Ou Feia Ou Bonita, Ninguém Acredita Na Vida Real

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  • 8/18/2019 Ou Feia Ou Bonita, Ninguém Acredita Na Vida Real

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    Ou feia ou bonita, Ninguém acredita na VidaReal* 

    Por Denilson Lopes** 

    O que primeiro me chama a atenção em “Doce Amianto”, de Guto Parente e

    Uirá dos Reis, é a recusa de uma estética do real, tão presente (e não só) nacultura brasileira. O desejo de fazer um documento, uma crônica da sociedadeou de entender personagens individuais dentro de um contexto social ehistórico claramente apresentado e a partir do qual os personagens sãocompreendidos é tão antigo como o Naturalismo no século XIX e se estendepor toda uma tradição marcada por um realismo social. Em “Doce Amianto”,

    não se documenta a realidade nem se trata de dar voz ao excluído. Tambémestamos longe do Neo-Realismo ou de Pedro Costa (para mencionar doisexemplos fortes de uma estética do real no cinema). A encenação da margemé de outra natureza aqui. 

    Não sabemos onde exatamente acontece o filme. Não há nenhuma aproximaçãocom regionalismo ou mesmo com a necessidade de identificar um local preciso aovermos o apartamento de “Doce Amianto”, a festa, o restaurante. Mesmo quando

    vemos a rua, não parece importar em que cidade ou país estamos.

    O apartamento de Amianto é construído ostensivamente como cenário nadanaturalista, com cores fortes. O uso da luz, de objetos como abajour e espelhofazem da casa dela um lugar à parte para uma protagonista que está à margem.Mesmo o exterior, a natureza é o lugar do artifício.

    Ao invés da contenção dos gestos, da rarefação dos espaços e do esvaziamentodramático (tão celebrados em várias propostas hoje em dia), a interpretação deDeynne Augusto, desde a primeira fala, é afetada (não só a fala). A afetação quepode espantar um público desavisado, mas será assumida e mantida até o final do

    filme. Amianto não é um personagem qualquer, nem é um cotidiano definido porrepetições e regularidades que interessa. Não é à toa que Amianto é identificadapor uma interjeição (ó). Seu corpo também é um artifício, montado, maquiado, nasucessão de roupas que usa, como peles trocadas. Como se dissesse, nada émesmo natural. Tudo é pose.

    Como então articular encenação e interpretação? O que une encenação einterpretação, o que dá lugar, solo e mesmo história à personagem seriao camp. Diria que o filme tem mais do que uma sensibilidade, ele tem umimaginário camp, definido pelo excesso, pelo artifício e pela afetação. Camp é umafeto que diz o seu nome, sem medo do sentimentalismo, que gosta de canções

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    românticas (não é à toa aqui a presença do fado, da ópera e da diva comoreferência de construção da subjetividade) e de melodramas. Não kitsch (o maugosto que quer ser bom gosto), nem trash (o mau gosto quer continuar ser a maugosto). Mas camp. E ocamp se insere numa trajetória de uma estética do artifício

    que remonta pelo menos desde o Barroco, passa pelos decadentistas e pelodândismo e vai até o glam rock. O filme, mais do que uma estória de desilusãoamorosa, é uma fantasia camp, sem deixar de ser uma narrativa (que me fazlembrar mais Djalma Limongi Batista do que Kenneth Anger), em que contudo aencenação e a interpretação não sufocam o afeto, o encontro do espectador. Estaseria, pra mim, uma qualidade do filme.

    Há um choro que joga com, mas não reproduz, o melodrama mas também hámomentos de humor em que deixamos a possibilidade de rir de Amianto para rircom Amianto. Amianto é um teatro permanente que não teme dizer e buscar o

    afeto. Voilá mon coeur . Eis meu coração é a epígrafe de Leonilson, artista plástico,na linhagem dos exagerados e ternos que inclui Álvares de Azevedo e Cazuza.Coração esse cheio de brilho, maquiagem mas não menos real. O afeto é real.

    Se a leitura do filme como uma fantasia camp é adequada, gostaria dedesenvolver um pouco mais. Aos que não lembram, lá nos anos 60, Susan Sontag,em antológico ensaio, já dizia que o camp é uma sensibilidade gay, nãonecessariamente de pessoas gays (exemplificando: nem todos que gostavam deJudy Garland ou de Carmem Miranda eram homossexuais, mas que algo ali havia,havia). Mas isso era antes da Revolução Sexual.

