Ousmane Sembène: uma abordagem cultural na luta contra o colonialismo de 1950 a 1969 -Gustavo de Andrade Durão

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    Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969

    Gustavo de Andrade Duro

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 123

    Ousmane Sembne: uma abordagem cultural naluta contra o colonialismo de 1950 a 1969

    Gustavo de Andrade DuroDoutorando em HistriaUFRJ

    [email protected]

    RESUMO: A trajetria de Ousmane Sembne (cineasta, escritor e militante marxista)explicita algumas estruturas da sociedade africana dos antigos territrios coloniaisfranceses. Buscando-se a percepo e a valorizao das obras de Sembne, e principalmentede sua obra cinemtaogrfica Le Mandat, de 1969, tem-se um representao dos problemasque envolveram a sociedade senegalesa no que tange seus valores humanos, polticos e de

    identidade no perodo posterior independncia. Dessa forma, pretende-se promover umareflexo sobre o papel do intelectual africano no respectivo perodo, no mbito de Histriada frica contempornea, como um anlise acerca dos escritores negro-africanos falantesda lngua francesa.

    PALAVRAS-CHAVE: Senegal; Histria da frica;Ngritude.

    ABSTRACT: The trajectory of Ousmane Sembne (filmmaker, writer and marxistmilitant) explain some africain society strucutures of the old french colonial territories.Seeking the perception and exploitation of Sembnes work, and particularly his movie Le

    Mandat, from 1969, which represents some of the problems surrounding the senegalese

    society regarding their human values, political and identity in the period afterindependence. Thus, it is intended to promote a reflectionon the role of africain intellectualin the respective period, in the course of the Contemporary Africain History, as a reflectionon the black africain writers whon speaks french.

    KEYWORDS: Senegal, Africain History,Ngritude.

    Introduo

    A partir dos estudos de frica que surgem com fora no mbito acadmico

    brasileiro, pode-se perceber que em poucos anos desde o lanamento da Lei 10.639/03(que obriga o ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas e

    universidades) muito se fez para enriquecer o conhecimento em relao ao continente e s

    obras dos intelectuais negro-africanos do sculo passado.

    Atravs deste balano e da percepo de fragilidades acadmicas sobre o tema foi

    desenvolvido e pensado este artigo, no qual se pretende fazer uma provocao preliminar

    acerca de um tema que est negligenciado pelos estudiosos da frica contempornea: a

    frica francfona e s implicaes do colonialismo francs no continente africano no

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    perodo que vai da produo literria ps-independente at os primeiros anos da

    emancipao poltica africana.

    Este trabalho baseia-se na obra de um importante autor, romancista e militante de

    um movimento anticolonialista que comea fora da frica, mas tm suas bases no

    questionamento do colonialismo no Senegal. Ousmane Sembne, alm de ter sido escritor,

    foi um importante cineasta, pioneiro na representao da frica de expresso francesa

    atravs da cinematografia.

    A singularidade de sua obra justifica-se por retratar um ambiente social africano em

    meio s transformaes poltico-sociais do mundo contemporneo. Alm disso, o referido

    autor exps elementos suficientes para acreditarmos que a passividade do africano (de

    expresso francesa) no ocorreu de fato como os livros de histria pretendiam nos ensinar

    ou transmitir.

    Ousmane Sembne no deixa de se referir ao Senegal em suas obras e

    representante importante de uma elite colonial francfona que pde acompanhar o

    processo de independncia de seu pas. Alm disso, participou de uma construo nacional

    que criticava no s a estrutura capitalista deixada pelo colonizador, mas tambm o no

    enfrentamento por parte do ex-colonizado (transformado oficialmente em cidado a partir

    de 1960).

    Suas obras so de fundamental importncia para os historiadores, se analisadas

    como representao do tempo histrico. Os romances de Sembne e seus filmes

    demonstram parte do modo de vida africano e das complexidades que foram encontradas

    aps a independncia, uma realidade pouco explorada at o momento.

    H diversas obras que poderiam ser escolhidas, tais como Vhi Ciosane, Le Bouts de

    Bois de Dieu, Xala ou Molaade, mas a escolha pelo Le Mandat foi motivada pelo carter

    representativo da sociedade africana que se relaciona com os parcos estudos sobre

    pensadores da frica Ocidental Francesa.

