislumbra um certo tom paródico da narrativa camoniana,
tomando como objeto a discrepância entre a encenação guerreira nas novelas de
cavalaria em comparação com a épica lusa. O exemplo é retirado do seguinte
fragmento.
Gastar palavras em contar extremos
De golpes feros, cruas estocadas,
E desses gastadores, que sabemos,
Maus do tempo, com fábulas sonhadas.
Basta, por fim do caso, que entendemos
Que, com finezas altas e afamadas,
Cos nossos fica a palma da vitória
E as damas vencedoras e com glória (CAMÕES, VI, 66)
A estrofe, acima apresentada, compõe um episódio denominado “Os doze da
Inglaterra”, talvez um dos momentos mais alegóricos do universo cavalheiresco das
novelas medievais. O trecho em questão emerge de um momento de calmaria oceânica,
no qual a tranquilidade marítima torna possível que os tripulantes troquem estórias. O
narrador é o tripulante Veloso.
Tal qual Antonio Candido, vislumbramos certa jocosidade no trato frente à
tradição cavalheiresca. A relação temporal adentra a forma artística como elemento
paródico frente ao passado. O intento camoniano de dizer “(...) a verdade nua e pura”
(CAMÕES, V, 89) é dirigido contra a tradição, então recente, de produções narrativas.
A criação artística emerge como um processo no qual se interpenetram
elementos históricos, produzindo uma relação que não se resume a um símile da
realidade, mas que não implica em sua negação. Nas palavras de Antonio Candido
(1985, p. 22), é preciso “(...) ter consciência da relação arbitrária e deformante que o
trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e
transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiesi”.
Pelas reflexões feitas até este momento, podemos antever que a obra de arte é
fruto de um processo complexo. Ela sorve suas possibilidades expressivas de uma
20
intrincada relação entre experiência histórico-filosófica e práxis criativa. Cabe agora
descrevermos brevemente a relação entre experiência histórica e forma artística
desenvolvida por Hegel.
O autor figura três grandes momentos do desenvolvimento do espírito no que
tange ao exercício artístico: a arte simbólica, representada fundamentalmente pelas
produções do Antigo Oriente; a arte clássica, calcada nas experiências artísticas do
período helênico; e, por fim, a arte romântica, ou seja, a arte moderna. O autor descreve
a dialética que permeia as respectivas temporalidades nos seguintes termos:
(...) a arte simbólica procura aquela unidade consumada entre significado
interior e a forma exterior, que a arte clássica encontra na exposição da
individualidade substancial para a intuição sensível e que a arte romântica
ultrapassa em sua espiritualidade proeminente. (HEGEL, 2014, p. 22)
A relação entre arte e experiência histórica tem como base o processo contínuo
de rearticulação entre forma e conteúdo. Não temos como objetivo descrever
minuciosamente cada temporalidade, porém, é interessante elaborarmos breve reflexão
sobre algumas características de cada época. Nosso foco é demonstrar que o problema
da épica na Modernidade tem como central o vínculo entre essa época e o universo
clássico.
A arte simbólica é conceituada pelo sistema hegeliano como expressão na qual o
espírito busca imprimir suas primeiras marcas no universo natural que o rodeia. O autor
toma a arte produzida nos antigos impérios orientais: Índia, Egito e Pérsia, como
paradigma para sua definição.
De acordo com Hegel (2014, p. 40), as expressões vinculadas a esse tempo e
espaço carregam em comum configurarem-se pela “(...) disputa constante entre a
adequação do significado e da forma”. A relação com a natureza é apresentada sob uma
ótica de um não apartamento abstrato entre natureza e cultura.
Obras como o Ramayana e o Mahbarata são exemplificativas dessa relação
entre forma e conteúdo. A primeira obra é descrita por Cidade (1979, p. 83) como uma
estrutura na qual “Importa-lhe a unidade, não as formas, que em seus rígidos contornos
e fixidez a poderiam negar.”. Sob uma forte influência da estética hegeliana, o crítico
21
luso reafirma a leitura pela qual a arte oriental, dessa época, emerge como primeiro
movimento do espírito em direção à arte. São abundantes os exemplos de zoomorfismo,
e os elementos naturais figuram um papel predominante.
A estética simbólica marca os primeiros passos da humanidade em direção à
forma artística. Hegel (2014, p. 55) não concebe essa expressão como propriamente
artística, mas sim poética. A colocação do filosófico, como típico do pensar dialético,
mescla os méritos e a fragilidade da antiga arte oriental para alcançar o seu conceito. A
poeticidade em questão pode ser compreendida como característica de uma produção
artística em que:
(...) os objetos naturais singulares, assim como os modos singulares de pensar
dos homens, os estado, os atos e as atividades, são tomados em sua ausência
imediata de significado e, desse modo, casual e prosaica, mas intuídos
segundo sua natureza essencial à luz do absoluto enquanto a luz; e,
inversamente, a essencialidade universal da efetividade concreta natural e
humana também não é apreendida em sua universalidade destituída de
existência e forma, mas esta universalidade e aquele singular são
representados e expressos como o uno imediato.
A expressão simbólica, em sua busca pela forma, finda alcançando uma
figuração íntima com a imediatidade do mundo natural. É um tempo no qual os objetos
ainda estão a ser nomeados e o universo é uma imensidão a ser explorada pelo espírito
humano.
Como havíamos exposto anteriormente, as experiências artísticas passadas
perdem no movimento temporal sua essencialidade, tornando-se na fase posterior
elemento de composição da nova fase artística. Em outras palavras, se o exercício
poético do simbolismo perde seu liame histórico-filosófico, a arte posterior não implica
uma total negação de seu exercício figurativo, mas sim uma incorporação de seus
elementos a novo paradigma.
É ilustrativo dessa dialética histórico-estética a relação entre a arte clássica e a
simbólica. A última tem como traços marcantes a resolução da busca formal da primeira
e, a partir disso, a produção de uma experiência verdadeiramente artística, ou seja, na
qual a relação entre forma e conteúdo é equilibrada.
O grande mérito da arte clássica está exatamente na harmonia de seu universo
ficcional. Os gregos, de acordo com a crítica dialética, foram capazes de produzir uma
22
arte na qual não há desencontro entre sujeito e mundo. A épica é um dos maiores
exemplos dessa relação, na medida em que mesmo o antagonismo entre gregos e
troianos não implica uma cisão do universo figurado: os oponentes são igualmente
heroicos e compõem uma comunidade ética una.
Os exemplos da grandiosidade da arte clássica são inúmeros, porém, cabe nesse
trabalho frisarmos a épica, dada a problemática formal que ela finda legando à
Modernidade. A narrativa homérica encarna a ideia de uma unidade ficcional
harmônica, já que personagens, cenário e trama se irradiam na construção de uma
relação ímpar entre forma e conteúdo. A concepção de belo artístico é calcada nesse
paradigma.
A Odisseia traz grandes exemplos da relação acima exposta. O retorno de
Ulisses a Ítaca é marcado por um permanente processo de encontro entre o protagonista
e o mundo que o rodeia. Não há espaço para a solidão moderna: mesmo nos momentos
mais aflitivos o herói helênico está acompanhado dos deuses. É marcante o encontro do
guerreiro com sua própria epopeia quando escuta o rapsodo Demódoco no palácio de
Alcino, rei dos feácios:
O cantor, por um deus inspirado, dá logo começo, tendo tomado do ponto em
que, entrados nas naus bem cobertas,
velas desfraldam, depois de nas tendas o fogo lançarem, no tempo em que
muitos se achavam na praça de troia
junto do mais famoso Ulisses, e escondidos no bojo
desse cavalo que os próprios á acrópole tiram. (HOMERO, 2011, p. 169)
Talvez a metapoética homérica seja um dos traços mais marcantes da relação
harmônica entre forma e conteúdo. Tanto no que se refere aos mitos que dão substância
à narrativa de Homero, quanto nas inter-relações construídas no seio do próprio texto,
podemos perceber a costura de uma narrativa que ambiciona construir uma totalidade
ficcional.
Na escrita homérica não há sujeito ou objeto que atravesse a ficção sem que seu
vínculo com o universo seja minuciosamente descrito. Desde a armadura de Aquiles até
o leito de Odisseu, a narrativa desdobra-se em uma relação de complementaridade entre
o personagem, o enredo e o espaço. Os três elementos são articulados em uma clareza
23
plena. Em outras palavras, não há espaço para uma consciência interior, ou mesmo para
uma quebra frente à calmaria do destino.
A harmonia singular da poética de Homero (2011, p. 74) é muito bem
exemplificada pelo diálogo entre Telêmaco e Nestor. O primeiro estava visitando os
companheiros de seu pai na busca de informações sobre seu paradeiro. O jovem narra o
sofrimento que sente frente à ausência paterna e o receio de que ele estivesse morto ou
condenado a uma vida de andarilho. Com sua serenidade arquetípica, o ancião Nestor
traduz harmonicamente a pacífica relação homérica frente ao destino: “(...) para todos a
Morte é uma só, nem conseguem os deuses, indo ao mais caro dos homens, sequer
defendê-lo, aí ser ele pelo destino exicial alcançado, da Moira funesta.”.
O que produz essa relação entre forma e conteúdo é uma experiência histórico-
filosófica na qual não há separação entre alma e mundo. Como afirma Lukács (2000, p.
29), “(...) a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus contornos
não difere, em essência, dos contornos das coisas”.
A relação harmoniosa entre as fronteiras provém do próprio processo de
superação da arte simbólica. A busca pela forma é conquistada a partir da superação da
imediatidade do medo da natureza e com isso a transmutação do mistério em
consciência humana.
A crítica dialética vislumbra a encenação mítica da derrubada dos velhos deuses3
como plano formal de expressão da decadência do simbólico (HEGEL, 2014),
movimento que prossegue no plano plástico até alcançar a ficção homérica e a produção
trágica. O mistério é transmutado em uma poiesis já de concretude artística, ou seja, na
qual a relação entre forma e conteúdo é de fato alcançada.
É nesse ponto que emergem os elementos que deram cabo à essência clássica. O
processo estável de mediação entre forma e conteúdo perdeu sua sustentação quando
seu processo figurativo se tornou incapaz de representar a vida. O espírito não se
3 A referência em questão é ao mito da ascensão de Zeus. Hegel (2014) elabora profunda reflexão sobre
essa narrativa. O autor a compreende como próprio movimento de superação da experiência simbólica.
As questões levantadas são demasiadamente abrangentes, de maneira que não cabe nesse trabalho
minuciarmos esse ponto da dialética idealista. Para quem se interessar pelo tema sugerimos a leitura do
Capítulo II do segundo volume da Estética.
24
reconhece mais no mundo posto e, desse melancólico divórcio, é parturejada a arte
moderna.
O mundo helênico tornou-se pequeno para o espírito, o que não implicou em
uma retomada do exercício de nomear inaugurado pelo simbolismo. O que o espírito do
tempo oferece é o próprio desafio do exercício expressivo. Resta à dinâmica forma-
conteúdo uma belicosidade criativa, uma desarmonia que deixa a obra de arte aberta a
um porvir sempre heterodoxo, uma constante de subversão do já posto, algo que emerge
em uma escala até então jamais vista.
Os motivos do definhamento do clássico como paradigma vivo de arte são
multifacetários. A ascensão do cristianismo e o fim das pequenas comunidades que
caracterizavam a produção artística homérica são, nesse sentido, elementos-chave
(LUKÁCS, 2000).
Com o cristianismo, temos a chegada da interioridade como elemento a compor
inescapavelmente a experiência humana. Os efeitos estéticos dessa nova fé
transmutariam a arte ocidental irremediavelmente.
Podemos encontrar no brilhante ensaio A cicatriz de Ulisses, de Erich Auerbach
(1971), uma análise que demonstra a radical divergência entre a figuração judaica e a
helênica. A partir de um exercício comparativo, o autor demonstra que, no Velho
Testamento, a composição privilegia a representação da interioridade, transmutando boa
parte dos conflitos para a própria consciência dos personagens.
A passagem apresentada por Auerbach é a que narra a requisição divina, feita a
Abraão, para que imolasse seu filho, Isaac. A intensidade da cena não provém de uma
descrição minuciosa, mas sim da própria economia de recursos narrativos. O texto
bíblico encena o brutal silêncio do pai que é requisitado a ofertar seu próprio filho.
É uma estrutura textual radicalmente diversa da homérica, na medida em que
não há uma preocupação em esmiuçar os vínculos entre sujeito e objeto. Na verdade, o
próprio divino é desprovido de contornos certos. A ação bíblica é fundamentalmente
espiritual, ou seja, proveniente da própria consciência interior. Segue o trecho em
questão: “(...) Deus pôs Abraão a prova. Chamando-o, disse: ‘Abraão!’ E ele respondeu
‘Aqui estou’. E Deus disse: Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto amas, dirige-te à
25
terra de Moría e oferece-o ali em holocausto sobre o monte que eu te indicar” (BIBLIA,
Gênesis, 22).