    Mas o que fazer do camp em 2013? Foi este um lugar de encontro de caminhosaparentemente tão diversos como o de Guto Parente (com curtas em que afotografia e a montagem são mais fortes do que o texto e o diálogo) e de Uirá,mais vinculado à literatura? Seria uma estratégia envelhecida para fazer chegarelementos do universo gay como fetiches para um público não-gay ou a volta dealgo excluído do politicamente correto? Seria uma tentativa de tentar atingir umpúblico mais amplo? A última cena em que a protagonista dança quando échamada de viado não seria uma forma de evitar o uso bem comportado do camp?

    São várias as dúvidas e inquietações que o filme me suscitou. Contudo, é bomlembrar que o camp foi uma experiência de uma cultura gay que foi cada vez maisabsorvida e exotizada (por exemplo, transformistas dublando música em programade auditório de tv). O poeta e militante Nestor Perlongher proclamava, salvoengano, nos anos 90, a morte da louca (bicha afetada, camp) em meio ao pânicoda Aids. A festa bi trans poli pan sexual dos anos 60 e 70 parecia que tinhaacabado. Surgem os macho gays, rapazes fortes, de bigode, que se queremmasculinos, depois aparecem os gays “saudáveis”, bem comportados e discretos,que querem se integrar na sociedade, perfeitos para casar, serem responsáveis,bons cidadãos, melhores amigos das heroínas nas comédias românticas.

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    Outro é o caminho de Amianto, junto com Walt Whitman, evocado no início dofilme. Trata-se de ser singular mas não necessariamente excluído, de estar àmargem mas não vítima, de estar só mas procurar, sem cessar, o encontro, acomunidade afetiva, a camaradagem, a amizade que não exclui o sexo. Em boa

    parte do filme, Amianto viaja na sua imaginação, na busca do encanto, do desejo,no desejo de ser desejada. Recusa a fantasia do casamento que se desfaz emplena festa noturna. Mas seu caminho não será a normalidade (como na estóriacontada no filme), busca que acaba, de toda forma, sendo impossível. O fantasmaBlanche, a amiga morta, se despede. (Blanche Dubois, conhecida heroína deTennessee Williams, que sempre dependeu da gentileza dos estranhos, era maisuma encarnação de Mme. Bovary que morre por preferir a fantasia ou nãoconseguir viver uma vida comum). Ou como Ludwig em filme de Visconti que querbuscar a felicidade no impossível. Já Amianto sobrevive à sua dor. No fim do filme,quem tinha abandonado Amianto retorna. O sexo é real. O afeto é real. A fantasia

    é real.

    Amianto diz mais ou menos assim para si mesma: “Preciso mudar o mundo,embora prefira este gozo contigo, meu amor”. Sem grandes gestos, ecoa, talvez

    ainda, um tom libertário que aparece na voz de um personagem de Caio Fernando Abreu, que poderia ser um irmão/irmã de Amianto, em “Anotações sobre um AmorUrbano” (em Ovelhas Negras): “Não vê que é isso que eles querem que você

    sinta? medo, culpa, vergonha — eu aceito, eu me contento com pouco — eu nãoaceito nada nem me contento com pouco — eu quero muito, eu quero mais, eu

    quero tudo” 

    * * * 

    * Artigo sobre a obra de Guto Parente produzido por ocasião do debate realizadona 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2013, e publicado no siteoficial do evento (www.mostratiradentes.com.br). O evento é realizado pelaUniverso Produção.

    ** Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq e autor de “No Coração doMundo: Paisagens Trasnculturais” (Rio de Janeiro, Rocco, 2012), “A delicadeza:

    estética, experiência e paisagens” (Brasília, EdUnB, 2007), “O homem que amavarapazes e outros ensaios” (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002) e “Nós os mortos:

    melancolia e neo-barroco” (Rio de Janeiro, 7Letras, 1999). Organizador, ao lado de Andréa França, de “Cinema, globalização e interculturalidade” (Chapecó, Argos,

    2010) e organizador de “O cinema dos anos 90” (Chapecó, Argos, 2005).