    Atravs de um dilogo intercultural e interdisciplinar prope-se movimentar uma

    reflexo entre a Histria da frica e o contato colonial francs, que se mostra um bom

    caminho de anlise sobre a escrita literria e as movimentaes polticas dos pensadores

    africanos de expresso francesa.

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    A compreenso dos mtodos coloniais franceses (como a assimilao, que contava

    com a educao colonial dos indivduos) e as crticas colonizao francesa foram

    abordadas sutilmente por Sembne em suas obras. Nelas, possvel perceber importantes

    reflexes atravs da anlise entre literatura e cinema, pontos relevantes na narrativa de

    Sembne, principalmente, se tomando como base a obra cinematogrfica Le Mandat de

    1968.

    Sembne, uma trajetria de crtica e de contestao

    Ousmane Sembne nasceu em 1923 e comeou a sua carreira como escritor a partir

    de 1956. Como era comum entre os colonizados na frica Ocidental Francesa, ocupou

    diversos pequenos ofcios como mecnico, pescador, marceneiro, etc. Em 1942 Sembne

    foi recrutado para ser atirador senegals (os recrutamentos dos atiradores foram iniciadas

    pelo deputado Blaise Diagne em 1917) e com isso, deu-se incio a sua relao com a

    metrpole.1

    Pode-se dizer que as obras de Sembne eram direcionadas para uma elite cultural

    africana que no pde capt-la de maneira produtiva, como ele almejava. A escolha de

    Sembne pelo cinema, segundo seus crticos, foi um modo de tornar suas produes

    acessveis a um pblico mais amplo, assim, as obras de Sembne estariam imbudas de uma

    caracterstica mais popular2. O cinema foi, portanto, uma escolha que alm de popularizar

    seu pensamento, tornou possvel difundi-lo mais abertamente.

    Vale ressaltar que, no que diz respeito sua trajetria, Ousmane Sembne foi

    enviado a Moscou para estudar cinema nos Estdios Gorki, a fim de aprender com os

    mestres da cinematografia sovitica. Esse era o resultado de um programa de incentivo do

    Ministrio da Frana para a Cultura e Cooperao.3

    Contudo, o pensador senegals no estava sozinho na empreitada de pesquisa e

    desenvolvimento de trabalhos sobre cinema, pois com ele foram estudar na Rssia outros

    pensadores africanos como Costa Diagne (senegals) e Souleymane Ciss (malins), que

    1 NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne: entre la rupture et la continuitdune representation de la parole a fricaine. The French Review, EUA, v. 70, n. 6, p. 865-872, mai. 1997, p. 865.2______. Le Griot dans le rcit dOusm ane Sembne: entre la rupture et la continu it dune representation dela parole africaine, p. 865.3 GENOVA, James E. Cinema and the Struggle to (De)colonize the Mind in French/ Francophone West

    Africa (1950s-1960s). The Journal of the Midwest Modern Language Association, EUA, v. 39, n.1, p. 50-62, mar.2006, p. 58.

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    pode ter sido o primeiro africano a ter terminado o ciclo de estudos na cole Supriere de

    Cinma.4

    Desse modo, v-se que o papel de Sembne no campo cultural foi de extrema

    importncia, pois operando com as representaes da vida cotidiana nas suas obras, o autor

    expunha um colonialismo que era censurado. Essa crtica circulava na maioria dos

    peridicos somente a uma parte dos representantes da elite letrada francfona, no

    atingindo a maior parte da populao no alfabetizada.

    A trajetria de Sembne foi diferente dos pensadores do Movimento da Ngritude

    como Lopold Senghor e Aim Csaire, j que ele foi autodidata. Principalmente porque o

    sistema educacional francs nas colnias desconsiderava as tradies culturais dos povos

    que habitavam os territrios antes da chegada do colonizador e de alguma maneira a obra

    de Sembne se tornou uma arma importante na luta anticolonial nas dcadas de 1950 e

    1960.

    Segundo o filsofo gans Anthony Kwame Appiah:

    Insistir na alienao dos sditos coloniais de educao ocidental, em suacapacidade de apreciar e valorizar suas prprias tradies, correr o riscode confundir o poder dessa experincia primria com o rigor de muitasformas de resistncia cultural ao colonialismo. O sentimento de que os

    colonizadores superestimam o alcance de sua penetrao cultural compatvel com a raiva ou o dio, ou a nsia de liberdade; mas noimplica as deficincias de autoconfiana que levam alienao.5

    Desse modo v-se que a caracterstica do sistema de assimilao adotado pela

    Frana era a manuteno de um sistema de ensino que no levasse em considerao a vida

    e os costumes dos sditos coloniais. Por isso, levanta-se a hiptese de que caracterizando

    essa tentativa de alienao nos mecanismos da misso civilizadora francesa, o papel de

    Sembne foi de esclarecer sobre as ambiguidades da colonizao atravs de uma militncia

    anticolonialista fortemente influenciada pelo ideal marxista.