A cena carrega uma grande diferença quando posta frente à apresentação do
divino por parte de Homero. Na Odisseia, a chegada de Hermes na ilha de Calypso é
descrita nos mais mínimos detalhes, figuração que demonstra um cuidado formal no que
se refere à figuração da perfeição antropomórfica dos deuses:
(...) Voa o forte e brilhante correio.
Paira por cima da Piéria, e desde o éter no oceano se atira,
a deslizar pelo dorso das ondas, tal como gaivota
quando nos seios terríveis do mar infecundo mergulha
para pescar e umedece nas ondas as asas robustas.
Hermes, por essa maneira, desliza por cima das ondas. (HOMERO, 2011, p.
115).
O deus judaico é uma voz que acessa Abraão dissociada de qualquer concretude
física. Não é apresentado através de recursos descritivos: ele é a totalidade de uma voz
dissociada de tempo e espaço.
O contato que o Ocidente teve com o universo poético semítico, através do
Cristianismo, trouxe ao repertório histórico-filosófico do mundo clássico questões que
retiravam a imanência de suas formas artísticas. Mais do que a figuração do divino, o
que foi posto em questão era a postura do próprio homem frente ao transcendente.
Se a arte clássica é o encontro das formas buscadas pelo simbolismo, o caminho
para o moderno é a insatisfação frente à relação entre sujeito e mundo. Dessa cisão
nasce uma progressiva noção de individualidade, algo que explodiria séculos depois
com a concretização do individualismo moderno e seu símile econômico: o capitalismo.
A segunda questão que corrobora com o desmonte da vivacidade clássica
provém do fim da pequena comunidade helênica, lar material do espírito homérico. O
exponencial aumento das trocas econômicas no Mediterrâneo propiciou a emergência de
impérios mercantis, tanto no próprio solo grego quanto nos arredores: fenícios, egípcios
romanos e etc., estruturas que, em sua complexidade, agregam relações não-imediatas
26
entre seus habitantes. Em outras palavras, o liame espiritual que unia a aristocracia
guerreira representada por Homero perde seu solo:
Assim como era essencial à forma artística espiritual grega também aparecer
como exterior e efetiva, também a determinação espiritual absoluta do
homem se elaborou em uma efetividade real fenomênica, com cuja
substancia e universalidade o indivíduo fez a exigência de estar em
consonância. Esta finalidade suprema era na Grécia a vida do Estado, a
cidadania e a sua eticidade e patriotismo vivo. Além deste interesse não
havia nenhum mais elevado, mais verdadeiro. Mas a vida do estado, enquanto
fenômeno mundano e exterior, assim como os estados da efetividade
mundana em geral, tornam-se caducos. Não é difícil de mostrar que um
Estado em tal espécie de liberdade, tão imediatamente idêntico com todos os
cidadãos, que enquanto tais já têm em suas mãos a atividade suprema, só
pode ser pequeno e fraco e em parte tem de destruir-se por meio de si mesmo,
em parte é arruinado exteriormente no decurso da história mundial. (HEGEL,
2014, p. 41).
Como posto por Hegel, o universo heroico carrega em sua estrutura os próprios
elementos que corroborariam com sua ruína. É interessante para nosso estudo pensar os
problemas que o fim do mundo clássico traz para a teorização dos gêneros literários.
Não podemos nos esquecer de que a poética aristotélica é construída a partir de uma
vinculação entre a posição social do representado artisticamente e o gênero que
configura a obra. No caso da epopeia, o que a configura é sua vinculação à coletividade
heroica, ou seja, à aristocracia guerreira.
O caminho tomado nesse primeiro ponto de exposição foi o de apresentarmos,
no plano teórico, as questões sobre as quais nossa análise da obra Os Lusíadas se baseia.
Abordaremos, no próximo tópico, os problemas específicos do gênero épico e a maneira
pela qual Hegel e Lukács tentaram abordar conceitualmente o tema. Já no último tópico
será retomada a relação entre tempo e forma: sintetizaremos as questões referentes ao
gênero literário frente às particularidades do mundo moderno, frisando o lugar do
heroico nessa nova configuração.
II- A épica
O presente tópico tem como proposta um breve resgate do processo de
emergência do gênero como operador conceitual do exercício crítico. Cabe, portanto,
discorrer sobre o grande marco da teoria do gênero, Aristóteles e sua poética, e, a partir
disso, apresentar a perspectiva hegeliana frente ao assunto. Posteriormente a essa breve
27
apresentação, os problemas peculiares à épica serão detalhados. Frisaremos, neste
momento, o texto clássico, já que as questões referentes ao moderno serão objeto do
tópico seguinte.
A conceituação do objeto literário a partir do seu entrelaçamento com a
categoria gênero é recorrente na longa caminhada dos estudos estéticos. No plano das
fontes escritas temos a filosofia helênica como lar dos primeiros estudos dedicados a
refletir sobre as peculiaridades composicionais das obras poéticas.
O estudo desenvolvido por Aristóteles acabou galgando o lugar de marco para a
compreensão da obra literária. A proposta de sistematização por ele desenvolvida funda-
se em dois grandes elementos estruturantes: ação e métrica. A soma dos recursos em
questão tem como resultado o exercício mimético (ARISTÓTELES, 2017, p. 59)4.
A ação, termo que também pode ser compreendido como enredo, refere-se ao
plano social com o qual o narrado se identifica. É exemplificativo dessa categorização
o vínculo tecido pelo autor entre os gêneros tragédia e epopeia e a figuração heroica.
Nas palavras do grego: “A epopeia acompanha a tragédia até o ponto de ser a mimese
de homens de caráter elevado por meio de linguagem metrificada” (ARISTÓTELES,
2017, p.69).
A conexão entre a persona representada e uma linguagem capaz de a dizer, como
exposta no trecho acima citado, nos traz para o plano da métrica. Podemos encontrar na
reflexão aristotélica uma leitura dinâmica da relação entre forma e conteúdo.
É exemplificativo de nossa colocação o movimento que o autor denota na
métrica denominada iâmbica. A estrutura em questão tem em sua origem uma
vinculação com as propostas artísticas de intenção satírica, mas findou como estrutura
intrínseca à obra trágica. O autor justifica esse deslocamento a partir da noção de
verossimilhança. A forma iâmbica é apontada por Aristóteles como a mais afim com o
tom prosaico do diálogo. Por consequência, o conteúdo trágico, intrinsecamente
dialógico, encontrou no iambo sua forma (ARISTÓTELES, 2017, p. 59).
4A sistematização que apresentamos é uma síntese dos elementos fundamentais da arte poética. Como
explicado no início do presente tópico, não pretendemos esmiuçar o pensamento aristotélico, mas sim
apresentar o seu essencial e, a partir disso, pensar o problema do gênero no enfoque da estética hegeliana.
28
A verossimilhança pode ser compreendida como processo de atualização do jogo
mimético, ou seja, é o próprio bailar das formas. É a maneira pela qual o conteúdo
busca formas de dizer o mundo, e, ao dizê-lo, inexoravelmente passa por sua própria
concepção frente à realidade. O movimento histórico finda como personagem
inexcusável do exercício poético. Como afirma Costa Lima (1980, p. 62), “(...) é
próprio do ficcional permitir a descoberta, na alteridade da cena do texto, de uma
semelhança com a cena dos valores de quem o recebe”. O iambo adentra a
possibilidade de compor uma expressão nobre ao galgar a posição de forma capaz de
dizer uma experiência sensível enraizada em seu tempo.
Se a mimese implica uma dinâmica entre forma e conteúdo que pressupõe uma
identificação, verossimilhança, entre representação e representado, o exercício poético
aponta para uma tradição subversiva. Em outros termos, a poesia é um ente autofágico:
a cada novo conteúdo, a forma devora o pretérito para com seus ossos rearranjar suas
próprias possibilidades expressivas.
Quando defrontada a perspectiva aristotélica com a noção histórica, alcançamos
uma concepção teórica avessa a uma leitura normativa dos gêneros literários. O
pensador helênico afirma que “(...) a função do poeta não é a de dizer o que de fato
ocorreu, mas o que de fato é possível e poderia ter ocorrido segundo a verossimilhança”
(ARISTÓTELES, 2017, p. 95). Em outras palavras, o fator social emerge como um
imperativo de constante mutabilidade na forma dado o fato de que cada tempo molda
seu próprio horizonte de possibilidade.
Hegel afina-se com uma proposta de gênero como exercício particular do
universal artístico. Cada gênero, tal qual a arte em sua totalidade abstrata, vincula-se ao
movimento da própria vida. Sob essa perspectiva, temos a relação entre forma, conteúdo
e tempo reafirmada na particularidade das estruturas de gênero. Nas palavras do próprio
autor, “(...) é na forma da realidade exterior que a poesia, por um lado, apresenta a
totalidade desenvolvida do mundo espiritual diante da representação interior e, desse
modo, retoma em si mesma o princípio da arte plástica, que torna intuível o assunto
objetivo mesmo” (HEGEL, 2004, p. 84).
Na concepção hegeliana, o jogo mimético alcança um caráter visceral. A criação
poética torna-se uma concretização da experiência espiritual em um tempo e um espaço
29
específicos. Ao lermos Luís de Camões, estamos atravessando um monumento poético,
uma estátua etérea que carrega em seu seio os olhos do homem português do século
XVI.
Os gêneros como especificação do liame entre conteúdo e forma findam como
conceito mediador da própria relação entre a produção artística e o mundo. O épico não
é exceção a esse processo.
Lukács (2000, p. 38), em sua fase hegeliana, concebe o movimento de
emergência e fenecimento dos gêneros como parte da marcha histórica do espírito
humano. O húngaro aponta a forma como plano mais apreensível das alterações radicais
do conteúdo.
Essa transmutação dos pontos de orientação transcendentais submete as
formas artísticas a uma dialética histórico-filosófica, que terá, porém,
resultados diversos para cada forma, de acordo com a pátria apriorística dos
gêneros específicos. (...) é possível que a mudança se dê justamente no
principium stilisationis do gênero, que tudo determina, e assim torne
necessário que à mesma intenção artística – condicionada de modo histórico-
filosófico – correspondam formas de arte diversas.
Agora que passamos por uma breve reflexão frente ao conceito de gênero
literário, podemos tomar o épico como objeto de estudo. Podemos vislumbrar, na
relação triangular entre conteúdo, forma e tempo, uma vinculação entre gênero literário
e as possibilidades expressivas de cada experiência humana. No caso da épica, temos
uma estruturação do texto poético que tem como origem o universo clássico helênico.
Afirmar a relação indissociável entre o mundo grego e o próprio conceito de
epopeia implica entender que essa poesia é fruto direto da maneira como os poetas
concebiam o mundo. A própria ideia do épico como “bíblia da raça” (CIDADE, 1950)
provém de um arranjo social no qual a comunidade vive sob um ideal orgânico de
autorreconhecimento. A sociedade da qual emergiu o conteúdo que parturejou a forma
homérica vivia em uma experiência de unidade imediata5.
5 Para melhor compreender a interrelação entre estrutura social e exercício poético no mundo clássico,
recomendamos Lima (1980). O autor dedica a primeira parte do seu livro para versar sobre as origens da
teoria mimética. O livro alcança tal intento a partir de uma preciosa apresentação do lugar da arte literária
no mundo helênico.
30
O fruto dessa composição social é a poesia heroica representada pela epopeia. O
herói irradia sobre seu entorno uma harmonia fechada. O universo ficcional no qual
exerce seus gestos superiores, os muitos trabalhos e batalhas, não é dissociado de sua
própria figura.
O herói em questão finda alcançando uma posição totêmica frente à comunidade
que o inventou. Sua individualidade é uma macroprojeção da relação entre o povo e o
mundo. A diferença frente ao totem original é que o herói é um homem superior, mas
ainda assim um homem. Ele representa um passo em direção à autorreflexão humana e
o épico é a forma dessa nova consciência.
O conteúdo comunal do qual emerge a epopeia demanda da estruturação
poética uma constância composicional. A estabilidade da forma é alcançada através de
uma métrica que, a partir de repetições, tece um mundo harmônico. Como descreve
Hegel (2004, p. 85), “(...) o rapsodo canta mecanicamente, de cor em uma única medida
de verso, que igualmente é uniforme e se aproxima mais do mecânico, decorre e desliza
calmamente por si mesma.”.
Os epítetos heroicos são um grande exemplo dessa estabilidade no plano
semântico. Aquiles nunca está dissociado de seus pés velozes, “Aquiles, de rápidos pés”
(HOMERO, 94, p. 47), e Odisseu sempre será o mais astucioso dos homens, “Ulisses, o
guerreiro da mente fecunda” (HOMERO, 2011, p. 58). As características se repetem na
narração alterando às vezes o adjetivo, mas jamais o campo de sentido.