    Como tambm aponta a crtica literria Claire-Neige Jaunet, Sembne, bem como

    Ferdinand Oyono (Le vieux ngre et la medaille1956) foram romancistas pioneiros na crtica

    4GENOVA, James E. Cinema and the Struggle to (De)colonize the Mind in French/ Francophone WestAfrica (1950s-1960s), p. 58. 5 APPIAH, Kwame Anthony. Na Casa de Meu Pai: A frica na filosofia da Cultura. Rio de Janeiro:Contraponto, 1997, p. 25.

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    atividade colonial francesa e expuseram as necessidades mais urgentes de se pr fim ao

    processo colonial na frica Ocidental Francesa.6

    A mesma autora assegura ser a produo de Sembne uma das mais importantes

    dentre os escritores negro-africanos por estar relacionada diretamente s questes de sua

    sociedade e de sua poca. Um exemplo a primeira obra publicada de renome: Les Bouts de

    bois de Dieu. O livro tratava da greve ocorrida entre 1947 e 1948 em Dacar, This e Bamako

    (colnias francesas antes da independncia em 1960) e expunha no s as atividades de

    explorao promovidas pela Frana, como demonstrava a movimentao dos trabalhadores

    que exigiam condies iguais de trabalho para todos nas colnias.

    possvel perceber ainda que a anlise de Sembne nesta obra pioneira por

    demonstrar o papel das mulheres diante da contestao ao colonialismo francs e a

    importncia destas em militarem favor dos homens negros de Dacar.7

    Segundo um dos principais crticos da obra de Sembne, Anthre Nzbatsinda, o

    escritor e cineasta pode ser comparado a um griot, verdadeiro artista da palavra africana, j

    que a principal caracterstica das suas obras foi de buscar remontar s tradies africanas8.

    De modo anlogo ao griotafricano, Sembne conta uma histria do passado e relembra a

    oralidade, ou seja, na presente anlise ele ilustra um personagem que fez parte da rede de

    saber. Revelando o ser pensante dentro de um espao dominado pelo francs, onde o

    africano era constantemente bombardeado pela ideologia alienante da mission civilisatrice.

    Utilizando a anlise de Aim Csaire sobre a relao entre a cultura e a poltica,

    pode-se compreender a dificuldade e a resistncia ao contato cultural francs (bem como

    sua ideologia) que ocorreu diante do sistema da assimilao. No ensaio apresentado no

    Primeiro Congresso de Artistas e Escritores Negros em Paris, por exemplo, o autor define

    que o fracasso de tal teoria que ela se baseia na iluso que a colonizao um contato

    como outro qualquer e que todos os emprstimos so vlidos.9

    Ngritudee a movimentao cultural dos escritores negros

    6JAUNET, Claire-Neige. Les crivains de la ngritude. Paris : Ellipses - Col. Rseau_ les coles artistiques, 2001,p. 66-67.7______. Les crivains de l a ngritude, p. 70-71.

    8NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne, p. 867. 9CESAIRE, Aim. Culture et colonisation. Libert, v. 5, n. 1, 1963, p. 29 (traduo livre do autor).

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    que prolongaram os debates comeados antes da guerra, preparandotodas as mudanas que viriam.13

    O historiador Pap Ndiaye afirma que o perodo de 1945 a 1956 representou o

    dilogo entre os pensadores africanos assimilacionistas e os anticolonialistas

    14

    . Os primeiroscomungavam do ideal de aceitao e implementao do sistema de assimilao preconizado

    pelos colonizadores franceses; j os segundos eram os que demandavam o fim da presena

    poltica e administrativa dos colonizadores na frica Ocidental Francesa, prezando pela

    autodeterminao dos povos nos territrios da frica Negra.15

    Ainda vale lembrar que os debates possuram grande complexidade e exigncia no

    campo intelectual, por grande incentivo do governo francs em garantir bolsas de estudo

    de qualidade para os indivduos das elites intelectuais na metrpole. ainda apontado por

    Ndiaye que o investimento por parte da Rssia e do partido comunista tambm foram

    fatores determinantes na manuteno de redes de solidariedade entre os pensadores negros

    do incio da dcada de 1950.16

    Por isso, grande parte da historiografia sobre os pensadores negros de expresso

    francesa define a atuao de Alioune Diop como um fator determinante para o momento

    que se iniciava. Isso se deu porque a revista Prsence Africaine (fundada por ele em 1946),

    conseguiu grande projeo e apoio poltico de uma intelectualidade negra que ganhava cada

    vez mais espao no campo literrio da sociedade parisiense. A ngritude de hoje, disse

    Alioune Diop, tem por misso restituir a histria em suas verdadeiras dimenses .17

    Essa grande crtica de Alioune Diop foi pronunciada no Primeiro Congresso de

    Artistas e Escritores Negros, em 1956, e definia a qualidade da formao intelectual dos

    participantes de um contexto que ainda no rejeitava totalmente o conceito de ngritude, mas

    buscava uma atitude mais direcionada ao sistema de dependncia com o colonialismo

    francs, tanto no mbito poltico, quanto cultural.

    Ainda na expresso de Alioune Diop no referido congresso: Os homens de

    cultura, em frica, no podem mais se desinteressar da poltica, que uma condio

    13NDIAYE, Pap. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise. Paris: Calmann-Lvy/ Gallimard, 2008,p. 384. (traduo livre do autor).14______. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 359-362.15______. La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 361.

    16______.La condition Noire: Essai sur une minorit franaise, p. 361.17KESTELOOT, Lilyan.Histoire de la Littrature Ngro-africaine. Paris: Karthala/AUF, 2004, p. 214.

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    necessria do renascimento cultural18. Esta afirmao de Diop demonstra que um dos

    objetivos desse congresso era definir as linhas de ao ideolgicas que seriam seguidas

    pelos artistas e escritores que estavam engajados na luta contra a colonizao.

    No primeiro congresso (1956), as linhas de ao estavam se definindo em torno dos

    intelectuais negros americanos, antilhanos, africanos e malgaches com forte presena dos

    ideais marxistas. De acordo com Lylian Kesteloot, a presena de Josephine Baker no

    Congresso seria uma representao da multiplicidade de temas que circularam entre os

    intelectuais ali presentes, demonstrando que as questes culturais ainda estavam

    essencialmente em pauta.19

    Contudo, aponta-se que, durante esse congresso, as questes nacionais no estavam

    ainda fortemente definidas e o debate literrio-cultural ainda estava em voga. Por isso,

    percebe-se que o discurso direcionado estritamente ao nacional s se dar mais

    explicitamente no Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros, em 1959.

    Retomando a anlise da escritora e estudiosa do tema Lilyan Kesteloot, tm-se que

    as bases deste primeiro encontro foram tratadas a partir de trs verdades fundamentais:

    Que primeiramente no h povo sem cultura, que em segundo, no h cultura sem

    ancestrais e que no h liberdade cultural autntica sem liberao poltica prvia .20

    A anlise da locuo do martiniquenho Aim Csaire de suma importncia para

    compreendermos parte do sistema assimilacionaista, porque ilustra a dificuldade em se ter

    liberdade e condies propcias para produzir-se intelectualmente na metrpole.

    Principalmente quando este afirma que um regime poltico e social que suprime a

    autodeterminao de um povo, mata ao mesmo tempo o poder criativo deste povo. 21Ou

    seja, neste contexto de formao de novas propostas para a questo colonial que

    Sembne procurou engajar-se para tornar possvel a realizao de suas produes culturais

    voltadas s transformaes poltico-sociais necessrias sua realidade.

    Sembne e os escritores negros de 1959

    18KESTELOOT, Lilyan.Histo ire de la Littrature Ngro-africaine, p. 214-215.19______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 218.

    20______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 219.21CSAIRE, Aim. Culture et colonisation, p. 20.

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    Certamente essa ambincia cultural foi percebida por Sembne, pois, Aim Cesire

    j apresentara seu Discours sur le Colonialisme (1950), Frantz Fanon escrevera Pele Negra,

    Mscaras Brancas(1952) e Lopold Senghor j circulava seus escritos, como o chamado Les

    elements constitutifs dune civilization dexpression negre-africainede 1956. Provavelmente Sembne

    teria acesso quelas publicaes e certamente inteirou-se da discusso sobre produo

    cultural, racismo e valorizao dos aspectos de uma literatura negro-africana.