Outro elemento marcante na épica é sua usual abrangência descritiva. O texto
prolonga-se tecendo relações entre o mundo narrado de maneira diversa da composição
trágica que alcança seu efeito através da concisão. São exemplificativos dessa
divergência os muitos anos que tomam o retorno de Ulisses para Penélope frente à
brevidade do golpe que abate a fortuna de Édipo.
O caráter panorâmico da epopeia é muito bem encenado no catalogo das naus. O
trecho a seguir apresenta uma minuciosa descrição dos helenos que compõem a grande
armada destinada a destruir Troia. O que nos interessa é o momento que precede a
descrição, ou seja, o pedido do poeta para que as musas tornem possível a transmutação
de tal matéria em objeto artístico:
31
Musas, que o Olimpo habitais, vinde agora, sem falhas, contar-me
pois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;
nós, nada vimos; somente da fama tivemos notícia –
os nomes, sim, revelai-me, dos chefes supremos dos Dânaos.
Da multidão não direi coisa alguma, nem mesmo os seus nomes,
em que tivesse dez bocas e dez, também, línguas tivesse,
voz incansável e forte, e de bronze infrangível o peito,
se vós, ó Musas, nascidas de Zeus portador da grande égide,
não me quisésseis nomear os que os campos de Troia pisaram.
(HOMERO, II, p. 480)
O consórcio entre as musas e o poeta torna possível que o infindável real ganhe
os firmes contornos de objeto estético. A consequência da relação entre o divino e o
próprio poeta é de caráter duplo, como bem explicado por Brandão (2005, p. 45): “(...)
ver é apanágio das deusas, tanto quanto o não ver (ou não ter nenhuma coisa vista, logo
sabida) o é de nós: o poeta e seu público.”.
A epopeia é um gênero que carrega em seu âmago o espírito clássico. A arte
pretérita buscava formas para dizer o mundo; já o clássico domestica os elementos
naturais ao submetê-los ao poder ordenador da palavra. Não é por acaso que, na relação
entre as musas e os poetas, quem se eternizou foram os últimos - o cosmos ficcional de
Homero alcançou uma vitalidade maior que a dos deuses que o inspiraram. Os olhos
atentos das musas não foram páreos frente à potência figurativa do poema.
O herói é um elemento fundamental do épico. Ele representa o elo que sustenta a
amplitude da narrativa. A infinitude dos barcos ganha os contornos de cada herói
individual e sua linhagem. Não há qualquer ponto do imenso mar que fique dissociado
do espírito coletivo dos helenos. É dessa estruturação artística que surge o notório
comentário feito pelo jovem Lukács (2000, p. 27):
O grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente
soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas,
mas nenhum caos. Ele ainda traça o círculo configurador das formas aquém
do paradoxo, e tudo o que, a partir da atualização do paradoxo, teria de
conduzir a superficialidade, leva-o à perfeição.
32
O gênero épico é uma formulação artística que não pode ser dissociada do
heroísmo. Na ausência de personagens que encarnem individualmente os laços
comunitários, tem-se uma obra que trilha os caminhos turbulentos do romance.
A insustentabilidade do heroico é um elemento crucial do perecimento da arte
clássica. As obras vinculadas a esse tempo perdem o vínculo com o espírito do tempo e,
com isso, tem sua beleza transmutada em nostalgia. Como exposto ao fim do último
tópico, a emergência da interioridade, muito em razão da ascensão do cristianismo,
torna a individualidade uma experiência verdadeiramente singular. O pareamento entre
representação e objeto perde-se, tornando inverossímil uma representação
inquestionável do coletivo.
Temos como consequência fundamental dessa ruptura a imperatividade de uma
nova rota para o texto narrativo. Não é mais possível engendrar sujeitos e objetos em
uma miscelânea que mal discerne os contornos entre um e outro. É tempo para uma
forma artística que tenha a contradição como próprio cerne de seu exercício mimético.
III- A arte e os modernos
O crítico literário Helder Macedo (2018, p. 02), em um magistral ensaio sobre
Luís de Camões, inicia sua reflexão com uma afirmação: “(...) toda linguagem é feita de
passados e não de futuros”. O intelectual prossegue seu comentário expondo a
característica que, a seu ver, é o elemento singularizador do trabalho do poeta
português: “A profunda originalidade de Camões manifesta-se nos sutis deslocamentos
semânticos que impôs a essa tradição, modulando a linguagem do passado para
significar uma nova visão de mundo para a qual ainda não havia linguagem feita.”
(MACEDO, 2018, p. 02).
O que há de singular em Camões é o seu próprio pioneirismo em explorar as
searas modernas que se abriam em seu século. O poeta português compõe o panteão dos
primeiros homens a lidar com uma cisão radical entre forma e conteúdo. O evento de
inexistir linguagem pronta para expressar o espírito.
A arte moderna, que no vocabulário hegeliano tem sua longa trajetória
denominada de romântica, caracteriza-se por direcionar o processo composicional para
33
a interioridade humana. Ela é fruto direto do contato do mundo clássico com a forma
semítica.
Tal qual o clássico e o simbólico, esse momento da caminhada estética goza de
muitas particularidades, porém não são objeto desta dissertação as minúcias de cada
momento. No presente tópico, nos atentaremos às principais características do
movimento geral do moderno, frisando a relação entre esse tempo e o heroísmo.
A relação entre a Modernidade e o heroísmo é bem descrita por Hernani Cidade
(1979, p. 82) como um processo no qual se tem uma “(...) humanização cada vez maior
do herói e do mundo que o rodeia”. É interessante pensar que a humanização pressupõe
uma perda de potência por parte da figura heroica. É exemplificativa dessa relação o já
referido caráter antibélico da poética camoniana6.
O herói humanizado adentra em um campo no qual o mundo exterior perde sua
referência fixa, o que finda fazendo de todo gesto um passo em direção ao labiríntico
plano da consciência. A maneira inglória como o poeta português descreve a violência
da guerra é um meio de vislumbrar, na forma artística, a permanente ambiguidade do
moderno.
Cabeças pelo campo vão saltando,
Braços, pernas, sem dono e sem sentido
E de outros as entranhas palpitando,
Pálida a cor, o gesto amortecido.
Já perde o campo o exército nefando,
Correm rios do sangue desparzido,
Com que também do campo a cor se perde
Tornando carmesi de branco e verde.
(CAMÕES, III, 52)
A contradição a que nos referimos está na própria perda de uma relação
referencial frente ao mundo. Os objetivos perdem sua clareza, a vida comunitária se
6 Estamos fazendo referência à passagem em que é comentado o episódio Os doze de Inglaterra. No texto
de Antonio Candido (1985) o leitor pode encontrar um breve, mas interessantíssimo, comentário sobre o
tom desse episódio.
34
pulveriza em sua organicidade e a dúvida transforma-se em único liame humano. É algo
demasiadamente diverso dos conflitos entre os heróis helênicos. Tomemos como
exemplo as cisões no acampamento dos gregos. As disputas eram encontros entre
potências, elaborações da vivacidade do homem representado. Hegel (2015, p. 196)
descreve a peculiaridade dessa característica ficcional nos seguintes termos:
(...)os heróis gregos surgem numa idade anterior á legalidade ou são eles
mesmos fundadores de Estados, de tal modo que o direito e a ordem, a lei e
os costumes partem deles e se efetivam como sua obra individual, que a eles
permanece associada. (...) sua aliança não constitui igualmente nenhuma
relação já previamente estabelecida de modo legal, que os forçasse á
submissão; pelo contrário, eles seguem Agamenon voluntariamente, que por
sua vez, não é um monarca no sentido atual da palavra; e assim cada herói
também dá o seu conselho, o encolerizado Aquiles se separa autonomamente
e, em geral, cada um vai e vem, luta e repousa a seu bel-prazer.
A narrativa camoniana versa um mundo no qual as relações com o passado são
constantemente retomadas. Árvores genealógicas e estórias que traçam as origens da
ocidental praia lusitana são encontradas em grande quantidade. O autor apresenta os
feitos do presente mesclando a nobreza miticamente fundamentada com o reino
prosaico do evento.
A miscelânea finda fortalecendo o caráter moribundo da experiência heroica ao
dar forma a uma poesia que “(...) adere à realidade, como a nau adere, com suas velas, à
onda que sulca.” (CIDADE, 1979, p. 95). O passado transmuta-se em paradigma
inalcançável e o presente agrega ao evento as ambiguidades intrínsecas ao real.
É exemplo dos elementos levantados no último parágrafo a representação
poética do assassinato de Inês de Castro. O episódio em questão provém do diálogo
entre Vasco da Gama e o rei de Melinde. O monarca africano pediu que seus
convidados narrassem suas origens. A resposta é o conteúdo do terceiro canto que toma
como assunto os eventos entre a origem mítica de Portugal e o reinado de Dom Pedro, o
cruel.
Entre os muitos pontos de interesse do episódio, cabe pensarmos na figura do rei
Dom Afonso IV. No poema, a figura histórica é colocada em duas posições antagônicas,
primeiro como feroz guerreiro que na batalha do Salado sobrepujou um número superior
de inimigos mouros, e, logo depois, como soberano que selou o destino de Inês. A
35
crítica frente ao deslocamento do monarca da grandiosidade para a pequenez é posta na
boca da condenada em seu último gesto de autodefesa:
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vicia com clemência
A quem para perdê-la não fez erro.
Mas se to assim merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente. (CAMÕES, III, 127-128)
O poeta, a partir da forma, inverte o significado do monarca. Em um primeiro
momento, ele representa a impetuosidade do singular contra o coletivo, no caso a
pequena armada cristã contra a imensidão moura. Já contra Inês, ele se transmuta no
oponente descomunal. O deslocamento em questão nos dá elementos para melhor
compreender a relação entre a literatura moderna e o heroísmo.
Se tomarmos como categoria do épico a ação heroica dos personagens, pensando
no método proposto por Aristóteles, adentraremos um grande problema. O universo em
modernização do qual surge o conteúdo para a poesia camoniana não é mais um espaço
de consenso ético. O agir agora passa por um filtro subjetivo moldado pela angústia da
dúvida. O próprio conflito religioso, cristãos e mouros, que marca o texto de Camões, é
exemplificativo das curvas para as quais a monofonia caminha.
36
O antagonismo ente gregos e troianos está desvinculado de qualquer
radicalidade. Ambos os lados ostentam heróis em suas fileiras e o que os une em
beligerância é o próprio fato de compartilharem do mesmo destino. O liame entre os
personagens da epopeia é descrito por Lukács (2000, p. 42) da seguinte maneira:
(...) cada personagem que aparece está à mesma distância da essência, do
suporte universal, portanto, em suas raízes mais profundas, todos são
aparentados uns aos outros; todos compreendem-se mutuamente, pois todos
falam a mesma língua. Todos guardam uma confiança mútua, ainda que
como inimigos mortais, pois todos convergem do mesmo modo ao mesmo
centro e se movem no mesmo plano de uma existência que é essencialmente
a mesma.
O herói clássico carrega o heroísmo como elemento ontológico à sua própria
existência. Não há imperativo probatório de sua superioridade: ela está impregnada no
âmago do personagem. Essa relação é diversa quando pensada no plano da arte
romântica, primeiramente na cavalaria e depois no personagem propriamente moderno.
O cavaleiro que protagoniza a novela tem a honra como constante a ser protegida ou
alcançada. Isso implica no personagem não ter o heroísmo como elemento constituinte.
A narrativa torna-se o espaço da busca do próprio heroico. Os conflitos que norteiam a
trama cavalheiresca, violação e/ou conquista da honra, descrevem bem a caminhada
para o moderno:
(...) a ofensa não concerne ao valor real objetivo, à propriedade, ao
estamento, ao dever etc., mas à personalidade enquanto tal e à representação
que ela faz de si mesma, ao valor que o sujeito atribui a si mesmo para si
mesmo. Este valor no estágio atual é do mesmo modo infinito quanto o
sujeito é infinito para si. Na honra, por conseguinte, o sujeito tem a
consciência mais próxima afirmativa de sua subjetividade infinita,
independente do conteúdo dela. (HEGEL, 2014, p. 292)
Por mais que o texto camoniano tome o romance de cavalaria como matéria
ultrapassada, aquém das concretudes experimentadas pelo povo português em seu ápice
imperial, há uma grande influência do medievo no conteúdo da épica portuguesa. A
justificação metafísica para a expansão em direção ao ultramar bebe da retórica cruzada.
Camões produz uma poética na qual continua sendo um imperativo abater a ameaça
moura e expandir as fronteiras da fé cristã.
A atualização da configuração medieval perpassa pelo próprio processo de
secularização do conteúdo artístico. Os elementos prosaicos dos quais emerge a
37
narrativa judaico-cristã, muito bem exemplificados em episódios como os sofrimentos
de Jó, o calvário de Cristo e a negação de Pedro, trazem o mundano como chave para
exposição do excepcional que é o divino. O movimento do espírito pelo romantismo é
de uma sobreposição da mimese cotidiana frente a seu original lastro religioso
(AUERBACH, 1971).
É nesse contexto de ruptura que se encontra o conteúdo artístico d’Os Lusíadas.
Apesar das grandes referências à religiosidade, já podemos ver na escrita camoniana um
herói que ultrapassa a crise da novela de cavalaria radicalizando ainda mais a figuração
da interioridade. O mundo ficcional em questão é um espaço de busca de sentido no
qual a mediação entre o singular e a totalidade é impossível. Resta à forma encenar a
solidão de quem busca uma expressão capaz de dizer seu espírito.
O caminho em direção à interioridade implica na emergência de um
antropocentrismo radical. O objeto da arte não se afina a um pareamento da condição
humana com sua exterioridade, tal qual vislumbramos na poética homérica, mas sim às
entranhas da inquietude, da dúvida.
Pensar o texto camoniano sob a égide analítica dos gêneros literários implica em
reconhecer o conceito como elemento também sujeito às tormentas do tempo. A
estrutura consolidada na poética implica em uma análise vinculada a um tempo e a um
espaço, tal qual todo exercício reflexivo. A impossibilidade de um pareamento perfeito
entre o épico aristotélico e o texto renascentista implica em uma inversão da relação
entre obra literária e teoria. Cabe ao texto ficcional, com seus deslocamentos e
subversões referenciais, defrontar o universo teórico, conclamando por uma refundação
poética.
Acreditamos que Os Lusíadas são a grande Odisseia moderna. A obra que, ao
retratar um povo e um tempo, ultrapassou seu próprio conteúdo imediato, alcançando
uma expressão de universalidade humana. Nós, mulheres e homens do século XXI,
temos, como elemento intrínseco de nossa consciência, a transição que Luís de Camões
transformou em poesia, o processo pelo qual “Nosso mundo tornou-se infinitamente
grande e, em cada recanto, mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa
riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade” (LUKÁCS,
2000, p. 31).
38
Pensar o heroísmo e sua crise na concretude do texto literário é o objetivo do
próximo capitulo. Para alcançarmos tal intento centralizaremos a discussão no episódio
da Ilha dos Amores buscando compreender como o poema estrutura a figuração heroica
nesse fundamental trecho d’Os Lusíadas.
39
2. A Ocidental praia lusitana
I- As Tágides
No texto em estudo, temos uma estruturação poética de forte teor universalista,
claro que se entendermos universalismo como uma concepção generalista de
europeidade cristã. As passagens nas quais elementos historiográficos são minuciados
desenham uma contextualização exuberante dos eventos, então recentes, do teatro
político europeu.
Vede'los Alemães, soberbo gado,
que por tão largos campos se apascenta;
do sucessor de Pedro rebelado,
novo pastor e nova seita inventa;
vede'lo em feias guerras ocupado,
que inda co cego error se não contenta,
não contra o soberbíssimo Otomano,
mas por sair do jugo soberano. (CAMÕES, VII, 4)
Uma bela amostra de tal exposição é o trecho acima, no qual a Reforma
Protestante e a ascensão dos otomanos contrabalançam os feitos lusos do passado
recente aos da cristandade habitante das terras germânicas. O fragmento em questão se
insere no contexto de celebração da chegada dos barões à cidade indiana de Calicute. O
alcance de tamanha proeza é contraposto às cisões que afligem o universo cristão. Os
inimigos da fé e da civilização são tão externos quanto internos.
A decadência geral que o texto camoniano descreve, tanto em plano europeu
quanto na própria Lusitânia, é sempre sustentada a partir de uma oposição dupla: a
grandeza clássica dos helenos e romanos e o recente, mas já perdido, brilho das
40
conquistas portuguesas. Tal estratégia textual contraria os pressupostos heroicos da
épica homérica: nela não há decadência, mas sim pujança.
Sob tal perspectiva, talvez Os Lusíadas não sejam um texto épico, mas sim um
texto de aposta épica. Essa inversão implica uma realocação do poético e do próprio
tom metonímico que norteia a obra.
Nós propomos essa leitura tomando como principal objeto de análise o episódio
da Ilha dos amores. Tal fragmento preenche boa parte dos cantos IX e X. São duzentos e
vinte e uma estrofes, quantidade que compõe vinte por cento do livro, tendo como
consequência ser o tópico mais abrangente da obra. Nossa escolha não se dá meramente
pela abrangência quantitativa do episódio, mas fundamentalmente pelo seu caráter
conclusivo, o que, em outras palavras, significa uma retomada do que consideramos um
dos pontos fundamentais do texto camoniano: o heroísmo.
A Ilha dos amores carrega em seu seio o encontro de vários elementos textuais
presentes no decorrer da narrativa, seja o discurso amoroso, a narrativa histórica ou
mesmo a presença da religiosidade. O que buscaremos apresentar neste capítulo é uma
leitura de tal episódio na qual frisaremos o encontro entre a formulação heroica e o
discurso amoroso, caminho pelo qual alcançaremos a forma do que chamamos de crise
épica.
É imperioso, como primeiro passo para procedermos a leitura, que uma
contextualização de cena seja feita. A Ilha dos amores emerge na narrativa camoniana
como um espaço-recompensa para os navegadores lusos. Tal territorialidade poética,
como quase tudo no texto camoniano, bebe de referências intertextuais clássicas e
também de certa projeção do imaginário europeu em relação às ilhas dos novos mundos.
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos .
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
41
Os formosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando. (IX- 56)
A arquiteta de tal ilha é a deusa Vênus, fiel protetora dos lusos. Após a
superação dos muitos trabalhos que levaram à chegada à Índia, e com a consequente
obtenção da “(...) pimenta ardente”, “da noz e do negro cravo” (CAMÕES, IX – 14), a
narrativa se encaminha para as recompensas de tal empreitada:
“(...) a Deusa Cípria, que ordenada
Era, para favor dos Lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom gênio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe, nos mares tristes, alegria. (XI-18)
A “alegria” que a deusa planeja ofertar aos lusos tem como base a conjugação de
uma ilha paradisíaca com a presença das sensuais ninfas marítimas. Para alcançar tal
intento, Vênus consorcia seus poderes com o Cupido e a Fama.
Coube à Vênus criar a ilha, e ao Cúpido e à Fama submeterem as ninfas aos
lusos, mesclando os afiados dardos amorosos com a ágil propagação dos feitos
portugueses. O encontro dessas três potências divinas torna possível o embate entre o
mitológico e o histórico.
É em meio ao clímax da Ilha dos amores e suas descrições orgásticas que o texto
camoniano desnuda seus próprios elementos constituintes. O mito é o primeiro a ser
golpeado pelo amor camoniano; as divindades clássicas expressam a própria
ficcionalidade de sua existência:
42
Aqui, só verdadeiros, gloriosos
Divos estão, porque eu , Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar. É só o que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.(X- 82)
Quem enuncia o discurso acima é a ninfa Tétis, poderosa profetiza do futuro
lusitano. A ficcionalidade do universo clássico pode ser lida de várias maneiras. Uma
aposta mais óbvia está no contexto inquisitorial no qual a obra foi escrita (MASSAUD,
1968), sendo, portanto, proveitoso para o grande poeta português desdizer o paganismo.
Não nos parece que a autodenúncia da deusa em relação à sua submissão ao
universo do poético se restringe a prováveis razões contextuais. O movimento de
colocar a própria divindade a expressar sua submissão ao humano é demasiadamente
profundo, principalmente pelo fato de tal cena se encontrar dentro do tópico da Ilha dos
Amores e com os muitos trabalhos da gente lusitana já concluídos.
Se as intervenções míticas são arranjos poéticos, frutos da perícia do autor em
redizer o real, o processo de denunciar a própria ficcionalidade de sua narrativa conclui-
se em um realismo brutal. Os barões lusitanos sofreram e perseveraram solitariamente,
tanto Baco quanto Vênus não são nada mais nada menos do que as múltiplas facetas do
próprio humano.
A confissão de Tétis é fundamental na crise épica d’Os Lusíadas. Ela implica em
uma releitura dos cantos precedentes, mergulhando-os em realismo; cada intervenção do
divino é desnudada como refração do próprio humano. O crítico Hernani Cidade (1950,
p.96) compreende o mitológico camoniano em termos semelhantes: “A mitologia, aqui,
é, como tantas vezes, apenas a transposição para o fantástico plano divino, de aspectos
do plano da vida humana, observada com o olhar mais realista.”.
43
Nossa divergência em relação à leitura do professor Hernani Cidade está em
reconhecermos um fundamento histórico na constituição do “anti-mito” camoniano. O
poeta lusitano trabalha com tais referenciais em uma temporalidade na qual eles são
operados como material alegórico, algo radicalmente diferente da estruturação mítica
clássica. No contexto homérico, a significação deles tem como base concepções de
mundo arraigadas no universo social clássico, ou seja, elas são concretizações estéticas
do espírito popular (HEGEL, 2014).
Prosseguindo na discussão sobre o espírito da mitologia enquanto figuração da
consciência, um outro episódio da narrativa camoniana emerge como fragmento
interessante para a presente discussão. No canto V, os navegantes estão na iminência de
cruzarem o cabo das tormentas, trecho de difícil navegação que se localiza no que hoje é
o território da África do Sul. Tal espacialidade é transmutada em um personagem mítico
que se assemelha à configuração da Ilha dos Amores, dado o fato de ambos os
episódios terem o desejo como questão.
(...) uma figura
Se nos mostrava no ar, robusta e válida
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos. ( V- 39)
Assim é descrito o cabo das tormentas, denominado na narrativa camoniana de
gigante Adamastor. Tal personagem figura como mediatriz entre o conhecido e o
desconhecido; ele é a relação limite do até então navegado e o radicalmente novo. O
gigante emerge narrando as desventuras marítimas pelas quais os barões lusitanos irão
viver durante as grandes aventuras dos descobrimentos; o naufrágio de Bartolomeu Dias
e de D. Francisco de Almeida são contados.
44
Em meio a tamanho terror, seja na constituição imagética do gigante ou nos seus
dizeres minuciosamente trágicos, o colosso é desarmado por Vasco da Gama. O que
opera tal deslocamento é uma singela pergunta proferida pelo grande capitão português:
“Quem és tu?” (V- 49).
A partir de tal questionamento, a potência de Adamastor é dissolvida e ele é
transmutado em estória. O cabo das tormentas é minuciado em suas raízes ocidentais.
Tal espaço perde sua característica de estranhamento e é devidamente traduzido à
linguagem classicista. Seu papel na guerra dos titãs é apresentado e o seu destino
vinculado ao desencontro amoroso que teve com Tétis.
Como vimos nos parágrafos anteriores, essa tradução tem como significação a
própria poesia. Os mitos são substância para o poético e, por consequência, o processo
de desvelamento dos novos mundos perpassa por sua tradução artística, ou seja, pela
poesia. No contexto camoniano, a pergunta dirigida por Gama é uma pergunta para o
próprio humano. A questão supera o imediato do desconhecido, mas mergulha no
abismo do próprio ser.
O professor Helder Macedo (2018, p. 33) lê tal episódio como uma das grandes
marcas do heroísmo camoniano. Em suas palavras,
“(...) o crucial momento heroico do poema transforma o medo em vontade de
conhecimento ao fazer-lhe a pergunta “quem es tu?”, que o obriga a nomear-
se e o leva a contar sua história, desse modo transformando o que havia sido
um incompreensível “ameaço divino” ou um “segredo” numa narrativa
humanamente inteligível.”
Nas epopeia clássica, Ilíada e Odisseia, os momentos nos quais o poeta toma a
voz e conclama as musas para que o auxiliem no exercício de narrar são exceções ao
discurso indireto, onisciente e onipresente que constitui a tessitura estética do épico.
Tais trechos carregam uma forte marca metapoética, dado o fato de tomarem como mote
do discurso literário a própria relação entre o dizível e o indizível, sempre mediado pela
sapiência das musas:
Musas que o Olimpo habitais vinde agora sem falhas contar-me
45
pois sois divinas e tudo sabeis; sois a tudo presentes;
nós nada vimos; somente da fama tivemos notícia
-os nomes sim revelais dos chefes supremos dos Dánaos.
Da multidão não direi coisa alguma nem menos os seus nomes
nem mesmo que tivesse dez bocas e dez também línguas tivesse
voz incansável e forte e de bronze infrangível o peito
se vós ó Musas nascidas de Zeus portador de grande égide
não me quisésseis nomear os que os campos de Tróia pisaram. (II – 480)
É interessante frisar que a invocação à musa implica em uma harmonização de
opostos: de um lado, é posta às claras a estreiteza da visão humana, restrita a um curto
espaço temporal e espacial; do outro, é exposta a imensidão do divino em sua memória
que engloba a totalidade. O que há de paradoxal nessa relação entre poder divino e
fraqueza humana é a imperatividade do exercício tradutorial por parte do poeta. O todo
que as musas portam só se concretiza na narrativa através das mediações linguageiras
construídas pelo artista, ou seja, pelo poema.