    Cabe lembrar tambm que a FEANF (Federao dos Estudantes da frica Negra

    na Frana) representou um papel importante na militncia anticolonial, incentivando os

    estudantes negros a iniciarem as manifestaes polticas e aderir aos sindicatos. Nota-se que

    a partir da anlise detalhada de grande parte das fontes trabalhadas, grande parte de

    escritores que constituem o campo de reflexo sobre o tema da ngritudeexalta o papel das

    influncias marxistas no perodo (incio da bipolarizao do mundo contemporneo) e

    outras silenciam quanto ao posicionamento destas ideologias como resultado do

    posicionamento de no alinhamento tomado por muitos pases africanos aps a

    conferncia da Bandung (1955).22

    Foram ainda instituies como a FEANF e o PCF (Partido Comunista Francs)

    que incentivaram o Segundo Congresso de Escritores e Artistas Negros (1959), onde a

    Prsence Africainede Alioune Diop continuava com a sua forma de aglomerar os intelectuaisengajados nas questes politico-culturais e, alm disso, onde a SAC (Sociedade Africana de

    Cultura) possua um amplo espao de penetrao.

    Atravs das anlises dos textos sobre o tema percebe-se que houve uma grande

    movimentao transnacional dos escritores negros que transpunham os territrios coloniais

    chegando s metrpoles, atingindo escritores que tambm eram simpticos ao tema da

    emancipao dos povos africanos e suas produes artstico-literrias.

    Neste momento, segundo Kesteloot, Ousmane Sembne acabara de escrever seu

    Docker Noir e se aproximava intelectualmente de Frantz Fanon e de Albert Memmi que

    tambm expuseram seus trabalhos em dilogos no segundo congresso. A questo de estar

    engajado ou no foi um dos grandes debates das dcadas de 1950 em diante, onde foi

    exposto que no era mais possvel escrever qualquer obra literria sem se tomar um

    posicionamento claro.23

    22KESTELOOT, Lylian, Histoire de la Littrature Ngro-africaine, p. 218-226.23______. Histoire de la Littrature Ngro -af ricaine, p. 226.

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    Segundo o pensamento do filsofo estruturalista francs Jean-Paul Sartre: Se

    tratava na maior parte do tempo de criticar uma poltica, de denunciar uma medida

    arbitrria, de se posicionar contra um homem ou contra uma propaganda (...)24. Essa

    afirmao faz referncia a defesa que o escritor francs faz de um papel de engajamento

    quase intrnseco ao papel de todo intelectual e homem das letras. Faz-se importante refletir

    em que medida essa noes foram compartilhadas pelos pensadores africanos como

    Ousmane Sembne.

    Desse modo, como aponta o filsofo francs, essa nova gerao intelectual possua

    no s um compromisso com a esttica e com a arte em si, mas tinha conscincia de que

    ela estava atrelada a um posicionamento poltico e que a questo colonial restringia e

    limitava uma qualidade essencial da cultura: a liberdade. Na definio de Aim Csaire a

    ideia de uma influncia do poltico sobre o cultural se impe como uma evidncia.25

    O ltimo congresso antes dos processos de independncia (1959) foi importante

    para essa intelectualidade africana emergente e, sobretudo, para Sembne, j que foram

    colocados em pauta temas como a participao dos soldados senegaleses (tiraileurs), a

    questo da unidade poltica e tantos outros assuntos referentes emancipao dos povos.

    possvel que Sembne tenha se utilizado de alguns aspectos das crticas dos

    escritores que fizeram parte do Movimento da Ngritude para elaborar suas obras26. Alm

    disso, imagina-se que ele tenha melhor construdo toda a sua crtica civilizao francesa a

    partir disto.

    De maneira geral e prtica, a colonizao no havia como ser combatida sem um

    projeto que propusesse uma construo ideolgica para a unidade do Estado. Por isso,

    Sembne, com a sensibilidade de um artista e com o compromisso do engajamento do

    escritor, retratou o processo de assimilao e como ele permanece incrustado na estrutura

    scio-cultural de um Senegal ps-independente. Pelo menos o que fica demonstrado

    amplamente em sua obra Le Mandat(escrito em 1966 e filmado em 1969).