Brandão (1999, p. 4) concebe a dinâmica entre poeta e musa sob um plano
cooperativo no qual as partes que o compõem só existem enquanto conjugadas: “No
mínimo a relação do poeta com a musa é dialética e, mais do que inspiração, no sentido
de ser conduzido por algo fora de si, estamos diante de um processo de cooperação, em
que nenhum dos sujeitos abre mão do seu papel”.
Na obra em estudo, Os Lusíadas, as musas compõem os elementos alegóricos
provenientes do universo clássico, porém, elas são rearranjadas, ou melhor, traduzidas,
para o universo lusófono do descobrimento. O fato de elas serem nomeadas de tágides,
ninfas do rio Tejo, já é indício de um processo no qual referência e deslocamento andam
de mãos dadas.
As tágides também representam o projeto camoniano de construção do povo
lusitano como dignos continuadores da tradição epopeica. Tal arranjo nos remete ao que
denominamos anteriormente de aposta épica, ou seja, a construção de um liame entre o
ficcional e o real na qual um seja espelho do outro.
46
A tradição da qual o povo português bebe é um passado que Camões (I – 3)
concebe como grandioso, mas ao mesmo tempo ultrapassado. Os lusos estão destinados
a uma experiência heroica calcada no real: “Cesse tudo que a musa antiga canta/que
outro valor mais alto se levanta”.
Camões propõe uma superação do passado através da readequação da forma
artística. No plano semântico é possível vislumbrar algumas alterações que transmutam
as musas em representações do próprio humano em seu exercício poético.
A grande ruptura está no deslocamento de uma perspectiva cooperativa,
Homero, para um plano de submissão do poético ao gênio humano, Camões. As
limitações memorialísticas do homem são superadas pelo exercício da racionalidade e
do cultivo da tradição. Sob tal perspectiva, musa e poeta são fundidos em uma práxis só.
A consequência é que quem canta o canto é alçado a uma posição de enorme poder.
O texto camoniano encena os deuses como obra do exercício ficcional. Já os
heróis são descritos a partir do atrito entre ficção e realidade. A ilha dos amores emerge
como plataforma de celebração da transmutação do homem em poesia, ou seja, do
comum ao extraordinário heroico.
Que as imortalidades que fingia
A antiguidade, que os Ilustres ama,
Lá no estelante Olimpo, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da Fama,
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso:
Não eram senão prêmios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos barões que esforço e arte
Divinos, os fizeram, sendo humanos;
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Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneias e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De deuses, Semideuses imortais,
Índigetes, Heroicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertais já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo. (IX, 90-92)
É sob o espírito desses versos que comentadores como Helder Macedo (2018, p.
22) concebem Os Lusíadas como uma “(...) épica ambígua que se situa no hiato da
História entre o passado que celebra e um futuro que desejaria poder celebrar”. A crise
épica em questão decorre diretamente de uma aposta epopeica, ou seja, a própria
construção narrativa, abertamente voltada para dirigir a realidade em sua ambição de
revivificar a glória lusitana, carrega em seu seio sua impossibilidade de modernizar o
clássico. A superação da antiga musa acaba operando um acirramento do antigo
heroísmo com sua modulação camoniana. No espírito da reflexão desenvolvida nesse
tópico, o processo de análise do épico enquanto gênero reproduzível na Modernidade se
encaminha para uma negativa.
II. O canto do Velho
O professor Anatol Ronsenfeld (1985, p. 17) concebe as questões referentes ao
gênero literário em uma perspectiva dupla: adjetiva e substantiva. A primeira categoria
concerne às bases estruturais do texto literário. No caso do épico, o intelectual teuto-
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brasileiro o define nos seguintes termos: “Fará par do épico toda obra – poema ou não –
de extensão maior em que um narrador apresentar personagens envolvidos em situações
e eventos.”.A faceta adjetiva dos gêneros literários “refere-se aos traços estilísticos de
que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu
gênero (no sentido substantivo).” (ROSENFELD, 1985, p. 18). A crítica especializada
tende a conceber a literatura portuguesa como um sistema predominantemente lírico
(MASSAUD, 1968), encontrando mesmo nas obras em prosa uma manutenção do tom
subjetivo tão arquetípico ao lirismo.
Os estudos camonianos dos professores Hernani Cidade (1950) e Helder Macedo
(2018) não são exceções a tal perspectiva. O primeiro destila diretamente tais
ponderações dedicando um de seus capítulos da obra Luís de Camões: O Épico a
explorar as feições líricas d’Os Lusíadas. Já Macedo se aproxima de uma leitura lírica
da épica camoniana ao desenvolver uma análise na qual uma subjetividade autoral, aos
moldes de um eu lírico, é colocada em primeiro plano de análise.
A lírica é uma expressão poética particularmente afim com o primado moderno
da interioridade. Podemos encontrar na reflexão hegeliana e nas ponderações
lukacsianas uma leitura dialética do processo de “lirização” da expressão poética em sua
caminhada em direção ao moderno. O conflito entre interioridade e exterioridade,
enquanto componente fundamental da arte romântica é apresentado nos seguintes
termos “(...) o exterior é a existência que não satisfaz e que deve apontar de volta para o
interior, para o ânimo e para o sentimento, enquanto elemento essencial.” (HEGEL,
2014, p. 255).
Como vimos anteriormente, o texto epopeico, em suas origens clássicas, tem
como cerne uma elaboração homogênea do exterior: personagens, tempo e espaço estão
amalgamados em uma totalidade fechada (LUKÁCS, 2000). Tal intimidade entre
sujeito e mundo é sobreposta por um progressivo distanciamento, questão
profundamente afim com um diálogo entre épica e lírica. Vejamos como Hegel (2004,
p. 157) elabora a relação entre tais gêneros:
O que conduz à poesia épica é a necessidade de ouvir a coisa [Sache], a qual
desdobra diante do sujeito a totalidade fechada por si mesmo como uma
totalidade objetiva em si mesma; na lírica ao contrário, se satisfaz a
49
necessidade inversa de se expressar a si e de perceber o ânimo na
exteriorização de si mesmo.
Na perspectiva de Hegel, o que difere o lírico do épico é a maneira como cada
obra transforma em objeto estético o universo social. No texto lírico, a vivacidade
encontra-se na própria afirmação do eu enquanto ente autônomo, ou seja, é na solidão
do sujeito frente ao mundo que se encena o cerne dessa modulação poética.
Mesmo em obras que tematizam o encontro amoroso, a solidão mantém-se como
elemento inescapável. Em uma perspectiva lírica todo encontro é um preâmbulo da
separação, seja enquanto experiência trágica, ou como mera decorrência da
impossibilidade da fusão entre amante e amada.
Já na épica, inexiste solidão no universo ficcionalizado: personagens e mundo
compõem uma totalidade coesa. A “coisa”, como expresso por Hegel, é o mundo
inteiro, território literário que inexiste em fragmentos, mas somente enquanto
componente de uma integralidade épica.
As diferenças em relação a como a tensão é construída no ciclo homérico e na
narrativa camoniana são ilustrativas do desencontro entre essas diferentes
temporalidades. Aquiles e Heitor, enquanto antagonistas, representam, respectivamente,
uma ameaça concreta, física. A potência representada por ambos os heróis transmuta o
conflito em um movimento quase irresistível, como se eles estivessem prefigurados para
se desafiarem em uma lide eterna. Algo que talvez se assemelhe a um jogo em que,
mesmo sob o pairar da morte, a continuidade prescinde do risco.
Lukács (2000, p. 79) lê a serenidade do belicismo homérico sob a égide do
caráter não problemático do herói clássico, afirmando que “Quando o indivíduo não é
problemático, seus objetivos lhes são dados com evidência imediata, e o mundo, cuja
construção os mesmos objetivos realizados levaram a cabo, pode lhe reservar somente
obstáculos e dificuldades para realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente
sério.”. A legitimidade pressuposta do espírito guerreiro em Homero inexiste na
narrativa camoniana. Uma das tópicas mais recorrentes d’Os Lusíadas é a
problematização da própria aventura portuguesa.
50
A incerteza sobre se navegar é ou não preciso mantém-se insolúvel no percorrer
do texto. Esse conflito aproxima-se do universo romanesco descrito por Lukács em sua
reflexão sobre o personagem problemático e a nova concepção de embate que com ele
surge: “O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a ideias, quando
estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideias, no homem. Ao pôr as
ideias como inalcançáveis e – em sentido empírico – como irreais, ao transformá-las em
ideias, a organicidade imediata e não problemática da individualidade é rompida”.
(LUKÁCS, 2000, p. 79).
O texto camoniano carrega uma ambiguidade intrínseca. O tema épico em
questão, chegada dos barões lusos a Índia, é constantemente colocado em dúvida. Sob
tal perspectiva, principalmente se pensarmos no caráter metonímico da literatura
epopeica, o próprio fundamento do povo português, enquanto herdeiro da tradição
clássica, é alçada aos movediços planos da arte romântica.
A própria ideia de uma aposta épica resta como uma consequência lógica do
caráter problemático do discurso épico em Luís de Camões. O verdadeiro perigo, o que
há de aterrador, não são os oponentes, sejam eles os mouros ou o poderoso Baco: o que
está em jogo é a solidão da própria consciência. As naus camonianas travam uma
viagem em direção aos confins da própria interioridade, processo no qual resta pouca ou
nenhuma possibilidade de vitória.
Vamos tomar o episódio do “Velho do Restelo” como objeto de análise, frisando
os elementos afins com uma adjetivação lírica. O primeiro elemento que cabe pôr em
relevo é o caráter performático que encerra a apresentação do personagem, que emerge
como voz crítica à empreitada dos descobrimentos:
(...) um velho, de aspecto venerado,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
51
Tais palavras tirou do experto peito: (IV, 94)
Antes de adentrarmos no discurso do “velho”, cabe desvelarmos a oposição que
esse breve trecho encena. O “eu” que enuncia para o leitor o aparecimento do ancião
refere-se ao próprio Vasco da Gama, barão mais proeminente entre os personagens que
compõem a expedição para Calicute. O capitão Gama é figurado como um personagem
transparente, sem maiores complexidades ou conflitos internos. É exemplificativo de
nossa assertiva o fato de que mesmo quando o navegante se depara com a profetização
de sua própria morte, (X, 54), o personagem mantém-se em um silêncio incólume. Em
outras palavras, não há expressão nem de receio nem de bravura.
Tal constituição afina-se com certas tonalidades clássicas de composição do
discurso heroico, como se o navegante Vasco da Gama representasse uma exterioridade
imune aos problemas da consciência. Porém, o discurso atravessa o capitão em direção
a um “corpo” representativo da nação portuguesa que o tem somente como primeira
camada. Talvez não seja o melhor caminho, como já previne Macedo (2018),
compreender esse personagem, solitariamente, como foco de corporificação dos lusos.
Parece-nos que a feição complexa, típica do modelo romanesco de narrativa, esteja na
conjugação das múltiplas facetas que são apresentadas durante a narrativa.
O povo português cantado por Camões é Inês de Castro, Vasco da Gama e o
“Velho do Restelo” ao mesmo tempo. Personas historicamente antagônicas, ou
ficcionalmente construídas, que, sob tal arranjo narrativo, compõem um mosaico de
formas que em seu acabamento pinta uma concepção de nação de matiz realista.
O “Velho do Restelo” é magistralmente sintetizado por Helder Macedo (2018, p.
25) como expressão do “reverso semântico da Proposição de Os Lusíadas”, uma
espécie de voz antiépica inserida logo no início da narração da empreitada indiana:
Dura inquietação da alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
52
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana. (IV, 96)
O discurso em questão é fulcral na consolidação de uma ambiguidade que
percorre a temática heroica do início ao fim da narrativa. O anseio de superar limites,
sejam territoriais, alcançando conquistas afins com a grandiosidade de um César ou de
um Alexandre Magno, sejam financeiros, sorver todas as riquezas do comércio asiático
apossando-se de uma pujança econômica sem igual, são esvaziados de sua glória
finalística.
A grande pergunta que permanece ecoando do discurso proferido na praia do
Restelo é em relação ao próprio valor do discurso épico. O vazio da grandiosidade e a
máquina mortífera que a tece são desnudadas com dureza pelo ancião. Camões antecipa
a pergunta pessoana: valeu a pena?
Nessa dúvida irresolúvel, podemos encontrar o cerne da feição lírica do discurso
camoniano. O falatório do “Velho do restelo” é fundamentalmente um movimento de
radical crítica à realidade lusa. A viagem e os seus fins escusos são desnudados
enquanto uma mesquinha empreitada comercial, gesto que carrega em seu âmago as
raízes de uma ruína épica, algo que se encena como uma tentativa já fadada ao fracasso.
Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia! (IV, 101)
53
A crítica de arte dialética - no caso deste trabalho, as reflexões estéticas
hegelianas e os escritos de juventude de Lukács - frisam o quanto a arte moderna tem
como eixo de sua expressão uma crise do próprio conceito de arte. Luís de Camões, já
no século XVI, tem tal problema como componente constituinte de sua forma artística.
A intenção textual de parear uma narrativa moderna com a tradição clássica alcança
uma tonalidade nostálgica muito bem representada pelo fragmento referente à praia do
Restelo.
Nostálgico por acabar incorrendo em uma encenação que, na tentativa de
modernizar o passado, acaba denunciando a própria inexorabilidade do tempo. A arte,
na acepção hegeliana, é fundamentalmente o universo clássico, tempo no qual era
possível um pareamento entre o espírito e a possibilidade de sua representação. Não
havia divórcio entre conceito e forma.
O romance é fundamentalmente a apresentação de um universo perdido ou, em
outas palavras, é uma totalidade irrealizável. O jovem Lukács (2000, p. 54) desnuda tal
movimento com grande clareza. Para ele, “(...) trata-se de uma tentativa desesperada,
puramente artística, de produzir pelos meios da composição, como organização e
estrutura, uma unidade que não é mais dada de maneira espontânea. Uma tentativa
desesperada e um fracasso heroico.”.
A referência a uma escrita “puramente artística” pode ser entendida como a
ausência de liame entre forma e conteúdo. Tal movimento não em uma negativa da
grandeza das formas romanescas, muito pelo contrário. A sua beleza está exatamente
em transmutar o próprio exercício de escrita em uma atividade heroica, não em um
sentido clássico, ou mesmo trágico, mas sim em um plano lírico. É uma temporalidade
propícia para que o artista transforme as particularidades de sua distância frente ao
mundo em uma expressão universal.
54
III. Trovadores em caravelas
A historiografia literária portuguesa compreende o trovadorismo como uma
temporalidade estética que abarca em torno de três séculos, entre 1189 e 1434
(ABDALA JÚNIOR, 1982). Ela é marcada por uma predominância lírica e, no plano
temático, pelo discurso amoroso.
O trovadorismo galego-português divide-se em quatro modulações de expressão
lírica que se particularizam através das informações concernentes ao processo
enunciativo e à temática do discurso: cantiga de amor, cantiga de amigo, cantiga de
escárnio, cantiga de maldizer. Dentre os parcos documentos que restaram dessa época, a
“Arte de trovar”, texto introdutório ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional, traz
importantes informações sobre os gêneros literários do universo trovadoresco.
E porque algũas cantigas i há em que falam eles e elas outrossi, por en é bem
de entenderdes se som d'amor, se d'amigo: porque sabede que, se eles falam
na prim[eir]a cobra e elas na outra, [é d']amor, porque se move a razom dele,
como vos ante dissemos; e se elas falam na primeira cobra, é outrossi
d'amigo; e se ambos falam em ũa cobra, outrossi é segundo qual deles fala na
cobra primeiro (ARTE, 2018, p. 1).
O trecho acima apresenta alguns limites entre os gêneros. O gênero que enuncia
as cantigas de amor é masculino (“se eles falam na prim[eir]a cobra e elnas na outra, [é
d’] amor”), enquanto as de amigo partem de um eu lírico feminino (“se elas falam na
primeira cobra, é outrossi s’amigo”). “Cobra”, em galego-português, pode ser entendido
como estrofe, ou seja, as vozes que iniciam o discurso, logo nas primeiras estrofes,
tendem a demarcar o gênero da cantiga.
No presente tópico não nos interessa adentrar nas cantigas satíricas, mas sim no
que concerne ao discurso amoroso. Como foi exposto anteriormente a figuração
amorosa é um tema caro à épica camoniana, inclusive compondo o fechamento da
narrativa no episódio da “Ilha dos amores”.
O amor como foi apresentado pelos trovadores tinha como cerne expressar a
impossibilidade de sua própria realização. O impedimento usualmente é de raiz social,
55
seja em um desencontro entre estamentos, seja em razão da amada já estar vinculada
matrimonialmente. Tal situação-limite foi figurada no léxico galego-português como
coita, expressão que se afina com a ideia moderna de sofrimento amoroso.
A coita comumente é expressa sob a forma de uma “(...) súplica
apaixonadamente triste”, proveniente de um “(...) apelo para alcançar um dom que não
chega mais” (LAPA, 1952, p. 122). O trecho que transcrevemos abaixo é um belo
exemplo da sofrida expressão da coita amorosa:
Ua dona, que eu quero gran bem,
por mal de mi, par Deus, que non por al,
pero que sempre mi fez e faz mal
e fará, direi-vo-lo que m’avén:
mar, nen terra, nen prazer, nen pesar,
nen bem, nen mal non mi-a podem quitar
do coraçoon; e que será de mi?
Morto son, se cedo mi non valer;
ela já nunca bem mi-á-de fazer,
mais sempre mal, e , pero est’ assi,
mar, nen terr, nen prazer, nen pesar
nen bem, nen mal non mi-a poden quitar
do coraçon; ora mi vai peior,
ca mi vem d’ela, po vos non mentir,
mal, se a vej’, e mal, se a non vir,
que de coitas mais cuid a maior
mar, nen terra, nen prazer, nen pesar,
nen bem, nem mal non mi-a podem quitar (CHARINHO, 1987, p. 162)
O trovador narra sua dor em uma contínua lamúria. Os refrãos reforçam a
estabilidade do mal-estar amoroso, e as diferenças de cada estrofe restam como
alternâncias linguageiras nas quais o sentido mantém-se incólume. A estabilidade da
coita é a plataforma sobre a qual o discurso amoroso emerge.
Amante e amada são mantidos em uma distância que nega e potencializa o
desejo simultaneamente. Estratagema que traz para o universo lexical do poema o signo
da morte enquanto elemento que medeia o desejo em sua negatória de realização. O
pesquisador Rougemont Dennis (1999, p. 15) concebe o sentimento representado como
um elemento de certa universalidade, no que se refere ao universo ocidental. Nas
palavras do autor, “O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a
56
paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão
significa sofrimento. Eis o fato fundamental.”.
Parece-nos que o heroísmo camoniano assume uma feição lírica muito
semelhante com o paradoxo da coita trovadoresca. Na narrativa em estudo, os episódios
analisados demonstram que a cada passo que o povo português dá em direção à
experiência heroica ela se afasta. É como se Os Lusíadas, no que tange ao heroísmo,
figurassem um desejo sempre postergado, latente e que nunca alcança em sua plenitude
o clímax.
Os Lusíadas comportam uma configuração de ambição épica, ou seja, um anseio
profundo de reconhecimento lírico de um eu que se amalgama com a comunidade.
Talvez o texto camoniano possa ser lido como um protorromance, uma espécie de
encontro entre o lírico e o épico no que tange a ambicionar o alcance do último através
da constituição do primeiro.
O que sobressai dessa narrativa, em sua caminhada em direção ao moderno, é a
expressão de uma solidão inigualável. Lukács lê a faceta solitária das formas
romanescas em termos semelhantes ao que nos parece ser a tônica da narrativa de Luís
de Camões. Para o marxista húngaro, (...) “solidão não é simplesmente a embriaguez da
alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas também o tormento da
criatura condenada ao isolamento e que anseia pela comunidade.”
Sob tal perspectiva, e retomando as diferenciações tecidas por Hegel em torno
do cerne da expressão lírica e da épica, parece-nos sustentável conceber Os Lusíadas
enquanto uma ponte estético-histórica entre o universo clássico e o que viria a ser a
Modernidade. É a transição entre um canto que ambiciona mimetizar a “coisa” e um
poema que se concretiza enquanto expressão do próprio anseio de cantar.
Os diálogos que estamos operando entre o universo trovadoresco e a épica
camoniana não se dão por acaso. Apesar da pouca probabilidade de Luís de Camões ter
tido contato com os cancioneiros trovadorescos (CIDADE, 1952), na época tal
paradigma poético já havia sido sobreposto por outras concepções artísticas, como a
classicista da qual o próprio Camões bebe. Há um diálogo irredutível entre o autor em
estudo e o legado trovadoresco. Ambos compõem a marcha artística e histórica moderna
figurando-se como etapas do processo de subjetivação do discurso literário.
57
Não é surpreendente que encontremos tons semelhantes de expressão literária
nos paradigmas artísticos em estudo, principalmente no que se refere ao discurso
amoroso. A própria tônica heroica, em uma perspectiva mais direta, também traz
questões do medievo, seja no episódio “Os Doze da Inglaterra”, ou na própria
arquitetura da invocação que já se inicia reivindicando para si uma veracidade que
ultrapassa o universo cavalheiresco.
Ouvi: que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, ainda que fora verdadeiro (I, 11)
O “mosaico” camoniano sintoniza-se com uma concepção de arte intimamente
vinculada ao movimento histórico. Em outras palavras, a criação é concebida não como
um processo de fundação radicalmente original, mas sim enquanto tensão entre o
presente e o passado, passado que se revivifica através de deslocamentos e
rearticulações afins com o universo social que o recepciona.
Nessa perspectiva, Camões de fato leva os trovadores para as caravelas; os faz
experimentar o cravo-da-índia e as intempéries do Atlântico Sul, em um movimento que
radicaliza a solidão lírica a aproximando do corpo narrativo da épica, mesclando,
portanto, voz e objeto em um processo lindamente agônico.
Fechamos o presente capítulo afinados com uma leitura d’ Os Lusíadas no qual
o texto não é compreendido como uma epopeia, mas sim como protorromance. O
principal agente de nosso processo de categorização é a impossibilidade que as formas
mostram no que se refere à construção de um decalque do heroísmo clássico.
58
O incrível novo mundo ficcionalizado por Luís de Camões carrega tônicas e
temas ainda atuais às possibilidades expressivas de nossa Modernidade. Principalmente
no que se refere aos herdeiros do império português no além-mar, fazemos parte dos
sucessos e dos fracassos históricos que Camões, ainda na emergência de tal processo,
transmutou em poesia.
No próximo capítulo, já caminhando para o epílogo do presente estudo,
refletiremos sobre as fraturas do texto camoniano no que refere à enunciação de uma
radical novidade no mundo narrado, não só no que se refere ao exotismo dos lugares
descritos, mas sim em relação à própria condição humana representada artisticamente.
Parece-nos que o autor põe em relevo uma espécie de utopismo lusitano que se propõe a
trazer a organicidade épica para o contexto de escrita da obra. Em outras palavras, mais
do que acompanhar o paradigma clássico, talvez o texto camoniano ensaie uma
superação dele.
59
3 – A voz enrouquecida e a lira destemperada
I- Outro valor mais alto se levanta?
Nas últimas páginas da narrativa camoniana há uma estrofe marcante, quase
folclórica, em sua penetração no imaginário lusófono. Do primeiro verso dessa estrofe
furtamos o título do presente capítulo. Esta parte da dissertação objetiva discorrer de
maneira conclusiva sobre os estudos anteriormente desenvolvidos. Frisaremos a análise
nos trechos finais d’Os Lusíadas, fazendo um balanço sobre a relação entre melancolia,
heroísmo e Modernidade.
A exaustão do narrador frente às durezas do mundo empírico e à consequente
pequenez da antiépica quotidiana são fundamentais no processo de rediscussão do
gênero em Luís de Camões. Nos versos que transcrevemos abaixo, temos a enunciação
de uma frustrada experiência poético-política ou, em outras palavras, o desencontro
entre a mimese e o mimetizado:
No mais, Musa, no mais que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De uma austera, apagada e vil tristeza.( X, 145)
Os versos se iniciam logo após o encerramento da narração Índica. Talvez seja
possível enquadrá-los como uma inovação na composição épica no que tange às suas
respectivas fases: proposição, invocação, dedicatória, narração e epílogo. Nossa
afirmação se dá pelo fato de que no décimo canto, mais especificamente entre as oitavas
60
de número 146 até 156, o texto assume um tom de conselho, ou melhor, diálogo entre o
narrador e a figura de poder no arranjo português - no contexto da escrita da obra, o
monarca Dom Sebastião.
Este adendo na estruturação épica que estende a narrativa em colocações
posteriores ao epílogo remete ao que denominamos anteriormente de aposta épica. O
narrar o passado fundacional de Portugal e o narrar o passado recente das exuberantes
conquistas no além-mar são tendenciados para esse momento último da obra. Um
verdadeiro balanço poético-político que abarca o estar no mundo enquanto português,
mas não só em um plano de identidade nacional. Camões fecha sua grande não épica e
talvez um dos primeiros romances do Ocidente representando com profundidade os
encontros e desencontros entre ser e destino.
Além do longo desfile de personagens clássicos e lusitanos que compõem o
mosaico heroico d’Os Lusíadas, uma voz narrativa emerge enquanto faceta de um novo
heroísmo. O narrador, aos moldes de personagens como o Velho do Restelo e a ninfa
Tétis, figura um contraponto à expectativa de leitura no que se refere ao gênero épico:
(...) eu que falo, humilde, baixo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas juntas que se acham raramente.( X, 153)
A estrofe acima é um dos exemplos da feição interativa do narrador camoniano,
comportamento que na tipologia romanesca certamente encerraria a alcunha de
narrador-personagem. O fato de o narrador assumir a feição de personagem em
momentos diversos da obra não implica em uma direta negação de sua onisciência. Em
Camões, portanto, a objetividade épica e a subjetividade romanesca contracenam.