    O Mandatouma resposta herana deixada pela misso civilizadora

    24 SARTRE, Jean-Paul. Quest-ce que la littrature? Paris: Editions Gallimard, 1948, p. 230. (traduo livre doautor)25CSAIRE, Aim. Culture et colonisation, p. 20. (tradu o livre do autor).

    26LIAUZU, Claude. Histoire de lanticolonialisme em France: Du XVI e sicle nos jours. Paris: Armand Colin,Pluriel, 2007, p. 296-297.

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    Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969

    Gustavo de Andrade Duro

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 133

    A estria de Le Mandat, de 1966, representa uma espcie de odisseia do personagem

    principal diante das dificuldades de se firmar como cidado no contexto scio-poltico-

    cultural do Senegal ps-independente. O filme de Ousmane Sembne retrata com vastido

    as dificuldades de Ibrahima Dieng para conseguir retirar um vale postal do correio,

    presente de seu sobrinho (Abdou) que estava trabalhando na Frana.

    Dentre os inmeros questionamentos de Sembne, pode-se notar a relao com as

    instituies, com o dinheiro e com as questes complexas de uma sociedade matrilinear e

    fundamentada nas prticas islmicas.

    A principal dificuldade de Ibrahima em conseguir a retirada do dinheiro do

    sobrinho apenas um primeiro aspecto que demonstra inmeros questionamentos por

    parte de Sembne, gerando um retrato bastante fiel da situao ps-independente para os

    indivduos comuns da antiga frica Ocidental francesa.

    Os problemas de Ibrahima permeiam o campo da moral, mas demonstram tambm

    que h uma imensa dificuldade em agir de maneira igualitria naquela sociedade que

    apresentada como dominada pela ambio do capitalismo e das instituies. Um grande

    exemplo pode ser a fala do funcionrio dos correios, quando diz: Velho, no importa,

    respondeu-lhe, pousando a mo sob Dieng. Sem foto, certido de nascimento e carimbo eu

    no posso nada, deixe o lugar ao prximo.27

    Nessa passagem do livro, percebe-se que a carteira de identidade era o que conferia

    a cidadania a Ibrahima e quando tenta a retirada do vale postal, o personagem principal do

    livro compreende a sua impossibilidade. Ao no possuir documento com foto (sua

    identidade) ele no era realmente cidado, entretanto, Ibrahima possua somente o ttulo de

    eleitor, o que lhe permitiria cumprir sua funo de deciso nas escolhas da poltica, nica

    responsabilidade diante do Estado.

    Ibrahima Dieng parece representado tanto na obra literria como na

    cinematogrfica como algum que est parte na infraestrutura das instituies no Senegal

    aps 1960, que sem identidade no pode existir perante as estruturas poltico-econmicas

    que permeiam o mundo dos antigos sditos coloniais.28

    27OUSMANE, Sembne. Le MandatPrcd de Vhi Ciosane. Ed. 1996, Paris: Prsence Africane, 2008, p.

    133, (traduo livre do autor).28______. Le MandatPrcd de Vhi,p. 133.

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    Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969

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    Esta reflexo pretendeu demonstrar que alm de criticar a burocracia ou a

    dificuldade em lidar com as instituies presentes no capitalismo moderno, a obra de

    Sembne, traa uma crtica da Assimilao Total adotada no Senegal durante o perodo

    colonial, sobretudo a partir da departamentalizao dos Territrios da frica Ocidental

    Francesa a partir de 1920.

    Pode-se perceber a importncia deste conceito no sentido de que ele explicita um

    sistema jurdico-administrativo planejado para o controle e a organizao dos territrios

    coloniais. Nas palavras de Anna Maria Gentili: A Assimilao Total, baseando-se sobre o

    princpio da igualdade de todos os homens, defendia que no existiam diferenas que no

    pudessem ser superadas pela instruo e pela ao da misso civilizadora. .29

    Sendo assim, pode-se inferir que a implementao dos mecanismos administrativos

    dos colonizadores franceses foi uma forte herana deixada pela administrao colonial aos

    antigos sditos que perceberam, consequentemente, o agravamento dos modos de excluso

    em sua sociedade.

    Pode-se perceber representado na obra de Sembne no s a crtica excluso do

    capitalismo, mas tambm o retrato de uma sociedade que estava deficiente nos seus

    aspectos morais e nas estruturas das organizaes sociais.