61
No cânone narratológico, em um exercício de aproximação, colocaríamos o
texto camoniano como uma expressão do narrador enquanto testemunha. A professora
Leite (1985, p. 36) conceitua essa faceta do narrar nos seguintes termos:
Ele narra em 1ª pessoa, mas é um eu já interno à narrativa, que vive os
acontecimentos aí descritos como personagem secundário que pode observar,
desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais
direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o
testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade, ou querendo
fazer algo parecer como tal.
A miscelânea na construção do personagem narrador de Camões implica uma
potencialização do caráter problemático d’Os Lusíadas. O texto assume uma feição
perspectiva em alguns trechos dentro de um arranjo que é majoritariamente objetivo, ou
seja, a subversão da narração épica não ocorre através de uma negação direta. Camões
empreende um sútil deslocamento da tradição, movimento que, através da miscelânea
entre objetividade e subjetividade, acaba assumindo, em um plano estético, uma
perspectiva historicizante do exercício artístico.
Em outas palavras, as estratégias textuais constroem no plano da forma um
enunciador que se mostra consciente de sua contemporaneidade frente à tradição
clássica. Seja pelo jogo narrativo, pelos deslocamentos dos mitos helênicos e romanos
para as vivências lusas ou pela continuidade do texto após o epílogo.
É dessa consciência lírica, ou seja, da individualidade do narrador personagem,
que emerge a Modernidade em Luís de Camões. A insatisfação frente à realidade posta
é um movimento avesso à grande épica:
Olhai que há tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vosso Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos mavórcios inumanos,
Qual Cânace, que à morte se condena,
62
Nua mão sempre a espada noutra a pena;(VII, 79)
O herói camoniano, portanto, é de uma estirpe radicalmente diversa do
homérico. Poderíamos dizer que é um negativo dele, se pensarmos no chavão
fotográfico enquanto metáfora. A questão é que o incrível mundo novo narrado por
Camões é fundamentalmente um incrível homem novo.
Como dito anteriormente, a verdadeira viagem é em direção à própria
interioridade humana. Camões construiu uma versão laica da perda do paraíso adâmico
ao performar a subversão da épica clássica. Lukács (2000, p. 86) vislumbra a inovação
narrativa dos modernos enquanto resposta formal do imperativo reflexivo do espírito
humano na temporalidade romântica. Em suas palavras,
Esse ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo o grande autêntico
romance. A ingenuidade do escritor – uma expressão positiva somente para o
mais intrinsecamente inartístico da pura reflexão – é aqui violada, invertida
no contrário; (...).
A perda da inocência, ou melhor, da ingenuidade, se quisermos utilizar das
palavras do húngaro, tem uma faceta dupla: nostalgia e potência. Como exposto nos
capítulos anteriores, o rompimento das possibilidades histórico-filosóficas da grande
épica implicou a impossibilidade do conceito de belo enquanto pareamento entre
exterioridade e interioridade. O jogo mimético caminhou em direção ao eu, tomando o
desencontro entre subjetividade e mundo como mote da criação artística.
Os Lusíadas são uma obra que toma tal dissonância como questão. Se, por
um lado, ela implica em uma camada melancólica, por outro, ela tem a potência da
insatisfação. O narrador-herói camoniano carrega em seu seio desilusão e utopia. Ele
emula em seu discurso a solidão de uma individualidade não mais irmanada com o
mundo que o rodeia, mas, ao mesmo tempo, uma inventividade que ambiciona elidir os
limites entre ficção e realidade, ofertando aos homens uma capacidade infinita de
construir e reconstruir mundos.
63
A professora Márcia Cristina Ferreira Gonçalves (2001, p. 248), em seus estudos
sobre a estética hegeliana, expõe com clareza as relações entre a marcha histórica do
espírito humano e a própria potência romanesca. A abordagem dada pela pesquisadora,
na citação abaixo, versa a dissonância enquanto traço fundamental da crise épica e da
consequente emergência do romance:
A partir da representação do destino, a poesia permite a entrada em cena de
figuras dissonantes não apenas sob a forma de divindades não-belas, como
também na descrição de situações de tensão ou conflito. A dissonância
representa nada mais do que a contradição inevitável entre o real e o ideal,
responsável pela contradição do conceito de belo. Na estética de Hegel, a
dissonância aparece não como a negação exterior do belo estático tal como
ele se apresentava na arte plástica, mas como alargamento do poder interno
da arte, que se mostra pela primeira vez capaz de representar a contradição
sem que esta representação implique a destruição de si mesma.
Camões e o heroísmo por ele cantado é fruto direto de um horizonte artístico que
toma o dissonante, o paradoxal e o contraditório enquanto próprio cerne da condição
humana. As dubiedades de uma narrativa calcada sobre esses pressupostos dão vazão
formal a um novo arranjo ético-estético.
Vimos anteriormente que o modelo ético do qual emerge a épica é o da
comunidade orgânica, do homem que vive na resposta prescindindo da questão
(LUKÁCS, 2000). Tal composição tem como pressuposto uma figura heroica enraizada
em uma imperturbável calma frente ao destino humano. Parece-nos que Aquiles
incorpora com maior proximidade essa tônica: o líder dos mirmidões é digno do
heroísmo muito mais pela aceitação de seu destino, morrer nas praias de Troia, do que
pela capacidade guerreira. Frente à certeza da morte, Aquiles seguiu em frente, de
maneira impávida, como o cordeiro que oferece o pescoço à navalha.
Quando cotejado o narrar épico com o narrar romântico, podemos perceber o
divórcio entre um destino e outro. Se no mundo de Aquiles a grandiosidade está em
representar a integridade do homem frente às forças inquebrantáveis, já na forma dos
heróis camonianos o alvo é o próprio inescapável. N’Os Lusíadas, a obra carrega como
tônica formal a crise do épico e uma abertura para o que viria a ser o paradigma
64
romanesco, perspectiva na qual a relação entre destino e heroísmo é figurada aos moldes
da relação entre o prosaico e o evento.
Maurice Blanchot (2005, p. 8), em sua obra O livro por vir, faz algumas
aproximações entre o Moby Dick de Melville e a Odisseia de Homero. O crítico francês
vê semelhanças na manutenção de certa grandiosidade, ao cotejar o episódio do
encontro entre Odisseu e as sereias com o confronto final entre o capitão Ahab e o
chacalote branco. A semelhança acaba aí: no universo de Ahab existe espaço para o
narrar prosaico, em outras palavras, para algo além do evento; já Odisseu leva o
acontecimento para onde seus pés alcançarem. No seguinte trecho o autor elucida
brevemente as diferenças entre essas maneiras de narrar:
É verdade que a narrativa, em geral, relata um acontecimento excepcional
que escapa às formas do tempo cotidiano e ao mundo da verdade habitual,
talvez de toda verdade. Eis por que, com tanta insistência, ela rejeita tudo o
que poderia aproximá-la da frivolidade de uma ficção (o romance, pelo
contrário, que só diz o crível e o familiar, faz questão de passar por fictício)
De volta ao nosso Camões, podemos pensar na exaustão do narrador enquanto a
derrocada da nova musa frente à antiga, uma espécie de impossibilidade de manutenção
do evento, mas tal interpretação parece-nos incondizente com os caminhos que a forma
artística camoniana delineia. O destempero da lira e a pequenez do real são
combustíveis para as delícias do porvir, futuro que, tal qual o poema, há de ser criado,
batalhado, vencido e derrotado pelo engenho dos homens.
Camões canta um tempo no qual o primitivismo de uma potência diretamente
metonímica, asseverada pelo nome próprio de um Aquiles ou um Heitor, não é mais
possível. O corpo social que se mantinha coeso nas armaduras dos gregos e dos troianos
tornou-se multifacetado, cheio de olhos, de bocas e de membros. Podemos dizer que
quase perde sua unidade, quase morre a possibilidade da metonímia.
Só que Camões nos mostra que ela ganha nova potência em um pacto que
extrapola o imediato. A junção dos homens em uma identidade que se diz lusa, cristã e
ocidental emerge como um desafio em aberto, a ser atualizado pelas navegações do
porvir. Essa aventura não prescinde das banalidades da doença, do amor e do pranto: a
65
pequenez humana é a escala de sua própria grandiosidade. Lembremos que os homens
que alcançaram a “Ilha dos Amores” são os mesmos que padeceram de escorbuto
durante a longa viagem.
O prosaico que irresistivelmente adentra a aposta épica de Camões implica uma
negação de uma irmandade primeira entre os homens, ou seja, a comunidade não opera
em uma coesão pétrea, mas sim em um arranjo movediço, pleno de questões, de dúvidas
e de incertezas. A questão é que, nessa instabilidade dos tempos, impessoal, não heroica
e que visa arregimentar os homens em uma ordem progressivamente asséptica, que
vence o medo através do tédio, a solidão emerge enquanto promessa de uma unidade
vindoura:
Ou fazendo que, mais que a de Medusa
A vista vossa tema o monte Atlante
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante
De sorte que Alexandre em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
FIM
Povos da costa africana se submeterão aos portugueses. (X, 156)
Quando o poeta canta a surdez de seus compatriotas, o desvalor que seus iguais
dão à nova musa, transmutando o que foi e o que há de aventuroso na pequena Lusitânia
em mera matéria de cobiça. Ele não se retém no pesar, mas sim adentra em um jogo
retórico na qual os exemplos do passado são marcos grandiosos a serem superados pelos
homens do presente, a crise é uma oportunidade para o reencontro da humanidade com
sua própria epopeia. O que está sendo encenado é uma musa nova que, sob os marcos da
emergente Modernidade, promete aos portugueses a construção de um novo império,
espaço no qual os homens voltam a se sentir comungados com o mundo, não sob o
plano implacável do destino, mas como senhores do universo que os rodeia.
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A promessa de uma conquista africana adentra no imaginário da época, ainda em
muito herdeiro das cruzadas e suas correlatas retóricas expansionistas de fundamentação
religiosa. No conjunto narrativo d’Os Lusíadas, podemos conceber a promessa que se
segue à conclusão do épico como uma aposta poético-política em direção a uma
potência que se justifica ideologicamente, algo que ultrapassa o vazio de significado que
a exploração da Ásia acabou implicando.
O convite a uma nova empreitada “épica” pode ser lido, através da asserção de
Hegel (2014, p. 310), como uma espécie de “inquietação” da forma, ou melhor, uma
impossibilidade da quietude plástica, tão arquetípica das esculturas clássicas e dos
próprios heróis épicos. O filósofo afirma que “(...) encontramos a arte romântica desde o
seu início presa à seguinte oposição: a subjetividade infinita em si mesma é e deve
permanecer incompatível para si mesma com a matéria exterior.”. Sob tal perspectiva, é
impensável que o texto camoniano, enquanto protorromance que é, conclua-se sem a
promessa de um próximo porto, uma viagem a seguir.
II- Camões e o espírito do tempo
A presente dissertação objetivou tomar o gênero literário d’Os Lusíadas
enquanto problema. Para alcançar esse intento, o heroísmo emergiu como componente
fundamental. Percebemos que heroísmo e literatura épica são componentes
indissociáveis; em outras palavras, a epopeia é o lar do herói.
Em um olhar mais imediato, rediscutir o gênero literário no qual a grande
narrativa portuguesa se encontra pode parecer um exercício demasiadamente formal, um
restrito jogo de caracterização. Só que, ao resgatarmos o modo como as relações entre
gênero e movimento histórico foram tecidas nos estudos estéticos, somos apresentados a
um profundo processo de rediscussão da própria experiência humana.
A arte é retirada do vazio das bibliotecas e gabinetes e reinserida no movimento
da própria vida. Camões deixa de ser um autor-fetiche, utilizado enquanto um símbolo
oco de ode ao estado-nacional, para representar a concretização artística dos primeiros
passos em direção ao moderno. Sob tal perspectiva, nosso Camões pertence a todos os
67
herdeiros da grande aventura colonial, tempo que conjugou o poder de erguer e o de
destruir “coisas belas”, como diria Caetano Veloso, em uma escala até então inédita.
Que importa os gêneros literários frente a essa discussão? A literatura, tal qual a
economia e a religião, dentre tantas outras facetas da marcha histórica, compõe parte do
mosaico das inúmeras experiências humanas em seus respectivos tempos e espaços. Por
consequência, o gênero literário enquanto conceito histórico refrata as mudanças na
sensibilidade artística, expondo de maneira privilegiada os encontros e os desencontros
entre tradição e inovação.