    O autor de Le Mandatquer mostrar que as instituies esto corrompidas e que a

    moralidade est se tornando um problema social. Por isso, a estria de Ibrahima contada

    por Sembne merece destaque ao mostrar uma situao sociocultural ainda conturbada,

    devido ao contato entre o antigo colonizador, a tradio e as prprias tentativas de se

    compreender uma nova ordem social, neste novo contexto que apresentava mudanas

    externas ao cidado comum.

    Atravs da ltima frase do filme que est tambm presente na obra literria, A

    honestidade um delito dos nossos dias30, v-se claramente que os valores morais foram

    questionados em sua obra.

    A saga de Ibrahima pode representar a decadncia dos valores morais na antiga

    frica Ocidental Francesa, que alm dos problemas sociais e das questes do cotidiano em

    frica, demonstram a ambiguidade de se herdar valores europeus. Ao mesmo tempo, a

    29GENTILI, Anna Maria. Verbete Assimilao. In: BOBBIO, Norberto. Dicionrio de Poltica, v. 1, 12 ed.

    Braslia: UnB, 2004, p.64.30OUSMANE, Sembne. Le MandatPrcd de Vhi, p. 189, (traduo livre do autor).

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    Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969

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    representao do escritor senegals auxilia a compreenso das estruturas polticas e

    institucionais do Senegal recm-independente.

    Sembne pioneiro quando expe uma representao das dificuldades em ser de

    fato cidado em meio a uma sociedade que apresenta uma estrutura j complexa, de

    instituies, burocracias e signos pr-estabelecidos por uma lgica do mundo do trabalho e

    do sistema capitalista. O sistema das instituies pode ser analisado como as imposies do

    capitalismo que no apresentaram qualquer sistema lgico de valores morais na sociedade

    senegalesa das dcadas de 1950 e 1960.

    Fechando uma anlise e convidando ao dilogo

    A presente reflexo buscou demonstrar uma representao de frica e dascomplicadas relaes coloniais no ps-independncia, onde Sembne ilustra elementos

    fundamentais para as ponderaes acerca da Histria e do processo de contato colonial em

    meados do sculo XX.

    A manuteno das estruturas institucionais a principal crtica de Sembne e apesar

    da possibilidade de escolha de outras obras (como Xala) para fundamentar a anlise, optou-

    se por Le Mandat que permite estabelecer uma relao entre cinema, obra literria e a

    Histria da frica. A epopeia de Ibrahima foi exemplar para a anlise da colonizaofrancesa e de como os escritores negro-africanos representaram-na.

    A grande tarefa de Sembne como representante de uma elite cultual africana foi

    demonstrar as ambiguidades do sistema assimilacionista que deixa uma herana de

    dependncia e uma manuteno de um determinado complexo de inferioridade ao negro-

    africano. Por outro lado, v-se a forte caracterstica de inovao na obra do cineasta

    senegals, por realizar a projeo de uma ambincia scio-poltica e cultural (por sinal,

    verossmil) em um perodo decisivamente importante para a frica contempornea.

    Para no encerrar a anlise sobre a obra de Sembne, deve-se ressaltar que atravs

    da leitura e pesquisa das obras literrias e cinematogrficas inicia-se uma construo de uma

    Histria da frica que centraliza o humano e a sua importncia no tempo-espao do

    continente africano. Nas palavras de Nzbatsinda:

    Se por um lado, se preocupa em atribuir literatura africana sua funosociocultural, e ento, de suavizar a ruptura (com o pblico autntico)devido modernidade inerente escritura, e talvez, haja nisso tambm a

    vontade de uma certa impossibilidade de representar ficcionalmente o

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    Ousmane Sembne: uma abordagem culturalna luta contra o colonialismo de 1950 a 1969

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    real, se ele necessita cada vez explicar e justificar as modalidades e asfunes desta representao.31

    Por fim, a obra dos escritores negros de expresso francesa precisa ser mais

    profundamente investigada e analisada pela historiografia como maneira de se perceberuma frica moderna, complexa e ainda repleta de ambiguidades.

    Recebido em: 06/05/2013

    Aprovado em: 15/07/2013

    31 NZBATSINDA, Anthre. Le Griot dans le rcit dOusmane Sembne: entre la rupture et la continuitdune representation de la parole africaine, p. 871, (tradu o livre do autor).