Camões e sua “epopeia” adentram na relação movediça que o conceito gênero
literário encerra. O autor português, em seu intuito de dizer o presente reverenciando o
passado, constituiu no plano formal uma crise criativa que expôs o insustentável da
relação entre heroísmo, em sentido clássico, e epopeia. Da dissonância emergiu um
realismo que ainda goza de radical contemporaneidade.
O que durante a dissertação alcunhamos de aposta épica é o fermento de todas as
revoluções do porvir, um atestado de perecimento do que no presente se mostra
imperturbável e seguro. Não é à toa que o episódio do “Velho do Restelo” compõe
poeticamente uma crítica à voracidade humana, à impossibilidade de quietude.
A aposta em questão carrega como pressuposto o fracasso, em razão do próprio
distanciamento entre quem deseja e o objeto desejado. Os Lusíadas encenam a
impossibilidade de realização finalística do utópico: as Índias descobertas implicaram
em um vazio a ser aplacado somente pela conquista do próximo porto, em uma
infinitude de desejo a nunca ser concretizado.
O lugar da crítica, tal qual o da própria literatura, também assume uma feição
histórica. Dizer ou desdizer o caráter épico da narrativa camoniana implica uma tomada
de posição estético-política. Em nossa opinião, os estudos desenvolvidos pelo professor
Hernani Cidade são um exemplo da historicidade da crítica. O estudioso português
assume em suas obras uma leitura dialética de base hegeliana, campo teórico que
assume com firmeza a impossibilidade de verdejar uma literatura genuinamente épica
no solo da Modernidade.
68
A impossibilidade épica é lida por Cidade enquanto heterodoxia criativa, uma
nova musa que encerra em si valores basilares do que viria a ser a Modernidade
ocidental com seu universalismo e inquietude arquetípicos. O arrojo racional do homem
que, através da técnica, se assume senhor da natureza, transmutando os oceanos bravios
em uma zona franca de diálogos interculturais.
O crítico, em sua brilhante biografia, acena para um resgate progressista da obra
camoniana, ao enunciar o grande poeta português enquanto criador de uma épica já em
suas raízes transnacional. O episódio a que nos referimos é o dos seminários que Cidade
ofertou enquanto cativo em um campo de prisioneiros teutônico em plena primeira
guerra mundial:
Preso pelos alemães, depois da batalha de 9 de abril de 1918, continua a sua
catequese cívica, no campo dos oficiais prisioneiros. Não só prossegue o
estudo do alemão, como organiza aos Domingos conferências sobre literatura
portuguesa, lutando contra a degradação humana provocada pelo cativeiro. A
primeira Conferência chama-se “Camões, Poeta Europeu”, visa a “ampliação
moral e intelectual” da civilização europeia e situa Camões e Portugal. «Ao
Domingo prega o Cidade…», diziam os colegas. (INSTITUTO CAMÔES,
2018)
O resgate da poesia camoniana em meio às agruras da primeira grande guerra
carrega certa semelhança com questões refletidas pelo jovem Lukács em sua Teoria do
Romance. Apesar de não termos acesso ao conteúdo dos seminários feitos pelo então
soldado Hernani Cidade, podemos especular que elas se assemelham, no que tange às
chaves de leitura, ao humanismo universalista com o qual desenvolveu suas análises
literárias. Enquanto Cidade apontava para a renascença como momento histórico-
filosófico que produziu obras artísticas capazes de oferecer vislumbres importantes para
a compreensão e superação das agruras do começo do século, temos Lukács tomando a
épica helênica enquanto base para compreender a emergência do romance.
O prefácio de 1962 da Teoria do Romance, elaborado já na velhice de Lukács
(2000, p. 8), elucida algumas relações contextuais das quais emergiu no autor a ambição
de tomar a forma romanesca enquanto problema. A grande guerra é elemento
indissociável de tal contexto, evento que pôs em questão, para uma geração de
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intelectuais, qualquer possibilidade de progresso, como se o abismo fosse a única rota
para a qual o ocidente se dirigia:
Nessa época, ao tentar alçar à consciência minha atitude emocional, cheguei
aproximadamente ao seguinte resultado: as Potências Centrais provavelmente
baterão a Rússia; isso pode levar à queda do czarismo: de acordo. Há também
certa probabilidade de que o Ocidente triunfe sobre a Alemanha; se isso tiver
como consequência a derrocada dos Hohenzollern e dos Habsburgos, estou
igualmente de acordo. Mas então surge a pergunta: quem nos salva da
civilização ocidental?
Ao desenvolver seus estudos sobre o romance, trabalho que encenou o
distanciamento do kantismo presente em seus primeiros ensaios e a adesão ao
hegelianismo, a relação entre história e forma artística emerge como elemento-base da
crítica. Ler o romance enquanto expressão de um mundo em decomposição não é uma
conclusão surpreendente. Lukács aposta na forma romanesca uma espécie de negativo
da épica, o radical oposto das comunidades orgânicas que parturejaram a épica helênica.
A “(...) historização das categorias estéticas” (LUKÁCS, 2000, p. 12) implicou
uma dinâmica leitura da relação entre passado e presente. Podemos vislumbrar na obra
uma marcante insatisfação frente ao mundo posto, o desnudamento do fracasso das
promessas da Modernidade. A resposta que o jovem Lukács teceu para o desconserto do
mundo assumiu uma feição nostálgica, um anticapitalismo em muito semelhante com o
pensamento romântico do século anterior.
Na esteira de tal pensamento, podemos compreender a aposta que o autor faz na
literatura russa, tomando Tolstoi como um possível articulador de uma nova épica. O
autor descreve as relações contextuais russas enquanto espaço fértil para a emergência
de uma literatura capaz de mimetizar uma comunidade eticamente mais afim com o
primitivismo clássico. Nas palavras do próprio húngaro,
Somente a maior proximidade aos estados orgânicos-naturais de origem,
dados na literatura russa do século XIX substrato de sua mentalidade e
organização torna possível uma tal polêmica criativa. Depois de Turguiêniev,
romântico da desilusão essencialmente “europeu”, Tolstoi criou essa forma
de romance com a mais forte transcendência rumo à epopeia. A grande
mentalidade de Tolstói, verdadeiramente épica e afastada de toda a forma
romanesca, aspira a uma vida que se funda na comunidade de homens
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simples, de mesmos sentimentos, estreitamente ligados à natureza, que se
molda ao grande ritmo da natureza, move-se segundo sua cadência de vida e
morte e exclui de si tudo o que é mesquinho e dissolutivo, desagregador e
estagnante das formas não naturais. (LUKÁCS, 200, p. 152)
É incrível pensar que tanto Cidade quanto Lukács, ao partirem de uma leitura
histórica da obra de arte, assumem uma concepção vívida de história. Em outras
palavras, a arte é alçada a componente fundamental do processo de produção do destino
humano, pensando este último em termos modernos, ou seja, enquanto mediação entre o
possível e o impossível na construção do real.
Vasculhar na forma romanesca, como fez Lukács, ou buscar na narrativa
camoniana, como fez Cidade, elementos para compreender as correlações entre forma
artística e o espírito humano traz para o contemporâneo uma importante disputa de
significado, seja no estudo de um gênero literário em sua ascensão, cotejando-o com as
formas narrativas já canônicas, ou no processo de detalhadamente compreender o texto
camoniano, em suas peculiaridades formais e reflexos contextuais.
Com isso queremos dizer que conceber a arte enquanto parte fundamental da
dinâmica histórica é alçá-la inescapavelmente ao solo do contemporâneo. O passado
enquanto tradição tende a emergir como paradigma a ser profanado e que nesse
movimento mais se reafirma enquanto parte do presente do que como matéria
verdadeiramente ultrapassada. Parece-nos que esse é o caso de Camões.
O próprio Hegel, autor que influenciou de maneira basilar os estudos de ambos
os autores, destaques no nosso presente processo de análise, tece breves ponderações
sobre a narrativa camoniana. Reflexão que, como nos críticos anteriores, também está
impregnada de um olhar e de uma aposta na Modernidade.
Diferente dos seus seguidores do século XX, Lukács e Cidade, Hegel construiu
seu arcabouço teórico simultaneamente ao processo de eclosão da Revolução Francesa e
suas inúmeras consequências político-estético-históricas, sendo, principalmente em sua
juventude, um entusiasta das ideias francesas. O professor Leandro Konder (1985, p.
55) ilustra bem a simpatia do autor frente ao horizonte aberto pela revolução burguesa
no seguinte fragmento da obra Hegel: A razão quase enlouquecida:
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Hegel estava convencido de que o período histórico que ia de 1789 a 1814 (o
quarto de século que se estendia da tomada da bastilha à queda de Napoleão)
constituía “o período mais rico que a história mundial teve, e para nós
também o mais rico de ensinamentos”. Os ímpetos transformadores haviam
aparecido de modo confuso e um tanto truculento e foram necessariamente
redimensionados, porém correspondiam a uma necessidade muito profunda e
por isso não desapareceram, nem podiam desaparecer: passaram a operar de
outra forma. As marcas das mudanças realizadas não podiam ser suprimidas.
O autor viveu tempo o bastante para ver o fenecimento de algumas ideias
libertárias intrínsecas à revolução, sendo talvez o republicanismo o primeiro a ter sido
abatido. Ainda assim sua obra manteve como tônica o elogio à Modernidade.
Sob tal perspectiva, as formas artísticas produzidas pelo mundo clássico
encerram uma grande admiração, mas não uma nostalgia. A superação da forma de arte
clássica é um pressuposto para a própria marcha do espírito humano em direção à
racionalidade, fator imprescindível para o exercício da liberdade, de acordo com Hegel.
O autor expõe, em sua estética, que é possível encontrar “(...) em cada progresso,
uma contribuição para se libertar ela mesma do conteúdo exposto.” (HEGEL, 2014, p.
339). Em outras palavras, a superação da arte em sua figuração clássica implica uma
implosão da harmonia pretérita em direção a novas possibilidades expressivas e
conceituais, isto é, um horizonte artístico capaz de dizer o moderno.
Na esteira dessa compreensão, podemos ler a crítica hegeliana e as suas
ponderações frente à derrocada do épico como um movimento natural no seio da
representação artística. Os primitivismos que mantinham vivos a constituição da figura
heroica, dentre eles fundamentalmente a inexistência de uma instância racional
comparável com o Estado moderno, devem ser desmistificados e naturalmente
sucedidos por modelos éticos mediados por uma racionalidade coletiva.
Talvez seja possível compreender Hegel como um leitor otimista da ascensão do
romance, concebendo-o como uma representação do moderno da mesma maneira que as
estruturas de poder da Grécia clássica e aristocrática são figuradas pela épica. O
romance, ao dar vazão a um processo progressivo de atomização do sujeito e, por
consequência, de complexificação das relações sociais, dá forma à solidão comum, à
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própria experiência de individualidade. A arte nesse contexto, mais do que em qualquer
outro período, é a grande mediadora entre o singular e o plural, criando formas que, em
suas diversas recepções, amalgamam uma base universal de sensibilidade humana.
Como bem colocado por Gonçalves (2001, p. 180), “(...) no momento em que a arte
suprassume a aparente harmonia do belo ideal, ela atinge a dinâmica viva de sua
verdadeira funcionalidade, qual seja, a de ser também ela reveladora da contradição da
vida humana e, consequentemente, matéria para o filosofar.”.
A impossibilidade épica em Camões emerge não como um pesar histórico, se
pensarmos como Hegel, mas sim como parte de uma caminhada para uma nova espécie
de universalidade a ser ficcionalmente constituída: a beleza ainda atual do homem
enquanto construtor de seu próprio destino, aventuroso frente ao inexplorado e frustrado
com o intangível, mas em uma constância de movimento. Camões dá forma a um desejo
enorme de viver. Sob tal perspectiva, ele está intimamente irmanado com a sociedade
orgânica ficcionalizada por Homero e seus cantores, alcançando uma universalidade
capaz de o alcunhar de clássico, mas um clássico moderno.
Essa é nossa posição ao ler Camões no ano de 2018, quase 2019. Camões é o
autor de um protorromance, ou de uma não épica a caminho das formas modernas. O
nome em si não é o mais importante, mas sim o reconhecimento do grande poeta
português enquanto estetizador do processo fundacional do nosso mundo. Dizemos isso
não somente enquanto herdeiros da diáspora lusitana, mas como filhos da Modernidade
tal qual qualquer ser humano habitante nestes loucos anos do século XXI.
Enquanto reflexão que aposta no moderno como temporalidade histórica ainda
longe de cumprir com todas as promessas da qual emergiu, mas que ao mesmo tempo é
demasiada nova para já considerarmos como um retumbante fracasso, nos aproximamos
da leitura do professor Hernani Cidade. Não só pelo seu veredito que, apesar de manter
intacto o adjetivo épico, adiciona o valor da heterodoxia, mas fundamentalmente pelo
gesto de reconhecer no texto camoniano um humanismo que nos parece ainda atual. A
nova musa do nosso Luís de Camões continua com uma juventude imperturbável e com
a potência de nos dirigir a busca pela “Ilha dos Amores”.
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